jornalismo literário - felipe pena

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O jornalismo Literário como gênero e conceito Felipe Pena 1 Resumo Resultado de pesquisa registrada na Universidade Federal Fluminense 2 , este artigo tem como objetivo propor uma conceituação para o termo jornalismo literário, além de uma reflexão sobre a questão de gêneros através da tentativa de sistematizar uma divisão do gênero em questão em classificações específicas denominadas sub-gêneros, como, por exemplo, o romance-reportagem, a biografia, o jornalismo gonzo, o newjournalism e a crítica literária, entre outros. Para tanto, procuram-se elementos comuns a todos estes discursos que possam, no interior da diversidade, produzir uma unidade conceitual para o jornalismo literário. Palavras-chave: jornalismo; literatura; gênero; jornalismo literário. Abstract As a result of registered research the Fluminense Federal University, this article has as objective to consider a conceptualization for the term literary journalism, beyond a reflection on the question of sorts through the attempt of systemizing a division of the sort in question in specific classifications called sub-sorts, as, for example, the romance-news article, the biography, the journalism bearing, new journalism and critical the literary one, among others. For in such a way, these speeches that can, in the interior of the diversity are looked to common elements to ali, to produce a conceptual unit for the literary journalism. Key words: journalism; literature; sort; literary journalism. 1 Editor-chefe da Contracampo. Professor do Mestrado e do Doutorado em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Pós-doutorando na Universidade de Paris (Sorbonne III). Doutor em Literatura pela PUC-Rio. Autor de oito livros na área de Comunicação e do romance O analfabeto que passou no vestibular. 2 A referida pesquisa deu origem ao livro Jornalismo Literário: a melodia da informação, cujo lançamento, lançado em 2006, de onde retiro as reflexões presentes neste texto. 43

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Artigo sobre conceitos de Jornalismo Literário

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  • O jornalismo Literrio como gnero e conceito

    Felipe Pena 1

    ResumoResultado de pesquisa registrada na Universidade FederalFluminense2 , este artigo tem como objetivo propor uma conceituaopara o termo jornalismo literrio, alm de uma reflexo sobre aquesto de gneros atravs da tentativa de sistematizar uma divisodo gnero em questo em classificaes especficas denominadassub-gneros, como, por exemplo, o romance-reportagem, a biografia,o jornalismo gonzo, o newjournalism e a crtica literria, entre outros.Para tanto, procuram-se elementos comuns a todos estes discursosque possam, no interior da diversidade, produzir uma unidadeconceitual para o jornalismo literrio.

    Palavras-chave: jornalismo; literatura; gnero; jornalismo literrio.

    AbstractAs a result of registered research the Fluminense Federal University,this article has as objective to consider a conceptualization for theterm literary journalism, beyond a reflection on the question of sortsthrough the attempt of systemizing a division of the sort in questionin specific classifications called sub-sorts, as, for example, theromance-news article, the biography, the journalism bearing, newjournalism and critical the literary one, among others. For in such away, these speeches that can, in the interior of the diversity are lookedto common elements to ali, to produce a conceptual unit for the literaryjournalism.

    Key words: journalism; literature; sort; literary journalism.

    1 Editor-chefe da Contracampo. Professor do Mestrado e do Doutorado em Comunicaoda Universidade Federal Fluminense. Ps-doutorando na Universidade de Paris (SorbonneIII). Doutor em Literatura pela PUC-Rio. Autor de oito livros na rea de Comunicao edo romance O analfabeto que passou no vestibular.2 A referida pesquisa deu origem ao livro Jornalismo Literrio: a melodia da informao,cujo lanamento, lanado em 2006, de onde retiro as reflexes presentes neste texto.

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  • Introduo

    No h consenso sobre as origens do jornalismo. Para muitospesquisadores, ele comea junto com a primeira comunicao humana,ainda na pr-histria. Mas outros localizam o incio muito mais tarde,entre os sculos XVIII e XIX, quando suas caractersticas modernas jpodem ser identificadas. Ou seja, quando os jornais j possuemperiodicidade, atualidade, universalidade e publicidade.

