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O fim da invisibilidade e isolamento do cidadão ordinário Lylian Rodrigues
Doutoranda da Universidade Federal de Pernambuco
Resumo: o trabalho trata de contextualizar as lutas e conquistas dos movimentos sociais até sua
institucionalização. Atualmente, o cidadão isolado tem menor força diante do governo e, portanto,
menores possibilidades de conquistas e intervenções nas políticas públicas. É dado às instituições o
empoderamento de participação, representação e intervenção. Contrapondo esta realidade, a
internet com as redes sociais reconstrói a força do indivíduo no que constitui a expressão de si e
visibilidade, consequentemente, na política do sujeito.
Palavras-Chave: Movimentos Sociais – Política - Cidadania
Summary: We contextualize the struggles and achievements of social movements to his
institutionalization. Currently, ordinary citizens are isolated and as a consequence less power front
of the government. Therefore, less chance on public policy interventions. It is given to the
institutions the empowerment of participation, representation and intervention. Countering this
reality, the Internet social networking reconstructs the strength of the individual about itself
expression and visibility, consequently, on policy of the subject.
Keywords: Social Movements - Politics - Citizenship
Área temática: Comunicação e Desenvolvimento
O fim da invisibilidade e isolamento do cidadão ordinário
Comunicação para o Desenvolvimento
Como nossas primeiras reflexões, vale ressaltar aqui o nosso entendimento sobre o campo
da Comunicação para o desenvolvimento. Portanto, esclarecemos que nos importa tratar da
comunicação como um estudo das relações sociais estabelecidas entre os indivíduos que vivem em
sociedade em suas diferentes maneiras de expressão, em diferentes contextos políticos, históricos,
econômicos e filosóficos. Sendo a vida cotidiana o melhor espaço de observação por encontrarmos
aí a multiplicidade e heterogeneidades das relações humanas.
São relações diversas que tornam importante considerar o que “falam de mim”, o que
“escuto a meu respeito”, o que a mídia “representa sobre mim” junto a “como eu me sinto e
experimento o mundo” e “como eu quero me representar”. Interessa dessa rede relacional, a partir
das próprias sensibilidades diante da comunidade, o que comunico sobre mim, ou ainda, como eu
expresso o que represento. É o campo da comunicação em articulação com o campo da estética.
tanto o político quanto o estético teriam entre suas funções importantes o questionamento
de lógicas, ordens, regras implícitas e a abertura de passagens nas fronteiras existentes entre
regimes expressivos distintos. Uma tarefa instigante consiste em identificar alguns dos
pontos que marcam essa interseção (SALGUEIRO, 2010, p.03)
As interações e os dispositivos de tecnologia disponíveis interferem nos modos de
posicionamento político dos sujeitos “excluídos” ou “marginalizados”. Como compreender as
subjetividades determinadas pela moral de uma vida coletiva? Como a vida coletiva é determinada
pelas subjetividades destes isoladas?
Para tanto, observamos a rede de manifestações subjetivas do YouTube na perspectiva das
fronteiras entre política e estética, que permite investigar o que a comunicação neste espaço comum
legitima das expressões individuais marginais ou excluídas. É a estética como
emancipação das normas da representação, em segundo lugar a constituição de um tipo de
comunidade do sensível que funciona sob o modo da presunção do como se que inclui
aqueles que não estão incluídos, ao fazer ver um modo de existência do sensível subtraído à
repartição das partes e das parcelas (RANCIERE, 1996, p.68).
A rede configura-se como um espaço público comum de relações de poder. Assim,
declaramos nosso lugar de fala de um pensamento do campo comunicacional, das tecnologias, além
da perspectiva do suporte técnico, mais especialmente à organicidade dela com a sociedade,
participando dos processos sociais e vice-versa. É o processo de midiatização que vem tomando
lugar entre os pesquisadores e pensadores da área. Trata-se da reflexão sobre os processos técnicos
e sociais, a circulação e as relações diferidas e difusas.
É a possibilidade de transformação social a partir de dispositivo de mídia sob o amparo dos
processos sociais midiatizados que reconstituem os vínculos sociais à tecnologia.
Contemporaneamente, este espaço de relações reconfigurado pela mídia em seu agenciamento de
poder legitima modos comunicacionais massivos, em rede, e também particulares Castells (2011).
A técnica e a imaginação humana permitem aos meios e ao homem simular a realidade.
Criamos, simulando o mundo invisível da nossa imaginação, num mundo visível, virtual ou não.
“Saber e sentir ingressam num novo registro, que é o da possibilidade da sua exteriorização
objetivante” (SODRÉ, 2006, p.17). Os meios e as sensibilidades se integram. Tornamo-nos
mediadores de nós mesmos, o corpo também é um meio que simula o que se é. São manifestações
de mídia ou visibilidade ou simulação de indivíduos ou grupos sociais, mediando para grupos
sociais.
A conexão entre as pessoas não se restringe mais ao intercâmbio face a face, na interação.
Há uma alteração na própria idéia da experiência, pois esta pode se dissociar dos contextos locais
nos quais os indivíduos vivem e se tornam experiências desterritorializadas do espaço geográfico do
sujeito. Ao mesmo tempo, as experiências precisam ser pensadas (ou repensadas) em suas
micropolíticas, no acontecimento interpessoal e intrapessoal em pequena escala – no particular -, do
cotidiano simples e corriqueiro. As relações humanas, experimentadas de modo macro ou micro são
perpassadas, contemporaneamente, pelos processos de mídia.
O professor José Luiz Braga (2006) propõe pensar sobre a mediatização como processo
interacional de referência, na contemporaneidade. É como pensar uma linguagem a partir dos
dispositivos de mídia, objetivando e mediando as experiências. Entretanto, neste caso, a legitimação
é um elemento
espinhoso no processo – pelo fato de que, com a ênfase no pólo receptor, uma
grande parte dos processos interacionais da mediatização se voltam para a
construção de ‘imagens’ que, justamente sendo percebidas, de modo generalizado,
como ‘construídas’, apresentam a dificuldade de se substanciar em base de
legitimação (não apenas de serem consideradas legitimas – mas de serem
legitimadoras).” (BRAGA, 2006, p.13)
O artigo “Sobre a mediatização como processo interacional de referência” (Braga, 2006)
trata a mediatização como um conjunto de reformulações sócio-tecnológicas que passa a dar
condição às processualidades interacionais. O autor define o processo interacional como
hegemônico na construção social da realidade e a cultura escrita como o processo vigente que se vê
perdendo espaço para a mediatização. Mais do que ser considerado um processo hegemônico, a
perspectiva é que tal modo processual passa a organizar a sociedade e direcionam a transformação
desta e, portanto, seu desenvolvimento.
Na atualidade, não existe um processo sofisticado de preparação como “instrução de uso”
para repassar a experiência mediática como foi a escola no caso da escrita, entre diversas outras
lacunas (apresentadas no artigo) que identificam um processo em “caminhos” de se legitimar. Braga
trata das lógicas de transição como o deslocamento de processos tecnológicos, “nesse passo, a
mediatização aparece como processo social gerador de tecnologia. É relevante, aqui, apontar o
interesse desta ênfase como complemento dialético da ênfase inversa, mais habitual – em que a
mediatização aparece como um processo ‘decorrente’ da tecnologia” (idem, p. 06, grifo do autor).
Os modos que organizam a sociedade compõem o processo interacional social característico
da produção e circulação comunicacional, incluindo aí os modos de ser e a construção de vínculos.
A mediatização traz a possibilidade de mostrar, por representação da imagem e/ou do som, os
objetos e situações.
Com as possibilidades da imagem e do som, a exposição de situações
estimuladoras de experiência vicária se amplia, enquanto objetivações postas a
circular na interação social. Os processos diferidos e difusos passam a permear
diversas interações antes próprias da escala individual e de pequeno grupo, agora
de modo transversal à sociedade. (idem, p.08)
Assim, além da construção da realidade através das interações sociais orais, face a face, é
possível também circular imagem (referenciais ou imaginárias). Portanto, podemos afirmar que
circulamos experiência. A internet viabiliza e acelera esse processo que o autor define como
“interatividade difusa”. Nesse caso, cria-se uma rede, torna-se social o retorno, a resposta diferida e
difusa. São processos de interação que se vinculam a uma capacidade de legitimar realidade. É
possível perceber que os padrões da escrita passam por questionamentos de credibilidade, seja o
jornalismo ou mesmo o livro, diante da imagem. Ver para crer. Contemporaneamente, é possível
observar a internet e a comunicação em rede reorganizando a sociedade em novas processualidades
e padrões.
