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UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Mestrado em Língua, Cultura Portuguesa e Didáctica A Enumeração na Construção da Narrativa Autobiográfica de A Criação do Mundo – Segundo Dia, de Miguel Torga

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UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

PAGE 13

UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

Mestrado em Lngua, Cultura Portuguesa e Didctica

A Enumerao na Construo da Narrativa Autobiogrfica de A Criao do Mundo Segundo Dia, de Miguel Torga

Disciplina: Lingustica e Ensino da Lngua

Professor: Joo Malaca Casteleiro

Gilberto Manuel Figueiredo da Rocha

2003/2004

NDICE Pg.

Introduo.... 2

Cap.1.Para uma (brevssima) noo de Enumerao.... 4

Cap.2.Enumerao como processo de desenvolvimento rpido da narrati-va..6

Cap.3.Enumerao e sua ligao ao espao fsico/psicolgico....9

Cap.4.Algumas particularidades da Enumerao..... 13

Bibliografia18

Anexos - Relao das Enumeraes estudadas

IntroduoNum qualquer espao e momento do mundo, um terico literrio, numa das suas apresentaes, deliciava-se na apresentao das suas consideraes sobre a obra de determinado poeta. Depois de trinta minutos completos de intensa preleco literria, o referido poeta (que estava presente), espremida e posta a nu toda a introspeco csmica da sua obra lrica, comentou, impante, o que tinha acabado de ouvir: - que no esperava que a sua poesia fosse tudo aquilo! Pelo menos, nunca lhe tinham passado, intencionalmente, metade daquelas ideias pela cabea! Limitava-se a fazer poesia. E pronto!

No corremos ns tanto risco, que Torga nos venha criticar da mesma forma, para nosso (des)gosto, at porque, como Ingarden considerava, fora da obra literria fica o prprio autor, as suas vivncias, estados psquicos e intenes. Portanto, se o autor do segundo dia de A Criao do Mundo teve conscincia, ou no, de que o seu texto enveredava por uma linguagem extremamente personalizada, baseada na enumerao, se o discurso foi, ou no, finamente estilizado, intencionalmente colando a enumerao e outros artifcios literrios como forma de ciar um impacto especial no leitor, perpetuando a marca literria Torga, isso parece-nos aspecto de menor relevncia. Que se diga que a enumerao no foi elemento de importncia para o autor, que Torga nunca se preocupou com figuras de estilo, que o seu texto no foi escrito a pensar em artifcios literrios! Afinal, a enumerao est l, em A Criao do Mundo, como parte (maior ou menor, dependendo das perspectivas de cada um!) de um universo lingustico riqussimo, e de uma expresso discursiva que faz testemunho de um autor extremamente sensvel ao espectculo do mundo!

No constituem estas poucas palavras um trabalho profundo com resultados slidos sobre a essncia da enumerao. Se consultarmos os crticos ou aqueles que debatem as questes da linguagem e das formas de expresso na literatura, ficamos perante o facto curioso de saber que certos processos tcnicos da linguagem literria, como o caso da enumerao, raramente merecem ateno de destaque, passando como que despercebidos no debate esttico e tcnico-formal. Como se a enumerao fosse uma espcie de parente pobre das figuras de retrica, a que poucos do ateno ou valor na obra de arte literria. Decidimos dar-lhe alguma ateno, arriscadamente, ainda que num olhar envergonhado, tmido e, como j referido, sem pretenses.

1. Para uma (brevssima) noo de Enumerao

As noes de enumerao variam sensivelmente de fonte para fonte, pelo que uma das primeiras preocupaes inerentes a este trabalho foi tentar agregar e recolher num mesmo espao o maior nmero de possibilidades de explicao sobre o que poder constituir a enumerao.

Longe de se tentar chegar a uma ideia profundamente satisfatria e conclusiva, - o que seria difcil, atendendo, entre outros, ao factor da dimenso deste trabalho procurou-se um denominador comum, um ponto de contacto entre as fontes e autores que nos serviram de ajuda nesta pequena empresa.

Uma parte das gramticas e dos dicionrios consultados encontram na enumerao uma figura de retrica, isto , um processo que actua no domnio da construo textual, contribuindo para a transformao da linguagem, no sentido de acrescentar um maior grau de embelezamento e expressividade esttica ao discurso. Essa figura, ou processo actuar, ao nvel da sintaxe e da semntica e ter um efeito de gnero acumulativo, permitindo concentrar um certo nmero de elementos dentro de uma unidade do discurso, desenvolvendo uma determinada ideia de forma a que esta ganhe expresso mais destacada, prxima e acutilante junto do receptor.

comum destacar-se a enumerao catica como aquela que permite ao emissor uma maior liberdade de expresso, permitindo criar desfiles heterogneos de ideias, provocando um maior impacto em quem recebe a mensagem.

Uma das principais dificuldades sentidas ao abordar a questo da enumerao, prende-se com o facto de esta se apresentar como uma tcnica de teor geral. A sua extenso pode variar, formar uma nica e breve ideia, ou superordenar-se sintacticamente, em frases ou partes de frase sucessivas, abarcar proposies ou perodos completos. Geral, tambm, porque na enumerao se podem inscrever outras figuras de retrica e processos estilsticos que contribuem para a sua expressividade: o

assndeto, o polissndeto, a adjectivao, a profuso do substantivo e do advrbio, a tcnica conjugada de certos tempos e formas verbais, entre outros.

Evitando uma certa rigidez que certas noes ou rtulos podem trazer, e considerando o conceito de acumulao de Lausberg, optamos por uma viso mais liberal e ampla de enumerao, tornando, provavelmente, menos rigorosa a anlise, mas tambm menos susceptvel que essa anlise tropece em obstculos formais excessivamente estanques, estreis para o debate esttico e parasitas do nosso propsito: dar enumerao, aqui, e enquanto semente frtil do campo literrio, uma posio de destaque, poupando-a ao estigma de fenmeno literrio de segunda categoria, que alguns acreditam ver nela.

2. Enumerao como processo de desenvolvimento rpido da narrativa, ou: condensao narrativa da aco autobiogrfica.

[ A Autobiografia ]: Narrativa retrospectiva em

prosa que uma pessoa real faz da sua prpria

existncia, quando coloca a tnica na

sua vida individual, em particular na histria

da sua personalidade.

Philippe Lejeune, O Pacto Autobiogrfico

Aparentemente inocente, a enumerao no o , em A Criao do Mundo segundo dia. Poderia passar despercebida numa anlise mais descuidada, ou preocupada com aspectos de outra natureza, que distrassem o esprito noutros sentidos. Mas, medida que nos identificamos como observadores atentos daquela figura de expresso lingustica dos pensamentos e das coisas, verificamos que o fantasma causado pelo receio de andarmos procura de nada ou de coisa pouco significante se dilui nas descobertas que vamos julgando fazer passo a passo. Uma dessas descobertas admitindo o carcter hiperblico no termo utilizado prender-se- com a ideia que se fica, depois de analisado o texto de Torga, que a enumerao, no segundo dia de A Criao do Mundo, permite preencher uma das necessidades imperativas do autor, necessidade essa que se consubstancia na obrigatoriedade de condensao narrativa da aco.

