fuga do campo 14 - blaine harden

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Shin Dong-hyuk nasceu e cresceu no Campo 14, um dos imensos complexos destinados a presos políticos da Coreia do Norte. Seus residentes estão condenados a trabalhar até 15 horas por dia, sofrendo fome e frio, sujeitos a uma rotina de violências sumárias aos 13 anos, Shin assistiu à execução da mãe e do irmão mais velho por tentarem escapar. De lá, ninguém foge. Existe apenas uma exceção. Determinado a descobrir como é a vida do outro lado da cerca eletrificada, Shin supera todo tipo de dificuldade e consegue deixar a Coreia do Norte. Mas as marcas do passado ainda estão em seu corpo e assombram sua mente, pois durante muitos anos ele guardou um terrível segredo. Em 'Fuga do Campo 14', o jornalista Blaine Harden lança luz sobre uma realidade sinistra, que até então permanecia oculta e impenetrável ao olhar do Ocidente. Com sensibilidade, ele acompanha a impressionante jornada de Shin rumo à liberdade.'

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Page 1: Fuga do Campo 14 - Blaine Harden
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TÍTULO ORIGINALEscape from Camp 14 – One Man’s Remarkable Odyssey

fromNorth Korea to Freedom in the West

CRÉDITOS DE FOTOSFoto 1: Blaine Harden (reprodução)Foto 2: Blaine HardenFoto 3: Jennifer Cho

CAPAPan Macmillan UK

ADAPTAÇÃO DE CAPARaphael Pacanowski

PREPARAÇÃOAna Kronemberger

REVISÃOBruno FiuzaClara Diament

E-ISBN

978-85-8057-086-1

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Edição digital: 2012

Todos os direitos reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDARua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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Para os norte-coreanos que permanecemnos campos.

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Não há nenhuma “questão dos direitos hu-manos” neste país, pois todos levam umavida extremamente digna e feliz.

— Agência Central de Notícias daCoreia [do Norte],

6 de março de 2009

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O culto à personalidade que cerca a famíliaKim começou com o Grande Líder, Kim Il Sung(1912-1994), representado na propagandaoficial como um pai amoroso para seu povo.

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PREFÁCIOUM MOMENTO DIDÁTICO

Sua lembrança mais antiga é de umaexecução.Ele caminhava com a mãe rumo a uma

plantação de trigo perto do rio Taedong,onde guardas tinham arrebanhado váriosmilhares de prisioneiros. Alvoroçado pelamultidão, o menino rastejou entre pernasadultas até a fileira da frente, onde viu umhomem ser amarrado a um poste demadeira.

Shin In Geun tinha quatro anos, criançademais para compreender o discurso

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pronunciado antes do fuzilamento. Em dúzi-as de execuções em anos futuros, ele ouviriaum guarda supervisor dizer à multidão quehavia sido oferecida, ao prisioneiro prestes amorrer, a “redenção” por meio do trabalhoárduo, porém ele rejeitara a generosidade dogoverno norte-coreano. Para impedir o pri-sioneiro de amaldiçoar o Estado que logo lhetomaria a vida, guardas enchiam-lhe a bocade seixos, depois lhe cobriam a cabeça comum capuz.

Naquela primeira execução, Shin viu trêsguardas fazerem pontaria. Cada um atiroutrês vezes. As detonações de seus fuzis ater-rorizaram o menino, que caiu de costas. Masele se levantou depressa, a tempo de verguardas desamarrarem um corpo frouxo,ensanguentado, enrolá-lo num cobertor ejogá-lo numa carroça.

No Campo 14, uma prisão para os inimi-gos políticos da Coreia do Norte, era proi-bido formar grupos com mais de dois presos,

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a não ser nas execuções. Todos tinham depresenciá-las. No campo de trabalhos força-dos, a execução pública — e o medo que elagerava — era um momento didático.

Os guardas de Shin, no campo, eram seusmestres — e seus criadores. Foram eles queselecionaram sua mãe e seu pai. Ensinaram-lhe que os prisioneiros que infringiam as re-gras mereciam a morte. Numa encosta pertode sua escola, estava afixado um lema:TUDO DE ACORDO COM AS REGRAS E OSREGULAMENTOS. O menino memorizou asdez regras do campo, “Os Dez Mandamen-tos”, como mais tarde os chamaria, e ainda écapaz de recitá-los de cor. O primeiro dizia:“Qualquer pessoa pega fugindo será imedi-atamente fuzilada.”

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Dez anos depois daquela primeira execução,Shin retornou à mesma plantação. Mais umavez, uma grande multidão se reunia. Maisuma vez, um poste de madeira havia sido fin-cado no chão. Uma forca improvisada tam-bém fora construída.

Dessa vez, Shin chegou no banco de trásde um carro conduzido por um guarda.Usava algemas e uma venda feita com umtrapo. Seu pai, também algemado e vendado,estava sentado a seu lado no carro.

Os dois haviam sido libertados depois deoito meses numa prisão subterrânea dentrodo Campo 14. Como condição para sua liber-tação, tinham assinado documentos pro-metendo nunca mencionar o que lhesacontecera no subsolo.

Nessa prisão dentro de uma prisão, guar-das tentaram arrancar, por meio de torturas,uma confissão de Shin e do pai. Queriam in-formações sobre a fuga frustrada da mãe e deseu único irmão. Despiram o garoto,

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amarraram-lhe os tornozelos e punhos comcordas e penduraram-no num gancho presoao teto. Baixaram-no sobre uma fogueira. Eledesmaiou quando sua carne começou aqueimar.

Mas não confessou nada. Nada tinha paraconfessar. Não conspirara para fugir com amãe e o irmão. Acreditava no que os guardaslhe ensinaram desde que havia nascido, nocampo: jamais poderia fugir e deveria de-nunciar quem quer que cogitasse o assunto.Nem em sonhos fantasiara sobre a vida láfora.

Nunca lhe ensinaram o que todo norte-coreano que frequenta a escola aprende: osamericanos são “canalhas” que conspirampara invadir e humilhar a pátria. A Coreia doSul é a “puta” de seu patrão americano. ACoreia do Norte é um país grandioso cujoslíderes corajosos e brilhantes são a inveja domundo. Na verdade, ele ignorava a existência

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da Coreia do Sul, da China ou dos EstadosUnidos.

Ao contrário de seus compatriotas, Shinnão cresceu com a onipresente fotografia doQuerido Líder, como Kim Jong Il era cha-mado. Nem tinha visto fotografias ou estátu-as do pai de Kim, Kim Il Sung, o GrandeLíder que fundou a Coreia do Norte e quecontinua a ser o Eterno Presidente do país,apesar de sua morte em 1994.

Embora não fosse suficientemente im-portante para merecer uma lavagem cereb-ral, Shin fora instruído a delatar seus famili-ares e os colegas de turma. Ganhava comidacomo recompensa e juntava-se aos guardaspara surrar as crianças que traía. Seus coleg-as de turma, por sua vez, mexericavam sobreele e o surravam.

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Quando um guarda tirou-lhe a venda e eleviu a multidão, o poste de madeira e a forca,Shin acreditou que estava prestes a serexecutado.

Mas não lhe enfiaram nenhum seixo naboca. As algemas foram removidas. Umguarda o levou para a frente. Ele e o pai seri-am espectadores.

Os guardas arrastaram uma mulher demeia-idade até a forca e amarraram umrapaz no poste de madeira. Eles eram a mãee o irmão mais velho de Shin.

Um guarda apertou um nó corrediço emvolta do pescoço da mulher. Ela tentou cap-turar o olhar de Shin. Ele desviou os olhos.Depois que a mãe parou de se contorcer naponta da corda, seu filho mais velho foi fuzil-ado por três guardas. Cada um atirou trêsvezes.

Enquanto os via morrer, Shin sentia-sealiviado por não estar em seu lugar. Estavazangado com a mãe e o irmão por

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planejarem uma fuga. Embora não tenhasido capaz de admitir aquilo para ninguémdurante 15 anos, Shin sabia que era o re-sponsável por aquelas execuções.

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INTRODUÇÃONUNCA OUVIUA PALAVRA “AMOR”

Nove anos depois do enforcamento de suamãe, Shin contorceu-se para atravessar

uma cerca elétrica e saiu correndo pela neve.Era o dia 2 de janeiro de 2005. Até então,nenhuma pessoa nascida em um campo deprisioneiros políticos na Coreia do Nortehavia conseguido fugir. Até onde é possívelaveriguar, ele ainda é o único que teve êxito.

Tinha 23 anos de idade e não conhecianinguém do lado de fora da cerca.

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Depois de um mês, ele entrou na China, apé. Em 2007, dois anos após a fuga, estavavivendo na Coreia do Sul. Quatro anos maistarde, morava no Sul da Califórnia e era umembaixador sênior da Liberty in North Korea(LiNK; Liberdade na Coreia do Norte), umgrupo americano de defesa dos direitoshumanos.

Na Califórnia, ele ia trabalhar de bi-cicleta, torcia para o time de beisebol Cleve-land Indians (por causa do batedor sul-coreano, Shin-Soo Choo) e comia duas outrês vezes por semana no In-N-Out Burger,que, a seu ver, tinha o melhor hambúrguerdo mundo.

Seu nome agora é Shin Dong-hyuk.* Elefez a alteração depois de chegar à Coreia doSul, numa tentativa de se reinventar comoum homem livre. É bonito, com olhos vivos,desconfiados. Um dentista de Los Angelestratou de seus dentes, que não podiam serescovados no cativeiro. Sua saúde física geral

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é excelente. O corpo, porém, é um verdadeiromapa dos sofrimentos que decorrem de secrescer num campo de trabalhos forçadoscuja existência o governo da Coreia do Norteinsiste em negar.

Tolhido pela desnutrição, ele é baixo efranzino — 1,67 metro e 54,5 quilos. O tra-balho infantil deixou-lhe com braços arquea-dos. A parte inferior das costas e as nádegastêm cicatrizes das queimaduras infligidaspelo fogo do torturador. A pele sobre o púbisexibe a cicatriz da perfuração feita pelo gan-cho usado para prendê-lo sobre as chamas.Os tornozelos têm marcas de correntes queserviram para pendurá-lo de cabeça parabaixo na solitária. O dedo médio da mãodireita foi cortado na altura da primeira ar-ticulação, punição que recebeu de um guardapor derrubar uma máquina de costura numafábrica de roupas do campo. As canelas, dotornozelo até o joelho, em ambas as pernas,são mutiladas e marcadas por cicatrizes de

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queimaduras provocadas pela cerca de ara-me farpado eletrificada que não foi capaz demantê-lo no interior do Campo 14.

Shin tem mais ou menos a mesma idadeque Kim Jong Eun, o gorducho terceiro filhode Kim Jong Il que assumiu o comando de-pois da morte de seu pai em 2011. Como con-temporâneos, os dois personificam os antí-podas de privilégio e privação na Coreia doNorte, uma sociedade pretensamente semclasses onde, na realidade, a criação e a lin-hagem determinam tudo.

Kim Jong Eun nasceu como um príncipecomunista e foi criado atrás das paredes depalácios. Foi educado sob um nome falso naSuíça e, de volta à Coreia do Norte, estudounuma universidade de elite que tem o nomede seu avô. Graças a sua estirpe, vive acimada lei. Para ele, tudo é possível. Em 2010, foinomeado general de quatro estrelas do Exér-cito do Povo Coreano, apesar da completafalta de experiência de campo nas forças

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armadas. Um ano depois, após a morte deseu pai, vitimado por um súbito ataquecardíaco, os meios de comunicação da Coreiado Norte o descreviam como “outro lídervindo do céu”. Porém, ele talvez seja obri-gado a compartilhar sua ditadura terrenacom parentes e autoridades militares.

Shin nasceu como escravo e foi criado at-rás de uma cerca de arame farpado de altavoltagem. Numa escola do campo de trabal-hos forçados, aprendeu a ler e a contar numnível rudimentar. Por ter o sangue maculadopelos supostos crimes dos irmãos de seu pai,não tinha nenhum dos direitos asseguradospela lei. Para ele, nada era possível. O planode carreira que o Estado lhe prescrevia eratrabalho árduo e uma morte prematura cau-sada por alguma doença acarretada pelafome crônica — tudo isso sem uma acusação,um julgamento ou um recurso. E tudo emsigilo.

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Nas histórias de sobreviventes a campos deconcentração, há um arco narrativo recor-rente. Forças de segurança roubam o protag-onista de uma família amorosa e de um larconfortável. Para sobreviver, ele abandonaprincípios morais, reprime sentimentos poroutras pessoas e deixa de ser um ser humanocivilizado.

Em A noite, talvez a mais célebre dessashistórias, escrita por Elie Wiesel, ganhadordo prêmio Nobel, o narrador de 13 anos ex-plica seu tormento com uma descrição davida normal que ele e a família levavamantes de serem socados em trens destinadosaos campos da morte nazistas. Wiesel estu-dava o Talmude diariamente. Seu pai eradono de uma loja e zelava pela aldeia em quemoravam na Romênia. O avô estava semprepresente para celebrar os feriados judaicos.Mas, depois que toda a família pereceu nos

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campos, Wiesel foi deixado “só, terrivel-mente só, num mundo sem Deus, semhomem. Sem amor ou misericórdia”.

A história de sobrevivência de Shin édiferente.

A mãe o surrava, e ele a via como alguémque competia com ele pela comida. O pai,que só tinha permissão para dormir com amulher cinco noites por ano, o ignorava. Oirmão era um desconhecido. Truculentas, ascrianças do campo não mereciam confiança.Antes de aprender qualquer outra coisa, eleaprendeu a sobreviver delatando todas elas.

Amor, misericórdia e família eram palav-ras sem significado. Deus não desapareceuou morreu. Shin nunca ouvira falar dele.

No prefácio de A noite, Wiesel escreveuque o conhecimento de um adolescente sobrea morte e o mal “deveria ser limitado ao quese descobre na literatura”.

No Campo 14, Shin não sabia da existên-cia da literatura. Lá, viu apenas um livro —

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uma gramática coreana, nas mãos de umprofessor que usava uniforme de guarda,carregava um revólver no quadril e que sur-rou até a morte uma colega da escolaprimária de Shin com uma vara usada paraapontar o que escrevia no quadro-negro.

Ao contrário dos sobreviventes a umcampo de concentração, Shin não foi arran-cado de uma existência civilizada e obrigadoa descer ao inferno. Ele nasceu e cresceu ládentro. Aceitava seus valores. Chamava-o delar.

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Os campos de trabalhos forçados da Coreiado Norte já duram duas vezes mais tempoque o Gulag soviético e cerca de 12 vezesmais que os campos de concentração nazis-tas. Não há controvérsia sobre sua localiza-ção. Fotografias de alta resolução, feitas por

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satélites, acessíveis no Google Earth paraqualquer pessoa que tenha uma conexão àinternet, mostram vastas áreas cercadas quese esparramam entre as montanhas escarpa-das da Coreia do Norte.

O governo da Coreia do Sul estima queeles abrigam cerca de 154 mil prisioneiros,enquanto o Departamento de Estado dosEstados Unidos e vários grupos de defesa dosdireitos humanos calculam que sejam nadamenos que duzentos mil. Após examinaruma década de imagens dos campos feitaspor satélites, a Anistia Internacional obser-vou novas construções dentro deles em 2011e passou a temer que a população de pri-sioneiros estivesse aumentando, talvez paraconter uma possível inquietação no mo-mento em que o poder começou a ser trans-ferido de Kim Jong Il para seu filho, jovem einexperiente.1

De acordo com o serviço de inteligênciada Coreia do Sul e grupos de direitos

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humanos, existem seis campos. O mais ex-tenso tem dois mil quilômetros quadrados,uma área maior que a da cidade de LosAngeles. Cercas de arame farpado eletrifica-das — pontuadas por torres de vigilância epatrulhadas por homens armados — contor-nam a maior parte dos campos. Dois deles,os de número 15 e 18, têm zonas de reedu-cação, onde alguns detentos afortunados re-cebem instrução corretiva sobre os ensina-mentos de Kim Jong Il e Kim Il Sung. Casoas memorizem o bastante e convençam osguardas de sua lealdade, eles podem serlibertados, mas são monitorados pelo restode suas vidas por serviços de segurança doEstado.

Os demais campos são “distritos de con-trole total”, onde os prisioneiros, chamadosde “irredimíveis”,2 trabalham até a morte.

O campo de Shin, de número 14, é umdistrito de controle total. Tem a reputação deser o mais duro de todos em razão das

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condições de trabalho particularmente bru-tais ali vigentes, da vigilância de seus guar-das e da visão implacável do Estado sobre agravidade dos crimes cometidos por seus de-tentos, muitos dos quais são membros ex-purgados do partido no poder, do governo edas forças armadas, assim como suas famíli-as. Fundado em 1959, no centro da Coreia doNorte — perto de Kaechon, na província dePyongan do Sul —, o Campo 14 abriga cercade 15 mil prisioneiros. Em uma área comcerca de cinquenta quilômetros decomprimento por 25 quilômetros de largura,ele abriga fazendas, minas e fábricas dis-tribuídas por vales íngremes.

Embora Shin tenha sido a única pessoanascida num campo de trabalhos forçados aescapar para contar a história, há pelo menosoutras 26 testemunhas oculares no mundolivre.3 Elas incluem pelo menos 15 norte-coreanos que estiveram presos no distrito deedificação do Campo 15, foram libertados e

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mais tarde apareceram na Coreia do Sul. Ex-guardas de outros campos também con-seguiram chegar à Coreia do Sul. Kim Yong,um ex-tenente-coronel de Pyongyang, de ori-gem privilegiada, passou seis anos em doiscampos antes de fugir num trem usado parao transporte de carvão.

Uma síntese dos testemunhos dessaspessoas, feita pela Associação Coreana dosAdvogados em Seul, traça um quadro detal-hado da vida cotidiana nos campos: todos osanos, alguns prisioneiros são executados empúblico. Outros são surrados até a morte ousecretamente assassinados por guardas, quepraticamente têm carta branca paramaltratá-los e estuprá-los. Em sua maioria,os detentos trabalham na agricultura, na ex-tração de carvão, na confecção de uniformesmilitares ou na fabricação de cimento, sub-sistindo com uma dieta de fome de milho, re-polho e sal. Perdem os dentes, as gengivasficam pretas, os ossos se enfraquecem, e,

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quando chegam à casa dos quarenta anos,ficam arqueados na altura da cintura. Comorecebem um conjunto de roupas uma ouduas vezes por ano, em geral eles trabalhame dormem vestindo trapos imundos, levandoa vida sem sabão, nem meias, luvas, roupasde baixo ou papel higiênico. Jornadas de tra-balho de 12 a 15 horas são obrigatórias atéque os prisioneiros morram, em geral dedoenças relacionadas à desnutrição, antes decompletar cinquenta anos.4 Embora seja im-possível obter números precisos, governos depaíses ocidentais e grupos de direitos hu-manos estimam que centenas de milhares depessoas pereceram nesses campos.

Na maioria dos casos, os norte-coreanossão enviados para os campos sem nenhumprocesso judicial, e muitos morrem semsaber do que foram acusados. São retiradosde suas casas, em geral à noite, pela Bowibu,a Agência de Segurança Nacional. A culpapor associação é legal na Coreia do Norte.

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Muitas vezes um transgressor é preso com ospais e os filhos. Kim Il Sung estabeleceu a leiem 1972: “Inimigos de classe, sejam elesquem forem, devem ter sua semente elimin-ada por três gerações.”

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Encontrei-me pela primeira vez com Shinnum almoço no inverno de 2008. Marcamosnum restaurante no centro de Seul. Falante efaminto, ele devorou várias porções de arroze carne bovina. Enquanto comia, contou-me,com a ajuda de um intérprete, como foi ob-servar o enforcamento de sua mãe. Culpou-apela tortura que sofreu e fez questão deacrescentar que ainda estava furioso. Disseque não tinha sido um “bom filho”, mas nãoquis explicar por quê.

Contou que, durante os anos que passouno campo, nunca ouviu a palavra “amor”,

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nem mesmo da boca de sua mãe, uma mulh-er a quem continuava a desprezar, mesmomorta. Ouvira falar sobre o conceito de per-dão numa igreja sul-coreana. Mas ele se con-fundia. Pedir perdão no Campo 14, disse ele,era a mesma coisa que “implorar para nãoser punido”.

Ele tinha escrito um livro de memórias,mas a obra recebeu pouca atenção na Coreiado Sul. Estava desempregado, sem dinheiro,com aluguel vencido e sem saber o que fazerem seguida. As regras do Campo 14 oproibiram, sob pena de fuzilamento, demanter relações íntimas com uma mulher.Agora, queria uma namorada, mas não sabiacomo começar a procurar.

Depois do almoço, Shin levou-me aoapartamento acanhado e triste pelo qual nãotinha condições de pagar. Embora não me ol-hasse nos olhos, mostrou-me o dedo am-putado e as costas marcadas. Permitiu-mefotografá-lo. Apesar de todas as misérias que

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suportara, tinha um rosto de criança. Estavacom 26 anos — três deles passados fora doCampo 14.

Eu tinha 56 anos por ocasião dessememorável almoço. Como correspondentedo Washington Post no Nordeste da Ásia,vinha procurando havia mais de um ano umareportagem que pudesse explicar de quemaneira a Coreia do Norte usava a repressãopara evitar sua desintegração.

A implosão política tornara-se minha es-pecialidade. Para o Post e o New York Times,passei quase três décadas cobrindo estadosfalidos na África, o colapso do comunismono Leste Europeu, a desintegração daIugoslávia e o apodrecimento em câmaralenta de Mianmar sob os generais. Paraquem via de fora, a Coreia do Norte pareciamadura — na verdade, madura demais —para o tipo de colapso que eu testemunharaem outros lugares. Numa parte do mundoem que quase todos os outros países

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enriqueciam, seu povo via-se cada vez maisisolado, pobre e faminto.

Mesmo assim, a dinastia da família Kimmantinha a situação sob controle. Arepressão totalitária preservava seu Estadofalido.

Meu problema para mostrar o que o gov-erno fazia era a falta de acesso. Em outraspartes do mundo, Estados repressivos nemsempre conseguiam vedar suas fronteiras.Pude trabalhar abertamente na Etiópia deMengistu, no Congo de Mobutu e na Sérviade Milosevic, e entrei disfarçado de turistaem Mianmar para escrever sobre o país.

A Coreia do Norte era muito mais caute-losa. Repórteres estrangeiros, em especialamericanos, raramente eram admitidos.Visitei-a apenas uma vez, vi o que meusacompanhantes queriam que eu visse e pou-co aprendi. Se entrassem ilegalmente, os jor-nalistas corriam o risco de passar meses naprisão, como espiões. Para ganhar a

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liberdade, precisavam por vezes da ajuda deum ex-presidente americano.5

Dadas essas restrições, os relatos sobre opaís eram, em sua maior parte, distantes eocos. Escritas de Seul, Tóquio ou Pequim, asreportagens começavam com um relato daúltima provocação de Pyongyang, comoafundar um navio ou fuzilar um turista. De-pois as enfadonhas convenções do jornal-ismo entravam em jogo: autoridades americ-anas e sul-coreanas expressavam indignação.Autoridades chinesas exigiam moderação.Especialistas opinavam sobre o que isso po-deria significar. Excedi minha cota desse tipode matéria.

Shin, entretanto, destruiu essas con-venções. Sua vida destrancava a porta, per-mitindo que o mundo exterior enxergassecomo a família Kim se sustentava medianteescravidão infantil e assassinato. Alguns diasapós o nosso encontro, a simpática foto deShin e sua consternadora história ocuparam

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um lugar de destaque na primeira página doWashington Post.

“Puxa!”, escreveu Donald G. Graham,presidente da Washington Post Company,num e-mail de uma só palavra que recebi namanhã após a publicação da matéria. Umcineasta alemão, que visitou por acaso oMuseu Memorial do Holocausto de Wash-ington no dia em que a reportagem foi pub-licada, decidiu fazer um documentário sobrea vida de Shin. O Washington Post publicouum editorial dizendo que a brutalidadesuportada por ele era horripilante, mas a in-diferença do mundo à existência dos camposde trabalhos forçados da Coreia do Norte eraigualmente horripilante.

“Estudantes secundaristas nos EstadosUnidos discutem por que o presidenteFranklin D. Roosevelt não bombardeou asferrovias que serviam aos campos de con-centração de Hitler”, concluía o editorial.“Daqui a uma geração, as crianças poderão

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perguntar por que o Ocidente olhou fixa-mente para imagens de satélite dos camposde Kim Jong Il, muito mais nítidas, e nadafez.”

A história de Shin comoveu profunda-mente os leitores comuns. Eles escreveramcartas e enviaram e-mails oferecendo din-heiro, hospedagem e preces.

Um casal de Columbus, Ohio, viu a re-portagem, localizou Shin e pagou sua viagempara os Estados Unidos. Lowell e Linda Dyelhe disseram que queriam ser para ele os paisque nunca tivera.

Em Seattle, Harim Lee, uma jovem amer-icana de origem coreana, leu a reportagem erezou para conhecer Shin um dia. Maistarde, ela o procurou no Sul da Califórnia eos dois se apaixonaram. Meu artigo haviaapenas roçado a superfície da vida do rapaz.Ocorreu-me que um relato mais profundorevelaria o mecanismo secreto que legitima ogoverno totalitário na Coreia do Norte.

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Mostraria também — através dos detalhes daimprovável fuga de Shin — como parte dessemecanismo opressivo está sucumbindo, per-mitindo a um inexperiente e jovem fugitivovagar sem ser detectado por um Estado poli-cial e cruzar a fronteira com a China. Deigual importância seria o fato de que nin-guém poderia ignorar a existência dos cam-pos depois de ler um livro sobre um jovempreparado pela Coreia do Norte para morrerde tanto trabalhar.

