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Trabalho de filosofia jurídica. A banalidade do mal.

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    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESPEnsino Fundamental II e Ensino Mdio

    Rede So Paulo de

    tica d03

  • Rede So Paulo de

    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESP

    Ensino Fundamental II e Ensino Mdio

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    Sumrio1. A tica na literatura grega dos trgicos e na filosofia socrtico-platnica ........................................................................................4

    2. A tica em Aristteles .............................................................14

    3. Sobre a Conduta Moral Parte I ........................................... 25

    4. Sobre a Conduta Moral Parte II ...........................................38Bibliografia tema 1 ................................................................. 48Bibliografia tema 2 ................................................................. 49Bibliografia tema 4 ................................................................. 50Ficha da Disciplina: ................................................................ 51

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    1. A tica na literatura grega dos trgicos e na filosofia socrtico-platnica

    O propsito dos trs tpicos que compem esse texto o de, primeiramente, buscar uma certa compreenso da educao tica do homem grego no perodo anterior a Scrates, para, ento, nos prximos dois tpicos, comear a anlise de alguns elementos componentes de um novo modelo tico, o socrtico-platnico, no qual a razo ter papel preponderante para a de-terminao das aes moralmente boas.

    1.1. A tica na literatura grega anterior a Scrates

    Tornou-se comum, no meio filosfico, a distino entre moral e tica, no sentido (em linhas gerais) que a moral diria respeito ao corpo de regras que funciona como paradigma para a de-terminao das aes moralmente boas ou ms em um grupo social, e a tica seria a disciplina terica que teria como objeto de estudo crtico a moral. A palavra moral derivada de mos,

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    mores, termo latino para verter o termo grego ethos, de onde deriva a palavra tica. Visto que anacrnico empregar o termo moral quando se trata da tica grega do perodo dos trgicos, de Scrates, de Plato, de Aristteles, e considerando que, quando o termo empregado pe-los latinos, no recebe a distino supramencionada, quando utilizarmos a palavra moral em expresses como moralmente boa, no estaremos fazendo qualquer distino entre moral e tica, mas estaremos tomando ambos os termos como sinnimos. A tica tem ento o seu nome (assim como vrios outros tantos conceitos da Filosofia) derivado do grego, derivado de ethos, que comumente vertido para o Portugus como hbito, costume. Da no se segue que a tica tem como grande propsito mapear os costumes de um grupo social para, ento, elaborar um corpo de regras a partir de tal mapeamento. A tica tem muito menos como propsito examinar como as coisas so, como so os hbitos e costumes de uma comunidade, como os indivduos dessa comunidade agem normalmente nas inter-relaes pessoais, do que examinar como os indivduos, como agentes morais, deveriam agir. A tica, semelhana de outras disciplinas, tem como uma das suas funes propiciar uma boa organizao nas diversas sociedades para que os seus indivduos possam nela viverem bem. Para isso, no basta constatar como so as aes dos indivduos, mas tratar de como eles deveriam agir para que a sociedade venha a se manter organizada e, com isso, possa promover uma boa vida para os indivduos.

    A literatura da Grcia antiga apresenta, desde os seus relatos mais antigos, importantes problemas ticos, ainda que eles no fossem explicitados como objetos de estudo. Entre os poetas trgicos, questes ticas de extrema relevncia foram apresentadas, como sobre a pos-sibilidade de imputar ao agente moral a responsabilidade da sua ao, se ela foi realizada sem conscincia das circunstncias em que a ao ocorreu, como no clebre caso do dipo que mata o pai sem saber que era o seu pai. Atentemos que, ainda hoje, saber se o agente tinha conscincia das suas aes pode ser crucial para poder responsabilizar algum tanto do ponto de vista moral como at mesmo do ponto de vista jurdico.

    Vale observar que, tendo tratado de questes relevantes, a tica grega no consiste em con-juntos de regras ou teorizaes que ficaram na totalidade ou em sua maior parte circunscritas a um momento embrionrio das investigaes ticas e que esto guardadas em uma redoma aberta apenas para uma certa erudio pouco profcua para suscitar novos problemas ticos ou possveis resolues de problemas postos por novos modelos ticos. Muito mais do que isso, a tica grega antiga auxilia, em muito, a anlise tica de uma perspectiva histrica, uma

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    vez que autores como Plato e Aristteles tiveram profunda influncia na posteridade. Os gregos tm importncia hoje no domnio tico tambm por suscitarem problemas ainda atuais e por apresentarem alternativas que contribuem, e muito, para pensar questes ticas. Nesse sentido, vale observar que a tica aristotlica tem sido consultada at mesmo para trazer para o debate tico elementos (como o resgate da discusso do acrtico, do phrnimos, de um fim a ser buscado que orientaria as discusses ticas e deve orientar as aes dos agentes morais, etc) que ajudam a fazer contraponto inclusive com o modelo tico universalista kantiano. Dito isso, faz-se necessrio examinar o que os gregos antigos nos apresentaram acerca da tica no apenas para pensar a Histria da Filosofia no concernente tica, mas tambm para ajudar a pensar questes ticas independentemente de qual autor ou escola as teriam apresentado.

    Ainda que haja uma variada gama de questionamentos ticos na literatura anterior a Aris-tteles, talvez seja exagerado querer encontrar, em tais textos, uma tica tal como ns a conhec-emos em Aristteles, em cujos textos ticos encontramos objeto de estudo bem determinado, com modelo investigativo prprio a tal objeto e com caractersticas especficas de tal anlise (nesse sentido, o modelo investigativo na tica se distingue radicalmente do modelo investi-gativo metafsico ou das matemticas). Os textos de Hesodo e sobretudo os textos atribudos a Homero faziam parte da educao do homem grego, inclusive em relao a sua formao tica. Obviamente no por trazerem pormenorizadas discusses ticas, mas por apresentarem modelos de comportamento, modelos de como o homem grego no geral deveria se portar em diversas situaes. Nesse sentido, os deuses e os heris da Ilada e da Odissia eram de certo modo apresentados como modelos de comportamento. As aes dos deuses e de heris eram tomadas como paradigmas para as aes humanas. H, portanto, nos textos dos trgicos, de Hesodo e, sobretudo, os atribudos a Homero, certas determinaes de como deve o indivduo agir para tornar-se moralmente bom. Para percebermos a importncia da educao do homem grego a partir dos textos atribudos a Homero, lembremos, por exemplo, que na Repblica, sob diversos aspectos um dos dilogos mais importantes de Plato, quando em diversos momentos Scrates pensa a educao na cidade ideal, ele o faz, em grande medida, a partir dos textos atribudos a Homero.

    Em um rpido exame geral da tica grega, talvez seja de bom tom no gastar muita tinta com os filsofos pr-socrticos, porque, de modo geral, eles no tiveram como objeto de in-vestigao questes ticas. Os pr-socrticos se notabilizaram especialmente pelas suas inves-

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    tigaes acerca da natureza, acerca do mundo, acerca da possibilidade ou no de ter acesso ao mundo e, a partir da, poder falar sobre ele. Parece-nos conveniente, tambm, no nos determos nos sofistas (hbeis professores de retrica que ganharam fama e muito dinheiro por trabalha-rem a forma do discurso de modo tal a faz-lo forte; por trabalharem a forma do discurso com tal destreza a ponto de fazer parecer que o que no , a ponto de discorrerem sobre falsidades dando a elas aparncia de verdades). Ainda que os sofistas tivessem grande preocupao com a elaborao astuciosa (podendo ser falsa) do discurso com o intuito, em grande medida, de favorecer politicamente aqueles que participavam dos debates que determinavam os destinos da polis na gora da Atenas democrtica, essa preocupao, com grandes reflexos na poltica, no fez com que tomassem a tica como objeto investigativo.

    1.2. A tica nos dilogos de Plato

    Com Plato, a tica ganha ateno especial. comum na literatura especializada nos dilo-gos de Plato dividi-los em grupos. Uma dessas divises diz respeito cronologia na elabora-o dos dilogos. Uma delas comporta 3 momentos: no primeiro momento, o qual mais nos interessar aqui, corresponde aos dilogos escritos na juventude (o segundo momento o dos dilogos de maturidade e, por fim, no terceiro momento, os dilogos de velhice), denominados dilogos aporticos, isto , dilogos que acabavam em aporia, em dificuldade, sem se chegar definio do objeto investigativo motivador do dilogo. Tais dilogos chegam ao fim sem o aclaramento de certas dvidas, de certos questionamentos, no sendo obtido conhecimento seguro acerca do objeto investigado. Esses dilogos tm como protagonista Scrates que, dife-rentemente dos pr-socrticos, ir dar grande ateno ao homem enquanto objeto de estudo, sobretudo no que diz respeito tica.

    Com Scrates, o homem se torna, de modo mais acentuado, objeto de investigao. No investigao do ponto de vista biolgico, mas de um ponto de vista tico, portanto de um ponto de vista em que o homem examinado sobretudo em relao s suas aes, mas no propriamente como eles agem cotidianamente. Em relao ao modo como os homens agem cotidianamente, principalmente como agem bem, em grande medida a partir de paradigmas dados por heris e deuses em textos como a Ilada e a Odissia, esse no o modelo buscado por Scrates. Se, por um lado, Scrates, como homem grego, foi educado tambm com os textos atribudos a Homero, valendo-se de tais textos em suas conversas com os interlocutores,

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    por outro lado, Scrates no aceita por completo o modelo educativo dos textos atribudos a Homero. Na prpria Repblica Scrates prope censura a partes de tais textos.

    No concernente tica, Scrates parece propor novidades. Ao invs de aceitar plenamente o modelo tico cujos paradigmas das aes moralmente boas seriam dados pelos textos que ajudaram a educar o homem grego, Scrates prope um novo modelo, onde as aes moral-mente boas seriam determinadas no por modelos j dados, mas, de certo modo, por paradig-mas a serem buscados pela razo. A razo, de certo modo, poderia direcionar o homem para as boas aes. Mas como faz-lo? Tal busca figura em vrios dilogos de Plato, mas no se encontra de modo sistemtico e concentrado em um ou outro dilogo, estando distribuda nos mesmos, sobretudo nos dilogos aporticos de juventude. A partir do conjunto de informaes dadas nos diversos dilogos possvel chegar a alguns elementos prprios discusso tica socrtica.