A rede não é somente uma tecnologia coisificada que eu uso, como um instrumento. É algo
que participa. No momento em que o homem pega pela primeira vez uma pedra ou um pau para se
defender, na pré-história, já é possível compreender a técnica como um meio que o transforma, pois
a partir de então, ele passa a ter recurso que o protege e isso se reverte no seu próprio modo de vida.
Os usos das tecnologias são também resistências.
“Nas situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo
implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e idéias, de modo que emerge a
intenção consciente” (DEWEY, 2010, p.109). Toda experiência, portanto, é resultado de interação.
As experiências subjetivas e a internet provocam uma estrutura nova de experiência coletiva
aos modos de subjetivação, da massa de indivíduos; ou, como cita Castells (2011), a mídia de
massas individual, que re-centraliza o sujeito.
Uma massificação desligada de suportes midiáticos tradicionais como televisão, rádio ou
impresso e sim uma massificação dos bens de visibilidade como as câmeras digitais ou acopladas
aos celulares. Esse processo possibilita a visibilidade do cotidiano, ou ainda, um modo de
reconstruí-lo a partir de diversas apropriações. O povo é produtor. O indivíduo é criador. O sujeito
se inclui socialmente a partir dos seus próprios modos - ainda que estes estejam partilhados pelo
convívio social. Existe uma personalidade construída em um mosaico que se mostra única e
particular.
Existe um novo público que se torna visível quando a técnica/tecnologia é massivamente
apropriada. A mídia é construída por eles e não mais exterior a eles que colocam seus rostos,
bundas, peitos, danças, idéias, pensamentos, desejos, paixões, afetos, afetações nas redes sociais. A
visibilidade não está nas mãos dos detentores das mídias institucionalizadas. Para se exibir, basta
acessar um site de rede social de qualquer lan house e postar seu vídeo.
O desenvolvimento destas tecnologias e os procedimentos técnicos ampliam largamente as
possibilidades de interação mediatizada compondo um conjunto complexo de processos
comunicacionais que fazem circular uma variedade de produtos e processos nos espaços sociais
diversos como informações, entretenimento, novidades estéticas utilizando som, imagem, charges,
representações, enunciações, etc. Pensar a mídia é pensar em um conjunto de processos: o subjetivo,
o raciocínio, os valores, o imaginário, a realidade, o cotidiano. As interações estão permeadas pela
presença da mídia, configurando-as.
A midiatização corresponde às dinâmicas mais amplas, produzidas por processos
complexos, que incidem sobre a organização e funcionamento da sociedade, em
escala mundial. De modo específico, significa a transformação da sociedade dos
meios (que deixa de ser caracterizada por aquela marcada pela existência de
dispositivos sócio-t-ecnico-discursivos que apenas intermedeiam intensamente a
interação entre os campos sociais) em uma sociedade onde a cultura, lógicas e
operações midiáticas afetam, relacional e transversalmente, a própria sociedade, no
âmbito mesmo de suas diferentes práticas. (FAUSTO et. all, 2008, p.10)
Neste processo de midiatização da interação, a técnica tem possibilitado alargar as
possibilidades da objetivação - do que se torna objeto no mundo dos sentidos - do pensamento, ou
seja, do campo cognoscível. Na sociedade da midiatização, diferente da sociedade dos meios, há
“ambiência estruturada em torno de fortes dimensões tecnodiscursivas comunicacionais.
Tecnologias são convertidas em meios de interação e redefinidoras de práticas sociais” (FAUSTO,
2008, p. 127).
O poder de mudança social da comunicação e da informação é um poder de coletivização do
pensamento: dentro de uma rede de relações e interações entre homem, ambiente e dispositivos
técnicos, de experiências individuais expandindo-se por meio de mecanismos comunicacionais à
experiências coletivas, difundindo-se por imagens, opiniões e informação. O poder político vem
sendo renovado a partir da manifestação de uma massa de indivíduos, nas redes eletrônicas
disponíveis, num momento de crise da democracia, resultado, por exemplo, expresso “numa
pesquisa realizada pelos serviços da organização das Nações Unidas (ONU), segundo o qual dois
terços dos habitantes do planeta não se consideram representados pelo seu governo” (CASTELLS,
2011, p. 14). Representam-se por eles mesmos e fazem circular suas imagens nas redes sociais de
comunicação. É o indivíduo articulando a partir de si mesmo sua expressão, sua representação e,
portanto, sua força como cidadão.
A necessidade de existir midiaticamente para existir politicamente induz uma
relação orgânica com a linguagem midiática (...) A mais simples e a mais poderosa
das mensagens midiáticas é a imagem. E a mais simples das mensagens em
imagens sempre foi o rosto (idem, p. 13)
Portanto, como o sujeito criador na internet e a imagem que circula no YouTube interferem
na estrutura social ou, simplesmente, problematizam a questão da visibilidade política e
participação do cidadão é para nós uma forma política arraigada na experiência sensível, de um
público visível ao mundo e alterando o espaço público a partir da comunicação em Rede.
Esta evidência problematiza a construção histórica moderna da democracia da qual
herdamos a supra importância do coletivo sobre o indivíduo, em nome da moral social e
humanidade da felicidade.
O povo detentor do poder na democracia
Na revolução francesa, movimento racionalista, o povo foi qualificado como o novo
legítimo governado e vontade governante. Era sujeito detentor do poder e deveria operar uma
estratégia libertadora para o ser humano de ali aos tempos futuros. Democracia significa “poder do
povo”, em termos literais. Como representar o povo?
Na teoria política e constitucional, povo não é um conceito descritivo, mas
claramente operacional. Não se trata de designar, com esse termo, uma realidade
definida e inconfundível da vida social, para efeito de classificação sociológica, por
exemplo, mas sim de encontrar, no universo jurídico-político, um sujeito para a
atribuição de certas prerrogativas e responsabilidades coletivas (COMPARATO,
1997, p.213)
Tratemos da noção de “povo” a partir da modernidade, quando ganha força a sua
personificação política em meio à emergência da sociedade capitalista – pelos ilustrados que
passam a pensar o engajamento político,social e cultural.
Aos fins do século XVIII, especificamente na sociedade francesa, começou a discussão
sobre o termo “povo” como representativo de todos os cidadãos da nação, na ocasião da Declaração
do Direito do Homem e do Cidadão. Embora assinada “pelos representantes do povo francês”,
dispõe em seu artigo 3º “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum
corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente”1. Os
revolucionários franceses enaltecem, em lugar do rei, o novo ícone político dos tempos modernos: a
nação.
Em princípio, aguardava-se um governo para todos e pela vontade do povo e não mais a
tirania da nobreza ou da Igreja. Assim, o povo assume o papel do protegido em suas necessidades
pelo Estado e não é descoberto como um produtor na cultura ou um sujeito com poder político. O
poder é da Nação.
1http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o
Os juristas tomam a decisão de relacionar o termo a populus que corresponderia a outro
estamento social para identificar aquele sujeito pela distinção: “os nobres, clérigos e burgueses não
faziam parte do povo” (idem, p. 216). Um conceito formado nas distinções com os estratos da
sociedade e configurado por exclusão, pelo que lhe falta na concepção iluminista: política e
educação, destituindo o povo de razão ou ilustração.
O povo era a instância legitimadora do governo civil. Entretanto, “corresponde no âmbito da
cultura uma idéia radicalmente negativa do popular, que sintetiza para os ilustrados tudo o que estes
quiseram ver superado, tudo o que vem varrer a razão: a superstição, ignorância e desordem”
(MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 34). Portanto, surge um contra-senso dentro do próprio
pensamento iluminista: acredita-se na verdade e racionalidade do humano construindo uma
sociedade justa a partir da vontade de todos, pelo povo, mas se está contra ele em nome da razão.
A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que essa
invocação articula sua exclusão da cultura. E é nesse movimento que se geram as
categorias do ‘culto’ e do ‘popular’. Isto é, do popular como inculto, do popular
designado, no momento de sua constituição em conceito (idem, p. 35).
