konder, leandro - a questão da ideologia em gramsci

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MIA > Biblioteca > Konder > Novidades A Questão da Ideologia em Gramsci Leandro Konder Fonte: Gramsci e o Brasil Transcrição: Alexandre Linares HTML: Fernando A. S. Araújo . Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons . O italiano Antonio Gramsci desenvolveu uma interpretação bastante original da filosofia de Marx . Para ele, a perspectiva do pensador alemão era a de um "historicismo absoluto". No essencial, o pensamento de Marx nos desafia sempre! a pensar historicamente. E esse desafio nos põe diante tanto de possibilidades magníficas como de dificuldades colossais. Pesa sobre nós uma tradição negativa, que se fortaleceu muito ao longo dos séculos XVII e XVIII, segundo a qual o "senso comum" é depositário de tesouros de sabedoria. Gramsci admitia que o "senso comum" possuía um caroço de "bom senso", a partir do qual poderia desenvolver o espírito crítico. Advertia, contudo, para o risco de uma superestimação do "senso comum", cujos horizontes, afinal, são inevitavelmente muito limitados. O "senso comum é, em si mesmo, "difuso e incoerente". A percepção da realidade, no âmbito desse campo visual estreito, não poderia deixar de ser segundo o teórico italiano drasticamente "empírica", restrita à compreensão imediata, superficial. Em sua origem, o termo "ideologia" compactuava, implicitamente, com uma valorização exagerada da força da percepção sensorial. Gramsci se referiu ao fato de que o primeiro conceito de ideologia foi elaborado por filósofos franceses vinculados a um "materialismo vulgar", teóricos que pretendiam decompor as idéias até chegarem aos "elementos originais" delas, quer dizer, até chegarem às "sensações", das quais, supostamente, as idéias derivavam. Tratavase, assim, de uma concepção "fisiológica" da ideologia (GRAMSCI, 1977, p. 453). Marx e Engels , os "fundadores da filosofia da práxis", submeteram essa concepção a uma crítica vigorosa. Tornaramse, filosoficamente, os representantes de um pensamento que implicava "uma clara superação" ("un netto superamento") da ideologia (GRAMSCI, 1977, p. 1491). No entanto, adotaram o termo, conferindolhe, naturalmente, um sentido

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Leandro Konder sobre Antonio Gramsci

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  • 10/04/2015 AQuestodaIdeologiaemGramsci

    https://www.marxists.org/portugues/konder/ano/mes/ideologia.htm 1/7

    MIA>Biblioteca>Konder>Novidades

    AQuestodaIdeologiaemGramsci

    LeandroKonder

    Fonte:GramscieoBrasilTranscrio:AlexandreLinaresHTML:FernandoA.S.Arajo.DireitosdeReproduo: licenciadosobumaLicenaCreativeCommons.

    O italiano Antonio Gramsci desenvolveu uma interpretao bastanteoriginaldafilosofiadeMarx.Paraele,aperspectivadopensadoralemoeraadeum"historicismoabsoluto".Noessencial,opensamentodeMarxnosdesafiasempre!apensarhistoricamente.Eessedesafionospediantetantodepossibilidadesmagnficascomodedificuldadescolossais.

    Pesasobrensumatradionegativa,quesefortaleceumuitoaolongodossculosXVIIeXVIII,segundoaqualo"sensocomum"depositriodetesourosdesabedoria.Gramsciadmitiaqueo"sensocomum"possuaumcaroo de "bom senso", a partir do qual poderia desenvolver o espritocrtico.Advertia, contudo, para o risco de uma superestimao do "sensocomum", cujos horizontes, afinal, so inevitavelmente muito limitados. O"senso comum , em si mesmo, "difuso e incoerente". A percepo darealidade, no mbito desse campo visual estreito, no poderia deixar deser segundo o terico italiano drasticamente "emprica", restrita compreensoimediata,superficial.

    Emsuaorigem,otermo"ideologia"compactuava, implicitamente,comuma valorizao exagerada da fora da percepo sensorial. Gramsci sereferiu ao fato de que o primeiro conceito de ideologia foi elaborado porfilsofos franceses vinculados a um "materialismo vulgar", tericos quepretendiam decompor as idias at chegarem aos "elementos originais"delas,querdizer,atchegarems"sensaes",dasquais,supostamente,as idiasderivavam.Tratavase,assim,deumaconcepo"fisiolgica"daideologia(GRAMSCI,1977,p.453).