Perguntei a Shin se estaria interessado.Ele levou nove meses para chegar a uma de-cisão. Durante esse tempo, ativistas dosdireitos humanos na Coreia do Sul, no Japãoe nos Estados Unidos exortaram-no acooperar, dizendo-lhe que um livro em inglêsdespertaria uma consciência mundial,aumentaria a pressão internacional sobre aCoreia do Norte e talvez lhe permitisse gan-har um pouco do dinheiro de que tanto ne-cessitava. Depois que aceitou, Shin tornou-se

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disponível para sete rodadas de entrevistas,primeiro em Seul, depois em Torrance, naCalifórnia, e por fim em Seattle, no estado deWashington. Ele e eu concordamos em di-vidir em partes iguais todo o faturamento dolivro. Nosso acordo, porém, me deu controlesobre o conteúdo.

Shin começou a manter um diário no iní-cio de 2006, cerca de um ano depois de fugirda Coreia do Norte. Em Seul, quando foi hos-pitalizado com depressão, continuou aescrevê-lo. O diário tornou-se a base paraum livro de memórias em coreano, Escape tothe Outside World (Fuga para o mundo ex-terior), publicado em Seul em 2007 peloDatabase Center for North Korean HumanRights (Centro de Dados para os DireitosHumanos na Coreia do Norte).

As memórias foram o ponto de partidapara nossas entrevistas. Foram também afonte de muitas das citações diretas atribuí-das neste livro a Shin, sua família, amigos e

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carcereiros no tempo que ele passou na Cor-eia do Norte e na China. Mas todos ospensamentos e ações atribuídos a Shin nes-tas páginas baseiam-se em múltiplas entrev-istas, durante as quais ele esmiuçou e, emmuitos casos decisivos, corrigiu seu livro dememórias.

Ao mesmo tempo em que cooperava, Sh-in parecia ter receio de falar comigo. Muitasvezes senti-me como um dentista usando abroca sem anestesia. A broca funcionou demaneira intermitente por mais de dois anos.Algumas de nossas sessões foram catárticaspara ele; muitas outras o deixaramdeprimido.

Ele se esforçava para confiar em mim.Como admite prontamente, tem que se es-forçar para confiar em qualquer pessoa. Éuma consequência inevitável do modo comofoi criado. Foi ensinado pelos guardas a trairos pais e os amigos, e ele supõe que todo

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mundo que conhece o trairá, da mesmaforma.

Ao escrever este livro, precisei, por vezes,me esforçar para confiar em Shin. Em nossaprimeira entrevista, ele me induziu ao errosobre seu papel na morte da mãe, e continu-ou a fazê-lo em mais de uma dúzia delas.Quando mudou a história, comecei a me pre-ocupar com o que mais ele poderia terinventado.

A verificação de fatos não é possível naCoreia do Norte. Nenhum estrangeiro visitouseus campos para prisioneiros políticos.Relatos sobre o que se passa dentro delesnão podem ser confirmados de maneira in-dependente. Embora imagens de satélite ten-ham contribuído muito para que o mundoexterior entenda mais sobre os campos, osdesertores continuam sendo as principaisfontes de informação. Suas motivações e seugrau de credibilidade não são imaculados.Na Coreia do Sul e em outros lugares, eles se

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encontram muitas vezes desesperados paraganhar a vida, dispostos a confirmar as idei-as preconcebidas dos ativistas dos direitoshumanos, dos missionários anticomunistas edos ideólogos de direita. Alguns sobre-viventes de campos recusam-se a falar semreceber dinheiro vivo antecipadamente.Outros repetem episódios impressionantesde que ouviram falar, mas que não testemun-haram em primeira mão.

Embora permanecesse desconfiado, Shinrespondeu a todas as perguntas que fui capazde conceber sobre seu passado. Sua vidapode parecer inacreditável, mas faz eco àsexperiências de outros ex-prisioneiros noscampos, bem como aos relatos de ex-guardasdos campos.

“Tudo que Shin disse é compatível com oque ouvi sobre os campos”, afirmou DavidHawk, um especialista em direitos humanosque entrevistou Shin e mais de duas dezenasde ex-prisioneiros de campos de trabalhos

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forçados para “The Hidden Gulag: ExposingNorth Korea’s Prison Camps” (O Gulagoculto: denunciando os campos de pri-sioneiros da Coreia do Norte), um relatórioque associa relatos de sobreviventes a im-agens de satélite. Ele foi publicado pelaprimeira vez em 2003 pelo Comitê Norte-Americano pelos Direitos Humanos na Cor-eia do Norte e atualizado à medida que maistestemunhos e mais imagens de alta resol-ução se tornaram disponíveis. Hawkexplicou-me que, por ter nascido e crescidonum campo, Shin sabe de coisas que outrossobreviventes desconhecem. A história queele contou foi também cuidadosamente ex-aminada pelos autores do “White Paper onHuman Rights in North Korea” (Relatóriosobre os direitos humanos na Coreia doNorte) da Associação Coreana dos Ad-vogados. Eles conduziram extensas entrevis-tas com Shin, bem como com outros sobre-viventes conhecidos que se dispuseram a

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falar. Como Hawk escreveu, a única maneiraque a Coreia do Norte teria para “refutar,contradizer ou invalidar” o testemunho deShin e de outros sobre os campos seria per-mitir que especialistas estrangeiros os visi-tassem. Caso contrário, declara Hawk, otestemunho deles se mantém.

Se o país de fato desmoronar, Shin talvezesteja correto ao prever que seus líderes,temendo julgamentos por crimes de guerra,demolirão os campos antes que investi-gadores consigam chegar até eles. Como KimJong Il explicou: “Devemos envolver nossoambiente num denso nevoeiro para impedirque nossos inimigos aprendam qualquercoisa sobre nós.”6

Para tentar reunir num todo coerente oque eu não podia ver, passei muito tempodurante três anos escrevendo sobre as forçasarmadas, a liderança, a economia, a escassezde alimentos e os abusos contra os direitoshumanos na Coreia do Norte. Entrevistei um

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grande número de desertores, inclusive trêsex-detentos do Campo 15 e um ex-guarda emotorista que serviu em quatro campos detrabalhos forçados. Conversei com estu-diosos e tecnocratas sul-coreanos que viajamregularmente para a Coreia do Norte e exam-inei o crescente corpo de pesquisas acadêm-icas e memórias pessoais que versam sobreos campos. Nos Estados Unidos, conduzilongas entrevistas com americanos de ori-gem coreana que se tornaram os amigosmais chegados de Shin.

Ao avaliar a história aqui relatada, é pre-ciso ter em mente que muitos outros presospassaram por adversidades semelhantes oupiores, segundo An Myeong Chul, o ex-guarda e motorista. “Shin teve uma vida re-lativamente confortável pelos padrões deoutras crianças nos campos”, disse ele.

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Ao explodir bombas nucleares, atacar a Cor-eia do Sul e cultivar uma reputação de beli-gerância desencadeada ao menor estímulo, ogoverno da Coreia do Norte provocou umasituação semipermanente de emergência desegurança na península coreana.

Todas as vezes que se dignou a participarda diplomacia internacional, a Coreia doNorte conseguiu excluir os direitos humanosdas pautas de discussão. A administração decrises, em geral concentrada em armas nuc-leares e mísseis, dominou as negociaçõesamericanas com o país.

Os campos de trabalhos forçados foramuma reflexão posterior.

“Conversar com eles sobre os campos éalgo que ainda não foi possível”, disse-meDavid Straub, que trabalhou no Departa-mento de Estado durante os anos Clinton eBush como funcionário graduado respon-sável pela política com a Coreia do Norte.

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“Eles ficam doidos quando se fala noassunto.”

Os campos mal alfinetaram a consciênciacoletiva do mundo. Nos Estados Unidos,apesar de notícias nos jornais, a ignorânciasobre sua existência continua muito difun-dida. Durante vários anos em Washington,uma meia dúzia de desertores e sobre-viventes de campos da Coreia do Nortereunia-se toda primavera para discursos epasseatas. A imprensa da capital dava-lhespouca atenção. Parte da razão era a língua. Amaioria dos desertores só falava coreano. Deigual importância, numa cultura de mídiaque se alimenta da celebridade, era o fato denenhum astro de cinema, nenhum ídolo pop,nenhum ganhador do prêmio Nobel dar umpasso à frente para pedir um investimentoemocional numa questão distante, que nãoseria capaz de render boas imagens.

“Os tibetanos têm o Dalai Lama e RichardGere, os mianmarenses têm Aung San Suu

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Kyi, os darfurianos têm Mia Farrow e GeorgeClooney”, disse-me Suzanne Scholte, umaativista de longa data que levou sobre-viventes de campos para Washington. “Osnorte-coreanos não têm ninguém assim.”

Shin me disse que não merece falar pelasdezenas de milhares que continuam noscampos. Envergonha-se do que fez parasobreviver e fugir. Resistiu a aprender inglês,em parte porque não quer contar sua históriamuitas e muitas vezes numa língua quepoderia torná-lo importante. Mas querdesesperadamente que o mundo com-preenda o que a Coreia do Norte tentouesconder com tanta diligência. Carrega umgrande peso. Nenhuma outra pessoa nascidae criada nos campos fugiu para explicar oque acontecia lá dentro — o que aindaacontece lá dentro.

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CAPÍTULO 1O MENINO QUE COMIA OALMOÇO DA MÃE

Shin morava com a mãe nos melhores alo-jamentos que o Campo 14 tinha a oferecer:

uma “aldeia-modelo” próxima de um pomare bem em frente à plantação de trigo ondeela foi enforcada mais tarde.

Cada uma das quarenta construções deum pavimento da aldeia abrigava quatrofamílias. Shin e a mãe tinham um quarto sópara si, onde dormiam lado a lado num pisode concreto. As quatro famílias

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compartilhavam uma cozinha comunitária,com uma única lâmpada descoberta. Haviaeletricidade por duas horas ao dia, dasquatro às cinco da manhã e das dez às 11 danoite. As janelas eram feitas de vinil cinza,opaco demais para se ver através dele. Osquartos eram aquecidos — à moda coreana —por uma fogueira de carvão na cozinha comtubos condutores que passavam sob o pisodos quartos. O campo tinha suas própriasminas de carvão e havia disponibilidade decombustível para o aquecimento.

Não existiam camas, cadeiras ou mesas.Não havia água corrente. Nenhum banheiroou chuveiro. No verão, os prisioneiros quedesejavam se banhar às vezes iam furtiva-mente até o rio. Cerca de trinta famílias seserviam do mesmo poço de água potável.Compartilhavam também uma latrina, di-vidida ao meio para homens e mulheres. Eraobrigatório defecar e urinar ali, porque os

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excrementos humanos eram usados comofertilizante na fazenda do campo.

Nas ocasiões em que conseguia cumprirsua cota diária de trabalho, a mãe de Shinpodia levar comida para aquela noite e o diaseguinte. Às quatro da manhã, ela preparavao desjejum e o almoço para o filho e para si.Todas as refeições eram iguais: mingau demilho, repolho na salmoura e sopa de re-polho. Shin comeu essa refeição pratica-mente todos os dias durante 23 anos, amenos que fosse punido e impedido decomer.

Quando ele ainda não tinha idade para irà escola, sua mãe muitas vezes o deixava soz-inho em casa, pela manhã, e voltava doscampos ao meio-dia para o almoço. Sempreesfomeado, o menino comia seu almoço as-sim que a mãe saía para o trabalho.

Também comia o almoço dela.Quando a mãe voltava ao meio-dia e não

encontrava nada para comer, ficava furiosa e

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batia no filho com uma enxada, uma pá,qualquer coisa que lhe estivesse à mão. Algu-mas surras foram tão violentas quanto as queele recebeu mais tarde dos guardas.

Apesar disso, o menino pegava toda acomida da mãe que podia, sempre que con-seguia. Não lhe ocorria que, se comesse o al-moço dela, a mãe passaria fome. Muitos anosdepois, quando ela estava morta e elemorava nos Estados Unidos, Shin me disseque a amava. Mas isso era resultado de umaretrospecção. Isso foi depois que ele apren-deu que uma criança civilizada devia amarsua mãe. Quando estava no campo — de-pendendo dela para todas as refeições, fur-tando sua comida, suportando as surras —,ele a encarava como uma adversária na lutapela sobrevivência.

Seu nome era Jang Hye Gyung. Shinlembra-se dela como baixa e ligeiramenterechonchuda, com braços fortes. Usava o ca-belo curto, como todas as mulheres no

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campo, e era obrigada a cobrir a cabeça comum pano branco dobrado num triângulo eamarrado na nuca. Shin descobriu a data denascimento dela — 1º de outubro de 1950 —num documento que viu durante um inter-rogatório na prisão subterrânea.

Ela nunca lhe falou sobre seu passado,sobre sua família, ou sobre por que estava nocampo, e ele nunca perguntou. Sua existên-cia como filho dela fora arranjada pelosguardas. Ela e o homem que se tornou pai deShin foram selecionados para premiar um aooutro, num casamento de “recompensa”.

Homens e mulheres solteiros viviam emdormitórios segregados por sexo. A oitava re-gra do Campo 14, que Shin teve de memoriz-ar, dizia: “Caso ocorra contato físico sexualsem prévia aprovação, os perpetradores ser-ão fuzilados imediatamente.”

As regras eram as mesmas em outroscampos de trabalhos forçados norte-coreanos. Segundo minhas entrevistas com

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um ex-guarda e vários ex-prisioneiros, se osexo não autorizado resultasse numagravidez ou num nascimento, a mulher e seubebê, em geral, eram mortos. Eles disseramque as mulheres que faziam sexo com guar-das, na tentativa de obter mais comida ou dearranjar um trabalho mais fácil, sabiam queos riscos eram altos. Se engravidassem, elasdesapareciam.

Um casamento por recompensa era a ún-ica maneira segura de contornar a regra deabstenção do sexo. Acenava-se aos pri-sioneiros com o casamento como o bônus su-premo por trabalho árduo e delação con-fiável. Os homens tornavam-se elegíveis aos25 anos; as mulheres, aos 23. Os guardasanunciavam casamentos três ou quatro vezespor ano, geralmente em datas propícias,como o Ano-Novo ou o dia do aniversário deKim Jong Il. Nem o noivo nem a noiva tin-ham muita voz na escolha da pessoa comquem se casariam. Se um parceiro

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considerasse o cônjuge que lhe fora desig-nado inaceitavelmente velho, cruel ou feio,os guardas por vezes anulavam o casamento.Nesse caso, porém, nem o homem nem amulher teriam nova permissão para se casar.

O pai de Shin, Shin Gyung Sub, contouque os guardas lhe deram Jang como paga-mento por sua habilidade na operação de umtorno de metal na oficina mecânica docampo. A mãe nunca revelou como fez jusàquela honra.

Mas para Jang, como para muitas noivasno campo, o casamento era uma espécie depromoção. Ele vinha com um emprego li-geiramente melhor e melhor moradia — naaldeia-modelo, onde havia uma escola e umaclínica médica. Pouco após seu casamento,ela deixou um dormitório apinhado de mul-heres na fábrica de roupas do campo e foitransferida para lá. Ganhou também umcobiçado cargo numa fazenda próxima, onde

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havia oportunidades de furtar milho, arroz everduras.

Após o casamento, o casal teve permissãopara dormir junto durante cinco noites con-secutivas. Dali em diante, o pai de Shin, quecontinuou a morar num dormitório em seulocal de trabalho, passou a ter licença paravisitar Jang algumas vezes por ano. A ligaçãode ambos produziu dois filhos. O mais velho,He Geun, nasceu em 1974. Shin nasceu oitoanos depois.

Os irmãos mal se conheciam. Na épocaem que Shin nasceu, o mais velho passavadez horas por dia numa escola primária.Quando Shin completou quatro anos, oirmão foi removido (na idade obrigatória de12 anos) de casa para um dormitório.

Quanto a seu pai, Shin lembra-se de queele aparecia de vez em quando à noite e iaembora cedo, na manhã seguinte. Dava pou-ca atenção ao menino, que cresceu indifer-ente a sua presença.

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Nos anos que se seguiram à fuga docampo, Shin aprendeu que muitas pessoasassociavam carinho, segurança e afeto às pa-lavras “mãe”, “pai” e “irmão”. Essa não era asua experiência. Os guardas ensinavam paraele e as demais crianças que elas eram pri-sioneiras por causa dos “pecados” de seuspais. As crianças ouviam que, emboradevessem sempre se envergonhar de seusangue traiçoeiro, poderiam fazer muito para“lavar” sua herança pecaminosa trabalhandocom afinco, obedecendo aos guardas e de-latando os próprios pais. A décima regra doCampo 14 diz que um prisioneiro deve con-siderar cada guarda “seu verdadeiro mestre”.Isso fazia sentido para Shin. Durante sua in-fância e adolescência, os pais foram pessoasexaustas, distantes e pouco comunicativas.

Shin era uma criança magricela, poucocuriosa e basicamente sem amigos, cuja ún-ica fonte de certeza eram os sermões sobre aredenção por meio da delação. Sua

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compreensão do certo e do errado, porém,era muitas vezes obscurecida por encontrosque testemunhava entre a mãe e os guardasdo campo.

Quando tinha dez anos, ele saiu de casauma noite, à procura da mãe. Estava comfome e era a hora em que ela devia prepararo jantar. Andou até o arrozal próximo ondeela trabalhava e perguntou a uma mulher sea vira.

— Ela está limpando a sala dobowijidowon — disse-lhe a mulher,referindo-se ao escritório do guarda encar-regado da fazenda de arroz.

Shin foi até o local e encontrou a porta dafrente trancada. Espiou por uma janela nalateral do prédio. Viu a mãe de joelhoslimpando o chão. Enquanto ele olhava, obowijidowon aproximou-se dela por trás ecomeçou a apalpá-la. Ela não ofereceu res-istência. Os dois tiraram as roupas. Shin osviu fazer sexo.

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Ele nunca questionou sua mãe sobre oepisódio, nem mencionou para o pai o queviu.

Naquele mesmo ano, alunos da turma deShin na escola primária foram solicitados aoferecer ajuda aos pais no trabalho. Certamanhã, ele se juntou à mãe para plantar mu-das de arroz. Ela parecia não se sentir bem eatrasou-se na tarefa. Um pouco antes do in-tervalo para o almoço, seu ritmo lentochamou a atenção de um guarda.

— Sua puta — ele gritou para ela.“Puta” era a forma de tratamento dis-

pensada habitualmente às prisioneiras. Shine os outros prisioneiros do sexo masculinoeram chamados em geral de “filhos da puta”.

— Como é capaz de encher a barrigaquando não consegue nem plantar arroz? —perguntou o guarda.

Ela se desculpou, mas o guarda foi fic-ando cada vez mais irritado.

— Essa puta não se emenda — gritou ele.

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Enquanto Shin estava parado junto damãe, o guarda inventou uma punição.

— Vá se ajoelhar naquele cimo e levanteos braços. Fique nessa posição até que euvolte do almoço.

A mãe de Shin ficou ajoelhada sobre ocimo, ao sol, por uma hora e meia, com osbraços estendidos para o céu. O meninomanteve-se por perto e observou. Não sabiao que dizer a ela. Não disse nada.

Quando o guarda voltou, mandou a mul-her retomar o trabalho. Fraca e faminta, eladesmaiou no meio da tarde. Shin correu atéo guarda, suplicando-lhe ajuda. Outras tra-balhadoras arrastaram sua mãe até umasombra, onde ela recobrou a consciência.

Nessa noite, Shin foi com a mãe a umareunião de “luta ideológica”, um encontrocompulsório para autocrítica. Lá, ela caiu dejoelhos novamente, enquanto quarenta desuas colegas de trabalho na fazenda,seguindo o exemplo do bowijidowon, a

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repreendiam por não ter sido capaz de com-pletar sua cota de trabalho.

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Nas noites de verão, Shin e alguns outrosmeninos pequenos de sua aldeia entravam àsescondidas no pomar que ficava logo aonorte do aglomerado de casas de concretoem que viviam. Colhiam peras e pepinosverdes e comiam o mais rápido que podiam.Quando eram apanhados, os guardas os sur-ravam com bastões e os excluíam do almoçona escola durante vários dias.

Os guardas, porém, não se importavamque Shin e os amigos comessem ratos, rãs,cobras e insetos. Eles eram esporadicamenteabundantes na vastidão do complexo, ondese usavam poucos pesticidas, recorria-se aexcrementos humanos como fertilizante e

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não se fornecia água para a limpeza de latri-nas ou banhos.

A ingestão de ratos não enchia apenas es-tômagos vazios; era essencial para a sobre-vivência. Sua carne ajudava a evitar apelagra, doença por vezes fatal que grassavano campo, em especial no inverno. Pri-sioneiros com pelagra, resultado de umacarência de proteína e niacina em suas di-etas, experimentavam fraqueza, lesões dapele, diarreia e demência. A doença era umacausa frequente de morte.

Apanhar e assar ratos tornou-se umapaixão para Shin. Ele os capturava em casa,nos campos e na latrina. Costumavaencontrar-se com os amigos à noite, naescola primária, onde havia uma grelha acarvão, para assá-los. Tirava-lhes a pele,raspava-lhes as entranhas, salgava a sobra emastigava o resto — a carne, os ossos e asminúsculas patinhas.

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Ele também aprendeu a usar as hastes decapim rabo-de-raposa para espetargafanhotos-do-campo, locustas e libélulas,que assava sobre o fogo no fim do verão e nooutono. Nas florestas das montanhas, ondegrupos de estudantes eram enviados paracatar lenha, comia uvas silvestres, groselhase framboesas coreanas aos montes.

Durante o inverno, a primavera e o iníciodo verão, havia muito menos o que comer. Afome o impelia, bem como a seus amigos demeninice, a tentar estratégias que, segundoprisioneiros mais velhos, podiam aliviar odesconforto de um estômago vazio. Elesfaziam suas refeições sem tomar água nemsopa, com base na teoria de que a ingestão delíquidos acelerava a digestão e apressava oretorno das dores da fome. Tambémtentavam abster-se de defecar, acreditandoque isso faria com que se sentissem cheios emenos obcecados por comida. Uma técnicaalternativa de combate à fome consistia em

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imitar as vacas, regurgitando uma refeiçãorecente e comendo-a de novo. Shin experi-mentou o artifício algumas vezes, mas issonão ajudou a aliviar sua fome.

O verão, quando crianças eram enviadaspara os campos para ajudar a plantar e cap-inar, era a estação em que os ratos e oscamundongos ficavam mais abundantes.Shin lembra-se de comê-los todos os dias. Osmomentos de sua infância em que se sentiamais feliz, mais contente, eram aqueles emque tinha a barriga cheia.

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O “problema da comida”, como costuma serchamado na Coreia do Norte, não está con-finado aos campos de trabalhos forçados. Eletolheu os corpos de milhões de pessoas emtodo o país. Os meninos adolescentes que fu-giram do Norte na última década eram em

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média 12,7 centímetros mais baixos epesavam 11,33 quilos a menos que os quecresciam na Coreia do Sul.1

O retardo mental causado pela desnu-trição infantil precoce desqualifica cerca deum quarto dos recrutas potenciais das forçasarmadas na Coreia do Norte, segundo o Con-selho Nacional de Inteligência, uma institu-ição de pesquisa que faz parte da comunid-ade de inteligência dos Estados Unidos. Seurelatório dizia que incapacidades intelectuaisprovocadas pela fome entre os jovensprovavelmente frustrariam o crescimentoeconômico, mesmo que o país se abrisse parao mundo exterior ou se unisse ao Sul.

Desde os anos 1990, a Coreia do Nortetem sido incapaz de cultivar, comprar ou dis-tribuir alimentos suficientes para sua popu-lação. Em meados dessa década, a fomematou talvez um milhão de norte-coreanos.Se uma taxa de mortalidade semelhante

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ocorresse nos Estados Unidos, reclamariacerca de 12 milhões de vidas.

No final dos anos 1990, o desastre ali-mentar no país foi aliviado quando o governoconcordou em aceitar auxílio internacional.Os Estados Unidos tornaram-se seu maiordoador, ao mesmo tempo em que con-tinuavam a ser seu mais demonizadoinimigo.

A Coreia do Norte precisa produzir, acada ano, mais de cinco milhões de toneladasde arroz e outros cereais para alimentar seus23 milhões de habitantes. Quase todos osanos, fica aquém dessa meta, em geral porcerca de um milhão de toneladas. Com in-vernos prolongados e montanhas altas, opaís carece de terra arável, recusa incentivosaos agricultores e não tem recursos paracustear combustível ou equipamentos agrí-colas modernos.

Durante anos, escapou por pouco decatástrofes alimentares graças a subsídios de

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Moscou. Quando a União Soviética desmoro-nou, esses subsídios cessaram, e a economiado país, com planejamento central, parou defuncionar. Não havia mais combustível gra-tuito para suas fábricas obsoletas, não haviamais mercado garantido para suas mer-cadorias geralmente de qualidade inferior,nem acesso aos fertilizantes químicos bar-atos de fabricação soviética dos quais a agri-cultura estatizada havia se tornadodependente.

Por vários anos, a Coreia do Sul ajudou apreencher a lacuna, doando a Pyongyangmeio milhão de toneladas de fertilizantesanualmente como parte de sua “SunshinePolicy” (Política do Raio de Sol), na tentativade atenuar as tensões Norte-Sul.

Em 2008, quando uma nova liderançaem Seul cortou o fornecimento gratuito defertilizantes, a Coreia do Norte tentou fazerem âmbito nacional o que vinha fazendohavia décadas em seus campos de trabalhos

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forçados. As massas foram instruídas a fabri-car toibee, um fertilizante feito com cinzasmisturadas a excrementos humanos. Nos úl-timos invernos, dejetos congelados foram re-colhidos de banheiros públicos em cidades evilas de todo o país. Fábricas, empresaspúblicas e bairros receberam ordem deproduzir duas toneladas de toibee, de acordocom a Good Friends, uma organização fil-antrópica budista com informantes no país.Na primavera, secava-se esse material ao arlivre, antes de ser transportado para fazen-das estatais. Mas os fertilizantes orgânicosnão chegaram nem perto de substituir osprodutos químicos dos quais as fazendas es-tatais dependeram por décadas.