Ao repararmos em alguns extractos em que marca presena a enumerao, como [A],[C],[E], constatamos que o narrador condensa, a, toda uma fase vivencial. Corresponde, neste caso, viagem do eu de Lisboa at ao Brasil. Cria-se uma sucesso rpida no evoluir dos acontecimentos, recorrendo-se ao apoio da enumerao, como forma de fabricao de uma imagem geral da viagem, atravs daquilo, que na ptica do narrador, parece merecer destaque.

Destacamos, desta forma, que a enumerao se encontra ao servio do autor da obra autobiogrfica, neste caso particular, Miguel Torga, como forma de apoio discursivo, permitindo um desenvolvimento rpido da narrativa. Clara Rocha aponta para a especial complexidade do discurso autobiogrfico, na medida em que se trata de um tipo de texto em que o narrador procura fazer uma reconstituio do seu passado histrico e das suas vivncias. O estilo do texto , portanto, condicionado por um narrador presente que se refere a acontecimentos do passado, tendo que fazer uso das suas memrias, de reminiscncias e lembranas. A autobiografia no se torna, assim, completamente fiel realidade do passado, porque o seu arquivo incompleto. O narrador no pode ter memria de tudo, mas pretende abarcar toda a sua existncia, vendo-se compelido a seleccionar mentalmente os elementos e factos que considera essenciais, eliminando tudo o que irrelevante para a construo etpica do eu. A fronteira entre o que essencial e o que acessrio tem como nico juiz a arbitrariedade da psicologia do narrador, que influi sobre a memria, e que distribui a intensidade e a representatividade emotiva pelos factos vividos pelo eu da enunciao. Por outras palavras, o autor desta autobiografia deseja dizer tudo de si, mas s poder seleccionar pequenos fragmentos da sua vida os que considera mais significativos, e que a sua memria permite utilizar. Aqui surge a enumerao, na obra de Torga, exactamente permitindo incutir um uso fragmentrio e propiciador da seleco dos factos e da condensao narrativa. Na passagem seguinte temos a lio rpida do Brasil:

A avaliar pelo que via, o Brasil que me ia enriquecer como a toda a gente, era uma casa enorme suspensa numa lomba por meia dzia de esteios de madeira, celeiros e cocheira ao lado, um terreiro enorme em frente, chiqueiro e vacaria em baixo, ao p do ribeiro, laranjeiras carregadas no pomar, direita, e arvoredo cerrado a toda a volta. [L]

A enumerao parece apressar os trabalhadores do campo:

Ali, nem pensar em ter tais cerimnias! Os trabalhadores, de bornal ilharga, caminhavam quase a correr pela encosta acima davam uma cavadela, erguiam um pouco a p da enxada, deitavam no buraco quatro ou cinco gros, deixavam cair o torro, e pronto. Era s esperar. [N]

Eis como o narrador concentra, no momento da partida, cinco anos da sua vida em terra estranha:

Cor esquisita a do cafezal! Nunca reparara A andorinha toda contente com o bezerro inteiro e vivo que parira desta vez O Beija-Flor a dormir indecentemente e a tropearA Maria o chiqueiro L estava a sujeita a lavar roupa no ribeiroTelha a secar. E o estupor do cavalo cada vez mais lerdoque duas grandes surucucus no machio! O gado solta no canavial A gua do moinho arrombada Sempre o mesmo Virgolino! Goiabas inchadas na goiabeirinha do barranco. [K]

O movimento enumerativo permite a abertura do espao (fsico e psicolgico) , o alargamento dos horizontes do discurso, abarcando um maior nmero de aspectos e sugerindo a economia do texto, em consonncia com a importncia do monlogo interior e o imperativo do fluir da memria e da conscincia.

A enumerao como processo rpido de desenvolvimento da narrativa parece ocorrer trinta e cinco vezes.

Existncias:

[A]; [C]; [E]; [F]; [L]; [M]; [N]; [R]; [S]; [T]; [V]; [X]; [A]; [B]; [D]; [G]; [O]; [S]; [V]; [Y]; [A]; [C]; [J]; [K]; [L]; [O]; [R]; [S]; [Z]; [B]; [C]; [D]; [F]; [J]; [K]

3. Enumerao e sua ligao ao espao fsico/psicolgico

Para fazer uma breve reflexo da enumerao e da sua ligao construo discursiva dos espaos fsicos e psicolgicos no segundo dia de A Criao do Mundo, partimos das consideraes que Olvia e Eunice de Figueiredo partilham acerca da prpria concepo de enumerao. Consideram as autoras que, na sua generalidade, a enumerao se presta a uma espcie de dualidade referenciada., divergindo, assim, numa faceta argumentativa, mais centrada na exposio de ideias e no desenvolvimento de determinados pontos de vista, e numa outra vertente, predominantemente descritiva, empenhada na construo de perfis e no desenho de retratos. Estaro aqui dois dos plos essenciais que serviro como parte do propsito da enumerao, enquanto objecto de emprego lingustico.

De facto, com alguma curiosidade se observa que, no texto de Torga, as enumeraes apresentam, na sua maior parte, teor descritivo - no total de quarenta e uma - e quase integralmente estas so enumeraes em que o espao fsico tambm est presente. A enumerao como veculo enunciativo do espao fsico parece ser um elemento recorrente no esquema discursivo do narrador, que a utiliza no s como instrumento para retratar ambientes naturais ou espaos geogrficos, mas tambm para materializar de forma intensa e expressiva os traos fsicos de algumas personagens. As enumeraes onde o espao fsico marca lugar ascendem s trinta e quatro, destacando-se as imagens da viagem do eu por mar at ao Brasil, e o retrato geogrfico e telrico de um Brasil pujante, intenso e fecundo:

Ali era Copacabana, acol Botafogo, alm Nicteri, l adiante a igreja da candelria, aquela a avenida do Mangue, e tnhamos chegado estao da Leopoldina Railway. [E]

Havia ainda quilmetros e quilmetros de cafezais, encostas plantadas de cana de acar, vrzeas cobertas de arrozais, extenses enormes de mata virgem,montes e montes cobertos de capim, onde pastavam grandes manadas de gado, o engenho, a usina, o alambique, um rio do tamanho do Corgo [L]

Repare-se no que diz Sara Reis: Para Torga a natureza Brasileira era, acima de tudo, descaradamente estranha, desmedida, fantstica e multicolorida, fazendo sempre questo de excitar os seus sentidos em simultneo.

