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Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras

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Page 1: Mimoso: a terra de Rondon
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3Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras

Quem não tem saudades das brincadeiras de roda, das fogueiras de São João, das divertidas rodas de contação de estórias, das rezas e es-pecialmente dos cantadores de Cururu e Siriri? Com o passar dos anos, nossas origens foram se perdendo na poeira do tempo. As mangueiras e palmeiras, de nossa terra calcada pelo casco dos cavalos, têm perdido espaço para a civilização que chega sorrateiramente com o concreto. As crianças trocaram a bola de bexiga de porco por outros brinquedos e os jovens, livros por equi-pamentos eletrônicos. Mas o tempo, que mudou tanta coisa, não pode eliminar as lembranças, nem a história de dezenas de brasileiros que fazem de Mimoso uma cidade histórica por natureza.

A história de nossa terra está intimamente ligada à história de desenvolvimento e progres-so do Brasil. Cândido Mariano da Silva Rondon, mais conhecido como Marechal Rondon, nas-ceu e cresceu nas férteis terras de Mimoso, e sempre teve orgulho disso. Depois dele, outros

homens e mulheres de fi-bra e coragem também nasceram e cresceram por aqui, como é meu caso, Sebastião Ferreira Leite, o Juruna.

Por amar tanto esse lugar e reconhecer a im-portância de nosso povoado para a construção do Brasil, realizo um grande sonho pessoal, imor-talizar minhas origens por meio desse projeto. É com espírito de festa e alegria que apresento à população brasileira a primeira edição da Revista “Mimoso: a Terra de Rondon”. Aqui, você, mora-dor mimoseano, vai relembrar e reviver um pou-co da nossa história por meio de causos antigos, velhas rezas e boas lembranças da comunidade pantaneira. E você leitor, vai conhecer a história de um povo que guarda com carinho e respeito suas origens e seus princípios.

Convido você para uma viagem à historia da minha terra.

Sebastião Ferreira Leite - JurunaFilho de Mimoso

DOCES E SAUDOSAS LEMBRANÇAS

EDITORIAL

EXPEDIENTE

CÂNDIDO MARIANO DA SILVA RONDONPATRONO DAS COMUNICAÇÕES NO BRASIL

Idealizador: Sebastião Ferreira LeiteEdição: Ademir Lima

Fotografia: Rodrigo Soares, Jean Cláudio, Armando Dall Pizzolo

Todas as informações contidas neste material são de responsabilidade de Sebastião Ferreira Leite – ´Juruna´

Rua Joaquim Pedro Vaz, nº 843 - Bairro Central75400-000 - Inhumas - Goiás

Produção: Mariley CarneiroRedação: Patrícia SantanaDiagramação e Arte: Leonardo VasconcelosRevisão: Marcelo Machado

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4 5Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

O Cândido Mariano da Silva, mais co-nhecido como Marechal Rondon, foi o brasileiro que mais recebeu con-decorações de instituições nacionais

e internacionais, pela sua vasta contribuição ao conhecimento científico do Brasil. É o filho mais ilustre e condecorado do povoado de Mimoso, descendente de índios terena, bororo e guaná. Nasceu em 1865, e ainda menino perdeu os pais (Cândido Mariano e Claudina Lucas Evangelista). Foi criado por um tio de sobrenome Rondon. As-sim, Cândido Mariano herdou o sobrenome do tio, com autorização do Ministério da Guerra.

Sua carreira no Exército começou em 1881, onde assumiu papel ativo no movimento pela proclamação da República. Em 1890, se graduou como bacharel em Matemática e em Ciências Fí-sicas e Naturais. Nosso conterrâneo foi aluno de Benjamim Constant, e a ideologia positivista que o guiou por toda a vida está inserida na história de Mimoso.

Em 1892, Rondon assumiu a chefia do distrito telegráfico de Mato Grosso e, desde então, che-fiou várias comissões para instalar linhas telegrá-ficas no interior do Brasil. Ele se destacou pela instalação de milhares de quilômetros de linhas telegráficas interligando as linhas já existentes no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Triângulo Mineiro com os pontos mais distantes do País, entre eles, Mato Grosso. Nas expedições para a integração nacional através das comunicações, o Marechal mimoseano fazia levantamentos car--tográficos, topográficos, zoológicos, botânicos, etnográficos e linguísticos da região percorrida.

RONDON, O MIMOSEANO QUE SE TORNOU MARECHAL

Registrou novos rios, corrigiu o traçado de ou-tros no mapa brasileiro e ainda entrou em conta-to com numerosas sociedades indígenas, sempre de forma pacífica. O que o levou a ser o primeiro brasileiro a dirigir o Serviço de Proteção aos Ín-dios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI), criado em 1910. Nesta função, comandou e traçou o roteiro da expedição que o ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, Prêmio Nobel da Paz em 1906, realizou pelo interior bra-

Cândido Mariano da Silva recebeu condecorações de instituições nacionais e internacionais pela sua vasta contribuição ao conhecimento científico do Brasil. Podemos dizer que nosso conterrâneo foi o Rei das Comunicações

sileiro entre 1913 e 1914, a Expedição Roosevelt--Rondon. Incansável defensor dos povos indíge-nas do Brasil, ficou famoso pela frase: “Morrer, se preciso for. Matar, nunca.”

Em 1952 criou e encaminhou o Projeto de Lei de criação do Parque Indígena do Xingu ao pre-sidente da República, Getúlio Vargas. Três anos mais tarde Cândido Rondon recebeu a patente de Marechal pelo Congresso Nacional. Já cego, faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de janeiro de 1958, com quase 93 anos.

Para homenagear, reverenciar e eternizar os feitos desse grande desbravador, o governo do Estado de Mato Grosso está construindo um me-morial para expor a história de coragem e deter-minação traçada por esse homem que nos dá a honra de chamá-lo irmão.

