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  • 7/29/2019 Jessica Correia Artigo

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    FAUP | 2012/2013

    Architectural toys - Processos complementares de reproduo disciplinar em Arquitectura

    ESPACO ESCURO

    Jessica Correia

    Palavras chave : pessoas cegas, aprendizagem, espao, sentidos

    A privao da vista leva, de maneira automatica e instinctiva, a umdesenvolvimento dos outros sentidos, ou seja a audio, o tacto, o olfato e ogosto. O espao ento vivido de uma forma diferente.

    Quando a vista no faz sentido

    A perca da vista definida como a perca essencial de uma fonte deinformaes, levando a perca de algums processos cognitivos. Assim, chama-secompensaa o desenvolvimento sensorial dos outros sentidos, que permitemultrapassar essa privao.

    Para as pessoas cegas desde o nascimento, essa compensao geralmenteimediata e instinctiva. Para as pessoas que perderam a vista, mais do que umacompensao, uma re-educao deve ser feita.

    Efetivamente, a vista um dos sentidos mais privilegiados que nos temos, e aprivao dele leva a uma forte e complicada deficincia. E preciso aprenderde novo a utilizar os outros sentidos, as vezes subutilizados.

    De maneira instinctiva, parece justo perceber o tacto como o sentido maispertinente na compensao da vista. A frase Tocar com os olhos responde afrase Ver com as mos . Assim se percebe a relao ambiguda entre essesdois sentidos. dificil poder imaginar o desenvolvimento do tacto sem a vista eda vista sem o tacto. Esses sentidos oferecem informaes complementares,uteis e necessarias a compreenso de um espao, de um objecto...

    A vista oferece uma descrio precisa, justa e consistente de um espao, desdeque a vista na mente sobre uma realidade existente. A percepo permite acompreenso do espao, de maneira directa (com as cores, por exemplo) e de oapreender (com a percepo das dimenses, das cotas, por exemplo).

    O tacto ele, um sentido mais abstrato. Efetivamente, a apreenso de umespao ou objecto mais complexa. Assim, preciso perceber tocando,palpando formas, superficies...Essa percepo mais incompleta se no relacionada com a percepo visual. O tacto revele-se como um complementode informaes.

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    Mas o tacto tambem oferece qualidades no despreziveis, que a vista no sepode apropriar, ou seja a sensibilidade tactil que nos oferece as nossas mos oua nossa pele.

    Alguns materiais so reconheciveis a vista, pelos aspectos particulares (aspero,

    liso, poroso...). Mas essa percepa imprecica. Nessa situaa, o tacto revele-se como mais importante : a sensibilidade tactil permite uma descrio precisa eexacta do material. Pode-se reconhecer um material tocando no, sem o ver.

    Guy de Maupassant (1850-1893), famoso autor francs, avalia em Lettre d'unfou [Fig.1] a falta de um homem privado de um sentido, e a possibilidadebenfica de uma orgo suplementar : Se nos tivessemos ums orgos a menos,nos ignorariamos coisas admiraveis e singulares, mas se nos tivessemos orgos

    a mais, nos poderiamos descobrir a nosse volta uma infinidade de outras coisas

    que nunca nos vamos a aperceber agora. Assim, nos nos inganamos ao julgar o

    conhecido, e sendo rodiado de desconhecido inexplorado.

    Assim, o autor evoca a falta ou a adio de um sentido como uma ignornciaque nunca sera explorada. Ento torna-se interessante perceber nossa ignornciados sentidos que nos possuimos.

    Sentidos, sentimentos e arquitectura

    Para perceber a importancia dos sentidos na arquitectura, preciso perceber a

    sensibilidade que influncia o espao arquitectonico nas pessoas cegas. Aarquitectura no so vista, mas vivida plenamente : os soms, os cheiros, osmateriais, as temperaturas...cada composio permite uma compreensosensivel do espao. Ela impe a sensibilidade do corpo, dos sentidos, dosmovimentos, permitindo uma explorao sensorial.