De facto, a enumerao parece-nos importante no segundo dia de A Criao do Mundo tambm porque o narrador parece usar-se nela recorrentemente, para sugerir uma aventura num espao gigantesco que lhe causa perplexidade. No contacto com a realidade do territrio Brasileiro, o eu parece no ter mais lugar dentro de si para receber aquilo de novo que vai percepcionando. Trata-se de uma espcie de expresso enumerativa dos sentidos, atravs da deambulao no espao fsico. Podemos reparar na mistura de notaes sensoriais nos mbitos visual, auditivo, olfactivo e gustativo que certos extractos sugerem, indiciando, como nos seguintes, as impresses originais provocadas no eu:

A seguir meu tio, que me mostrava a fazenda, ia vendo, ouvindo e fixando os nomes. Inhame, mandioca, manga, abacaxi, jacarand, tucano, araponga Alguns, suspensos das rvores, pareciam lampies pendurados. Os pssaros cantavam doutra maneira, os frutos, tinham outro gosto, e, onde menos se esperava, havia cobras disfaradas, enormes, bonitas, sempre de cabea no ar [L]

Os macacos baloiavam-se nos cips, as preguias dormitavam nas embubas, um abacaxi maduro enchia o ar de perfumeE aquele pedao de Minas parecia um recanto do paraso. [V]

O retrato fsico das personagens que convivem com o eu tambm assume, como se disse, o seu destaque na enumerao. Atentemos em dois exemplos do texto:

e minha tia, baixa, gorda, de culos, verrugas na cara e dentes postios, estendeu-me a mo curta e suada para beijar. [J]

Deu-me ento vontade de reparar nela [Dina]. Insignificante, na verdade. Os olhos, grandes, negros, lmpidos e tristes, que tinham certo interesse. O restotesta larga e alta demais, e seios excessivamente volumosos, desproporcionados para o corpo, pequeno e mirrado. [ I]

A enumerao apoia-se na adjectivao e dupla adjectivao e na sua articulao com o substantivo, na construo assindtica, no uso adverbial, at porque, como j oportunamente se verificou, s por si a enumerao dificilmente constitui uma forma vlida na construo de um discurso intensamente expressivo.

A utilizao da enumerao, nasce como algo de muito natural, atendendo ao tipo de texto que o segundo dia de A Criao do Mundo , de Torga, constitui. Clara Rocha aponta a autobiografia como uma obra introspectiva, que pretende tambm produzir uma imagem do real, ainda que no rigorosamente cientfica ou histrica, espelhando a semelhana da verdade. Da a procura de um estilo enumerativo por parte de Torga, que permita o fluir destas duas vertentes: introspeco/mundo real.

Para alm do espao fsico tambm o espao psicolgico que a autobiografia privilegia. No texto de Torga d-se a interiorizao do mundo exterior atravs do eu do enunciado, construindo-se uma personagem principal redonda.

A enumerao serve tambm esta necessidade textual, associando espao fsico e espao psicolgico vinte e quatro vezes:

E comecei a chorar, de angstia e de medo. Angstia de me ver sozinho no mundo, e medo daquele Brasil assim nocturno, abafadio, irreal, com pios medonhos, sem qualquer luz a acenas ao longe. [H]

Os velhos cafezais, capinados, pareciam outros; os novos, j plantados por ns, dava gosto v-los; os pastos, limpos estavam cobertos de gado; nos canaviais mal se rompia; as roas verdejavam, semeadas de milho; os porcos engordavam no chiqueiro. E eu sequioso de ternura, modo de trabalho, sem uma palavra de aplauso. [D]Arriscaramos a ir mais longe: que enumerao processo de destaque no texto de Torga, uma vez que, no s serve de base para a descrio, para o desfilar do mundo fsico, para a associao entre o fsico e o psicolgico, mas tambm permite a superao do espao psicolgico face ao espao fsico, ultrapassando as fronteiras deste e autorizando que o discurso do narrador cumpra com o propsito que est na origem do texto: abarcar a totalidade da existncia do eu, analisar a relao do eu com o mundo, mostrar-se interiormente atravs do retrato da sua vida passada. A enumerao , assim, uma superfcie da elocutio, que apoia a construo de uma espcie de catarse lrica. A enumerao apoia a explorao do espao psicolgico, detectvel sistematicamente em enumeraes que referem sentimentos e estados emotivos do heri, como o medo, angstia, desiluso, alegria, esperana

Tinha fome de ser como aquele rio, que de novo corria ao lado, livre, forte e caudaloso [L]

Voltei-me na sela do Beija-Flor para v-los pela ltima vez. A eles e ao terreiro da minha infelicidade. Ali ficavam o moinho, o chiqueiro, os currais, o paiol, todas as estaes da Via Sacra. [D]

Na enumerao, o espao psicolgico sobrepe-se, assim, e por vrias vezes, ao espao fsico emancipando-se e ganhando autonomia.

Podemos encontrar o domnio do espao psicolgico em dezasseis excertos, nos quais a enumerao tambm marca presena.

Ainda referindo a profuso dos espaos fsico e psicolgico no discurso enumerativo de Torga, poder fazer-se uma observao ao mesmo tempo interessante e ousada sobre o segundo dia da criao: ao recolher o referido conjunto de enumeraes que remetem para a territorialidade brasileira, construmos uma espcie de discurso ao jeito colonial:

Era um tatu que minha vista fez um buraco com as patas, e se enterrou no seio da terra num abrir e fechar de olhos; eram pacas bonitas e rpidas a atravessar as veredas como relmpagos; eram tocanos de bicos assombrosos; eram formigueiros gigantescos, que pareciam talefes . Era uma terra nova nuns olhos novos. [V]

Encontramos no eu um deslumbramento, uma surpresa provocada pela fauna e pela flora, pela topografia brasileira, que faz lembrar o discurso dos cronistas portugueses dos Descobrimentos. H quem veja na chegada do eu ao Brasil, neste segundo dia da criao, a prpria chegada dos portugueses.

Eram ilhas, e morros, e casas, e barcos, e gente a acenar, e uma grande aflio dentro de mim. [C]

Enumerao e espao fsico/ psicolgico:

Existncias:

[A]; [B]; [C]; [E]; [F]; [G]; [H]; [J]; [L]; [P]; [S]; [U]; [V]; [X]; [Z]; [B]; [C]; [D]; [E]; [H]; [I]; [J]; [L]; [M]; [N]; [Q]; [R]; [T]; [V]; [Y]; [Z]; [A]; [B]; [C]; [D]; [E]; [F]; [I]; [J]; [K]; [L]; [P]; [R]; [S]; [T]; [U]; [V]; [Z]; [A]; [D]; [E]; [F]; [G]; [H]; [I]; [J]

4. Algumas particularidades da Enumerao

Lausberg dedica-se, de forma profunda, a uma inventariao rigorosa e detalhada das caractersticas da enumerao. Refere que os elementos acumulados numa enumerao podem organizar-se atravs de uma relao sintctica de coordenao. Nessa coordenao, as diversas partes que constituem a enumerao agrupam-se sindtica ou assindeticamente. Foi o que nos pareceu ter encontrado, em parte, no segundo dia de A Criao do Mundo. Na verdade, Torga privilegia uma enumerao de construo coordenativa assindtica usada setenta vezes em contraste com a coordenao sindtica doze vezes.

