gece. cartografia de fucô

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1. Um novo cartógrafo (Vigiar e Punir) Deleuze – Foucault (http://goo.gl/q5X3Fa) pg 2 2. O que é um contradispositivo (http://goo.gl/bU0fOp) Davis Moreira Alvim – Cadernos de Subjetividade Nº 14 (2012) pg 23 3. Diagrama de Subjetivação/Diagrama de Foucault pg 28 4. Post-scriptum sobre as sociedades de controle Deleuze – Conversações (http://goo.gl/SNokGp) pg 29 Vigiar e Punir - O nascimento das prisões Michel Foucault (http://goo.gl/kZjnVd) A microfísica do poder Michel Foucault (http://goo.gl/hj98G9) Introdução à vida não fascista Michel Foucault (http://goo.gl/OxaOvg) O que é um dispositivo Deleuze (http://goo.gl/fSom6c) O que é um dispositivo Giorgio Agamben (http://goo.gl/aqnMnh) Foucault por ele mesmo (62’) http://goo.gl/XCK7Ru Entrevista com Heliana Conde https://vimeo.com/15700255 e https://vimeo.com/15810570 ou http://goo.gl/jl4uLC

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Compilado de textos utilizados no Grupo de Estudos em Cartografia Esquizoanalítica. Terceiro Encontro.1. Um novo Cartógrafo (Vigiar e Punir)2. O que é um contradispositivo?3. Sobre as sociedades de controle

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  • 1. Um novo cartgrafo (Vigiar e Punir) Deleuze Foucault (http://goo.gl/q5X3Fa) pg 2 2. O que um contradispositivo (http://goo.gl/bU0fOp) Davis Moreira Alvim Cadernos de Subjetividade N 14 (2012) pg 23 3. Diagrama de Subjetivao/Diagrama de Foucault pg 28 4. Post-scriptum sobre as sociedades de controle Deleuze Conversaes (http://goo.gl/SNokGp) pg 29

    Vigiar e Punir - O nascimento das prises Michel Foucault (http://goo.gl/kZjnVd) A microfsica do poder Michel Foucault (http://goo.gl/hj98G9) Introduo vida no fascista Michel Foucault (http://goo.gl/OxaOvg) O que um dispositivo Deleuze (http://goo.gl/fSom6c) O que um dispositivo Giorgio Agamben (http://goo.gl/aqnMnh)

    Foucault por ele mesmo (62) http://goo.gl/XCK7Ru Entrevista com Heliana Conde https://vimeo.com/15700255 e https://vimeo.com/15810570 ou http://goo.gl/jl4uLC

  • O que um contradispositivo?

    Davis Moreira Alvim

    A lista de hiptese sobre a psmodernidade extensa. De forma geral, aqueles que a pensam como um

    momento histrico e no simplesmente como uma tendncia esttica indicam ao menos dois traos

    importantes: primeiro, a vitria do efmero e da banalidade sobre a potncia crtica e contestatria existente

    na modernidade e, segundo, uma nova modulao do capitalismo do perodo psguerra. Outra direo

    tomada pelo debate contemporneo caracteriza nossos tempos pela emergncia de um novo poder

    soberano, que faz do estado de exceo uma regra e do campo de concentrao um paradigma de governo:

    vivemos uma perigosa zona de indiferena entre absolutismo e democracia, entre Auschwitz e Guantnamo1.

    Em ambos os casos, as resistncias parecem estar submetidas ao silncio, em ambos os casos os dispositivos

    organizados pelos poderes contemporneos aparecem como vencedores incondicionais.

    No entanto, uma questo parece ter sido descuidada pelos tericos da ps modernidade e pelo debate

    sobre o estado de exceo, a saber: como resistir nos e aos dispositivos? Para enfrentar a questo, propomos uma breve genealogia do conceito de resistncia no pensamento de Michel Foucault, investigando especialmente

    a relao entre as noes de contraconduta e poder pastoral. O objetivo encontrar as implicaes dessa anlise para o conceito mais geral de dispositivo, na tentativa ltima de compreender as resistncias por meio da

    configurao do que chamamos de contradispositivo.

    Em seu conhecido artigo O que um dispositivo?2, Giorgio Agamben sugere que o termo to decisivo

    para Foucault quanto a noo de Ideia na filosofia de Plato, embora no encontremos, tanto em um caso

    como no outro, uma definio acabada de tais terminologias3. Agamben define o dispositivo por meio de

    trs pontos. Segundo ele, tratase de um conjunto heterogneo, lingustico e no lingustico, que

    compreende discursos, instituies, edifcios, leis, medidas de segurana, virtualmente qualquer coisa,

    pois o dispositivo uma rede que conecta elementos; em segundo lugar, o dispositivo desempenha uma

    funo estratgica e se inscreve no campo das relaes de poder e, por fim, encerra em si uma episteme, permitindo distinguir aquilo que ou no aceito como enunciado vlido em uma formao histrica4. O autor

    adverte ainda que no se deve reduzir o dispositivo a uma tecnologia especfica do poder (por exemplo, a

    disciplina ou o biopoder), pois ele admite antes um novelo que atravessa cada uma dessas tcnicas,

    formando com elas uma rede de atrelamento.