História

Rondon, em um dos inúmeros acampamentos: fotograma de documentário da comissão (sem data)

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6 7Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Mimoso é uma pequena comunidade na região pantaneira do Estado de Mato Grosso. Recebeu esse nome em função de sua vasta vegetação

constituída pelo macio capim-mimoso (Axono-pus purpusii). Foi palco de muitas guerras no pas-sado e guarda na memória, com bastante honra, nascimento e infância do Marechal Rondon.

O vilarejo de Mimoso começou a ser formado com o núcleo de sesmaria de Morro Redondo, ao pé do morro, em 1806. A partir daquela épo-ca, foram construídos a Igreja de Santo Antônio, padroeiro de Mimoso; a Escola Santa Claudina, em homenagem à mãe de Rondon; o posto tele-fônico; um conjunto com cerca de 30 moradias; um pequeno comércio local. É importante res-saltar que essas construções existem até hoje. O povoado está localizado em uma área de planí-cies sazonalmente inundadas pelas cheias.

O centro de Mimoso ainda é a Escola Santa Claudina, que agrega as lideranças comunitárias, jovens e pessoas da comunidade, além de ser lo-cal de festas e ricas tradições culturais. Até me-ados da década de 50, a localidade era isolada de Cuiabá, da mesma forma como Mato Grosso esteve isolado do restante do Brasil. A ocupação do Estado ocorreu com a preção (escravidão) dos índios e com a exploração mineral, culminando na descoberta de ouro, no século 18.

O povoado de Mimoso constitui uma diversi-dade particular dentro dos pantanais, cortados por ricos mananciais hídricos que correm entre a morraria, sustentando uma ampla diversidade de animais e plantas. Resta ao povo pantanei-ro guardar o reconhecido patrimônio histórico e cultural da comunidade mimoseana, que detém conhecimentos próprios num entrelaçamento inseparável da biodiversidade com a cultura.

Mimoso no século 21A população de Mimoso é formada por

um povo humilde que sofre a crise do de-semprego, das desigualdades sociais e dos impactos ambientais, causados principal-mente por pescadores predatórios que vi-sam ao lazer sem nenhum cuidado ecológi-co ou cultural, contribuindo para o trabalho escravo e causando graves danos à rica di-versidade ambiental e social. Mesmo com a devastação, a paisagem natural se mostra exuberante e ainda conserva aspectos belís-simos do ambiente pantaneiro.

Nos últimos anos, somada à generaliza-da falta de perspectivas de trabalho, a po-pulação enfrenta a perda de sua tradicional fonte de renda, a pesca. Essa perda é moti-va pelos efeitos danosos de construções de barragens hidrelétricas. Apesar dos proble-mas, surge uma vaga esperança de mudan-ças num futuro próximo, com a perspectiva de construção do Memorial Rondon, que atrairá visitantes para a região.

Assim, entendemos ser este o momen-to de se criar oportunidades para reflexões sobre a situação ambiental e econômica no Pantanal, e particularmente nesta comu-nidade. É preciso pensar mecanismos de agregação de valor aos produtos da terra e de sensibilização da população local para a valorização dos patrimônios culturais e na-turais para sair da estagnação econômica a que a comunidade está sujeita.

A principal referência cultural mimoseana é as tradicionais festas religiosas que cultuam Santo Antônio, o padroeiro da comunidade; São Sebastião, meu padroeiro; e Nossa Senhora da Guia. Essa devoção é mantida por mais de 200 anos

UMA VISÃO SINGULAR DO MUNDO

História

Dedicada ao padroeiro de Mimoso, esta é a Igreja de Santo Antônio

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8 9Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

História

A natureza da região do pantanal é riquíssima em beleza

O comércio de Mimoso vem resistindo há muitas décadas

O nome da escola homenageia a mãe do ilustre Marechal Rondon

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HISTÓRIA DE UM POVO DE FÉ E CRENÇA

Ainda é comum testemunhar as revoadas de cardeais, as ninhadas de tuiuiús, os passeios da mãe capivara com os filhotes, as brincadeiras dos jacarés e os reflexos solares que conferem beleza às águas.

Em Mimoso, o patrimônio familiar é passado de geração a geração. A tradição e o modo simples de ver e enfrentar a vida são repassados de ascendentes a descendentes. Por isso, comprei as terras que eram de meus avós

A riqueza étnica e linguística da comu-nidade mimoseana criou uma cultura própria e singular a partir da miscige-nação do índio bororo, do branco e do

negro, criando seu próprio espaço, tempo e uma singular visão do mundo. E a partir das relações sociais e culturais, convivem entre si, na base da solidariedade e da reciprocidade, que por sua vez, estenderam-se à convivência com seu terri-tório espacial e natural.

Em Mimoso, além do padroeiro Santo An-tônio, cada família tem seu santo de devoção. Em cada casa tem um nicho, um altar enfeitado com flores e velas. O culto ao santo padroeiro da comunidade ressalta a fé e a devoção das famí-lias, o que envolve toda a comunidade em uma celebração cultural e religiosa. Essa devoção é mantida há mais de 200 anos por homens e mulheres que mantêm a tradição passando seus conhecimentos e crenças de geração a geração.

Como principal referência cultural mimosea-na, podemos citar as tradicionais festas religio-sas. Esse é um momento especial para quem reencontra parentes e amigos em uma descon-traída roda de conversa onde trocam informa-ções, namoram, dançam, cantam e, principal-mente, resgatam valores nas rodas de cururu e siriri, onde ocorrem duelos entre os cantadores que reverenciam o santo festejado. Tradicional-mente, a disputa entre cantadores implicava em fama e vantagem, pois para conquistar namora-das, levava vantagem um bom cururueiro.

Mimoso é terra de gente solidária e recep-tiva, que mesmo com o passar dos anos ainda mantém a essência e a identidade de um povo guerreiro e ordeiro que acredita em sua identi-dade e aposta num futuro melhor, valorizando os recursos naturais e a figura histórica de seu filho mais ilustre, o Marechal Cândido Rondon.

