o jornalismo literário na plataforma digital: as grandes...
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O jornalismo literário na plataforma digital: as grandes reportagens de Eliane Brum na internet
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The literary journalism in the digital platform: the great stories of Eliane Brum on the Internet Amanda Farias Pisone
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Nadia Couto3
Resumo O presente artigo tem como objetivo geral analisar as características do jornalismo literário
presentes nas grandes reportagens escritas pela jornalista Eliane Brum. São elas “Todo inocente
é um fdp?” e “Um abraço em Bangladesh”, publicadas nos sites El País e Revista Época,
respectivamente. Os objetivos específicos desta pesquisa são analisar as características e
técnicas da grande reportagem na web; abordar o jornalismo literário; apresentar a estrela de
sete pontas; explanar sobre uma das vertentes do jornalismo literário, o Novo Jornalismo;
apontar as características do jornalismo digital e analisar as duas reportagens de Eliane Brum.
Pode-se constatar que mesmo no meio digital, as reportagens da jornalista permanecem com as
características do jornalismo literário.
Palavras-chave: Jornalismo literário, Reportagem na web, Eliane Brum.
Abstract
This article has as main objective to analyze the characteristics of literary journalism present in
great articles written by journalist Eliane Brum. They are " Todo inocente é um fdp?" And " Um
abraço em Bangladesh ", published on the websites El País and Epoca magazine, respectively.
The specific objectives of this research are to analyze the characteristics and techniques of big
story on the web; approach the literary journalism; present the seven-pointed star; explain about
one of the aspects of literary journalism, New Journalism; point out the characteristics of digital
journalism and analyze both reports Eliane Brum. It can be seen that even in the digital
environment, the journalist reports remain with the characteristics of literary journalism.
Keywords: Literary journalism, Web reporting, ElianeBrum.
1Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Jornalismo da Faculdade
SATC, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. 2Amanda Farias Pisone – [email protected]
3Nadia Couto - Faculdade Satc – [email protected]
Introdução
O jornalismo literário, normalmente presente em jornais, revistas e livros, possui espaço
também na internet. Bastos (2005) caracteriza o jornalismo literário como uma das vertentes do
jornalismo. O autor afirma que esta vertente possui duas direções: jornalismo de literatura e um
cuidado quanto à apuração e também à linguagem.
Em contrapartida, Bastos (2005) acredita que é difícil imaginar o jornalismo literário
minucioso na superficialidade da internet, pois teria de se adaptar ao formato da rede, podendo
ser menos trabalhado do que se fosse em outros veículos, por exemplo, e perder suas
características.
De acordo com Pena (2013), o jornalista literário não deixa de utilizar em seus textos as
técnicas do jornalismo diário. Ele desenvolve as narrativas e técnicas e é capaz de constituir
novas estratégias profissionais.
O autor define o jornalismo literário como uma série de características, que juntas
formam o que ele denomina a estrela de sete pontas. São elas: potencializar os recursos
jornalísticos, ultrapassar os limites dos acontecimentos diários, proporcionar visões amplas da
realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os
definidores primários e garantir perenidade e profundidade aos relatos.
Também conhecido como New Journalism, o Novo Jornalismo é uma das vertentes do
jornalismo literário, abordada neste artigo. Caracteriza-se pela reportagem aprofundada, de
forma elaborada e detalhada. Conforme Bulhões (2006), o Novo Jornalismo foi de encontro aos
limites convencionais do jornalismo, representando uma nova prática textual.
Wolfe (2005) afirma que o Novo Jornalismo foi rotulado como uma literatura de não-
ficção. Ele o descreve como um tipo de reportagem mais ambiciosa, intensa e detalhada, na qual
o repórter rompe os limites convencionais do jornalismo.
Desse modo, optou-se por pesquisar e abordar as questões que envolvem o jornalismo
literário e o Novo Jornalismo, presentes nas reportagens da jornalista Eliane Brum para o
público da internet. Por isso, neste artigo, apresenta-se como problema de pesquisa: quais as
características do jornalismo literário estão presentes nas reportagens da jornalista Eliane
Brum?
Tem-se como objetivo geral da pesquisa analisar as características do jornalismo
literário presentes nas grandes reportagens escritas pela jornalista Eliane Brum.
Seguindo com os objetivos específicos, são eles analisar as características e técnicas da
grande reportagem na web; abordar o jornalismo literário; apresentar a estrela de sete pontas, a
qual é um conjunto de características do jornalismo literário; explanar sobre uma das vertentes
do jornalismo literário, o Novo Jornalismo; apontar as características do jornalismo digital e
analisar duas reportagens da jornalista Eliane Brum, veiculadas nos sites El País e Revista
Época.
Este artigo se justifica por trazer uma pesquisa que é capaz de mostrar um novo olhar do
jornalismo, onde o repórter pode utilizar recursos literários independentemente se o veículo de
comunicação for impresso ou digital. A narrativa no jornalismo literário, como fica evidenciado
nas reportagens de Eliane Brum, é diferente da que a sociedade está acostumada a ler no meio
digital.
É importante ressaltar a forma pela qual esta vertente do jornalismo é apresentada ao
público da web, bem como apontar as principais características presentes no jornalismo literário,
com foco nas reportagens de Eliane Brum.
A importância de pesquisar sobre a forma como o jornalismo literário é explorado na
internet é de extrema relevância, pois apesar de a web ser um meio de comunicação que está
repleto de textos enxutos, visto que muitos que fazem parte do público da internet estão em
busca pela agilidade das informações, ainda assim o jornalismo literário se encontra presente
neste meio.
1. Fundamentação teórica
Neste capítulo são abordados o conceito de jornalismo literário, de modo a entender
suas principais características e a forma pela qual os textos literários são escritos, analisando
suas vertentes e o movimento conhecido como Novo Jornalismo.
1.1 Jornalismo literário
Bastos (2005) define jornalismo literário como uma das vertentes do jornalismo, a qual
segue duas direções diferentes. Primeiramente, refere-se ao jornalismo de literatura. Por outro
lado, o autor também define como um cuidado quanto à apuração e também à linguagem.
Segundo Pena (2013), atualmente é comum ver em alguns veículos de comunicação a
falta de credibilidade, espetacularização e o desejo por veicular as notícias que vendam mais.
Em contrapartida, o jornalismo literário vai de encontro à espetacularização dos fatos e em
noticiar somente o que irá vender mais.
O autor acredita que o jornalismo literário está ligado à linguagem musical de
transformação expressiva e informacional, tratando-se, portanto, de uma atitude narrativa capaz
de unir informação e entretenimento.