    Para Edgardo Castro5, o aparecimento desse conceito no pensamento de Foucault est relacionado

    mudana de perspectiva que desloca suas investigaes da arqueologia do saber para a genealogia do poder.

    O termo veio para responder aos problemas e ambiguidades gerados pela noo mais antiga de episteme, uma vez que permite relacionar os elementos discursivos aos nodiscursivos (como instituies, acontecimentos

    polticos e processos econmicos). A partir do aparecimento desse conceito, as formas discursivas passam a

    ser atreladas ao funcionamento das relaes de poder.

    1 Cf. principalmente Harvey, D. Condio psmoderna: uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. Traduo Adail U. Sobral e Maria Stela Gonalves. So Paulo: Loyola, 1992, p. 119 e Jameson, F. PsModernidade e Sociedade de Consumo. Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 12, p. 1626, junho de 1985. Sobre o estado de exceo cf. Agamben, G. Estado de Exceo. Traduo de Iraci de Poleti. So Paulo: Boitempo Editorial, 2004. 2 Che cos un dispositivo? (Roma: Nottetempo, 2006) foi publicado na coletnea em portugus O que o contemporneo? e outros ensaios. Traduo Vincius N. Honesko. Chapec SC: Argos, 2009 e antes disso em Outra Travessia, Revista de PsGraduao em Literatura, Florianpolis, n. 5, 2005.

    3 Agamben, G. O que um dispositivo? Outra Travessia, op. cit., p. 9. Disponvel em:

    4 Ibidem, p. 916. 5 Castro, E. El vocabulario de Michel Foucault: un recorrido alfabtico por sus temas, conceptos y autores. Traduo Pedro Sssekind. Buenos Aires: Prometeo, 2004, p. 101102.

  • J para Gilles Deleuze, os dispositivos comportam quatro dimenses6. As duas primeiras so duas mquinas:

    a primeira faz ver, a segunda, falar. Ou ainda, todo dispositivo contm, por um lado, um regime de

    visibilidades que permite distinguir entre zonas de luz e escurido e, por outro, um regime de enunciados

    que distingue palavras, frases e proposies: a priso como espao que v e faz ver o crime, a delinquncia

    como forma de dizlo discursividades e evidncias. Em seu livro sobre Foucault, Deleuze explica que cada

    estrato, cada formao histrica implica em uma repartio do visvel e do enuncivel7. A mquina visual

    no ilumina formas prexistentes, ao contrrio, cria objetos que, sem sua luz, no existiriam. A mquina de

    enunciao coloca o enunciado em relao com outros enunciados, mas tambm com sujeitos, objetos e

    conceitos. O saber formado justamente pela combinao entre o visvel e o enuncivel. A terceira dimenso

    do dispositivo, ainda segundo Deleuze, constituda por linhas de fora. So elas que retificam, manejam e

    operam o movimento entre o ver e o dizer. Elas esto presentes em todo o dispositivo, o atravessam e

    o preenchem. Esto to embaraadas s dimenses anteriores que difcil mas no impossvel distingui

    las. Ou seja, a terceira dimenso constituda pelo campo das relaes de poder. Contudo, para alm da

    linha de fora que envolve, existe tambm a ultrapassagem ou transposio dessas mesmas linhas. Deleuze indica a subjetivao como quarta dimenso do dispositivo. Enquanto o poder funciona por uma espcie de

    compromisso entre uma linha e outra, a subjetivao implica em uma dobra, quando a linha voltase para

    si mesmo e escapa das dimenses do poder e do saber.

    As definies anteriores sugerem que a noo de dispositivo comporta os diferentes temas atravessados

    pelo pensamento de Foucault: o saber, o poder e, finalmente, a subjetivao (esta apenas para Deleuze).

    Diante disso, a pergunta que gostaramos de colocar a seguinte: que lugar ocupa ou que relaes possvel estabelecer entre as resistncias e o dispositivo? Dentro dos limites que seu trabalho comporta, Castro no coloca a questo, uma vez que sua preocupao demonstrar que o dispositivo fruto de um deslocamento em

    relao noo de episteme. Agamben, por sua vez, no a ignora, mas busca fora da noo de dispositivo mais precisamente na noo de profanao as formas de resistncia ou, como ele mesmo chamou, o

    corpoacorpo que deseja liberar o que foi capturado e separado pelos dispositivos7. Deleuze enfrenta

    a questo quando Fati Tricki8 o questiona sobre como ou onde introduzir nos dispositivos a possibilidade de

    destruio das tcnicas de servido. Em resposta, argumenta que apenas a anlise de um dispositivo

    particular pode dizer se as linhas de fratura encontramse no nvel do poder, do saber ou da subjetivao9.