O movimento romântico buscou valorizar o sentimento, a experiência, a espontaneidade e
foi a partir daí que, pela primeira vez, o que é produzido pelo povo é considerado cultura,
ressaltando os cantos populares ou contos a partir das religiosidades deste grupo. Como resultado, o
sentido de cultura começa a sofrer mudanças a partir do movimento Romântico. Agora, encontram-
se misturados arte e modo de vida, a oralidade, as crenças, a arte, o rural, o urbano e a escrito. O
romantismo ressaltou a experiência do cotidiano vivido, construindo conhecimento e valor para a
cultura popular ainda que não tenham exaltado as questões políticas.
O marxismo foi um movimento que acrescentou politização ao conceito, entretanto, não
dialogava com o movimento romântico e recuperou a racionalidade ilustrada politizando a idéia do
povo oprimido, no plano econômico (produção), como resposta à dominação econômica – não era
povo e sim proletariado. “A idéia de povo que gera o movimento romântico vai sofrer ao longo do
século XIX uma dissolução completa: pela esquerda, no conceito de classe social, e pela direita, no
de massa” (idem, p.41).
Reconhecendo-se em grande número e, portanto, com maior força, essa multidão busca pelo
igualitarismo social. Portanto, existe uma reconfiguração das estruturas sociais e essa grande
maioria reconhece o poder dissolvido também entre eles, justamente por se constituir em um grande
número com possibilidades de provocar ou promover mudanças políticas e culturais. A mudança
causa um alvoroço entre os pensadores da época, Spicio Sighele e Gustave Le Bon subscrevem
sobre uma visão manipulatória da sociedade, sendo o primeiro autor do ensaio A Massa Criminosa
(1891) e o segundo publica A Psicologia das Multidões (1895), “condenando todas as formas de
lógicas coletivas” (MATTELART e MATTELART, 1999, p.22-23).
O mercado de bens culturais deixou de restringir a produção, circulação e consumo de obras
do campo artístico de uma aristocracia ou burguesia para também tornar a “massa” potencial
consumidora e mesmo produtora. Na Europa, enquanto produtor, o povo sofria os reflexos da
história política e cultural que o inferiorizava na hierarquia de classes, sendo este conhecido por in-
culto, diferenciando-o de uma cultura culta, ilustrada. Entretanto, na América do Norte, houve a
exaltação pela idéia de que o jornal e a tevê possibilitavam o fluxo entre diferentes estratos sociais,
enquanto o livro distinguia os ilustrados do povo. Investiu-se na cultura produzida pelos meios
massivos. Concretamente, era a massa mediando cultura. Foi possível pensar o popular de forma
positiva no campo cultural, investido de poder e sentido.
Foi o que denominaram Indústria Cultural, conceito cunhado pelos críticos filósofos da
Escola de Frankfurt, examinando o fato social que vivia aquele tempo: a indústria cultural era
determinada como uma cultura alienada e um dispositivo de manobra das massas, voltando ao
embate político já que a problemática cultural agora intensificava as contradições sociais a partir do
consumo. Importa-nos tal debate. Acrescentou-se à luta pela cidadania, além do fator econômico de
rendimentos e apropriação dos meios de produção, a questão da cultura, acesso e consumo.
Tornando este campo de conflito e tensões de relações de poder, no qual se distinguia classes
sociais pelo consumo. O poder e o direito do povo são garantidos pelo acesso aos bens culturais?
Cidadania é aquisição, alcance ou ingresso na cultura da nação, na cultura hegemônica? Ou será
também o direito de produzir a cultura desta sociedade na qual me insiro e reconhecê-la em seu
valor cultural no espaço social? Estudar o popular deve considerar também o que produzem e não
somente o que consomem.
A dimensão política das massas
O povo, o aglomerado, a massa, ou qualquer termo que se defina, utiliza a cultura ou sua
experiência cotidiana como poder político. Tomou frente a conquista dos próprios direitos humanos,
civis e políticos, fosse em modo armado ou pacífico, desordeiro ou diplomático. Em face às
injustiças sociais, discriminações ou atentados contra a dignidade humana, havia e há reação.
Muitas dessas ações já foram categorizadas na história como “coisa” de baderneiros, desordeiros,
marginais ou disfunções à ordem social, como exemplos que citaremos mais adiante.
Algumas lutas foram longas, outras ganharam força e a população aderiu a ela enquanto
movimento, outras até se institucionalizaram. De toda forma, entraram pra história, absorvidas pela
sociedade civil, construindo-a. No caso brasileiro, essas lutas2 ocorreram com a forte mobilização
do povo, das massas. Foi possível até mesmo o estabelecimento de um governo, ainda que por
poucos anos, exclusivamente popular. Foi assim no caso da Cabanagem, em Belém do Pará (1835-
1840). Movimento popular contra a ordem estabelecida, de homens do povo, incluindo até mesmo
os indígenas que lutavam pelo respeito a sua cultura. Outras também conhecidas são a balaiada no
Maranhão e Piauí (1838 – 1841), a Revolta dos Negros Malés na Bahia (1837), o Quebra-quilos de
Pernambuco e Paraíba (1874-1875), etc.
Desde o Brasil colônia é possível conhecer histórias sobre movimentos sociais e lutas pela
construção e estabelecimento da cidadania e de uma democracia. Aos líderes, nem sempre foram
dados méritos de uma luta por cidadania, ao contrário, eram classificados como bárbaros,
criminosos, assassinos, bandidos. A cidadania do período colonial relaciona-se com a nacionalidade
e o nativismo, buscando uma mínima proteção da exploração de Portugal, independência política da
nação e fuga do fisco.
No século XIX, as lutas envolviam outras questões, como a escravidão e as insatisfações
com o fisco. Os motins eram caóticos com as reivindicações em torno da construção de espaços
nacionais, no mercado de trabalho, na legislação, no poder político. Cidadãos das camadas médias,
pertencentes à elite intelectual ou à estrutura militar lideravam as camadas populares. Eram homens
brancos livres que queriam menos imposto, liberdade para comercialização ou soldados militares
que queriam aumento no soldo, até religiosos se rebelavam em favor da não-restrição dos seus
trabalhos de catequização, eram também os negros alforriados querendo emprego e, em casos
particulares, como no Pará, índios-trabalhadores queriam a liberdade de viver seus costumes e
cultura.
Uma rebelião social de negros, índios, mulatos, cafusos, mestiços, tapuios (índios
destribalizados) e brancos das camadas mais pobres da sociedade, que habitavam em cabanas à
beira de rios e igarapés lutaram pela independência. Conseguiram expulsar o representante da corte
imperial e instalar o único governo popular de base índio-camponesa da história do Brasil, ficando
no poder em 1835 e 36, quando as forças da corte recuperaram o poder na Província. Cerca de
300.000 pessoas morreram, o equivalente a 30% da população do Estado.
2 Para elaborar um quadro sobre as lutas e movimentos sociais, nos apoiamos nas obras de Maria da Glória Gohn. Sendo “O
protagonismo da Sociedade Civil”, “história dos movimentos e lutas sociais” “Teoria dos Movimentos Sociais” e a obra de Everardo
Dias “Histórias das lutas sociais no Brasil”.
Na segunda metade do século XIX, existiu o movimento do mutualismo ou das associações
de auxílio mútuo, em São Paulo e Santos. Foram criados socorros mútuos à sociedade, objetivando
assegurar sobrevivências de famílias assalariadas pobres ou auxiliá-las em ocasiões como o enterro;
cuidavam também dos afiliados em aspectos culturais com instruções, festas, jogos. Neste período,
houve lutas pelas eleições diretas (1855), o Movimento Abolicionista (1878 – 88), Movimento
Republicano (1880-90), Movimento Estudantil (1896) com atos de protesto contra as ofensas às
mulheres, desagravo a professores, protesto contra o governo.
No século XX, existiu um novo caráter nas lutas, pois o urbano e a indústria criaram uma
problemática por causa das novas concentrações na cidade. De 1900 a 1930, período da primeira
república, as lutas sociais se acirraram por conta do processo urbano e avanço da economia
concentrado na região centro-sul, assim como a chegada do imigrante com a questão do trabalhador
e das organizações anarco-sindicalistas.