    Como dito no inicio, as pessoas cegas desenvolvem uma forma mais complexada utilizao dos sentidos, excepto a vista. A pessoa cega um sujeito activoque utiliza as percepes sensoriais para perceber o espao. importanteentender que os sentidos so utilizados de forma alternada, inteligente,relevante, permitindo a realizao de etapas para a compreenso do espao. Ocorpo revela-se como um objecto, instrumento de explorao, descoberta, que

    permite interaes com o espao envolvente.

    Para Moholy-Nagy, fotografo hngaro [Fig.2], mais do que arquitectura, oespao uma realidade experimentada pelos nossos sentidos. Ele a relaoentre o corpo, os sentimentos, os movimentos...A arquitectura passa a ser, paraas pessoas cegas, a creao de uma ligao forte entre o corpo e o espao. Asqualidades sensoriais e a sensibilidade emocional levam a sentir, ver eperceber o espao.

    1. Lettre dun fou,Guy de Maupassant (1993)

    2. Can art reflect life by purifying itself ?,Moholy-Nagy

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    O arquitecto Peter Zumthor (1943) define ele o espao como uma sensao depresena, uma harmonia, uma beleza. Ao ler o livro Atmosferas, PeterZumthor abre a janela da sua inspirao, permitindo descobrir uma formadiferente de perceber o espao. Sentir, tocar, cheirar, perceber, lembrar.Podemos ento assim perceber que o entendimento do espao arquitectonicono unicamente visual. Existe uma ligao direta entre os sentidos, a memoria,o corpo e o espao, ligao essencial que preciso criar e trabalhar.

    As pessoas cegas esto ento sujeitas a um trabalho mais aprofundido derelacionamento entre os sentimentos, as emoes e o espao. Esse trabalhoprecisa de ser iniciado o mais cedo possivel, permitindo um aprofundimentocada vez mais interessante e pertinente.

    A criana cega deve receber uma educao que lhe permite adaptar-se aoambiente que a rodeia, percebendo a importncia da interao dos seus

    diferentes sentidos. Esse processo de aprendizagem , ao principio, lento, sendogradual e evolutivo : as crianas cegas necessitam de mais tempo,desenvolvendo pouco a pouco as suas competncias de entendimento. Aaprendizagem faz-se com a assimilao pelos sentidos que esto preservados. Amaior parte dos conceitos so formados ao sentir, ouvir, cheirar, tocar, tentandotornar a criana independante da sua cegueira.

    Assim, necessario perceber a importncia da experincia, tornando-se umeforma de acumulao de informaes diferentes e variaveis, que enrequecem apessoa cega (sons, cheiros, materiais...). O desenvolvimento assim baseadoem referncias transmitidas pelos sentidos. Alm de permitir entender o espaocomo tal, a estimulao e a interao dos sentidos leva a criana cega a elaboraruma vontade de descoberta, e de movimento, impedindo a recluso social epsicologica num mundo onde ela no v. A pessoa cega no impossibilitadade desenvolver plenamente, apenas tem de o fazer de uma forma diferente,baseando-se na subtituio inteligente da vista.

    No processo de aprendizagem existe um privilgio dos sentidos : o tacto e aaudio sero os mais desenvolvidos no entendimento do espao. De facto, elesso diretamente ligados e associados a visualizao arquitectonica.

    Logicamente, o tacto passa a ser a principal forma de de aquisio deinformaes referidas ao espao no qual se encontra a pessoa cega. A utilizaodo tacto deve tornar-se instictiva. As mos so os olhos da pessoa cega,permitindo lhe distinguir as formas, as texturas, os materiais...O tacto oprincipal substituto da viso. ento bom perceber a importncia daexperincia e da descoberta para a pessoa cega : A multiplicao dos objectos,das texturas, das formas, permitem um enrequecimento tactil que seradesenvolvido e utilizado no entendimento espacial.

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    As representaes visuais devem ser convertidas em informaes tacteis, demaneira gradual e evolutiva : A pessoa cega aprende assim a tocar, explorar,utilizando as mos como olhos. Efectua-se um desenvolvimento progressivo da

    coordenao manual e da mobilidade dos dedos. No entanto, importanteperceber que o toque no pode ser a unica fonte de informaes para a pessoacega : mais uma vez, a interao com os outros sentidos necessaria.