    Contudo, no estamos plenamente satisfeitos com tais diagnsticos. Sentimos que no avanaremos se no

    retornamos ao pensamento de Foucault para explorar alguns exemplos privilegiados de resistncia e

    recolocar, diretamente, o problema da resistncia ao dispositivo. No curso Segurana, territrio, populao, Foucault realiza uma retomada histrica da noo de governo e encontra um ponto de apoio fundamental de sua

    investigao na organizao de uma modalidade mais antiga do poder sobre a qual gostaramos de nos ater

    brevemente: o poder pastoral10. o poder pastoral e no o poder soberano que figura como verdadeiro antecessor da arte de governar os homens12. Foucault dedica ao poder pastoral boa parte de seu curso de

    1978 e, mais importante, destina a aula de 1 de maro de 1978 s chamadas revoltas de conduta,

    retomando historicamente as resistncias contra o pastorado, fornecendonos um material privilegiado

    sobre o problema da resistncia.

    Como funciona o poder pastoral? Uma de suas caractersticas mais importantes que se trata de um poder

    que no se exerce sobre um territrio, mas, nomeadamente, sobre um rebanho, ou melhor, ele funciona sobre uma multiplicidade em movimento. O Deus hebraico caminha, se desloca, um Deus errante. Sua presena mais grave e intensa se d quando seu povo se desloca pelo deserto e migra. Tratase de um Deus que indica o

    6 Deleuze, G. What is a dispositif? In: Armstrong, T. J. (ed.). Michel Foucault Philosopher. Traduo Timothy J. Armstrong. New York: Routledge, 1992, p. 159168. 7 Ibidem, p. 58.

    7 Agamben, G. O que um dispositivo?, op. cit., p. 14. 8 Fati Tricki, juntamente com outros intelectuais, participou das discusses realizadas com Deleuze aps a apresentao do texto Questce quun disposif? no Rencontre internationale, realizado em Paris nos dias 9, 10 e 11 janeiro de 1988. 9 Deleuze, G. What is a dispositif?, op. cit., p. 167. 10 Cf. Foucault, M. Segurana, territrio, populao: curso dado no Collge de France (19771978) Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 155303. 12 Ibidem, p. 219.

  • caminho e pastoreia. Ao contrrio da lgica soberana, com seus vertiginosos espetculos de suplcio e morte,

    o poder pastoral caracterizado pelo zelo, pela vigilncia atenta a propsito de tudo que pode ser

    considerado nefasto ao rebanho. Porm, enquanto tema hebraico, a pastoral ainda bastante limitada, sua

    fora maior encontrase em sua posterior transformao em pedra angular da Igreja crist. A partir de sua

    institucionalizao, Foucault indica quatro traos principais do poder pastoral:

    1) uma forma de poder cujo objetivo final assegurar a salvao individual no outro mundo. 2) O poder pastoral no apenas um forma de poder que comanda; deve tambm estar preparado para se sacrificar pela vida e pela salvao do rebanho. Portanto, diferente do

    poder real, que exige um sacrifcio de seus sditos para salvar o trono.

    3) uma forma de poder que no cuida apenas da comunidade como um todo, mas de cada um em particular, durante toda a sua vida.

    4) Finalmente, essa forma de poder no pode ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas, sem fazerlhes revelar seus segredos mais ntimos. Implica um saber da conscincia e a capacidade de dirigila11.

    Diante desse poder que zela pela preservao dos corpos e pela direo da conscincia, Foucault sugere que

    preciso pesquisar alguns pontos de resistncia, das formas de ataque e contraataque que puderam se

    produzir no prprio campo do pastorado12. Seu interesse est justamente nas resistncias internas ao

    pastorado, nas prticas que se dispem contra seu funcionamento. O poder pastoral anseia por conduzir;

    assim, correlativamente, as contracondutas ambicionam outra forma de conduo, para outros objetivos, por meio de outros procedimentos, ou procuram escapar da prpria conduta externa e reivindicar o direito de

    conduzir a si prprio.

    Contra a economia da salvao e da obedincia promovida pela pastoral, a contraconduta encontra mltiplas

    formas de resistir. Uma delas o ascetismo. Foucault indica que aquilo que precisava ser controlado e

    limitado pelos arranjos institucionais da Igreja eram os excessos cometidos pelas prticas ascticas, ao

    menos conforme eram praticados pelas religiosidades antigas a anacorese egpcia ou siraca, por exemplo13.