Pena (2013) apresenta a estrela de sete pontas como um conjunto de itens presente no
jornalismo literário, que faz com que a reportagem não seja breve e superficial, mas
aprofundada e de forma diferenciada, comparando-se com as do dia a dia que corriqueiramente
aparecem nos veículos de comunicação. O autor acrescenta que, enquanto as outras matérias
cotidianas entram no esquecimento no dia seguinte em que foram publicadas, por outro lado, no
jornalismo literário o objetivo é que permaneçam.
Segundo Pena (2013), a primeira ponta da estrela é potencializar os recursos do
jornalismo, que é quando o repórter desenvolve suas técnicas de narrativa, faz a apuração
rigorosamente, observa, aborda de acordo com os princípios éticos e utiliza uma linguagem
clara.
A segunda ponta seria ultrapassar os limites dos acontecimentos diários, indo além da
periodicidade e atualidade. Desse modo, Olinto (2008) explica que a busca pela facilidade no
jornalismo, utilizando sempre as mesmas palavras e lugares comuns, dá-se por conta da
necessidade que muitas vezes o veículo possui de abranger todos os assuntos. O fato de o jornal
ser matéria diária dá, a muitos, a falsa ideia de que essa rotina é jornalismo.
O autor salienta que o jornalista precisa encarar os desafios de ultrapassar aquilo que é
corriqueiro, enxergar por meio de diferentes olhares. De acordo com Olinto (2008, p. 75), “a
verdade, no entanto, é que o jornalismo como obra de arte é sempre um salto além da rotina. É
um trabalho de criação, com os mesmos sofrimentos dos da poesia e com a mesma possibilidade
de conquistar o patético, o trágico, o pungente, que os acontecimentos trazem consigo”.
A terceira característica da estrela de sete pontas é quando o repórter é capaz de
proporcionar, por meio de suas reportagens, uma visão mais ampla dos fatos, contextualizando
as informações.
A quarta ponta, de acordo com Pena (2013), é ter o compromisso com a sociedade,
exercendo, de fato, a cidadania. As matérias do repórter podem contribuir para com a
transformação dela. O quinto item da estrela trata-se de ir além do simples lide, não se limitando
apenas às perguntas quem, o que, como, quando, onde e por quê. É preciso utilizar no texto
técnicas literárias, de forma criativa.
A narrativa, segundo Sodré e Ferrari (1986), constitui-se por descrever a realidade
factual do dia a dia e pelo cotidiano trabalhado discursivamente. Bastos (2005) acredita que a
linguagem do jornalismo literário é capaz de se adaptar a outros tipos de linguagem.
Pena (2013) destaca que na sexta ponta é necessário criar alternativas para não ouvir
sempre as mesmas fontes, também conhecidas como as oficiais e primárias. É preciso ouvir
diferentes pontos de vista. E, portanto, a última ponta da estrela trata da perenidade, cuja
finalidade é de fazer com que a reportagem permaneça e não seja esquecida pelo leitor pouco
tempo após sua publicação.
Conforme Bastos (2005), o jornalismo literário possui grande relevância, pois é capaz
de contribuir de maneira significativa para com a visão crítica do leitor, além de acompanhar a
tendência literária tanto no país quanto no mundo. O repórter precisa ter uma observação
sensível dos fatos, escrevendo um texto com qualidade.
De acordo com a concepção de Olinto (2008), um dos pontos imprescindíveis em um
repórter é o seu íntimo contato com a realidade, transmitindo-a sob a perspectiva do que viu e
sentiu, como é evidente nos textos literários.
“No ponto intermediário do trabalho, o repórter precisa de já ter adquirido sua
linguagem. Não existe, no jornalismo concebido em termos mais avançados, o estilo de um
jornal. Existe, sim, o estilo de um jornalista”. (OLINTO, 2008, p. 28)
Segundo Sodré e Ferrari (1986), o jornalista precisa conquistar o leitor de forma
sedutora, na reportagem em que são narrados os acontecimentos da atualidade. A maneira de
escrever o texto é fundamental para chamar a atenção do público e o fazer se interessar pelo
assunto descrito.
Em se tratando da relação entre o jornalismo literário e a literatura, Bastos (2005)
afirma que eles não são sinônimos. O jornalismo possui o compromisso com uma suposta
verdade, por outro lado, a literatura não possui. Ele acrescenta que o repórter deve ter a
sensibilidade para capturar as emoções e os detalhes que estão ao seu redor.
A chance que o jornalismo poderia ter para se igualar, em qualidade
narrativa, à literatura, seria aperfeiçoando meios sem porém jamais perder
sua especificidade. Isto é, teria de sofisticar seu instrumental de
expressão, de um lado, e elevar seu potencial de captação do real, de
outro. (LIMA, 2008, p. 191)
Já de acordo com Bastos (2005), o jornalista literário é capaz de estabelecer uma ponte
entre o leitor e as editoras que lançam obras. Além disso, o repórter também é responsável pelo
segmento de crítica dos suplementos literários.
No próximo item serão apresentadas as vertentes que pertencem ao jornalismo literário,
dentre elas Novo Jornalismo, romance-reportagem, ficção jornalística, biografia e gonzo,
expondo as principais características de cada vertente.
1.1.1 Vertentes
O jornalismo literário obteve diversas adaptações, bem como vertentes, das quais
podem-se destacar: New Journalism, ou Novo Jornalismo, romance-reportagem, ficção
jornalística, biografia e gonzo. Mediante tais vertentes, a que será objeto de pesquisa deste
artigo é o Novo Jornalismo.
Segundo Pena (2013), no Brasil, o jornalismo literário é classificado de diferentes
maneiras. Para alguns autores, trata-se simplesmente do período da história do jornalismo em
que os escritores assumiram as funções de editores, articulistas, cronistas e autores de folhetins,
no século XIX.
Para outros, refere-se crítica de obras literárias veiculada em jornais. á ainda os que
identificam o conceito com o movimento conhecido como New Journalism, iniciado nas
redações americanas da década de 1960. E, também, os que incluem as biografias, os romances-
reportagem e a ficção jornalística.
Conforme Pena (2013), uma das vertentes é o romance-reportagem, o qual é baseado no
aprofundamento para abordar fatos reais, utilizando, é claro, recursos literários. Vale ressaltar,
segundo o autor, que o romance-reportagem, com base na realidade, não se preocupa somente
em transmitir a informação, mas também há a responsabilidade de explicar, orientar, bem como
opinar.