    A audio permite um entendimento tridimensional, levando a pessoa aperceber a ideia de volume, de espao. Os sons que as rodeiam tm umaimportncia grande : no podendo ver, as pessoas cegas desenvolvemrapidamente uma forma de ouvir muito mais precisa do que as outras pessoas. Oestimulo auditivo importante e cria uma certa confiana e segurana da pessoano espao que a rodeia.

    Ao desenvolver a audio, ela entra numa apredizagem de sons, barulhos que arodeiam. A pessoa cega desenvolve um estimulo auditivo fino que lhe permitereconhecer barulhos, sons. Esse reconhecimento leva a um sentimento desegurana e de confiana muito importante no desenvolvimento e nomovimento.

    Para uma pessoa sem deficincia visual, sempre complicado poder imaginarque possivel sentir um espao com o tacto e a audio. A vista revela-se

    como um dos sentidos fortes no entendimento espacial e a sua falta torna oprocesso muito mais complexo.

    No entanto, alm da apredizagem geral das pessoas cegas, uns nomes sedestacam, exemplos do que a vista no obrigatoriamente necessaria para poderperceber o espao.

    Espao cego

    Osam fechar os olhos mais vezes para ver melhor

    Esta frase do arquitecto e designer Eric Brun [Fig.3]. Alm do seu trabalhoconhecido num mundo da arquitectura de interior nos Estados Unidos, EricBrun sempre lembrado pelo facto de ele ser cego. De facto, o virus HIVatacou-lhe a retina, levando o numa cegueira total.

    No entanto, a deficincia visual no lhe impediu continuar o seu trabalho. Numaentrevista para o jornal francs Libration, o arquitecto explica como sente epercebe o espao.

    O arquitecto utiliza o corpo e os sentidos para trabalhar. Para perceber o espao

    de maneira critica e certa, Erci Brun mexe, toque, sente. A memoria faz o resto,repertoriando as informaes que cada sentido lhe possa dar sobre o espao : as3. Eric Brun, arquitecto cego

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    texturas, as paredes, as molduras,os objectos...o arquitecto define ento arelao entre o trabalho e a cegueira como um jogo de enigmas . Alm dotacto, Eric Brun estabelece uma interao sensivel da sua pele com o espao,interao que pode no ser imediata nas pessoas que vm o espao. Assim, oarquitecto tenta perceber a luz, o sol, as aberturas, a sua pele sendo sensivel aominimo raio de sol ou a frescura do espao.

    Percebemos assim que a cegueira leva a uma compreenso diferente doespao, sem tornar a pessoa dependante dessa deficincia. A falta da vistadeve levar rapidamente a uma aprendizagem diferente envolvendo ossentidos e as emoes. No apenas sentir, tocar, mexer, mas precisoperceber, com sensibilidade e emoo, dando ao espao uma formacompletamente diferente daquela que possa ser vivida pela uma pessoaque v. Fecham os olhos e iro perceber...

    Bibliografia :

    ZUMTHOR Peter,Atmosferas, Birkhauser, 2008

    DUARTE PEREIRA Maria Leonor,Design InclusivoUm estudo de Caso : Tocar para ver,

    Tese de mestrado, Universidade do Minho

    RICHARD Emmanuelle, Un certain regard, Libration, 7 Janeiro 2006

    THOMAS Rachel, Cheminer l'espace en aveugle, Alina 9, 1999

    Origem das imagens:

    1. MAUPASSANT Guy,Lettre dun fou, Le Castor Astral, 19932. MOHOLY-NAGYS Laszlo, Can art reflect life by purifying itself ,

    http://designblog.rietveldacademie.nl/

    3. BRUN Eric,Eric Brun, un entrepreneur de bonne intention, 2011http://www.bonneintention.com/eric-brun-sanglard-un-entrepreneur-de-bonne-

    intention/

    http://designblog.rietveldacademie.nl/http://www.bonneintention.com/eric-brun-sanglard-un-entrepreneur-de-bonne-intention/http://www.bonneintention.com/eric-brun-sanglard-un-entrepreneur-de-bonne-intention/http://www.bonneintention.com/eric-brun-sanglard-un-entrepreneur-de-bonne-intention/http://www.bonneintention.com/eric-brun-sanglard-un-entrepreneur-de-bonne-intention/http://designblog.rietveldacademie.nl/