    No livro Teoria do Jornalismo', deixo clara a minha posio,que est muito mais prxima da primeira verso Para mim, a naturezado jornalismo est no medo. O medo do desconhecido, que leva o homema querer exatamente o contrrio, ou seja, conhecer. E assim, ele acreditaque pode administrar sua vida de forma mais estvel e coerente,sentindo-se um pouco mais seguro para enfrentar o cotidianoaterrorizante de seu meio ambiente. Mas, para isso, preciso transporlimites, superar barreiras, ousar. Entretanto, no basta produzircientistas e filsofos, ou incentivar navegadores, astronautas e outrosviajantes a desbravar o desconhecido. Tambm preciso que eles faamrelatos e reportem suas informaes a outros membros da comunidadeque buscam a segurana e a estabilidade do "conhecimento". A isso,sob certas circunstncias ticas e estticas, posso chamar jornalismo.

    S que uma histria do jornalismo dificilmente poderia estarexcluda de uma histria da comunicao. Na verdade, como nos contaCsarAguillera Castilho, ela at menos inteligvel fora deste contexto.Castilho escreveu o primeiro captulo do livro Histria da Imprensa,um compndio de 700 pginas organizado pelo professor espanholAlejandro Pizarroso Quintero. O ttulo do captulo "Comunicao einformao antes da impresso". Em seu texto, Castilho faz a seguinteponderao: "se a primeira grande aquisio comunicativa do HomoSapiens a fala, isso no exclui que tenha havido comunicao antesde sua aquisio."(p.17) Ele se baseia em estudos do pesquisadorCarleton S. Coon para traar uma panorama darwinista do homem,em que relaciona a origem da fala humana sua prpria evoluofsica e mental. Assim, o ser humano, muito lentamente, passaria deuma fase pr-lgica para um pensamento lgico e libertador. Entretanto,essa passagem no significa a perda do mundo de significaesprimordiais expressas na diversidade gestual do homem primitivo.

  • A linguagem no verbal essencial para o advento daverbalizao, que, segundo Castilho, acontece durante a revoluoneoltica, quando verifica-se uma aumento de novas tarefas e novosutenslios. "Por essa altura, parece que o homem conseguiu um idiomaverbal, se bem que este, s por si, nunca tenha existido: fala-se com osolhos, com os gestos, com o corpo, com as posturas e, principalmente,com o tom e a emoo" (p. 14)

    Quando o homem fala, h um componente sinestsico tanto naemisso quanto na recepo. Ao ouvir algum em uma praa pblica,por exemplo, no estamos s usando a audio. Estamos vendo seusgestos, usando o tato para nos apoiar em algum banco ou ficar de p,sentindo o cheiro no ar e o paladar de nossa ltima refeio ou da fomeque se aproxima. Todos estes componentes influenciam a mensagem.So parte dela.

    Segundo Bili Kovach e Tom Rosenstiel, autores do livro OsElementos cio jornalismo, os relatos orais podem ser considerados umaespcie de pr-jornalismo. Para eles, quanto mais democrtica umasociedade, maior a tendncia para dispor de mais notcias einformaes. O que pode ser comprovado pela democracia ateniense,que se apoiava em um jornalismo oral, no mercado de Atenas, ondetudo que era importante para o interesse pblico ficava ao ar livre,como concluem Kovach e Rosentiel, citando o professor de jornalismoJohn Hohenberg (p.36).

    As concluses da dupla americana vm ao encontro dosfundamentos da democracia grega, baseada em preceitos como isagoria,isonomia e isotimia. Mas os prprios gregos perceberam aspossibilidades de manipulao do contedo oral atravs da habilidadedo orador. Os sofistas, cuja marca principal era a competncia nodiscurso, foram criticados por Plato, para quem a cidade perfeitadeveria ser governada pela classe dos filsofos, os nicos com sabedoriae conhecimento suficientes para exercer o comando. Segundo ele, nohaveria democracia enquanto os requintes do discurso oral continuassemvalorizados. "Ou o povo se submetia reta filosofia, ou decidia pelainjustia do bom prazer"

    O fato que os relatos orais so a primeira grande mdia dahumanidade. O historiador Peter Burke classifica-os como um meio decomunicao especfico e importante, mas que tem recebido poucaateno da historiografia oficial, apesar da vasta literatura sobre a

  • oralidade. Mesmo muito tempo aps a inveno da escrita, acomunicao oral continuou (e continua) poderosa. Segundo Burke,no livro Uma Histria Social da Mdia, "as possibilidades do meiooral eram conscientemente exploradas pelos mestres do que eraconhecido no sculo XVI como a retrica eclesistica". (p. 38)

    Os plpitos da Igreja Catlica e Protestante influenciavamreis e rainhas. Para Burke, os governos tinham plena conscincia dopoder que a tal retrica tinha sobre a populao, principalmente nasreas rurais, onde havia obedincia cega aos seus ensinamentos.