    O ascetismo antigo funciona como um exerccio de si sobre si14, como uma relao que o indivduo

    estabelece consigo mesmo, por isso, tratase de algo significativamente diferente da relao de obedincia

    pura estabelecida pelo pastorado cristo:

    (...) o ascetismo (...) uma espcie de elemento ttico, de pea de reverso pelo qual certo

    nmero de temas da teologia crist ou da experincia religiosa vai ser utilizado contra essa

    estrutura de poder [o pastorado]. O ascetismo uma espcie de obedincia exasperada e

    controvertida, que se tornou domnio de si egosta. Digamos que h um excesso prprio do

    ascetismo, um algo mais que assegura precisamente sua inacessabilidade por um poder

    superior15.

    Se o ascetismo tornouse uma forma de sufocamento da obedincia externa, outra maneira de resistncia

    ao poder pastoral foi a formao de comunidades. Algumas comunidades medievais se agrupavam

    justamente para questionar ou recusar a autoridade do pastor, por exemplo, partindo do princpio de que

    Roma representante do anticristo ou que representa a nova Babilnia. As comunidades de contraconduta

    recusavam o dimorfismo entre padres e leigos, conforme se v na organizao pastoral, substituindoo por

    relaes mais provisrias, mediadas, por exemplo, por eleies, como faziam os taboritas. Existem tambm

    as inverses de hierarquia, quando em certas comunidades as pessoas de pior reputao ou honra, os tidos

    como mais depravados, so escolhidos para pastorear o rebanho. Na Sociedade dos Pobres, Jeanne

    Dalbenton foi escolhida como lder por, supostamente, ter a vida mais desregrada de toda a comunidade.

    11 Foucault, M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus, H. L.; Rabinow, P. Michel Foucault, uma trajetria filosfica: para alm do estruturalismo e da hermenutica. Traduo Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995, p. 237. 12 Foucault, M. Segurana, territrio, populao, op. cit., p. 256. 13 Ibidem, p. 270. 14 Ibidem, p. 271. 15 Ibidem

  • Nesse e em outros casos tratase da organizao de uma contra sociedade, de uma inverso das

    relaes e de hierarquia social16.

    Comunidade e ascese so, entre outros, vetores fundamentais da contraconduta medieval, elementos

    fronteira do cristianismo e meios tticos da luta antipastoral. Porm, apresentar as principais linhas de ao

    do poder pastoral para, em seguida, considerar as resistncias, pode dar a impresso de que as

    contracondutas se organizaram secundariamente, como se fossem contraataques ou reaes. Mas

    Foucault levanta uma hiptese diferente: de forma paralela expanso da Igreja crist, encontramos relaes de enfrentamento ou hostilidade entre poder pastoral e contraconduta. Haveria uma correlao imediata

    e fundadora entre conduta e contraconduta17. Dessa forma, as resistncias no so reaes, mas so, antes,

    constitudas em seu contato incessante com o poder esto encerradas em uma espcie de impossibilidade

    de escapar por completo, enquanto, ao mesmo tempo, recusamse a participar inteiramente do

    funcionamento do dispositivo, por isso, muitas vezes, optam por pervertlo, desqualificlo, deturplo ou

    recuslo.

    Os dispositivos so atravessados por linhas de resistncia. Tais linhas so imanentes ao seu funcionamento,

    agem como uma rplica poltica, sempre mltiplas, acentradas, o que nos leva a pensar tambm que, sem

    elas, os prprios dispositivos se tornariam estticos e, no limite, vazios. Vimos que o dispositivo um vnculo

    que compreende e atrela as relaes de poder; as resistncias, por sua vez, podem funcionar como

    contradispositivos na medida em que, por meio de um movimento comum, no cessam de inverter, recusar, reorganizar e perverter o seu funcionamento.

    Se o saber definido como uma relao entre duas mquinas irredutveis uma a outra (a fala cega, a viso muda), ser que o mesmo no aconteceria com a dimenso das relaes de fora? Somos levados a pensar que a linha de fora a que Deleuze se refere , na verdade, dupla. Ou melhor, tratase de duas linhas

    imanentes, dispersas e fluidas, que circulam em conjunto pelo dispositivo e nele se embaraam: resistncias e poder. As resistncias no so um complemento negativo do poder, ao contrrio, constituem um vetor prprio do dispositivo, um trao do qual ele no consegue livrarse, com o qual ele entra em combate; elas

    so as linhas que ele persegue e espreita, mas que, por outro lado, o ameaam, o enfrentam e o recusam.

    Poder e resistncia no so linhas equivalentes, para distinguilas precisaramos dizer, recorrendo

    apressadamente a Nietzsche, que uma delas pende para a ao, a outra para a reao18: afirmar resistir.

