idaf 1974 terror em tete - apendice i

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7w,- . !W· I lt, w li APENDICES Os documentos que se seguem foram compostos em alturas diferentes, alguns em graus variados de pressa. Foram posteriormente traduzidos em diferentes línguas. Uma grana variável de nomes é também inevitável no contexto de uma população Hetrada. Como resultado, os textos contêm desalinhos de linguagem e variações tex- tuais de pouca importância. Apresentamo-los tal como se encontram, no interesse da autenticidade; os factos, tanto em pormenores como no geral, não são afectados. APÊNDICE I EXTRAC'l'O DE CAMPOS DE INTERNAMENTO (ALDEAMENTOS) DO P.• LUíS AFONSO DA COSTA Em Março de 1970, o Ministro do Ultramar, J. M. da Silva Cunha, disse ao Governador de Moçambique, Eng. Eduardo Arantes de Oliveira, quando ele se pre- parava para tomar posse do lugar: <<. •• Você terá que exigir com intransigência que os direitos fundamentais da pessoa humana sejam respeitados ... >> Tenho que perguntar a ambos o que entendem por essas palavras «direitos fundamentais da pessoa humana>>. Se eles têm em mente os direitos expressos na Carta das Nações Unidas, que Portugal também assinou, tenho que informar as pessoas de que nos encontramos perante uma violação gritante de todos esses direitos. Os únicos di- 75

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APENDICES

Os documentos que se seguem foram compostos em alturas diferentes, alguns em graus variados de pressa. Foram posteriormente traduzidos em diferentes línguas. Uma grana variável de nomes é também inevitável no contexto de uma população Hetrada. Como resultado, os textos contêm desalinhos de linguagem e variações tex­tuais de pouca importância. Apresentamo-los tal como se encontram, no interesse da autenticidade; os factos, tanto em pormenores como no geral, não são afectados.

APÊNDICE I

EXTRAC'l'O DE CAMPOS DE INTERNAMENTO (ALDEAMENTOS) DO P.• LUíS AFONSO DA COSTA

Em Março de 1970, o Ministro do Ultramar, J. M. da Silva Cunha, disse ao Governador de Moçambique, Eng. Eduardo Arantes de Oliveira, quando ele se pre­parava para tomar posse do lugar: <<. •• Você terá que exigir com intransigência que os direitos fundamentais da pessoa humana sejam respeitados ... >>

Tenho que perguntar a ambos o que entendem por essas palavras «direitos fundamentais da pessoa humana>>. Se eles têm em mente os direitos expressos na Carta das Nações Unidas, que Portugal também assinou, tenho que informar as pessoas de que nos encontramos perante uma violação gritante de todos esses direitos. Os únicos di-

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reitos conferidos a estas populações são o direito de estar caladas e d<: se submetérem à ordem estabelecida. Só estes não provocam actos de repressão e sanções punitivas.

A Declaração dos Direitos do Homem, assinada em 10 de Dezembro de 1948 nas Nações Unidas, não é apli­cada nestes territórios. Os moçambicanos não são sequer considerados como crianças: não tomam parte nos assun­tos públicos, nem directa nem indirectamente por inter­médio de representantes eleitos; podem ser arbitraria­mente despojados dos seus haveres; e não podem exprimir o seu próprio ponto de vista, só podem aceitar o que as autoridades decidiram em relação a eles. Ao criar <:ampos de internamento,. os direitos da .pessoa humana e outros· ainda foram violados para se ter mais meios de controle sobre os habitantes.

Não se perguntou às pessoas as suas opiniões sobre a escolha e fornl'ação. dos campos de internamento. Pelo contrário, mesmo aos que tiveram a coragem de falar não se lhes deu ouvidos, como no caso da delegação da aldeia de Mancomba, conduzida pelo Sr. Vasco, que foi ao posto àdministrativo de ·Marara para pedir ao admi­nistrador Nunes V. Santana que não os obrigasse a mudar outra vez. Tinha ido pela força do terror pàra o campo de internamento de Mancomba e vinha agora a ordem de se muda,rem para a aldeia de Andiceni, onde as condições de sobrevivência eram ainda mais precárias (água potável demasiado longe, etc.).

Tão pouco se perguntou· a opinião aos habitantes de Inhamajanela, Chacolo, Mfidzi,•. Inhantimbza, Inhau­!imbo, Inhamagondo, Inhansanga, Chimidza, Matsatsa, Chirodzi... foram todos concentrados em sítios estraté: gicos onde podiam ser controlados eficientemente e <<pro­tegidos» contra os ataques do <<inimigo» fictício. Estas pessoas· foram obrigadas a ·abandonar as suas nesgas de · terra, que eram de terra fértiL· Assim,. o Sr. Mousinho teve que deboar as ·suas áirvores dé fruto e a pequena répresa qúeti:nha construído com as próprias mãos pára

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irrigar os seus campos. Para o Sr. Simão, só resta a morte, já que ele não quer abandonar a sua terra e os· seus poços de vários metros de profundidade, frutos. do tra­balho de uma vida. O mesmo aconteceu ao Sr. Agostinho Tsamba. E a lista podia· continuar.