O romance-reportagem é um tipo de narrativa em que não se pode inventar, deve-se
relatar os fatos como são. “Ele se concentra nos fatos e na maneira literária de apresentá-los ao
leitor. Trata-se do cruzamento da narrativa romanesca com a narrativa jornalística. O que
significa manter o foco na realidade factual, apesar das estratégias ficcionais”. (PENA, 2013,
p.19).
A ficção jornalística, outra vertente do jornalismo literário, difere-se do romance-
reportagem, pois não possui compromisso com a realidade. Conforme Pena (2013), o repórter
conhece os limites da realidade, entretanto deixa de ter o compromisso de escrever o que é real,
para ter a liberdade de escrever ficção utilizando técnicas jornalísticas. Apenas parte dos fatos
reais para que assim a história seja escrita, onde a narrativa apresentada é inventada pelo autor.
Outra vertente é o gonzo, o qual Pena (2013) o define como uma versão radical do novo
jornalismo, que se popularizou por Hunter S. Thompson, repórter da revista Rolling Stone. No
jornalismo gonzo, o personagem é o próprio repórter da matéria, que se envolve profundamente
na sua elaboração.
A biografia, de acordo com a concepção de Pena (2013), abrange literatura, história e
jornalismo. O autor afirma que ela é uma narrativa sobre um personagem, que vem sendo
escrita, em sua maioria, por jornalistas.
O relato biográfico, na maioria das vezes, tenta ordenar os
acontecimentos de uma vida de forma cronológica, na ilusão de que eles
formem uma narrativa autônoma e estável, ou seja, uma história com
princípio, meio e fim, formando um conjunto coerente. (PENA, 2013, p.
72)
A seguir, será explanado sobre o Novo Jornalismo, uma das vertentes do jornalismo
literário, o qual é evidenciado por ser objeto de estudo desta pesquisa.
1.2 Novo Jornalismo
Neste capítulo são abordados os principais aspectos que envolvem o Novo Jornalismo, o
qual pertence a uma das vertentes do jornalismo literário, sob a concepção de determinados
autores.
Pena (2013, p.52) salienta que “o termo Novo Jornalismo apareceu pela primeira vez
em 1987, mas foi usado de forma jocosa para desqualificar o britânico WTStead, editor da
PallMallGazette”.
Conforme Bulhões (2006, p. 146), "o New Journalism agitou o epicentro do jornalismo
mundial e abalou estruturas fossilizadas da textualidade jornalística".
O autor aponta que o Novo Jornalismo foi de encontro aos limites convencionais
jornalísticos, quebrando paradigmas tanto da imprensa como também da literatura. Entretanto,
ele não pode ser considerado um movimento, visto que não realizou uma manifestação ou um
programa, por representantes, mas foi uma nova prática textual que passou a estar presente em
determinados veículos nos Estados Unidos.
Pena (2013) e Wolfe (2005) afirmam que houve uma insatisfação destes profissionais
da imprensa, na década de 60, nos Estados Unidos, em relação a ter que seguir as normas de
objetividade nas matérias jornalísticas, de maneira simples.
Eles estavam indo além dos limites convencionais do jornalismo, mas não
apenas em termos de técnica. O tipo de reportagem que faziam parecia
muito mais ambicioso também para eles. Era mais intenso, mais
detalhado e sem dúvida mais exigente em termos de tempo do que
qualquer coisa que repórteres de jornais ou revistas, inclusive repórteres
investigativos, estavam acostumados a fazer. (WOLFE, 2005, p. 37)
Por outro lado, Wolfe (2005) afirma que houveram profissionais em meados dos anos
60 que não aceitavam algo que representasse o novo para o jornalismo tradicional. O autor
explica que alguns jornalistas se incomodaram com o novo estilo jornalístico, no entanto isso
representou um incômodo ainda maior para os literários.
A oposição literária, porém, era mais complexa. Olhando em retrospecto,
dá para entender que o que aconteceu foi o seguinte: a súbita chegada
desse novo estilo de jornalismo, saído do nada, provocou pânico no status
da comunidade literária. (WOLFE, 2005, p. 43)
Conforme Lima (2008), o texto literário representou uma ruptura com o padrão dos
textos dos jornais e revistas, rompendo com a tradicionalidade do jornalismo brasileiro. O autor
afirma ainda que o Novo Jornalismo foi capaz de resgatar a tradição do jornalismo literário.
Os repórteres devem seguir o caminho inverso e serem mais subjetivos.
Não precisam ter a personalidade apagada e assumir a encarnação de um
chato de pensamento prosaico e escravo do manual de redação. O texto
deve ter valor estético, valendo-se sempre de técnicas literárias. (PENA,
2013, p.54)
Pena (2013) acrescenta que no Novo Jornalismo o repórter deve passar vários dias com
o entrevistado, além de escrever na matéria pontos de vista diferentes, sempre tendo o
compromisso com a realidade.
Wolfe (2005) também define o Novo Jornalismo como não-ficção, o qual permite ao
repórter utilizar diversos recursos literários.
Era a descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar
qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo
de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro
de um espaço relativamente curto... para excitar tanto intelectual quanto
emocionalmente o leitor. (WOLFE, 2005, p. 28)
O autor acrescenta que o novo estilo jornalístico surgiu para aspirar a algo mais do que
simplesmente reproduzir os romancistas. Mas era necessário que esse novo estilo fosse criado
por meio do jornalismo, em vez do romance, conto ou poesia.
No próximo capítulo serão apontados os principais aspectos relacionados ao meio
digital, desde a origem da internet até as características da reportagem na web.
1.3 Jornalismo digital
São abordadas, neste item, as questões relacionadas ao jornalismo digital, bem como as
características da web, visto que as grandes reportagens da jornalista Eliane Brum, as quais são
analisadas neste artigo, são publicadas na internet.
Inicialmente, é importante ressaltar brevemente como surgiu a internet. Segundo Ferrari
(2010), ela surgiu em 1969, quando o Departamento de Defesa norte-americano criou a Arpanet
– uma rede nacional de computadores, em um momento em que os Estados Unidos precisavam
de meios para saber se seriam atacados por outros países. Seu foco era o serviço de informação
militar.
Em 1986, a National Science Foundation (NSF – Fundação Nacional de
Ciência) fez uma significativa contribuição para a expansão da internet,
quando desenvolveu uma rede que conectava pesquisadores de todo o
país por meio de grandes centros de informática e computadores. Foi
chamada NSFNET. (FERRARI, 2010, p. 15)
Na internet, um dos recursos que pode ser destacado é a hipertextualidade, pela qual o
leitor pode decidir quais serão os percursos da leitura, com base nos seus interesses. Canavilhas
(2007) defende que o web jornalismo está relacionado aos processos de aperfeiçoamento ao
longo de sua disseminação.