Cultura e valores

A crença e as tradições enriquecem a cultura da comunidade e fortalecem os

laços da família mimoseana. Nos detalhes, estão Domingos e Nhanhá Joana, avós de

Sebastião Ferreira Leite

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12 13Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Ainda é comum testemunhar as revoadas de cardeais, as ninhadas de tuiuiús, os passeios da mãe capivara com os filhotes, as brincadeiras dos jacarés e os reflexos solares que conferem beleza às águas.

Meus avós paternos, Domingos Ferreira Leite e Joana de Mattos Ferreira, formaram uma das primeiras famílias a se instalar em Mimoso. A falta de recursos os forçou a permanecer por aqui e disseminar suas raízes

COMO A FAMÍLIA DE ‘JURUNA’ FOI PARAR NO PANTANAL MIMOSEANO

Em 1927 os avós paternos de Juruna, Do-mingos Ferreira Leite e Joana de Mattos Ferreira, foram morar na Fazenda Anhu-mas (hoje Rondonópolis), de proprieda-

de de Cândido Rondon. Alguns anos mais tarde, Vovô Domingos, como era conhecido, foi traba-lhar na Fazenda Pouso Lindo, de propriedade de Seo Carlinhos Reinners. Por essas terras, a famí-lia Ferreira Leite começou a ser formada e disse-minada em meio às morrarias mimoseanas do pantanal mato-grossense.

“Meu avô Domingos é filho de Vitalina Maria Ferreira e Antônio Ferreira Leite, e minha avó, a Nhanhá Joana, filha de Clara Ferreira Leite e João Pinto de Mattos, um baiano arretado, parente do Cel. Horácio de Mattos, que escapou da guerra entre Morbeck e Carvalhinho, na região de Poxo-réu, e foi parar em Porto Pinto e, posteriormen-te, em Mimoso. Seus restos mortais estão na Fa-zenda Pouso Lindo. Seus pais são José Silvério de Mattos e Francisca Marcolina de Mattos.”

A família era absolutamente matriarcal. Vi-talina da Silva teve seis filhos e quatro maridos. Sua tataravó era irmã da mãe de Rondon, Clau-dina Lucas Evangelista. “O pai de meu avô era Antonio Ferreira Leite, filho de Benedito Ferreira Leite (vovô Didi), de saudosa memória, e de Bar-tolina Lucas Ferreira. Era também pai de Domin-gos Ferreira Leite e Clara Ferreira Leite, pais da minha bisavó, portanto, meus tataravós.”

Do lado materno, o avô Virgílio Teixeira da Silva nasceu em 28 de fevereiro de 1989, filho de Ma-

riana Teixeira da Silva e Caetano Leite de Sá. Minha bisavó era negra e Caetano Leite de Sá era filho de tradicional família mimoseana. A avó, Maria Umbelina das Neves, nasceu em 29 de janeiro de 1910. Belina, como todos a conheciam, nasceu de Antônia Rosa e Antonio das Neves. É importante lembrar que Vitalina e Antônia Rosa, bisavós de Ju-runa, eram primas-irmãs de Cândido Rondon.

A religião sempre foi um forte do povo mimo-seano, em sua maioria, devotos de São Sebas-tião. Uma imagem antiga de São Sebastião, que era da avó Belina, hoje está sob os cuidados de Juruna, que tem como missão não apenas zelar da imagem, mas também da tradição. “Em ra-zão da morte de tio Biu, pedi a minha avó para deixar eu zelar da imagem e da tradição de São Sebastião. Com os testemunhos de minha ma-drinha e de tio Guaraci, ganhei a responsabili-dade. Mandei restaurar a imagem em Trindade e descobri que a argila tinha mais de 200 anos.”

Assim como o patrimônio familiar é passado de geração a geração, a tradição e o modo sim-ples de ver e enfrentar a vida são repassados de ascendentes a descendentes como patrimônio familiar agregador das relações, onde a principal característica da comunidade é manter a terra como garantia de manutenção da comunidade.

Por isso comprei as terras que eram de meus avós, tinham sido vendidas. “Não tenho e nunca tive a intenção de ser o dono desse paraíso, ape-nas não quero deixar morrer a minha história, a história do meu povo.”

Causos, estórias e dizeres

Edjane, Meroca, Chanô, Mariana, Marina, Belina-Avó, Mary, Angélica, Alessandra e Tiago

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14 15Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

AS ORIGENS DA FAMÍLIA DE ‘JURUNA’

Ainda é comum testemunhar as revoadas de cardeais, as ninhadas de tuiuiús, os passeios da mãe capivara com os filhotes, as brincadeiras dos jacarés e os reflexos solares que conferem beleza às águas.

Tenho orgulho de dizer que meu pai, Arnaldo Ferreira Leite, que ainda vive na comunidade, formou em curso superior quatro de seus seis filhos, com o apoio de minha mãe, Adiles Teixeira Leite, a qual nos deixou há um ano

Sebastião Ferreira Leite, mais conhecido como Juruna, nasceu em Mimoso, no dia 3 de fevereiro de 1964, de uma gestação precoce de 7 meses. O parto foi feito pela

tia-avó Mana Jorgina, que era benzedeira. Ao lado de seis irmãos, sendo um de criação, Juruna cresceu em meio à natureza exuberante do pan-tanal mato-grossense. Sua mãe, Adiles Teixeira Leite, faleceu em 19 de julho de 2012, aos 72 anos de idade.

Quando criança, estudou na Escola Rural Mis-ta de Lagoa, com a Professora Maria Diva das Neves Pereira. Em 1972, fez a primeira série na Escola Santa Claudina, em Mimoso, com a Pro-fessora Creuza Ribeiro de Almeida.