Construo assindtica:

E fiquei sempre a v-lo como dessa vez, obeso, congestionado, bochechudo, a soprar um bocal, com espuma nos cantos da boca. [J];

Ora o Cristvo curava doenas. Acendia e apagava paixes, provocava desmanchos, arredava trovoadas, aumentava ou diminua as colheitas, embruxava e desembruxava, fazia chover. [K]

Em alguns casos, A Criao do Mundo, no seu segundo dia, aponta para uma construo enumerativa mista, em que a construo assindtica predomina, dando lugar, no entanto, a que os dois ltimos elementos da enumerao se relacionem atravs de uma conjuno coordenativa. Esta particularidade da enumerao tambm descrita por Lausberg:

Vinham do Rio batatas, bacalhau, azeite, azeitonas, castanhas e nozes. [V];

Presenciou, calado, os gestos desvairados, ouviu os insultos, viu as lgrimas desesperadas que eu chorava, e afastou-se. [X]

A enumerao surge frequentemente em forma de trs membros (trimembre), estruturada sindtica ou assindeticamente, tornando-se habitual na construo frsica de Torga. A enumerao trimembre parece ganhar uma espcie de valor simblico (quase ao jeito do conto popular) sugerindo o estado completo de um acontecimento, ou a concretizao de um percurso linear no espao ou no tempo, com princpio, meio e fim:

Depois o vento amainou, o mar ficou outra vez calmo, e a viagem prosseguiu sossegada. [B];

Ajoelhava-me na esteira que servia de tapete, colocava os apetrechos de escrita sobre a cama, a um palmo dela, e ficava-me angustiado espera do milagre. [C]

Podemos reparar na enumerao trimembre, no segundo dia da Criao, por trinta vezes.

Uma outra construo frequente na enumerao, aquela a que Lausberg chama de posposio ou anteposio de um conceito englobante .

De facto, este termo vai ao encontro daquilo a que alguns textos denominam como enumerao recolectiva, e que consiste na utilizao de uma palavra ou conjunto de palavras que sintetiza(m) ou revela(m) o trao comum que liga todos os termos da enumerao. Trata-se de um elemento englobante que vem frisar uma ligao semntica entre elementos de uma enumerao, elementos esses que, aparentemente, parecem no ter ligao. Para Lausberg, este conceito englobante pode criar uma tenso crescente, pelo relevo e destaque dado a esse elemento sintetizador, vincando uma ideia e aumentando a capacidade expressiva da enumerao. Torga utiliza esta enumerao de tipo recolectivo vinte e seis vezes:

Passmos a olaria, o retiro. O cafezal do stio avelar. Tudo aquilo se me afigurava agora irreal. [E];

Ora o Cristvo curava doenas. Acendia e apagava paixesE, quando minha tia lhe descobriu tantas virtudes, no hesitou. [K];

Insultava minha me, estigmatizava a nossa pobreza, insiniava que eu era o instrumento dos propsitos sinistros de meu pai. [R]

O elemento sintetizador surge posposto como constatmos anteriormente, mas pode surgir tambm anteposto, como nos dado a conhecer por Lausberg, e estando tambm presente, desta forma, no segundo dia da criao por vinte e trs vezes:

[O Jorge] fazia uma vida de homem. Ia s mulheres, apostava no bicho, fumava, tinha espingardas e pistolas. Jogava futebol [Y];

Insignificante [Dina]Os olhos grandes, negros, lmpidos e tristesseios excessivamente volumosos, desproporcionados para o corpo. [I]

Numa enumerao, o destaque dado ao ltimo ou ao primeiro elemento pode acontecer independentemente de se considerar ou no a presena de um conceito sintetizador. Segundo Lausberg, a sobrevalorizao de um termo dentro de uma enumerao pode construir-se pela simples intensidade semntica do contedo da palavra ou pela extenso acstica desta, alongada em grupos de palavras. Em Torga, isso acontece, sobretudo, com o ltimo termo da enumerao.

No exemplo seguinte, temos a importncia que a aplicao de desaparecer ganha, em confronto com o contedo semntico das outras formas verbais, criando uma sensao de movimento rpido, brusco e definitivo:

O comboio rpido apitou ao longe, aproximou-se amansou, parou alguns momentos, roncou outra vez, e desapareceu para os lados de Aracaju. [H]

A extenso do corpus acstico do ltimo elemento est presente nas enumeraes do texto torguiano, embora em nmero menor de vezes:

o Cristvo pedia perdo, jurava, minha tia intervinha, meu tio perdoava, as autoridades fechavam os olhos, enterrava-se quem morrera, e da a pouco tempo havia baile outra vez. [O];

batatas, bacalhau, azeite, castanhas e nozes recordaes dum Portugal que meu tio nunca conseguiu esquecer. [V]

Neste ltimo exemplo, extenso do corpus acstico da palavra e conceito englobante associam-se, dando destaque ao ltimo termo da enumerao.Existncias:

Construo assindtica/ mista:

[A]; [B]; [D]; [E];[H]; [I]; [J]; [L]; [M]; [N]; [O]; [P]; [Q]; [R]; [S]; [T]; [V]; [X]; [Y]; [Z]; [A]; [B]; [C]; [D]; [E]; [F]; [G]; [I]; [J]; [K]; [M]; [O]; [P]; [Q]; [R]; [S]; [T]; [U]; [V]; [X]; [Y]; [Z]; [A]; [B]; [C]; [D]; [E]; [F]; [G]; [H]; [I]; [J]; [L]; [N]; [O]; [P]; [Q]; [R]; [S]; [U]; [X]; [Z]; [A]; [C]; [D]; [E]; [F]; [G]; [H]; [I]; [K]; [L]

Construo trimembre:

[B]; [D]; [G]; [I]; [K]; [Y]; [Z]; [C]; [D]; [F]; [J]; [M]; [Q]; [S]; [T]; [X]; [Y]; [Z]; [B]; [E]; [O]; [Q]; [R]; [U]; [V]; [X]; [Y]; [J]; [K]; [L]

Posposio elemento englobante:

[B]; [C]; [H]; [M]; [O]; [P]; [T]; [U]; [F]; [K]; [L]; [R]; [V]; [C]; [F]; [L]; [P]; [S]; [U]; [D]; [E]; [F]; [G]; [I]; [L]

Intensidade semntica da palavra:

[B]; [C]; [D]; [H]; [O]; [P]; [S]; [T]; [V]; [B]; [C]; [F]; [H]; [I]; [K]; [O]; [P]; [R]; [T]; [V]; [Z]; [A]; [B]; [C]; [D]; [F]; [H]; [I]; [P]; [U]; [V]; [B]; [C]; [D]; [I]; [K]

BIBLIOGRAFIA:

- AAVV., Boletim Cultural n.10, srie VI, Lisboa, F.C.G. 1988.

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- BRUMMEL, Maria Fernanda, A deciso de partir como rejeio de um destino tradicional, in Aqui, Neste Lugar e Nesta Hora Actas do Primeiro Congresso Internacional Sobre Miguel Torga, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 1994, pp. 79-87.