    Se, por um lado, Scrates no aceita por completo os paradigmas dados (sobretudo nos textos atribudos a Homero) para a determinao da ao moralmente boa, por outro, ele necessita propor outros paradigmas, outros orientadores do agente, para que este possa reali-zar aes moralmente boas. No parece ser a proposta socrtica atribuir aos deuses as causas das nossas aes, como se os homens fossem marionetes dos deuses. Por outro lado, Scrates parece propor que as nossas aes e, conseqentemente, o nosso modo de vida, se bom ou ruim, no podem ser obra do acaso. Nesse sentido, em uma certa proposta socrtica, o bem do homem no determinado exclusivamente pelas contingncias externas. Pelo contrrio: ainda que Scrates no parea eliminar o peso das contingncias externas para a possibilidade ou no do agente poder agir bem e, com isso, poder viver bem, ele parece sustentar que cabe ao agente ter certo controle das nossas aes e, portanto, ter certo controle das aes moralmente boas que podemos engendrar.

    Para isso, Scrates volta a sua ateno, enquanto objeto da sua investigao, no para o corpo, o qual no o responsvel primeiro pelas aes do agente, mas para a alma, a qual seria a motivadora das aes. Nesse sentido, a investigao tica socrtica ganha certo vis psicolgi-co. Scrates prope uma diviso tripartite da alma. A alma teria uma parte apetitiva, a qual inclinaria o agente a realizar aes para satisfazerem-na. Essa parte da alma seria a responsvel pelos prazeres, pelas inclinaes do agente para satisfazer as necessidades que aparentam ser

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    304466HighlightA virtude, para Scrates, alcanada atravs da busca da razo, do conhecimento. O bom sbio.

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    prazerosas. Se, em Scrates, a boa vida do homem no parece estar sujeita ao acaso, no sendo guiado pela parte apetitiva da sua alma que o agente conseguir viver bem, conseguir uma boa vida, pois a parte apetitiva da alma pode se deixar guiar, muitas vezes, por aquilo que aparenta ser bom sem, de fato, ser bom.

    Comer chocolate e outros doces pode aparentar ser bom para uma criana na medida em que pode satisfazer a sua inclinao para a satisfao dos seus desejos, mas a criana se ali-mentando regularmente de chocolate e outros doces, sem qualquer orientao, pode, de ime-diato, satisfazer as suas inclinaes imediatas motivadas pela parte apetitiva da sua alma e, com isso, ter prazer, tendo a crena que est fazendo um bem a si mesmo. Mas pode ser que essa criana possa vir a ter brevemente problemas de sade por consumir exageradamente os doces. Aquilo que parece ser um bem no , necessariamente, de fato, um bem. possvel o engano em relao ao bem. Sem a devida orientao, a criana pode estar gerando para si, sem ter clareza disso, mais mal que bem. Como, ento, poder ser bem orientado segundo o bem no meramente aparente, mas o bem de fato?

    O que parece ser o bem pode se apresentar de mltiplos modos. Nesse sentido, algo pode ser bom para Scrates e no para Glauco, ou ento uma ao pode ser justa e boa em certo momento e no em outro. E ainda: algo pode ser bom para um indivduo x em determinado momento e, para o mesmo indivduo x, ruim em outro momento. Restituir aquilo que devido a algum nem sempre pode ser algo justo e bom, como Scrates argumenta no livro I da Repblica. Restituir armas quando um indivduo x est so pode ser justo e bom, mas pode no ser se ele no estiver so, podendo tal restituio vir a gerar problemas para tal indivduo x. Face possibilidade de engano acerca do que o bem, a virtude, o justo, e face aparente multiplicidade de bens, do que virtuoso ou do que justo, como uma concepo mltipla e talvez meramente aparente de bem pode ser guia para as aes de um agente moral? Como detectar o que de fato o Bem para que o mesmo possa bem guiar as aes do indivduo, con-duzindo-o s boas aes, aquelas que lhe possibilitam viver bem? Esses so difceis problemas que Scrates necessita enfrentar na apresentao de um modelo tico novo. Ele, ento, recor-rer ao que se convencionou chamar de Teoria das Formas ou Teoria das Idias para enfrentar tais problemas.

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    1.3. tica e Teoria das Idias nos dilogos de Plato

    Relembrando rapidamente, de modo bastante geral, alguns pontos da Teoria das Idias concernentes discusso tica apresentada nos dilogos de Plato: Scrates prope a sepa-rao do mundo em sensvel e inteligvel. O mundo sensvel seria apreensvel pelos sentidos, apreenso essa que no oferece o conhecimento acerca do mundo, mas apenas opinies sobre ele, uma vez que os entes existentes no mundo, que so mltiplos e em transformao, so apenas cpias imperfeitas da verdadeira realidade, a das Idias, realidade essa una e imutvel, apreensveis pela razo.

    Atravs dos sentidos apreendemos, por exemplo, as mltiplas rvores existentes no mundo, que esto em processo de transformao, de vir-a-ser. As rvores do mundo (que esto em processo de transformao, em devir) no correspondem verdadeira realidade e no nos pos-sibilitam sequer conhecer o que a rvore, que uma Idia una e imutvel. Se a rvore fosse uma laranjeira e se a laranjeira correspondesse idia de rvore, ento, uma jabuticabeira, que bem diferente, ou no poderia ser rvore ou a idia de rvore teria que ser mltipla. Se fosse mltipla, ela teria que ser to mltipla quantos so os tipos de rvores. Se as rvores so infini-tamente diferentes, as idias de rvores seriam infinitamente diferentes, no nos possibilitando conhecer o que rvore, pois rvore receberia infinitos significados. A proposta socrtica que se faz necessria uma Idia una das coisas, como a de rvore, para que, ao se falar de rvore, algo determinado seja compreendido. As mltiplas rvores (em devir) do mundo s so recon-hecidas enquanto tais por participarem da idia una de rvore. As Idias asseguram o plano do conhecimento na proposta socrtica. Quanto a certo modelo tico proposto por Scrates nos dilogos de Plato, ele pressupunha o conhecimento, portanto as Idias.

    Do mesmo modo que no supramencionado exemplo da rvore: face aos mltiplos bens ditos das mltiplas coisas e situaes do mundo no seria possvel o conhecimento acerca do Bem, conhecimento esse necessrio para se poder agir bem. Em um certo modelo tico socrtico, o conhecimento das boas aes necessariamente conduziria o agente s boas aes. S agiria mal quem desconhecesse como agir bem. Uma razo bem cultivada conduziria o agente s aes moralmente boas. Educar bem o agente, do ponto de vista tico, pressuporia faz-lo ter acesso s idias de virtude, justia, bem, etc.

    Scrates parece propor um modelo tico intelectualista (no qual a razo bem cultivada

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    suficiente para a determinao das aes moralmente boas) segundo o qual as aes do agente: 1) no dependeriam dos desgnios dos deuses, 2) no estariam totalmente sujeitas ao acaso dado pelas contingncias do mundo, 3) nem tampouco dependeriam dos impulsos da parte apetitiva da alma, a qual pode conduzir a aes aparentemente boas que, de fato, no o so, ou at mesmo para aes que manifestamente no so boas. A vida guiada pelas paixes e no orientada por certa razo, a qual possibilita conhecer o que a virtude, o Bem, pode apenas acidentalmente conduzir o agente boa vida. preciso ao homem, ento, no se deixar guiar pelas suas paixes, semelhante a um barco deriva, em que conduzido para o lado que o vento e as ondas o levarem, sem qualquer capacidade de ser guiado. O destino de tal barco dado pelas contingncias do momento na regio do mar em que est. A vida do homem no pode, de modo semelhante, estar sujeita s contingncias do mundo. Para o barco poder ir a algum lugar determinado de modo no acidental preciso que algum tome o seu leme. De modo semelhante: preciso que algo no homem tome o leme da sua vida, das suas aes. A parte intelectiva da alma ser a responsvel por dar certo rumo s aes, vida do agente. Para isso, faz-se necessrio ascender s Idias, faz-se necessrio ao intelecto controlar os impulsos do agente de modo a ele poder agir bem, poder alcanar a boa vida.

    Nesse modelo socrtico, as aes so realizadas pelos homens, aos quais pode ser imputada a responsabilidade das suas aes. Mas se, por um lado, Plato apresenta certo modelo tico intelectualista proposto por Scrates, por outro lado, no dilogo Mnon levantada a objeo que a razo no seria suficiente para conduzir o agente s aes moralmente boas ao se suspeit-ar que um agente no pode se transformar em virtuoso atravs da aprendizagem meramente racional. Nesse sentido, Scrates questiona no Mnon: se a virtude pudesse ser ensinada, por que Pricles no teria feito dos seus filhos homens virtuosos? Comea-se a levantar a suspeita que o acesso s Idias no seria suficiente para tornar o agente virtuoso. Plato, ento, comea a atenuar a funo da razo que ascende s Idias como guia uno e infalvel para as boas aes, como capaz de exclusivamente engendrar as aes moralmente boas.

    Aristteles, por sua vez, no poder aceitar o intelectualismo do modelo socrtico, at-enuado por Plato, por uma razo bastante simples: Aristteles no aceita a Teoria das Idias de Plato, rechaa a diviso do mundo em sensvel e inteligvel, negando tambm a idia de participao (a qual, na Teoria das Formas, possibilita que ambos os mundos, sensvel e in-teligvel, no sejam intransponveis um ao outro). Negando o modelo dos dilogos de Plato,

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    Aristteles no tem mais as Idias para, de certo modo, orientar o agente para a determinao da ao moralmente boa. No atribuindo aos deuses a responsabilidade das aes moralmente boas do agente moral e tambm no delegando ao acaso ou s contingncias do mundo a pos-sibilidade da ao moralmente boa, uma vez que recusa o modelo dos dilogos de Plato, Aris-tteles necessitar de outro guia para orientar o agente moral para as aes moralmente boas e, conseqentemente, para a boa vida. Essas recusas de Aristteles em relao ao modelo dos dilogos de Plato far com que Aristteles apresente um modelo tico sob muitos aspectos bem diferente do modelo dos dilogos platnicos.