Ferrari (2010) define a hipertextualidade como um bloco composto por diversas
informações digitais que estão interconectadas, onde o leitor pode realizar uma leitura não-
linear, além de poder optar por ler o que quiser. “Na internet não nos comportamos como se
estivéssemos lendo um livro, com começo, meio e fim. Saltamos de um lugar para outro – seja
na mesma página, em páginas diferentes, línguas distintas, países distantes etc.”. (FERRARI,
2010, p.44)
Em se tratando de hipermídia, além de proporcionar ao leitor que faça leitura daquilo
que desejar, ela faz junção da hipertextualidade com os recursos multimídia (sons, imagens e
vídeos).
“Na internet, há uma gama de recursos que podem ser utilizados através de programas
de computador que, pelo uso de cores e movimentos na tela, implicariam uma espécie de
‘fascínio visual’ no texto”. (BASTOS, 2005, p. 151)
O autor afirma que os recursos multimídia devem ser explorados pelo jornalismo
literário. As imagens e ilustrações são fundamentais, cujo objetivo é de mexer com o imaginário
do leitor, enriquecendo ainda mais a reportagem.
Tornando-se um escritor enquanto lê, todo leitor web consegue
reconfigurar a informação de acordo com suas preferências e hábitos de
leitura. Na internet é possível saber onde o leitor clica, algo impensável
na mídia impressa. Resta aprofundar esse tipo de análise para descobrir o
porquê de determinado clique. Como saber se foi a foto da coluna da
esquerda que chamou mais a atenção do leitor e por isso ele mudou de
link? (FERRARI, 2010, p. 45)
Nas reportagens escritas para a web, Canavilhas (2007) afirma que uma das principais
técnicas jornalísticas utilizadas é a tradicional pirâmide invertida (lide), a qual se baseia em
escrever a matéria enfatizando primeiramente os dados mais importantes. Deve conter o lide e
posteriormente os dados complementares da notícia.
Geralmente, nas matérias veiculadas em jornais impressos, por exemplo, de acordo com
Canavilhas (2007, p. 27), “o jornalista recorre a técnicas que procuram encontrar o equilíbrio
perfeito entre o que se pretende dizer e o espaço disponível para o fazer, pelo que o recurso à
pirâmide invertida faz todo o sentido”.
Em contrapartida, no jornalismo online não há limitações quanto ao espaço dedicado
para as reportagens. Ainda segundo o autor, podem-se fazer reduções dos textos por razões
estéticas, mas não pela questão do espaço. “Em lugar de uma notícia fechada entre as quatro
margens de uma página, o jornalista pode oferecer novos horizontes imediatos de leitura através
de ligações entre pequenos textos e outros elementos multimídia organizados em camadas de
informação”. (CANAVILHAS, 2007, p. 28)
Ferrari (2010) explica que os elementos que estão presentes no jornalismo online se
diferem dos que estão contidos nos jornais impressos, por exemplo, os quais possuem apenas
textos, fotos e gráficos. Já na internet pode haver vídeos, animações e áudios. As matérias na
internet possibilitam que o leitor faça parte da cobertura jornalística. Ele pode interagir e
contribuir por meio de comentários ou e-mail.
Os leitores da web, segundo a concepção de Ferrari (2010), comportam-se de maneira
semelhante, de um modo geral. Leem a manchete e aquilo que mais o chama a atenção na
página inicial. As informações são absorvidas de modo a não haver grande comprometimento
com a realidade. A autora acrescenta que a internet ainda está em desenvolvimento e é
considerada outra mídia além do rádio, jornal e televisão.
No capítulo seguinte serão apontados os procedimentos metodológiocos que foram
utilizados no decorrer da pesquisa, bem como sua classificação, os procedimentos técnicos e a
metodologia de análise dos dados.
2. Procedimentos metodológicos
Neste item são apresentados a classificação da pesquisa, os procedimentos técnicos e a
metodologia de análise dos dados para a elaboração deste artigo.
Foram realizados determinados procedimentos de metodologia para desenvolver esta
pesquisa, a fim de fundamentar a análise das reportagens de Eliane Brum, bem como do
jornalismo literário. Toda pesquisa parte do surgimento do problema. Segundo Marconi e
Lakatos (2004, p. 76), “toda investigação nasce de algum problema teórico/prático sentido. Este
dirá o que é relevante ou irrelevante observar, os dados que devem ser selecionados”.
Não existe uma norma que irá determinar a escolha de um determinado assunto ou
problema. De acordo com Martins (2008, p. 13), “um tema será importante quando, de alguma
forma, for ligado a uma questão que polariza e afeta um segmento substancial da sociedade”.
Do ponto de vista da natureza, esta pesquisa foi classificada como básica, pois foi capaz
de trazer conhecimentos novos que podem ser utilizados no avanço da ciência.
Do ponto de vista da forma da abordagem do problema, este estudo se dá como
qualitativo. De acordo com Malhotra (2006), é importante que seja realizada a pesquisa
qualitativa para definir o problema da pesquisa. “Algumas vezes, é preciso efetuar pesquisas
qualitativas para se compreender o problema e seus fatores subjacentes”. (MALHOTRA, 2006,
p. 5)
Já conforme Marconi e Lakatos (2004), o método qualitativo se difere do quantitativo
na análise e na coleta dos dados. “Na pesquisa qualitativa, primeiramente faz-se a coleta dos
dados a fim de poder elaborar a ‘teoria base’, ou seja, o conjunto de conceitos, princípios e
significados”. (MARCONI; LAKATOS, 2004, p. 272)
Em se tratando dos objetivos, a pesquisa se classifica como exploratória, pois ela
envolve levantamento bibliográfico e a análise das reportagens da jornalista Eliane Brum,
estimulando a compreensão do estudo de caso.
Em relação aos procedimentos técnicos, esta pesquisa é bibliográfica, visto que foi
elaborada com base em livros e, também, artigos retirados da internet. Conforme Oliveira
(1997), este tipo de pesquisa tem o objetivo de conhecer as formas de contribuição científica por
meio de qualquer assunto.
É também estudo de caso, pois foram estudadas as reportagens da jornalista Eliane
Brum. “O estudo de caso refere-se ao levantamento com mais profundidade de determinado
caso ou grupo humano sob todos os seus aspectos. Entretanto, é limitado, pois restringe ao caso
que estuda, ou seja, um único caso, não podendo ser generalizado”. (MARCONI; LAKATOS,
2004, p. 274)
Gil (1991) defende que o estudo de caso se dá pelo estudo aprofundado e exaustivo de
um ou de poucos objetos, permitindo um amplo e detalhado conhecimento.