Mesmo tendo saído de Mimoso ainda muito jovem para realizar um sonho de seus pais (se tornar doutor), nunca perdeu as origens mimo-seanas. “Gosto e admiro o estilo de vida cuiaba-no, especialmente a comida cuiabana. Gosto de cavalos, gado. Adoro cozinhar, conversar, falar mal dos outros, dançar rasqueado, siriri e até cantar cururu. Pense num homem animado.”

Mesmo com muitas dificuldades, seus pais, Arnaldo Ferreira Leite e Adiles Teixeira Leite, for-maram quatro, dos seis filhos, com curso supe-rior. Depois de formado, Juruna passou a dividir a vida de advogado com a vida simples e sosse-gada do pantanal mimoseano. “Todos os anos, nas férias, deixo o tribunal para comer paçoca, deitar na rede, andar a cavalo, ouvir os pássa-ros e apreciar as piúcas rosas e roxas, os caram-bazais amarelos dos campos e as flores d´água. Sem falar no canto das anhumas e dos araquãs, que me deixam fascinado.”

Causos, estórias e dizeres

A vida simples de Mimoso proporciona harmonia total com a natureza do

pantanal e com as tradições sertanejas

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16 17Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

UMA VIAGEM QUE TRANSCENDE AO TEMPO

A vida simples do povo de Mimoso rele-va riquezas culturais, religiosas e sociais imensuráveis e inesquecíveis. Esse espa-ço da revista foi reservado especialmen-

te para resgatar os principais contos, cantos, rezas e estórias contadas e cantadas por homens e mu-

lheres de diferentes gerações há centenas de anos. Como forma de resgate desses valores e histórias, Sebastião Ferreira Leite, um mimoseano legítimo, recorreu a livros, jornais, redes sociais, anotações e, claro, ao caderno de catecismo de sua mãe para relembrar rezas, terços e orações do pantaneiro.

Ramiro, filho de Mana Jorgina, esta gerada por Mariana Teixeira da Silva, também, mãe de Virgílio Caetano, Pedro Alexandrino, Brasilina e Delfina, fez uma cantoria sobre um romance amoroso secreto cuja letra assim expressava:

“Tô procurando saber o caso daquele dia.Fica quieto, não fala nada, esse negócio escondido... não quero que ninguém saiba nossa amizade como é que é.”

Lauro da Silva Rosa, o maior e melhor dos cantadores de Mimoso deixou inúmeras toadas, em uma delas lamenta a

incompreensão de um de seus amigos:

“Eu não falo de ninguém, muitos falam de meu nome. Só eu que tenho essa opinião, não mal emprego vida alheia, eu acho que é até inveja que muitos falam de meu nome,até a pessoa que eu não esperava já falaro mal de mim!”

De Ramiro é a autoria desta outra pérola:

“Eu vou passear cumprindo com a minha sorte, quem não arrisca no mundo, Siá Dona, não perde e não ganha nada.”

O maior parceiro de Lauro da Silva Rosa foi meu tio Guaraci Queiroz das Neves, que escreveu assim:

“Oi, já tô fazendo minha despedida, já vou simbora. Eu vou embora daqui, aqui eu não posso morar.

Eu quero deixar saudade,pra meus amigos algum dia há de lembrar de mim.”

"

"

"

"

"De outra feita, criticava quem mudava de religião:

“Já vieram me falar pra eu mudar de religiãoEu não troco

Hei de acompanhar a religião que eu achei.”

Causos, estórias e dizeres

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18 19Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Me lembro de um trecho de uma outra toada de Emiliano:

“Dão, dão, dão, pelas notícias que corre,Quem não te conhece que te compra...”

Emiliano, filho de xá Dita de Cridio, neto de Agostinho e bisneto de Fava, que segundo me disse minha avó Belina foi o responsável por levar Cândido Mariano da Silva Rondon para Cuiabá, para casa de seu tio Manoel Rondon, retirando-o da casa de seu avô João Lucas Evangelista, era um grande cantador e tirador de reza de São Gonçalo.

Nesta, ele puxava a fila de um lado e Nhazinha a das mulheres, numa emocionante roda de siriri, eis a letra:

“São Gonçalo de Amarante,São Gonçalo de Amarante,Ai, casamenteiro das velhas,Casamenteiro das velhas, ai.”

Quando pequeno, eu era muito curioso e prestava atenção em tudo. Em uma reza na casa de Tio Dicó/Maria, ouvi esta pérola de Titi João Grande:

“Cadê Estrela Daiva (SIC) faz tempo que não lhe vejofaz tempo que não lhe vejo, venha conversar comigo. Essas mocinhas d'agora não repara qualidade,vai casando com caiqué um.”

De outra feita, quem ficou muito zangada foi minha madrinha Beni, com uma toada de Durico Preto, eis a letra:

“Vestido Tubinho é bonito, mas só orna pra moça gorda,

aquelas que são mais magras é a coisa mais indecente,parece figura na parede.”

Meu avô Virgílio, conhecido também como Gica, cantou uma toada para Ninfa de Renato, por estar muito exibida:

“Carro não anda sem boi, ai ai,Eu não canto sem beber,

tanto bem que eu lhe queria, mas hoje eu não quero mais, porque você é ingrata.

Mas desse jeito, morena,você perde merecimentoe ainda fica sem casar.

Glorioso pai do mundo, ai,pai de todos pecadores,

tanto bem que eu lhe queria...”

"

"

""

"" Nas homenagens aos santos,

é incomparável esta de Tio Ninito, em tom de desafio:

“Olalalão, olalalão,mas eu queria saber como São Pedro Morreu...Numa Cruz crucificado de cabeça para baixo.”

Causos, estórias e dizeres

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20 21Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Meu padrinho José conta que, em uma dessas trovas, Dito Paca foi expulso da roda porque perguntava:

“São Sebastião, quando fez dezoito anos, na casa de quem que ele entrou?” Como ninguém sabia, foi expulso e meu padrinho conseguiu a resposta, que bastava responder que “entrou na casa dos 19”. A casa significava idade.