As ·condições de vida da população foram completa­mente desprezadas. A única coisa a considerar era a estratégia militar e; quando esta é suplantada pela capa­cidade militar dos guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique (•FRELIMO), as pessoas são deslocadas sem o mais leve escrúpulo. Foi isto que aconteceu aos 420 chefes de família que se encontraràm concentrados no campo de internamento de Midzi (Ferrão Coelho). O mesmo se passou com o campo de internamento de Ban­dala, para onde foram deslocadas mais de 60 famílias, e com as. povoações de Matsatsa, Ma tema, Mancomba, Chiro­dzi, etc.

E quantas pessoas, porque se recusaram a obedecer ou porque protestaram, foram presas, usadas à força como trabalho, torturadas, ou mesmo mortas! Foi isto o que aconteceu a, entre outros, um grupo de anciãos da zonà administrativa de Vila Gamito. Tinham estado presos durante vários meses na cidade de Tete, a capital do distrito; deram-lhes então um salvo-conduto, segundo o qual lhes era dado um mês para se apresentarem à auto­ridade administrativa de Vila Gamito, a uma distância de cerca de 400 quilómetros de Tete. Ao passarem pela mis­são católica de Boroma, o Irmão X deu-lhes provisões; soube do salvo-collduto e comprendeu que, no estado em que se encontravam (idade, doença, etc.), estes homens· não poderiam chegar no prazo prescrito e que estes pobres diabos seriam de novo torturados e aprisionados ... Foi por intermédio desse Irmão que obtive esta informação.

Um missionário contou-me que, numa pOVioação da região de Angónia, cerca de 200 pessoas que tinham saído do campo de internamento de noite para voltarem às suas lllntigas habitações foram encontradas mortas no dia

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seguinte: o exército português tinha arrasado, destruído as casas e morto os habitantes.

Quem quer que recuse. ser encerrado nos <<Currais de cabras», como os africanos chamam a estes campos de internamento, só tem uma forma de defender a sua liberdade: a fuga. Entretanto, num campo de interna­mento, um verdadeiro campo de concentração, não há o mínimo grau de liberdade: entrada e saída a horas fixas, cartões de controle, arame farpado, etc ...

Coisa curiosa é que estes campos de internamento soo construidos segundo planos muito mais perfeitos que os planos de urbanização das cidades moçambicanas. Tudo está pré-determinado: <ruas de 20m de largura, duas avenidas de '30 m de largura, todas as casas de 7 1/2 por 4 m, num terreno de 20 por 20 m. Ordem perfeita num campo de concentração. Pessoas obrigadas a uma forma de vida que não escolheram, mas que lhes é im­posta à força e não como se proclama oficialmente: «A população, com medo dos bandoleiros, refugiou-se volun­tariamente nos campos de internamento>>. O velho ditador Salazar disse anteriormente: <<As populações abrigaram­-se à sombra das forças armadas portuguesas para esta­rem protegidas da tirania dos «libertadores>> estran­geiros».

Quem quer que tenha vivido perto destas populações e partilhado a sua vida tem o grave dever de dizer que nunca houve um «inimigo» para a população; foram. as autoridades portuguesas que criaram um apenas pela sua própria repressão. E a melhor prova disto está na força que as autoridades portuguesas tiveram de usar para impor o seu sistema. As pessoas nunca aceitaram os campos de internamento, por mais que as publicações oficiais con­tinuem a dizer o contrário ...

As pessoas são obrigadas a trabalhar sem pagamento no abate de árvpres, em construções para a milícia e para os patrões europeus e na construção de estradas. Os brancos desta área não estão sujeitos às mesmas

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obrigações. Então, como é que os documentos oficiais podem falar de igualdade perante a lei e pretenderem que não há racismo?

As autoridades portuguesas prometeram água potá­vel em grandes quantidades, abertura de poços, terrenos agrícolas (machambas), centros sociais, hospitais, esco­las, etc .... Mas, durante todo o tempo que passei na região, não vi nada disso tudo: só um reservatório para as águas do rio Cachembe, que o administrador tinha mandado construir, onde os animais podiam beber e as pessoas podiam tomar banho e lavar a roupa.