    "A rainha Elizabeth 1 falou da necessidade de 'sintonizar osplpitos', e Carlos 1 concordou declarando que 'em tempos depaz as pessoas so mais governadas pelo plpito do que pelaespada', uma clssica e primeira declarao da idia dehegemonia cultural." , (p. 39)

    Burke ainda destaca outros importantes tipos de comunicaooral, como a acadmica, o canto, o boato e a informao de tabernas,

    46 banhos pblicos, clubes, bares e cafs.E exatamente nos cafs de Lndres, no comeo do sculo

    XVII, que Bill Kovach e Tom Rosenstiel situam um possvel incio doque eles chamam de moderno jornalismo. L, os donos dos pubs (casaspblicas) estimulavam as conversas com viajantes, pedindo que elescontassem o que tinham visto pelo caminho.

    "Na Inglaterra, havia cafs especializados em informaesespecficas. Os primeiros jornais saram desses cafs por voltade 1609, quando tipgrafos mais atrevidos comearam a recolherinformaes, fofocas e discusses polticas nos prprios cafs,depois imprimindo tudo." (p.37)

    Ou seja, alm da passagem de uma cultura oral para a escrita, a inveno dos tipos impressos que vai possibilitar o advento dojornalismo moderno. Entretanto, a oralidade continuar sendoprotagonista do probesso jornalstico, no s na relao com as fontescomo na configurao de novas tecnologias miditicas, como o rdio ea televiso.

  • S que, na histria da imprensa, os crticos costumam fazer umadiviso cronolgica em modelos explicativos, que refletem astransformaes do espao pblico. Para Bernard Mige, porexemplo,eles so quatro: imprensa de opinio (artesanal, tiragem reduzida etexto opinativo), imprensa comercial (industrial, mercantil e textonoticioso), mdia de massa (tecnologia, niarketing e espetculo), ecomunicao generalizada (megaconglomerados de mdia, informaocomo base das estruturas socioculturais e realidade virtual). J CiroMarcondes Filho, no livro Comunicao e jornalismo: a saga dosces perdidos, traa uni quadro evolutivo de cinco pocas distintas(p.48):

    'Pr-histria do jornalismo: de 1631 a 1789. Caracterizada poruma economia elementar, produo artesanal e forma semelhanteao livro.Primeiro jornalismo: 1789 a 1830. Caracterizado pelo contedoliterrio e poltico, com texto crtico, economia deficitria ecomandado por escritores, polticos e intelectuais.*Segundo jornalismo: 1830 a 1900. Chamada de imprensa demassa, marca o incio da profissionalizao dos jornalistas, acriao de reportagens e manchetes, a utilizao da publicidadee a consolidao da economia de empresa.'Terceiro jornalismo: 1900 a 1960. Chamada de imprensamonopolista, marcada por grandes tiragens, influncia dasrelaes pblicas, grandes rubrica polticas e fortes gruposeditoriais que monopolizam o mercado.Quarto jornalismo: de 1960 em diante. Marcada pela informaoeletrnica e interativa, como ampla utilizao da tecnologia,mudana das funes do jornalista, muita velocidade natransmisso de informaes, valorizao do visual e crise daimprensa escrita.

    Pela classificao de Marcondes Filho, portanto, a influnciada literatura na imprensa est mais presente nos chamados primeiro esegundo jornalismos. Estanios falando justamente dos sculos XVIII eXIX, quando escritores de prestgio tomaram contaconta dos jornais edescobriram a fora do novo espao pblico. No s comandando asredaes, mas, principalmente, determinando a linguagem e o contedo

  • dos jornais. E um de seus principais instrumentos foi o folhetim, umestilo discursivo que a marca fundamental da confluncia entrejornalismo e literatura.