    MarxeEngels,os"fundadoresdafilosofiadaprxis",submeteramessaconcepo a uma crtica vigorosa. Tornaramse, filosoficamente, osrepresentantes de um pensamento que implicava "uma clara superao"("un netto superamento") da ideologia (GRAMSCI, 1977, p. 1491). Noentanto, adotaram o termo, conferindolhe, naturalmente, um sentido

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    pejorativo.

    ParaMarxeEngels,aideologiafaziaparteda"supraestrutura",ecomotal deveria ser criticamente analisada. As construes supraestruturaiscombinam elementos de conhecimento e expresses de pressesprejudiciaisuniversalidadedoconhecimento.A ideologia,naacepoemqueMarxeEngelsusamapalavra,tornase,nasupraestrutura,umfatordeequvocos,"unelementodierrore",segundoGramsci(GRAMSCI,1977,p.868).Eoprincipalequvoco,aquelequecostumaseverificarcommaiorfrequncia, aquele que consiste numa viso "ideolgica" da ideologia equeresultanumadesqualificaodosfenmenosideolgicos.

    Opensadoritalianoexplicava:

    "O processo desse erro pode ser facilmente reconstitudo. 1) Aideologiaidentificadacomodistintadaestruturaeseafirmaquenosoasideologiasquemudamaestrutura,mas,aocontrrio,aestruturaquemudaasideologias:2)afirmasequedeterminadasoluo poltica `ideolgica', isto , insuficiente para mudar aestrutura,quandoacreditaquepoderiamudlaafirmase,ento,queelaintil,estpida,etc3)passase,porfim,aafirmarquetoda ideologia `pura' aparncia, intil, estpida, etc."(GRAMSCI,1977,p.868).

    Essa desqualificao ilimitada, generalizada, impede a perspectivacomprometidacomasuperaodasdistoresideolgicas(aperspectivadeMarx e Engels) de reconhecer concretamente as diferenas significativasqueexistemnointeriordocampodaideologia.Edificultaenormementeaocrticodaslimitaesdaideologiareconheceracomplexidadedoselementosideolgicospresentesnoseuprpriopensamento.

    Gramscipropunhaumaatenoespecialparaasdiferenasinternasdaideologia.Fixavase,emespecial,numadiferenaquelhepareciadecisiva:

    "precisodistinguirentreideologiashistoricamenteorgnicas,queso necessrias a uma certa estrutura, e ideologias arbitrrias,racionalizadas,desejadas"(idem,ibidem).

    As ideologias"arbitrrias"merecemsersubmetidasaumacrticaque,de fato, as desqualifica. As ideologias "historicamente orgnicas", porm,constituem o campo no qual se realizam os avanos da cincia, asconquistas da "objetividade", quer dizer, as vitrias da representao"daquela realidade que reconhecida por todos os homens, que independente de qualquer ponto de vista meramente particular ou degrupo"(GRAMSCI,1977,p.1456).

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    Acinciaumconhecimentoque seexpande,que seaprofundae serev, se corrige, continuamente. Ela tambm histrica, no podepretender situarse acima da histria, no pode pretender escapar smarcas que o fluxo da histria, a cada momento, imprime nas suasconstrues. Por isso, no razovel tentar promover uma contraposiorgidaentrecinciaeideologia.

    "Narealidade",escreveuGramsci,"acinciatambmumasupraestrutura,umaideologia"(GRAMSCI,l977,p.1457).

    Halgumadiferenaentrecinciaeideologia,entrefilosofiaeideologia?Gramsci no consegue sermuito preciso na resposta a essa indagao.Eledizqueaideologiasetornacinciaquandoassumeaformade

    "hiptesecientficadecartereducativoenergtico"e"verificada(criticada)pelodesenvolvimentorealdahistria"(GRAMSCI,1977,p.507).

    Eafilosofia?Umadistinosugeridaquandoofilsofoafirma:

    "O progresso uma ideologia, o viraser uma filosofia"(GRAMSCI,1977,p.1335).

    Contudo,amaiorpreocupaodoautordosCadernosdoCrcereadeevitar que alguma construo cultural ou algum elemento da supraestruturasejamdestacadosdaideologiaeconcebidoscomoindependentesdela.

    A prpria "filosofia da prxis" (o marxismo) no pode se pretenderimunesvicissitudesda ideologia.Namedidaemqueestcomprometidocomumprojetoeumaaodecrescentemobilizaodasclassespopulares cuja conscincia semovenoplanodo "senso comum" compreendesequeomarxismotenhaacabadoporsemostrarumtantoimpregnadopeloscritrios(frequentementepreconceituososousupersticiosos)determinadospelapercepodasmassas.Opensadoritalianoconstatava:

    "a filosofia da prxis se tornou, ela tambm, 'preconceito' e'superstio'"(GRAMSCI,1977,p.1861).