A de tio Erão sobre cabelo fofo:

“Não sei que mal que eu fiz que até trocaram meu nome.Tô sabendo por notícia que eu chamo cabelo fofoÉ mentira, é seu engano, morena, Eu chamo é mata saudade.”

"

"

" Tio João Paes de Barros foi casado com Tia Ana Maria, com quem teve 22 filhos. Destes, 17 sobreviveram. Fora do casamento, teve outros 13. Sua principal atração era a voz e a viola. Eis algumas das suas modas:

“Meu compadre Guaraci, ai ai,Você diz que vai embora deixando saudade pra gente daqui. Você vai morar tão longeOnde nós custa encontráLeva meu coração e deixa o seu pra mim.”

Num belo dia, Darião foi pescar. Não tinha canoa e apanhou a de Virgílio José, tido como muito franco.

Nesse dia, Tio Virgílio José também foi pescar. Arrumou seu sapicuá, o baquité com as traias, o remo, os

anzóis e a espingarda. Ficou esperando. Quando Dario chegou, com o cano da espingarda foi tirando os peixes e falando, “esse

é meu, esse é meu, esse é meu...”Dario pediu: “Oh, tio Virgílio, deixa um peixe pra eu fazer

um caldinho?” Tirou o menor pacú e sentenciou: “Pega esse, pro cê aprendê a não pescar

com canoa dos outros.”

"

Lauro da Silva Rosa fez jus ao ensinado para Cora Coralina, ao dizer que o saber se aprende nos livros e com os mestres,

a sabedoria com a vida e os humildes, ao responder a um amigo sobre uma carta que pegou para ler, mesmo sendo desprovido

do ato de leitura:

“...Após pedir para ler a carta, o interlocutor perguntou: “Já leu, seo Lauro?”

Resposta: “Lim, sim sinhô!”Interlocutor: “Mas tá de cabeça pra baixo.

Resposta: “Estou deslendo.”

"

Causos, estórias e dizeres

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22 23Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Ivo de Lauro morreu cedo e foi um grande cantador:

Menina, já descobriVocê anda falandoE desconjurando um filho alheioNum falo com soberbiaTenho medo de pagarPra mim amar seus carinhosSó se for para pagar pecado,Só se Deus me castigar.

Gi de Hipólito fez uma toada muito boa:

Tão me chamando de soberbo,Mas é engano,Faço agradoPra quem merece.Se for pra me querer bemNo meio da falsidade,Mais antes me querer mal,E não se alembra de meu nome.

Sebastião Gonçalves fez uma de ponto para seu irmão:“Só eu que não tive sorte neste mundo, Pessoa que eu quero bem é o primeiro a me desprezar,Nem tanto pelo desprezo, como tiraram minha razão,Pra dar pra certas pessoas desconhecidas que vêm aqui!”

"

"

"

Rezas mimoseanas

Deus nos salve

Deus vos salveDeus vos, vos salve,

Maria filha de, Deus padre.Deus vos, vos salve,

Maria mãe de, Deus filho.Deus vos, vos salve,

Maria esposa do Espírito Santo.Deus vos, vos salve,

Maria templo e sacrário daSantíssima Trindade.Deus vos, vos salve,

Maria concebida sem pecado original, Amém.

Gloria!

Gloria patris, et filii, et spirictum santi, amem

Sicut erant in principium, et saecula, saeculorum, amem.

Causos, estórias e dizeres

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24 25Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

Amado Jesus

Amado jesus, José, Joaquim, Ana e Maria, eu vos douO meu coração, corpo, alma e vida.

São Sebastião

São Sebastião SantoDe Jesus querido,Livrai-nos das pestes,De todo perigo (bis).

São Sebastião Santo,De Deus muito amado,Livrai-nos das pestes,Nosso advogado(bis).

São Sebastião Santo,Querido de Deus,Livrai-nos das pestes,Pelo amor de Deus (bis).

São Sebastião Santo,De Deus onipotente,Livrai-nos das pestes,Todos inocentes (bis).

São Sebastião Santo,Meu Jesus também,Levai-nos à glória,Para sempre, amém (bis).

Salve Rainha

Salve rainha, ó Santa Maria,Mãe de misericórdia(estribilho)Senhora da Guia

Sois vida e doçura,Grata melodia,Esperança nossa,Senhora da Guia.

Salve a vós bradamos,Sagrada Maria,Somos degredados,Senhora da Guia.

Nossa Senhora da Guia

Gemendo e chorando,De noite e de dia,

Neste vale de lágrima,Senhora da Guia.

Advogada nossa,Do céu doce valia,A nossa protetora,Senhora da Guia.

Estes vossos olhos,De misericórdia,

A nós volvei,Senhora da Guia.

Depois deste desterroCom muita alegria,Nos mostrai Jesus,

Senhora da Guia.

O fruto do vosso ventre,Ô clemente, ô pia,

Ô doce sempre virgem,Senhora da Guia.

Rogai por nós,Na última agonia,

Santa mãe de Deus,Senhora da Guia.

Para que sejamos dignos,Das promessas do Messias,

Amém, Jesus,Senhora da Guia.

Santo Antônio

Ó, meu Santo Antônio,Meu santo milagroso,Fazei que da virtude,

Sejamos amorosos.

Ó, meu Santo Antônio,Meu santo ditoso,

Fazei que da virtude,Sejamos amorosos.

Ó, meu Santo Antônio,Meu santo protetor,

Fazei que dos pecados,Alcança verdadeira dor.

Ó, Santo Antônio,Meu santo muito amado,Nos trabalhos desta vida,

De nós tenha cuidado.

Ó, meu Santo Antônio,Da alma sois alegria,

Socorrendo sem demora,Na última agonia.

Causos, estórias e dizeres

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26 27Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

São Benedito

Meu São Benedito,Vossa casa cheira,Cheira cravo e rosa,Cheira flor de laranjeira.