    O termo francs feuilleton no se referia inicialmente aosromances publicados em peridicos. Quando apareceu pela primeiravez no Journal des Dbats, denominava um tipo de suplemento dedicado crtica literria e a assuntos diversos'. Mas a partir das dcadas de1830 e 1840, a ecloso de um jornalismo popular, principalmente naFrana e na Gr-Bretanha, mudou o conceito, incorporando-o novalgica capitalista. Publicar narrativas literrias em jornaisproporcionava um significativo aumento nas vendas e possibilitavauma diminuio nos preos, o que aumentava o nmero de leitores eassim por diante.

    Para os escritores, tambm era um timo negcio. No s porquerecebiam em dia dos novos patres, mas tambm pela visibilidade queganhavam a partir da divulgao de suas histrias e de seus nomes. Eo ltimo elemento desse trip, obviamente, eram os anunciantes, que,com o aumento das tiragens, pagavam mais caro pelo espao publicitrio

    48e ajudavam a consolidar a lgica capitalista dos jornais.

    Balzac, Victor Hugo, Stendhal e outros grandes escritores podem,ento, ser considerados como os precursores do jornalismo literrio, seclassificarmos como tal um gnero que se caracteriza pela publicaode literatura nas pginas de jornais. Entretanto, o conceito que querodiscutir muito mais amplo. Em recente pesquisa realizada naUniversidade Federal Fluminense, proponho a alocao de sub-gneros,entre eles o romance-reportagem, a biografia, o new journalismamericano, o jornalismo gonzo e a fico jornalstica, entre outros.Tais sub-gneros foram se estabelecendo ao longo do sculo XX e,embora diferentes, tm caractersticas comuns que podem dar subsdiospara uma conceituao ampla do jornalismo literrio. Para tanto,enumero sete caractersticas bsicas, expostas a seguir.

    O Conceito: uma estrela de sete pontas

    Afinal, o que jornalismo literrio? No se trata apenas de fugirdas amarras da redao ou de exercitar a veia literria em um livro-reportagem. O conceito muito mais amplo. Significa potencializar osrecursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos

  • cotidianos, proporcionar vises amplas da realidade, exercer plenamentea cidadania, romper as correntes burocrticas do lide', evitar osdefinidores primrios' e, principalmente, garantir perenidade eprofundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto deve servir paraalgo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira.

    Ficou confuso? Ento, vou desenvolver cada um desses temaspara facilitara compreenso. E o que eu chamo de estrela de sete pontas,pois so sete diferentes itens, todos imprescindveis, formando uniconjunto harmnico e retoricamente mstico 5 , como a famosa estrela.Vamos comear pelo primeiro: potencializar os recursos dojornalisnio.

    O jornalista literrio no ignora o que aprendeu no jornalismodirio. Nem joga suas tcnicas narrativas no lixo. O que ele faz desenvolv-las de tal maneira que acaba constituindo novas estratgiasprofissionais. Mas os velhos e bons princpios da redao continuamextremamente importantes, corno, por exemplo, a apurao rigorosa, aobservao atenta, a abordagem tica e a capacidade de se expressarclaraniente, entre outras coisas.

    A segunda ponta da estrela recomenda ultrapassar os limites doacontecimento cotidiano. Em outras palavras, quer dizer que o jornal istarompe com duas caractersticas bsicas do jornalismo contemporneo:a periodicidade e a atualidade'. Ele no est niais enjaulado pelodeadline, a famosa hora de fechamento do jornal ou da revista, quandoinevitavelmente deve entregar a sua reportagem. E nem se preocupacorri a novidade, ou seja, corri o desejo do leitor em consumir os fatosque aconteceram rio espao de tempo mais imediato possvel. Seu dever ultrapassar estes 1 imites e proporcionar uma viso ampla da realidade,que a terceira caracterstica sugerida.

    Mas no entenda por viso ampla uni pleno conhecimento domundo que nos cerca. Qualquer abordageni, de qualquer assunto, nuncapassar de um recorte, unia interpretao, por mais completa que seja.A preocupao do jornalismo literrio, ento, contextualizar ainformao da fornia mais abrangente possvel, o que seria muito maisdifcil rio exguo espao de uni jornal. Para isso, preciso mastigar asi nforniaes, relacion-las corri outros fatos, conipar-las coni diferentesabordagens e, novamente, localiz-las em uni espao temporal de longadurao.

    Em quarto lugar, no necessariamente nessa ordem, precisoexercitar a cidadania. Uni conceito to gasto que parece esquecido.