- COELHO, Jacinto do Prado (dir.), Dicionrio de Literatura Portuguesa Vol. I, Porto, Mrio Figueirinhas Editora, 1994, pg. 290.

- CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley, Nova Gramtica do Portugus Contemporneo, Lisboa, Joo S da Costa Edies, 10. ed., 1994.

- FIGUEIREDO, Olvia Maria e Eunice Barbieri de Figueiredo, Dicionrio Prtico para o Estudo do Portugus Da Lngua aos Discursos, Porto, ASA, 2003, pp. 200, 201.

- GONALVES, Ferno de Magalhes, Ser e Ler Miguel Torga, Vega, 2. ed., 1995, pp. 119-121.

- INGARDEN, Roman, A Obra de Arte Literria, Lisboa, F.C.G., 2. ed., 1979, pp. 37-42.

- LAUSBERG, Heinrich, Elementos de Retrica Literria, Lisboa, F.C.G., 4. ed., 1993, pgs. 165-223.

- MOREIRO, Jos Maria Eu, Miguel Torga, Algs, Edies Difel, 2001, pp. 51-59.

- ORNELAS, Jos, Pacto referencial e ficcionalidade em A Criao do Mundo, in Francisco Cota Fagundes, Sou um Homem de Granito Miguel Torga e seu Compromisso; Lisboa, Salamandra, 1997, pg. 154- PAZ, Olegrio e Antnio Moniz, Dicionrio Breve de Termos Literrios. Lisboa, Presena, 1997, pg. 75.

- PINTO, J.M. de Castro, Gramtica do Portugus Moderno, Lisboa, Pltano, 5. ed., 1999, pg. 225.

- ROCHA, Clara Crabb, O Espao Autobiogrfico em Miguel Torga, Coimbra, Almedina, 1977, pp. 41-221.- SILVA, Sara Reis da, A Identidade Ibrica em Miguel Torga, Cascais, Edies Principia, 1 ed., 1992, pgs. 55-106.- TORGA, Miguel, A Criao do Mundo segundo dia, Coimbra, Almedina, 4. ed., 1970.

ANEXOSRELAO DAS ENUMERAES ESTUDADAS:

[A] Mas a vida era a vida, e tudo mudou. Passada uma semana, j ningum gemia pelos cantos. O som dum harmnio alegrava o convs; apareceram estrelas novas a brilhar no cu e tubares a acompanhar o navio; a pantomina dos peixes voadores divertia a gente. pg. 113

[B] No faltou quem se borrasse de medo! Depois o vento amainou, o mar ficou outra vez calmo, e a viagem prosseguiu sossegada. pg. 114

[C] Ia olhando, sem ver coisa com coisa. Eram ilhas, e morros, e casas, e barcos, e gente a acenar, e uma grande aflio dentro de mim. pg. 114

[D] Apenas nos largou, fiquei logo esclarecido: vinha pior que um selvagem. No sabia falar, no sabia andar, no sabia nada. pg. 115

[E] Ali era Copacabana, acol Botafogo, alm Nicteri, l adiante a igreja da Candelria, aquela a avenida do Mangue, e tnhamos chegado estao da Leopoldina Railway. Pg. 116

[F] Os nomes das terras que a seguir foram aparecendo, ia-os lendo da janela do comboio. Petrpolis, Entre Rios recreio, Cisneiros pg. 116

[G] Quanto paisagem, acabara por desistir de a fixar. As serras, os rios e as florestas eram de tal maneira, que no cabiam dentro dos olhos. pg. 117

[H] E comecei a chorar, de angstia e de medo. Angstia de me ver szinho no mundo; e medo daquele Brasil assim nocturno, abafadio, irreal, com pios medonhos, sem qualquer luz a acenar ao longe. pg. 117

[I] Ali tinha o resto da famlia (seria realmente famlia?). Minha tia, dois filhos do primeiro matrimnio, a D. Candinha e o senhor Adalberto, e uma neta, mulher deste, a D. Nn. pg. 118

[J] - Deus o abenoe - e minha tia, baixa, gorda, de culos, verrugas na cara e dentes postios, estendeu a mo curta e suada para beijar. pg. 118

[K] Como se nada tivesse visto, fui abrir a mala, e entreguei os presentes que trazia. O vinho, os salpices e as toalhas de linho (menos a da ti Maria Ambrsia), que resolvera dar tambm. pg. 119

[L] A avaliar pelo que via, o Brasil, o Brasil que me ia enriquecer como a toda a gente, era uma casa enorme suspensa numa lomba por meia dzia d esteios de madeira, celeiros e cocheira ao lado, um terreiro enorme em frente, moinho, chiqueiro e vacaria em baixo ao p do ribeiro, laranjeiras carregadas no pomar, direita, e arvoredo cerrado a toda a volta.

Mas a viso alargou-se, pouco depois. Havia ainda quilmetros de cafezais, encostas plantadas de cana de acar, vrzeas cobertas de arrozais, extenses enormes de mata virgem (porque o que vira eram simples capoeires), montes cobertos de capim, onde pastavam grandes manadas de gado, o engenho, a usina, o alambique, um rio do tamanho do Corgo e pretos e pretas a torto e a direito.

A seguir meu tio, que me mostrava a fazenda, ia vendo, ouvindo e fixando nomes. Inhame, mandioca, quiabo, manga, abacaxi, jacarand, tucano, araponga

pg. 121

[M] Balizavam por quatro esteios de brana, alguns metros de cho batido, erguiam, apoiada neles, uma armao de madeira mais leve, quadriculavam a gaiola de pau a pique e ripas, chapavam barro naquilo, cobriam de sap, e ficava a coisa arrumada. pg. 122

[N] Espalhava-se o estrume no lameiro depois de o feno cortado, virava-se a terra, meu Pai repartia irmmente o milho e os feijes pela lavrada, gradeava-se e, a seguir, as mulheres e as crianas, de paus aguados na mo, enterravam uma a uma cada semente que ficava de fora.

Ali nem pensar em tais cerimnias! Os trabalhadores, de bornal ilharga, caminhavam quase a correr pela encosta acima, carbonizada e ngreme, saltando grossos troncos emaranhados ainda a fumegar, da derrubada e queimada da vspera, davam uma cavadela, erguiam um pouco a p da enxada, deitavam no buraco quatro ou cinco gros, deixavam cair o torro, e pronto. Era s esperar. pg. 123

[O] Minha tia pudera j conversar com o pai, com a me, com o primeiro marido, com o filho Juca (um filho Juca famoso, que morrera na flor da idade e bordava almofades), e com todos os conhecidos mortos de S. Joo do Aventureiro, onde morara antes de enviuvar. pg. 123

[P] Mas, pelo dia adiante, voltava a lenga-lenga infernal: era um cabra chamado Geraldino que se transformava em lobisomem; era a Paulina, mula de padre, que comia crianas; era o tal negro da erisipela a saber mais do que todos os mdicos juntos; e era, sobretudo, a Ins a receber dentro dela o mundo inteiro falecido. pg. 127