A seguir, será apresentado o perfil de Eliane Brum, como também serão analisadas duas
reportagens da jornalista, relacionando-as com as características do jornalismo literário, bem
como com o Novo Jornalismo.
3. Análise e discussão dos resultados
É apresentado neste capítulo o perfil de Eliane Brum e são analisadas as características
do jornalismo literário encontradas nas reportagens “Todo inocente é um fdp?” e “Um abraço
em Bangladesh”, de autoria da jornalista, publicadas nos sites El País e Revista Época.
3.1 Perfil
De acordo com biografia descrita no próprio site de Eliane Brum4, natural de Ijuí, a
gaúcha iniciou a carreira jornalística em 1988, no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, quando
começou como estagiária. Permaneceu como repórter durante 11 anos, trabalhando nas editorias
de Geral e Polícia. No entanto, no ano 2000 deixou o jornal para seguir novos caminhos e
4 Disponível em: <http://elianebrum.com/biografia/>. Acesso em: 14 de outubro de 2016.
encarar mais um desafio em sua vida, passando a trabalhar na Revista Época, em São Paulo, por
dez anos, escrevendo reportagens especiais.
Após um período de dez anos, a jornalista saiu do veículo e migrou para um novo ramo
do jornalismo, apesar de não ter deixado completamente a Revista Época, escrevendo, portanto,
colunas semanais para o site da revista, no período de 2009 a 2013.
Ainda segundo o site de Eliane Brum, ela atua como freelancer desde 2010. Já em
outubro de 2013 passou a escrever artigos para os jornais El País e The Guardian. Também
documentarista, Eliane dirigiu os filmes Uma história severina, em 2005, e Gretchen filme
estrada, em 2010.
Conforme entrevista ao Portal Comunique-se5, realizada pela repórter Renata Cardarelli,
em 8 de março de 2013, Eliane Brum já recebeu diversos prêmios ao longo de sua carreira e é
considerada uma das jornalistas mais premiadas do país, devido ao seu trabalho jornalístico
reconhecido nacional e internacionalmente.
A escritora, repórter e documentarista já conquistou mais de 40 prêmios, dentre eles
Esso, Jabuti (prêmio de literatura por seus livros de romance-reportagem), Vladimir Herzog,
Ayrton Senna, Líbero Badaró, Sociedade Interamericana de Imprensa e Rei de Espanha. Eliane
também já recebeu o Troféu Especial de Imprensa ONU (Organização das Nações Unidas), pelo
que fez em prol da Justiça e Democracia. Também recebeu o prêmio Troféu Mulher Imprensa,
por três vezes.
Além disso, segundo entrevista ao Portal Comunique-se, Eliane conquistou o Prêmio
Cooperifa, o qual tem o objetivo de premiar pessoas que direta ou indiretamente ajudam a
promover, fortalecer e divulgar o projeto de criar uma nova periferia, sendo este um dos
movimentos culturais mais importantes da atualidade. A jornalista recebeu este prêmio três
vezes.
Eliane Brum sempre escreveu grandes reportagens e se destacou no jornalismo literário,
tanto no jornal impresso quanto na revista, e passou a escrever colunas para o público da
internet. No entanto, como será analisado posteriormente por meio de suas reportagens, não
mudou suas características e técnicas de reportagem, continuando a escrever sobre assuntos de
interesse à sociedade e, com o olhar apurado, enxergando por meio de diferentes ângulos.
Ela vai de encontro à grande parte dos textos jornalísticos escritos na internet, que
geralmente são enxutos, enquanto os seus são longos. Segundo ela (2013):
É um grande equívoco acreditar que a internet só foi feita para notícias
curtas. A suposição de que o leitor não gosta ou não tem tempo para ler
5 Disponível em:< http://portal.comunique-se.com.br/index.php/entrevistas-e-especiais/71194-eliane-
brum-o-bom-jornalismo-se-aplica-a-tudo-o-que-e-da-vida>. Acesso em: 14 de outubro de 2016.
textos longos é um outro equívoco que a internet ajudou a desfazer.
Grandes reportagens têm sido publicadas na internet.
A jornalista afirma que têm sido publicadas na web grandes reportagens, uma vez que
seus textos são longos e também possuem links, os quais permitem ao leitor navegar em outros
sites para se inteirar ainda mais sobre o assunto abordado.
De acordo com entrevista realizada pelo repórter Luiz Henrique Gurgel, em dezembro
de 2013, para o site Escrevendo o futuro6, Eliane ressalta que a principal característica que um
repórter deve ter é saber escutar. "Reportagem sempre começa pelo espanto, pela coragem de se
perder e de se movimentar pelas dúvidas. É um processo de ficar quebrando as tuas certezas, por
isso a posição do repórter é de imensa fragilidade". (BRUM, 2013, s/p)
A reportagem, segundo Eliane, continua muito viva e importante, apesar do crescimento
das redes sociais. Isso possibilitou que as pessoas tivessem ainda mais acesso à informação, por
isso a importância de se fazer reportagens bem elaboradas e aprofundadas, com textos de
qualidade.
Ainda conforme entrevista ao o repórter Gurgel, a jornalista acredita que o jornalismo
literário não transcreve apenas palavras nas reportagens, mas também é capaz de transmitir
sentimentos, silêncios e gestos, e a matéria do novo jornalismo é escrever sobre a realidade.
Vale lembrar que, conforme Pena (2013), o Novo Jornalismo possui compromisso com a
realidade, além de relatar na matéria pontos de vista diferentes.
Ao longo de sua carreira, escreveu seis livros: Coluna Prestes – o avesso da lenda; A
vida que ninguém vê; O olho da rua; Uma duas; A menina quebrada e Meus desacontecimentos.
Vale destacar também sua participação no livro Dignidade, que reuniu nove escritores de
diferentes países.
No próximo item serão analisadas as reportagens “Todo inocente é um fdp?”, veiculada
em 29 de fevereiro de 2016, para o site El País, e “Um abraço em Bangladesh”, publicada em 13
de maio de 2013, para o site Revista Época.