    Gramsci,convmressalvar,noseassustavacomessaconstatao.Eleestava convencido de que nenhuma fora inovadora consegue atuar comeficciaimediataepreservarsuacoesocomcompletacoerncia.Defato,aforainovadora

    "sempreracionalidadeeirracionalidade,arbtrioenecessidade.'vida', quer dizer, tem todas as fraquezas e foras da vida, temtodasassuascontradiesesuasantteses"(GRAMSCI,1977,p.

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    1326).

    Oqueimportanoaambioirrealistadesepreservarcontratodaequalquer"contaminao"porpartedascontradiessociais,esima firmedisposioparauma lutapermanentenosentidodesuperaroselementos"acrticos"daconscincia,emligaocomoprojetoderevolucionamentodasociedade.

    Porseu"cartertendencialdefilosofiademassa",afilosofiadaprxisspodesedesenvolverdemodopolmico,emconfrontocomosnostlgicosdopassado ou com os aproveitadores da situao presente. no conflitoque ela se liberta, ou tenta se libertar, "de todo elemento ideolgicounilateralefantico"(GRAMSCI,1977,p.1487).

    Deacordo coma concepodeGramsci, por conseguinte, a ideologiatem elementos unilaterais e fanticos, e tem igualmente elementos deconhecimentorigorosoeatmesmodecincia.Nessesentido,a ideologiapode chegar a se identificar com "todo o conjunto das supraestruturas"(GRAMSCI,1977,p.1320).

    Por um lado, pois, a perspectiva do pensador italiano atribui umaimportncia imensa ideologia (especialmente s ideologias"historicamenteorgnicas")poroutrolado,porm,omaterialismohistriconopermite que se acredite ingenuamente no poder das ideologias comotaisrevolucionaremasociedade.Gramsciescreveu:

    "ParaMarxas'ideologias'nosomerasiluseseaparnciassoumarealidadeobjetivaeatuante.Snosoamoladahistria"(GRAMSCI,1977,p.436).

    Segundo o terico italiano, caberia aos revolucionrios agir, atuarpraticamente. No entanto, para uma atuao eficaz, eles precisariamsuperar as "ideologias parciais e falaciosas", atravs de um processo noqualdeveriamseapoiarnascinciasenafilosofia,buscandoomximode"objetividade" no conhecimento, e encaminhando ento, na ao, arealizao prtica efetiva da "unificao cultural do gnero humano"(GRAMSCI,1977,p.1048).

    Abuscadaampliaodoquadroderefernciaseoesforonosentidode alcanarmaior universalidade no conhecimento conferem ao confrontosupraestruturaldasidiasumacaractersticamuitodiversadaquelaqueseencontranasbatalhas"militares".Na"guerra",ocombatenteprocuraatacaros pontos fracos do adversrio. Na controvrsia ideolgica, entretanto,quandosetratadealcanarumacompreensomaisamplaemaisprofunda,cumpre enfrentar o desafio de enfrentar as objees mais fortes dosinterlocutoresmaisnotveis("ipiueminenti")narepresentaodopontode

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    https://www.marxists.org/portugues/konder/ano/mes/ideologia.htm 5/7

    vistaoposto(GRAMSCI,1977,p.875).

    Em outro fragmento dos Cadernos do Crcere se pode ler umaadvertnciametodolgicaaparentadacomapreocupaoquesemanifestounotrechoacimareferido:

    "Na abordagem dos problemas histricocrticos, no se deveconceberadiscussocientficacomoumprocessojudicial,noqualexiste um acusado e um promotor que, por obrigao funcional,devedemonstrarqueoacusado culpadoemereceser retiradodecirculao"(GRAMSCI,1977,p.1267).

    AconcepodeideologiaadotadaporGramsciestligadaaumacertaunificao das supraestruturas em torno dos valores histricos doconhecimento e da cultura. O pensador italiano , sem dvida, ummaterialista seu materialismo, porm, tem uma feio peculiar: estpermanentemente atento para a importncia da criatividade do sujeitohumano, para o poder inovador dos homens, tal como se expressa nascriaesculturais.

    Apesar das grandes diferenas, Gramsci tem em comum com Lukcs(queelenuncachegoualer)umprofundoapreopelaculturacomotal.Naanlise do autor dos Cadernos do Crcere, a ideologia conservadoradominanteestariasetornandocadavezmaiscticaemrelaoaosvaloresbsicosdacultura,doconhecimento,dateoriaemgeral,porcausadacriseda cultura burguesa, que vem perdendo sua capacidade de exercer umaverdadeirahegemoniasobreasociedade.