    Aristteles atribui grande importncia aos impulsos da parte da alma responsvel pelos de-sejos, os quais se convertem em mveis das aes, mesmo as que so consideradas moralmente boas. Se, no modelo apresentado nos dilogos, a parte apetitiva da alma deveria estar sujeita parte intelectiva, a qual seria a responsvel pela determinao da ao moralmente boa, em Aristteles, a parte responsvel pelos desejos assumir grande importncia para o engendra-mento das aes, mesmo as moralmente boas. O que da ordem dos apetites e dos desejos no dever ser subjugado pelas determinaes da razo, mas dever ser conduzido para que, bem orientado, possa ser desejo do que bom, do que virtuoso, levando s boas e virtuosas aes. No novo modelo proposto por Aristteles, saber como agir no implica necessariamente em agir segundo o conhecimento de como agir, pois os desejos se apresentam como mveis das aes no modelo aristotlico. possvel ao agente moral saber como deveria agir para agir bem e, ainda assim, ter o desejo de realizar aes contrrias s boas aes. Vejamos, ento, a seguir, o novo modelo tico proposto por Aristteles.

    Bibliografia tema 1

    BENOIT, Hector. Estudos sobre o dilogo Filebo de Plato. Ed. Uniju, Iju-RS, 2007.

    BRAGUE, Remi. Introduo ao Mundo Grego: estudos de histria da Filosofia, Loyola, 2007.

    BRUNSCHWIG, Jacques. Estudos e exerccios de Filosofia Grega, Loyola e PUC-Rio, So Paulo-SP, 2009.

    FINLEY, Moses I. O legado da Grcia: uma nova avaliao, Ed. UNB, Braslia-DF, 1981.

    GOLDSCHMIDIT, Victor. Os dilogos de Plato: estrutura e mtodo dialtico, Loyola, So

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    Paulo-SP, 2002.

    HADOT, Pierre. O que a Filosofia Antiga? Loyola, So Paulo-SP, 2004.

    JAEGER, Werner. Paidia: a formao do homem grego, Martins Fontes, So Paulo-SP, 1989.

    KIRK, G. S. e RAVEN, J. E. Os filsofos pr-socrticos, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa-Portugal, 1982.

    MAGALHES-VILHENA, VASCO. O problema de Scrates: o Scrates histrico e o Scra-tes de Plato, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa-Portugal, 1984.

    NUSSBAUM, MARTHA C. A fragilidade da bondade: Fortuna e tica na tragdia e na filo-sofia grega, Martins Fontes, So Paulo-SP, 2009.

    PAPPAS, Nickolas, A Repblica de Plato, edies 70, Lisboa, Portugal, 1995.

    PERINE, M. (Org.). Estudos Platnicos: sobre o ser e o aparecer, o belo e o bem, Loyola, So Paulo-SP, 2009.

    PIETTRE, Bernard. Plato, a Repblica: livro VII, Ed. UNB e Ed. tica, So PauloSP, 1981.

    REALE, Giovanni. Para uma nova interpretao de Plato, Loyola, So Paulo-SP, 1997.

    ROBINSON, T. M. As origens da alma: os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristteles, Annablume editora, So Paulo-SP, 2010.

    TRABATTONI, F. Plato, Annablume editora, So Paulo-SP, 2010.

    VZQUEZ, A. S. tica, Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro-RJ, 2008.

    VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego, Difel, Rio de Janeiro-RJ, 2009.

    ZINGANO, Marco. Virtude e saber em Scrates, in Estudos de tica Antiga, Discurso Editorial, So Paulo-SP, 2007, pp. 41-72.

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    2. A tica em Aristteles

    O objetivo dos trs tpicos deste texto o de comear a apresentar a sofisticada teoria tica aristotlica, chamando a ateno para algumas diferenas em relao aos modelos ticos anteriores. Para tal propsito, sero apresentados diversos elementos que fizeram da tica ar-istotlica um dos grandes modelos ticos da Histria da Filosofia, como a nova concepo de virtude, o justo-meio, a razo voltada para a esfera prtica, etc.

    2.1. Uma nova proposta de modelo tico em relao ao modelo socrtico-platnico

    Aristteles nos deixou trs textos ticos: a 1) tica a Nicmaco, o texto mais comentado do Estagirita (Aristteles era de Estagira), a 2) tica a Eudemo e a 3) Magna Moralia. Alm desses, outro texto atribudo por alguns especialistas a Aristteles nos chegou: Da virtude e dos Vcios, mas os comentadores de Aristteles consideram, de modo geral, esse ltimo texto

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    como apcrifo, no tendo sido escrito pelo Estagirita. Esses textos ticos compem, junta-mente com a Poltica, o grupo de textos denominados prticos, isto , textos que tratam da prxis (ao). De certo modo semelhante ao que ocorre nos dilogos de Plato, a investigao tica aristotlica guarda estreita relao com a investigao psicolgica, metafsica e sobretudo com a investigao poltica. Em Aristteles, a tica e a Poltica so complementares, uma de-pendendo da outra para a sua boa compreenso. A psicologia torna-se de grande relevncia na medida em que, de modo similar ao que encontramos nos dilogos de Plato, como no final do livro IV da Repblica, Aristteles examina a alma em partes. Tal diviso de grande relevncia na medida em que, para pensar como as aes so engendradas, ser preciso examinar, como veremos, quais as partes da alma atuam em tal engendramento. Por fim, a Metafsica assume grande importncia por ser prprias dela algumas investigaes cujo objeto pertence tambm ao domnio tico. Nesse sentido, em grande medida os pressupostos metafsicos valem para a investigao tica.

    Visto a estreita relao da tica com o exame psicolgico, metafsico e poltico, alm de outras investigaes, como a biolgica e at mesmo com os textos de fsica, isso nos faz encon-trar elementos que ajudam a compor uma certa compreenso do modelo tico no apenas em seus trs textos ticos, mas tambm na Metafsica, na Poltica, no De Anima, nos textos bi-olgicos e em vrios outros textos do corpus aristotelicum. Mas, diferentemente do que ocorre nos dilogos de Plato, Aristteles possui um conjunto de textos em que trata especificamente dos escritos prticos e, nos trs textos ticos do Estagirita supracitados, examina especifica-mente questes ticas. Talvez no seja exagerado afirmar que com Aristteles que a tica ganha estudos sistemticos com mtodo prprio de investigao, contornos mais precisos, textos especficos sobre questes ticas. Se Aristteles herda uma certa tradio de discusses ticas de Hesodo, dos trgicos, da Ilada e da Odissia, de Scrates, de Plato, de alguns pr-socrticos, a investigao dos seus predecessores e contemporneos talvez no seja suficiente para considerarmos a tica como disciplina constituda. Para uma certa compreenso da tica aristotlica, mister lembramo-nos do contexto no ele escreve. Nesse sentido, convm recor-dar que o grande interlocutor de Aristteles tambm nos textos ticos Plato, o que est em certa medida encerrado nos dilogos de Plato (lembremos que Aristteles estudou na academia de Plato por praticamente duas dcadas). Muitos argumentos levantados nos textos ticos so para responder a discusses que encontramos nos dilogos do mestre Plato.

    Aristteles apresenta um modelo tico que, ainda que guarde mltiplos elementos prprios

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    ao modelo dos dilogos de Plato, bem distinto deste. Logo no captulo dois do livro I da EN, Aristteles, em uma alegoria indicativa do modelo teleolgico que apresenta nessa obra, evoca a imagem da figura de um arqueiro que, para atingir o seu alvo, precisa antes visualiz-lo, assim como o agente moral necessita ter em mira o seu fim prtico (o qual um bem) para poder alcan-lo. No se trata aqui de uma novidade do modelo aristotlico, uma vez que a idia de Bem deve, em certa medida, tambm nos dilogos de Plato, direcionar as aes do agente para que ele consiga agir moralmente bem e, conseqentemente, viver bem, feliz. Em Aristteles, o bem tambm deve ser norteador das aes moralmente boas, para que o agente possa vir a viver bem, com isso alcanando o seu fim de um ponto de vista tico.

    Porm, uma vez que o Estagirita no aceita a diviso dos mundos em sensvel e inteligvel e nem o que possibilitava o contato entre ambos os mundos (a saber, a Idia de participao), ele no pode aceitar o modelo tico que tem como guia das aes as Idias. O bem, que dever orientar as aes moralmente boas do agente, no poder consistir em uma Idia. No captulo 6 do livro I da tica a Nicmaco, Aristteles rechaa o bem uno genrico enquanto Idia, sustentando que o bem dito de mltiplos modos (formulao essa de base metafsica, dada a partir da discusso travada no texto Metafsica acerca dos mltiplos modos de dizer o ser). Se Aristteles no pode mais contar com as Idias para orientar o agente sobre como agir moral-mente bem, e se o bem o fim da investigao tica, pois visando a esse fim, o bem, que as aes humanas so realizadas, o Estagirita precisa de outra concepo de bem, orientadora das aes do agente moralmente bom.

    2.2. A vida feliz.

    Desde o incio da EN, Aristteles parte em busca do bem, para saber o que fazer para atingi-lo, semelhante ao arqueiro em relao ao alvo. Examina, ento, o Estagirita, em uma prtica comum nos seus textos, o que os seus predecessores e contemporneos tomavam como sendo o fim tico buscado, a saber, o bem, uma boa vida, a fim de saber qual tipo de vida buscar em seu modelo tico. Nesse exame acerca de qual a melhor vida a ser buscada, Aristteles encontrar, nas anlis-es dos seus predecessores e contemporneos, quatro candidatas relevantes que se apresentam vida feliz: 1) a vida dos prazeres; 2) a vida das honras; 3) a vida virtuosa e 4) a vida contempla-tiva. Por mais que Aristteles parea estar buscando um modelo tico distinto de um modelo intelectualista socrtico, onde a vida feliz poderia ser alcanada mediante boa orientao da

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    razo, ele no prope um modelo tico hedonista em que o fim a ser buscado seria dado pelo prazer. Deste modo, 1) a vida dos prazeres, primeira candidata vida feliz, no se confundiria com a felicidade, ainda que a vida feliz pressuponha prazer, ainda que o prazer, nas palavras de Aristteles, seja um acompanhante natural da felicidade. Isso significa que as aes humanas e conseqentemente a investigao tica, em Aristteles, no tero como guia, como fim, o prazer, muito embora Aristteles parea no conceber a felicidade do agente moral sem prazer. Diferentemente dos dilogos de Plato, o prazer receber grande ateno na investigao tica aristotlica, recebendo na tica a Nicmaco dois tratados, tal a sua importncia para o mod-elo tico proposto por Aristteles. 2) O segundo candidato vida feliz a vida das honras, a qual descartada na seqncia, uma vez que as honras, como Aristteles afirma, dependem mais de quem a concede do que de quem as recebe. Como uma das caractersticas da vida feliz a autonomia (isto , a vida que torna o agente no carecendo de nada), a felicidade no pode se identificar com as honras, pois a vida feliz no pode depender de outrem, o qual poder ou no conceder honra ao que pretende alcanar a vida feliz.