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Segregado atrás de uma cerca eletrificadadurante os anos 1990, Shin não soube que

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seus compatriotas estavam desesperada-mente famintos.

Nem ele nem seus pais (até onde soube)ouviram falar que o governo enfrentava di-ficuldades para alimentar o Exército ou quepessoas morriam de inanição em seusapartamentos em cidades da Coreia doNorte, inclusive na capital.

Eles não souberam que dezenas de mil-hares de norte-coreanos haviam abandonadosuas casas e caminhavam para a China embusca de comida. Tampouco foram os bene-ficiários dos bilhões de dólares de ajuda ali-mentar despejados no país. Durante aquelesanos caóticos, quando o funcionamentobásico do governo de Kim Jong Il estacou,especialistas do Ocidente escreveram livroscom títulos apocalípticos, como O fim daCoreia do Norte.

Esse fim não podia ser avistado em lugaralgum do Campo 14, que era autossuficiente,

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exceto por carregamentos ocasionais de sal,que chegavam por via ferroviária.

Os prisioneiros cultivavam seu própriomilho e repolho. Como trabalhadores escra-vos, produziam hortaliças, frutas, peixes decativeiro, carne de porco, uniformes, ci-mento, cerâmica e artigos de vidro para aeconomia que desmoronava do lado de forada cerca.

Shin e a mãe sentiram-se infelizes efamintos durante a crise de fome, mas nãomais do que o de costume. O menino con-tinuava como antes, caçando ratos, surrupi-ando a comida da mãe e sempre suportandosuas surras.

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CAPÍTULO 2A ÉPOCA DA ESCOLA

Oprofessor iniciou uma busca surpresa.Revistou os bolsos de Shin e os dos outros

quarenta meninos de seis anos de sua turma.Terminada a busca, o professor tinha em

mãos cinco grãos de milho. Eles pertenciama uma menina baixa, frágil e, na lembrançade Shin, excepcionalmente bonita. Ele não selembra do seu nome, mas tudo mais queaconteceu na escola naquele dia de junho de1989 ressalta em sua lembrança.

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O professor estava de mau humor quandocomeçou a revistar bolsos. Ao achar o milho,explodiu.

— Sua puta, você roubou milho? Querque cortem suas mãos?

Ele ordenou que a menina ficasse nafrente da classe e se ajoelhasse. Brandindosua comprida vara de apontar, golpeou-avárias vezes na cabeça. Enquanto Shin e oscolegas observavam em silêncio,protuberâncias brotaram-lhe no crânio.Sangue escorria-lhe do nariz. Ela tombou nopiso de concreto. Shin e vários outros colegasa levantaram e a levaram para casa, umafazenda de porcos que não ficava longe daescola. Mais tarde naquela noite, a meninamorreu. O inciso três da terceira regra doCampo 14 dizia: “Qualquer pessoa que furteou esconda qualquer alimento será fuziladaimediatamente.”

Shin havia aprendido que os professoresnão costumavam levar essa regra a sério.

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Quando encontravam comida no bolso deum estudante, por vezes lhe davam um parde golpes erráticos com uma vara. Era maiscomum não fazerem nada. Volta e meia, Shine outros estudantes se arriscavam. A menin-inha bonita, em sua opinião, tivera apenasazar.

Ele tinha sido treinado por guardas e pro-fessores para acreditar que era surradoporque merecia — em razão do sanguetraiçoeiro que herdara dos pais. A meninanão era diferente. Sua punição pareceu-lhejusta e lícita, e ele nunca se zangou com oprofessor por tê-la matado. Acreditava queos colegas de classe sentiam o mesmo.

No dia seguinte, na escola, nenhumamenção foi feita à surra. Nada mudou na salade aula. Até onde Shin soube, o professornão foi castigado por suas ações.

Shin passou os cinco anos da escolaprimária com esse mesmo professor, quetinha trinta e poucos anos, usava uniforme e

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levava uma pistola num coldre no quadril.Nos intervalos entre as aulas, ele permitiaque os meninos brincassem de “pedra, papele tesoura”. Aos sábados, por vezes concediaàs crianças uma ou duas horas para catarempiolhos no cabelo umas das outras. Shinnunca soube seu nome.

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No primário, Shin foi ensinado a andarereto, inclinar a cabeça diante dos profess-ores e nunca olhá-los nos olhos. Quando en-trou na escola, recebeu um uniforme preto:calças, camisa, camiseta e um par de sapatos.Eram substituídos a cada dois anos, emboracomeçassem a desintegrar-se depois de umou dois meses.

Às vezes os estudantes recebiam sabãocomo recompensa especial por trabalho ár-duo. Shin, que não se distinguia pela

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diligência, raramente tocava num sabão.Suas calças, impregnadas de suor e poeira,eram duras como papelão. Se usava as unhaspara se coçar, uma casca de sujeira se de-spregava delas. Quando estava frio demaispara banhos de rio ou de chuva, Shin, a mãee os colegas de classe cheiravam como ani-mais da fazenda. No inverno, quase todosficavam com os joelhos pretos de sujeira. Amãe de Shin costurava cuecas e meias paraele, feitos de trapos. Depois que ela morreu,ele não usou mais cuecas, e se esforçava paraencontrar trapos para enfiar dentro dossapatos.

A escola, um aglomerado de prédios facil-mente visível em fotografias de satélite,ficava a cerca de sete minutos a pé da casa deShin. As janelas eram de vidro, não de vinil.Era o único luxo. Tal como a casa de suamãe, a sala de aula era de concreto. O pro-fessor ficava num estrado diante de umúnico quadro-negro. Os alunos se

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distribuíam dos dois lados de uma passagemcentral — meninos de um lado, meninas dooutro. Retratos de Kim Il Sung e Kim Jong Il— o elemento principal de toda sala de aulana Coreia do Norte — não eram vistos emparte alguma.

Lá ensinavam linguagem e aritmética ele-mentares, treinavam as crianças quanto àsregras do campo e lhes lembravam a todo in-stante seu sangue iníquo. Os alunos daescola primária tinham seis dias de aula porsemana. Os da escola secundária tinhamsete, com um dia de folga por mês.

— Vocês têm de lavar os pecados de suasmães e seus pais, por isso tratem de trabal-har com afinco! — dizia-lhes o diretor nasassembleias.

O dia escolar começava pontualmente àsoito horas com uma sessão chamadachonghwa. Isso significa harmonia total,mas era uma oportunidade para o professorcriticar alunos pelo que tinham feito de

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errado na véspera. A frequência era veri-ficada duas vezes todos os dias. Por maisdoente que um aluno estivesse, ausênciasnão eram permitidas. De vez em quando, Sh-in ajudava colegas de classe a carregar alun-os enfermos para a escola. Ele mesmo,porém, raramente adoecia, a não ser por res-friados. Foi vacinado apenas uma vez, contravaríola.

Shin aprendeu a ler e escrever o alfabetocoreano, fazendo exercícios em papel gros-seiro fabricado no campo com palha demilho. A cada período letivo, recebia um ca-derno com 25 folhas. À guisa de lápis, usavamuitas vezes uma haste de ponta afiada ouum pedaço de madeira carbonizada. Descon-hecia a existência de borrachas. Não havialeitura, pois o único livro era do professor.Para os exercícios escritos, os alunos eraminstruídos a explicar como tinham deixadode trabalhar arduamente e de obedecer àsregras.

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Shin aprendeu a somar e subtrair, masnão a multiplicar e dividir. Até hoje, quandoprecisa multiplicar, soma uma coluna denúmeros.

Educação física significava correr de umlado para o outro ao ar livre e fazer exercíciosem barras de ferro no pátio da escola. Vez ououtra os alunos iam até o rio catar caracóispara o professor. Não havia jogos de bola.Shin viu uma bola de futebol pela primeiravez aos 23 anos, após fugir para a China.

As metas de longo prazo para os alunosda escola estavam implícitas no que os pro-fessores nunca se davam ao trabalho de en-sinar. Eles diziam a Shin que a Coreia doNorte era um Estado independente e res-saltavam a existência de carros e trens. (Issonão era uma grande revelação, pois o meninovia guardas dirigindo carros e havia uma es-tação ferroviária no canto sul do campo.)Mas nada diziam sobre a geografia do país,seus vizinhos, sua história ou seus líderes.

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Shin tinha apenas uma vaga noção de quemeram o Grande Líder e o Querido Líder.

Perguntas não eram permitidas. Elas ir-ritavam os professores e provocavam surras.Professores falavam; alunos escutavam. Porrepetição em classe, Shin dominou o alfabetoe a gramática elementar. Aprendeu a pro-nunciar as palavras, mas com frequência nãotinha nenhuma ideia do que significavam.Seu professor o deixava com medo, por in-stinto, de tentar procurar novas informações.

Ele nunca entrou em contato com umcolega de classe que tivesse nascido fora docampo. Até onde podia dizer, a escola era re-servada para crianças como ele, a prole decasamentos de recompensa gerada nocampo. Disseram-lhe que crianças nascidasfora do campo e levadas para lá com os paisnão podiam frequentar a escola e ficavamconfinadas nas seções mais remotas docampo, os Vales 4 e 5.

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Os professores, então, podiam moldar asmentes e os valores dos alunos sem seremcontestados por crianças que pudessemsaber alguma coisa sobre o que existia alémda cerca.

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Não havia segredo em relação ao que estavareservado para Shin e seus colegas de classe.A escola primária e secundária os treinavapara o trabalho duro. No inverno, criançaslimpavam a neve, derrubavam árvores e re-volviam carvão com pás para o aquecimentoda escola. Todo o corpo discente (cerca demil alunos) era mobilizado para limpar latri-nas na aldeia Bowiwon, onde viviam os guar-das, alguns com mulheres e filhos. Shin e oscolegas iam de casa em casa para removerfezes congeladas com enxadas e jogar os de-jetos com as mãos nuas (não havia luvas

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para prisioneiros do campo) em cestos. Tin-ham de arrastar os excrementos até camposcircundantes ou carregá-los nas costas.

Em dias mais quentes e felizes, depois daescola, à tarde, a turma de Shin marchava àsvezes para os morros e montanhas atrás daescola a fim de coletar alimentos e ervas paraos guardas. Embora isso fosse contra as re-gras, muitas vezes eles enchiam os uniformesde samambaias, osmundáceas e outrasplantas e as levavam para casa, onde as mãesas cozinhavam. Colhiam cogumelos agáricosem abril e matsutake em outubro. Nessaslongas caminhadas vespertinas, as criançastinham permissão para conversar entre si. Asegregação rigorosa entre os sexos era relax-ada, e meninos e meninas trabalhavam jun-tos, riam e brincavam lado a lado.

Shin começou o primeiro ano com duasoutras crianças de sua aldeia — Hong SungJo, um menino, e Moon Sung Sim, umamenina. Durante cinco anos eles

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caminharam juntos para a escola esentaram-se na mesma sala de aula. Naescola secundária, passaram mais cinco anosna companhia uns dos outros.

Shin considerava Hong Sung Jo seu com-panheiro mais chegado. Brincavam juntosentre as aulas na escola. Suas mães trabal-havam na mesma fazenda. Nenhum dos dois,porém, jamais convidou o outro para ir emsua casa. A confiança entre amigos era en-venenada pela constante competição porcomida e a pressão para delatar. Na tentativade ganhar rações extras de comida, criançascontavam aos guardas o que seus vizinhosestavam comendo, vestindo e dizendo.

A punição coletiva na escola tambémjogava colegas de classe uns contra os outros.A turma de Shin muitas vezes recebia umacota diária de árvores para plantar ou paracolher. Se as expectativas não fossemcumpridas, todos eram punidos. Os profess-ores ordenavam que as crianças dessem sua

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ração de almoço (por um dia ou às vezes poruma semana) para outra turma que tinharealizado sua cota. Nas tarefas, Shin cos-tumava ser lento, muitas vezes o último.

Quando ele e os colegas de classe ficarammais velhos, suas tarefas, chamadas de“grupamentos de esforços”, se tornarammais demoradas e mais difíceis. Durante o“combate às ervas daninhas”, que ocorriaentre junho e agosto, alunos da escolaprimária trabalhavam das quatro da manhãaté o anoitecer arrancando ervas daninhasde campos de milho, feijão e sorgo.

Quando Shin e seus colegas chegaram aoensino médio, mal estavam alfabetizados.Mas nessa altura a instrução em sala de aulachegara ao fim. Os professores se tornaramcapatazes. A escola secundária era uma pre-paração para o trabalho em equipe nas mi-nas, nos campos e nas florestas. No fim dodia, era um local de reunião para longas ses-sões de autocrítica.

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Shin entrou pela primeira vez numa minade carvão quando tinha dez anos de idade.Ele e cinco colegas de classe (mais dois men-inos e três meninas, entre as quais sua viz-inha Moon Sung Sim) desceram por um poçoíngreme até a face da mina. Seu trabalho eracarregar gôndolas de carvão e empurrá-laspor um trilho estreito até uma área inter-mediária de armazenamento. Para cumprirsua cota diária, eles tinham de empurrarquatro gôndolas morro acima.

As duas primeiras lhes tomavam toda amanhã. Depois de um almoço de milhomoído e repolho salgado, as crianças exaus-tas, os rostos e as roupas cobertos de poeiranegra, rumavam de volta para o veio decarvão, carregando velas na mina negracomo tinta.

Um dia, ao empurrar a terceira gôndola,Moon Sung Sim se desequilibrou e um deseus pés escorregou sob uma roda de aço.Shin, que estava parado junto dela, ouviu um

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grito. Tentou ajudar a menina, que se con-torcia e suava, a tirar o sapato. Seu dedão dopé estava esmagado e sangrando. Um outroestudante amarrou um cordão de sapato emvolta do tornozelo da menina como uma es-pécie de torniquete.

Shin e outros dois meninos ajudaramMoon a subir numa gôndola de carvão vaziae empurraram-na para fora da mina. Depoiscarregaram a menina até o hospital docampo, onde o dedo dilacerado foi amputadosem anestésicos e a incisão tratada com águasalgada.

Além de fazer trabalhos físicos mais pesa-dos, os alunos da escola secundária pas-savam mais tempo encontrando defeitos emsi mesmos e nos outros. Escreviam em ca-dernos de palha de milho, preparando-separa as sessões de autocensura que aconte-ciam sempre depois do jantar. Todas asnoites, cerca de dez estudantes tinham deconfessar alguma coisa.

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Shin tentava se encontrar com os colegasantes dessas sessões para combinar quem di-ria o quê. Inventavam pecados que poderiamsatisfazer os professores sem provocar pun-ições draconianas. Shin lembra-se de confes-sar que comera milho encontrado no chão eque tirara um cochilo quando não havia nin-guém olhando. Se os estudantes ap-resentavam espontaneamente um númerosuficiente de transgressões, as punições cos-tumavam se limitar a um tapa na cabeça euma exortação a trabalhar com mais afinco.

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Espremidos uns contra os outros, 25 meni-nos dormiam no chão de concreto do dorm-itório da escola secundária. Os mais fortesdormiam perto — mas não demais — de umtubo condutor aquecido a carvão que passavasob o piso. Os mais fracos, inclusive Shin,

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dormiam longe do calor e muitas vezes pas-savam a noite toda tremendo. Alguns nãotinham escolha, senão tentar dormir sobre otubo, onde corriam o risco de sofrerqueimaduras graves quando o sistema deaquecimento se inflamava bruscamente.

Shin lembra-se de um garoto arrogantede 12 anos, de constituição robusta, chamadoRyu Hak Chul. Ele dormia onde bem enten-dia e era também o único menino que ousavafalar de maneira desrespeitosa com umprofessor.

Um dia, Ryu abandonou a tarefa do dia, eseu desaparecimento logo foi comunicado. Oprofessor mandou sua classe sair à procuradele.

— Por que parou de trabalhar e fugiu? —perguntou o professor quando Ryu foi en-contrado e voltou à escola.

Para espanto de Shin, o menino não sedesculpou.

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— Fiquei com fome, por isso fui comer —respondeu ele, sem pestanejar.

O professor ficou igualmente pasmo.— Esse filho da puta está respondendo?

— perguntou.Ordenou então que os estudantes amar-

rassem Ryu a uma árvore. Eles lhe tiraram acamisa e o prenderam com arame.

— Surrem-no até que recobre a razão —disse o professor.

Shin juntou-se aos colegas para esmurrarRyu sem pensar duas vezes.

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CAPÍTULO 3A CLASSE SUPERIOR

Shin estava com nove anos de idade quandoo sistema de castas da Coreia do Norte o

atingiu em cheio.Era o início da primavera, e ele e mais

uns trinta colegas caminhavam até a estaçãoferroviária, onde seu professor os mandaraapanhar o carvão que caía de vagões duranteos carregamentos. A estação ficava próximado canto sudoeste do Campo 14, e para ir daescola até lá os estudantes tinham de passarem uma área abaixo do complexo deBowiwon, situado sobre um penhasco

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sobranceiro ao rio Taedong. Nessa área,moram os guardas e suas famílias, e os filhosdeles frequentam a escola ali.

Do alto, as crianças gritaram para Shin eos colegas quando passaram.

— Os filhos da puta reacionários estãovindo.

Pedras do tamanho de punhos choveramsobre as crianças prisioneiras. Entre o rio e openhasco, elas não tinham onde se esconder.Uma pedra atingiu Shin no rosto, logo abaixodo olho esquerdo, abrindo um talho pro-fundo. Soltando gritos estridentes, o meninoe os colegas encolheram-se na estrada deterra, tentando proteger as cabeças com osbraços e as mãos.

Uma segunda pedra atingiu Shin nacabeça, derrubando-o no chão e deixando-otonto. Quando a tontura passou, o apedreja-mento havia cessado. Muitos de seus colegasgemiam e sangravam. Moon, a vizinha ecolega de classe que mais tarde perderia o

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dedão do pé na mina, havia sido derrubada.O líder da turma de Shin, Hong Joo Hyun,que deveria atuar como uma espécie de su-pervisor da missão de trabalho do dia, estavatambém desmaiado.

Mais cedo, naquela manhã, o professorlhes dissera que fossem na frente para a es-tação, que se apressassem e começassem atrabalhar. Ele os alcançaria mais tarde.

Quando o professor finalmente veio pelaestrada e descobriu seus alunos en-sanguentados e caídos pelo chão, ficouirritado.

— O que estão fazendo que ainda nãopegaram no serviço? — gritou.

Timidamente, os alunos perguntaram oque deviam fazer com os colegas que per-maneciam inconscientes.

— Carreguem-nos nas costas — instruiu oprofessor. — Tudo o que precisam fazer étrabalhar duro.

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Nos anos seguintes, quando Shin avistavacrianças de Bowiwon em qualquer lugar nocampo, ele procurava andar na direçãooposta.

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Os garotos de Bowiwon tinham todo odireito de jogar pedras em meninos comoShin, pois o sangue deles, como filhos depecadores irredimíveis, estava contaminadoda pior maneira concebível. As crianças deBowiwon, porém, vinham de famílias cujalinhagem havia sido santificada pelo GrandeLíder.

Em 1957, para identificar e isolar aquelesa quem considerava seus inimigos políticos,Kim Il Sung criou um sistema hierárquiconeofeudal, baseado em relações consan-guíneas. O governo classificou e, numa me-dida considerável, segregou toda a população

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norte-coreana com base na aparente confiab-ilidade dos pais e dos avós de cada indivíduo.A Coreia do Norte se autointitulava o Paraísodos Trabalhadores, mas, ao mesmo tempoque professava fidelidade aos ideaiscomunistas de igualdade, inventou um dossistemas de castas mais rigidamente estrati-ficados do mundo. Três amplas classes foramcriadas, com 51 subgrupos: no topo, mem-bros da classe superior podiam obter empre-gos no governo, no Partido dos Trabal-hadores coreano, patentes de oficiais nasforças armadas e trabalho nos serviços de in-teligência. A classe superior incluía agri-cultores, famílias de soldados mortos dur-ante a Guerra da Coreia, famílias daquelesque haviam servido com Kim Il Sung na lutacontra a ocupação japonesa e funcionáriosdo governo.

O nível seguinte era a classe vacilante ouneutra, que incluía soldados, técnicos e pro-fessores. Na base, estava a classe hostil, cujos

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membros eram suspeitos de fazer oposiçãoao governo. Ela incluía ex-proprietários deimóveis, parentes de coreanos que haviamfugido para a Coreia do Sul, cristãos eaqueles que trabalharam para o governo co-lonial japonês que controlou a penínsulacoreana antes da Segunda Guerra Mundial.Seus descendentes estão em minas efábricas. Não lhes é permitido ingressar emuniversidades.

Além de ditar oportunidades de carreira,o sistema moldou destinos geográficos e deuà classe superior permissão para viver nacapital, Pyongyang, e nas proximidades.Muitas pessoas da classe hostil foram reas-sentadas em províncias distantes, ao longoda fronteira chinesa. Alguns membros da va-cilante podiam ascender no sistema ingress-ando no Exército do Povo Coreano, servindocom distinção e, com sorte e boas conexões,conseguindo galgar um degrau inferior nopartido governante.

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O rápido crescimento de mercados priva-dos enriqueceu alguns membros das classesvacilante e hostil, permitindo-lhes alcançar,mediante compra e suborno, padrões de vidamelhores que os de alguns membros da elitepolítica.1

Para cargos no governo, porém, as ori-gens familiares decidiam praticamente tudo— inclusive quem tinha o direito de jogarpedras em Shin.

Os únicos norte-coreanos consideradosconfiáveis o bastante para se tornar guardasnos campos de prisioneiros políticos eramhomens como An Myeong Chul, filho de umfuncionário do serviço de inteligência.

Ele foi recrutado para o Bowibu aos 19anos, depois de dois anos de serviço militar.Como parte do processo, a lealdade de toda asua família estendida foi verificada. Exigiu-se também que assinasse um documento de-clarando que jamais revelaria a existênciados campos. Sessenta por cento dos duzentos

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jovens recrutados com ele eram, igualmente,filhos de funcionários do serviço deinteligência.

An trabalhou como guarda e motoristaem quatro campos de trabalhos forçados(que não incluíram o Campo 14) durante seteanos no final da década de 1980 e no iníciodos anos 1990. Fugiu para a China em 1994,depois que seu pai, que supervisionava a dis-tribuição regional de alimentos, entrou emconflito com seus superiores e se suicidou.Após chegar à Coreia do Sul, An conseguiutrabalho como bancário em Seul e casou-secom uma sul-coreana. O casal tem dois fil-hos. Ele também se tornou um ativista dosdireitos humanos.

Após sua deserção, An descobriu que airmã e o irmão foram enviados para umcampo de trabalhos forçados, onde o rapazveio a morrer.

Quando conversamos durante um jantarchinês em Seul em 2009, An usava terno

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azul-escuro, camisa branca, gravata listradae óculos de meia armação. Parecia prósperoe falava de uma maneira tranquila, cuida-dosa. Entretanto, é um homem de tamanhointimidante, com mãos grandes e ombros dezagueiro de futebol americano.

Durante o treinamento para o posto deguarda, ele estudou a arte marcial coreanado tae kwon do, aprendeu técnicas derepressão de tumultos e foi instruído a nãose preocupar se seu modo de tratar pri-sioneiros causasse ferimento ou morte. Noscampos, An acostumou-se a bater naquelesque não cumpriam suas cotas de trabalho.Lembra-se de ter surrado um prisioneirocorcunda.

“Era normal bater nos prisioneiros”,disse, explicando que seus instrutores o en-sinaram a nunca sorrir e a pensar nos deten-tos como “cães e porcos”. “Ensinavam-nos anão pensar neles como seres humanos. Osinstrutores nos diziam para não demonstrar

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piedade. Diziam: ‘Se o fizer, você se tornaráum prisioneiro.’”

Embora a piedade fosse proibida, haviapoucas diretrizes além dessa para o trata-mento dos prisioneiros. O resultado,comentou An, era que os guardas ficavamlivres para dar vazão a seus apetites e ex-centricidades, muitas vezes abusando dejovens prisioneiras atraentes, que em geralconsentiam em fazer sexo em troca de mel-hor tratamento.

“Se isso resultasse em filhos, as mulherese os bebês eram mortos”, disse An, observ-ando que ele mesmo vira recém-nascidosserem golpeados até a morte com varas deferro. “A teoria subjacente aos campos erapurificar até três gerações das famílias dosque pensavam erroneamente. Seria incoer-ente, portanto, permitir o nascimento demais uma geração.”

Guardas conquistavam o direito de in-gressar na faculdade se flagrassem alguém

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tentando fugir — um sistema de incentivo aque os ambiciosos se agarravam. Eles per-mitiam uma tentativa de fuga, contou An, efuzilavam os fugitivos antes que chegassemàs cercas que circundam os campos.

Com mais frequência, porém, prisioneir-os eram surrados, por vezes até a morte,simplesmente porque guardas estavam ente-diados ou de mau humor.

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Embora pertençam por sangue à classe su-perior, os guardas das prisões e seus filhoslegítimos fazem parte de uma periferia dofuncionalismo que passa a maior parte desuas vidas de trabalho trancafiada em ermosgélidos do interior do país.

A nata da classe superior vive em Pyongy-ang, em grandes apartamentos ou em casasunifamiliares em condomínios fechados.

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Fora da Coreia do Norte, não se sabe comcerteza quantos são os membros dessa elite,mas estudiosos sul-coreanos e americanosacreditam que ela corresponde a uma minús-cula fração da população do país, algo entrecem mil e duzentas mil pessoas num uni-verso de 23 milhões.