O Estado brasileiro tratou a questão social como questão de polícia. Houve greves, pouca
política estatal na área da previdência, um governo baseado em abrir estradas e embelezar as
cidades (Washington Luiz), tirando das ruas os mendigos, mas sem cuidar deles, apenas os
expulsando dos centros urbanos para as periferias mais longes dos olhos dos transeuntes.
Líderes dos movimentos sociais foram considerados bandidos, bárbaros e assassinos,
mortos, degolados pela polícia a mando do Estado, foram os que participavam do Movimento do
Cangaço (1920-38), considerado por alguns historiadores como “banditismo social”, pelo fato de
roubarem dos ricos e doarem aos pobres, apesar das ações violentas pelo sertão nordestino.
Movimento fruto da miséria reinante, bandos de homens aderiam ao cangaço por falta de trabalho
ou outras opções de vida.
De 1925 data a Coluna Prestes, que reivindicou o voto secreto, o voto das mulheres, a
liberdade de imprensa. Anos antes, em 1917, houve a Greve Geral em São Paulo, mobilizando
30.000 trabalhadores. A problemática da infância também recebeu atenção e, em 1927, foi criado o
primeiro código de menores no Brasil. O ano de 1930 inaugurava uma nova etapa na história do
país, pois o projeto liberal vencia em oposição às elites conservadoras rurais. O cenário agora era o
urbano ganhando políticas públicas, substituindo definitivamente as imigrações estrangeiras pelas
migrações nacionais, criação de legislação e ordenamentos jurídicos. As classes populares emergem
como atores sociais, passando a ser cidadãos com direitos trabalhistas.
1930 foi o ano da revolução política que levou Getúlio Vargas ao poder com programas de
reforma política como a representação popular por meio do voto secreto. A Constituição de 1934
garantiu proteção ao trabalho, a extensão do voto às mulheres, nacionalização de certas indústrias e
bancos, reconheceu sindicatos e caindo, em 1937, com nova constituição promulgada, que
descaracterizou as vitórias anteriores pela instauração de um golpe de Estado dado pelo próprio
presidente Getúlio Vargas, com apoio de militares.
Em 1937 constitui-se o Estado Novo, liquidando independência sindical e fechando partidos,
além de destruir as bases da federação e a autonomia dos poderes. Era a instalação de um Estado
fascista. Apesar disso, promulgou leis que passaram a ser direitos dos trabalhadores como a jornada
de 8 horas, férias remuneradas, estabilidade no emprego, indenização por dispensa sem justa causa,
convenção coletiva de trabalho, regulamentação do trabalho de mulheres e menores, criação do
Instituto de Aposentadorias e Pensões, etc.
Em 1945, declara-se o fim do Estado Novo e se convocam eleições gerais no país com
movimento social popular e estudantil. Os presos políticos foram anistiados e a vida política
partidária recomposta. O processo de redemocratização foi instaurado e os sindicatos se
multiplicaram, realizaram grandes obras em rodovias, siderúrgicas, acumulação de capital, políticas
sociais clientelistas às massas deslocadas dos campos para o centro urbano. No ano seguinte, a
Nova Constituição, a Carta de 46 garantiu até mesmo participação popular, restabeleceu o poder de
greve e a organização sindical.
Houve o movimento nacionalista pela cultura (1954-64) deflagrado por intelectuais e
políticos, movimento pela cultura, movimento de cultura popular (1960-64) propondo uma
vanguarda popular revolucionária no campo da cultura para ser porta-voz dos reais interesses de
uma comunidade (manifesto redigido por Carlos Estevam Martins) e movimentos sociais no campo
pela reforma agrária (1958).
A partir de 1964, existe uma grande resistência popular durante o regime militar. As forças
políticas operam na clandestinidade, com ações violentas, acreditando que a luta armada é a única
forma de instalar uma nova sociedade. Nesse período, o movimento estudantil representava não
somente os estudantes, mas o povo brasileiro, integrando-se a eles as camadas populares que
sofriam o efeito do arrocho salarial. A organização da sociedade civil significava desobediência
civil e resistência ao regime militar.
Para Maria Gohn, de 1975 a 1982 foi um dos mais ricos períodos da história no que diz
respeito a lutas, movimentos e sobretudo projetos para o país. Os moradores das periferias, favelas e
cortiços saíram da penumbra para entrarem no processo de libertação e transformação social. Em
1974, restauram-se a redemocratização no país, ocorre o movimento feminista, o movimento
sindical e o movimento pela anistia. Em 1979, O Movimento dos Sem-Terra iniciam seu
movimento, em Santa Catarina. No mesmo ano, ocorre o movimento das favelas, em São Paulo e
Belo Horizonte. De políticas de combate às favelas com desocupação policial violenta, o rumo
agora é de diálogo com as lideranças dos favelados assim como se instituem inúmeros projetos de
reurbanização de favelas.
Em 1980, ocorre o Protesto Indígena durante a visita do Papa João Paulo II ao Brasil. O
índio guarani Marçal de Souza, da tribo Kaiagang leu um manifesto de denúncia sobre a morte de
líderes indígenas e as péssimas condições no Brasil com que eram tratados. A década de 80
registrou várias experiências sócio-políticas como a luta pelas Diretas Já. Em 84, houve a
implantação de um calendário político com as eleições para a presidência do país, a mobilização
social com características de agitação de massas com greves, saques a supermercados, linchamentos
populares expressando um desejo de justiça pelas próprias mãos. Surgiram diversos movimentos
com diferentes causas: mulheres, negros, crianças, meio ambiente, saúde, transporte, educação,
moradia, aposentaria, idosos, camelôs, etc.
Em 1983, criou-se a CUT e, no ano seguinte, milhares de pessoas se mobilizaram e
compareceram às passeatas e comícios no movimento das Diretas Já. Em 1988 criou-se o Fórum em
Defesa da Criança e do Adolescentes, assim como foi promulgada a Constituição de 1988,
introduzindo o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, como ganhos para a área dos direitos
sociais.
Ao longo dos anos 70 e 80 o paradigma da ação social trata de uma nova classe operária que
deseja participar da sociedade de consumo via melhorias salariais entre outras conquistas no
trabalho. Por outro lado, abre-se uma grande ênfase que segue pelos anos 90 nas questões da cultura
e no plano moral, enfraquecendo o plano político-ideológico. O modelo passa a ser diferente dos
anos 80 que era sindical, socialista, passando para uma ênfase em valores morais e éticos. A
sociedade civil, nos anos 90, desacredita da política, dos políticos e das ações do Estado, ela se vê
participativa e atuante junto aos problemas sociais.
Instituições se organizaram e nos anos 90 os movimentos ganharam um perfil de
“campanhas”. Cresceram as ONGs e políticas de parcerias. Assim, o Estado dividiu as
responsabilidades com a sociedade civil organizada. Em 1992, surgiu um movimento peculiar e
singular na história do Brasil e até mesmo da América Latina, o movimento pró-impeachment do
presidente da república. Contra o ex-presidente formaram-se passeatas e manifestações com grande
visibilidade para o movimento dos caras pintadas, basicamente formado por estudantes
secundaristas e universitários. No mesmo ano, também se inauguram os movimentos ecológicos,
com conferências das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento: ECO-92. No ano
seguinte, por dois anos o movimento liderado por Herbert de Souza, o Betinho, Ação Cidadania
contra a Fome e pela Vida em prol dos pobres e excluídos, teve 3.000 comitês organizados. Em
1995, cria-se o Conselho da Comunidade Solidária, órgão do Governo Federal, composto por
políticos e representantes da sociedade civil.
É com alto grau de pragmatismo que a política é adotada, gerando acordos e projetos que
não alteram muito o perfil do Estado neoliberal e gestor de programas, mais preocupados com ações
táticas para resolver os problemas técnicos da economia ou os problemas sociais de modo técnico.
Não há política de desenvolvimento das comunidades ou mudança emancipatória dos sujeitos. O
desenvolvimento se concentrou na economia e tecnologia. O Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) ilustra indicadores sociais universais. O desempenho se dá em três áreas: saúde, educação e
rendimento. A escala varia de 0 a 1. Quanto mais próxima de um, melhor a situação do país. Em
2010, o Brasil alcançou índice 0,6993. Noruega, a primeira colocada, chegou a 0,938. O pior
indicador foi do Zimbábue: 0,140.