  • To mal utilizado por quem no tem qualquer compromisso com eleque caiu em descrdito. Mas voc no pode ignor-lo. seu dever, seucompromisso com a sociedade. Quando escolher um tema, deve pensarem como sua abordagem pode contribuir para a formao do cidado,para o bem comum, para a solidariedade. No, isso no um clich.Chama-se esprito pblico. E um artigo em falta no mundocontemporneo.

    A quinta caracterstica do jornalismo literrio rompe com ascorrentes do lide. Para quem no sabe, o lide uma estratgia narrativainventada por jornalistas americanos no comeo do sculo passadocom o intuito de conferir objetividade imprensa. Segundo WalterLippman, autor do clebre Public Opinion (1922), tal estratgiapossibilitaria uma certa cientificidade nas pginas dos jornais,amenizando a influncia da subjetividade atravs de um recurso muitosimples. Logo no primeiro pargrafo de uma reportagem, o texto deveriaresponder seis questes bsicas: Quem? O que? Como? Onde?Quando? Por qu?

    A frmula realmente tornou a imprensa mais gil e menos prolixa,

    50 embora a subjetividade no tenha diminudo. A opinio ostensiva foiapenas substituda por aspas previamente definidas e dissimuladas nointerior da frmula. Para a sociloga Gaye Tuchman, por exemplo, aobjetividade nada mais do que um ritual de auto-proteo dosjornalistas. E a pasteurizao dos textos ntida. Falta criatividade,elegncia e estilo. preciso, ento, fugir dessa frmula e aplicar tcnicasliterrias de construo narrativa.

    A sexta ponta da estrela evita os definidores primrios. Eles soos famosos entrevistados de planto. Aqueles sujeitos que ocupam algumcargo pblico ou funo especfica e sempre aparecem na imprensa.So as fontes oficiais: governadores, ministros, advogados, psiclogos,etc. Como no h tempo no jornalismo dirio, os reprteres sempreprocuram os personagens que j esto legitimados neste crculo vicioso.Mas preciso criar alternativas, ouvir o cidado comum, a fonteannima, as lacunas, os pontos de vista que nunca foram abordados.

    Por ltimo, a perenidade. Uma obra baseada nos preceitos dojornalismo literrio no pode ser efmera ou superficial. Diferentementedas reportagens do cotidiano, que, em sua maioria, caem noesquecimento no dia seguinte, o objetivo aqui a permanncia. Umbom livro permanece por geraes, influenciando o imaginrio coletivoe individual em diferentes contextos histricos. Para isso, preciso

  • fazer uma construo sistmica do enredo, levando ciii conta que arealidade multifacetada, fruto de infinitas relaes, articulada emteias de complexidade e indeterminao.

    Na verdade, a busca pela permanncia reflete o segundo motivomais importante para se escrever: o medo da morte. O escritor procurafugir da fugacidade da vida pelo tortuoso caminho das letras. Ele uniotimista por natureza. Tem que acreditar que algum vai publicar oseu livro, que outros tantos tero interesse em l-lo e que ele peniianecernas prateleiras do tempo, amenizando a angstia de sua efmeraexistncia sobre a terra.

    Voc deve estar se perguntando, ento, qual o primeiro motivo?Qual a razo principal para se escrever? Bem, isso varia de escritorpara escritor. Os meus motivos esto registrados em meus livros. Euescrevo porque no sei fazer msica. Se soubesse ler partituras earticular notas harmnicas, no me arriscaria nessas linhas tortas eanalfabetas. A msica permanece por muito mais tempo na memriacultural do que a literatura. E isso fcil de verificar. Quer ver? Entopense rpido:

    Qual a primeira frase de seu livro favorito? Lembrou? 51Provavelmente no. Mas se voc uma exceo, vou mais adiante.

    Tente contar para si mesmo as cinco histrias literrias de que vocmais gosta. Assim mesmo, de memria, com comeo, meio e fim. Tentelembrar dos personagens, do enredo e dos cenrios. Depois, articule ashistrias em narrativas verbais. Dificil, no ? Ento, vamos falar demsica.

    Tente cantar cinco canes. No preciso nem dizer que muitomais fcil. Mas como quero provar a minha tese, vou dificultar umpouco. Em que poca elas tocavam no rdio? Provavelmente, vocacertou de novo. E se eu perguntar sobre assuntos pessoais, como anamorada que voc tinha no mesmo perodo, onde voc trabalhava ouque lugares freqentava? E quase certo que voc tambm terlembranas sobre todos esses assuntos, o que s acontece porque aharmonia muito mais poderosa do que a sinttica.