Qual é este santo,Coberto de flor,É São Benedito,Junto com nosso senhor.

Qual é este santoQue chegou agora,É São Benedito,Junto com Nossa Senhora.

Quem é este santoQue saiu de dentro,É São Benedito,Para nos livrar do convento.

Qual é este santo,Coberto d véu,É São Benedito,Que vem descendo do céu.

Quem é aquele que ali vem,Quem é aquele que ali está,É São Benedito,Que chegou no seu altar.

Meu São Benedito,Meu Jesus também,Levai-nos à glória,Tudo para sempre, amém.

Bendito, louvado seja

Bendita, louvada sejaA santísssima trindade (bis).

E sendo três em pessoas,Uma só e na verdade (bis).

E também seja louvadaA pureza de Maria (bis).

Onde Deus verbo encarnou,Sendo mãe e sendo filho (bis).

Como filho a vós pedimos,Como mãe a vós rogamos (bis).

São João

Deus te salve João,Batista sagrado,

No seu nascimentoNós temos alegrado.

Ó, joão bendito,De Deus muito amado,

João que no JordãoFoste batizado.

Mereceste santo,Como precursor,

A quem batizastes,A nós batizou.

Depois do batismo,Deus vos perguntou,

O qual de nós é melhor,Disseste o senhor.

João batizou Deus,Deus batizou João,

Ambos foram batizados,No rio Jordão.

Nos continuaste,E lá vos mandou,

Sois vós o segundo,Deus o publicou.

Baptista santo,Quando avisaste,

Deus vos chegando,Para lhe apontaste.

Bendita Maria

Bendita de Deus,Bendita Maria,

Que o terço nos destes,De muita valia.

De Maria o terço,Um forte esquadrão,

Que bateu nas trevas,Do inferno o dragão.

De Maria o terço,Uma forte espada,Que na vista dela,O inferno é nada.

Uma forte espada,Do mais fino forte,Derrubou o inferno,

Sem dar um só golpe.

Da forte batalha,Vitória teremos,

De rezar o terço,Sempre rezaremos.

Dizendo em voz alta,Que bem se entendeu,Cheguei ao redentor,Cordeiro de Deus.

Sois o Batista,Dos santos maiores,Todos vos festejam,Os grandes e os maiores.

Deus te salve, santo,Deus muito amado,Como primo seu,Batista sagrado.

São João, a vós pedimos,A Deus por vós também,Na vida e na morte,Para sempre, amém.

Levai-nos todos à glória,Cantando e Deus louvando (bis).

Minha virgem Nossa Senhora,Sábado é vosso dia (bis).

Onde vão cantar os anjosDa virgem santa Maria (bis).

Causos, estórias e dizeres

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28 29Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

No trato do inferno,Fazemos tenção,De rezar o terçoCom as conta nas mãos.

Que no mundo fora,Do terço amante,O viu lá na glória,Quando os anjos cantam.

Sempre rezaremos,Com muita alegria,Para alegrar,A virgem Maria.

A virgem Maria,Prometeu salvar,A todos devotos,Que o terço rezar.

Jesus, quando viuTão bela harmonia,Logo perguntou,Quem louva Maria.

Responderam os anjos,São os pecadores,Que vem a julgar,Com muitos temores.

Respondeu Jesus,Com muita alegria,Não terá castigoQuem louvar Maria.

Quem louvar Maria,Maria dolorosa,Lá ao pé da CruzEstá lastimosa.

Toda lastimosa,Mãe de somos bem,

Leva-nos à glória,Para sempre, amém.

Coração amoroso

Bendito, louvado sejaUm coração amoroso,

Pelo homem deu a vida,Sendo sempre poderoso.

Sendo sempre poderoso,Seja bendito louvado,

Por ser amante morreu,Numa Cruz crucificado.

Numa Cruz crucificado,Meu divino coração,

Para nos livrar do inferno,Deu princípio em Adão.

Deu princípio em Adão,Remindo de corpo e pena,

Salve o padre eterno,Quem a si mesmo se condena.

Quem a si mesmo se condena,No decreto de Deus padre,

Tomando encarnação,No seio da virgem madre.

No seio da virgem madre,Daquele Deus verdadeiro,

Para ser verdadeiro homem,Nos livrou do cativeiro.

Nos livrou do cativeiro,Com sua morte paixão,

Cumpriu em vosso sangueO princípio da salvação.

O siriri, ao contrário do cururu, cuja roda é formada somente

por homens, é composto por pares, acompanhado por um tirador que toca a viola, um ganzá e um couro/tamborete para marcar o

ritmo. O que canta? Coisas da vida, a saudade, a despedida, o adeus, a natureza, os pássaros,

as desventuras amorosas, etc...

O princípio da salvação,Que nos deu a santa Cruz,Bendito seja sempreO coração de Jesus.

Siriri

A cantiga abaixo mostra o orgulho de Seo Urubu:

Urubu desceu do céu, ai aiCom fama de dançador, ai aiDança urubu, não sei dançá,Dança urubu, não, doutô

Dança urubu, não tenho pá!

Urubu foi tirá leite,Carcará foi vaquejá,Urubu fez fufu,

Carcará fez crácrá.

Causos, estórias e dizeres

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30 31Mimoso, a terra de Rondon - Suas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeirasSuas estórias e histórias, seus cantadores e rezadeiras - Mimoso, a terra de Rondon

A ciranda nordestina tem uma versão pantaneira:

Ciranda, cirando há, vamos todos cirandar,Oh meu padre santo Antônio, venha me ensinar dançar.

Ponha esta perna,Se não servir esta,Ponha esta outra,Pra senhora moça,

Rodeia, rodeia, rodeia,Fica de joelhos,

Põe a mão na cintura,Faz uma mesura.

Tem estórias de noivo abandonado, como:

Eu mesmo cortei a madeira,Eu mesmo cortei o sapé,Para fazer um ranchinho

Praquela mulher,

E, depois,Êh, ingratidão,

O meu ranchinhoFicou abandonado pro sertão.