Membros da elite dignos de confiança etalentosos recebem permissões periódicaspara deixar o país, servindo como diplo-matas e executivos para companhias estatais.Na última década, o governo dos EstadosUnidos e instituições policiais do mundo in-teiro documentaram que alguns dessesnorte-coreanos estão envolvidos emempreendimentos criminosos que canalizammoeda forte para Pyongyang.

Eles foram associados a falsificação denotas de cem dólares, ciberterrorismo,tráfico de drogas que vão de heroína a Viagrae comercialização de cigarros de marcas dealta qualidade (mas falsificados). Violando

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resoluções das Nações Unidas, os norte-coreanos também venderam foguetes etecnologia de armas nucleares para paísescomo o Irã e a Síria, segundo funcionários daONU.

Um bem viajado integrante da elitenorte-coreana contou-me como ganhava avida, ao mesmo tempo em que assegurava oapoio e a afeição de Kim Jong Il.

Seu nome é Kim Kwan Jin, e ele cresceuem Pyongyang como membro da elite desangue azul. Estudou literatura britânica naUniversidade Kim Il Sung, reservada para osfilhos dos mais altos funcionários. Sua espe-cialidade profissional — antes de desertarpara a Coreia do Sul em 2003 — era admin-istrar uma fraude global envolvendo seguros,comandada pelo Estado. Arrecadavam-secentenas de milhões de dólares de algumasdas maiores companhias de seguros domundo com base em falsas alegações deacidentes industriais e desastres naturais

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dentro da Coreia do Norte. E a maior partedo dinheiro era canalizada para o QueridoLíder.

O festivo ponto culminante anual dessamaquinação acontecia na semana anterior aoaniversário de Kim Jong Il, em 16 de fever-eiro. Executivos da Corporação Nacional deSeguros da Coreia — o monopólio estatal queorquestrava a fraude — baseados no exteriorpreparavam-lhe um presente de aniversárioespecial.

No início de fevereiro de 2003, em seuescritório em Cingapura, Kim Kwan Jinobservou seus colegas encherem duassacolas reforçadas com vinte milhões dedólares em dinheiro vivo e as enviarem, viaPequim, para Pyongyang. Era dinheiro pagopor companhias internacionais, e não foiuma única oferta. Segundo Kim, nos cincoanos em que trabalhou em Pyongyang para acorporação estatal de seguros, sacolas cheiasde dinheiro sempre chegavam a tempo para

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o aniversário do líder. Ele contou que vin-ham da Suíça, da França e da Áustria, bemcomo de Cingapura.

O dinheiro, disse ele, era entregue àSeção 39 do Comitê Central do Partido dosTrabalhadores coreano. Essa abominávelseção ou divisão foi criada por Kim Jong Ilnos anos 1970 para angariar moeda forte edar-lhe uma base de poder independente dopai, que na época ainda dirigia o país. Se-gundo Kim Kwan Jin (e muitos outrosdesertores e relatos publicados), a Seção 39compra artigos de luxo para assegurar alealdade da elite norte-coreana. Também fin-ancia a aquisição de componentes de fab-ricação estrangeira para mísseis e outrosprogramas de armamentos.

De acordo com Kim, o esquema fraudu-lento de seu país funcionava assim: adminis-tradores do monopólio estatal de segurosbaseados em Pyongyang emitiam apólicesque cobriam desastres onerosos mas comuns

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no país, como acidentes em minas, colisõesde trens e perdas de colheita em decorrênciade enchentes. “O principal aspecto da oper-ação de resseguros é que elas se assentam emdesastres”, disse ele. “Toda vez que ocorreum desastre, ele se torna uma fonte demoeda forte” — para o governo.

Kim e outros agentes da companhia se-guradora da Coreia do Norte baseados no ex-terior eram espalhados pelo mundo para en-contrar corretores que aceitariam prêmios deseguro sedutoramente elevados para com-pensar o país por esses desastres.

Os resseguros constituem uma indústriade muitos bilhões de dólares que dispersa orisco assumido por uma companhia de se-guros entre várias companhias no mundo to-do. A cada ano, disse Kim, a Coreia do Nortefazia o possível para embaralhar suas ofertasentre os maiores jogadores no campo dosresseguros.

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“Nós as distribuíamos”, contou. “Um ano,podia ser a Lloyd’s [de Londres]. No anoseguinte, podia ser a Swiss Re.”

Ao diluir perdas relativamente modera-das entre muitas grandes companhias, a Cor-eia do Norte escondia o grande risco que rep-resentava. Seu governo preparava pedidos deindenização meticulosamentedocumentados, empurrava-os através de seutribunal fantoche e exigia pagamento imedi-ato. Muitas vezes, porém, restringia o direitode resseguradoras de enviar investigadorespara verificá-los. Segundo um especialista dosetor de seguros baseado em Londres, o paístambém explorava a ignorância geográfica ea ingenuidade política de algumas resse-guradoras e de seus corretores. Muitaspensavam estar lidando com uma firma daCoreia do Sul, disse o especialista, ao passoque outras ignoravam que a Coreia do Norteera um Estado totalitário fechado, com

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tribunais simulados e nenhuma responsabil-idade internacional.

Com o tempo, as companhias de resse-guros começaram a suspeitar de indeniza-ções frequentes e onerosas por desastres detrem e naufrágios de balsas que eram prat-icamente impossíveis de investigar. Ad-vogados da gigantesca seguradora alemã Al-lianz Global Investors, da Lloyd’s de Londrese de várias outras resseguradoras abriramum processo num tribunal de Londres contraa Corporação Nacional de Seguros da Coreia.Contestaram o pedido de indenização refer-ente à colisão de um helicóptero contra umarmazém do governo em Pyongyang em2005. Em documentos apresentados aotribunal, as companhias alegaram que oacidente havia sido encenado, que a decisãodo tribunal norte-coreano de apoiar a re-quisição havia sido fabricada e que a Coreiado Norte rotineiramente lançava mão de

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fraudes em seguros para levantar dinheiropara uso pessoal de Kim Jong Il.

As companhias, no entanto, desistiram desuas acusações e concordaram com umacordo que constituiu uma vitória quasecompleta para a Coreia do Norte. Fizeram-no, segundo analistas jurídicos, porquehaviam assinado, numa atitude insensata,contratos em que concordavam em se sub-meter às leis norte-coreanas. Após o acordo,advogados da Coreia do Norte declararamser “assombrosamente injusto” sugerir que opaís se envolvera numa fraude. Mas a publi-cidade gerada pelo caso alertou a indústriamundial de resseguros, levando-a a evitar opaís, e o esquema foi se encerrandogradativamente.

Kim Kwang Jin conta que Kim Jong Ilficou encantado quando recebeu as sacolascom vinte milhões de dólares em dinheirovivo de Cingapura.

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“Recebemos uma carta de agradeci-mento, e houve uma grande celebração”,disse, observando que Kim Jong Il providen-ciara para que ele e os colegas recebessempresentes que incluíam laranjas, maçãs,aparelhos de DVD e mantas.

Frutas, eletrodomésticos e cobertores.Essa parca manifestação de gratidão dit-

atorial é reveladora. Em Pyongyang, o estilode vida da classe superior é luxuoso apenaspelos padrões de um país onde um terço dapopulação sofre de fome crônica.

As elites têm apartamentos relativamentegrandes e acesso a arroz. Têm preferência nacompra de luxos importados, como frutas ebebidas. Mas, para os residentes em Pyongy-ang, a eletricidade é, na melhor dashipóteses, intermitente, a disponibilidade deágua quente é rara e viajar para fora do paísé difícil, exceto para diplomatas e homens denegócios patrocinados pelo Estado.

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“Uma família de elite em Pyongyang nãovive nem de longe tão bem — em termos deposses materiais, conforto e opções de entre-tenimento — quanto a família de um as-salariado mediano em Seul”, contou-meAndrei Lankov, um cientista político de ori-gem russa que cursou a faculdade em Py-ongyang e agora leciona na UniversidadeKookmin, em Seul. A renda per capita médiana Coreia do Sul é 15 vezes mais alta que noNorte (1.900 dólares em 2009). Entre ospaíses com renda per capita mais alta que ada Coreia do Norte estão o Sudão, o Congo eo Laos.

A exceção, é claro, é a dinastia Kim.Imagens de satélite das residências dafamília destacam-se como oásis de luxo napaisagem paupérrima da Coreia do Norte.Eles mantêm pelo menos oito casas decampo, segundo livros escritos por seuex-chef e um ex-guarda-costas, quase todasprovidas com salas de cinema, quadras de

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basquete e estandes de tiro. Várias têm pis-cina coberta, além de centros de entreteni-mento com pista de boliche e patinação. Fo-tografias feitas por satélite mostram umhipódromo em tamanho padrão, uma es-tação de trem privativa e um parqueaquático.

Um iate particular, com uma piscina decinquenta metros e dois tobogãs, foi fotogra-fado perto da casa da família em Wonsan;esta se situa numa península com praias deareias brancas, e acredita-se que é apreferida. O ex-guarda-costas contou queKim Jong Il ia com frequência para lá caçarcorços, faisões e gansos selvagens. Todas assuas casas foram mobiliadas com peças im-portadas do Japão e da Europa. A carnebovina que a família consome é criada porguarda-costas numa fazenda de gado espe-cial, e suas maçãs vêm de um pomar or-gânico onde açúcar, um artigo raro e caro no

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Norte, é adicionado ao solo para adoçar asfrutas.2

Os privilégios consanguíneos são singu-larmente valiosos na família Kim. Em 1994,na primeira sucessão hereditária no mundocomunista, Kim Jong Il herdou do pai o con-trole ditatorial da Coreia do Norte. A se-gunda sucessão do mesmo tipo aconteceu emdezembro de 2011, depois da morte de Kim,aos 69 anos. Seu caçula, Kim Jong Eun, foiprontamente alçado à posição de “líder su-premo” do partido, do Estado e do Exército.Embora não tenha ficado claro se o poder seencontra nas mãos dele, de seus parentesmais velhos ou dos generais, a máquina depropaganda se esforçou para criar um novoculto à personalidade. Kim Jong Eun foidescrito no diário do partido, Rodong Sin-mun, como “o pilar espiritual e o farol de es-perança” para os militares e o povo. A agên-cia de notícias estatal observou que o novolíder é “um proeminente pensador e teorista

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e um comandante brilhante e ímpar” queserá uma “fundação sólida para a prosperid-ade do país”.

Além do sangue certo, o filho possui es-cassas qualificações. Ele frequentou umaescola de língua alemã em Leibefeld, naSuíça, onde jogava como armador no time debasquete e passava horas fazendo desenhos alápis do grande Michael Jordan do ChicagoBulls.3 Retornou a Pyongyang aos 17 anospara frequentar a Universidade Kim Il Sung.Pouco se sabe sobre o que ele estudou lá.

Os preparativos para a segunda transfer-ência de poder de pai para filho se tornaramevidentes em Pyongyang pouco depois queKim Jong Il sofreu um derrame em 2008.Este deixou o Querido Líder com umaclaudicação perceptível e retirou Kim JongEun da obscuridade.

Em conferências pronunciadas paraaudiências seletas em Pyongyang em 2009,Kim Jong Eun foi descrito como um “gênio

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das artes literárias” e um patriota que “estátrabalhando sem dormir ou descansar” parapromover a Coreia do Norte como uma su-perpotência nuclear. Uma música de propa-ganda, “Pegadas”, foi difundida entre basesmilitares para preparar o quadro de oficiaispara a chegada de um dinâmico “Jovem Gen-eral”. Ele era de fato jovem, no fim da casados vinte, tendo nascido em 1983 ou 1984.

Em setembro de 2010, na festa de ap-resentação do jovem general, seu rosto foioficialmente mostrado ao mundo pelaprimeira vez. Pasmos, os jornalistas ociden-tais, que em geral não conseguem entrar naCoreia do Norte, foram convocados parauma grande parada militar na Praça Kim IlSung, onde nos estimularam a filmar e foto-grafar um rapaz que parecia tão vigorosoquanto o pai parecia debilitado. Ele era a im-agem do falecido avô Kim Il Sung, o GrandeLíder, que sempre fora mais amado do queKim Jong Il.

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Aquela semelhança incomum parecia or-questrada, enquanto Kim Jong Eun pro-curava consolidar o poder depois da mortedo pai. Suas roupas e o cabelo — trajes ao es-tilo Mao e corte militar bem aparado, semcosteletas — eram iguais aos do avô na épocaem que ele conquistou o poder sobre a Cor-eia do Norte em 1945. Na Coreia do Sul, cir-cularam boatos de que tal semelhança haviasido acentuada com a ajuda de cirurgiõesplásticos em Pyongyang, que transformaramo jovem em uma espécie de Grande Líder II.

Se o novo líder pretende governar com omesmo punho de ferro de seu pai e seu avô,com certeza vai precisar de algum apoio pop-ular, junto com uma sólida adesão por partedos militares. Seu pai, Kim Jong Il, talveznunca tenha conquistado a popularidade,mas teve quase vinte anos para aprendercomo dominar os mais velhos. Escolheu adedo muitos dos principais generais e, na

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prática, já administrava o país quando damorte do pai, em 1994.

Sem ter completado ainda trinta anos ecom apenas três para aprender como fun-cionam as coisas, Kim Jong Eun não contacom tantas vantagens. Até dominar osmecanismos de governo, ele dependerá deseu sangue privilegiado, de um incipienteculto a sua personalidade e da lealdade deparentes, protegidos e generais que podemou não estar dispostos a permanecer nosbastidores.

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CAPÍTULO 4A MÃE TENTA FUGIR

Shin calçava os sapatos no dormitório daescola quando o professor apareceu, a sua

procura. Era a manhã de sábado, dia 6 de ab-ril de 1996.

— Ei, Shin, venha cá agora — disse oprofessor.

Intrigado por estar sendo chamado, Shinsaiu às pressas do dormitório para o pátio daescola. Ali, três homens uniformizados o es-peravam junto de um jipe. Eles o algemaram,vendaram-no com uma faixa de pano preto e

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o empurraram no banco de trás do jipe. Semdizer uma palavra, levaram-no dali.

Shin não tinha a menor ideia de paraonde o levavam ou por quê. Mas, depois depassar meia hora sacolejando no banco detrás, ficou com medo e começou a tremer.

Quando o jipe parou, os homens o tir-aram do carro e o puseram em pé. Ele ouviua pancada de uma pesada porta de metal queabria e fechava e, em seguida, o gemido deum mecanismo. Os guardas o empurrarampara dentro de um elevador, e ele sentiu quedescia. Havia penetrado numa prisão subter-rânea no interior do campo.

Após sair do elevador, foi conduzido porum corredor até um cômodo grande, vazio esem janelas onde guardas retiraram-lhe avenda. Ao abrir os olhos, viu um oficial milit-ar com quatro estrelas presas ao uniforme,sentado atrás de uma escrivaninha. Dois out-ros guardas de farda estavam de pé perto

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dele. Um deles ordenou a Shin que se sen-tasse numa cadeira de espaldar reto.

— Você é Shin In Geun? — perguntou ooficial com quatro estrelas.

— Sim, é isso mesmo — respondeu Shin.— Shin Gyung Sub é o nome de seu pai?— Sim.— Jang Hye Gyung é o nome de sua mãe?— Sim.— Shin He Geun é o nome de seu irmão?— Sim.O oficial olhou fixamente para Shin por

cerca de cinco minutos. O garoto não tinhaideia de aonde ele queria chegar com ointerrogatório.

— Sabe por que está aqui? — perguntou,por fim, o oficial.

— Não sei.— Devo lhe dizer?Shin assentiu com a cabeça.— Hoje ao raiar do dia sua mãe e seu

irmão foram pegos tentando fugir. É por isso

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que está aqui. Entende? Tinha conhecimentodesse fato ou não?

— Eu... eu não sabia.Shin estava tão chocado com a notícia

que teve dificuldade de falar. Não sabia aocerto se estava acordado ou sonhando. O ofi-cial foi ficando cada vez mais irritado eincrédulo.

— Como é possível que não soubesse quesua mãe e seu irmão tentaram fugir? — per-guntou. — Se quer viver, vai dizendo averdade.

— Não, eu realmente não sabia — disseShin.

— E seu pai não mencionou nada?— Faz tempo que não vou em casa — re-

spondeu Shin. — Quando estive lá um mêsatrás, não ouvi nada.

— Que tipo de queixa tem sua famíliapara arriscar uma fuga?

— Sinceramente, não sei de nada.

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Esta foi a história que Shin contouquando chegou à Coreia do Sul no fim doverão de 2006. Contava-a sempre da mesmamaneira, contou-a muitas vezes e contava-abem.

Os interrogatórios em Seul começaramcom agentes do Serviço Nacional de In-teligência do governo. Interrogadores experi-entes, eles conduzem extensas entrevistascom todo desertor norte-coreano e foramtreinados para identificar os assassinos que ogoverno de Kim Jong Il enviava periodica-mente para o Sul.

Depois de passar pelo pessoal do serviçosecreto, Shin contou sua história para con-selheiros e psiquiatras num centro governa-mental de readaptação, depois para ativistasdos direitos humanos e para outrosdesertores, e por fim repetiu tudo para os no-ticiários. Escreveu sobre ela em suas

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memórias em coreano de 2007 e narrou-apara mim quando nos encontramos pelaprimeira vez em dezembro de 2008.Aprofundou-a nove meses mais tarde dur-ante uma série de entrevistas que me con-cedeu em Seul, que se estenderam por umasemana, muitas vezes nos ocupando o diatodo.

Não havia, é claro, nenhuma maneira deconfirmar o que dizia. Shin era a única fontede informação disponível sobre sua juven-tude. Sua mãe e seu irmão estavam mortos.O pai continuava no campo, ou talvez tam-bém estivesse morto. O governo norte-coreano dificilmente poderia corrigir o de-poimento, pois nega a existência do Campo14.

Apesar disso, a história foi examinadapor sobreviventes de outros campos de tra-balhos forçados, por estudiosos, por de-fensores dos direitos humanos e pelo gov-erno na Coreia do Sul e pareceu-lhes

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verdadeira. Acreditei nela e a inseri namatéria publicada no Washington Post.Escrevi que, como a mãe não lhe falara sobreo plano de fuga, Shin “ficou surpreso aosaber dele”.

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Numa manhã sem nuvens em Torrance, naCalifórnia, Shin retornou à história erevisou-a.

Fazia cerca de um ano que trabalhávamosno livro de maneira intermitente, e durante asemana anterior havíamos nos sentado umdiante do outro em meu quarto pouco ilu-minado de um hotel Best Western, passandoem revista cuidadosamente os eventos de suajuventude.

Na véspera dessa sessão, Shin disse quetinha algo novo e importante a revelar. Insis-tiu que encontrássemos um novo intérprete.

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Também convidou Hannah Song, então suachefe e guardiã de facto, para ouvir. Song eraa diretora executiva da Liberdade na Coreiado Norte, o grupo de direitos humanos queajudara a trazê-lo para os Estados Unidos.Coreano-americana de 29 anos, ela ajudavaShin a cuidar de dinheiro, vistos, viagens, as-sistência médica e comportamento.Descrevia-se, de brincadeira, como mãe dorapaz.

Shin tirou as sandálias e enfiou os pés de-scalços sob o corpo no sofá do hotel. Ligueium gravador. O som do tráfego matinal noTorrance Boulevard penetrava o quarto. Shinmexeu nos botões de seu telefone celular.

— Então, qual é a novidade? — perguntei.Ele disse que estivera mentindo sobre a

fuga da mãe. Inventara a mentira poucoantes de chegar à Coreia do Sul.

— Havia muita coisa que eu precisavaesconder — disse. — Estava apavorado que

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as pessoas reagissem com violência, que meperguntassem: “Você é mesmo humano?”

“Foi um fardo guardar isso comigo. Nocomeço, não dei muita importância a minhamentira. Minha intenção era mentir. Agoraas pessoas a minha volta me fazem quererser sincero. Elas me fazem querer ser maisdecente. Para isso, sinto que preciso dizer averdade. Agora tenho amigos que são sincer-os. Comecei a compreender o que é sincerid-ade. Sinto uma enorme culpa por tudo.

“Eu era mais leal aos guardas do que aminha família. Éramos espiões uns dos out-ros. Sei que se disser a verdade as pessoasvão me condenar.

“Quem está do lado de fora tem umacompreensão errada do campo. Não são sóos soldados que nos surram. Os próprios pri-sioneiros não são bondosos uns com os out-ros. Não há nenhum sentido de comunidade.Sou um daqueles prisioneiros malvados.”

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Shin disse que não esperava perdão peloque estava prestes a revelar. Disse que elemesmo não se perdoara. Parecia também es-tar fazendo algo mais que expiar uma culpa.Queria explicar — de uma maneira que, re-conhecia, iria prejudicar sua credibilidadecomo testemunha — como o campo havia de-formado seu caráter.

Disse que, se quem vive do lado de forapudesse compreender o que os campos deprisioneiros políticos fizeram — e estãofazendo — com as crianças nascidas do ladode dentro da cerca, isso redimiria suamentira e sua vida.

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CAPÍTULO 5A MÃE TENTA FUGIR,SEGUNDA VERSÃO

Esta história começa um dia mais cedo, natarde de sexta-feira, 5 de abril de 1996.Quando o dia na escola chegou ao fim, o

professor de Shin o surpreendeu. Disse queele não precisava passar a noite no dorm-itório. Podia ir para casa e jantar com a mãe.

O professor o estava recompensando porbom comportamento. Após dois anos nodormitório, ele tinha começado a com-preender algumas coisas. Demorava-se com

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menos frequência, apanhava com menos fre-quência, delatava com mais frequência.

Shin não tinha nenhum desejo especialde passar a noite na casa da mãe. A relaçãodos dois não melhorara depois que passarama viver separados. Ele não confiava nela paracuidar dele; ela ainda parecia tensa em suapresença. O professor, contudo, mandou-opara casa. Por isso, ele foi.

Por mais inesperado que tivesse sido paraele ser mandado para casa, teve uma sur-presa maior quando chegou lá. Seu irmãotambém estava lá. Ele trabalhava na fábricade cimento situada a muitos quilômetros dedistância, no extremo sudeste do campo. Sh-in raras vezes o via, mal o conhecia. HeGeun, com 21 anos, saíra de casa havia umadécada.

Shin sabia apenas que o irmão não eramuito trabalhador. Raramente ganhava per-missão para deixar a fábrica e visitar os pais.Para se encontrar na casa da mãe, pensou

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Shin, ele devia por fim ter feito alguma coisadireito.

A mãe de Shin não ficou particularmenteencantada quando o caçula apareceu de sur-presa para jantar. Não lhe deu as boas-vin-das nem disse que sentira sua falta.

— Ah, você está em casa — foram suaspalavras.

Depois preparou a comida, usando suaração diária de setecentos gramas de fubápara fazer mingau na única panela que pos-suía. Com tigelas e colheres, ela e os filhoscomeram sentados no chão da cozinha. De-pois da refeição, Shin foi para o quarto.

Vozes vindas da cozinha despertaram-no.Ele espiou pela porta do quarto, curioso emsaber o que a mãe e o irmão estavamaprontando.

A mãe cozinhava arroz. Para Shin, foicomo uma bofetada na cara. Fora-lhe servidauma rala sopa de milho, o mesmo mingau

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insípido que comera todos os dias de suavida. Agora o irmão ia comer arroz.

É difícil exagerar a importância do arrozna cultura norte-coreana. Ele significariqueza, evoca a união de uma família e san-tifica uma refeição apropriada. Os prisioneir-os nos campos de trabalhos forçados quasenunca o comem, e sua ausência é um lem-brete diário da normalidade que jamais po-dem ter.

Fora do campo, a escassez crônica tam-bém retirou o arroz das dietas diárias demuitos coreanos, em especial os que per-tencem às classes hostis. Desertores adoles-centes da Coreia do Norte, ao chegar à Cor-eia do Sul, contam a psicólogos disponibiliz-ados pelo governo um sonho recorrente: es-tão sentados a uma mesa com as famílias,comendo arroz quentinho. Entre a elite dacapital, um dos símbolos de status maiscobiçados é a panela elétrica de arroz.

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Enquanto via a mãe cozinhar, Shin supôsque ela devia ter furtado o arroz, algunsgrãos de cada vez, da fazenda onde trabal-hava e escondido em casa.

No quarto, o menino ficou furioso.Também prestou atenção.Era quase só o irmão que falava. Shin

ouviu que He Geun não ganhara um dia defolga. Saíra sem permissão da fábrica de ci-mento, onde, ao que parecia, havia feito algoerrado.

Shin percebeu que o irmão estava emapuros e que provavelmente seria punidoquando os guardas o pegassem. A mãe e oirmão discutiam o que deveriam fazer.

Fugir.Shin ficou assombrado ao ouvir essa pa-

lavra. O irmão a pronunciou. Ele planejavaescapar dali. A mãe o ajudava. Sua preciosareserva de arroz era comida para a fuga.

O menino não ouviu a mãe dizer que pre-tendia ir junto. Mas ela não tentava

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persuadir o filho mais velho a ficar, emborasoubesse que, se ele fugisse ou morressetentando fazê-lo, ela e os outros membros dafamília seriam torturados e provavelmentemortos. Todo prisioneiro conhecia aprimeira regra do Campo 14, inciso 2: “Qu-alquer testemunha de uma tentativa de fugaque não a denuncie será fuziladaimediatamente.”

A mãe não parecia alarmada. Mas Shinestava. Seu coração batia com força.Enraivecia-o que ela pusesse a vida dele emrisco em benefício do irmão mais velho.Tinha medo de ser envolvido na fuga — efuzilado.

Sentia-se também enciumado porque oirmão estava ganhando arroz.