    A linha difusa da resistncia nunca suprimida. Ela irrompe de maneira cega ou muda por todo o dispositivo,

    em geral guardando com o poder uma relao bastante prxima, embora exterior e heterognea. Ameaa

    formar um contradispositivo na medida em que transporta o potencial de contaminar o dispositivo,

    infectando fragmentos do visvel e do dizvel, recusando as relaes de poder e intensificando novos

    processos de subjetivao. A resistncia tornase contradispositivo quando, menos do que atacar uma

    manifestao precisa, ela afeta a prpria circulao de poder no dispositivo, desestabilizando sua ao

    administrativa. Ou seja, as resistncias circulam por todo o dispositivo, e no h dispositivo que no as

    comporte. J o contradispositivo se forma apenas quando as linhas resistentes atingem uma velocidade tal

    que ameaa desestabilizar o dispositivo, pois h um momento em que elas escapam, a ponto de forar o movimento (reativo) da linha do poder e impelilo a organizar uma nova configurao que, sem dvida,

    almeja capturar a linha fugidia. Tratase de um campo interior ao dispositivo, mas que tambm capaz de

    atravessar seus limites ou perfurar suas extremidades. Toda linha de resistncia comporta essa ameaa virtual: inventar um contradispositivo por contaminao, perfurao ou fuga.

    O final das sociedades feudais s foi possvel porque um encontro extraordinrio entre diferentes linhas

    resistentes ao poder pastoral se operou. De fato, as contracondutas atravessam o medievo, desviantes e

    herticas, apenas para eclodir em um contexto em que os mais diferentes escorrimentos resistentes se

    16 Ibidem, p. 279. 17 Ibidem, p. 258. 18 Cf. Deleuze, G. Nietzsche e a filosofia. Traduo Antnio M. Magalhes. Porto: ResEditora, 2001.

  • cruzam e formam um fluxo comum: os trabalhadores se desterritorializam e abandonam as obrigaes

    feudais, as propriedades passam a ser vendidas, novos meios de produo emergem e os

    descontentamentos religiosos se aglutinam. O historiador Robert Brenner19, por exemplo, recusa a primazia

    de fatores demogrficos ou comerciais para explicar o fim do feudalismo e defende que, em meados do

    sculo XV, foi o campesinato quem rompeu definitivamente com os controles feudais e, por meio da

    migrao macia e do enfrentamento, construiu novos espaos de liberdade em relao ao regime medieval.

    Quando tudo est preparado, quando as linhas de resistncia entram em fluxo comum, elas produzem uma

    fora tamanha que possvel encontrar os vetores que apareciam de maneira dispersa nas revoltas de

    contraconduta em um nico corpo. Domenico Scandella, mais conhecido como Menocchio, era um moleiro

    que viveu durante o sculo XVI, na regio da Itlia, e foi perseguido pela Inquisio. Carlo Ginzburg20

    investigou os processos inquisitoriais contra Menocchio e encontrou, em suas palavras, uma verdadeira

    ebulio de crticas ao poder pastoral. De uma s vez, Menocchio defendeu o contato, sem intermedirios,

    de todos com o Esprito Santo, dizendo que a majestade de Deus distribuiu o Esprito Santo para todos:

    cristos, herticos, turcos, judeus, e tem a mesma considerao por todos, e de algum modo todos se

    salvaro; atacou os inquisidores e os membros da Igreja, associandoos s foras do mal E vocs, padres

    e frades, querem saber mais do que Deus; so como o demnio, querem passar por deuses na terra, saber

    tanto quanto Deus da mesma maneira que o demnio; e recusou o batismo, j que, quando nascemos j

    estamos batizados por Deus. Sobre a confisso disse ainda que Ir se confessar com padres ou frades a

    mesma coisa que falar com uma rvore; rejeitou por completo a hierarquia da Igreja Acho que a lei e os

    mandamentos da Igreja so s mercadorias e que se deve viver acima disso. E, por fim, lanou a pergunta

    espinosista: E o que esse tal Deus a no ser terra, gua e ar?23. Menocchio vivia em meio formao de

    um ou mais contradispositivos que ameaavam a circulao do poder pastoral e logo se tornou uma de suas

    manifestaes. Isso quer dizer que ele expressa um movimento impessoal de comunho de fluxos

    resistentes, que pode arrastar consigo Estados, formaes econmicas, instituies religiosas e, tambm,

    indivduos.