Severino de Nhá Dona, uma vez, estava dormindo na casa de Nhá Loça e Agostinho foi roubar Josefina a cavalo.

A primeira rede que encontrou na sala jogou no ombro e saiu a galope no cavalo. Lá na frente descobriu que era Severino, padrinho

de boneca de minha irmã Marina. Eis um sirini de Severino:

Meu bambolê,meu bambolê,Meu bambolê,

Eu não posso ficar,Eu sou casado,

Tenho três crianças,Minha morena

Não posso deixar!

Éramos uma turma grande de meninos e meninas. Lembro-me como se fosse hoje, nas rezas na casa de tia Senhorinha,

com tia Clarice tirando reza, ajudadas pela voz afinadíssima de seo Lauro. Depois, dançávamos siriri.

Caranguejo não é peixe,Caranguejo peixe é,

Caranguejo só é peixeNa enchente da maré.

Palma, palma, palma,Pé, pé, pé,

Roda, roda, roda,Caranguejo, peixe é!

Causos, estórias e dizeres

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O adeus da saudade fez nascer este siriri:

Estava na beira do rioQuando meu amor embarcou,

Foi a prenda mais bonitaQue as ondas do mar levou.

E a paixão dos peixes:

Corimbatá,Lambari mandou dizer

Que a piava está doente,Com saudade de você!

No siriri tem também desafios:

Roda morena, não me encosta na paredeQue a sala está bonita pra dançar de saia verde!

Alecrim da beira d'água,Treme, treme, mas não cai,

Que morena bonitinhaPra ser nora de meu pai.

Passarinho da asa verde,Bebe água no capim,Nunca pude acreditar

Que você gosta de mim!

Atirei um limão verdeLá na torre do Belém,

Deu no cravo, deu na rosa,Deu no peito de meu bem!

Joguei meu anzol n'água,Pra pescar peixe dourado,Lá no fundo respondeu

Que não sou seu namorado!

Em cima daquele morro,Tem um caldeirão de ouro,Faz um ano e quinze dias

Que ocê não lava seu pescoço!

O elogio a uma moça bonita dá a seguinte versão:

Aqui tem uma meninaDe vestido pintadinho,Eu não vou na sua casa

Porque eu não sei o caminho,Me leva uma vez,Que de outra vez,Eu vou sozinho!

Tia Judite é da minha turma animada da família. Quando havia festa do outro lado do rio,

minha avó gritava para titia gritar mais baixo. Assim era a cantiga:

Já mandei trazer,Já mandei buscar,

Lampeão de ouro, ferro de engomar.

Causos, estórias e dizeres

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A homenagem aos pássaros:

Já mandei fazer seu ninho, sabiáSeu ninho está arrumado, sabiáAgora ocê toma conta, sabiá

De seu ninho, sabiá!

Viagra Pantaneiro:

Em 1998, meus pais foram festeiros de Santo Antônio. Dentre as novidades, minha mãe criou o licor de jatobá, que se eternizou em uma música do grupo Scort Som chamada Viagra

Pantaneira, pois meu padrinho José vendia o produto aos turistas na ponte do Rio Mutum como produto afrodisíaco.

Nessa festa, Diinha criou este siriri:

E avoou e foi simbora,Nem se despediu de mim,E avoou e foi simbora,

Nem se despediu de mim,Avoou minha pomba rolaE assentou minha Juriti,

Avoou e foi simbora,E nem se despediu de mim.

E Antônio Pinto Paes de Barros fez esta homenagem ao viagra pantaneiro:

"Fui percorrer Mato Grosso, na região pantaneira, e cheguei aqui em Mimoso, vi uma coisa verdadeira, e foi na festa de santo de uma velha

tradição, e foi lá que conheci o viagra pantaneiro. O viagra pantaneiro, ele só faz alegria, e você tomando ele,

você entra na folia, e, depois que começar, você não quer mais parar, você cai no bailão e dança até o dia clarear. É uma bebida gostosa,

para gente saborear, o viagra pantaneiro faz você reanimar. Agora para quem não sabe, agora vou explicar: o viagra pantaneiro

é o licor do jatobá."

Siriri também conta estória de vaqueiro. Esta é uma criação de Tio Guaraci, que era casado com Adaltina Lucas Evangelista (Tica),

foi protagonista de uma cena muito interessante com Marechal Rondon. Quando Rondon voltou da cidade de Letícia, após intermediar o acordo

entre a Colômbia e o Equador, em nome do Brasil, o dinheiro que recebeu aplicou na construção da Escola Rural Mista Santa Claudina,

que não é do onomástico católico, mas positivista. Pois bem, tio Guaraci trabalhava com o engenheiro Doutor Garcia Neto,

muitos anos depois governador do Estado de Mato Grosso e grande benemérito, pois construiu a estrada que nos tirou do isolamento,

foi um responsável pelo corte das piúvas (ipê) para servir de madeiramento. Poderia entrar na casa de qualquer um.

Como a madeira era escassa, Dr. Garcia mandou cortar carvão vermelho, coração de negro, enfim, madeiras com a mesma característica. Contaram pra Rondon. No dia da inauguração, queria mandar

derrubar o madeiramento.

"Fui buscar meu boi na serra.Somente meu pai de guia,

Não tem vaca, não tem boi, só novilha.

Pega meu boi, põe no curral,Pega meu boi põe no curral.

Pega meu boi põe no curral...."

Tem siriri de casado com conforto de solteiro:

Eu fui num muxirumLá doutro lado,

A moça que eu namoreiFoi enganada,

Pensando que eu era solteiro,Eu sou casado,

Menina não me namora,Porque eu sou papel queimado.

Causos, estórias e dizeres

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Ainda é comum testemunhar as revoadas de cardeais, as ninhadas de tuiuiús, os passeios da mãe capivara com os filhotes, as brincadeiras dos jacarés e os reflexos solares que conferem beleza às águas.