    As associaes do crebro respondem muito melhor a melodiasdo que a frases. E uma questo neurolgica, cientfica. No h comolutar contra ela. Arrisco-me at a dizer que uni frasco de perfume Podelevantar sua memria afetiva com mais eficincia do que uni livro.Claro que voc pode argumentar que as msicas tambm tm frases,

  • mas elas s so lembradas em virtude da associao com notas musicais. um fato que os escritores tm que aceitar. E tambm o motivo peloqual eles buscam sonoridade nas palavras.

    Mas pense no jornal: d para imaginar a dificuldade em manterum ritmo semntico no espao de uma coluna de 30 centmetros, comapenas 40 minutos para escrev-la? Isso sem falar nas dificuldades daapurao, na presso do chefe, na concorrncia, no estresse do cotidianoe em outras peculiaridades do trabalho jornalstico. E preciso ser umgnio para manter um bom texto sob tais condies. E, acreditem, elesexistem. Alis, conforme tambm j mencionei, apesar das limitaesestilsticas, o trabalho na imprensa tem caractersticas fundamentaispara a formao de um escritor (vide a primeira ponta da estrela).

    Ao longo do tempo, o jornalismo literrio atraiu uma srie detalentos que ousaram ultrapassar os limites da redao. Na verdade,alguns nem chegaram a freqent-la. As diversas narrativas produziramsubgneros, se partirmos do pressuposto de que o jornalismo literrio um gnero em si. Uma discusso complicada, pela qual temos quepassar.

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    Mas no fique assustado. Vou tentar simplificar, respeitando oexguo espao deste artigo.

    Diviso de gneros - uma misso possvel

    A mania de discutir gneros muito antiga. Os intelectuaisgostam de classificar as coisas, inventar nomes e fingir que tm domnioracional sobre o mundo. Ao dividir tudo em compartimentos, tm ailuso de que podem controlar a natureza. Foi por isso que inventaramas cincias, criando leis deterministas para dar uma suposta estabilidadee previsibilidade aos fenmenos naturais. S que a lista foi ficandogrande e, ao longo do tempo, a quantidade de informaes motivouuma infinidade de novas divises. DeAristteles sociedade moderna,passando pelos enciclopedistas do sculo XVIII, houve inmerasmudanas nos diversos tipos de classificaes.

    No existe, entretanto, forma mais eficiente de aprofundar oestudo de qualquer assunto. E verdade que, ao enquadrar determinadoconhecimento em um gnero especfico, limito meu horizonte de anlise.Mas essa limitao tambm uma ampliao. Por mais paradoxal queparea, quando fao um recorte sobre um tema estou multiplicando as

  • possibilidades reflexivas sobre ele, pois minha metodologia promovequestes que podem servir para incentivar a criao de novos mtodos,que promovem outras questes, e assim por diante. A pertinncia dequalquer pesquisa est nas perguntas, no nas respostas.

    No caso do texto (literrio ou no), o objetivo fundamental dadiviso de gneros fornecer um mapa para a anlise de estratgias dodiscurso, tipologias, funes, utilidades e outras categorias. Ou seja,propor urna classificao a posteriori corri base em critrios a priori.Para Dominique Mainguenau, no livro Anlise de textos deComunicao, todo texto pertence a uma categoria de discurso, a umgnero especfico: "Tais categorias correspondem s necessidades davida cotidiana e o analista do discurso no pode ignor-las. Mas tambmno pode contentar-se com elas, se quiser definir critrios rigorosos."(p59) Ou seja, tanto os critrios como as classificaes tero mltiplasvariaes, pois esta sua prpria dinmica. O que torna a tarefa muitomais complexa do que parece, corri fronteiras tnues e conceituaesdiversificadas.

    A definio de gneros vem desde a Grcia Antiga, h quase trsmil anos, com a classificao proposta por Plato, que era baseada nasrelaes entre literatura e realidade, dividindo o discurso em mimtico,expositivo ou misto. E foi nesta rea que a teoria dos gneros ganhouconsistncia, seja como agrupamento de obras por convenes estticasou como normatizadora das relaes entre autor, obra e leitor. Apesardas diversas mutaes ao longo do tempo, h uma certa unanimidadepara diferenciar alguns gneros da literatura, como, por exemplo, poesiae prosa.