    Restam, ento, dois outros candidatos vida feliz, quais sejam, 3) a vida virtuosa e 4) a vida contemplativa. No concernente vida contemplativa, Aristteles apenas a menciona para, logo a seguir, informar que dela tratar posteriormente. Dela o Estagirita vai tratar apenas no livro X, l-timo livro da obra. Aristteles vai na EN voltar-se sobretudo para a noo de vir-tude. Esta se torna a principal candidata vida feliz para o homem. Podemos, ento, comear a entender, primeiro, a estrutura da EN, a qual visa apresentar um projeto prtico para possibilitar ao agente viver bem, fim da tica aristotlica. Uma vida sem ter como fim o alvo de viver bem e de pensar em meios, ao longo de uma vida, para atingir tal fim, dificilmente poderia conduzir o agente a uma boa vida. Uma certa razo possibilita ao agente moral no ficar preso s decises momentneas tomadas a partir das inclinaes das suas paixes, possi-bilitando-lhe calcular o que seria o viver bem e como alcanar a boa vida em um projeto para

    Acerca da vida contemplativa como uma das possibili-dades de alcanar o fim ltimo da tica, a saber, o bem, a felicidade, no trataremos aqui. Para uma certa noo sobre em que medida a vida contemplativa possibilita ao agente a boa vida, vide o artigo Polis e virtude em Aristteles de Reinaldo Sampaio Pereira, na Revista de Estudos Filosficos e Histricos da Antiguidade, n. 25, jul. 2008 jun. 2009): http://www.antiguidadeon-line.org/index.php/antiguidade.

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    uma vida toda. esse o exame que toma boa parte da ateno do filsofo na EN.

    Para saber como agir virtuosamente, Aristteles no pode mais contar com a Idia de vir-tude e, a partir dela, saber se uma ao qualquer participa da Idia de virtude e, participando de tal Idia, perceb-la como virtuosa, como ocorre em dilogos de Plato. O critrio determi-nante da ao virtuosa no se encontra tambm em modelos dados a priori. Aristteles neces-sita de uma nova noo de virtude, a qual ser responsvel pela grande novidade do modelo ar-istotlico. Tal noo apresentada extremamente sofisticada e faz com que a tica aristotlica difira radicalmente de todos os modelos ticos universalistas (tanto os da antiguidade quanto os posteriores a Aristteles), como o dos dilogos de Plato, o de um certo modelo cristo ou ento o modelo kantiano. Em Aristteles, a determinao da ao virtuosa no pode ser dada a priori. Isso faz com que no seja possvel, em seu modelo, produzir um corpo de regras que poderiam circunscrever as aes virtuosas, moralmente boas. Esse impedimento pode ser visto como de certo modo problemtico. Por outro lado, tal impedimento pode ser visto como o grande diferencial do modelo tico aristotlico em relao aos outros modelos, diferencial esse que possibilita considerar, por exemplo, aspectos culturais na determinao de uma ao virtuosa. Nesse sentido, uma ao que pode ser considerada virtuosa para algum em determi-nado contexto no ser necessariamente virtuosa para outra pessoa em um contexto diferente. Se uma ao ou no virtuosa depender de muitas variantes.

    2.3. Um certo relativismo no modelo tico aristotlicoAristteles, por um lado, parece procurar escapar de um modelo tico duro, com princpios

    ou modelos de como agir bem dados a priori. O Estagirita introduz na tica um certo relativ-ismo. Mas, por outro lado, ele no pode cair em um modelo relativista nos moldes do relativ-ismo de Protgoras, do homem medida de todas as coisas, em um modelo em que o que seria considerado ou no virtuoso dependeria do agente, de como o agente considera a sua prpria ao, o que pulverizaria a tica, pois, se cada um pode elaborar livremente a sua regra de con-duta mesmo vivendo em sociedade, se cada um pode determinar livremente para si mesmo se a sua ao ou no virtuosa, ento cada um pode fazer qualquer coisa (desde que fosse con-siderada boa para si mesmo, sendo, nesse modelo relativista radical, moralmente boa), desse modo, se dissolveria a tica e, conseqentemente, tal modelo tico geraria inmeros problemas de convivncia social.

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    Evitando o relativismo de Protgoras no campo tico, Aristteles apresenta um elemento regulador da ao virtuosa que no estrangeiro ao mundo grego: uma certa moderao. Aristteles prope que uma ao, para ser considerada virtuosa, portanto moralmente boa, necessita atender a uma certa moderao, a uma mediania, a um justo-meio. Esse justo-meio, ao qual tem que necessariamente atender toda ao virtuosa, no um meio aritmtico, como insiste Aristteles, assim como o 3 o meio entre o 2 e o 4. A noo de justo-meio com a qual o Estagirita trabalha na EN a de mesots, um meio que varia caso a caso. Para explicar essa noo chave de justo-meio, Aristteles observa que para toda ao e sentimento h um excesso, uma falta e um justo-meio. As aes podem ser viciosas tanto por excesso quanto por falta. Apenas as aes que atendem a um justo-meio so as virtuosas. Em relao a uma virtude como a coragem, por exemplo: a falta de impulso para algumas aes pode ser considerada como covardia (vcio). O excesso do mesmo impulso, temeridade (vcio). Apenas considerada corajosa a ao resultante de um impulso adequado, moderado, que atende a um justo-meio, fazendo com que o agente no aja viciosamente nem por excesso (temerariamente) nem por falta (covardemente), mas virtuosamente (de modo corajoso). Mas o justo-meio varia caso a caso: varia segundo o agente, segundo o objeto, segundo o contexto no qual a ao ocorre.

    O justo-meio varia segundo o agente, no sendo possvel determinar uma ao virtuosa incondicionalmente para todos os indivduos, assim como no possvel se prescrever a boa quantidade de comida a priori para duas pessoas: para um atleta uma boa quantidade de comida e o tipo de alimento pode ser x, mas para algum que possui alguma atividade mais sedentria, a boa quantidade de alimento pode ser bem menor do que a quantidade x. O justo meio varia tambm segundo o objeto: a coragem (virtude), por exemplo, est mais prxima do vcio por excesso (temeridade) que do vcio por falta (covardia); j a temperana (virtude) est mais prxima do vcio por falta (insensibilidade) que do vcio por excesso (intemperana). A ao virtuosa depende tambm do momento apropriado (kairos): avanar sobre as linhas do inimigo em uma batalha no necessariamente uma ao corajosa (virtuosa). Pode haver mo-mento em que avanar sobre o inimigo pode ser um vcio por excesso (temeridade), colocando desnecessariamente em risco a vida de muitos soldados sem a promoo de qualquer ganho em contrapartida.

    A determinao do que virtuoso, portanto, depende de se a ao atende ou no a um justo-meio, mas o justo-meio depende do agente, do objeto, do momento oportuno, do lugar apropriado, etc. Aristteles, por um lado, elimina o relativismo radical no domnio tico ao

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    instituir um princpio regulador da ao moralmente boa: o justo-meio. Toda ao, para ser considerada virtuosa, portanto moralmente boa, deve necessariamente atender a um justo-meio (as que no o atendem so viciosas por excesso ou por falta). Mas a determinao do justo-meio como princpio determinante da ao moralmente boa no possibilita engessar o modelo tico aristotlico em um conjunto de determinaes de como agir virtuosamente, moralmente bem, uma vez que, como visto, o justo-meio varia caso a caso, em cada ao, se-gundo cada contexto. Essa maleabilidade conferida pelo justo-meio faz com que o modelo tico aristotlico difira em muito dos modelos universalistas, conferindo a ele a possibilidade de se considerar a diversidade cultural, de contextos, de agentes morais na determinao das aes virtuosas, moralmente boas.

    O domnio da tica aristotlica o domnio da contingncia, jamais o da necessidade. Se no mundo tudo fosse necessrio (necessrio aqui entendido como o que no pode ser de outro modo), se no houvesse a possibilidade de algo ser de um modo ou de outro, no have-ria a possibilidade de escolha para o agente moral. No se pode escolher fazer com que uma pedra no caia (se no impedida de cair por algo qualquer), uma vez jogada para cima. No havendo capacidade de escolha (a partir da possibilidade de duas ou mais aes), no se pode responsabilizar algum do ponto de vista tico, esvaziando, com isso, o domnio da tica. Para a existncia da esfera tica faz-se necessrio, portanto, que haja a possibilidade de o mundo comportar a contingncia, faz-se necessrio que as coisas no mundo possam ser de um modo ou de outro, assim como pode ser possvel a algum se deslocar para um lado ou para outro ou mesmo ficar parado, deslocar-se com maior ou menor velocidade, com um ou com outro meio de deslocamento. na contingncia do mundo que o homem pode agir, nele que ser aberto o domnio para a esfera tica, em Aristteles.

    Uma vez que na contingncia do mundo que o agente moral pode agir, nela a razo ca-paz de fazer cincia, a razo cientfica (a qual, a partir de princpios invariveis, infere regras, leis naturais, produzindo conhecimento acerca do mundo) impotente para a determinao de como agir. Como, em Aristteles, o agente moral no tem mais as Idias (dos dilogos de Plato) para o orientarem sobre como agir bem, e o agente precisa detectar qual a melhor ao em cada caso particular, ento no ser a razo cientfica que lhe conferir tal capacidade de escolha. Aristteles ir propor um outro tipo de racionalidade, uma razo prtica, delibera-tiva, calculativa, responsvel no pela produo do conhecimento (como o da Metafsica ou

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    das Matemticas), mas por calcular, na contingncia do mundo, qual a melhor ao dentre as aes possveis, responsvel por calcular quais aes devem ser executadas para se atingir um determinado fim.