Não se pôde pensar em projetos sociais de longo prazo, os resultados devem ser imediatos e
dentro do período do governo, de preferência. As obras atingiam esse objetivo, construídas no
período de governo e servindo aos cidadãos como melhorias nas estruturas da cidade e dos serviços,
da ampliação do mercado e geração de emprego.
Podemos observar na atualidade brasileira, constitucional, midiática ou em uma ordem
social generalizada, que ser um cidadão é votar, ter registro civil, emprego, carteira de trabalho, ou
ainda, em outros termos, ser um pagador dos impostos, contribuintes e consumidor. O exercício da
cidadania pretende que o sujeito viva com qualidade, em relação tanto a saúde como a outros
aspectos da vida social como cultura, esporte, lazer, educação, que serão financiados pelo Estado
com a arrecadação tributária. Para melhorar os aspectos de vida, o Estado fornece benefícios sociais
como uma idade mínima para aposentadoria, o seguro desemprego, entre outros, expandindo a
proteção à sociedade, intervindo na política e economia, assim como o tornou promotor de políticas
sociais.
O Estado do Bem Estar Social herdou o projeto de emancipação dos movimentos burgueses
- o Estado constitucional democrático -, apesar do modelo não ter tido continuidade por governos de
perfil social-democrata. “Após a II Guerra Mundial, todos os partidos dirigentes alcançaram
maioria, de forma mais ou menos acentuada, sob a insígnia dos objetivos sócio-estatais”
(HABERMAS, 1987, p. 04). Seus limites ficaram evidentes.
Em razão disso, gostaria de precisar minha tese acima: a nova ininteligibilidade é
própria de uma situação na qual um programa de Estado social, que se nutre
reiteradamente da utopia de uma sociedade do trabalho, perdeu a capacidade de
abrir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada
(idem)
O maior símbolo da utopia é a emancipação do trabalho. As condições da vida emancipada,
qualidade de vida, dignidade para um futuro e felicidade do homem não resultam das reviravoltas
nas condições de trabalho. Apesar de permanecer como medida e referência para o desenvolvimento
humano. Ter trabalho e carteira assinada torna-se status, normatizado no direito civil. É por meio do
salário que ele efetiva sua participação social – enquanto um consumidor. Ele tornou-se cliente, do
mercado e do Estado de bem-estar. Seu poder é o de compra. O conceito do trabalho como
libertador desloca-se.
Nas utopias da ordem, as dimensões da felicidade e da emancipação confluíram
com aquelas do incremento do poder e da produção da riqueza social. Os projetos
de formas de vida racionais acabaram em uma simbiose ilusória entre o controle
racional da natureza e a mobilização das energias sociais. A razão instrumental
desencadeada no interior das forças produtivas, a razão funcionalista desenvolvida
nas capacidades de organizar e planejar deveria preparar o caminho para vidas
dignas do homem, igualitárias e, ao mesmo tempo, libertárias. O potencial das
3http://www.ojornalweb.com/2010/11/04/brasil-fica-em-73%C2%BA-lugar-em-indice-de-desenvolvimento-da-onu/
condições de acordo deveria resultar, por fim e sem cerimônia, da produtividade
das condições de trabalho (HABERMAS, 1987, p. 12)
A esfera burguesa foi desmontada diante de uma cultura de massa e o consumo expressivo
da cultura outrora restrita aos “ilustres”, e remonta-se uma esfera pública reorganizando as formas
de comunicação. O conceito da emancipação deve passar pela comunicação. Há um resgate do
público como o espaço da sociedade, e não simplesmente a noção de público referindo-se ao Estado
e opondo-se ao privado. Nessa direção, a noção de esfera pública pode ser fortemente incorporada
como um instrumento político privilegiado para o processo de construção democrática e suas
atualizações.
A constituição brasileira de 1988 promove o princípio da participação da sociedade civil, de
cada cidadão, no exercício do poder e diversos direitos. O Estado permanece sua atuação neoliberal,
ocupando-se do mercado, desocupando-se das questões sociais por conta desta partilha com a
sociedade civil organizada e estimulada por este Estado à cooperação para lidar com as demandas
dos problemas sociais, ainda que sem a força política deliberativa.
O neoliberalismo com as privatizações das áreas públicas, aberturas internacionais para
agências de desenvolvimento é acompanhado de um discurso de participação que traz um termo
novo para a política e para a sociedade: o Terceiro Setor. Podemos definir este termo como a
revalorização do papel da sociedade civil na construção da democracia e da governabilidade,
impregnando-se na mente da população o valor da solidariedade e do trabalho voluntário. A
sociedade civil, por sua vez, viu proliferar as Organizações Não Governamentais – ONG´s. O
empoderamento da sociedade civil através da sua institucionalização promove o diálogo com outras
instituições sociais e do governo, resultando numa inovação das participações tais como conselhos
gestores e orçamento participativo.
Na segunda metade dos anos 90, com as pautas de gênero, étnica, idade também surgem
questões do narcotráfico, poderes paralelos nas regiões pobres como as milícias, questões da
distribuição e gestão dos fundos políticos e, acima de tudo, uma demanda do Estado por programas
e projetos propositivos, com soluções ou resoluções para as questões sociais problemáticas,
apresentando indicadores, resultados e cronograma. Consta nos pacotes de oferta das ONGs cursos
de capacitação, seminários, treinamentos das mais diversas categorias como cursos de língua
estrangeira, culinária, costura, informática, entre algumas recentes inclusões de cunho cultural como
oficinas de hip hop, grafiti, fotografia, audiovisual.
As ONGs e as entidades do Terceiro Setor não parecem ter notáveis distinções. A política da
primeira, baseada em mudanças e transformações sociais, defesa e ampliação dos direitos da
população e emancipação social, econômica e política assemelha-se muito a política das segundas
que atuam segundo critérios de humanismo liberal, solidariedade ao próximo, priorizando
atendimentos emergenciais sem atuar nas causas dos problemas sociais ou em efetivas mudanças.
Movimentos sociais transformaram-se em ONGs ou participam das que os apoiava em alguma
medida. A mobilização, portanto, deixa de ser uma conscientização crítica ou reivindicação ou
protestos na rua para ser arregimentação e organização populares para os projetos sociais.
A questão é mais moral que política. É a emergência da chamada “participação solidária” e a
ênfase no trabalho voluntário assim como novos termos começam a surgir, sendo um deles bastante
impregnante nas lógicas empresariais de hoje: a “responsabilidade social”.
Recupera-se o voluntariado e ressignifica-o. Mais do que um gesto de caridade, amor ao
próximo e compaixão, o voluntariado passou a expressar uma atitude cidadã e participativa. Aliás,
essa expressão e este comportamento conferem até mesmo status na vida social e até profissional.
Os currículos passam a ser apresentados com os trabalhos voluntários exercidos pelos candidatos
que ganham um certo mérito pela postura cidadã. Além disso, os personagens famosos no campo
artístico e esportivo entram nas correntes solidárias e as revistas estampam as ações de socialites.
Também as redes de comunicação ingressam com campanhas de arrecadação, doação,
projetos sociais, cidadania, etc. As mobilizações tomam amplitudes outras, dividindo com o Estado
responsabilidades como o preenchimento de profissionais nas escolas, criando, por exemplo, a
campanha Amigos da Escola, patrocinada pela Rede Globo e Unicef, em que pais e vizinhos são
convidados a participar de mutirões de reformas ou mesmo de preenchimento de atividades lúdicas
ou pedagógicas no espaço escolar, suprindo a função do Estado em requisitar e pagar bons
professores e outros profissionais para o desempenho do ensino escolar.
O valor da solidariedade expandiu-se também para a filantropia das empresas e as práticas
de voluntariado no interior da sociedade civil. Percebe-se uma integração em rede sendo articulada
para envolver-se com os problemas sociais, públicos, de interesse coletivo. Foi criado em 1995 o
Gife4 – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, que tratava sobre o conceito de investimento
social privado. O Instituto Ethos, fundado em 1998, com apoio de uma das maiores fundações
privadas do mundo, a Fundação Kellogg, criado por W. K. Kellogg, pioneiro na fabricação de
cereais, tem ênfase na “gestão socialmente responsável das empresas”, criou os Indicadores Ethos e
prêmio Ethos para as empresas socialmente responsáveis, em diversos campos de atuação.