3.2 Reportagens
A partir de agora serão analisadas duas reportagens de Eliane Brum. Uma, intitulada
“Todo inocente é um fdp?”, publicada no site El País, e a outra, “Um abraço em Bangladesh”,
no site da Revista Época. Veiculadas em períodos distintos, a primeira em fevereiro deste ano e
a segunda em maio de 2013, ambas, entretanto, possuem as mesmas características literárias,
6 Disponível em: <https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/nossas-
publicacoes/revista/entrevistas/artigo/209/entrevista-eliane-brum>. Acesso em: 5 de outubro de 2016.
mais precisamente relacionadas à estrela de sete pontas e às características das abordagens
inerentes ao Novo Jornalismo. (PENA, 2013)
3.2.1 Todo inocente é um fdp?
Nos textos que escreve em sua coluna quinzenal no site El País, é possível atentar para
algumas características. Em sua maioria, as reportagens estão relacionadas a questões políticas,
econômicas e sociais. Eliane fala sobre assuntos que muitas vezes não são notados ou não têm
voz na sociedade.
Em um de seus textos, intitulado “Todo inocente é um fdp?”, a reportagem começa da
seguinte forma:
Lembro uma cena do primeiro filme da trilogia Matrix, ícone do final do
século 20. Os membros da resistência eram aqueles que, em algum
momento, enxergaram que a vida cotidiana era só uma trama, um
programa de computador, uma ilusão. A realidade era um deserto em que
os rebeldes lutavam contra “as máquinas” num mundo sem beleza ou
gosto. Fazia-se ali uma escolha: tomar a pílula azul ou a vermelha. Quem
escolhesse a vermelha, deixaria de acreditar no mundo como nos é dado
para ver e passaria a ser confrontado com a verdade da condição humana.
(BRUM, 2016, s/p)
Neste exemplo, Eliane utiliza a terceira característica da estrela de sete pontas, que,
segundo Pena (2013), é quando o repórter proporciona uma visão mais ampla dos fatos,
contextualizando as informações, como contextualizou com a trilogia Matrix do final do século
20, trazendo posteriormente para os dias de hoje.
Também se pode observar que neste trecho ela utiliza a quinta ponta da estrela, pois
conforme Pena (2013), trata-se de ir além do simples lide (quem, o que, como, onde, quando e
por quê). É preciso utilizar técnicas literárias, de forma criativa, como fez iniciando o texto
citando a trilogia Matrix e comparando à nossa realidade.
Ela faz ainda duras críticas ao fato de as pessoas se alimentarem de carne, sabendo que
muitos animais são sacrificados em holocaustos criados por elas mesmas, fazendo, ainda, uma
analogia à trilogia dos filmes Matrix. Ela afirma que as pessoas são nazistas de outras espécies e
que produzem holocaustos cotidianos.
Eliane ainda acrescenta que já não é mais possível que a sociedade não veja tudo isso,
desde o leite que é tirado da vaca até mesmo as carnes de hambúrguer de soja. Mas que nem
mesmo os veganos poderiam escapar da responsabilidade. Conforme escreve no trecho:
Mas como ignorar o desmatamento, a destruição de ecossistemas inteiros
e com eles toda a vida que lá havia? Como ignorar que a soja pode ter
sido plantada em terra indígena e que, enquanto ela vira mercadoria no
supermercado, jovens Guarani Kaiowá se enforcam porque já não sabem
como viver? Já não é possível fingir que não enxergamos isso. Assim,
nem os veganos mais radicais podem se salvar do pecado original.
(BRUM, 2016, s/p)
A jornalista faz uma análise muito profunda a respeito deste assunto, repleta de
reflexões, opinião e analogias. Aprofunda-se ainda mais, traçando um paralelo sobre a
globalização e a forma pela qual a sociedade está cada vez mais inserida nela. Segundo ela
(2016): “Olhamos para nossas roupas e horrorizados sabemos que em algum lugar da linha
globalizada de produção há nelas o sangue de crianças, homens e mulheres em regime de
trabalho análogo escravidão”.
Ao fazer tais análises e críticas na reportagem, é possível relacionar o texto à quarta
característica da estrela de sete pontas, pois de acordo com Pena (2013) há o compromisso com
a sociedade, sendo que as matérias podem contribuir para com a transformação dela.
Seguindo essa linha, Eliane faz reflexões sobre a indústria têxtil, onde paralelamente
muitos estão consumindo roupas que foram costuradas com carne humana e por pessoas que
estão sendo escravizadas em uma longa jornada de trabalho, como fala no trecho:
“E já não sabem como vesti-las. Nem sabem como dar brinquedos para seus filhos
porque sabem que os bonecos, os carrinhos, os castelos e os dinossauros contêm neles o sangue
das crianças sem infância, ou o de suas mães e pais”.
Segundo Olinto (2008), um dos pontos imprescindíveis em um repórter é o seu íntimo
contato com a realidade, quando a transmite sob a perspectiva daquilo que viu e sentiu, como é
evidente no texto de Eliane Brum.
É possível observar esta característica presente em um dos trechos em que ela relembra
uma reportagem que fez em um zoológico. Ao contrário do que poderia se esperar de uma
matéria típica, divertida, em um local como este, a jornalista acabou trazendo uma visão
diferente:
[...] só pude contar, entre outros horrores, que o babuíno chamado Beto
era mantido à custa de Valium, para evitar que arrancasse pedaços do
próprio corpo. Mesmo dopado jogava-se contra as grades, atirava fezes
nos visitantes e espancava a companheira. Pinky, a elefanta, vivia só.
Seus dois companheiros tinham morrido ao cair no fosso tentando escapar
do cativeiro. (BRUM, 2016, s/p)
Mediante este trecho, pode-se ressaltar que Eliane utiliza novamente a quarta
característica da estrela de sete pontas, ou seja, evidencia o compromisso com a cidadania.
Em suma, Eliane cita ao longo da reportagem diversos exemplos que caracterizam a
responsabilidade que nós temos ao tomar qualquer atitude, mesmo que pareça banal. Cada um
de nossos atos implica uma escolha ética ou política. Desde o que comemos até os transportes
que utilizamos, segundo ela, à custa da escravidão.
A vaca que quase não se move, cuja existência consiste numa longa série
de estupros por instrumentos que se enfiam pelo seu corpo para fecundá-
la com o sêmen de outro escravo. Então ela engravida e engravida e
engravida de bezerros que dela serão sequestrados para virar filés, para
que suas tetas sigam dando leite delas tirados por outras máquinas. E,
como sabemos disso, o leite que chega à nossa mesa já não pode mais ser
branco, mas vermelho do horror da vaca cujo corpo virou um objeto, a
vaca para quem cada dia é tortura, estupro e escravidão. (BRUM, 2016,
s/p)
Ela salienta no texto que já não é mais possível aderirmos às ilusões, fazendo um
questionamento ao leitor: “Quem é o inocente num mundo em que a inocência já não é
possível?”. Em seguida, indaga sobre o que nós seremos, subjetivamente, se estamos
condenados a enxergar a realidade diante de nós.