No chão do quarto da mãe, enquanto omagoado menino de 13 anos esforçava-separa controlar o medo, seus instintos cultiva-dos no campo falaram mais alto: ele

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precisava contar para um guarda. Levantou-se, passou pela cozinha e saiu pela porta.

— Aonde você vai? — perguntou-lhe amãe.

— À latrina — respondeu.Correu de volta à escola. Era uma hora da

manhã. Entrou no dormitório. O professorfora para casa, na aldeia fechada deBowiwon.

Para quem poderia contar?No dormitório apinhado onde a turma

dormia, encontrou o amigo Hong Sung Jo eo despertou.

Confiava no menino tanto quanto eracapaz de confiar em alguém.

Contou-lhe o que a mãe e o irmão plane-javam e pediu conselhos. Hung sugeriu con-tar para o vigia noturno da escola. Foramjuntos. Enquanto se dirigiam para o es-critório do vigia no prédio principal, Shinpensou numa maneira de tirar proveito desua informação.

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O vigia estava acordado e de uniforme.Os dois meninos entraram no seu escritório.

— Preciso lhe contar uma coisa — disseShin ao vigia, que ele não conhecia. — Masantes quero receber uma coisa em troca.

O guarda prometeu que o ajudaria.— Quero uma garantia de mais comida —

disse Shin.Seu segundo pedido foi ser nomeado líder

da sua série na escola, posição que lhe per-mitiria trabalhar menos e não ser surradocom tanta frequência.

O vigia garantiu ao menino que seus pe-didos seriam atendidos.

Fiando-se na promessa do homem, Shinexplicou o que o irmão e a mãe estavamplanejando e disse onde eles se encontravam.O guarda telefonou para seus superiores.Disse a Shin e Hong que voltassem para odormitório e descansassem um pouco. Elecuidaria de tudo.

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Na manhã após ter traído a mãe e o irmão,homens uniformizados apareceram no pátioda escola à procura de Shin.

Exatamente como escreveu em suasmemórias, exatamente como contou a todosna Coreia do Sul, ele foi algemado, vendado,empurrado para o banco de trás de um jipe etransportado em silêncio para uma prisãosubterrânea no interior do campo.

Mas Shin sabia por que fora intimado. Eesperava que os guardas encarregados peloCampo 14 soubessem que ele lhes dera umainformação secreta.

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CAPÍTULO 6ESSE FILHO DA PUTANÃO SE EMENDA!

Shin sabia o que tinha feito; seguira as re-gras do campo e evitara uma fuga.— Sabe por que está aqui?Mas o oficial ignorava que ele havia sido

um zeloso informante — ou não se importavacom isso.

— Hoje, ao raiar do dia, sua mãe e seuirmão foram pegos tentando fugir. É por issoque você está aqui. Entende? Tinha conheci-mento desse fato ou não? Como é possível

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que não soubesse que sua mãe e seu irmãoplanejavam fugir? Se quiser viver, tem dedesembuchar e dizer a verdade.

Desconcertado e cada vez mais amed-rontado, Shin teve dificuldade em falar. Eraum informante. Não conseguia compreenderpor que estava sendo interrogado como umcúmplice.

Mais tarde, chegaria à conclusão de que ovigia noturno reclamara para si todo omérito pela descoberta do plano de fuga. Aoinformar seus superiores, não havia men-cionado a participação de Shin.

Mas, naquela manhã na prisão subter-rânea, ele não entendia nada. Era umaturdido menino de 13 anos. O oficial comquatro estrelas continuava perguntando porquê, quando e como sua família planejara fu-gir. Ele não conseguia dizer nada decoerente.

Por fim, o oficial empurrou uns docu-mentos sobre a mesa.

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— Nesse caso, canalha, leia isto e deixeuma impressão digital do seu polegar no fim.

O documento era um registro criminal dafamília. Arrolava os nomes, idades e crimesdo pai de Shin e dos 11 irmãos do pai.

O irmão mais velho, Shin Tae Sub, era oprimeiro da lista. Junto a seu nome haviauma data: 1951, o segundo ano da Guerra daCoreia. Na mesma linha, Shin viu os crimesdo tio: perturbação da ordem pública, atosde brutalidade e deserção para o Sul. Osmesmos delitos estavam listados ao lado donome do seu segundo tio mais velho.

O menino levou muitos meses para com-preender o que lhe fora permitido ver. Ospapéis explicavam por que a família de seupai tinha sido presa no Campo 14.

O crime imperdoável que seu pai comet-era fora ser irmão de dois rapazes quehaviam se bandeado para o Sul durante umaguerra fratricida que arrasou grande parte dapenínsula da Coreia e dividiu centenas de

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milhares de famílias. O crime imperdoávelde Shin era ser filho de seu pai. Ele nunca lheexplicara nada disso.

Mais tarde o pai lhe contou sobre o dia de1965 em que a família foi levada pelas forçasde segurança. Antes do amanhecer, homensarmados invadiram uma casa que pertenciaao avô de Shin no condado de Mundok, naprovíncia de Pyongan do Sul, uma fértil re-gião agrícola situada a cerca de sessentaquilômetros da capital, Pyongyang. “Ar-rumem suas coisas”, gritaram. Eles não ex-plicaram por que a família estava sendopresa ou para onde os levariam. Quandoamanheceu, um caminhão apareceu parabuscar seus pertences. A família viajou dur-ante um dia inteiro (uma distância de cercade setenta quilômetros em estradas montan-hosas) antes de chegar ao Campo 14.

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Como lhe foi ordenado, Shin deixou a im-pressão digital de seu polegar no documento.

Guardas vendaram-no de novo,retiraram-no da sala de interrogatório e oconduziram por um corredor. Quando tir-aram a venda, ele leu o número “7” na portade uma cela. Guardas empurraram-no paradentro e jogaram-lhe um uniforme deprisioneiro.

— Ei, filho da puta, vista isto.O uniforme servia para um adulto

grande. Quando o enfiou em seu corpo baixoe ossudo, ele desapareceu no que, ao tato,parecia um saco de aniagem.

A cela era um quadrado de concreto, quemal tinha espaço suficiente para Shin deitar.Havia uma privada no canto e uma pia comágua corrente. A lâmpada pendurada do tetoestava acesa quando ele entrou e não podiaser apagada. Na falta de janelas, era impos-sível distinguir o dia da noite. Havia doiscobertores finos no chão. Não lhe deram

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nada para comer, e ele não conseguiadormir.

Shin acredita que era o dia seguintequando guardas abriram a porta, vendaram-no e levaram-no para uma segunda sala deinterrogatório, onde dois novos oficiais o es-peravam. Eles o mandaram se ajoelhar e opressionaram a explicar por que sua famíliaqueria fugir. Que ressentimentos sua mãe al-imentava? O que ele havia discutido comela? Quais eram as intenções de seu irmão?

Ele disse não ter respostas para essasperguntas.

— Você só viveu poucos anos — disse-lheum dos guardas. — Basta confessar, ir em-bora e viver. Gostaria de morrer aqui dentro?

— Eu... realmente não sei de nada — re-spondeu ele.

Estava cada vez mais amedrontado, cadavez mais faminto e ainda esforçando-se paracompreender por que os guardas não sabiam

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que fora ele que lhes dera a informação sobrea fuga.

Os guardas o devolveram à cela.No que pareceu ser a manhã do terceiro

dia, um dos interrogadores e três outrosguardas entraram na sua cela. Agrilhoaram-lhe os tornozelos, amarraram uma corda aum gancho no teto e dependuraram-no decabeça para baixo. Depois saíram etrancaram a porta — sem dizer uma palavra.

Os pés de Shin quase tocavam o teto. Acabeça estava suspensa sessenta centímetrosacima do chão. Estendendo as mãos, que osguardas não tinham amarrado, ele não con-seguia tocar o chão. Contorceu-se ebalançou-se, tentando endireitar-se, mas nãoteve sucesso. Ficou com câimbra no pescoço,e os tornozelos doíam. Por fim suas pernasficaram dormentes. A cabeça, para onde todoo sangue fluíra, doía mais a cada hora.

Os guardas só voltaram à noite.Desamarraram-no e foram embora, de novo

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sem abrir a boca. Chegou comida à cela, maspareceu-lhe quase impossível comer. Nãoconseguia mover os dedos. Os tornozelos,por causa das afiadas bordas de aço dosgrilhões, estavam sulcados e sangravam.

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No quarto dia, os interrogadores usavamroupas civis em vez de uniformes.

Depois de ser vendado e retirado da cela,Shin os encontrou numa sala pouco ilumin-ada e de pé-direito muito alto. Parecia umaoficina mecânica.

Uma corrente pendia de um sarilho noteto. Um martelo, um machado, alicates eporretes de vários tamanhos e formatos es-tavam pendurados em ganchos nas paredes.Numa larga bancada de oficina, ele viu umgrande par de tenazes, ferramenta usada

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para agarrar e transportar peças de metalquente.

— Como se sente nesta sala? — perguntouum dos interrogadores.

Ele não soube o que dizer.— Vou lhe perguntar mais uma vez —

disse o principal interrogador. — O que seupai, sua mãe e seu irmão pretendiam fazerdepois de fugir?

— Eu realmente não sei — respondeu omenino.

— Se disser a verdade agora mesmo, vousalvá-lo. Se não, vou matá-lo. Estáentendendo?

Shin lembra-se de uma confusãoparalisante.

— Tenho sido bonzinho com você atéagora porque é uma criança — disse o inter-rogador. — Não abuse da minha paciência.

Mais uma vez, ele não conseguiuresponder.

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— Esse filho da puta não se emenda! —gritou o interrogador principal.

Seus ajudantes aproximaram-se de Shin earrancaram-lhe as roupas. Grilhões forampresos em volta de seus tornozelos e amarra-dos à corrente que pendia do teto. O sarilhocomeçou a rodar, derrubando-o. Sua cabeçabateu no chão com um ruído surdo. As mãosestavam presas por uma corda que foi pas-sada por um gancho no teto. Quando termin-aram de içá-lo, seu corpo formava um “U”, orosto e os pés virados para o teto, as costasnuas pendendo sobre o chão.

O interrogador principal fez mais pergun-tas, aos berros. Pelo que se lembra, Shin nãodeu nenhuma resposta coerente. O chefedisse a um de seus homens para pegar al-guma coisa.

Uma tina cheia de carvão em brasas foiarrastada para debaixo do menino. Um dosinterrogadores usou um fole para atiçar as

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brasas. O sarilho abaixou Shin em direção àschamas.

— Continue até ele falar — disse o chefe.Enlouquecido de dor, cheirando a carne

queimada, Shin contorcia-se para escapar docalor. Um dos guardas passou a mão numgancho de arpão na parede e perfurou-lhe obaixo-ventre, mantendo-o sobre o fogo atéque ele perdeu a consciência.

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Shin acordou na cela. Estava vestido com amesma roupa de prisioneiro agora suja comsuas fezes e urina. Não tinha a menor ideiade quanto tempo passara inconsciente nochão. A parte inferior de suas costas estavacoberta de bolhas e pegajosa com fezes. Acarne em volta dos tornozelos fora raspada.

Durante dois dias, ele conseguiu arrastaros pés pela cela e comer. Guardas lhe

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levaram espigas de milho inteiras cozidas novapor, junto com mingau de milho e sopa derepolho. Mas, à medida que suas queimadur-as se infeccionavam, ficou febril, perdeu oapetite e tornou-se quase incapaz de semexer.

Vendo-o enroscado no chão da cela, umguarda gritou no corredor da prisão: “Essetampinha é mesmo durão.”

Shin presume que dez dias chegaram e seforam antes do interrogatório final. Esteaconteceu em sua cela porque ele estavafraco demais para se levantar do chão. Masnão sentia mais medo. Pela primeira vez, en-controu palavras para se defender.

— Fui eu que denunciei isso — disse. —Fiz um bom trabalho.

Os interrogadores não lhe deram crédito.Mas, em vez de ameaçá-lo ou feri-lo,fizeram-lhe perguntas. Ele explicou tudo queouvira na casa da mãe e o que contara ao vi-gia noturno na escola. Implorou aos

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interrogadores que falassem com Hong SungJo, o colega de classe que poderia confirmara história.

Eles não prometeram nada e saíram dacela.

A febre de Shin agravou-se. As bolhas nascostas incharam com pus. Sua cela cheiravatão mal que os guardas se recusavam a pisarlá dentro.

Após vários dias (embora o intervalo detempo exato não seja claro, pois o meninomergulhava e emergia de um delírio), guar-das abriram a porta da cela e ordenaram quedois prisioneiros entrassem. Eles levantaramShin do chão e o carregaram pelo corredoraté outra cela. Guardas o trancaram lá den-tro. Havia outro prisioneiro ali.

Shin obtivera uma comutação. Hong con-firmara sua história. Ele nunca mais veria ovigia noturno da escola.

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CAPÍTULO 7O SOL BRILHA ATÉ EMTOCAS DE CAMUNDONGO

Pelos padrões do Campo 14, o companheirode cela de Shin era extraordinariamente

velho, com cerca de cinquenta anos. Ele serecusou a explicar por que estava trancadona prisão subterrânea, mas contou que haviapassado muitos anos lá e sentia uma faltaterrível do sol.

Pálido, a pele dura era bamba sobre osossos descarnados. Seu nome era Kim JinMyung. Pediu para ser chamado de “Tio”.

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Durante várias semanas, Shin não tevecondições de falar muito sobre coisa alguma.A febre o mantinha enroscado no chão frio,onde esperava morrer. Não conseguia comere disse ao companheiro de cela que ficassecom seu alimento. Tio comeu um pouco, massó até o menino recobrar o apetite.

Nesse meio-tempo, Tio passou a trabal-har como enfermeiro de Shin em tempointegral.

Ele transformava as horas das refeiçõesem um momento terapêutico. Três vezes aodia, usava uma colher de pau como um rodosobre as bolhas infeccionadas de Shin.

— Há muito pus aqui — disse a Shin. —Vou raspá-lo fora, por isso tenha paciência.

Ele esfregava sopa de repolho salgado nasferidas do menino como desinfetante.Massageava-lhe os braços e as pernas paraque seus músculos não atrofiassem. Paraevitar que urina e fezes entrassem em con-tato com os ferimentos, carregava o urinol da

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cela até o garoto e o erguia de modo quepudesse usá-lo.

Shin calcula que esse tratamento intens-ivo se prolongou por cerca de dois meses.Tinha a impressão de que Tio já tinha feitoesse tipo de trabalho antes, a julgar por suacompetência e tranquilidade.

Volta e meia, Shin e Tio podiam ouvir osberros e gemidos de um prisioneiro sob tor-tura. A sala com o sarilho e os porretes pare-cia ficar logo adiante no corredor. As regrasda prisão proibiam os detentos de conversar.Mas em sua cela, que mal tinha espaço paraos dois se deitarem lado a lado, eles podiamsussurrar. Mais tarde Shin descobriu que osguardas tinham conhecimento dessasconversas.

Tio parecia desfrutar de uma situação es-pecial junto aos guardas. Eles lhe cortavam ocabelo e lhe emprestavam tesouras para quepudesse aparar a barba. Levavam-lhe coposd’água. Diziam-lhe a hora do dia quando ele

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perguntava. Davam-lhe comida extra, grandeparte da qual ele compartilhava com Shin.

— Garoto, você tem muitos dias paraviver — dizia Tio. — Dizem que o sol brilhaaté em tocas de camundongo.

As habilidades do velho e suas palavrasbondosas mantiveram o menino vivo. Suafebre diminuiu, a mente desanuviou e asqueimaduras cicatrizaram.

Era a primeira exposição de Shin a umabondade constante, e ele se sentia indizivel-mente grato. Mas também achava aquilo in-trigante. Não havia confiado na mãe para im-pedir que ele passasse fome. Na escola, nãoconfiava em ninguém, com a possível ex-ceção de Hong Sung Jo, e delatava todomundo. Em troca, esperava ofensa e traição.Na cela, Tio pouco a pouco reconfigurou es-sas expectativas. O velho dizia sentir-sesolitário e parecia genuinamente feliz porcompartilhar seu espaço e suas refeições commais alguém. Nunca irritou ou amedrontou

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Shin uma vez sequer, nunca solapou suarecuperação.

A rotina da vida na prisão após o inter-rogatório e a tortura de Shin — afora a gritar-ia que ecoava periodicamente pelo corredorda prisão — era estranhamente segura.

Embora a comida fosse insípida, os guar-das a forneciam em quantidade suficientepara que Shin e Tio sobrevivessem. Nãohavia trabalho externo perigoso, nenhumacota exaustiva a ser cumprida. Pela primeiravez na vida, Shin não era obrigado a fazernenhum trabalho braçal.

A não ser pelos cuidados com o menino,Tio era um homem ocioso. Fazia exercíciostodos os dias em sua cela. Cortava o cabelode Shin. Tinha uma conversa interessante, eseu conhecimento sobre a Coreia do Norteimpressionava o menino, em especialquando o assunto era comida.

— Tio, conte-me uma história — diziaShin.

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O velho descrevia o aspecto, o cheiro e osabor da comida fora da cerca. Graças àssuas amorosas descrições de porco assado,frango cozido e mariscos comidos à beira-mar, o apetite do menino voltou com forçaredobrada.

À medida que sua saúde melhorava, osguardas começaram a chamá-lo fora da cela.Agora sabiam muito bem que Shin havia de-latado a própria família. Pressionavam-nopara dar informações sobre o velho.

— Vocês dois estão juntos lá dentro —disse-lhe um guarda. — O que diz o velho?Não esconda nada.

Quando ele voltava à cela, Tio queriasaber:

— O que eles lhe perguntaram?Imprensado entre seu enfermeiro e os

carcereiros, Shin optou por contar a verdadepara os dois lados. Contou a Tio que os guar-das lhe haviam pedido para ser um inform-ante. Isso não surpreendeu o velho. Ele

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continuou a entreter o menino com longashistórias sobre coisas boas para comer. Masnão oferecia informações biográficas. Não fa-lava sobre sua família. Não expressava nen-huma opinião sobre o governo.

Shin achava — com base na maneira defalar de Tio — que ele fora outrora umhomem importante e instruído. Mas eraapenas uma suposição.

Embora fosse um crime falar em fugir doCampo 14, não era contra as regras fantasiarsobre como seria a vida se o governo liber-tasse a pessoa. Tio disse a Shin que os doisseriam soltos um dia. Até lá, acrescentou,tinham a obrigação sagrada de permanecerfortes, viver o quanto fosse possível e nuncapensar em suicídio.

— E você, o que acha? — Tio perguntavadepois para Shin. — Acredita que eu tambémserei capaz de sair?

Ele duvidava, mas não disse nada.

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Um guarda destrancou a porta da cela e en-tregou a Shin o uniforme escolar que eleusava no dia de sua chegada à prisãosubterrânea.

— Depressa, vista estas roupas e venhacomigo — disse o guarda.

Enquanto se trocava, o menino pergun-tou a Tio o que iria acontecer. O velhoassegurou-lhe que ele estaria a salvo e que osdois voltariam a se encontrar do lado de fora.

— Deixe-me segurá-lo uma vez — disse,apertando com força ambas as mãos de Shin.

O menino não queria partir. Ele nuncaconfiara em ninguém, nunca amara ninguémantes. Nos anos seguintes, pensaria no velhona cela escura com muito mais frequência emuito mais afeição do que nos pais. Mas, de-pois que os guardas o tiraram da cela etrancaram a porta, nunca mais viu Tio.

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CAPÍTULO 8O OLHAR DA MÃEÉ EVITADO

Levaram Shin para a sala ampla e vaziaonde, no início de abril, ele fora interrog-

ado pela primeira vez. Estavam agora no fi-nal de novembro. Ele acabara de completar14 anos. Fazia mais de meio ano que não viao sol.

O que viu na sala o chocou: seu pai estavaajoelhado diante de dois interrogadores sen-tados às suas escrivaninhas. Parecia muitomais velho e atormentado que antes. Tinha

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sido levado para o subterrâneo na mesmaépoca que o filho.

Ajoelhando-se ao lado do pai, Shin viuque a perna direita dele virava-se para forade uma maneira anormal. Shin Gyung Subtambém havia sido torturado. Abaixo de seujoelho, os ossos das pernas haviam sidoquebrados e tinham se consolidado num ân-gulo esquisito. O ferimento poria fim a seutrabalho relativamente confortável comomecânico e operador de torno. Agora teria declaudicar de um lado para outro como trabal-hador não especializado numa equipe deconstrução.

Durante o tempo que o pai de Shin pas-sara na prisão subterrânea, os guardas lhecontaram que o filho caçula denunciara oplano de fuga. Mais tarde, quando o meninoteve uma oportunidade de falar com elesobre o assunto, a conversa foi tensa. O pailhe disse que era melhor contar aos guardasdo que correr o risco de esconder o plano.

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Mas seu tom cáustico confundiu Shin. Eledava a entender que sabia que o primeiro in-stinto do filho era delatar.

— Leiam isto e ponham suas impressõesdigitais — disse um dos interrogadores, en-tregando um documento a Shin e outro a seupai. Era um acordo de confidencialidade, es-tipulando que pai e filho não contariam aninguém o que se passara dentro da prisão.Se falassem, dizia o documento, seriampunidos.

Após pressionar os polegares besuntadosde tinta nos respectivos formulários, os doisforam algemados, vendados e levados até oelevador. Na superfície, ainda com asalgemas e as vendas, foram guiados para obanco de trás de um pequeno carro e levadosdali.

No carro, Shin supôs que ele e o pai seri-am devolvidos à população do campo. Osguardas não os teriam obrigado a assinar umcompromisso de sigilo para fuzilá-los em

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seguida. Não fazia sentido. Mas, quando ocarro parou trinta minutos depois e a vendafoi retirada, ele entrou em pânico.

Uma multidão se reunira na plantação detrigo vazia perto da casa de sua mãe. Era olugar onde Shin testemunhara duas ou trêsexecuções por ano desde que se entendia porgente. Uma forca improvisada havia sidoconstruída e um poste de madeira fora fin-cado no chão.

Naquele momento, Shin se convenceu deque ele e o pai seriam executados. Ficou in-tensamente consciente do ar que entrava esaía de seus pulmões. Disse a si mesmo queaquelas eram as últimas respirações de suavida.

Seu pânico amainou quando o guardaladrou o nome do pai.

— Ei, Gyung Sub. Sente-se bem na frente.Shin recebeu ordem de acompanhar o

pai. Um guarda retirou-lhes as algemas. Elesse sentaram. O oficial que supervisionava a

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execução começou a falar. A mãe e o irmãode Shin foram arrastados.

Shin não os vira nem ouvira falar coisa al-guma sobre seu destino desde que saíra dacasa da mãe na noite em que os entregara.

— Executem Jang Hye Gyung e Shin HeGeun, traidores do povo — disse o oficialmais graduado.

Shin olhou para o pai. Ele chorava emsilêncio.

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A vergonha que Shin sente por essas ex-ecuções foi exacerbada ao longo dos anospelas mentiras que começou a contar na Cor-eia do Sul.

— Não há nada em minha vida que secompare a esse fardo — disse-me ele na Cali-fórnia quando explicou como e por que tinhadeturpado seu passado.

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No dia das execuções, porém, não sentiuvergonha. Estava furioso. Odiava a mãe e oirmão com a clareza selvagem de um adoles-cente enganado e ferido.

Na sua maneira de ver as coisas, ele haviasido torturado e quase morrera, e o pai ficaraaleijado, por causa da trama absurda eegoísta dos dois.

E, minutos apenas antes de vê-los nocampo de execução, Shin acreditara que ser-ia fuzilado por causa da imprudência deles.

Quando os guardas arrastaram sua mãepara a forca, Shin viu que ela parecia in-chada. Eles a obrigaram a subir num caixotede madeira, amordaçaram-na, amarraram-lhe os braços atrás das costas e apertaram-lhe um laço em volta do pescoço. Não cobri-ram seus olhos inchados.

Ela esquadrinhou a multidão e encontrouShin. Ele se recusou a sustentar o olhar.

Quando guardas empurraram o caixote,ela se sacudiu de um lado para outro,

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desesperadamente. Enquanto observava aluta da mãe, Shin pensava que ela mereciamorrer.

O irmão de Shin parecia macilento e frá-gil quando os guardas o amarraram ao postede madeira. Eles dispararam três vezes osseus fuzis. Balas arrebentaram a corda queatava a testa do prisioneiro ao poste. Foi umamorte sangrenta, com miolos espalhados,um espetáculo que nauseou e amedrontouShin. Mas ele pensava que o irmão tambémmerecia aquilo.

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CAPÍTULO 9FILHO DA PUTAREACIONÁRIO

Execuções de pais por tentativa de fuga nãoeram incomuns no Campo 14. Shin

testemunhou várias delas antes e depois doenforcamento da mãe. Não estava claro,porém, o que acontecia com as crianças queeles deixavam para trás. Até onde Shin podiadeterminar, nenhuma delas tinha permissãopara frequentar a escola.

Exceto ele.

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Talvez porque fosse um delator com-provado, as autoridades o mandaram devolta para a escola. Mas o retorno não foifácil.

As dificuldades começaram assim queShin percorreu a pé o caminho entre ocampo de execução e sua escola, onde o pro-fessor quis ter uma conversa com ele, emparticular. O menino conhecia esse homemhavia dois anos (embora nunca tenha sabidoseu nome) e o considerava relativamentejusto, ao menos pelos padrões do campo.

Na reunião, porém, o professor mostrou-se extremamente colérico. Queria saber porque ele informara o vigia noturno sobre oplano de fuga.

— Por que não falou comigo antes? —gritou.

— Eu queria, mas não consegui encontrá-lo — respondeu Shin, explicando que eratarde da noite e a residência dos professoresera uma área inacessível para prisioneiros.

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— Você poderia ter esperado até de man-hã — disse o professor.