    O mesmo movimento que vai das resistncias difusas configurao de um contradispositivo pode ser

    encontrado na abolio do sistema escravista brasileiro. Durante toda a vigncia da escravido, os escravos

    praticavam pequenos furtos, fingiam ignorncia diante das ordens, promoviam sabotagens, incndios e

    fugas. Essas recusas no se dirigiam necessariamente instituio da escravido in totum; era mais comum que elas se voltassem contra questes precisas, como um rompimento brusco das relaes afetivas por

    ocasio de uma venda ou contra castigos considerados excessivos. Tais resistncias geravam um impacto

    real sobre as foras sociais, modificando seu funcionamento e provocando rearticulaes nas relaes de

    poder. Porm, quando o trfico interno de escravos ou seja, o transporte de escravos em viagens terrestres

    que iam das regies ao norte para os cafezais no sudeste foi interrompido em 1880, alguns historiadores

    atriburam o fato necessidade de evitar o desequilibro na quantidade de escravos entre as provncias do

    norte e do sul ou mesmo ao esprito progressista dos novos fazendeiros do oeste paulista, que estariam

    decididos a acabar com o trabalho compulsrio. Tais explicaes, contudo, no levam em conta as revoltas

    dos prprios escravos. Quando Joaquim Nabuco prope a proibio do comrcio de escravos entre as

    provncias, alega que So Paulo arrisca seu desenvolvimento ao receber escravos que eram elementos de

    desordem e de perturbao. O peso dessas revoltas nas decises dos polticos profissionais est tambm

    expresso na imensa quantidade de comutaes de penas de escravos condenados priso em todo o Brasil

    cerca de metade dessas graas dirigiamse aos escravos revoltados do sudeste. O vigor das resistncias

    escravas era ainda potencializado pelo medo da

    Inquisio. Traduo Maria Betnia Amoroso. Traduo dos poemas Jos Paulo Paes. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. 23 Ibidem, p. 5154.

    19 Brenner, R. Agrarian class structure and economic development in PreIndustrial Europe. In: Aston, T. H.; Philpin, C. H. E. (org.). The Brenner debate. New York: Syndicate of Oxford University, 1985, p. 1064 20 Cf. Ginzburg, C. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela

  • elite brasileira de que os escravos brasileiros repetissem a frmula da Revoluo do Haiti (17911804).

    Mesmo as mudanas que lentamente levam ao fim da escravido no Brasil, como as leis do Ventre Livre

    (1871), a n 3.310 (1886) a que probe a aplicao de castigos corporais aos escravos foragidos e a dos

    Sexagenrios (1887), o movimento abolicionista e a proibio do trfico, s se tornaram eficazes porque

    foram acompanhadas do avolumamento das fugas, ataques, revoltas e da formao de quilombos que ameaam a circulao do poder por meio de uma conexo entre as lutas.

    Recapitulando, encontramos duas grandes linhas heterogneas (poder e resistncias) que encerram toda

    sorte de apoios, intercomunicaes e ondulaes, que se rebatem uma na outra sem, contudo, tornlas

    homogneas e tampouco determinantes. As contracondutas so, precisamente, manifestaes histricas

    especficas dessa realidade mais difusa que a resistncia ao dispositivo. Elas esto para o poder pastoral como a desorganizao e a destruio dos rituais de suplcio ou as revoltas camponesas contra os impostos esto

    para o poder soberano, ou ainda, como as lutas pelo pleno direito vida, satisfao, sade e ao corpo

    esto para a entrada da vida nos clculos do poder. As resistncias podem, contudo, encontrar um devir

    comum que envolve, em um s movimento, as maneiras de produzir, os questionamentos religiosos, as

    migraes, os saberes e as revoltas de trabalhadores o moleiro Menocchio uma expresso microscpica

    de um movimento comum das resistncias, tal como as fugas e os crimes cometidos pelos escravos que

    podem entrar em um devir resistente coletivo, sem a necessidade de um rgo central de coordenao.

    Tratase de minar um ponto de apoio das relaes de poder, mas tambm subverter e reinventar a rede que

    faz o poder circular. Quando levadas ao seu termo, as resistncias contradispositivam, o que quer dizer que elas deixam o poder em defasagem, nem que seja apenas por um momento.

    *Davis M. Alvim doutor em Filosofia pela PUCSP, mestre em Histria pela UFES, professor no Instituto Federal do Esprito Santo

    e membro do grupo de pesquisa Tecnologias e Processos de Subjetivao (UNESP).