    No jornalismo, a primeira tentativa de classificao foi feitapelo editor ingls Samuel Buckeley no comeo do sculo XVIII, quandoresolveu separar o contedo do jornal Daily Courani em news (notcias)e coininents (comentrios). Para se ter uma idia da dificuldade emestabelecer um conceito unificado de gnero, esta diviso demorou quaseduzentos anos para ser efetivamente aplicada pelos jornalistas e, athoje, causa divergncias.

    Ao longo do tempo, a maioria dos autores seguiu esta dicotomiapara enveredar pelo estudo dos gneros jornalsticos, tomando comocritrio a separao entre forma e contedo, o que gerou a diviso portemas e pela prpria relao do texto com a realidade (opinio Xinformao), contribuindo assim para uma classificao a partir da

  • inteno do autor. Por essa classificao, ele (o autor) realiza umafuno, que pode ser opinar, informar, interpretar ou entreter. Mas serque a inteno o ponto de partida mais adequado? Para Mainguenau,ela apenas um dos caminhos. As funes tambm podem ser analisadasa partir da relao com os leitores ou com as instituies, s para citardois exemplos.

    A Universidade de Navarra, na Espanha, foi um dos primeiroscentros de investigao a sistematizar o estudo dos gneros jornalsticos,a partir de 1959. Inicialmente, os textos foram divididos eminformativos, explicativos, opinativos e de entretenimento.Posteriormente, o pesquisador catalo Hector Borrat sugeriu a divisoem textos narrativos, descritivos e argumentativos. No Brasil, LuizBeltro foi o pioneiro, seguido do professor Jos Marques de Mello,cujas propostas foram baseadas nos seguintes critrios: 1) finalidadedo texto 2) estilo; 3) modos de escrita; 4) natureza do tema; e 5)articulaes interculturais (cultura). As sistematizaes de Marquesde Mello tambm levam em conta a geografia, o contexto scio-poltico,a cultura, os modos de produo e as correntes de pensamento.

    54 Mas a literatura ainda o melhor exemplo da complexa tarefade diviso genrica. Comea com o prprio Aristteles, no sculo IVantes de Cristo, que separou os gneros em lrico, pico e dramtico nafamosa obra Potica. Plato, como j mencionei, tambm esboouuma tripartio alguns anos antes, mas foi o seu discpulo que aestruturou formalmente. Ambos, no entanto, estavam mais preocupadoscom o modo de enunciao dos textos do que com a literatura em si, oque se justifica pela tradio oral da poca. Alm disso, as subdivisesdeixavam claro que a classe social era um dos principais pressupostosda classificao. A tragdia, por exemplo, era destinada aos nobres,enquanto a comdia tinha seu foco nos plebeus.

    A partir do sculo XVIII, o modelo triplo comeou a serquestionado. Conforme lembram os tericos Gerard Genette e EmilStaiger, os gneros ultrapassaram a caracterstica fundamental de mediara produo literria e a recepo do pblico, ganhando uma dimensomuito mais ligada ao desenvolvimento mehtal do homem, cuja essnciaest representada pelos domnios emocional, figurativo e lgico.

    No sculo XIX, o escritor Victor Hugo foi um dos principaiscrticos do modelo grego, o que ficou materializado no famoso prefciode Cromwell. Com

    a consolidao dos valores burgueses, um gnero

  • se cristalizou como dominante, o romance. A partir dele, surgiram asmisturas com outras formas de representao, como cartas, dirios ememrias. Uma nova sensibilidade tomou conta da sociedade,embriagada pela lgica capitalista emergente.

    Mas foi no comeo do sculo XX que se instalou uma verdadeirarevoluo no conceito de gnero, quando as questes romperam oslimites do texto e passaram a se localizar na linguagem. Os tericosconhecidos como formalistas russos enfocaram o romance no mbitoda diversidade, como um gnero que muda de forma constantemente e impossvel de ser analisado fora do sistema onde est inserido. Paraalm do discurso literrio, as classificaes comearam a se referir aqualquer tipo de enunciado, dos mais simples aos mais complexos.