No exemplo, pode-se ressaltar uma das características presentes no Novo Jornalismo,
uma das vertentes do jornalismo literário. Segundo Pena (2013), no Novo Jornalismo o repórter
segue um caminho mais subjetivo, escrevendo um texto com valor estético e utilizando recursos
literários.
Wolfe (2005) afirma que no Novo Jornalismo o repórter pode utilizar qualquer recurso
literário, e é capaz de excitar tanto o intelectual quanto o emocional do leitor. É possível, então,
encontrar tais características citadas pelo autor no seguinte trecho de Eliane:
O tempo das ilusões acabou. Nenhum ato do nosso cotidiano é inocente.
Ao pedir um café e um pão com manteiga na padaria, nos implicamos
numa cadeia de horrores causados a animais e a humanos envolvidos na
produção. Cada ato banal implica uma escolha ética – e também uma
escolha política. (BRUM, 2016, s/p)
Quase no final do texto, Eliane menciona um fato que ocorreu dez dias antes de sua
reportagem ter sido publicada. O trecho a seguir pode ser relacionado à segunda característica
da estrela de sete pontas, que conforme Pena (2013) seria ultrapassar os limites dos
acontecimentos diários e ir além da periodicidade e atualidade:
Numa praia da Argentina, um golfinho foi carregado por turistas. Alguns
dizem que ainda estava vivo, outros que já estava morto. Vivo ou morto,
os turistas preocuparam-se apenas com tirar selfies para postar nas redes
sociais. O site de humor Sensacionalista postou: “Golfinho morre ao ser
retirado do mar para turistas fazerem selfie e Deus anuncia recall do ser
humano”. (BRUM, 2016, s/p)
Ela cita no texto o que ocorreu com o golfinho, o qual morreu ao ser retirado do mar por
turistas, e utiliza a imagem deste fato em sua reportagem, dando ênfase à crítica de que os seres
humanos devem se responsabilizar por viverem no senso comum:
Como ser ético num mundo sem ilusões, em que cada ato implica na
tortura e no sacrifício de um outro, humano e não humano? Se somos os
nazistas das outras espécies, quando não da mesma, aceitar que assim é
não seria se tornar um Eichmann, o nazista julgado em Jerusalém que
alegou apenas cumprir ordens, o homem tão banalmente ordinário que
inspirou a filósofa annah Arendt a criar o conceito da “banalidade do
mal”? Não seríamos, aos olhos do boi, todos Eichmann, justificando-nos
pelo senso comum de que assim é e se faz o que é preciso para
sobreviver? Se sim, o que implica viver assumidamente nesta pele?
(BRUM, 2016, s/p)
Um ponto a ser destacado é a presença de links ao longo do texto, que permitem ao
leitor acessar outras plataformas relacionadas ao assunto que está sendo abordado. Com isso, o
leitor pode se aprofundar ainda mais sobre a reportagem e, também, conhecer as fontes que
foram utilizadas para a elaboração do texto.
Conforme Canavilhas (2007), o web jornalismo está relacionado aos processos de
aperfeiçoamento ao longo de sua disseminação. Por meio da hipertextualidade, recurso evidente
nas reportagens de Eliane, devido aos links presentes no texto, o leitor pode decidir quais serão
os percursos da leitura, baseando-se nos seus interesses.
Ao longo desta reportagem, pode-se clicar em links que dão acesso a outras matérias
escritas pela jornalista e sites relacionados ao tema sobre o qual está falando. Eles aparecem em
grande parte dos parágrafos.
No próximo item, será analisada a reportagem “Um abraço em Bangladesh”, publicada
por Eliane Brum para o site Revista Época, em 2013, onde serão abordadas as características da
estrela de sete pontas e do Novo Jornalismo, presentes no texto.
3.2.2 Um abraço em Bangladesh
A reportagem intitulada “Um abraço em Bangladesh”, foi publicada no site da Revista
Época no período em que Eliane ainda trabalhava no veículo escrevendo sua coluna semanal.
Nela, Eliane Brum utiliza técnicas do jornalismo literário e detalha minuciosamente como
aconteceu o desabamento de um prédio onde funcionava uma fábrica têxtil.
Em se tratando de globalização, vale ressaltar o desabamento do prédio de uma indústria
têxtil em Bangladesh, em 2013, onde morreram cerca de 800 pessoas. Em meio a este fato, uma
fotografia foi capaz de chocar o mundo inteiro na época, em que um homem e uma mulher, em
meio aos escombros, morreram abraçados.
Ela narra, inclusive, o relato da fotógrafa que registrou a foto, Taslima Akhter. Mais do
que isso, Eliane faz o leitor refletir que esse casal, assim como a tragédia que aconteceu em
Bangladesh, está muito próximo de cada um de nós.
É possível que, no momento em que somos alcançados por esse abraço
final, alguns estejam vestindo uma roupa feita por este homem, esta
mulher ou por algum dos mais de mil mortos do desabamento, um
número que não para de crescer. Ou enfiados numa camiseta, num jeans,
num vestido, saia ou blusa feita por alguns dos milhões de bengaleses, a
maioria mulheres, que, neste exato instante, cortam e costuram, em
prédios insalubres, em jornadas extenuantes, em regime semelhante ao de
escravidão, as peças que serão vendidas pelas grandes marcas ocidentais,
em vitrines brilhantes e assépticas – as peças que serão compradas
também por nós. (BRUM, 2013, s/p)
Na reportagem, ela traça um paralelo sobre como nós também temos uma parcela de
culpa. Afirma que os responsáveis não são somente aqueles que os policiais prenderam, mas
todos os que estão envolvidos neste mundo globalizado. Em um trecho, ela diz:
O problema, no mundo globalizado, é que, se seguimos a cadeia de
produção e de responsabilidades, ela chega a nós. É indecente quando os
líderes das grandes grifes ocidentais se mostram escandalizados com a
tragédia, sugerindo que não sabiam que era assim que viviam os
trabalhadores na ponta do processo produtivo. (BRUM, 2013, s/p)
Uma das características do Novo Jornalismo, que pode ser encontrada nesta reportagem,
segundo Pena (2013), é em relação à subjetividade do repórter, como é evidente no trecho
citado acima. É importante ressaltar que Eliane faz isso quando se posiciona no texto.