    "A morte das velhas ideologias" anotou Gramsci "se verificacomoceticismoemrelaoatodasasteorias"(GRAMSCI,1977,p.312).

    Difundese um estado de esprito pragmtico, imediatista, utilitrio,cnico, que tende a subestimar a riqueza do significado das criaesculturais.Generalizaseumacrisedevalores.Emresolutaoposioaessatendncia,ofilsofonohesitavaemreivindicara"honestidadecientfica"ea"lealdadeintelectual"(GRAMSCI,1977,pp.1840e1841).

    As criaes dos sujeitos humanos no nvel supraestrutural no sedeixam reduzir a explicaes sociolgicas (e Gramsci critica duramente areduo do marxismo a uma "sociologia", que o russo Bukhrin teriatentado fazer). No se pode ignorar a autonomia relativa, masinsuprimvel que se manifesta na criao cultural, nas opesideolgicas.

    GramsciexemplificavacomumepisdioextradodahistriadaIgreja:

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    https://www.marxists.org/portugues/konder/ano/mes/ideologia.htm 6/7

    "Na discusso entre Roma e Bizncio sobre a provenincia doEsprito Santo, seria ridculo procurar na estrutura do OrienteeuropeuaafirmaodequeoEsptoSantoprovmsomentedoPaienaestruturadoOcidenteaafirmaodequeeleprovmdoPaiedoFilho.Aexistnciaeo conflitodasduas igrejasdependemdaestruturade todaahistria,masnocasoelaspuseramquestesquesoprincpiodedistinoedecoesointernaparacadaumadelas. Podia acontecer, contudo, que qualquer uma das duasigrejas tivesse afirmado o que a outra afirmou o princpio dediferenciao e conflito continuaria a ser o mesmo. E esseproblema da distino e do contraste que constitui o problemahistrico e no a bandeira casual empunhada por cada uma daspartes"(GRAMSCI,1977,p.873).

    As representaes no se deixam reduzir s condies em que seencontravamseuscriadoresnomomentoemqueascriaram.Etambmnodevemserconsideradasimutveisnaformaqueassumiramnacabeadaspessoasqueasadotaram.

    Porisso,Gramscinoabandonava,emmomentoalgum,suaconvicode que as representaes, as idias, as formas da sensibilidade, ospreconceitos, as supersties, mas tambm os sistemas filosficos e asteorias cientficas precisavam sempre ser pensados historicamente, dongulodo"historicismoabsoluto".

    O sujeito humano existe intervindo nomundo, sendo constitudo pelomovimento da histria e, simultaneamente, constituindo essemovimento.Mesmoquandoamplossetoresdapopulaodeumpasficamreduzidosaumasituaodemisriamaterialeespiritual,mergulhadosnasformasmaisempobrecidaselimitadasdo"sensocomum",nosedeveperderdevistaofatodequeelescontinuamaserintegradosporsujeitoshumanos.

    Lidando com sujeitos humanos, impossvel eliminar totalmente demodo irreversvel a margem de opes que as pessoas so levadas apreservar e anseiam por ampliar. Nos Cadernos do Crcere se l aobservao feita a respeito da situao intelectual do "homem do povo",que no sabe contraargumentar em face de um "adversrioideologicamente superior", no consegue sustentar e desenvolver suasprpriasrazes,masnemporissoadereaopontodevistadooutro,porqueseidentificasolidariamentecomogrupoaquepertenceeserecordadeterouvido algum desse grupo formular razes convincentes que iam numadireodiferentedaqueestsendoseguidapeloseucontraditor.

    "Norecordaos argumentos, concretamente, nopoderia repetilos, mas sabe que existem, porque j lhes ouviu a convincente

  • 10/04/2015 AQuestodaIdeologiaemGramsci

    https://www.marxists.org/portugues/konder/ano/mes/ideologia.htm 7/7

    Incluso 10/04/2015

    esposio"(GRAMSCI,1977,p.1391).

    Ahistriapressupe,ento,nosaaodosldereseaatuaodosde"cima",mastambmaineliminvelpossibilidadedaintervenoativaeconscientedosde"baixo".Fortaleceressa intervenoeraameta,o idealdo pensador italiano. Sua perspectiva revolucionria o incitava a tentarcontribuir para a criao de organizaes capazes de atuar num sentidopolticopedaggico, capazes de ajudar a populao a tornarmais crticassuas atividades j existentes. Sua inteno era a de mobilizar o maiornmero possvel de pessoas para a realizao de um programa queresultasse num aumento da liberdade e numa diminuio da coero, nasociedade.

    Inciodapgina