Seus superiores não lhe haviam atribuídonenhum mérito pela revelação do plano defuga. Ele culpou Shin por essa injustiça e oadvertiu de que pagaria por sua imprudên-cia. Quando a turma do menino, com uns 35alunos, reuniu-se mais tarde na sala de aula,o professor apontou para Shin e gritou:

— Venha até a frente. Ajoelhe-se!Shin passou quase seis horas ajoelhado

no piso de concreto. Quando se mexia paraaliviar o desconforto, o professor lhe davauma pancada com a vara de apontar.

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No seu segundo dia, Shin foi com a turmapara uma das fazendas do campo para colherpalha de milho e transportá-la para uma áreade debulha. Ele levantou nas costas um cesto

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repleto de palha. Era um trabalho relativa-mente leve comparado ao de empurrar gôn-dolas de carvão, mas exigia o uso de uma es-pécie de arreio com uma correia de couroque esfolou a pele sensível das cicatrizes naparte inferior das suas costas e no cóccix.

Logo começou a escorrer sangue por suaspernas. As calças de seu uniforme escolarficaram ensopadas.

Shin não ousava se queixar. O professor oadvertira de que teria de trabalhar mais ar-duamente que os colegas para purgar ospecados da mãe e do irmão.

Na escola e durante os trabalhos nocampo, todos os alunos tinham de pedir per-missão para urinar e defecar. Quando Shinfez seu primeiro pedido para ir ao banheiroapós ser libertado da prisão, o professor ne-gou. Ele tentava segurar-se durante o dia naescola, mas acabava urinando nas calçasumas duas vezes por semana, em geralquando trabalhava ao ar livre com outros

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estudantes. Como era inverno e fazia muitofrio, tinha de trabalhar com as calças enrije-cidas de urina.

Shin conhecia a maior parte de seus cole-gas de classe desde que tinham sete anos,quando entraram juntos na escola primária.Embora fosse menor que a maioria, elescostumavam tratá-lo em pé de igualdade.Agora, seguindo o exemplo do professor,começaram a troçar dele e a maltratá-lo.

Tomavam-lhe sua comida, davam-lhe so-cos no estômago e o xingavam. Quase todosos xingamentos eram variações em torno de“filho da puta reacionário”.

Shin não sabe ao certo se os colegas tin-ham conhecimento de que ele traíra a mãe eo irmão. Ele acredita que seu amigo de infân-cia, Hong, não contou a ninguém. Seja comofor, nunca foi provocado por ter traído suafamília. Esse teria sido um insulto antipat-riótico e arriscado para o pátio da escola,uma vez que todos os estudantes recebiam

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ordens dos professores e dos guardas de de-nunciar suas famílias e uns aos outros.

Antes de ir para a prisão, Shin conseguirafazer uma aliança estratégica em sua turma.Fizera amizade com Hong Joo Hyun, o líderda série. (Era a função que ele havia tentadoconquistar na noite em que delatou suafamília.) Hong comandava os estudantes nasmissões de trabalho e tinha autorização doprofessor para socar e chutar os colegas queparecessem preguiçosos. Era também o in-formante em que o professor mais confiava.

O próprio Hong podia apanhar ou serprivado de refeições se a classe se mostrasseindisciplinada durante o trabalho de campo enão cumprisse as cotas. Sua posição erasemelhante à de prisioneiros adultos con-hecidos como jagubbanang, ou adminis-tradores de turma. Os guardas davam a essesadministradores, que eram sempre homens etendiam a ser fisicamente imponentes, umaautoridade praticamente ilimitada sobre

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outros prisioneiros. Como tinham de respon-der pelos fracassos de suas turmas, eles cos-tumavam ser mais vigilantes, brutais e im-placáveis que os próprios guardas.

Depois que a mãe e o irmão de Shin fo-ram executados, Hong passou a observá-locom muita atenção. Durante uma tarefa deconserto de uma estrada, ele reparou que Sh-in havia carregado uma quantidade excessivade pedras num carrinho de mão. Shin fezvárias tentativas de empurrá-lo sem con-seguir, pois estava pesado demais para seucorpo enfraquecido.

Quando Shin viu o líder de sua sérieaproximar-se com uma pá, a princípio esper-ou alguma ajuda. Pensou que Hong fosse or-denar que outros estudantes colaborassem eempurrassem o carrinho. Em vez disso,Hong brandiu a pá e golpeou Shin nascostas, jogando-o no chão.

— Empurre seu carrinho de mão daforma correta — disse Hong.

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Chutou Shin no lado da cabeça e mandouque se levantasse. Enquanto o menino se es-forçava para ficar de pé, Hong mais uma vezbrandiu a pá e amassou-lhe o nariz, quecomeçou a sangrar.

Depois dessa surra, estudantes mais nov-os e menores do que Shin começaram a in-sultar sua mãe. Com o estímulo do professor,xingavam-no e socavam-no.

Por força de seu confinamento no sub-solo, Shin perdera muito de sua força e quasetoda a resistência. Seu retorno aos trabalhosárduos, aos longos turnos e às refeições es-cassas na escola o deixou com uma fomequase insana.

No refeitório da escola, ele estava sempresurrupiando sopa de repolho derramada, en-fiando a mão em líquido frio e sujo caído nochão e lambendo os dedos. Vasculhava pisos,estradas e campos à procura de grãos de ar-roz, feijões ou estrume de vaca que pudesseconter grãos de milho não digeridos.

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Numa manhã de dezembro, cerca de duassemanas depois de voltar à escola, quandoestava trabalhando com um grupo, encon-trou um sabugo de milho ressecado nummonte de palha e devorou-o. Hong Joo Hy-un, que estava por perto, correu para cimadele, agarrou-o pelo cabelo e arrastou-o atéum professor que estava próximo.

— Professor, em vez de trabalhar, Shinestá só catando comida no lixo.

Quando o menino caiu de joelhos paraimplorar perdão (uma humilhação ritual queele executava instintivamente), o professorgolpeou-o na cabeça com a bengala e gritou,chamando o resto da classe para ajudar apunir o catador de comida no lixo.

— Venham esbofeteá-lo — disse oprofessor.

Shin sabia o que se aproximava. Es-bofeteara e socara muitos de seus colegas declasse numa rodada de punição coletiva. Osestudantes fizeram fila diante dele. As

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meninas lhe davam tapas na face direita, osmeninos na esquerda. Ele acredita que a filagirou cinco vezes antes que o professoranunciasse a hora do almoço.

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Antes de ser confinado na prisão secreta eantes que o professor e os colegascomeçassem a atormentá-lo, Shin nãopensara em culpar ninguém por ter nascidodentro do Campo 14.

Sua existência limitada o mantinha con-centrado em encontrar comida e evitar sur-ras. Era indiferente ao mundo exterior, aospais e à história de sua família. Tanto quantopossível, ele acreditava na pregação dosguardas sobre pecado original. Como filho detraidores, sua única redenção — e único meiode evitar a fome — era o trabalho árduo.

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De volta à escola, porém, não cabia em side ressentimento. Ainda não carregava aculpa em relação à mãe e ao irmão; isso viriamuito mais tarde. Mas os meses que passarana cela com Tio haviam levantado, ainda queapenas ligeiramente, a cortina que ocultava omundo além da cerca.

Shin tornara-se consciente do que nuncapoderia comer e do que nunca poderia ver. Aimundície, o fedor e a aridez do campoesmagavam-lhe o espírito. À medida que setornava marginalmente consciente de simesmo, ele descobria a solidão, a tristeza e aansiedade.

Acima de tudo, sentia-se furioso com ospais. O plano da mãe, acreditava, havia des-encadeado sua tortura. Culpava-a, também,pela violência e humilhação a que era sub-metido pelo professor e os colegas. De-sprezava tanto a mãe quanto o pai por teremprocriado egoisticamente num campo de tra-balhos forçados, por terem gerado filhos

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condenados a morrer atrás de aramefarpado.

No campo de execução, nos momentosque se seguiram à morte da mãe e do irmão,o pai tentara consolá-lo.

— Você está bem? Está machucado em al-gum lugar? Viu sua mãe lá dentro? — per-guntou ele repetidamente, referindo-se àprisão subterrânea.

Shin estava enraivecido demais pararesponder.

Depois da execução, parecia-lhe de-sagradável até dizer a palavra “pai”. Nasraras ocasiões em que tinha folga da escola— cerca de 14 dias por ano —, esperava-seque fosse visitá-lo. Durante as visitas, elemuitas vezes se recusava a falar.

O pai tentava desculpar-se.— Sei que você está sofrendo porque tem

os pais errados — disse ele a Shin. — Vocêteve a falta de sorte de ser nosso filho. O que

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pode fazer? As coisas simplesmente aconte-ceram assim.

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O suicídio é uma forte tentação para norte-coreanos arrancados de vidas comuns esujeitados ao regime de labuta, fome, surrase privação de sono dos campos de trabalhosforçados.

“O suicídio não era incomum no campo”,escreveu Kang Chol-hwan em suas memóriassobre a década que passou no Campo 15.“Vários de nossos vizinhos seguiram essecaminho. [...] Em geral deixavam cartas crit-icando o regime, ou no mínimo a Força deSegurança. [...] Verdade seja dita, algumaforma de punição sempre seria imposta àfamília, quer um bilhete crítico fosse deixadoou não. Era uma regra que não admitia ex-ceções. O partido via o suicídio como uma

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tentativa de escapar a seu domínio, e, se o in-divíduo que tentara o ardil não estava porperto para pagar por isso, alguém mais pre-cisava pagar no lugar dele.”1

Segundo a Associação Coreana dos Ad-vogados em Seul, a Agência de SegurançaNacional da Coreia do Norte adverte todos osprisioneiros de que o suicídio será punidocom sentenças mais longas para os parentesque sobreviverem.

Em suas memórias sobre seis anos passa-dos em dois dos campos, Kim Yong, um ex-tenente-coronel do Exército norte-coreano,diz que o atrativo do suicídio era“irresistível”.

“Já não sendo mais capazes de sentirfome, os prisioneiros deliravam constante-mente”, escreveu Kim, que disse ter passadodois anos no Campo 14 até ser transferidopara o Campo 18, do outro lado do rio Tae-dong, uma prisão política onde a guarda era

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menos brutal e os prisioneiros eram ligeira-mente mais livres.

Na tentativa de pôr fim ao delírio que odominava no Campo 14, Kim disse que puloudentro de um poço de mina. Após tombar nofundo do poço, gravemente ferido, sentiumais desapontamento que dor: “Lamenteinão ter conseguido encontrar uma maneiramelhor de realmente pôr fim àquele tor-mento indescritível.”2

Para Shin, por mais miserável que suavida tivesse se tornado após a execução damãe e do irmão, o suicídio nunca foi maisque um pensamento passageiro.

Havia uma diferença fundamental, emsua opinião, entre prisioneiros que chegavamde fora e aqueles nascidos no campo: muitosdos primeiros, despedaçados pelo contrasteentre um passado confortável e um presentecruel, não conseguiam encontrar ou mantera vontade de sobreviver. Um perverso

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benefício do nascimento no campo era acompleta ausência de expectativas.

E assim a miséria de Shin nunca se trans-formou em completo desespero. Ele nãotinha nenhuma esperança a perder, nenhumpassado a lamentar, nenhum orgulho a de-fender. Não lhe parecia degradante lambersopa caída no chão. Não se envergonhava desuplicar o perdão dos guardas. Não lhe per-turbava a consciência trair um amigo porcomida. Eram apenas técnicas de sobre-vivência, não motivos para suicídio.

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Os professores de Shin raramente eram des-ignados para outras tarefas. Nos sete anosdesde que entrara na escola, ele só conheceradois mestres. Quatro meses após a execução,porém, houve uma trégua. Certa manhã, oprofessor que o atormentava — e estimulava

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seus colegas de classe a fazer o mesmo —desapareceu.

Seu substituto não deu nenhuma in-dicação exterior de que seria em alguma me-dida menos truculento. Como quase todos osguardas no campo, era um homem semnome e de aspecto forte; tinha uns trinta epoucos anos e exigia que os alunos desvi-assem o olhar e abaixassem a cabeça ao falarcom ele. Shin lembra-se de que era tão frio,distante e dominador quanto os outros.

O novo mestre, no entanto, não pareciaquerer que ele morresse de fome.

Em março de 1997, cerca de quatro mesesapós Shin ser libertado da prisão subter-rânea, a morte por inanição tornara-se umapossibilidade real para ele. Supliciado peloprofessor e pelos colegas, ele não conseguiaencontrar alimento suficiente para manterseu peso. Parecia não ser capaz de se recu-perar das queimaduras. Suas cicatrizes aindasangravam. Ficou mais fraco e muitas vezes

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era incapaz de concluir suas tarefas, o queacarretava mais surras, menos comida, maissangramentos.

O novo professor o levava para o re-feitório após os horários das refeições. Dizia-lhe para comer todos os restos que pudesseencontrar. De vez em quando lhe dava com-ida às escondidas. Designava-lhe tambémtarefas menos árduas e assegurava que eletivesse um lugar quente para dormir no chãodo dormitório dos estudantes.

E, o que era igualmente importante, im-pedia os colegas de classe de surrá-lo e desurrupiar-lhe comida. Os insultos sobre suamãe morta terminaram. Hong Joo Hyun, olíder da classe que lhe batera no rosto comuma pá, tornou-se de novo seu amigo. Shinganhou algum peso. As queimaduras emsuas costas afinal sararam.

Talvez o novo mestre sentisse pena deuma criança maltratada que vira a mãe mor-rer. É também possível que guardas mais

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graduados do campo tenham descoberto queum professor desgostoso estava maltratandoum delator confiável. Talvez o substitutotivesse recebido ordens de manter o meninovivo.

Shin jamais teve alguma pista do quelevava o novo professor a tratá-lo daquelaforma. Mas tem certeza de que, sem suaajuda, teria morrido.

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CAPÍTULO 10OPERÁRIO

Tratores rebocavam comida para o local detrabalho todos os dias. Eram montes de

milho moído e tonéis fumegantes de sopa derepolho.

Shin tinha 15 anos e trabalhava ao ladode milhares de prisioneiros. Era 1998, e elesconstruíam a barragem de uma hidrelétricano rio Taedong, que forma a fronteira sul doCampo 14. O projeto era urgente o bastantepara justificar que os estômagos dos operári-os escravizados fossem preenchidos trêsvezes ao dia. Os guardas também permitiam

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que eles — cerca de cinco mil prisioneirosadultos e umas duas centenas de alunos daescola secundária do campo — apanhassempeixes e rãs no rio.

Pela primeira vez na vida, Shin comeubem durante um ano inteiro.

O governo norte-coreano decidira que ocampo, com sua cerca de alta voltagem esuas fábricas que produziam grandes quan-tidades de uniformes militares, artigos devidro e cimento, precisava de um forneci-mento local confiável de eletricidade, e bemdepressa.

— Ei! Ei! Ei! Está desmoronando!Desmoronando!

Shin berrou o aviso. Ele estava puxandoplacas de concreto fresco para a turmaquando percebeu que um muro recém-er-guido havia rachado e começava a desabar.Debaixo dele, uma equipe com oito ter-minava outro muro.

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Ele gritou o mais alto que pôde. Mas eratarde demais.

Todos os trabalhadores — três adultos,junto com três meninas e dois meninos, to-dos de 15 anos — morreram. Vários foramtão esmagados que ficaram irreconhecíveis.O guarda supervisor não interrompeu o tra-balho após o acidente. No fim do turno,simplesmente mandou que Shin e outros tra-balhadores dessem fim aos corpos.

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Rios de curso rápido, grandes e pequenos,entrecruzam-se nas montanhas da Coreia doNorte. Seu potencial energético é tamanhoque, antes da divisão, 90% da eletricidade dapenínsula coreana vinha do Norte.1

Sob a dinastia da família Kim, porém, ogoverno havia deixado de construir oumanter uma rede de eletricidade nacional

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confiável ligada a usinas hidrelétricas,muitas das quais situadas em áreas remotas.No início dos anos 1990, quando a UniãoSoviética parou de fornecer óleo barato, osgeradores das cidades, alimentados comesse, deixaram de funcionar. As luzesapagaram-se em quase todo o país. Na maiorparte do tempo, continuam apagadas.

Fotografias de satélite da penínsulacoreana à noite mostram um buraco negroentre a China e a Coreia do Sul. Não há ener-gia suficiente no país sequer para manter ailuminação de Pyongyang, onde o governotenta mimar a elite. Em fevereiro de 2008,quando viajei por três dias e duas noites atéa capital como integrante de uma grande del-egação de jornalistas estrangeiros que cobri-riam uma apresentação da Filarmônica deNova York, o governo conseguiu acender asluzes em grande parte da cidade. Quando aorquestra e a imprensa se foram, elas vol-taram a se apagar.

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Faz sentido, portanto, que a construçãode usinas hidrelétricas de pequeno e médioportes — capazes de servir à indústria local eque podem ser construídas basicamente comtrabalho braçal e emprego de tecnologiarudimentar — tenha sido uma prioridadedesde os anos 1990. Num frenesi, milharesdelas foram erguidas.

Além de protelar o colapso econômico, asbarragens são ideologicamente sedutoraspara a família que governa o país. Segundo ahistória contada por seus hagiógrafos, afaçanha intelectual mais importante de KimIl Sung — a brilhante ideologia juche —afirma que o orgulho nacional caminha demãos dadas com a autossuficiência.

Como o Grande Líder explicou:

Estabelecer juche significa, em síntese,ser o senhor da revolução eda reconstrução no próprio país. Issosignifica aferrar-se com firmeza a umaposição

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independente, rejeitando a dependência emrelação a outros,usando a própria inteligência, acreditando naprópria força, manifestando oespírito revolucionário da autoconfiança,e assim resolver os próprios problemas porsi mesmo e sob a própria responsabilidadeem

todas as circunstâncias.2

Nada disso, é claro, é sequer remotamentepossível num país tão mal governado quantoa Coreia do Norte. Ela sempre dependeu deesmolas de governos estrangeiros, e, se elasterminassem, a dinastia Kim provavelmentedesabaria. Mesmo nos melhores anos, o paísnão consegue se alimentar. Não possui nen-hum petróleo, e sua economia nunca foicapaz de gerar dinheiro suficiente para aaquisição de combustível ou alimentos nomercado mundial.

A Coreia do Norte teria perdido a Guerrada Coreia e desaparecido como Estado sem a

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ajuda dos chineses, que combateram os Esta-dos Unidos e outras forças ocidentais atélevá-los a um impasse. Até os anos 1990, aeconomia foi, em grande parte, sustentadapor subsídios da União Soviética. De 2000 a2008, a Coreia do Sul escorou o Norte — ecomprou para si certa dose de coexistênciapacífica — com enormes doações incondi-cionais de fertilizantes e alimentos, ao ladode generosos investimentos.

Desde então, Pyongyang tornou-se cadavez mais dependente da China para o comér-cio em condições facilitadas, auxílio aliment-ar e combustível. Uma indicação reveladorada crescente influência da China é que em2010, nos meses anteriores à emergência ofi-cial de Kim Jong Eun como o sucessor escol-hido de Kim Jong Il, o enfermo e idoso Kimviajou duas vezes a Pequim, onde, segundodiplomatas, pediu a bênção da China paraseu plano de sucessão.

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Em que pese a realidade, a Coreia doNorte defende a autossuficiência como acondição sine qua non da muito alardeadameta do país: tornar-se “uma grande,próspera e poderosa nação” até 2012, ocentenário do nascimento de Kim Il Sung.

Para esse fim fantástico, o governo re-cruta regularmente as massas em tarefasmiseráveis enfeitadas por nobres lemas. Apropaganda pode ser bastante criativa: afome foi reembalada como a “ÁrduaMarcha”, uma luta patriótica que os norte-coreanos são estimulados a vencer com o in-spirador slogan “Vamos fazer duas refeiçõespor dia”.

Na primavera de 2010, quando a escassezde comida voltou a se tornar severa, o gov-erno lançou uma grande campanha “de voltaao campo” para convencer moradores dascidades a se mudar para a zona rural e sededicar à agricultura. Esses citadinos seriamreforços permanentes para “o combate do

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plantio do arroz”, a campanha anual que en-via trabalhadores de escritório, estudantes esoldados para o campo durante dois mesesna primavera e duas semanas no outono. Noinverno, as pessoas da cidade são encarrega-das de coletar suas fezes (e as de seus vizin-hos) para o plantio da primavera.

Outras tarefas urgentes e patrióticas queos norte-coreanos foram estimulados aempreender incluem “Vamos criar peixesmais produtivos!”, “Vamos expandir a cri-ação de cabras e formar mais pastos comodetermina o Partido!” e “Vamos cultivarmais girassóis!”. O sucesso dessas campan-has exortativas foi relativo, na melhor dashipóteses, em especial no que diz respeitoaos esforços extremamente impopulares dogoverno para atrair pessoas criadas na cid-ade para exaustivos trabalhos agrícolas.

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Para o projeto da barragem no interior doCampo 14, esses problemas de motivaçãonão existiram.

Segundo Shin, logo depois que os guardasanunciaram uma nova “arregimentação deesforços” para construir uma represa hi-drelétrica, milhares de prisioneiros adultosmarcharam das fábricas para dormitóriosimprovisados erguidos perto da margemnorte do Taedong. Shin e seus colegas declasse deixaram o dormitório escolar. Todostrabalhavam, comiam e dormiam no canteirode obras, localizado quase dez quilômetros asudeste do centro do campo.

O trabalho na barragem — que fotografi-as de satélite mostram ser uma substancialestrutura de concreto que transpõe um riolargo, com turbinas e desaguadouros ab-raçando a margem norte — era incessante.Caminhões traziam cimento, areia e pedras.Shin viu uma única escavadeira movida aóleo diesel. A maior parte da escavação e da

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construção era feita por operários queusavam pás, baldes e mãos nuas.

Shin já havia visto prisioneiros morreremno campo — de fome, de doença, em con-sequência de surras e em execuções públicas—, mas não como parte rotineira dotrabalho.

O maior número de vítimas fatais ocorreulogo depois que a construção em plena escalacomeçou. Em julho de 1998, na estação chu-vosa, uma enxurrada repentina desceu oTaedong, arrastando consigo centenas de op-erários e estudantes que trabalhavam na bar-ragem. De seu posto, em um lugar alto damargem do rio, onde retirava areia, Shin osviu desaparecer. Logo o puseram para trabal-har confirmando as identidades dosestudantes mortos e enterrando seus corpos.

No terceiro dia após a cheia, ele se lembrade que carregou nas costas o corpo inchadode uma menina. A princípio ele estava mole,mas logo enrijeceu, as pernas e os braços

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rígidos jogados para os lados. Para espremero corpo num túmulo estreito, cavado à mão,ele teve de juntar os membros à força.

As águas arrancaram as roupas de algunsestudantes afogados. Quando Hong Joo Hy-un descobriu um colega de classe nu, emmeio aos escombros deixados pela enxur-rada, despiu as próprias roupas e cobriu ocorpo.

À medida que a limpeza continuava, Shincompetia com muitos outros estudantes paraachar corpos. Para cada corpo que enter-ravam, os guardas os recompensavam comuma ou duas porções de arroz.

O Taedong, tal como corria pelo Campo14, era largo e rápido demais para congelarno inverno norte-coreano, o que permitiaque a construção da barragem prosseguissedurante o ano todo. Em dezembro de 1998,Shin recebeu ordem de vadear pelos baixiosdo rio para recolher pedras grandes. Incapazde suportar o frio, ele se juntou a vários

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outros estudantes que tentavam sair da águasem a aprovação do guarda.

— Saiam dessa água e vou matar todosvocês de fome, estão entendendo? — gritou oguarda que os vigiava.

Tremendo incontrolavelmente, Shin con-tinuou a trabalhar.

Aos estudantes eram destinadas as tare-fas mais depreciadas. Muitas vezes car-regavam varas de reforço de aço para oper-ários mais velhos, que as amarravam juntascom barbante ou arame à medida que arepresa se erguia da margem do rio numpadrão quadriculado de blocos de concreto.Nenhum dos estudantes tinha luvas, e no in-verno suas mãos volta e meia ficavam gruda-das nas varas de aço. Entregar uma vara porvezes significava ter a pele das palmas dasmãos e dos dedos arrancada.

Shin se recorda de que, quando um deseus colegas de classe, Byun Soon Ho,queixou-se de uma febre e de uma

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indisposição, um guarda deu-lhe uma liçãosobre os benefícios do estoicismo.

— Soon Ho, ponha a língua para fora —disse o guarda.

Em seguida ordenou que o menino pres-sionasse a língua contra uma vara congelada.Quase uma hora depois, Soon Ho, lágrimasnos olhos, a boca vertendo sangue, con-seguiu desgrudar a língua.

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Trabalhar na barragem era perigoso; paraShin, porém, também era empolgante.

A principal razão era a comida. Não eraparticularmente saborosa, mas fornecida emabundância, mês após mês. Shin lembra-sedas horas das refeições na represa como osmomentos mais felizes de sua adolescência.Ele recuperou todo o peso e a energia per-didos na prisão subterrânea. Conseguia

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acompanhar os outros no trabalho. Tornou-se confiante em sua capacidade desobreviver.

Viver perto da barragem também lhe deuum pequeno grau de independência. No ver-ão, centenas de estudantes dormiam ao arlivre sob um toldo. Quando não estavam tra-balhando, podiam andar — enquanto havialuz do sol — por toda a extensão do Campo14. Por seu trabalho árduo, Shin ganhou umarecomendação de seu líder de série que lhepermitiu deixar o canteiro de obras parafazer quatro visitas ao pai e pernoitar comele. Como os dois não estavam reconciliados,ele passou apenas uma noite com o pai.

Em maio de 1999, quando fazia um anoque trabalhava na represa, seu tempo naescola secundária terminou. A escola haviasido pouco mais que uma senzala a partir daqual era enviado para quebrar rocha, arran-car ervas daninhas e labutar na construçãoda barragem. Mas a formatura significava

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que, aos 16 anos, ele se tornara um trabal-hador adulto. Estava pronto para ser desig-nado para um posto permanente dentro docampo.