    DIAGRAMA de FOUCAULT

  • POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE

    GILLES DELEUZE

    Conversaes: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

    Traduo de Peter Pl Pelbart

    I. HISTRICO

    Foucault situou as sociedades disciplinares nos sculos VIII e XIX; atingem seu apogeu no incio do sculo

    XX. Elas procedem organizao dos grandes meios de confinamento. O indivduo no cessa de passar de

    um espao fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a famlia, depois a escola ("voc no est mais

    na sua famlia"), depois a caserna ("voc no est mais na escola"), depois a fbrica, de vez em quando o

    hospital, eventualmente a priso, que o meio de confinamento por excelncia. a priso que serve de

    modelo analgico: a herona de Europa 51 pode exclamar, ao ver operrios, "pensei estar vendo

    condenados...". Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visvel

    especialmente na fbrica: concentrar; distribuir no espao; ordenar no tempo; compor no espao-tempo

    uma fora produtiva cujo efeito deve ser superior soma das foras elementares. Mas o que Foucault

    tambm sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia s sociedades de soberania cujo objetivo e

    funes eram completamente diferentes (aambarcar, mais do que organizar a produo, decidir sobre a

    morte mais do que gerir a vida); a transio foi feita progressivamente, e Napoleo parece ter operado a

    grande converso de uma sociedade outra. Mas as disciplinas, por sua vez, tambm conheceriam uma

    crise, em favor de novas foras que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda

    Guerra mundial: sociedades disciplinares o que j no ramos mais, o que deixvamos de ser.

    Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, priso, hospital, fbrica,

    escola, famlia. A famlia um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os

    ministros competentes no param de anunciar reformas supostamente necessrias. Reformar a escola,

    reformar a indstria, o hospital, o exrcito, a priso; mas todos sabem que essas instituies esto

    condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, at

    a instalao das novas foras que se anunciam. So as sociedades de controle que esto substituindo as

    sociedades disciplinares. "Controle" o nome que Burroughs prope para designar o novo monstro, e que

    Foucault reconhece como nosso futuro prximo. Paul Virillo tambm analisa sem parar as formas ultra

    rpidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na durao de um sistema

    fechado. No cabe invocar produes farmacuticas extraordinrias, formaes nucleares, manipulaes

    genticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. No se deve perguntar qual o

    regime mais duro, ou o mais tolervel, pois em cada um deles que se enfrentam as liberaes e as sujeies.

    Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorizao, os hospitais-dia, o atendimento

    a domiclio puderam marcar de incio novas liberdades, mas tambm passaram a integrar mecanismos de

    controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. No cabe temer ou esperar, mas buscar novas

    armas.

    II. LGICA

    Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivduo so variveis

    independentes: supe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios

    existe, mas analgica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, so variaes

    inseparveis, formando um sistema de geometria varivel cuja linguagem numrica (o que no quer dizer

    necessariamente binria). Os confinamentos so moldes, distintas moldagens, mas os controles so uma

    modulao, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como

    uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se v claramente na questo dos salrios: a

  • fbrica era um corpo que levava suas foras internas a um ponto de equilbrio, o mais alto possvel para a

    produo, o mais baixo possvel para os salrios; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a

    fbrica, e a empresa uma alma, um gs. Sem dvida a fbrica j conhecia o sistema de prmios mas a

    empresa se esfora mais profundamente em impor uma modulao para cada salrio, num estado de

    perptua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colquios extremamente cmicos. Se os

    jogos de televiso mais idiotas tm tanto sucesso porque exprimem adequadamente a situao de

    empresa. A fbrica constitua os indivduos em um s corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava

    cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistncia; mas a empresa

    introduz o tempo todo uma rivalidade inexpivel como s emulao, excelente motivao que contrape os

    indivduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princpio modulador do "salrio por

    mrito" tenta a prpria Educao nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fbrica, a formao

    permanente tende a substituir a escola, e o controle contnuo substitui o exame. Este o meio mais garantido

    de entregar a escola empresa.

    Nas sociedades de disciplina no se parava de recomear (da escola caserna, da caserna fbrica),

    enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formao, o servio sendo os

    estados metaestveis e coexistentes de uma mesma modulao, como que de um deformador universal.

    Kafka, que j se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas

    jurdicas mais temveis: a quitao aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a

    moratria ilimitada das sociedades de controle (em variao contnua) so dois modos de vida jurdicos muito

    diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, porque samos de um para entrar

    no outro. As sociedades disciplinares tm dois plos: a assinatura que indica o indivduo, e o nmero de

    matrcula que indica sua posio numa massa. que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os

    dois, e ao mesmo tempo que o poder massificante e individuante, isto , constitui num corpo nico

    aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem

    desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil,

    por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrrio,

    o essencial no mais uma assinatura e nem um nmero, mas uma cifra: a cifra uma senha, ao passo que

    as sociedades disciplinares so reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integrao

    quanto da resistncia). A linguagem numrica do controle feita de cifras, que marcam o acesso

    informao, ou a rejeio. No se est mais diante do par massa-indivduo. Os indivduos tornaram-se

    "dividuais", divisveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos". o dinheiro que

    talvez melhor exprima a distino entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas

    cunhadas em ouro - que servia de medida padro -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes,

    modulaes que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha

    toupeira monetria o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o das sociedades de controle.