    Pensar em como agir de um determinado modo para atingir um fim prprio tica aristo-tlica, a qual teleolgica, finalista, ou seja, nela o agente moral age em funo de fins e jamais aleatoriamente. J na abertura da EN Aristteles sustenta que toda ao e toda escolha visam um certo fim. Esse fim, como afirma o Estagirita a seguir, um bem. Esse fim, esse bem, aquilo que o agente moral busca ao agir. Para Aristteles, todos buscam o bem para si, a felici-dade. Todas as aes do agente moral visam a promoo da maior quantidade de bem-estar do agente. Essa felicidade buscada no se confunde com o uso que fazemos de felicidade quando dizemos que estamos felizes porque conseguimos rever alguma pessoa de quem gostamos e que no vamos h muito tempo, ou quando alguma outra coisa boa acontece conosco.

    A felicidade, em Aristteles, algo que se consegue com uma vida toda, com uma vida vir-tuosa. A felicidade, portanto, no obra do acaso, mas pode ser alcanada com um bom clculo das aes a serem realizadas. Em rpidas palavras, a tica aristotlica tem como fim possibilitar a cada agente moral a felicidade, a qual alcanvel mediante uma vida virtuosa. Nesse sen-tido, a busca pelas aes virtuosas se faz necessria. Aristteles se volta, ento, para saber quais aes poderiam ser tomadas como virtuosas e, mais do que isso, como o agente moral pode agir virtuosamente, no ficando sujeito ao acaso ou aos seus impulsos que no conduziriam a aes virtuosas, portanto a uma vida virtuosa, condio necessria para uma vida feliz.

    Se, como visto, a razo prtica, calculativa, apresenta-se como condio necessria para a ao moralmente boa, ela se apresenta necessria para se detectar qual ao atende a um justo-meio, fazendo com que a ao seja virtuosa (tornando a nossa vida no entregue ao acaso), por outro lado, a razo, por si s, no capaz de engendrar aes. Por mais que a razo seja habilidosa no clculo de qual ao executar, esta jamais executada se no for motivada por um desejo. Nesse sentido, o desejo se converte em mvel das aes. Em Aristteles, as aes podem ser motivadas repentinamente, sem clculo prvio, apenas atendendo a impulsos. Mas tais aes seriam, de certo modo, similares s aes dos animais racionais: elas no teriam a razo prtica como guia, dificilmente conduzindo o agente (se ele agisse sempre por impulso) a uma vida virtuosa, feliz.

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    A razo prtica e os desejos so necessrios para as boas aes que podero conduzir vida feliz. A escolha, em Aristteles, consiste justamente na operao conjunta entre razo prtica e desejo, com a razo prtica, de certo modo, orientando o desejo, e este, principiando a ao. Como visto, a possibilidade de responsabilizar algum pelas suas aes (instaurando o universo tico) s se d quando h, para o agente, a capacidade de escolher como agir, ante a possibili-dade de duas ou mais aes. A possibilidade de operao conjunta entre razo prtica e desejo, portanto, assegura o domnio tico, em Aristteles. Grande parte do esforo do Estagirita passa a ser, ento, o de estudar como ambas as faculdades operam no engendramento de uma ao.

    Aristteles no aceita a sugesto apresentada nos dilogos de Plato segundo a qual s age mal quem desconhece como agir bem, como se o conhecimento acerca do bem levasse neces-sariamente prtica das boas aes. No modelo aristotlico, ainda que a razo prtica possa orientar os desejos do agente moral, ela no senhora dos desejos. Aristteles atribui aos de-sejos humanos a possibilidade de no atender ao que determina a razo. Em sua viso, o con-hecimento acerca do bem, da virtude, de como algum deve agir em determinado momento no assegura a ao segundo tal conhecimento. possvel o agente saber com certo grau de preciso o que deve fazer para agir bem e, ainda assim, ter o impulso de agir contrariando o que prescreve a razo. O saber como agir bem pela razo no confere necessariamente a capacidade de controle dos impulsos do agente moral.

    Para que o agente moral consiga controlar e bem direcionar os seus impulsos segundo o que prescreve uma razo prtica bem cultivada preciso um longo processo educativo atravs do hbito (ethos). O termo tica derivado de ethos (hbito). No modelo aristotlico, o processo educativo atravs do hbito assume papel de extrema relevncia. atravs do hbito que uma certa disposio (talvez um termo moderno prximo do que Aristteles entende por disposio hexis seja carter) vai sendo formada. Se o agente moral adquire o hbito (por exemplo, agir moralmente bem), na medida em que as aes vo se repetindo, vo se tornando habituais e a disposio para agir segundo esse tipo de aes vai se solidificando. Um agente que vai gradativamente sendo educado a no jogar papel no cho vai, gradativamente, solidi-ficando a sua disposio (que vai se convertendo em hbito) para no jogar papel no cho. Na medida em que a sua disposio para no jogar papel no cho vai se solidificando, tal agente ter cada vez mais o desejo de no jogar o papel no cho. Como o desejo o mvel da ao, o

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    agente tendo o desejo de no jogar papel no cho e a sua razo orientando-o a no faz-lo, a calcular o que necessrio para no jogar o papel no cho, de se esperar que o agente acabe por adquirir o hbito de no jog-lo.

    O processo educativo tico, em Aristteles, no dever ser feito (como parece ser sugerido em certa medida nos dilogos de Plato) exclusivamente pela instruo da razo. Em Aris-tteles, no suficiente instruir a razo calculativa do agente, pois, se ele tiver o desejo de agir de certo modo e a razo o orienta a agir de modo contrrio, dependendo da disposio que o agente tiver ele atender inclinao do desejo e no seguir a orientao da razo. A educa-o tica aristotlica, ento, pressupe a educao da disposio do agente, educao essa que, quando moralmente boa, possibilita o desejo do agente de se inclinar normalmente para as boas aes, possibilitando ao agente uma vida virtuosa, criando a possibilidade de ele viver fe-liz, felicidade essa que o que visa a tica aristotlica. Nesse sentido, a educao da disposio do agente torna-se condio necessria para que ele consiga atingir o seu fim do ponto de vista tico. Tambm quanto educao voltada para a formao de uma boa disposio o modelo tico aristotlico difere do modelo platnico e de outros modelos ticos.

    Bibliografia tema 2

    ALLAN, D. J. A filosofia de Aristteles. Lisboa: Presena, 1970.

    BARNES, Jonathan. Aristteles, idias e letras. Aparecida-SP, 2009.

    BRAGUE, Remi. Introduo ao mundo grego: estudos de histria da filosofia. So Paulo: Loyola, 2007.

    BRUNSCHWIG, Jacques. Estudos e exerccios de filosofia grega. So Paulo: Loyola, 2009.

    FINLEY, Moses I. O legado da Grcia: uma nova avaliao. Braslia: Ed. UNB, 1981.

    HADOT, Pierre. O que a filosofia antiga? So Paulo: Loyola, 2004.

    KRAUT, R. (Org.). Aristteles: a tica a Nicmaco, Porto Alegre: Artmed, 2006.

    LEAR, Jonathan. Aristteles: o desejo de entender. So Paulo: Discurso Editorial, 2006.

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    NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade: fortuna e tica na tragdia e na filo-sofia grega. So Paulo: Martins Fontes, 2009.

    ROBINSON, T. M. As origens da alma: os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristteles. So Paulo: Annablume, 2010.

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    ZINGANO, Marco. Estudos de tica antiga. So Paulo: Discurso Editorial, 2007.

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    3. Sobre a Conduta Moral Parte I

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    A moral tem a ver com as idias de bem e de mal, mas no no sentido amplo em que tudo o que desejvel (por exemplo, a sade) um bem, e tudo o que indesejvel (por exemplo, a doena) um mal. Trata-se, antes, de um sentido bem mais restrito, em que o bem vem a ser o benefcio que proporcionamos s outras pessoas (crianas, jovens ou adultos), ao agir por fora de obrigaes, de deveres, que reconhecemos ter para com elas, e o mal vem a ser malefcio que causamos a elas ao descumprirmos essas obrigaes.

    Freqentemente falamos em tica como um sinnimo de moral. nesse sentido que se fala, por exemplo, em tica na poltica, em comisso de tica etc. Assim, quando dizemos que a conduta de um poltico, de um profissional, foi antitica, queremos com isso dizer que ela foi contrria moral, que ela foi moralmente errada. Usarei aqui esses dois termos como sinni-mos um do outro.

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    Observemos que h uma estreita e importante relao entre moral e direito. De fato, as leis jurdicas, sobretudo no campo do direito penal que o que lida com o crime procuram exprimir aquilo que a sociedade ou os legisladores julgam que moralmente correto; nesse terreno, portanto, podemos dizer que uma proibio legal (por exemplo, aquela que incide sobre o homicdio ou sobre o estupro) exprime uma proibio, que aquela de no matar, no estuprar. Mas a despeito dessa relao estreita, moral e direito so coisas diferentes, e impor-tante que se tenha presente essa diferena, pois muitas coisas que esto dentro da moral esto fora do direito. Se algum trai a confiana de um amigo de um modo chocante e injustificado, ns diremos que ele fez algo tica ou moralmente errado. Mas, ningum de ns vai dizer que a conduta foi ilegal, isto , contra a lei. Assim como nesse exemplo, h muitas outras condutas que so reguladas pela moral e que no so objetos do direito. Podemos dizer que, ao contrrio das obrigaes e normas legais, que so inscritas formalmente no corpo da lei, as obrigaes e normas morais so inscritas informalmente no tecido de nossas relaes sociais.

    Assim, a moral inseparvel da vida social. Por que isso? As pessoas que so, direta ou in-diretamente, afetadas por nossos comportamentos podero ser prejudicadas por alguns desses comportamentos. Se voc sempre busca a satisfao de seus interesses individuais, sem levar em considerao as adversidades ou prejuzos que essa sua busca inflige nas outras pessoas com as quais voc se relaciona, seja no crculo familiar seja no profissional seja em qualquer outro, voc estar agindo de um modo eticamente errado para com elas. Portanto, necessrio traar uma linha que separe os interesses individuais, que todos podemos buscar, daqueles que so proibidos. Esta linha existe, e no pode deixar de existir, na vida social, embora no seja sempre fcil dizer por onde ela passa exatamente. Por outro lado, se imaginarmos um mundo ir-real em que voc no se relacionasse, nem direta nem indiretamente, com nenhuma pessoa, ento voc no seria capaz de praticar nem o mal nem o bem; a distino entre o bem e o mal morais no existiria, o que mostra que a moralidade pressupe a existncia de relaes entre as pessoas.