Não sou capaz de expressar o que meus olhos viram nem o que meu coração sentiu. Limito-me a dizer que o passeio à Baía de Chacororé me proporcionou uma emoção única que ficará na minha memória pra sempre

UM PASSEIO À BAÍA DE CHACORORÉ

Cavalgada

A aventura apresentou à família Ferreira Leite um mundo verde de variados tonsRio Mutum

Frente da Fazenda

Pantanal Mimoso

Em 2012, Juruna e sua irmã Mary Ferrei-ra Leite fizeram um dos passeios mais agradáveis de sua vida. Foram conhecer a Baía de Chacororé por um lado que não

conheciam. Conheciam a Baía de Chacororé pela frente: contornando a Baía de Siá Mariana, aces-sando pelos corixos que fazem a ligação. O desa-fio da vez era fazer o caminho inverso a cavalo.

O anfitrião, Arnaldo Ferreira Leite, acordou às 3 da madrugada e arreou os cavalos. “Sou um amante do cavalo sem-fronteira e pioneiro da criação dessa raça no pantanal. Esse passeio foi o melhor da minha vida”, contou Juruna.

Dia embruscado e ameaçando chuva. Mas se-guiram, e contando estórias antigas. Uma foi a saga de Benedito Dias, que ao subir o morro viu uma vaca velha, magra e manca (inexistente).

Outra foi a da insensatez de vovô Domingos: depois de beber umas e outras, perguntou ao o Dicó, recém-casado, se já tinha engravidado a

mulher, pois, segundo ele, essa era a primeira obrigação do homem ao casar: perguntou mes-mo sabendo que Dicó era estéril, por causa de uma caxumba. Outro assunto foi de uma pes-caria em que o pai de Juruna foi arrastado pro meio da Baía de Siá Mariana por um “bicho” que pegou na linha de pescar. O remédio foi cortar a linha e deixar o animal ir embora.

Assim, atravessaram o morro e chegaram à campina mimoseana, para atravessar o Rio Ve-lho e chegar à baía encantada. Cruzaram a flo-resta de carambazais misturados com sarãs e capões cheios de cipó. Tomaram chuva, fizeram graça e beberam água de cantil.

Enfim, chegaram à beira da baía e desfruta-ram da vista imponente e única. “Revivi o passa-do, curti o presente e pensei o futuro. Tive certe-za de que Mimoso é parte da minha vida. Gado correndo e berrando, aves esvoaçando e pássa-ros cantando. Foi a melhor visão da minha vida.”

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UMA CARTA À ADILES TEIXEIRA LEITE

Mamãe, a senhora resolveu partir antes do combi-nado. Ao seu estilo, sem querer esforçar ninguém.

Nesta manhã friorenta, ao som do vio-lino, ouvindo saudade do matão e das angolas persistentes, com sol bem pan-taneiro, estamos nos despedindo de ti.

Seu marido e esposo solitário cho-ra a sua partida. Seus filhos, Sebastião, Branco, Mariana, Mary, Marina, Rob-son, e tantos outros como Tônica, Ne-zinho, Juca, Nino... irmãos, sobrinhos, afilhados, parentes, amigos e amigas dos seus filhos e filhas, pranteiam a sau-dade da tua despedida. Teus netos não sabem muito bem o que é a sua parti-da. Meu filho, Luis Felipe, vai saber na hora em que eu chegar a Goiânia. Tuas noras e teus genros lhe rendem muitas homenagens. Muita gente apareceu. Tia Serise, Nega de Bastiolão, Gilson e esposa, Nairche veio e pediu para ver o guarda-roupa comprado em 1970. Seu Zé de Pequinino também veio despedir--se da senhora.

A Senhora sabe que não sou de cho-rar nas despedidas. Esta é a última. Todos estávamos tristes. Temos sau-dades das tuas alegrias, das receitas de bolo de arroz, paçoca, galinha com arroz, maria-isabel, do doce de leite e

A saudade da despedida

de caju, finalmente, do inesquecível li-cor de jatobá, popularmente conhecido como viagra pantaneiro.

Quero que a Senhora se apresente perante o Divino Pai Eterno, com a ale-gria de sempre, cantando valsas, cha-mames, rasqueado, cururu e siriri. Em sua homenagem, rezamos as rezas do seu catecismo, já copiadas para meu computador, com as capeloas Chinda, Mary, Ana Lúcia e Cecília. Mary, a se-nhora já sabe, elogiou o meu entusias-mo e reclamou da desafinação. A Se-nhora sabe como ela é...

Na sua chegada ou partida, diga ao Pai Eterno que Mimoso será melhor. Doutor Valdir é nosso candidato. Lula melhorou o Brasil. E, como grande ale-gria antes da sua partida, nosso Corin-thians ganhou a libertadores e goleou o Flamengo. Sei que a Senhora pediria para eu não brigar com ninguém. Serei fiel nisso. Peço desculpas pela ausência de minha mulher, Rosana, que não te deu o último adeus.

Por fim, prometemos cuidar de Pa-pai. A saudade nos faz triste, mas sa-bemos que a senhora está no céu e pe-dindo a Deus por nós, junto com nossos familiares e os santos de nossa devoção: São Sebastião, Santo Antônio e São Be-nedito. A sua benção!

SEBASTIÃO FERREIRA LEITE‘JURUNA’

Page 21: Mimoso: a terra de Rondon

“Incomparável jardim da natureza, emoldurado de verdes morrarias, adornado de altaneiros buritizais

e densas cordilheiras de carambazais; circundado de volumosas baías que escoam

para o rio Ibitiraí (Cuiabá), o pantanal do Mimoso, bucólica localidade em que nasci,

é o rincão pastoril mais belo da terra de Antônio João, do Brasil inteiro, quiçá do mundo!”

Marechal Rondon