Cerca de 60% dos alunos de sua turmaforam designados para as minas de carvão,onde a morte acidental decorrente de des-moronamentos, explosões e envenenamen-tos por gás era comum. Muitos mineirosdesenvolviam a doença do pulmão preto de-pois de 10 a 15 anos de trabalho no subsolo.A maioria morria na casa dos quarenta anosou antes. Da forma como Shin a compreen-dia, uma colocação nas minas equivalia auma sentença de morte.

A decisão sobre quem ia para onde eratomada pelo professor da turma de Shin, ohomem que dois anos antes lhe salvara avida fornecendo-lhe comida extra e fazendocessar as agressões de seus colegas de classe.O professor distribuía designações sem ex-plicação, comunicando laconicamente aos

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estudantes onde passariam o resto de suasvidas. Assim que ele fazia seus anúncios,novos patrões — capatazes das fábricas, mi-nas e fazendas do campo — vinham à escolae levavam os estudantes embora.

O professor disse a Hong Joo Hyun queele iria para as minas. Shin nunca mais o viu.

Moon Sung Sim, a menina que perdeu odedão do pé nas minas aos 11 anos, foi desig-nada para a fábrica têxtil.

Hong Sung Jo, o amigo que o salvara deseus torturadores ao confirmar que ele de-latara a mãe e o irmão, foi igualmente envi-ado para as minas. Shin também nunca maisvoltou a vê-lo.

Se havia uma lógica por trás das desig-nações, ele nunca a compreendeu. A seu ver,tudo se reduzia ao capricho pessoal do pro-fessor, que era invariavelmente inescrutável.Talvez ele gostasse de Shin. Talvez tivessepiedade dele. Talvez tivesse recebido ordem

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de ter cuidado com ele. Shin simplesmentenão sabe.

Seja como for, o professor mais uma vezsalvou-lhe a vida. Designou-o para um tra-balho permanente na fazenda de porcos doCampo 14, onde duzentos homens e mul-heres criavam cerca de oitocentos porcos,juntamente com cabras, coelhos, galinhas ealgumas vacas. A comida para os animais eracultivada nos campos ao redor dos cercadosdas criações.

— Shin In Geun, você está designado paraa fazenda de criação de animais — disse-lheo professor. — Trabalhe com afinco.

Em nenhum outro lugar no Campo 14havia tanta comida para furtar.

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CAPÍTULO 11UM COCHILO NA FAZENDA

Shin não trabalhava com afinco.Os capatazes, por vezes, batiam nele e

em outros trabalhadores relapsos, mas nãocom muita violência e nunca para matar. Afazenda de porcos era o melhor que o Campo14 podia lhe oferecer. Ele chegava a tirar umcochilo eventual no meio da tarde.

Na hora das refeições, as porções no re-feitório da fazenda não eram maiores que nafábrica de cimento, na fábrica têxtil ou nasminas. A comida também não era nada mel-hor. Entre as refeições, porém, Shin podia

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servir-se do milho moído destinado aosleitões que alimentava entre novembro e ju-lho. Nos campos, onde capinava e colhia deagosto a outubro, ele lanchava milho, re-polho e outras hortaliças. De tempos emtempos, o capataz levava um panelão até lá etodos podiam comer até se saciar.

A fazenda situava-se no alto das montan-has, longe do rio, a cerca de meia hora a péda antiga escola de Shin e da casa onde elemorara com a mãe. Mulheres com filhosfaziam o caminho de ida e volta entre afazenda e o alojamento familiar, mas amaioria dos trabalhadores permanecia numdormitório na montanha.

Shin dormia lá, no chão, num quarto parahomens. Não havia problema com agressõese ele não precisava disputar um trecho deconcreto aquecido. Dormia bem.

Havia um matadouro na fazenda ondecerca de cinquenta porcos eram abatidosduas vezes por ano, exclusivamente para os

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guardas e suas famílias. Como prisioneiro,Shin não tinha permissão para comer carnede porco ou de nenhum animal criado nafazenda. De vez em quando, porém, ele eoutros prisioneiros conseguiam furtá-la.Como o cheiro de porco assado na fazendaalertaria os guardas, provocando surras e se-manas de meias rações, eles comiam a carnecrua.

O que Shin não fazia na fazenda erapensar, falar ou sonhar sobre o mundo láfora.

Ninguém mencionava o plano de fugaque havia levado à execução de sua mãe eseu irmão. Guardas não lhe pediam para de-nunciar os colegas de trabalho. A ira que odominara após a morte da mãe reduziu-se aum torpor. Antes de ser torturado, confinadona prisão subterrânea e exposto às históriasde Tio sobre o mundo além da cerca, ele nãotinha interesse em coisa alguma, a não ser napróxima refeição.

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Na fazenda de porcos, essa apatia passivaretornou. Shin descreve como “relaxante” atemporada que passou ali, que se estendeude 1999 a 2003.

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Fora do campo, no entanto, a vida na Coreiado Norte durante esses anos foi tudo menosrelaxante.

Fome e inundações em meados dos anos1990 quase destruíram a economia central-mente planejada. O Sistema Público de Dis-tribuição do governo, que alimentava amaior parte dos norte-coreanos desde adécada de 1950, entrou em colapso. Comouma resposta ditada pelo pânico à fome e àinanição, o escambo grassou e mercadosprivados explodiram em número e importân-cia. Nove em dez famílias comerciavam parasobreviver.1 Um número cada vez maior de

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norte-coreanos escapava pela fronteira coma China em busca de comida, trabalho,comércio e de uma fuga para a Coreia do Sul.Nem a China nem a Coreia do Sul divul-garam estatísticas, mas estima-se que onúmero desses imigrantes econômicos varieentre dezenas de milhares e quatrocentosmil.

Kim Jong Il tentou controlar o caos. Seugoverno criou uma nova rede de centros dedetenção para negociantes que viajavam semautorização. Mas policiais e guardas famin-tos podiam ser comprados com bolachas e ci-garros. Estações ferroviárias, feiras ao arlivre e becos nas maiores cidades encheram-se de vagabundos famintos. As muitas cri-anças órfãs encontradas nesses lugarestornaram-se conhecidas como “pardaiserrantes”.

Shin ainda não sabia disso, mas o capital-ismo de base, o comércio errante e a

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corrupção feroz estavam criando brechas noEstado policial que cercava o Campo 14.

No fim dos anos 1990, a ajuda alimentarfornecida pelos Estados Unidos, o Japão, aCoreia do Sul e outros doadores mitigou o pi-or da fome. Mas, de uma maneira indireta eacidental, ela também energizou os feirantese os empreendedores itinerantes que dariama Shin sustento, abrigo e orientação em suafuga para a China.

Ao contrário de qualquer outro governodo mundo que recebia ajuda, o da Coreia doNorte insistia em deter autoridade exclusivasobre o transporte dos alimentos doados. Aexigência irritava os Estados Unidos, o maiordoador, e frustrava as técnicas de monitor-ação que o Programa Mundial de Alimentosda ONU desenvolvera para rastrear a ajuda ecertificar-se de que ela chegava aos destin-atários pretendidos. Mas a necessidade eratão urgente e o número de mortos tão altoque o Ocidente engoliu sua repulsa e

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entregou à Coreia do Norte mais de um bil-hão de dólares em alimentos, entre 1995 e2003.

Durante esses anos, refugiados da Coreiado Norte chegaram ao Sul e contaram aosfuncionários do governo que tinham visto ar-roz, trigo, milho, óleo vegetal, leite em pódesnatado, fertilizantes, remédios, roupas deinverno, cobertores, bicicletas e outros itensdoados à venda em mercados privados. Fotose vídeos feitos nesses mercados mostravamsacos de cereais com os dizeres “Uma doaçãodo povo americano”.

Burocratas, autoridades partidárias, ofici-ais do Exército e outros membros bem posi-cionados da elite governamental acabavamfurtando cerca de 30% do que chegava comoajuda, segundo estimativas feitas por estu-diosos estrangeiros e agências internacionaisde assistência. Eles vendiam o que con-seguiam desviar para comerciantes, muitasvezes em troca de dólares ou euros, e

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entregavam as mercadorias em veículosdo governo.

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Sem essa pretensão, os abastados paísesdoadores provocaram uma espécie de ondade adrenalina no mundo corrupto do comér-cio de rua coreano. O lucrativo furto de ajudaalimentar internacional despertou o apetitepor dinheiro fácil daqueles em posição priv-ilegiada e ajudou a transformar mercadosprivados no principal motor econômico dopaís. Esses mercados, que hoje fornecem amaior parte da comida que os norte-coreanos consomem, tornaram-se a razãofundamental para que a maioria dos espe-cialistas estrangeiros afirme ser improvávelque uma fome catastrófica, no estilo dosanos 1990, volte a acontecer.

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Os mercados, porém, não chegaram nemperto de eliminar a fome ou a desnutrição.Eles parecem também ter aumentado adesigualdade, criando um abismo entre osque descobriram uma maneira de comerciare os que não o fizeram.

No final de 1998, alguns meses antes deShin ser designado para a fazenda de porcos,o Programa Mundial de Alimentos conduziuum levantamento sobre a nutrição das cri-anças, que abrangeu 70% da Coreia doNorte. Ele constatou que cerca de dois terçosdas crianças examinadas eram mirradas ouestavam abaixo do peso. Esses númeroseram o dobro dos encontrados em Angola,então no fim de uma longa guerra civil, e ogoverno norte-coreano ficou furioso quandoeles foram divulgados.

Dez anos mais tarde, quando mercadosprivados estavam bem estabelecidos evendendo de tudo, de frutas importadas aaparelhos de CD fabricados na China, a

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nutrição para crianças e idosos em institu-ições mantidas pelo Estado teve uma mel-hora insignificante, segundo uma pesquisado Programa Mundial de Alimentos toleradopelo governo como condição para o recebi-mento de ajuda.

“As crianças pareciam muito tristes,muito emaciadas, muito miseráveis”, disse-me uma nutricionista que trabalhou napesquisa alimentar de 2008. Ela havia parti-cipado de levantamentos anteriores sobrenutrição, realizados desde o final dos anos1990, e concluiu que a fome crônica e a des-nutrição severa persistiram em grande parteda Coreia do Norte, apesar da disseminaçãodos mercados privados.

Estudos internacionais sobre nutriçãotambém encontraram um padrão difuso dedesigualdade geográfica. Fome, nanismo edoenças debilitantes são três a quatro vezesmais prevalentes em províncias remotas da

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Coreia do Norte — onde habitam as classeshostis — do que em torno de Pyongyang.

Como Shin descobriu no campo de tra-balhos forçados, o lugar mais seguro paranorte-coreanos pobres viverem em meio auma fome crônica é uma fazenda. Segundotodas as indicações, os agricultores (excetoaqueles cujas terras foram arruinadas por in-undações) suportaram a fome muito melhorque os habitantes das cidades. Ainda que tra-balhassem em fazendas cooperativas, cujosprodutos pertenciam ao Estado, eles tinhamcondições de esconder e armazenar alimen-tos, bem como vendê-los ou trocá-los porroupas ou outros artigos de primeiranecessidade.

O governo teve pouca escolha — após afome, após a desintegração de seu sistema dedistribuição de produtos comestíveis e após aascensão dos mercados privados — senãooferecer preços mais altos aos agricultores eaumentar os incentivos para o cultivo de

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alimentos. A agricultura privada empequenos lotes de terra foi legalizada em2002. Isso permitiu mais comércio entre oprodutor e o mercado, o que aumentou opoder dos negociantes e a autonomia dos ag-ricultores produtivos.

Kim Jong Il, no entanto, nunca viu a re-forma do mercado com bons olhos. Seu gov-erno a chamava de “veneno envolto em mel”.

“É importante frustrar definitivamenteelementos capitalistas e não socialistas nonascedouro”, afirmava o Rodong Sinmun,jornal do partido publicado em Pyongyang.“Depois que o envenenamento ideológico ecultural imperialista é tolerado, até a fé in-abalável diante da ameaça de uma baionetaestará fadada a ceder como um muro debarro molhado.”

O capitalismo que floresceu nas cidades evilas da Coreia do Norte enfraqueceu o con-trole férreo do governo sobre a vida cotidi-ana e pouco fez para enriquecer o Estado.

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Kim Jong Il resmungou em público, dizendo:“Francamente o Estado não tem nenhumdinheiro, mas os indivíduos têm o equival-ente ao orçamento de dois anos.”2

Seu governo contra-atacou.Como parte da era “as forças armadas em

primeiro lugar” que o governo de Kim pro-clamou oficialmente em 1999, o Exército doPovo Coreano, com mais de um milhão desoldados que se alimentam três vezes pordia, passou a confiscar de maneira agressivauma fatia substancial de todo o alimento cul-tivado nas fazendas cooperativas.

“Na época da colheita, os soldados levamseus próprios caminhões até as fazendas esimplesmente pegam o que querem”, disse-me, em Seul, Kwon Tae-jin, um especialistaem agricultura norte-coreana do InstitutoEconômico Rural da Coreia, financiado pelogoverno do Sul.

No extremo norte, onde os estoques dealimentos são historicamente parcos e os

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agricultores considerados politicamentehostis, os militares apropriam-se de umquarto do total da produção de cereais, ex-plicou Kwon. Em outras áreas do país, elestomam de 5 a 7%. Para assegurar que os tra-balhadores das três mil fazendas estatais nãoludibriem os militares, o Exército instalasoldados em todas elas durante a estação dacolheita. Quando dezenas de milhares dehabitantes das cidades são levados para asfazendas para ajudar na colheita do outono,os trabalhadores são monitorados por milit-ares para garantir que não furtem comida.

A mobilização permanente de soldadosnas fazendas gerou corrupção. SegundoKwon, administradores de fazendas sub-ornam os militares, que passam a fechar osolhos para roubos de comida em grande es-cala, para ser vendida depois em mercadosprivados. Disputas entre grupos de soldadoscorruptos levam periodicamente a trocas desocos e tiroteios, de acordo com vários

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desertores e relatórios de grupos de assistên-cia. Em 2009 o Good Friends, grupo de as-sistência budista com informantes no Norte,relatou que um soldado foi golpeado comuma foice numa luta por causa de milho emuma fazenda estatal.

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Confinado na fazenda de porcos, Shin nadaouvia sobre o comércio de rua, a corrupção eas viagens à margem da lei entre cidades queiriam — dali a menos de dois anos — ajudá-lo na sua fuga.

Isolado no alto da montanha, numa es-pécie de campo dentro do campo, ele at-ravessou sem maiores percalços os últimosanos de sua adolescência, mantendo a cabeçabaixa, a mente vazia e as energias concentra-das no furto de comida. Sua lembrança maisvívida é a de ter sido apanhado enquanto

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assava intestinos de porco que ele havia fur-tado. Foi surrado, privado de comida dur-ante cinco dias e teve suas rações no re-feitório reduzidas à metade durante trêsmeses.

Ao completar vinte anos, acreditava terencontrado o lugar onde iria envelhecer emorrer.

Mas o interlúdio da fazenda de porcosterminou de maneira abrupta em março de2003. Por razões nunca explicadas, Shin foitransferido para a fábrica de roupas, um loc-al de trabalho apinhado, caótico e estress-ante em que duas mil mulheres e quinhentoshomens faziam uniformes militares.

Ali, a vida de Shin voltou a se complicar.Havia uma incessante pressão para ocumprimento de cotas de produção e umarenovada instigação à delação. Guardas pro-curavam sexo de todas as maneiras junto àscostureiras.

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Havia também um recém-chegado, umprisioneiro instruído vindo de Pyongyang.Esse homem, que estudara na Europa evivera na China, contaria a Shin o que ele es-tava perdendo.

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CAPÍTULO 12COSTURAR E DELATAR

Mil mulheres costuravam uniformes milit-ares durante turnos de 12 horas. Quando

suas temperamentais máquinas de costuramovidas com o pé quebravam, Shin asconsertava.

Ele era responsável por cerca de cin-quenta máquinas e pelas costureiras que asoperavam. Se as máquinas não vomitassemsua cota diária de uniformes do Exército, Sh-in e as mulheres eram forçados a executarum “doloroso trabalho de humilhação”, o

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que significava passar duas horas extras, emgeral das dez à meia-noite.

Costureiras experientes conseguiammanter seu equipamento em boas condições,mas as jovens, ineptas ou muito doentes não.Para consertar uma máquina quebrada, for-jada em ferro numa fundição no interior doCampo 14, Shin e outros mecânicos tinhamde levá-la nas costas até uma oficina no pavi-mento superior da fábrica.

O trabalho a mais exasperava muitosmecânicos, que despejavam sua ira sobre ascostureiras, puxando-lhes o cabelo, batendo-lhes a cabeça contra a parede e chutando-asno rosto. Os capatazes da fábrica, prisioneir-os escolhidos pelos guardas para a funçãopor sua dureza, em geral faziam vista grossaquando elas apanhavam. Diziam a Shin queo medo estimulava a produção.

Embora ainda fosse baixinho e magricela,Shin não era mais uma criança passiva, des-nutrida e traumatizada por torturas. Durante

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seu primeiro ano na fábrica, ele provou issopara si mesmo e para os colegas de trabalhonum confronto com outro mecânico.

Gong Jin Soo era um homem violento.Shin o observara tendo um ataque de fúriaquando uma das costureiras em seu setorquebrou o eixo de uma máquina de costura.Gong esmurrou-a no rosto até que ela desa-basse no chão.

Quando Gong pediu um arrastador —peça crucial de uma máquina de costura quecontrola o tamanho do ponto ao regular a ve-locidade com que o tecido avança em direçãoà agulha — a uma costureira que trabalhavacom Shin, ela negou secamente.

— Sua puta, se um mecânico lhe pediruma peça, trate de dar — disse Gong. — Paraonde está olhando com esses olhoslevantados?

Sob o olhar de Shin, ele deu um murro norosto da mulher, fazendo sangue escorrer donariz.

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Surpreendendo a si mesmo e à costureira,Shin descontrolou-se. Agarrou uma grandechave-inglesa e jogou-a com toda força, tent-ando partir o crânio de Gong. A chaveesmagou-lhe o antebraço, erguido justo atempo de proteger sua cabeça.

Gong soltou um uivo e caiu no chão. Ocapataz do turno, que havia treinado Shin,acorreu. Encontrou Shin, os olhos arregala-dos e a chave-inglesa na mão, parado juntode Gong, cujo braço ensanguentado exibiaum calombo do tamanho de um ovo. Ocapataz deu uma bofetada em Shin e tomou-lhe a ferramenta. A costureira retomou o tra-balho. E dali em diante Gong manteve-se adistância.

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A fábrica de roupas é um amplo conjunto desete prédios, todos visíveis em fotografias

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tiradas por satélite. Localizada perto do rioTaedong, seu terreno situa-se na entrada doVale 2, não muito longe da represa hi-drelétrica e das fábricas de artigos de vidro eporcelana.

Durante o tempo que Shin passou ali,havia dormitórios no terreno para as duasmil costureiras, bem como para os quinhen-tos homens que trabalhavam no reparo demáquinas de costura, desenho de roupas,manutenção da fábrica e expedição de mer-cadorias. Todos os capatazes, inclusive ochongbanjang, ou capataz-chefe, eramprisioneiros.

O trabalho na fábrica pôs Shin em es-treito contato diário com várias centenas demulheres: adolescentes, na casa dos vinte edos trinta anos. Algumas eram extraordinari-amente atraentes, e sua sensualidade criavatensão entre os operários. Em parte, isso sedevia a seus uniformes mal ajustados. Elas

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não tinham sutiã, e poucas usavam roupa debaixo. Não havia absorventes higiênicos.

Como um virgem de vinte anos, Shinsentia-se nervoso perto dessas mulheres.Elas o interessavam, mas ele temia a regrado campo que prescrevia a morte para pri-sioneiros que tivessem relações sexuais semprévia aprovação. Ele contou que tomavacuidado para não se envolver com ninguém.Mas a proibição do sexo nada significavapara o superintendente da fábrica e o pun-hado de prisioneiros privilegiados que tra-balhavam como capatazes.

O superintendente, um guarda de cercade trinta anos, vagava entre as costureirascomo um comprador num leilão de gado. Sh-in o via escolher uma moça diferente a cadapoucos dias, dando-lhe ordem para limparseu quarto, no interior da fábrica. Aquelasque não limpavam o quarto do superintend-ente se tornavam alvos de ataque para o

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capataz-chefe e outros prisioneiros com fun-ções de supervisão na fábrica.

As mulheres não tinham escolha senãoceder. Elas também ganhavam alguma coisacom aquilo, pelo menos a curto prazo. Seagradassem ao superintendente, ou a um doscapatazes, podiam esperar trabalhar menos eter mais comida. Se quebrassem uma má-quina de costura, não eram surradas.

Park Choon Young limpava regularmenteo quarto do superintendente. Shin a con-hecia da escola secundária, e ela operavauma máquina de costura sob seus cuidados.Aos 22 anos, era de uma beleza excepcional.Quatro meses depois que a jovem começou apassar as tardes no quarto do superintend-ente, Shin soube por outro ex-colega que elaestava grávida.

A gravidez foi mantida em segredo atéque a barriga começou a se projetar para forado uniforme. Em seguida, a moçadesapareceu.

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Shin aprendeu a distinguir pelo som de umamáquina de costura o que havia de erradocom ela. Era menos competente paracarregá-las, com todo o seu volume, até a ofi-cina de conserto. No verão de 2004, quandosubia um lance de degraus com uma nas cos-tas, ela lhe escapuliu. Rolou escada abaixo,ficando irreparavelmente quebrada.

Seu superior imediato, o capataz quehavia sido paciente com ele enquanto apren-dia como as coisas funcionavam na fábrica,esbofeteou-o algumas vezes quando viu oequipamento arruinado e relatou o estragopara as instâncias superiores na cadeia decomando. Máquinas de costura eram consid-eradas mais valiosas que prisioneiros, e arru-inar uma delas era uma grave transgressão.

Minutos depois de derrubar a máquina,Shin foi chamado ao escritório do superin-tendente da fábrica, junto com o capataz-

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chefe e o capataz do setor que havia relatadoo incidente.

— O que está pensando? — gritou o su-perintendente para Shin. — Quer morrer?Como pôde ser fraco a ponto de soltar a má-quina? Está sempre enchendo a barriga decomida.

— Mesmo que você morra, a máquina decostura não pode ser trazida de volta —acrescentou. — O problema é a sua mão.Corte-lhe o dedo fora!

O capataz-chefe agarrou a mão direita deShin e segurou-a sobre uma mesa no es-critório. Com uma faca de cozinha, cortoufora o dedo médio logo acima da primeirafalange.

Em seguida o capataz ajudou Shin a sairdo escritório e escoltou-o de volta ao pátio dafábrica. Mais tarde naquela noite, o capatazlevou-o ao centro de saúde do campo, ondeum prisioneiro que trabalhava como

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enfermeiro mergulhou o dedo em águasalgada, costurou-o e enrolou-o num pano.

Isso não impediu que o dedo infeccionas-se. Mas, de seu tempo na cela subterrânea,Shin lembrava-se de como Tio esfregara sopade repolho salgado em seus ferimentos. Nahora das refeições, ele mergulhava o dedo nasopa. A infecção não se espalhou para o osso,e dentro de três meses uma pele nova se for-mou sobre o dedo amputado.

Nos dois primeiros dias após o ferimento,o capataz fez o trabalho de Shin. Foi umgesto inesperado de solicitude que permitiusua recuperação. O capataz bondoso nãodurou muito tempo na função. Desapareceu,junto com a esposa, alguns meses depois deShin derrubar a máquina de costura. Shinsoube por outro colega que a mulher docapataz tinha visto, por acaso, uma execuçãosecreta num desfiladeiro quando trabalhavana mata.

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Antes de desaparecer, o capataz levou umpresente para Shin.

— É farinha de arroz, e seu pai quer quevocê a coma — disse o homem.

Ao ouvir a menção a seu pai, Shin ficoufurioso. Embora tivesse tentado reprimir orancor que sentia em relação à mãe e aoirmão, o sentimento crescera desde a ex-ecução e envenenara sua relação com o pai.Não queria ter nada a ver com ele.

— Coma-a você mesmo — disse Shin.— Seu pai mandou-a para você — retru-

cou o capataz, parecendo intrigado. — Vocênão deveria comê-la?

Apesar de sua fome, Shin recusou.

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Com tantos prisioneiros trabalhando tãoperto uns dos outros, a fábrica era um meiode cultura perfeito para a delação.

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Uma semana depois que Shin derrubou amáquina de costura, um colega de trabalho odenunciou. O turno dele não havia con-seguido completar a cota de produção do diae seus integrantes foram obrigados a fazertrabalho de humilhação. Junto com três out-ros mecânicos, ele só voltou ao dormitóriodepois da meia-noite.

Os quatro estavam famintos, e um delessugeriu que saqueassem a horta da fábrica,onde havia repolho, alface, pepinos, berinjelae rabanetes. Chovia e não havia luar. Elescalcularam que as chances de serem apanha-dos eram baixas. Saíram sorrateiramente,encheram os braços de hortaliças e levaram-nas para o quarto, onde comeram eadormeceram.

De manhã, os quatro foram chamados aoescritório do superintendente. Alguém haviadelatado sua refeição noturna. O superin-tendente golpeou cada um na cabeça comum bastão. Depois disse a um dos

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mecânicos, Kang Man Bok, para sair da sala.Um delator é capaz de farejar um delator;Shin soube instintivamente que Kang haviasido o informante.

O superintendente ordenou que as raçõesdos três homens remanescentes fossem re-duzidas à metade por duas semanas e deu-lhes mais algumas cacetadas na cabeça. Devolta à fábrica, Shin notou que Kang não oolhava nos olhos.