    Outro fato notvel a respeito da moral sua universalidade. Ou seja, ele faz parte de qual-quer tipo de sociedade humana, e no h nenhuma pessoa que pretenda estar fora de sua juris-dio. Queremos com isso dizer que, por mais que haja divergncia entre as pessoas a respeito do que moralmente certo e do que moralmente errado, ningum pretende estar fora ou acima do bem e do mal. Mas mesmo nas faces criminosas, no mundo do crime organizado,

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    no universo de uma grande penitenciria, os criminosos ou sentenciados tm suas normas prprias do certo e do errado, bem como medidas de punio previstas para a transgresso dessas normas.

    3.1 A Dimenso Moral

    Os indivduos mantm uns com os outros, e com grupos e instituies, vrios tipos de rela-cionamento. Um desses tipos aquele formado pelo que chamamos de relaes morais. O con-junto dessas relaes morais numa sociedade constitui aquilo que vamos chamar de dimenso moral da vida social. Para chegar a uma compreenso da dimenso moral da vida social, vamos tratar de entender o que h de prprio no tecido das relaes morais que ligam as pessoas umas com as outras.

    Perguntemos-nos, ento: que relaes so essas, exatamente? Para responder, esclarecedor pensar como elas diferem de outros tipos de relaes, as no-morais. Como exemplos de rela-es no-morais, pensemos na amizade, na descendncia, e na maternidade. Dizemos que ser-amigo-de uma relao social, j que envolve mais do que uma pessoa e se desenvolve durante nossa vida; por outro lado, ser-descendente-de uma relao biolgica, e no social. Por ltimo, ser-me-de no apenas no sentido de ter dado luz, mas tambm de cuidar do filho uma relao ao mesmo tempo biolgica e social.

    Pois bem. Nenhuma dessas trs relaes intrinsecamente uma relao moral (embora a primeira e a ltima se relacionem com a moral): no faz parte da definio mais essencial delas um compromisso mtuo de obrigaes que o rompimento leve a acusaes ou a condenaes.

    E quanto s relaes morais, qual seria sua marca distintiva? Podemos caracteriz-la do se-guinte modo. Vamos pensar numa certa rea da vida social, aquela definida pelo entrelaamen-to e combinao: (1) das exigncias morais que as pessoas fazem umas s outras, por exemplo, a exigncia de respeito, de considerao, de ser tratado como pessoa e no como objeto etc., (2) das expectativas morais, isto , as expectativas de que as outras pessoas cumpram aquelas exigncias, ou seja, nos respeitem, nos tratem com considerao etc, (3) dos sentimentos morais, como os sentimentos de gratido, de ressentimento, de indignao, de culpa, de auto-respeito etc., que brotam em ns como conseqncia das expectativas a serem cumpridas ou descump-ridas, e (4) das atitudes morais nas quais aqueles sentimentos se manifestam, por exemplo, ati-

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    tudes de culpar, condenar, louvar, bem como algumas reaes de agresso. Vou utilizar o termo conduta moral para designar o entrelaamento desses quatro elementos.

    De fato, as pessoas vivendo em sociedade tm a expectativa de serem tratadas pelas outras de um modo eticamente adequado, portanto com respeito, justia, dignidade. fcil ver que essas expectativas provm das exigncias morais que regulam nossa vida social e que so funda-mentais. Quando uma expectativa nossa frustrada isto , quando a outra pessoa no agiu do modo eticamente adequado ou esperado ento a exigncia moral foi descumprida pela outra pessoa. E, por se tratar de uma exigncia, e no de um favor, sentimo-nos no direito de reclamar, de cobrar da outra pessoa, de conden-la, ou de exigir desculpas ou reparao, isto , de adotar alguma atitude moral punitiva contra ela.

    As atitudes de condenao e punio so elementos centrais de nossa vida moral. O fato que todos ns, sem exceo, sentimo-nos no direito de pronunciar condenaes morais contra os outros. Uma questo fundamental da filosofia moral , ento, a seguinte: em que que se fundamenta esse direito? O que autoriza uma pessoa a condenar outra? No vale responder, apenas: o fato de essa ter cometido um mal contra a primeira, pois nossa pergunta mais geral e mais fundamental: o que justifica que eu inflija uma punio moral sobre uma pessoa que fez um mal para mim? Bem, uma resposta que parece satisfatria, e que tem sido dada por vrios filsofos, : eu tenho esse direito, porque se essa pessoa tivesse feito isso comigo, eu reconheceria nela o direito de me condenar, de me punir, e aceitaria essa condenao como merecida. Tudo se passa, ento, como se existisse um combinado, um acordo, um contrato, entre essa pessoa e mim, estabelecendo que determinadas condutas de um em relao ao outro ficam proibidas; condutas que nem eu nem ela podemos praticar, sob pena de sofrermos as conseqncias desagradveis de sermos condenados, punidos, hostilizados.

    Vemos, desse modo, que as idias de proibio, de direito, de dever, de condenao, de punio, so centrais na tica, na moral.

    Uma idia determinante do tratamento que estamos defendendo a de que a estrutura em questo a realidade bsica que devemos primeiro estudar. Dentro da rea extralegal da aprovao e desaprovao morais, a anlise filosfica do discurso moral isto , aquela que esmia o conceito de liberdade, responsabilidade viria em segundo lugar; as atitudes verbais e no verbais so o que importa inicialmente. Os atos individuais e particulares de culpar, de

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    condenar, de exprimir raiva, gratido, aprovao etc. so a realidade bsica com a qual comear. Eles so um objeto mais seguro para o incio da investigao, porque eles ocorrem diante de nossos olhos, nas relaes sociais, publicamente observveis, do cotidiano.

    Com respeito proibio, levantemos agora a seguinte questo: por que tem de ser assim? Por que a proibio , ou tem de ser, central na moral? Ser que no poderamos ter uma tica, uma moral, sem proibies?

    No, infelizmente no possvel. Com efeito, toda conduta vista como moralmente errada aparece sempre na forma de uma conduta proibida; vejamos por qu: parte integrante da conduta proibida ser objeto de ameaa de punio; no h sentido em proibir algo sem associar uma ameaa de punio prtica desse algo. Mas, vamos pensar aqui no apenas na punio legal e institucionalizada, mas tambm nas condutas punitivas adotadas nas relaes interpes-soais, seja nas dos pais com os filhos, seja nas de adultos entre si. Exemplos dessas condutas so: pr de castigo, ficar bravo com a pessoa, romper relaes com ela, espalhar que ela um mau carter que fez uma coisa horrvel para voc, desacreditar publicamente a pessoa, agredi-la fisicamente dando agresso o sentido de revide contra o mal praticado por ela, participar do linchamento do perpetrador de um crime particularmente hediondo e revoltante, como o estupro/assassinato, etc. Todas essas condutas tm em comum o fato de infligir uma situao desagradvel, adversa, sobre o praticante da ao moralmente incorreta. Elas podem ser con-sideradas como punies morais, em analogia com a idia de punio no mbito legal.

    Bem, mas a seguinte pergunta ainda no foi respondida: por que tem de haver proibio? E com ela a ameaa de punio? Pelo seguinte: todos ns precisamos que a conduta moralmente incorreta seja proibida, isto , necessitamos da ameaa de punio, ainda que dirigida poten-cialmente contra ns, para que no incorramos na conduta errada. E, mesmo quando nenhuma punio alheia arme seu bote contra uma possvel conduta incorreta nossa, ainda assim dever estar presente a punio infligvel em ns por ns mesmos, na forma do sentimento de culpa (ou conscincia pesada). Ou seja, precisamos da ameaa de punio para no agirmos de modo errado.

    Mas, voc pode continuar insistindo: e por que as coisas so assim? O que faz com que seja verdade que precisemos dessa ameaa para agir corretamente? E esta uma pergunta muito boa, cujo exame vai nos levar mais fundo na compreenso da tica. Uma resposta (ainda que

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    parcial) para essa pergunta a seguinte: aquilo que chamamos de eticamente errado nunca algo a que somos indiferentes. Muito pelo contrrio, sempre algo que, em si mesmo, bom, no moralmente bom, claro, mas bom no sentido de ser ou vantajoso ou lucrativo ou gostoso ou atraente ou sedutor etc. Em outras palavras, aquilo que chamamos de mal moral sempre, e como que por natureza, feito de tentaes. Assim sendo, o refrear-se e no fazer a coisa errada constitui sempre uma frustrao de desejos, uma renncia ao tentador, ao atraente, e , portanto, sempre em parte desagradvel. Dito de outra forma, a prtica do mal dessa coisa que nos proibimos e censuramos nos outros intrinsecamente ou atraente ou gostosa ou excitante ou estimulante ou colorida ou rendosa ou vantajosa; isto e, em si mesma boa, nesse sentido amplo da palavra boa. Na verdade, se o que consideramos mal moral no tivesse nenhuma dessas qualidades desejveis, no seria necessrio termos normas ou mandamentos que di-gam No faa isso, no faa aquilo, j que, em se tratando de algo sem nenhuma qualidade desejvel, ningum iria querer faz-lo. Qualquer viso moral prudente, que no se limite a de declaraes de princpios e exortaes de normas de conduta, e que ambicione ser de fato posta em prtica para promover eficazmente o bem comum, tem de comear por reconhecer a verdade da proposio acima. E isso tanto melhor, pois quanto mais conhecemos os ardis do inimigo, tanto mais podemos nos proteger dele. E o inimigo neste caso no est fora de ns, mas sim em ns, na nossa capacidade de desejarmos as coisas, de nos sentirmos atrados por pessoas e coisas, em nossa sujeio s tentaes de buscar essas pessoas e coisas atraentes.