“Os repórteres devem seguir o caminho inverso e serem mais subjetivos. Não precisam
ter a personalidade apagada e assumir a encarnação de um chato de pensamento prosaico e
escravo do manual de redação.” (PENA, 2013, p. 54)
O quinto item da estrela de sete pontas, conforme Pena (2013), ocorre quando o repórter
rompe os limites burocráticos do lide. Ele utiliza no texto técnicas literárias e de forma criativa.
Não se limita apenas às perguntas quem, o que, como, quando, onde e por quê. Esta
característica é encontrada ao longo da reportagem, que começa da seguinte forma:
Uma mulher chamada Taslima Akhter esgueirava-se pelos escombros da
fábrica de roupas que desabou em Bangladesh, em 24 de abril, quando os
viu. Como descrever o que ela, fotógrafa e ativista bengalesa, viu?
Taslima registrou, fez uma fotografia que girou o mundo nos últimos dias
e se tornou o símbolo do que não pode ser esquecido. E talvez o que se
possa dizer é que o que ela viu nos obriga a ver. Ver mesmo. (BRUM,
2013, s/p)
Eliane publicou a reportagem em 13 de maio de 2013, mas a tragédia que aconteceu na
fábrica na qual o casal foi fotografado ocorreu em 24 de abril. Isso evidencia que foi preciso
utilizar a segunda característica da estrela de sete pontas, que de acordo com Pena (2013) é
quando o repórter ultrapassa os limites dos acontecimentos diários e é capaz de ir além da
periodicidade e da atualidade.
No texto também há a presença da primeira ponta da estrela, que, segundo Pena (2013),
potencializa os recursos do jornalismo e o repórter desenvolve suas técnicas de narrativa e
observação, como se pode observar no trecho:
Só a poesia alcança a profundidade da vida impressa na morte. O abraço
final em uma fábrica de escravos de Bangladesh me lembrou do sertão
severino de João Cabral de Melo Neto. Tão longe, tão perto. As vidas
baratas são sempre as mesmas vidas, em qualquer geografia, em qualquer
tempo. Aquela fábrica sepultou-os em um útero-túmulo. E lá estão os
costureiros de nossas roupas vestidos em seu derradeiro traje de terra, o
único que lhes coube. (BRUM, 2013, s/p)
Ter o compromisso com a sociedade e contribuir para com a sua formação, conforme
Pena (2013), fazem parte da quarta característica da estrela de sete pontas. Eliane dialoga com o
leitor, fazendo-o refletir e ao mesmo tempo enxergar os fatos de diferentes maneiras, sob outra
visão. A quarta ponta da estrela é ainda encontrada em alguns trechos ao longo do texto, como
no exemplo:
O abraço final, documentado por Taslima Akhter, nos obriga a enxergar
para além dos corpos – e também para além do espetáculo. Não é matéria
o que está ali, é o que não está que nos alcança e arrebata antes que
possamos escapar. É vida que se imortaliza na morte. Como ela diz, quase
podemos escutar as vozes e ouvir os sonhos daqueles dois. Não sabemos
(pelo menos não ainda) quem são, mas sabemos que são. Que foram. Não
sabemos se eram amantes ou irmãos. Ou apenas colegas de trabalho,
companheiros de escravidão. (BRUM, 2013, s/p)
Em meio a tantas questões que ainda são silenciadas na sociedade, a jornalista
fundamenta que é preciso enxergar sob perspectivas diferentes: “Olhar para ver é uma escolha.
Sempre mais difícil, a única digna”. (BRUM, 2013)
Outro ponto a ser destacado em “Um abraço em Bangladesh” é a hipertextualidade, um
dos recursos utilizados na internet. Na reportagem, há diversos links, onde o leitor pode se
deslocar e ler informações que não estão descritas no texto, que estão em outros sites. Ferrari
(2010) define a hipertextualidade como uma espécie de conjunto de informações digitais que
estão interconectadas e que possibilitam ao leitor optar por ler o que quiser.
No capítulo a seguir, serão retomados os objetivos da pesquisa, discutidos e
relacionados à análise dos resultados.
4. Considerações finais
Este estudo teve como objetivo geral analisar as características do jornalismo literário
presentes nas grandes reportagens escritas pela jornalista Eliane Brum. No decorrer deste artigo,
foram apresentados os seguintes objetivos específicos: abordar as características e técnicas da
grande reportagem na web; enfocar o jornalismo literário; apresentar a estrela de sete pontas, a
qual é um conjunto de características do jornalismo literário (PENA, 2013); abordar o Novo
Jornalismo, bem como as características do jornalismo digital e duas reportagens da jornalista
Eliane Brum, veiculadas nos sites El País e Revista Época. São elas: "Todo inocente é um fdp?"
e "Um abraço em Bangladesh".
Diante de tais objetivos, constata-se que todos eles foram cumpridos ao longo desta
pesquisa. Foi possível confirmar nas reportagens de Eliane Brum as características do
jornalismo literário, presentes na estrela de sete pontas.
Além disso, as características do Novo Jornalismo ficaram evidentes nas duas
reportagens analisadas. Apesar de obter todos estes recursos literários, vale ressaltar que os
textos da jornalista possuem o objetivo de informar e mantêm o compromisso com a verdade e
com a sociedade.
Ao analisar as reportagens de Eliane, pode-se observar também que ela utiliza a
subjetividade, textos aprofundados, detalhados e que propõem ao leitor uma reflexão sobre o
tema abordado.
Portanto, o que difere o jornalismo literário e o Novo Jornalismo, presentes nas
reportagens de Eliane Brum, do tradicional, é a narrativa e a subjetividade aparnte do Novo
Jornalismo. Nesse sentido, nas reportagens da jornalista foram encontrados aspectos como:
proporcionar uma visão mais ampla dos fatos, contextualizando as informações; romper os
limites burocráticos do lide; subjetividade, quando se posiciona na reportagem; compromisso
com a sociedade, contribuindo para com a transformação dela; o rompimento dos limites dos
acontecimentos diários, indo além da periodicidade e atualidade e potencializar os recursos do
jornalismo, desenvolvendo suas técnicas de narrativa e observação.
Embora suas reportagens apresentem todas estas características, elas permanecem,
independentemente se são publicadas no meio impresso ou no digital. Nesta pesquisa, foram
analisadas as reportagens encontradas na web, e pode-se constatar que elas não perdem as
características literárias. E também mantêm o compromisso do jornalismo, que é o de levar
informação à sociedade.
Propõe-se, como sugestão de pesquisa para estudo futuro, a realização de um artigo
focado nos leitores da web. O objetivo seria verificar a percepção em relação ao texto, e se há
interesse em textos com características do jornalismo literário.
Referências
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