Vale notar que o convencimento para que os empresários adotem a responsabilidade social
passa pela idéia do lucro, isso porque as “posturas éticas” e “socialmente responsáveis”, o
investimento no “marketing social” adquire relevância junto à sociedade. A intenção é agregar uma
carga simbólica aos produtos ou às empresas. As fundações empresariais também sustentam a
campanha da solidariedade e hoje já se conhece, por exemplo, o Portal do voluntário do HSBC que
chama seus funcionários a trabalhos em comunidades e em projetos que esta mesma instituição
atende, seja de modo a trabalhar voluntariamente ou doar financeiramente. Em 1998, institui-se a
Lei do Voluntariado, número 9.608.
Essa idéia de solidariedade se constituiu ao longo dos anos de 1990. Em 1995, foi criada a
“Comunidade Solidária”5, um programa de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso
(PSDB), impulsionando tal prática sobre o objetivo de erradicar a pobreza e a exclusão social com a
participação de todos. O princípio era solidariedade, parcerias, terceiro setor, capital social e
voluntariado integrando as idéias do novo marco discursivo da construção de uma rede social,
estatal, privada para o debate e soluções dos problemas sociais no país. Entretanto, os discursos do
Terceiro Setor, de participação, tendem a amenizar ou ocultar o debate sobre as relações e
exercícios de poder. A participação não partilhada no poder para as deliberações, a ocultação dos
problemas e conflitos sociais, ou as causas e histórico das injustiças, tornam o desenvolvimento
comunitário instrumental e não processual, além de numérico.
Outros programas deram continuidade em governo seguinte. No governo Lula, o programa
Fome Zero seguiu parâmetros muito semelhantes, arrecadando e distribuindo alimentos,
mobilizando inúmeras pessoas. A transferência das políticas sociais para organizações da sociedade
civil, para a filantropia, para as empresas e para o voluntariado trata o público atendido como
humanos “carentes” a ser atendidos pela caridade, pública ou privada. Ao contrário de democratizar
os processos de decisão, o que ocorreu neste período foi a restrição de debate dos conflitos na esfera
pública ou sociedade civil, circunscrevendo a tomada de decisões às esferas políticas institucionais.
É uma forte demarcação de atuação na sociedade civil relativa à participação dos cidadãos
na vida pública formada por sujeitos coletivos. Entretanto, não se pode esquecer as subjetividades.
O sujeito agencia dimensões políticas nas suas micro relações cotidianas, nas filas, nas próprias
cadeiras de um serviço público quando escolhem sentar ou não lado deste ou daquele, nos ônibus ao
puxar um braço ou colocar a perna para sentar no banco que vaga, oferecendo ajuda para carregar
bolsas ou livros de outro passageiro.
O poder do sujeito isolado
4 http://site.gife.org.br/ 5 http://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/3COMUN.HTM
A subjetividade é que permite dar sentido às ações dos atores. É trabalhando a subjetividade
que se criam e desenvolvem as noções de emancipação de subjetividades. Portanto, as ONGs não
podem também escapar ao debate sobre a representatividade dos seus indivíduos. Há como
contestar a legitimidade sobre a representatividade, ainda que tenha ganhado socialmente o seu
lugar de atuação sobre as questões sociais.
Elas falam em nome da coletividade e ocupam espaços de representações em órgãos
públicos, políticas públicas, etc. Em que medida elas estão, de fato, representando os desejos e as
emoções, as afetividades e angústias da comunidade? Como não questionar a partir de uma política
neoliberal que submete a resistência, a mudança a um encobrimento do conflito e uma humanística
da solidariedade com o próximo, pobre coitado, miserável, que devemos atender e ajudar? Como
perceber o modo com que a ONG fortifica a retirada do Estado da atuação sobre as questões
sociais? Como avaliar os valores das ONGs no Brasil, onde tantas estão subjugadas aos mandos da
Igreja Católica, especialmente ou aos recursos de instituições privadas, do Estado e agências
internacionais?
A sociedade civil está fortemente sendo protagonizada pelas ONGs, movimentos sociais,
comissões, grupos e entidades de direitos humanos, gênero, etnia, fóruns locais, entidades
ambientalistas, conselhos populares, terceiro setor, entre diversas institucionalizações da área social.
Percebemos com o traçar da história o ganho que mobilizações sociais conquistaram de modo
coletivo. Emergiu uma pluralidade de atores, em coletivos e organizações; afastando-se do centro o
indivíduo, sujeito particular. Movimentos já observados desde os anos 80 pela redemocratização e
lutas populares pelas melhores na qualidade de vida urbana; ganhando a idéia da cidadania coletiva,
extrapolando pelos direitos civis (individual) para os direitos sociais básicos (coletivo). É necessário
resgatar os processos de democratização em um terreno comunicativo, de vinculações, articulações
e trânsitos entre estas esferas.
A sociedade civil não é um único ator, mesmo que institucionalizada. Dentro das suas
diversas correntes e projetos políticos que se institucionaliza são diversas as causas, os modos de
luta, os discursos, as aflições, os anseios, os desejos pessoais e coletivos, os padrões de
comportamento, vestes ou idealizações.
A aparição dos movimentos sociais trouxe à tona um modo novo de fazer política, fazendo
ressurgir a sociedade civil brasileira, reivindicando autonomia em relação ao Estado e a própria
Igreja, configurando-se como terrenos de prática política. Portanto, no caminho que se percorre,
apesar dos percalços e ainda dificuldades de garantir tal autonomia, ousamos pensar em uma
possível nova retomada, mais ampliada do campo da política: para os modos de subjetivação como
política, em um ato de poder em relação ao cotidiano em micro-relações, em modos de comportar e
ser. Após a afirmação radical progressiva da lógica neoliberal, agravando exclusões sociais e
violência, alcançamos o patamar de uma democracia sem dissociar a esfera da política dos impulsos
individuais por justiça social.
Sujeitos comuns que atendem às suas próprias necessidades de visibilidade, sendo até
mesmo o seu modo de participação social. Perceber assim, comportamento como ato político.
Comportamento do convívio social, da representação do próprio sujeito autêntico em seus próprios
desejos. Naturalmente comportando-se como lhe convém e constituindo assim um ato político
representado por si mesmo e não por uma instituição ou outro sujeito político, em seu próprio ato de
expressão.
Para existir a sociedade, existe o cidadão. Cidadãos que se expõem nos vídeos do YouTube.
Como definir a cidadania, a partir das sensibilidades dos sujeitos particulares ou a partir dos valores
coletivos? Cidadania é posicionar-se a partir das suas sensibilidades diante de um mundo ajuizado e
representar-se? Os vídeos espontâneos foram trazidos para o artigo na perspectiva de provocar o
pensamento sobre como as diversas pessoas podem se representar em suas formas sensíveis e
perceber o juízo de valor sobre essas formas. Ao tratarmos da representação proposta em projetos
sociais, vale debater com relação à representação desses jovens que são participantes de oficinas
financiadas por governo ou empresa, se pode haver limitações suas sensibilidades pelas questões
políticas.
Penso que é fundamental a representação e ação d’eles por eles mesmos. Sem deixar de
compreender que “eles por eles mesmos” também significa “eles por eles mesmos a partir da
relação com o outro”, ou ainda, com o “juízo do outro”. Pensar a cidadania enquanto um
posicionamento a partir das próprias sensibilidades diante de um mundo ajuizado e representar-se.
Contra o estereótipo, sugiro a vivência, conhecer essas pessoas, saber como eles sentem o mundo e
a si mesmos, perceber como as relações causais e inevitáveis das representações da mídia e da
sociedade provocam mudanças cognitivas nestas percepções. Ou seja, como essas lógicas se
relacionam com tais processos sociais como a midiatização, a inserção política na sociedade e a
sobrevivência da comunidade e dos jovens no meio social.