[Q] Seu Adalberto firmou-se na sela, esticou a rdea, fincou as esporas, e tentou ladear a apario. Mas a montada, (), encostava as ancas cerca, rasgava-se no arame farpado, e no avanava. pg. 128

[R] No dia seguinte matemos mos obra. Meu tio nascera para organizador. (), derrubou, roou, semeou, plantou, capinou, construiu, e da a pouco aquela grande nau, j de tripulao completa, navegava a todo o pano. pg. 131

[S] De manh, carregar o moinho, mungir as vacas que davam leite para casa, tratar dos porcos, is buscar os cavalos da cocheira ao pasto, limp-los e arre-los, rachar lenha, varrer o ptio a atender a freguesia, que vinha comprar fumo, cachaa, carne seca, feijo, ou trocar gro por fub. De tarde, carregar novamente o moinho e tratar outra vez dos porcos, prender as crias das vacas, curar bicheiras e procurar pelos matagais as porcas e as reses paridas. pg. 132

[T] De madrugada ergui-me, fui buscar as vacas de leite ao pasto, ordenhei-as, tratei dos porcos, carreguei o moinho, arreei a montada de meu tio, e atirei-me ao monte procura do novilho. () Cheguei a casa roto, ensanguentado, coberto de carrapatos, miservel. pg. 135

[U] Quando regressei, era a prpria imagem da humilhao. Meu tio, de cara fechada. O jantar parecia um velrio. Minha tia impante.,(). pg. 135

[V] Curioso de tudo e sensvel qualidade de cada coisa, for a dessas horas infelizes considerava aquele Brasil um deslumbramento. Era um tatu que minha vista fez um buraco com as patas, e se enterrou no seio da terra num abrir e fechar de olhos; eram pacas bonitas e rpidas a atravessar as veredas como relmpagos; eram tocanos de bicos assombrosos; eram formigueiros gigantescos, que pareciam talefes. Era uma terra nova nuns olhos novos. Quando a cancela do terreiro me batia atrs das costas, ento que a vida comeava. Os macacos baloiavam-se nos cips, as preguias dormitavam nas embubas, um abacaxi maduro enchia o ar de perfume E aquele pedao de Minas parecia um recanto do paraso. pg. 136

[X] O gado deixava as sombras e descia dos morros a galope. Zebus altaneiros, de corcova a abanar; pesadas vacas holandesas, de amojo a roar o capim; tenras novilhas de cornos a despontar; graves bois de cabealho; e. rei daquele mundo de chifres, o Pavo, cobridor oficial, de que meu tio todo se orgulhava. pg. 137

[Y] Mas a grandeza de tudo amesquinhava-se nas lunetas de minha tia.(). Transformava a diarreia dum leito muna epidemia, o moinho parado durante alguns minutos, muna runa, um gro vertido, na perda de uma colheita. pg. 138

[Z] E s longe do terreiro, a laar um cavalo indomvel, a ver lutar os toiros, ou a colaborar numa ferra tinha a sensao de respirar limpa e livremente a vida. A vida plena, franca, escancarada, que at o Lorde, o porco reprodutor, menos espectacular do que o Pavo, fruia diriamente. pg. 139

[A] Chegava, ia entregar o correio a meu tio, desarreava, desaguava e raspava a gua, soltava-a no pasto e metia mos escriturao. pg. 141

[B] Acendia ento uma vela, e corria a casa, a verificar se as portas e janelas estavam bem fechadas. Voltava ao escritrio, pegava num bloco de papel, num envelope, na pasta, no tinteiro, na caneta, e, assim escusado, com o sangue a latejar nas fontes, atravessava a sala de visitas e de jantar, entrava na cozinha,. E ia macerar o resto da inquietao ertica no quarto da Etelvina. pg. 142

[C] A mulata estendia-se em cima do catre, cruzava as mos atrs da cabea, e assim se transformava a meus olhos em dois seios e duas coxas. Ajoelhava-me na esteira que servia de tapete, colocava os apetrechos de escriba sobre a cama, a um palmo dela, e ficava-me angustiado espera do milagre. pg. 143

[D] A fazenda ia de vento em popa. Os velhos cafezais, capinados, pareciam outros; os novos, j plantados por ns, dava gosto v-los; os pastos, limpos, estavam cobertos de gado; nos canaviais mal se rompia; as roas verdejavam, semeadas de milho; os porcos engordavam no chiqueiro. E eu sequioso de ternura, sem a receber, comido de desejos, sem os satisfazer, modo de trabalho, sem uma palavra de aplauso.

pg. 146

[E] Apenas lhe levantei as saias e me encostei a ela, verifiquei que s isso no chegava. Que era preciso atir-la ao cho, beijar-lhe a boca murcha e desdentada, mord-la, apert-la a mim com toda a fora, e passar da mornido spera das coxas quele calor doce e macio que sentira nas mos dentro do corpo da Andorinha pg. 148

[F] Pilava mal o arroz, a lenha que trazia estava verde, os quiabos que ia apanhar no se podiam comer. Minha tia, encantada da vida. Realizara, finalmente, o seu intento: isolar-me no terreiro. pg. 149

[G] Primeiro, que tivesse juzo, fosse sujeito, fizesse a vontade a meu tio e a minha tia; a seguir, que recebera a prestao enviada do dinheiro da passagem; por fim, o relato sumrio dos grandes acontecimentos da terra: a morte de fulano, o casamento de sicrana, o mldio que atacara as vinhas, as dcimas aumentadas. pg. 149

[H] No meio do mundo em trevas, aquela fogueira. Meu tio, desgrenhado, a berrar aos cento e tantos homens que abriam o aceiro, numa tentativa desesperada de cortar o caminho s labaredas. Estoiros medonhos dos bambus aquecidos. Gritos angustiosos de bandos de macacos, cercados de lume e fumo no alto das sapucaias. As foices, os faces, as enxadas e os machados como durindanas a cortar mato. E quando a primeira lngua de fogo, a correr por um cip como um rastilho, saltou a picada, o ltimo recurso: uma missa Senhora de Amparo. pg. 150

[I] Depois, o milagre, a madrugada a romper fresca e lavada, e o resto do brasido a fumegar no meio das perobas, dos ips, das garapas, das branas, de todas as rvores de boa qualidade,(). - pg. 150

[J] E fiquei sempre a v-lo como dessa vez, obeso, congestionado, bochechudo, a soprar a um bocal, com espuma nos cantos da boca. pg. 153

[K] Ora o Cristovo curava doenas, acendia paixes, provocava desmanchos, arredava trovoadas, aumentava ou diminua as colheitas, embruxava e desembruxava, fazia chover. E, quando minha tia lhe descobriu tantas virtudes no hesitou. pg. 154

[L] Ao luar, sob um tecto de folhas de bananeira, os pares iam chorando o mancado, colados uns aos outros. A Etelvina , nos braos do amante, feliz, quase que nem tinha espao para ondular as ancas carnudas. As negras velhas, sentadas volta, fumavam cachimbos de barro. Caf e cachaa descrio. pg. 154