No que se refere a centros sociais, <<nada se cons­truiu ainda>>. As raras escolas são utilizadas apenas para «formar uma juventude portuguesa-moçambicana. Em todos os domingos sem excepção, os professores e os seus alunos, juntamente com o resto da população do campo de internamento, têm que estar presentes ao has­tear da bandeira portuguesa. Quantas vezes tive eu que esperar·pelos católicos que tinham ido <<Voluntariamente» assistir a este ritual nacional para celebrar a eucaristia.

Ninguém pode sair do campo de internamento sem um cartão de identidade contendo: nome, nome da aldeia de origem e a razão da saída (trabalho;' visita ao hospital da missão, etc.). Se um doente fica vários dias na missão, a enfermeira tem que escrever no cartão os dias em que ele veio ao tratamento.

O malombo (dança religiosa) é estritamente proibido. Para se realizar um, tem que ser concedida licença especial pelo administrador ou pelo chefe branco do campo de internamento.

Se explode uma mina perto de um campo de inter­namento ou se as tropas portuguesas são emboscadas pelo movimento de libertação, a população sofre as represá­lias: mulheres, crianças; velhos, jovens são presos, tor­turados, exilados e, muitas vezes, mortos. Foi isto o que aconteceu no campo de internamento de Chipera. Segundo o relato militar, explodiu uma mina dentro da povoação

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e destruiu um veículo militar. Todas .as pessoas foram reunidas e abatidas a tiro; depois, a povoação foi comple­tamente destruída.

Depois de um ataque da Frelimo.a uma coluna militar na estrada Tete-Cabora Bassa, um grupo de mulheres de Muchamba. foram presas com os seus filhos. Foram leva­das para Estima, onde há uma base militar .com 500 ho­mens ou mais, não longe de Cabora Bassa .. Aí, foram torturadas. e violadas; Depois de vários dias na prisão foram levadas para a administração, em Marara, onde estiveram detidas uma série de dias, em condições terrí­veis, sem serem autorizadas a voltar para as suas famílias.

Tudo o que se disse mostra que <<os melhores 'padrões de vida proporcionados à população nos campos de inter­namentO>>, prometidos pelo governo português, não são mais que mentiras.

(assinado) Padre Luís Afonso da Costa Missão de Marara/Tete/!Moçambique 10/4/72

APÊNDICE II

CARTA DO CONSELHO GERAL DOS PADRES BRANCOS AQUANDO DA SUA RETIRADA DE

MOÇAMBIQUE

Caros Padres e Irmãos: O Conselho Geral desejaria informar-vos de uma

grave decisão, que foi levado a tomar: depois de vários meses de reflexão, oração · e repetidos contactos com as pessoas em questão, decidimos retirar .os Padres Brancos de Moçambique. E pensamos que é .nosso dever apresen­tarmo-vos claramente as razões dessa decisão.

Em primeiro· lugar, é evidente que esta medida não foi ditada por qualquer questão de falta de rpessoal. Todos

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os anos desde o Capítulo, nomeámos jovens padr~s. p_ara: Moçambique. E estavámos prontos a fazê-lo de noyo es_te ano. Tão pouco foi tomada esta decisão por razões e_xter­nas ou por razões de natureza material. A segurança dos nossos membros não está am.eaçada. As condições de vida não são desagradáveis. Além disso, sabeis que esta espécie de motivo, nunca nos faria desistir de uma missão. Em nenhum outl'o sítio beneficiãmos de ajuda material tão directa e substancial de um governo. E as autoridades de Lisboa nunca deram qualquer indicação de que a presença dos Padres Brancos já não era dese­jável em Moçambique.

Os motivos subjacentes a esta decisão são muito mais sérios. Por um lado, a ambiguidade oásica de uma situação em que a nossa presença acaba pode ser um contratestemunho. Por outro lado, a sinceridade de uma missão que se recusa a ter duas faces opostas na África.

A situação dos Padres Brancos em Moçambique é, de facto, cada vez mais marcada por uma grave ambigui­dade. Enviados como são para dar testemunho do Evan­gelho e tornar a Igreja presente como sinal e meio de salvação, os missionários descobrem que a confusão entre Igreja e Estado, que é favorecida pela prática constante tanto das autoridades civis como das religiosas, traz grande prejuízo à apresentação da mensagem do Evan­gelho e da verdadeira natureza da Igreja.

Ê infelizmente um facto que, em muitas esferas, a Igreja é estorvada na sua liberdade de acção. Se teorica­mente ela goza de liberdade de acçãio·, na prática a pre­gação de certos aspectos do Evangelho é constantemente. impedida. Não é nossa intenção apresentar aqui um dos­sier ou discutir quaisquer pontos especiais. Seja ·suficiente salientar que, com demasiada frequência, certos actos de ministério apostólico, especialmente os que são orien­tados para a promoção de verdadeira justiça social, são considerados actos subversivos e dão frequentemente oca­sião. a penosos vexames, ou mesmo a.prisão e maus tratos,

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