A proposta de inclusão social dever ser repensada, pois seria definir que estes jovens não são
social precisando integrar-se ou inserir-se. Eles não têm que serem incluídos socialmente, eles são
sociedade. É preciso que eles tenham dotado de valor os seus modos de vida, portanto, suas
diferentes formas de existir. Percebendo ainda que a sociedade é uma rede e cada sujeito enquanto
nó desta rede só existe por causa do outro e da relação que vive nesta rede. Com isso, pensar os
projetos de políticas públicas de comunicação que devem buscar conhecer quais subjetividades e
representação sócio-política que surgem na relação com o meio que os cerca, que os determina e
também é determinado por eles em suas ações. Percebendo neste processo como as comunidades
reaproriam os valores cosmopolitas e universais sobre a sua “fragilidade” e “marginalidade”,
reprocessando e reorganizando ao seu mundo. Por fim, representando a si mesmos, pois eles não
precisam que outrem os represente já que eles são dotados de sentidos, consciência e vivência.
A dimensão política do sujeito
Quando o mercado de bens culturais deixou de restringir a produção, circulação e consumo
de obras do campo artístico de uma aristocracia ou burguesia para também tornar a “massa”
potencial consumidora e mesmo produtora, o povo sofreu os reflexos da história política e cultural
que o inferiorizava na hierarquia de classes, sendo este conhecido por in-culto, diferenciando-o de
uma cultura culta, ilustrada. Era rebaixado. Dessa massa de operários, proletários, populares
encontramos os vulneráveis sociais, moradores de periferias, favelas, abrigados em domicílios de
baixa renda, sujeitos de escolarização fundamental apenas, desempregados ou empregados
informais.
Foi possível pensar o popular de forma positiva no campo cultural, investido de poder e
sentido quando, na América do Norte, houve a exaltação pela idéia de que o jornal e a tevê
possibilitavam o fluxo entre diferentes estratos sociais, enquanto o livro distinguia os ilustrados do
povo. Investiu-se na cultura produzida pelos meios massivos. Concretamente, era a massa mediando
cultura.
O povo, o aglomerado, a massa, a multidão, o povão ou qualquer termo que se defina, utiliza
a cultura ou sua experiência cotidiana como poder político. Tomou frente a conquista dos próprios
direitos humanos, civis e políticos, fosse em modo armado ou pacífico, desordeiro ou diplomático.
Em face às injustiças sociais, discriminações ou atentados contra a dignidade humana, havia e há
reação.
A dimensão política decorrente da reprodução em massa é suscitada no texto “A obra de arte
na era da sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamim. Neste caso, ele discute a estetização
da política, tratando de um período em que o público perde a conexão de reverência ou culto à obra
de arte e passa a querer se enxergar nas produções em massa.
Não se deve, evidentemente, esquecer, que a utilização política desse controle terá que
esperar até que o cinema se liberte da sua exploração pelo capitalismo. Pois o capital
cinematográfico dá um caráter contra revolucionário às oportunidade revolucionárias
imanentes a esse controle (BENJAMIN, 1994, p.180)
O próprio capitalismo não pôde prever o futuro que instaurava disseminando mídias
portáteis e barateando sua produção para o consumo em massa. A partir daí, desvincula-se a
produção sempre com grandes montantes financeiros ou a grandes instituições midiáticas.
Atualmente, um aparelho de celular possibilita a gravação de imagens em movimento promovendo
entre cidadãos comuns potenciais “artistas” que filmam as suas próprias experiências, as suas vidas
e do que lhes cerca.
Rancière duvida da tese de Benjamim que supõe “a dedução das propriedades estéticas e
políticas de uma arte a partir de suas propriedades técnicas” (RANCIERE, 1996, p.45). Para este
autor, não houve estetização da política “porque esta é estética em seu princípio” (idem, p. 68).
Trata-se, para ele, da autonomização da estética que causa um conflito entre a ordem e a partilha do
sensível.
a política teria como função primeira perturbar esse arranjo, intervindo sobre o que é
definido como visível e enunciável. A estética estaria na base desse questionamento, uma
vez que ela configura os espaços e fronteiras entre o visível e o invisível, o enunciável e o
silenciável, o ruído e o discurso inteligível (SALGUEIRO, 2010, p.01)
A reprodutibilidade técnica iniciou um processo de proximidade com a realidade cotidiana
com as técnicas da fotografia e do cinema. Com as mídias portáteis e baratas essa realidade não só é
próxima do espectador como se trata da própria realidade dele. Além disso, os dispositivos
tecnológicos têm suas funções facilitadas nos recursos de edição e gravação. Portanto, as
propriedades técnicas parecem a nós não serem definidoras, mas articulam-se à natureza estética
que compõe a política.
Fato é que enxergamos possibilidades de vínculos entre a estética e a política para além da
estetização ou espetacularização da política. O receptor agora é produtor da visibilidade da sua
própria realidade e distribuidor da sua própria experiência nas redes sociais, fazendo circular na
rede e tirando do silêncio e da invisibilidade seu cotidiano ou sonhos. Eles mesmos são os atores.
Contemporaneamente, as massas não têm só o desejo de se enxergarem nas produções
técnicas, eles se fazem visíveis em suas próprias produções e tem autonomia para fazer circular em
espaços como o YouTube. Portanto, para além de uma relação de controle da política sobre a
estética, fenômeno em que emerge o ditador ou o governador mantenedor do sistema capitalista e
dos espetáculos ideológicos, através do esforço de fazer a massa se ver; agora elas se fazem visível,
elas representam a si mesmas e tornam-se, assim, atores de suas próprias ações.
É um novo alcance da experiência que sai do seu recolhimento (ou ocultamento) cultural
para impulsionar novas atitudes sócio-políticas, provocando inquietações pelo estranhamento a
partir das visibilidades do diferente. “Um sistema de evidências sensíveis que dá a ver, ao mesmo
tempo, a existência de um comum e as divisões que nele definem os lugares e partes respectivas.”
(RANCIERE, 2005, p.15).
Trata-se de uma política do cotidiano de sujeitos singulares que se tornam visíveis nos
vídeos do YouTube, a representação de si. O homem como a medida de si mesmo. Um ser coletivo
e social, mas individual e subjetivo. A rede social possibilita dar visibilidade a diversas e
divergentes individualidades sociais.
Não se trata somente dos sujeitos que criam e postam os vídeos, mas também dos sujeitos
que enunciam suas declarações, seus afetos, suas emoções, angústias e frustrações, nos comentários.
É uma verdadeira plenária reunindo um grande número de membros, chegando a milhares que
podem emitir sua opinião. Não se trata de resolver, solucionar ou deliberar, mas expressar.
Disponibiliza-se espaço aos discursos, que muitas vezes não ficam sem respostas.
O YouTube disponibiliza a visibilidade de sujeitos comuns, cidadãos, que em coletivo
conferem o status de comunidade ao grupo reunido que participam da construção desta realidade
virtual que dialoga intrinsecamente com a realidade cotidiana destes sujeitos sociais. Leandro, um
menino da periferia de Belém do Pará, residente do bairro do Jurunas, que representa Leona6, a
assassina do marido que deseja viver uma vida de luxo em Paris, que vai se vingar de quem a
denunciar. Neste caso, mata a Aleijada Hipócrita em um seriado dramático de três episódios,
gravados nas próprias casas dos garotos e utilizando o que eles tem a mãos, como o caso do uso de
um grampeador como gravador.
Stefhany7, cantora do Tocantins e seu sonho do CrossFox. Junto a amigos ela organiza a
gravação de um clipe conseguindo casa, roupas e carro para cantar e dançar sobre como ela é
demais. As protagonistas do vídeo Gatas do Coque8, bairro conhecido por violência e marginalidade
na cidade do Recife, exibindo orgulhosamente peitos e bundas, em fotografias e vídeo gravado com
uma dança de funk que mostra o corpo de uma moça rebolando com muita habilidade, utilizando
gestos sensuais e exibindo um cóccix tatuado.
O foda do Avassalador9, utilizando os termos escrachos sobre sexo e palavrões, como é bom
de cama porque ele é foda. Ganhando até mesmo uma versão cantada por Erasmo10
ou uma paródia
da MTV11
. Por fim, um último exemplo, os moradores de um vilarejo n’A noite da xoxota louca12
.
Mulheres desfilando com seus biquínis, ao som de DJ local, tendo as aparências comuns da região e
sendo tratadas pelos comentaristas como urubus entre outros termos.