[M] De vez em quando, ouviam-se gemidos, gritos e tiros vindos da escurido. Casais furtivos e rivais desafiados amavam-se, desfloravam-se e matavam-se nas sombras, bbados de aguardente, de versos e de cio. pg. 155

[N] O harmnio parava de tocar, a dana cessava tambm e, no meio do silncio sepulcral que o rodeava, o velho, de olhos vidrados, fitava o cu e deixava sair da boca desdentada um lamento misterioso (). pg. 155[O] No dia seguinte, meu tio ralhava e aparecia a polcia. Mas o Cristovo pedia perdo, jurava, minha tia intervinha, meu tio perdoava, as autoridades fechavam os olhos, enterrava-se quem morrera, e da a pouco tempo havia baile outra vez. pg. 156

[P] Devia encher-me de coragem e ter uma conversa sria com meu tio. Contar-lhe abertamente o que se passava. P-lo ao corrente de todas as tratantices de minha tia. Da proteco escandalosa que dava ao feiticeiro, a troco de mandingas vrias, da maneira como, de mo baixa, abastecia dos gneros que havia no armazm os parentes e aderentes, das mil arbitrariedades que cometia diriamente quando o sentia seguro, enterrado em lama frente da turma, na plantao de arroz, ou a tirar o ponto ao melao que fervia nas caldeiras de engenho. - pg. 157

[Q] Na primeira metade da luta, fazia-lhe frente de cara levantada, resoluto, disposto a defender-me at ao fim. pg. 162

[R] No se comovia. Mordia ento at se fartar. Insultava minha me, estigmatizava a nossa pobreza, insinuava que eu era o instrumento de propsitos sinistros de meu Pai. pg. 162

[S] E eu fiquei szinho a administrar a fazenda. Dormia de carabina cabeceira da cama, dava ordens ao Macrio, o feitor, mandava semear ou colher. pg. 164

[T] Os potros, os leites, os novilhos. Tinham diriamente quem zelasse por eles. Eu, no. pg. 167

[U] Depois, no fim da semana, o Bonifcio agarrava um pelas orelhas, punha-se a cavalo nele e espetava-lhe uma faca no corao. O resto era comigo. E a ia o galego chamusc-lo, abri-lo, esquartej-lo, separar as orelhas, o rabo, os lombos e, s vezes, um presunto, para minha tia, e vender o resto a retalho. pg. 168

[V] S no Natal se festejava. Vinham do Rio batatas, bacalhau, azeite, azeitonas, castanhas e nozes . recordaes dum Portugal que meu tio nunca conseguia esquecer..

pg. 169

[X] Perdeu a cabea de tal maneira, que meu tio pde chegar junto de ns sem ningum dar conta. Presenciou, calado, os gestos desvairados, ouviu os insultos, viu as lgrimas desesperadas que eu chorava, e afastou-se. pg. 171

[Y] Com a minha idade dezasseis anos fazia a vida de um homem. Ia s mulheres, apostava no bicho, fumava, tinha espingardas e pistolas, jogava futebol, e, quando o senhor Eusbio, o reitor, o prendia de castigo, refilava, virava-se a ele, e tentava arrombar a porta. pg. 173

[Z] A Rute, baixa, gorda, de olhos azuis e cabelo ruo, (). A guajajara, alta, forte. Morena, tina uma voz que bastava para a gente gostar dela. pg. 174

[A] Gostei dela como em pequeno gostara todos os anos das pras de S. Joo, que nasciam, cresciam, amadureciam e desapareciam no quintal dos Rebis sem eu as provar. pg.- 177

[B] Continuei a v-la senhora, perfumada, vestida de seda, e a ver-me moleque de terreiro, sujo, descalo, tratador de porcos. Indigno, numa palavra, de tudo quanto de si viesse pg. 177

[C] Falvamos de lies, de filmes (), fazia-lhe os pontos, emprestava-lhe os meus significados, mas nunca tive coragem de ir mais alm. pg. 178

[D] Enquanto eu assim sofria, ela erguia-se, delgada, flexvel, olhos azuis e maliciosos, avanava at ao quadro, e despachava as tolices nu tal -vontade, que parecia que estava a dizer maravilhas. pg. 179

[E] Os professores indignavam-se, barafustavam, mas nem os ouvia. Regressava carteira, risonha, calma, feliz da vida. pg. 179

[F] Se estava, trocava o passo, ficava vermelho, e o cho fugia-me debaixo dos ps. pg. 180

[G] O carreiro Anacleto, a pitar o seu cachimbo de barro, varreu o carro de bois, sobradou-o com a esteira de bambu, colocou-lhe um toldo, e tocou para Sousa Pais. pg. 186

[H] O comboio rpido apitou ao longe, aproximou-se furioso, amansou, parou alguns momentos, roncou outra vez, e desapareceu para os lados de Aracaju.

pg. 187

[I] Insignificante, na verdade. Os olhos, grandes, negros, lmpidos e tristes, que tinham certo interesseO resto Testa larga e alta demais, e seios excessivamente volumosos, desproporcionados para o corpo, pequeno e mirrado. pg. 188

[J] Sem princpio e sem fim, eram apenas nomes erradios. Cnego Freitas, Senhor Oliveira, Ins, Benedito Zandonelli. Outros, demoravam-se mais, e podiam ver-se durante algum tempo na estrutura da teia. Meu tio, minha tia, o Virgolino, a Lia, a Dina pg. 192

[K] Que duas grandes surucucus no machio! O gado solta no canavial do Pequlia () A gua do moinho arrombada! Sempre o mesmo Virgolino! Goiabas inchadas na goiabeirinha pg. 196

[L] Continuvamos a andar. Ps de mandioca, mames, abacates, bananeiras, tangerineiras, cajueiros, iam quebrando a densa tristeza do cafezal,() pg. 200

[M] Ser homem! () Porque ser homem nem era melhorar fazendas e vend-las, nem arranjar amantes e met-las em casa, nem alvejar a tiro os negros descontentes pg. 201

[N] Mas , possivelmente, ele prprio saberia isso, e falasse apenas em nome das virtudes reais que tambm possua: a vontade inquebrantvel, a honradez que todos reconheciam, a simplicidade natural e o dom de permanecer o mesmo, quer as visitas fossem bonitas como a Zzti ou feias como a Dina. pg. 201

[O] Tudo morria: juritis, porcos bravos, macacos, inhambus, trocais, jas, pacas, cotias o que lhe casse em pontaria. Comia, dormia e caava. pg. 203

[P] Falava da liberdade de pensamento, do respeito pela dignidade humana, acusava os tiranos de assassinos da conscincia, acabava por concluir que o Brasil era um feudo de meia dzia de capangueiros. pg. 205

[Q] Mandou vir duas rodadas, e, no fim, pagou, recebeu o troco e ofereceu cigarros a todos. Bebemos, reinmos, e samos. pg. 207[R] O que nunca falava no cu nem no inferno, que raras vezes nomeava Deus, mas que irradiava bondade, simpatia e confiana. pg. 208