    Passamos de um animal a outro, da toupeira serpente, no regime em que vivemos, mas tambm na nossa

    maneira de viver e nas nossas relaes com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontnuo de

    energia, mas o homem do Controle antes ondulatrio, funcionando em rbita, num feixe contnuo. Por

    toda parte o surf j substituiu os antigos esportes.

    fcil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de mquina, no porque as mquinas sejam

    determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utiliz-las.

    As antigas sociedades de soberania manejavam mquinas simples, alavancas, roldanas, relgios; mas as

    sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento mquinas energticas, com o perigo passivo da

    entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por mquinas de uma terceira

    espcie, mquinas de informtica e computadores, cujo perigo passivo a interferncia, e o ativo a pirataria

    e a introduo de vrus. No uma evoluo tecnolgica sem ser, mais profundamente, uma mutao do

    capitalismo. uma mutao j bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do sculo XIX

    de concentrao, para a produo, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fbrica como meio de

  • confinamento, o capitalista sendo o proprietrio dos meios de produo, mas tambm eventualmente

    proprietrio de outros espaos concebidos por analogia (a casa familiar do operrio, a escola). Quanto ao

    mercado, conquistado ora por especializao, ora por colonizao, ora por reduo dos custos de produo.

    Mas atualmente o capitalismo no mais dirigido para a produo, relegada com frequncia periferia do

    Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do txtil, da metalurgia ou do petrleo. um capitalismo

    de sobre-produo. No compra mais matria-prima e j no vende produtos acabados: compra produtos

    acabados, ou monta peas destacadas. O que ele quer vender so servios, e o que quer comprar so aes.

    J no um capitalismo dirigido para a produo, mas para o produto, isto , para a venda ou para o mercado.

    Por isso ele essencialmente dispersivo, e a fbrica cedeu lugar empresa. A famlia, a escola, o exrcito, a

    fbrica no so mais espaos analgicos distintos que convergem para um proprietrio, Estado ou potncia

    privada, mas so agora figuras cifradas, deformveis e transformveis, de uma mesma empresa que s tem

    gerentes. At a arte abandonou os espaos fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As

    conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e no mais por formao de disciplina, por fixao

    de cotaes mais do que por reduo de custos, por transformao do produto mais do que por

    especializao da produo. A corrupo ganha a uma nova potncia. O servio de vendas tornou-se o centro

    ou a "alma" da empresa. Informam-nos que as empresas tm uma alma, o que efetivamente a notcia mais

    terrificante do mundo. O marketing agora o instrumento de controle social, e forma a raa impudente dos

    nossos senhores. O controle de curto prazo e de rotao rpida, mas tambm contnuo e ilimitado, ao passo

    que a disciplina era de longa durao, infinita e descontnua. O homem no mais o homem confinado, mas

    o homem endividado. verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema misria de trs

    quartos da humanidade, pobres demais para a dvida, numerosos demais para o confinamento: o controle

    no s ter que enfrentar a dissipao das fronteiras, mas tambm a exploso dos guetos e favelas.

    III. PROGRAMA

    No h necessidade de fico cientfica para se conceber um mecanismo de controle que d, a cada instante,

    a posio de um elemento em espao aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira

    eletrnica). Flix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu

    bairro, graas a um carto eletrnico (dividual) que abriria as barreiras; mas o carto poderia tambm ser

    recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta no a barreira, mas o computador que detecta a

    posio de cada um, lcita ou ilcita, e opera uma modulao universal.

    O estudo scio-tcnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e

    descrever o que j est em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja

    crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de emprstimo s antigas sociedades de

    soberania, retornem cena, mas devidamente adaptados. O que conta que estamos no incio de alguma

    coisa. No regime das prises: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequena delinqncia, e a

    utilizao de coleiras eletrnicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das

    escolas: as formas de controle contnuo, avaliao contnua, e a ao da formao permanente sobre a

    escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introduo da "empresa" em

    todos os nveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem mdico nem doente", que

    resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direo

    individuao, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numrico pela cifra de uma matria "dividual"

    a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens,

    que j no passam pela antiga forma-fbrica. So exemplos frgeis, mas que permitiriam compreender

    melhor o que se entende por crise das instituies, isto , a implantao progressiva e dispersa de um novo

    regime de dominao. Uma das questes mais importantes diria respeito inaptido dos sindicatos: ligados,

    por toda sua histria, luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguiro adaptar-se ou

    cedero o lugar a novas formas de resistncia contra as sociedades de controle? Ser que j se pode

    apreender esboos dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens

  • pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estgios e formao permanente; cabe a

    eles descobrir a que esto sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, no sem dor,

    a finalidade das disciplinas. Os anis de uma serpente so ainda mais complicados que os buracos de uma

    toupeira.