    3.2 Contrato e Conduta Moral

    As situaes em que as pessoas exigem determinadas coisas uma das outras so, caracteristi-camente, aquelas em que se pode dizer que um acordo recproco foi previamente estabelecido, ainda que de modo implcito. Um acordo, ou, para empregar o termo mais apropriado, um contrato recproco. Podemos talvez interpretar as exigncias morais como algo que insti-tudo tendo-se como pano de fundo um contrato, tcito ou expresso, um contrato que diremos moral. Exigncias fazem sentido somente dentro da vigncia de um contrato, e as ofensas morais seriam ento descritas como comportamentos que constituem um rompimento, uma violao, das condies postas por um certo tipo de contrato. A violao de condies contrata-das, por sua vez, seria ento vista como algo que pode fazer nascer, naturalmente, sentimentos hostis para com o ofensor e que, alm do mais, justifica a expresso desses sentimentos nos

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    vrios tipos de atitudes de punir. Embora este seja um esboo muito incompleto de uma linha de explicao das atitudes morais, ele parece suficiente como sugesto de uma possibilidade de se construir uma teoria da responsabilidade e punio morais no quadro de uma reflexo sobre os sentimentos morais. Como se sabe, o contratualismo em tica tem uma linha respeitvel de proponentes na filosofia moderna, a qual inclui John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Imman-uel Kant, entre outros, e tambm na cena contempornea, sendo que o norte-americano John Rawls o mais eminente nome dos anos 1970 at a atualidade. Em conseqncia disso, existe uma literatura substancial de inspirao contratualista a que se pode recorrer com o fim de se construir uma teoria correspondente dos fundamentos da conduta moral. H uma afirmao de Peter Strawson, filsofo ingls contemporneo, na qual, esclarecedoramente, ele identifica a feitura da exigncia moral com a disposio para adotar as atitudes morais. Seu pensamento pode ser interpretado como contendo a sugesto de uma explicao de tipo contratualista dos sentimentos e atitudes morais e pode, desse modo, ser relacionado com a tradio filosfica referida acima.

    A dimenso da expresso dos sentimentos de ressentimento, gratido, etc. , de fato, central para a natureza social do homem e ela o a tal ponto que ns parecemos at mesmo carecer do poder de optar entre reter ou abandonar esta dimenso.

    Quando atribumos a algum um desses sentimentos, ns o fazemos sempre com base em alguma atitude que a pessoa tem de manifestar o sentimento em questo. Na ordem do conhecimento da conduta moral, portanto, o que se apresenta em primeiro lugar aos olhos do observador so as atitudes. Alm do mais, elas so algo que tem a natureza de ocorrncias que podem ser vistas por um observador. Elas so, mais ainda, publicamente observveis, isto , a respeito delas possvel ter-se, sem grande dificuldade, um acordo intersubjetivo, por parte de diferentes observadores, a respeito da ocorrncia delas, da relativa intensidade dos sentimentos que elas servem para exprimir, e dos efeitos que elas produzem nas outras pessoas. Isto tudo faz, portanto, com que elas constituam um adequado ponto de partida epistemolgico; uma teoria da conduta moral deve, consequentemente, tomar a forma inicial de um estudo das atitudes morais.

    Disse mais atrs que a questo de por que adotamos as atitudes morais nos casos em que o fazemos, uma questo central da teoria dos sentimentos morais. Essas atitudes, quando so

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    de hostilidade, so, de fato, como ensina Peter Strawson, os correlatos das exigncias morais nos casos em que se sente que estas ltimas foram descumpridas. Entendo que o insight con-tido nesta sugesto muito precioso e ele convida o estudioso a dar um passo adiante, o qual no dado por Strawson, que consiste em tentar saber qual a natureza exata dessas exigncias e quais so os elementos isto , crenas, emoes, expectativas que esto centralmente envolvidos nelas, ou subjacentes a elas.

    Uma das razes do contraste entre no manifestarmos, por exemplo, indignao para com pessoas mentalmente perturbadas e manifestarmo-las para com pessoas normais reside no fato de que no primeiro caso ns no fazemos porque no teria sentido faz-las as exign-cias de considerao, de boa-vontade, etc., que fazemos no segundo caso. Portanto, podemos, num primeiro momento, convenientemente pensar essas exigncias ou, mais exatamente, a dimenso da exigncia de considerao como sendo a fonte ou, se se prefere, como sendo uma condio necessria que precisa existir previamente para que os sentimentos emerjam e as relaes tenham lugar. Inspecionemos, ento, aquilo que est envolvido nesta exigncia de considerao, em particular as crenas que estariam envolvidas a. Esto certamente presentes:

    A crena de que razovel e plenamente justificado entender, como princpio geral, que toda e qualquer pessoa vivendo em sociedade tenha o direito consid-erao, ao respeito, boa-vontade, por parte das outras.

    A crena de que o agente que justificadamente objeto, por exemplo, do culpar ou da condenao perfeitamente capaz de enxergar que a crena enunciada no item (a) aceitvel, e que a ao pela qual ele est sendo culpado uma instncia de violao do direito referido acima.

    A crena, partilhada por todos, inclusive pelo ofensor, de que este capaz de al-terar sua conduta em ocasies futuras do mesmo tipo; noutras palavras, a crena de que nossas reais atitudes de culpar ou condenar, nas quais nossos sentimentos de ressentimento, de indignao, de raiva, etc., so exprimidos, podem afetar o comportamento futuro do ofensor.

    Tentemos enxergar um pouco mais fundo nessa rea das exigncias morais. Uma questo

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    bsica que inevitvel levantar-se a respeito delas a seguinte: quais seriam as condies que do nascimento a essas exigncias ou que as fundam?Parece que a legitimidade de uma exigncia, quando ela existe, provm toda ela da legitimidade de um direito previamente es-tabelecido: s posso validamente exigir X se tenho direito a X. Com isso, somos remetidos questo seguinte: quais so os elementos necessrios, e em seu conjunto suficientes, para que um direito se qualifique, do ponto de vista moral, como um direito legtimo? A contrapartida do direito , naturalmente, a obrigao ou o dever: se tenho direito a X, as outras pessoas tm o dever de respeitar esse direito meu a X. na rea jurdica, naturalmente, que vamos encon-trar, e em abundncia, o discurso dos direitos e deveres, e a eles so institudos por meio do contrato jurdico. Este, por sua vez, uma forma particular de uso da linguagem. Os usos da linguagem foram penetrantemente estudados, entre outros, pelo filsofo ingls John L. Aus-tin (principalmente nos anos 50), e sua intuio a respeito do que ele chamou de sentena performativa interessante lembrar aqui. O uso performativo da linguagem aquele que se caracteriza pelo seguinte fato: a emisso da elocuo performativa (a qual tem a aparncia de uma sentena descritiva, como, por exemplo, X tem direitos) , na verdade, a execuo da ao, ou a produo do estado de coisas, que a sentena em questo aparentemente descreve. Com efeito, X tem direito a Y, por exemplo, no uso performativo, uma elocuo com a qual o falante produz o estado de coisas de X ter, ou passar a ter, direito a Y. Ou seja, esta elocuo (emitida por algum investido da necessria autoridade) instaura nascer o direito em questo. Pois bem. Passando do domnio jurdico para o domnio exclusivamente moral, podemos dizer que o discurso moral ou melhor, uma parte dele, que aquela que geraria e fundaria enti-dades e relaes morais cria direitos e deveres morais onde antes no havia nem uns nem outros. Permanecendo na analogia com a lei, na qual direitos e deveres fazem sentido dentro de um contrato, diremos que o fundamento, ou parte do fundamento, da exigncia moral um prvio contrato (de natureza) moral, que cria direitos e deveres morais.

    Tendo chegado a esse ponto, temos de admitir que, com esta sugesto, no apenas re-solvemos muito pouco, mais ainda criamos para ns mesmos vrios problemas. Com efeito, a Histria da filosofia no deixa dvidas de que, indo por esses caminhos, estamos pisando num terreno cheio de controvrsia. Para cada nova tentativa de propor alguma verso original do contratualismo, por exemplo a relativamente recente tentativa de John Rawls em Uma Teoria da Justia [A Theory of Justice], de 1971, segue-se uma teoria que conflita e polemiza com ela, por exemplo a viso de Robert Nozick em Anarchy, State and Utopia [Anarquia, Estado e Uto-

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    pia], de 1974, que se encarrega de manter considervel o grau de divergncia entre os critrios luz dos quais se h de especificar as clusulas bsicas desse contrato. Um outro problema uma possvel objeo que se pode fazer contra a procedncia da analogia com a situao ju-rdica: nesta ltima o contrato to concreto e fatual quanto um trecho de discurso, enquanto que na situao moral no h, do ponto de vista fatual ou histrico, contrato algum; nem possvel escrev-lo a partir dos costumes praticados numa comunidade no que respeita ao re-lacionamento entre as pessoas, j que eles so muitas vezes inconsistentes uns com os outros; de modo que caberia perguntar que espcie de entidade esse suposto contrato moral. Um dos elementos que validam o contrato jurdico o assentimento das partes contratantes, mani-festado expressamente por escrito, e registrado em cartrio; ora, onde encontrar assentimento dos membros da comunidade a um contrato moral, admitindo que este possa ser satisfatoria-mente redigido?

    Seja como for, pode-se dar como virtualmente certo que aquilo que d nascimento, e funda, a exigncia moral uma condio de natureza prtica portanto, vinculada organizao da conduta individual e social e no de natureza terico-cognitiva. De fato, esteja ou no a or-ganizao em pauta espelhada, em suas linhas mais gerais e bsicas, numa espcie de contrato moral, o certo que ela vai incluir, no essencial, estipulaes que visam, entre outras coisas, garantir a prevalncia de um certo nmero de condies, algumas das quais bvias, como a sobrevivncia da espcie e a existncia de um mnimo de harmonia social que exclua um estado de beligerncia generalizado e crnico, e outras que visam a fazer funcionar a sociedade. Ou seja, o que essencial aqui pode ser descrito mediante o uso de categorias prticas, como fins a serem atingidos e estado-de-coisas sociais que se quer implantar.