[S] E ali estava como qualquer dos exemplares catalogados, muito magrinho, muito branco, vestido de preto, sem ar de cadver. pg. 209

[T] () a esposa apareceu janela. Era franzina, muito branca de pele, e tinha os cabelos negros e ondulados. pg. 209[U] A msica preferida comeava por algumas notas soltas, bruscas, tensas.

pg. 210

[V] Como um sol que surgisse do nevoeiro, qualquer coisa de grcil, de transparente e transfigurador caa de um alto e puro cu de melodia,(). pg. 210

[X] Agora, sentava-se sombra do muro, mesmo ao p do ribeiro que atravessava a cerca, mastigava szinho o casqueiro regulamentar, e pensava na mulher do doutor.

pg. 212

[Y] Mostrava uma lista completa. Pearl White, sublime. Norma Talmadge, fatal. Mary Pickford, divina pg. 213

[Z] Pouco ou nada me prendia mais quela pequena cidade cheia de sol, com os seus cedros velhos no jardim pblico, o seu Ginsio de dois andares, e o seu engenho de caf na rua Afonso Pena. pg. 214

[A] E Ribeiro ia ficando nas lgrimas da Rute, no estilo proftico do reitor, no adeus eterno do sr. Cludio, e na coluna melanclica da gazeta. pg. 215

[B] Chegava, entregava a oferta no bazar, e ficava espera. Iam-se juntando curiosos. At que o leilo principiava, e um halo de expectativa anunciava a minha hora de glria. Lanava de dez em dez, conforme as ordens. E regressava fazenda com a ddiva, s vezes por quinhentos mil ris. Meu tio recebia o troco do conto, e ria-se satisfeito. No ano seguinte repetia-se a cena. pg. 218

[C] Embarcava logo a seguir ao casamento, depois de engravidar a mulher, amigara-se chegada com uma preta, nunca mais dera notcias, e, sempre bbado, ali vivia rodeado de caterva de mulatos que ia gerando. Agora que se lembrava da outra famlia pg. 219

[D] Voltei-me na sela do Beija-Flor para v-los pela ltima vez. A eles e ao terreiro da minha infelicidade. Ali ficavam o moinho, o chiqueiro, os currais, o paiol, todas as estaes da Via Sacra. pg. 220

[E] Passmos a olaria, o retiro, o cafezal do stio Avelar. Tudo aquilo, que for a to concreto, se me afigurava agora irreal pg. 220

[F] O rio corria apressado, torrencial, exibindo despojos vrios. Eram troncos, ramos, tbuas e at restos de choupanas, que arrancara ou destrura no mpeto da caminhada. pg. 222

[G] O comboio partiu da a instantes. Humedeceram-se-lhe os olhos, e comeou a acenar um leno. At que foram saindo dos meus olhos os seus olhos marejados, o seu leno branco a acenar, o vulto que agitava o leno branco, a estao onde estava o vulto, a vila onde estava a estao, e, por fim, o prprio vale do Paraba onde se abrigava a terra dela. pg. 222

[H] A serra, que ao longe era uma promessa indecisa, comeou a perder aos poucos o aspecto de nuvem parda. De momento a momento tornava-se mais alta. Mais fragosa, mais real e mais prxima. pg. 223

[I] E pergunta que eu lhe fazia mentalmente se no compreendera ento que de todo me for a impossvel resolver o problema das suas pernas magras, dos seios volumosos em excesso, do corpo pequeno e mirrado, da cara ossuda e sem beleza()

pg. 223

[J] Negava-se a perceber que no mundo de bondade, de alegria e de paz que me oferecia, faltava uma fora igual que me obrigara a levantar-lhe a perna debaixo da mesa, na Morro Velho. pg. 223

[H] As horas iam passando, e com elas a Norma, a Iracema, a Diana, uma vaga saudade de Ribeiro, e at os olhos azuis da Lia. Uma paragem sem fim numa estao. A seguir outra serra nua, aguada e negra. pg. 224

[L] Tinha fome de ser como aquele rio, que de novo corria ao lado, livre, forte e caudaloso, levando apenas tona outros trofus() pg. 224

INGARDEN, Roman, A Obra de Arte Literria, Lisboa, F.C.G., 2 ed., 1979, pg. 39.

Na derradeira parte do trabalho ser possvel encontrar, em anexo, uma relao das enumeraes estudadas a propsito de A Criao do Mundo segundo dia. Por uma questo prtica e de economia de espao, o texto poder remeter para o anexo, atravs de um cdigo atribudo a cada enumerao, que permitir a sua identificao. Em algumas situaes, foram transcritos alguns excertos do texto de Torga, apenas a ttulo exemplificativo e como forma de ilustrar algumas das ideias expostas.

A edio utilizada do texto Torguiano foi a seguinte: TORGA, Miguel, A Criao do Mundo - segundo dia, Coimbra, Almedina, 4 ed., 1970.

No final de cada captulo, as enumeraes que importam ao assunto a em causa so identificadas devidamente, remetendo-se para o anexo.

As consideraes aqui feitas tiveram por base:

LAUSBERG, Henrich, Elementos de Retrica Literria, Lisboa, F.C.G., 4 ed., 1993, pp. 165-223.

BERNARDES, Jos Augusto Cardoso (dir.), Biblos Enciclopdia Verbo das Literaturas de Lngua Portuguesa Vol. II, Lisboa, Sociedade Cientfica Universidade Catlica Portuguesa, 1997, pp. 296-297.

PINTO, J.M., Castro, et al., Gramtica do Portugus Moderno, Lisboa, Pltano, 5 ed., 1999, pg. 225.

FIGUEIREDO, Olvia Maria e Eunice Barbieri de Figueiredo., Dicionrio Prtico para o Estudo do Portugus Da Lngua aos Discursos, Porto, ASA, 1 ed., 2003, pgs. 200 ; 201.

COELHO, Jacinto do Prado (dir.), Dicionrio de Literatura Portuguesa Vol. I, Porto, Mrio Figueirinhas Ed., 1994, pg. 290.

LAUSBERG, op. cit.,1993, pp. 187;188.

ROCHA, Clara Crabb, O Espao Autobiogrfico em Miguel Torga, Coimbra, Almedina, 1977, pg. 46.

ORNELAS, Jos, Pacto referencial e ficcionalidade em A Criao do Mundo, in Francisco Cota Fagundes, Sou um Homem de Granito Miguel Torga e seu Compromisso; Lisboa, Salamandra, 1997, pg. 154.

FIGUEIREDO, op. cit., 2003, pg. 200.

SILVA, Sara Reis da, A Identidade Ibrica em M. Torga, Cascais, Principia, 1992, pg. 98.

ROCHA, op. cit.,1977, pg. 132.

Idem, Ibidem, pg. 188.

FAGUNDES, op. cit., 1997, pg. 156.

LAUSBERG, op. cit., 1993, pp. 187-189.

Idem, Ibidem, pg. 189.

Idem, Ibidem, pg. 190.