livro de poesia plnm 2c

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Pretexto Por que não cai a noite, de uma vez? Custa viver assim aos encontrões! Já sei de cor os passos que me cercam, o silêncio que pede pelas ruas, e o desenho de todos os portões. Por que não cai a noite, de uma vez? Irritam-me estas horas penduradas como frutos maduros que não tombam. (E dentro em mim, ninguém vem desfazer o novelo das tardes enroladas.) SELECÇÃO DE ALINE Cântico de Barro Inquieta chuva, inquieta me dispersa, esquecida a tradição e o cansado som. Dentro e fora de mim tudo é deserto como se as ervas fossem arrancadas ou se esgotasse a dor por que se chora. Na grande solidão me basta, e a contemplo para o sonho interior que me resolve! Tão fácil é esperar, que já nem sinto o que vem a dormir ou a morrer na mesma angústia que o silêncio envolve.

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Page 1: Livro de poesia  plnm 2c

Pretexto

Por que não cai a noite, de uma vez?

— Custa viver assim aos encontrões!

Já sei de cor os passos que me cercam,

o silêncio que pede pelas ruas,

e o desenho de todos os portões.

Por que não cai a noite, de uma vez?

— Irritam-me estas horas penduradas

como frutos maduros que não tombam.

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer

o novelo das tardes enroladas.)

SELECÇÃO DE ALINE

Cântico de Barro

Inquieta chuva, inquieta me dispersa,

esquecida a tradição e o cansado som.

Dentro e fora de mim tudo é deserto

como se as ervas fossem arrancadas

ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo

para o sonho interior que me resolve!

Tão fácil é esperar, que já nem sinto

o que vem a dormir ou a morrer

na mesma angústia que o silêncio envolve.

Page 2: Livro de poesia  plnm 2c

Deixa contar...

Era uma vez

O senhor Mar

Com uma onda...

Com muita onda...

E depois?

E depois…

Ondinha vai...

Ondinha vem...

Ondinha vai...

Ondinha vem...

E depois...

A menina adormeceu

Nos braços da sua SELECÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA

A girafa

deu

ao seu

marido

no dia

de Natal

um lenço

colorido

de seda natural.

Que alegria!

– disse o marido –

ponha a pata

nesta pata,

com um pescoço

tão comprido

você não podia

ter-me comprado

uma gravata.

Page 3: Livro de poesia  plnm 2c

Saudação à Primavera

Na hora certa

Disse que chegaria.

Declarou dia e hora.

Tão longe que ela mora

que diabo, até

se lhe perdoaria

que, perdendo a maré,

chegasse no outro dia.

De tudo se abrigou

na sorte ingrata

e à hora exacta

“aqui estou!”

disse da alta esfera.

Bem-vinda Primavera!

A erva secou no telhado.

Não dá pão.

As minhas costas estão em carne viva.

Encham agricultores

o celeiro!

Calquei as minhas culpas, meus pecados.

Fugi para o silêncio. E entretanto

de mim, calado, o pranto todo o dia

jorrava, e este corpo esmorecia

ossos roídos de suor e febre.

– Não sejas – me disseste –

como aqueles cavalos dominados

somente pelo freio e pela mordaça:

eles só se aproximam, se confiam.

Entendi. Este canto bem o mostra.

Prometo que só ficarei atento

os séculos que forem necessários.

Atento nas promessas

que fazem os amigos

atento na justiça

com a paz na pista dos seus passos.

Vejam só que de frutos se enche a Terra!

Porque és eterno é que criaste o dia.

Porque és eterno é que me criaste a mim. SELECÇÃO DE EMACULADA

Page 4: Livro de poesia  plnm 2c

SEIS DA MANHÃ Para começar bem o dia, antes que o dia me veja, ponho-te aqui de bandeja

a meu lado, rosto de amor, extenuado. Hoje o teu corpo,

onde quer que ele esteja, vai ter de se erguer sozinho, respirar sozinho, sair sozinho,

e tudo lhe vai parecer estranho, estranha a luz, estranho o tamanho do caminho.

SELECÇÃO DE DULCELINA

AS CHÁVENAS

As chaveninhas da avó,

repartidas em partilhas

por netas, noras e filhas,

lembram-me as chávenas da feira

com tatuagem Lembrança

gravada a ouro na pança.

Todas elas são de saldo,

nunca a salvo, todas vêm do desterro

e trazem no aro fino

um óculo cego, um destino,

um erro.

Anjos de uma asa só,

leve penugem de pó.