São noções objetivas e sensitivas de processos sociais mediatizados. Possibilidade técnica
em diferentes formatos como digitalizações, animações, reportagens ou a mais simples gravação do
movimento natural misturado a criação, sensações, afetos e desafetos, alterando a expressão do
cotidiano para além deste mesmo, em tempo, espaço e imaginação. Mas, partindo deste sujeito que
existe na condição de ser humano e suas aspirações, vontades, sensualidades, sexualidade e
violência.
Eles saem de vilarejos e ganham espaço na mídia. Saem de subúrbios e ganham carros,
viagens, shows, aparições na televisão, em horário nobre. Os personagens ou sujeitos ganham
visibilidade no estrangeiro, disponibilizam uma representação cultural local para o global.
Realizam-se com diferentes estéticas, do riso, da comédia, do deboche, da exibição, da seriedade e
formalidade de uma reportagem, mas, sobretudo, na estética dos modos de vida, de um pensamento
e comportamento ordinários, de quem e o que eles querem ser ou são.
Existe aí um valor cultural do cotidiano que ganha importância como expressão dos sujeitos,
portanto, também seu valor político, de uma cultura popular, periférica, do cotidiano, do afeto, do
instinto, do visceral. Ganham espaço nas instituições midiáticas, visibilizam imagens na Rede,
ampliando a circulação de seus gostos, reprodução de seus personagens ou danças, viajam país a
fora, conquistam maior visibilidade e até contratos comerciais, reinventando a própria vida e a
própria experiência.
Estes processos parecem causar mudanças na estrutura social a partir do momento que os
anônimos sujeitos passam a ganhar destaque no espaço da mídia, como o caso de Stefhany, que se
apresenta no programa de Luciano Huck e ganha seu Cross Fox. Ainda, o caso de Leona que tem
destaque no jornal impresso local e ainda ganha convites para apresentar-se em outro estado.
Existem várias inserções destes vídeos na programação da grande mídia institucional. Como,
por exemplo, até um programa, apresentado por Eliana, na Record dedicando tempo exclusivo aos
vídeos do YouTube. Ou ainda, quadros do programa Fantástico, da Rede Globo, que se baseiam nos
vídeos ali postados, analisando a veracidade destes ou gerando reportagens, como o caso em “a
banda mais bonita da cidade”13
, com milhares de visitas na rede.
6 http://www.youtube.com/watch?v=ACXFHGanR7w
7 http://www.youtube.com/watch?v=aB3WxjfyrBM&feature=related 8 http://www.youtube.com/watch?v=o0rjIpeH268 9 http://www.youtube.com/watch?v=RIBkK5X_3mo 10
http://www.youtube.com/watch?v=11DLpvIioCo 11
http://www.youtube.com/watch?v=Sym2YZ1uCnM 12
http://www.youtube.com/watch?v=Nvx3iAdyf1Y 13
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1663391-15605,00.html
O jornalismo vem sendo reestruturado, captando vídeos de internautas e abrindo o espaço
para o diálogo com o que circula na internet, ainda que não tenham incorporado a mesma “linha
editorial” do YouTube onde a diversidade de comportamento e de opiniões impera.
Mas, nem só a mídia televisiva dá conta desta visibilidade massiva. Vídeos que recebem
milhares de visitas, demonstrando que “vulneráveis” ou qualquer sujeito singular e ordinário
tornam-se pessoas públicas e com visibilidade nunca imaginada a partir de milhares e até milhões
de acessos.
Em questão de poucos minutos, a rede social faz circular a opinião, em vídeo ou texto,
provocando uma onda de acessos e opiniões que podem ocasionar debates nos meios de
comunicação de massa ou até mesmo no plenário, como o caso do projeto Ficha Limpa14
, do
deputado Bolsonaro15
ou dos internautas anti-nordestinos na ocasião das eleições para presidência
no ano de 2011, que levou a OAB de Pernambuco a entrar com ação penal contra jovem internauta
pelos comentários postados no twitter, gerando uma onda contra os nordestinos16
. Por fim, foi no
facebook, espaço virtual da internet, que houve a organização da “Marcha das vadias”17
, em
diversas capitais no Brasil.
A partir da exposição dos indivíduos, essa heterogeneidade se torna explícita. Não mais
sendo escondida por uma mídia controladora ou mesmo por um estado controlador. Pelo contrário,
a liberdade da expressão individual vem sendo questionada a partir dos movimentos ocorridos nas
redes sociais. São pessoas comuns ou atores midiáticos que se expressam e podem ser
massivamente recriminados ou ovacionados.
Essas expressões sensíveis - nossa própria natureza animal, sexual, corporal, física,
fantasiosa, imaginativa - participam da constituição de nossa própria consciência, representação,
pensamento, cultura e valoração. No espaço público da rede social, a visibilidade que o sujeito toma
para si é participação e pertencimento. Mostram-se posturas conflituosas e surgem tensões nos
espaços de comentários, há empoderamento dos sujeitos. Criação das próprias representações,
gostos, histórias, experiências, arte, visibilidades. Atores de si mesmos.
É uma produção massiva de individualizações, ou ainda, como denomina Manuel Castells
(2011): a mídia de massas individual. Trata- se mesmo de uma instância ofensiva, no modo de não
ser somente uma reação, mas ação. Não são sujeitos reagindo, mas agindo. O ato de visibilidade –
própria representação -, especialmente contraditório ao valor de homem do senso comum, exibindo-
se o violento, o chulo, o sexual, o sensual, o xingamento, o preconceito, o ordinário mostra um ato
político neste espaço visível do público e emana tensão pelo conflito das heterogeneidades.
A política se redimensiona, comunicacionalmente, tratando das interações, partilhas,
rejeições e contravenções. A comunicação massiva se redimensiona politicamente, passando por
mentes individuais. Suas formas expressivas nos vídeos reconfiguram a partilha do sensível no
modo de causar o conflito das diferenças.
Considerações Finais
Trata-se de um resgate do sujeito político. Queremos com esta pesquisa articular o
pensamento crítico sobre a atuação social dos movimentos sociais, das ONGs, tanto quanto do
sujeito isolado que representa a si mesmo. O cidadão comum e ordinário que é dotado de política a
partir de suas ações e representações de si.
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http://www.jlmais.com/cidades/politica/94978-projeto-ficha-limpa-mobiliza-redes-sociais.html
http://jornalcidade.uol.com.br/rioclaro/ultima-pagina/ultima-pagina/77734-Ficha-Limpa-avanca-e-rede-social-
reivindica-paternidade 15
http://blogs.estadao.com.br/radar-politico/2011/03/31/repercussao-do-caso-bolsonaro-nas-redes-sociais-rende-
peticoes-e-videos-de-protesto/ 16
http://www.oabpe.org.br/comunicacao/noticiasoabpe/8955-oab-pe-ingressa-diretamente-com-acao-penal-contra-
mayara-petruso.html 17
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/06/protesto-marcha-das-vagabundas-chega-ao-brasil-neste-sabado.html
A política pública deve também amparar e fortalecer as subjetividades, sejam em planos
estratégicos de atuação em comunidades do tipo estrutural ou social. É necessário comunicar as
partes múltiplas existentes na sociedade que são distintas, apesar do comum que as perpassam. Com
isso, a comunicação para o desenvolvimento também contribui nas relações sociais fazendo
compreender as diferenças, as heterogeneidades como um convívio harmonioso. Não no sentido
positivista, mas do contemporâneo que observa o cotidiano e as subjetividades nas suas
convivências e convergências.
Os projetos sociais do governo devem estar atento ao empoderamento que não passa
somente pela renda, educação e tecnologia mas se trata das subjetividades. Assim como perceber
que as redes digitais são instrumentos, suportes tecnológicos e, ao mesmo tempo, dispositivo co-
constituinte social, orgânico aos processos sociais.
Também nos interessa neste tema provocar o pensamento sobre a retirada de força do sujeito
em fazer política. A instituição Estado não financia projetos de cidadãos ordinários, e sim das
ONGs, OSCIPs e parceiros institucionais. É preciso pensar o diálogo com o cidadão comum e
singular. A massa de indivíduos que vem se mostrando visível, empoderado e tomando parte dos
impulsos da rede social que constrói nossa realidade virtual e cotidiana.
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