    As consideraes acima pertencem ao grupo das questes mais gerais que teriam que ser estudadas por uma teoria mais acabada da conduta moral. H, por outro lado, um grupo de questes mais particulares, as quais seria tambm necessrio tentar responder. Limito-me, aqui, apenas a apont-las. Como j foi dito mais atrs, a expresso das atitudes est sujeita a um grau considervel de variao de indivduo para indivduo. Estas variaes dependem de diversos fatores, um dos quais diz respeito ao temperamento e ao carter individual da pessoa que faz a avaliao moral de uma conduta, e um outro envolve a natureza da relao dele com o agente cuja conduta objeto da avaliao. Sabemos que o grau em que algum est disposto, por exemplo, a desculpar as pessoas depende, em muitos casos, de condies extra-morais como

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    amizade, afeio, simpatia, admirao. Nesses casos, seria falso dizer que esse algum sabe que o agente responsvel pelo mal, que ele merece ser culpado e punido, mas no obstante isso deixa, por causa de sua afeio etc., de responsabiliz-lo. As coisas devem se passar antes, do seguinte modo: por fora da afeio, esse algum no v o agente como uma pessoa que estava (plenamente) consciente daquilo que estava fazendo, ou das conseqncias possveis de sua ao. Por que razo as pessoas procedem assim em alguns casos e fazem o oposto em outros, e por que os indivduos apresentam tal variao entre si na adoo das atitudes morais, so questes que devem ser respondidas at onde podemos respond-las para que se tenha uma compreenso mais aprofundada e mais abrangente da conduta moral.

    3.3 A natureza do culpar e do desculpar

    A relao entre culpa e responsabilidade habitualmente pensada nos seguintes termos: culpar algum por alguma coisa implica em entender que esse algum responsvel por algo que ocorreu ou que deixou de ocorrer; portanto, por uma situao situada no passado. Mas parece que este entendimento est longe de esgotar as relaes interessantes entre culpar e atribuir responsabilidade.

    Com efeito, razovel supor-se que o ato de culpar, no domnio moral, um tipo de ao praticada em conformidade com um impulso para trazer alguma alterao num certo estado de coisas global, e isso por meio de uma modificao do comportamento de outrem, ou por meio de uma modificao da condio mental do prprio agente. (Isto est relacionado com, mas no idntico a, a dupla desejabilidade referida acima). Se assim , ento o culpar deve ser visto como um aspecto da conduta moral que est em boa parte intrinsecamente voltado para o futuro.

    Por outro lado, de se presumir que uma pessoa se sinta culpada na medida em que ela se pensa responsvel pela provocao ou prevalncia de um certo estado de coisas, e nessa medida o sentimento de culpa diz respeito ao passado. Mas aqui tambm h razo para se entender que esse sentimento est tambm muito relacionado com o futuro: a pessoa se sente, ou con-tinua a se sentir, culpada a menos que ela tome iniciativas no sentido da reparao (futura) do mal praticado. Sentir-se culpado distinto de lamentar. Este ltimo tambm se relaciona com aes passadas, e pode estar ou no associado com a culpa. Nos casos em que ele est, ento

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    o agente lamenta a ao praticada e, se ainda h tempo de reparar o mal, ento ele se sentir (futuro) culpado se no fizer nada na direo da reparao. V-se, desse modo, que o senti-mento de culpa, ao mesmo tempo em que incide sobre uma ao passada, alimentado por uma condio voltada para o futuro.

    Portanto, somos inclinados a pensar que culpar , entre outras coisas, atribuir responsabili-dade por aes futuras, ou pelas conseqncias de aes futuras do objeto dessa atitude, e que, em conformidade com isso, a famosa condio agir-diferentemente-do-que-se-age, que vista como central para a ao humana livre voltada-para-o-futuro.

    Considere-se, ainda, a lgica da fala: Desculpe!. Ela tem o objetivo de comunicar que a ao ofensiva foi, por exemplo, no-intencional, ou no-consciente, ou que se lamenta t-la praticado, etc. A proferio , sobretudo, isso: um meio de fazer a outra pessoa saber da no-intencionalidade etc., da ao, e isso com vistas a prevenir interpretaes errneas, presentes ou futuras, e/ou reaes hostis futuras contra o agente. Esta fala tem, verdade, um contedo assertivo isto , um contedo que ser verdadeiro ou falso que ostensivamente incide sobre o passado (por exemplo: A ao praticada no foi intencional, o que ser verdadeiro ou falso), mas a razo de ser dela aquilo que a motiva uma preocupao com o presente e com o futuro, preocupao essa que exprimida pelo contedo diretivo da elocuo: Desculpe!. O contedo diretivo aquele que visa, no a dizer a verdade, mas a influenciar o comportamento do ouvinte.

    Portanto, e resumindo, a pessoa que culpa consegue o que ela quer to logo ela solicitada a desculpar e/ou tem o prejuzo reparado e/ou retalia e/ou vingado etc. E estas condies se referem ao presente e ao futuro. O pedido de desculpas do ofensor, e seu reconhecimento de que a queixa de outra pessoa justa, importante para que o acusador se d por satisfeito, e isto envolve a avaliao presente de uma ao passada como errada ou injusta.

    Por outro lado, a ameaa de punio, legal ou moral, e obviamente, por sua prpria natureza, dirigida para o futuro. Sua justificao decorre, entre outras coisas, de sua eficcia em afetar o comportamento futuro das pessoas. Mas ocorre que a ameaa de punio no nada na aus-ncia de ocorrncias efetivas de punio em situaes que elas ocorrem; portanto, estas ltimas precisam existir, se se quer que a ameaa de punio sirva o propsito referido acima. Logo, no fundamento de muita punio o que vamos encontrar uma condio prospectiva.

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    Considere-se, tambm, o escolher, ou o exerccio da faculdade de escolha. Ele tem igual-mente seu lugar no quadro acima, e, novamente, deve ser visto como sendo dirigido-para-o-futuro. A eficcia da ameaa de punio em impedir as pessoas de fazerem isto ou aquilo implica que elas tm o poder de escolher, neste ou naquele momento do futuro, entre fazer isto ou aquilo.

    Consideraes anlogas se aplicam ao perdoar. Pense-se no ditado Compreender per-doar tudo (Comprendre cest tout pardonner), no contexto de uma certa postura filosfica. Se interpretado num sentido perfeitamente literal, ele constitui uma negao das atitudes morais em geral. Por isso, no se pode dar a ele essa interpretao; quando agimos em conformidade com este ditado, supomo-lo reescrito nos seguintes termos: ns compreendemos e perdoa-mos, mas com a condio que a pessoa objeto da atitude faa, ou escolha fazer, a coisa certa na prxima vez. Portanto, embora o perdoar incida sobre uma conduta passada, ele dependente de uma condio prospectiva.

    Subjacente tambm conformidade s normas morais prtica de no viol-las figura uma condio tambm dirigida-para-o-futuro: o receio de infligimento de punio ou condenao.

    Falando em termos mais gerais, diremos que, no que diz respeito garantia da manuteno de disposies de considerao, respeito, boa-vontade, etc., deve-se colocar a nfase sobre a importncia de ter a capacidade de desculpar-se por ter feito X, de reparar o mal, de sentir-se culpado etc. isto , condies que se referem ao futuro e no sobre a alegao de no se ter tido a capacidade de evitar a prtica da ao errada X.

    Podemos dizer, para concluir, que as coisas se passam como se existisse no culpar, e nas ati-tudes afins, uma ambigidade inerente entre passado e futuro que essencial a elas para que elas desempenhem as funes para as quais elas foram desenvolvidas.

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    4. Sobre a Conduta Moral Parte II

    4.1. Utilidade, retribuio e atitudes morais

    Esta seo trata de questes centrais da teoria da justificao da punio e indica rumos que parece promissor seguir no enfrentamento delas. Vamos fazer um esforo de compreenso da dimenso moral da vida social, em particular da teia de sentimentos e atitudes morais referida mais atrs. Um tema central desta parte ser o da utilidade da manifestao das atitudes mo-rais. Como se sabe, o conceito de utilidade muito empregado em filosofia moral, e tambm na discusso dos fundamentos da punio legal. Quero aqui, em vez disso, relacion-lo com as atitudes morais nelas mesmas, isto , independentemente de penalidades legais que possam estar associadas a elas.

    De um ponto de vista amplo, podemos dizer que h uma dupla desejabilidade na manifesta-o dos sentimentos morais, em quaisquer das atitudes que nos so familiares.

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    Em primeiro lugar, essas atitudes tm freqentemente a conseqncia de afetar e influ-enciar o comportamento futuro das outras pessoas de modos que so desejveis tanto para o sujeito que adota a atitude quanto para as outras pessoas envolvidas na relao. No estou aqui dizendo que ns de fato manifestamos essas atitudes porque elas conduzem a resultados desejveis. Quaisquer que sejam, exatamente os motivos que nos levam a essa manifestao, o fato que ela produz resultados desejveis. Pois bem. De que modo se d a influncia referida acima? Entre outras coisas, plausvel supor que o grau maior ou menor com que se conde-nam moralmente pessoas infratoras, que faz com que elas venham a enxergar a magnitude de sua violao das normas morais, e s vezes, o prprio ato de as terem transgredido. Em outras palavras, dar vazo revolta, indignao, ao descontentamento, raiva etc., pode ter o efeito benfico de funcionar como um fator auxiliar para que o ofensor se d conta da gravidade da ofensa cometida, e s vezes da prpria ocorrncia dela. E, nos casos em que esse efeito bem sucedido, o ofensor tender a entender e aceitar a condenao moral recebida. Isso significa que a gravidade do erro moral (parcialmente) dada pela atitude das outras pessoas para com o comitente do erro, atitude essa de castig-lo de uma forma ou de outra.Desse modo, pode-se dizer que a condenao e a punio morais so uma fonte importante de um tipo de autocon-hecimento, que o conhecimento de nosso prprio comportamento tico ou dos padres de nosso comportamento. E, com isso, tambm um instrumento importante por meio do qual o comportamento pode ser melhor compreendido e mudado para melhor. Portanto, o culpar na forma de uma expresso efetiva e eficaz de sentimentos de indignao, reprovao etc uma ferramenta importante, e mesmo necessria, do conhecimento e da educao morais. E isso verdadeiro, independentemente da interpretao mais moralstica ou mais teraputica que se queira dar a esse culpar. V-se, desse modo, que no que diz respeito utilidade referida acima no parece haver conflito entre a viso teraputica e a viso moralstica ou principial da adoo de atitudes morais.

    A esse respeito bom observar o seguinte. As pessoas freqentemente enveredam pelo caminho de montar, para si mesmas e/ou para os outros, justificaes supostamente ticas para dios ou outras formas de hostilidade que, de fato, tm origens no-morais; isto , que so geradas no pela violao de normas por parte do indivduo o