    Com Mikhail Bakthin, os estudos passaram da condio literriapara a condio discursiva e os agora chamados "gneros do discurso"podiam ser divididos a partir de suas funes (cientfico, tcnico,cotidiano, etc) ou, conforme outro terico importante, Tzvetan Todorov,a partir de suas codificaes histricas, respeitando-se quatro nveisessenciais: semntico, sinttico, pragmtico e verbal. Enfim, assumiu-se que os gneros so relativos e transitrios, com princpios dinmicose em estado perene de transformao.

    Concluso

    Diante desse quadro, imagine o problema que analisar ai unode dois discursos diferentes: o jornalstico e o literrio. Ao longo dahistria, vrios tericos tentaram definir essa juno como um gneroespecfico. Entretanto, se o princpio bsico o da transformao e datransitoriedade, a misso toma-se impossvel. Ento, a nica alternativa propor uma aproximao conceitual, identificando subdivisespossveis de acordo com o momento histrico. A est, caro leitor, oobjetivo deste artigo.

    O termojomalismo literrio d margem a uma srie de diferentesinterpretaes sobre seu significado. Na Espanha, por exemplo, estdividido em dois gneros especficos: periodismo de creacin eperiodismo informativo de creacin. O primeiro est vinculado a textosexclusivamente literrios, apenas veiculados em jornais. J o segundoune a finalidade informativa com uma esttica narrativa apurada. 0

  • problema que j parte do pressuposto de que o texto exclusivamenteinformativo no tem uma narrativa trabalhada.

    No Brasil o jornalismo literrio tambm classificado dediferentes maneiras. Para alguns autores, trata-se simplesmente doperodo da histria do jornalismo em que os escritores assumiram asfunes de editores, articulistas, cronistas e autores de folhetins, maisespecificamente o sculo XIX. Para outros, refere-se crtica de obrasliterrias veiculada em jornais. H ainda os que identificam o conceitocom o movimento conhecido como new journalism, iniciado nasredaes americanas da dcada de 1960. E tambm os que incluem asbiografias, os romances-reportagem e a fico jornalstica.

    Eu considero todas as opes acima. Mas trato-as comosubgneros do jornalismo literrio. Em livro que acabo de lanar, cadauma abordada como um captulo especfico, em que tento explicarconceitos e relacionar autores representativos (cujos critrios de escolhaso explicitados nos prprios captulos), com a ajuda dos textos escritospor duas de minhas alunas mais dedicadas, Thais Crist e SuzanaMeireles, esta ltima com bolsa de iniciao cientfica concedida pela

    56 Universidade Federal Fluminense.Por fim, cabe registrar minha prpria definio de jornalismo

    literrio. Alm das caractersticas da estrela de sete pontas, jmencionadas neste artigo, acredito que o conceito estfundamentalmente ligado a uma questo lingstica. Como diriaNietzsche, a linguagem inseparvel do pensamento, cuja natureza estritamente retrica. A informao que segue viagem pelas estradasneurais do crebro sinttica e semntica. Estamos sempreempalavrando o mundo'. O que falta valorizar a musicalidade.

    Assim, defino jornalismo literrio como linguagem musical detransformao expressiva e informacional. Ao juntar os elementospresentes em dois gneros diferentes, transforma-os permanentementeem seus domnios especficos, alm de formar um terceiro gnero, quetambm segue pelo inevitvel caminho da infinita metamorfose. Nose trata da dicotomia fico ou verdade, mas sim de uma verossimilhanapossvel. No se trata da oposio entre informar ou entreter, mas simde uma atitude narrativa em que ambos esto misturados. No se tratanem de jornalismo, nem de literatura, mas sim de melodia.

    Oua este artigo, meu caro leitor. E estar prximo do que querodizer.

  • Referncias Bibliogrficas

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    Cia. das Letras. 2004

  • Notas

    Pena, 2005.2 Chiln, pg. 92.

    famosa frmula objetiva que prega a necessidade de o textojornalstico responder s principais perguntas da reportagem ainda noprimeiro pargrafo.

    4 Aqueles entrevistados que sempre falam para os jornais, comoautoridades e especialistas famosos.

    Mstico no sentido das atribuies transformadoras conferidass suas caractersticas.

    6 Essas duas caractersticas, aliadas publicidade e universalidade, formam a base de identificao do jornalismo moderno.

    Chiln, pg. 25.

    58

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