Logo solicitaram que Shin espionasseseus colegas de trabalho. O superintendentechamou-o em seu escritório e disse-lhe que,para lavar os pecados da mãe e do irmão,tinha de denunciar malfeitores. Levou doismeses para encontrar um.

Deitado no chão uma noite, sem sono, viuquando um colega de quarto, um trabal-hador no setor de transporte chamado KangChul Min, de pouco menos que trinta anos,levantou-se e começou a remendar suascalças de trabalho. Usava um retalho de

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tecido de uniforme militar para cobrir umburaco. Claramente, furtara o tecido dafábrica.

Na manhã seguinte, Shin foi aosuperintendente.

— Professor, vi um pedaço de panofurtado.

— É mesmo? Quem estava com ele?— Era Kang Chul Min, em meu quarto.Shin trabalhou até tarde naquela noite e

foi um dos últimos mecânicos de máquina decostura a chegar a uma reunião de luta ideo-lógica realizada às 22 horas, uma sessãoobrigatória de autocrítica.

Ao entrar na sala, viu Kang Chul Min. Eleestava de joelhos e amarrado com correntes.Tinha as costas nuas cobertas de vergões dechicote. Sua namorada secreta, uma cos-tureira sobre quem Shin ouvira rumores, es-tava ajoelhada ao seu lado. Ela também es-tava acorrentada. Os dois continuaram ajoel-hados em silêncio durante os noventa

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minutos da reunião. Quando ela terminou, osuperintendente ordenou que cada operárioesbofeteasse Kang e a namorada antes desair da sala. Shin esbofeteou os dois.

Ficou sabendo que eles foram arrastadospara fora e obrigados a passar mais váriashoras ajoelhados num piso de concreto. Nen-hum dos dois descobriu quem denunciara opano furtado. Shin fez todo o possível paraevitar-lhes os olhos.

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CAPÍTULO 13A DECISÃO DENÃO DELATAR

Osuperintendente tinha mais um serviçopara Shin.Park Yong Chul, baixo e corpulento, com

uma basta cabeleira branca, era um novo eimportante prisioneiro. Morara no exterior.Sua mulher era bem relacionada. Ele con-hecia pessoas importantes no governo daCoreia do Norte.

O superintendente mandou Shin ensinarPark a consertar máquinas de costura e

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tornar-se amigo dele. Deveria relatar tudoque Park contasse sobre seu passado, suasideias e sua família.

— Park precisa confessar — disse o super-intendente. — Ele está escondendo coisas denós.

Em outubro de 2004, Shin e Parkcomeçaram a passar 14 horas por dia juntos,na fábrica de roupas. Park prestava umaatenção polida às instruções de Shin sobremanutenção de máquinas de costura. Comigual educação, evitava perguntas sobre seupassado. Shin pouco apurou.

Então, após quatro semanas de silêncioquase total, Park surpreendeu Shin com umapergunta pessoal.

— Onde é sua casa, senhor?— Minha casa? Minha casa é aqui.— Eu sou de Pyongyang, senhor — disse

Park.Park dirigia-se a Shin usando títulos hon-

oríficos e terminações verbais. Na língua

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coreana, isso indica a precedência e superi-oridade de Shin, o professor, sobre Park, oaprendiz. O prisioneiro novato era umhomem grave com cerca de 45 anos, mas orebuscamento linguístico aborrecia e em-baraçava Shin.

— Sou mais jovem do que você — disseele. — Por favor, não fale comigo de maneiracerimoniosa.

— Está bem — disse Park.— A propósito — perguntou Shin —, onde

é Pyongyang?A pergunta deixou Park perplexo.O homem mais velho, porém, não riu

nem fez pouco da ignorância do rapaz. Elapareceu deixá-lo intrigado. Explicou detalha-damente que Pyongyang, situada a cerca deoitenta quilômetros ao sul do Campo 14, eraa capital da Coreia do Norte, a cidade ondemoravam todas as pessoas poderosas dopaís.

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O gelo foi quebrado pela ingenuidade dojovem. Park começou a falar sobre si mesmo.Contou que crescera num apartamentoamplo e confortável em Pyongyang e seguiraa trajetória educacional privilegiada daselites da Coreia do Norte, estudando na Ale-manha Oriental e na União Soviética. Apósvoltar para casa, havia se tornado chefe deum centro de treinamento de tae kwon doem Pyongyang. Nessa posição de destaque,contou, conhecera muitos dos homens quegovernavam a Coreia do Norte.

Tocando sua mão direita suja de óleonuma máquina de costura, Park disse:

— Com esta mão, apertei a mão de KimJong Il.

Ele parecia um atleta. Tinha mãosgrandes e carnudas. Embora impression-antemente forte, era um pouco cheio na re-gião da cintura. O que chamou a atenção deShin, porém, foi sua decência. Ele não o faziasentir-se estúpido. Tentava explicar com

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toda paciência como era a vida fora doCampo 14 — e fora da Coreia do Norte.

Assim começou um seminário individualde um mês de duração que transformaria avida de Shin para sempre.

Enquanto andavam pela fábrica, Parkcontou a Shin que o nome do gigantesco paísvizinho era China. Seu povo estava enrique-cendo rapidamente. Contou que no Sul haviaoutra Coreia. Na Coreia do Sul, disse ele, to-dos já estavam ricos. Park explicou o con-ceito de dinheiro. Contou ao rapaz sobre aexistência da televisão, de computadores e detelefones celulares. Explicou que a Terra eraredonda. Shin tinha dificuldade em entendermuitas coisas de que Park falava, em acredit-ar nelas ou interessar-se por elas, sobretudono início. Não tinha especial interesse emsaber como o mundo funcionava. O que o en-cantava — o que estava sempre pedindo aPark — eram histórias sobre comida e comer,

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em particular quando o prato principal eracarne grelhada.

Essas eram as histórias que o mantinhamacordado à noite, fantasiando sobre umavida melhor. Em parte, era devido à exaustãoesmagadora do trabalho na fábrica. A com-ida era escassa; as horas, intermináveis, e eleestava sempre faminto. Mas havia algo mais— algo enterrado em sua memória desde otempo em que tinha 13 anos e lutava para serecuperar das queimaduras na prisão subter-rânea: seu idoso companheiro de celainflamara-lhe a imaginação com históriassobre refeições generosas.

Enquanto o velho na prisão subterrâneahavia comido bem na Coreia do Norte, asaventuras gustativas de Park eram globais.Ele descrevia os encantos do frango, da carnede porco e da carne bovina na China, emHong Kong, na Alemanha, na Inglaterra e naantiga União Soviética. Quanto mais ouviaessas histórias, mais Shin queria sair do

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campo. Ansiava por um mundo onde umapessoa insignificante como ele podia entrarnum restaurante e encher o estômago de ar-roz e carne. Tecia fantasias sobre uma fugacom Park porque queria comer como ele.

Embriagado com o que ouvia do pri-sioneiro a quem deveria denunciar, Shintomou talvez a primeira livre decisão de suavida. Optou por não delatar.

Isso marcou uma importante mudançaem seus cálculos sobre como sobreviver. Pelasua experiência, denunciar valia a pena. Issoo salvou dos carrascos que mataram sua mãee seu irmão. Depois da execução, essa talvezfosse a razão para que o professor na escolasecundária garantisse que ele tivesse comida,pusesse fim às agressões dos colegas e o des-ignasse para um trabalho fácil na fazenda deporcos.

Mas a decisão de fazer honra às confidên-cias de Park não significou para Shin umanova compreensão da natureza do certo e do

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errado. Olhando para trás, ele vê seu com-portamento como fundamentalmenteegoísta. Se tivesse denunciado Park, poderiater ganhado uma porção extra de repolho.Talvez pudesse ter sido promovido a capataz,com uma permissão especial para assediar ascostureiras.

No entanto, as histórias de Park erammuito mais valiosas para ele. Elas tinham setornado um vício essencial e revigorante,mudando suas expectativas com relação aofuturo e dando-lhe a vontade de planejá-lo.Acreditava que enlouqueceria se não asouvisse mais.

Em seus relatórios ao superintendente,Shin viu-se contando uma mentira maravil-hosamente libertadora. Park, disse ele, nãotinha nada para contar.

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Uma década antes, na prisão subterrânea, oidoso companheiro de cela de Shin ousarafalar sobre a comida fora do campo. Mas Tionunca lhe falara sobre si mesmo ou sobresuas ideias. Era cuidadoso, desconfiado econtido. Suspeitava que o menino fosse uminformante e não confiava nele. Shin não seofendia com isso. Parecia-lhe normal. A con-fiança era uma boa maneira de ser fuzilado.

Mas, depois de sua resistência inicial,Park não suspeitou mais dele. Acreditando,ao que parecia, que era tão confiável quantoignorante, narrou-lhe toda a história de suavida.

Disse-lhe que perdera seu cargo comochefe do centro de treinamento de tae kwondo em Pyongyang em 2002, após discutircom um burocrata de nível médio, queprovavelmente o delatara para funcionáriosdo escalão superior do governo. Sememprego, viajou com a mulher para o Norte;chegando à fronteira, eles entraram

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ilegalmente na China e hospedaram-se comum tio dele durante 18 meses. Pretendiamvoltar a Pyongyang, onde deixaram um filhoadolescente que morava com os pais de Park.

Enquanto estava na China, Park ouvia,todos os dias, transmissões de rádio da Cor-eia do Sul. Prestava grande atenção às notí-cias sobre Hwang Jang Yop, um grandeartífice da ideologia da Coreia do Norte e ofuncionário mais graduado a desertar.Hwang, que fugiu em 1997, tornara-se umacelebridade em Seul.

Enquanto Shin fazia suas rondas pelafábrica de roupas com Park, este lhe explicouque Hwang havia criticado Kim Jong Il portransformar a Coreia do Norte num Estadofeudal corrupto. (Em 2010, o governo deKim enviou agentes para assassinar Hwang.Os agentes, porém, foram presos em Seul, eHwang morreu de causas naturais naqueleano, aos 87 anos.)

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No verão de 2003, Park retornou à Coreiado Norte com a mulher e um bebê nascido naChina. Queria chegar a Pyongyang a tempode votar na eleição de agosto para a SupremaAssembleia do Povo, o parlamento que tudoaprovava sem questionar.

As eleições na Coreia do Norte são rituaisvazios. Com candidatos escolhidos peloPartido dos Trabalhadores coreano, elas sãodisputadas sem oposição. Mas Park temiaque, se deixasse de votar, o governo perce-beria sua ausência, o declararia traidor emandaria sua família para um campo de tra-balhos forçados. O voto não é obrigatório nopaís, mas o governo fica de olho nos que nãocomparecem.

Na fronteira, autoridades coreanas det-iveram Park e sua família. Ele tentouconvencê-las de que não era um desertor, deque estivera apenas visitando seus parentesna China e agora voltava à Coreia para votar.As autoridades não engoliram essa história.

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Acusaram-no de ter se convertido ao cristi-anismo e de ser um espião da Coreia do Sul.Após várias sessões de interrogatório, Park, amulher e o filho foram enviados para oCampo 14. Ele foi designado para a fábricatêxtil no outono de 2004.

Quando Shin o conheceu, Park estavafurioso consigo mesmo por ter voltado à Cor-eia do Norte. Sua insensatez custara-lhe aliberdade e, como contou a Shin, logo lhecustaria a esposa.

Ela estava se divorciando dele. Vinha deuma família proeminente em Pyongyang,com fortes conexões partidárias, contouPark, e tentava convencer os guardas docampo de que havia sido uma esposa leal esubmissa, ao passo que o marido era umcriminoso político.

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Apesar de sua raiva — da podridão da Coreiado Norte, de sua mulher, de si mesmo —,Park sempre se comportava com dignidade,em especial quando era hora de comer.

Para Shin, isso parecia absolutamente as-sombroso. Todos que ele conhecia no campoagiam como animais em pânico nas horasdas refeições. Park, mesmo quando tinhafome, não o fazia. Quando Shin apanhavaratos na fábrica, ele insistia na paciência.Recusava-se a permitir que Shin os comesseaté que encontrassem um forno ou chamaem que um rato pudesse ser estendido numapá e apropriadamente cozido.

Park também demonstrava ter um es-pírito jovial. Na opinião de Shin, vez poroutra, ele levava isso um pouco longedemais.

Um exemplo eram suas cantorias.No meio de um turno noturno, Park as-

sustou Shin irrompendo numa canção.

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— Ei! O que está fazendo? — perguntouShin, temendo que um capataz pudesseouvir.

— Cantando.— Pare já com isso — disse-lhe Shin.Shin nunca cantara. Sua única exposição

à música acontecera na fazenda, quandocaminhões com alto-falantes irradiavam can-ções marciais enquanto os prisioneiros ar-rancavam ervas daninhas. Para ele, cantarparecia artificial e insanamente perigoso.

— Gostaria de cantar comigo? — pergun-tou Park.

Shin sacudiu a cabeça com vigor e agitouas mãos, tentando silenciá-lo.

— Quem me ouviria a esta hora? — per-guntou Park. — Cante comigo uma vez.

Shin recusou-se.Park perguntou por que ele tinha tanto

medo de uma simples canção quando se dis-punha a ouvir histórias sediciosas sobre

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como Kim Jong Il era um ladrão e a Coreiado Norte um inferno?

Shin explicou que tolerava essas coisasporque Park tinha o bom-senso de sussurrá-las.

— Gostaria que você não cantasse —disse.

Park concordou em não o fazer. Algumasnoites depois, porém, soltou a voz numa can-ção e ofereceu-se para ensinar a letra a Shin.Ainda que indeciso e atemorizado, ele ouviue cantou com Park, mas disfarçadamente.

A letra da “Canção do solstício de in-verno”, que segundo desertores recentes é otema musical de um programa muito apre-ciado na televisão estatal norte-coreana, falade companheiros de viagem que suportamprivações e dores.

Enquanto caminharmos pela longa, longaestrada da vida,

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Permaneceremos cordiais companheiros deviagem, resistindo aosaçoites do vento e da chuva.

Ao longo dessa estrada haverá felicidade esofrimento.

Haveremos de superar, haveremos de supor-tar todas as tempestadesda vida.

Ainda é a única canção que Shin conhece.

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Em novembro, não muito depois que Parkfoi designado para a fábrica de tecidos,quatro guardas de Bowiwon apareceram desurpresa na reunião noturna de autocríticados prisioneiros. Dois deles tinham rostos

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desconhecidos, e Shin supôs que eram defora do campo.

Quando a reunião terminou, o chefe dosguardas disse que queria falar sobre piolhos,um problema crônico nos campos. Ele pediuque os prisioneiros infestados dessem umpasso à frente.

Um homem e uma mulher, líderes emseus respectivos dormitórios, levantaram-se.Disseram que os piolhos estavam fora decontrole em seus alojamentos. Os guardasderam a cada um deles um balde cheio deum líquido esbranquiçado que, para Shin,tinha cheiro de defensivo agrícola.

Para demonstrar a eficácia do produto nocontrole de piolhos, os guardas pediram quecinco homens e cinco mulheres de cada umdos dormitórios infestados se lavassem comele. Shin e Park, é claro, tinham piolhos, masnão lhes foi permitido usar o tratamento.

Dentro de cerca de uma semana, os dezprisioneiros que vinham se lavando com o

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líquido desenvolveram bolhas na pele. Algu-mas semanas depois, suas peles começarama se deteriorar e descamar. Eles tiveram umafebre alta, que os impediu de trabalhar. Shinviu um caminhão chegar à fabrica e observouos prisioneiros doentes serem embarcadosnele. Nunca mais soube deles.

Foi nesse momento, em meados dedezembro de 2004, que concluiu que estavafarto. Começou a pensar em fugir.

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Park tornou esses pensamentos possíveis.Ele mudou a maneira como Shin se rela-cionava com outras pessoas. A amizade dosdois quebrou um padrão, mantido por eledurante toda a vida — desde a virulenta re-lação com a mãe —, de desconfiança etraição.

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Shin não era mais uma criatura de seuscarcereiros. Acreditava ter encontrado al-guém que o ajudaria a sobreviver.

A relação dos dois reproduzia, sob muitosaspectos, os laços de confiança e proteçãomútua que mantinham os prisioneiros vivose sãos de espírito nos campos de con-centração nazistas. Naqueles campos, con-stataram os investigadores, a “unidadebásica de sobrevivência” era o par, não oindivíduo.

“Era nos pares que os prisioneirosmantinham viva a semelhança de humanid-ade”, concluiu Elmer Luchterhand, um so-ciólogo de Yale que entrevistou 52 sobre-viventes de campos de concentração nazistaspouco após a libertação.1

Pares roubavam comida e roupa um parao outro, trocavam pequenos presentes eplanejavam o futuro. Se um membro de umpar desmaiava de fome diante de um oficialda SS, o outro o sustentava.

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“A sobrevivência [...] só podia ser umarealização social, não um acidente individu-al”, escreveu Eugene Weinstock, um judeunascido na Hungria que combateu na res-istência belga e foi enviado para Buchenwaldem 1943.2

Por fim, a morte de um membro de umpar com frequência sentenciava o outro.Mulheres que conheceram Anne Frank emBergen-Belsen contaram que não foi a fomenem o tifo que mataram a jovem autoradaquele que se tornaria o diário mais famosoda era nazista. O que ocorreu, disseram, foique ela perdeu a vontade de viver depois damorte da irmã, Margot.3

Tal como os campos de concentração naAlemanha nazista, os campos de trabalhosforçados da Coreia do Norte usam o confina-mento, a fome e o medo para criar uma es-pécie de caixa de Skinner, uma câmarafechada e rigorosamente regulada em queguardas se arrogam controle absoluto sobre

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os prisioneiros.4 No entanto, enquantoAuschwitz existiu por apenas três anos, oCampo 14 é uma caixa de Skinner com maisde cinquenta anos, um experimento longit-udinal ainda em curso sobre repressão e con-trole mental, em que guardas criam pri-sioneiros a quem controlam, isolam e jogamuns contra os outros desde o nascimento.

O milagre da amizade de Shin com Parkfoi a rapidez com que ela explodiu a caixa.

O espírito de Park, sua dignidade e suasinformações incendiárias deram ao rapazalgo ao mesmo tempo atraente e in-suportável: um contexto, uma maneira desonhar com o futuro.

De repente, ele compreendeu quem era eo que lhe faltava.

O Campo 14 não era mais o seu lar. Erauma jaula abominável.

E agora ele tinha um amigo viajado e deombros largos para ajudá-lo a escapar dali.

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CAPÍTULO 14A FUGA É PREPARADA

Oplano dos dois era simples — e delirante-mente otimista.Shin conhecia o campo. Park conhecia o

mundo. Shin os levaria até a cerca. Park oslevaria até a China, onde um tio lhes dariaabrigo, dinheiro e auxílio para viajar até aCoreia do Sul.

Shin foi o primeiro a sugerir que fugis-sem juntos. Mas, antes de mencionar a ideia,atormentou-se por dias a fio, temendo quePark pudesse ser um informante, que est-ivesse sendo vítima de uma armadilha, que

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viesse a ser executado como a mãe e o irmão.Mesmo depois que Park abraçou a ideia, Sh-in teve dificuldade em livrar-se de sua para-noia: ele havia delatado a própria mãe, porque Park não o denunciaria?

Apesar disso, o plano de fuga, tal comoera, foi adiante à medida que o entusiasmode Shin superava seu medo. Ele acordava deótimo humor após uma noite sonhando comcarne grelhada. Carregar máquinas de cos-tura escadas acima e abaixo na fábrica nãomais o exauria. Pela primeira vez na vida,tinha algo para esperar com ansiedade.

Como Park tinha ordens de seguir Shinpor toda parte, cada dia de trabalho tornava-se uma maratona de preparativos cochicha-dos para a fuga e de histórias motivacionaissobre os excelentes jantares que os esper-avam na China. Os dois decidiram que, sefossem descobertos na cerca, Park liquidariaos guardas a golpes de tae kwon do, apesarde portarem armas automáticas. Shin e Park

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convenceram-se de que tinham boas chancesde não serem mortos.

Por quaisquer critérios, eram expect-ativas absurdas. Ninguém tinha fugido doCampo 14. Na verdade, além de Shin, peloque se sabe, apenas uma pessoa fugiu de umcampo de prisioneiros políticos na Coreia doNorte e conseguiu chegar até o Ocidente. ÉKim Yong, ex-tenente-coronel com amigosinfluentes por toda a Coreia do Norte. Masele não transpôs a cerca. Fugiu graças ao quedescreveu como uma “oportunidade total-mente milagrosa”. Em 1999, durante ocolapso governamental e as falhas de segur-ança que marcaram o auge da fome norte-coreana, ele se escondeu debaixo de umpainel de metal enfiado à força no fundo deum vagão de trem dilapidado que estavasendo carregado de carvão.

Ao deixar o Campo 18, o trem levava Kim,que conhecia bem a zona rural e usou seuscontatos pessoais na fronteira para encontrar

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uma maneira segura de atravessar para aChina.

Kim fugiu de uma prisão que não era nemde longe tão bem guardada quanto aquelaem que Shin e Park planejavam sua fuga.Como escreveu em suas memórias, LongRoad Home (Longo caminho para casa), elenunca poderia ter fugido do Campo 14porque “os guardas de lá agiam como se est-ivessem na linha de frente de uma guerra”.1

Kim conta que, antes de ser transferido parao campo do qual acabou fugindo, passou doisanos no Campo 14. Descreveu as condiçõesali como “tão severas que eu não podiapensar sequer na possibilidade”.

Shin e Park não sabiam da fuga de Kim enão tinham nenhum meio de estimar asprobabilidades de escapar do Campo 14 oude encontrar uma passagem segura para aChina. Mas Park inclinava-se a acreditar nastransmissões de rádio feitas de Seul, que es-cutara quando vivia na China. Esses relatos

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concentravam-se nos fracassos e fraquezasdo governo da Coreia do Norte. Ele contou aShin que as Nações Unidas tinhamcomeçado a criticar as violações aos direitoshumanos nos campos de trabalhos forçadospara prisioneiros políticos do Norte. Contoutambém que ouvira falar que eles desapare-ceriam num futuro não muito distante.2

Embora já tivesse viajado muito pela Cor-eia do Norte e a China, ele confidenciou aShin que sabia pouco sobre as montanhas ín-gremes, cobertas de neve e escassamente po-voadas que se estendiam além da cerca.Também não sabia muito sobre as estradasque poderiam levá-los em segurança para aChina.

Shin conhecia a disposição do complexograças aos inúmeros dias que passaracatando lenha e colhendo bolotas decarvalho, mas nada sabia sobre como passarpor cima ou atravessar a cerca de altavoltagem que circundava o campo. Ele não

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sabia se morreriam se a tocassem, embora sepreocupasse com isso.

Teve também dificuldade, nas semanas edias que precederam a fuga, em evitarpensamentos sobre o que acontecera com amãe e o irmão. Não sentia culpa. Era medo.Tinha medo de morrer como eles. Imagensda execução dos dois lhe ocorriamsubitamente. Imaginava-se de pé diante deum pelotão de fuzilamento ou sobre um caix-ote de madeira com um laço em volta dopescoço.

Fazendo um cálculo baseado em inform-ação de menos e aspiração de mais, dizia a simesmo que tinha 90% de chances de at-ravessar a cerca e 10% de ser fuzilado.

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Antes da fuga, o principal preparativo de Sh-in foi furtar roupas quentes, assim como sap-atos novos, de um colega prisioneiro.

Esse prisioneiro dormia no chão domesmo dormitório que ele e trabalhava nafábrica cortando roupas, uma função que lhepermitia acumular retalhos de tecido, quetrocava por comida e outras mercadorias.Também era meticuloso em relação a suasroupas. Diferentemente de qualquer pessoano campo, montara um conjunto extra deroupas e sapatos de inverno.

Shin nunca tinha roubado roupas deoutro prisioneiro. Mas, desde que deixara deser um dedo-duro, tornara-se cada vez maisintolerante em relação àqueles que con-tinuavam a denunciar seus companheiros.Tinha especial aversão pelo cortador deroupas, que delatava todos que furtavamprodutos da horta da fábrica. Em sua opin-ião, ele merecia ser roubado.

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Como os prisioneiros não tinham acessoa armários ou nenhuma outra maneira se-gura de guardar o que lhes pertencia, foipara Shin uma simples questão de esperarque o cortador de roupas saísse do dorm-itório, passar a mão nos seus pertences eescondê-los até a hora da fuga. O homemnão desconfiou dele quando as roupas desa-pareceram. Os sapatos furtados não serviamnos seus pés (os sapatos no campo quasenunca serviam), mas eram relativamentenovos.

As roupas no campo eram distribuídasapenas em intervalos de seis meses. No finalde dezembro, quando Shin planejava sua fu-ga com Park, suas calças de inverno tinhamburacos nos joelhos e nas nádegas. Quandochegou a hora de fugir, ele decidiu que, paramelhor se aquecer, usaria as roupas velhaspor baixo das furtadas. Não tinha paletó,chapéu ou luvas que o protegessem do friocortante.

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Planejar uma fuga significou para Shin ePark esperar fazer parte de uma equipe detrabalho que os levasse para fora da fábrica elhes fornecesse um pretexto para se aproxi-mar da cerca.

Essa chance veio no dia de Ano-Novo, umraro feriado em que as máquinas na fábricaficavam em silêncio por dois dias. No final dedezembro, Shin soube que em 2 de janeiro, osegundo dia de inatividade, sua equipe demecânicos e algumas costureiras deixariam afábrica e seriam escoltados à crista de umamontanha na borda leste do campo. Ali, pas-sariam o dia podando árvores e empilhandomadeira.

Shin já trabalhara nessa montanha antes.O lugar ficava perto da cerca que corria pelotopo da crista. Informado de tudo isso, Parkconcordou que eles fugiriam no dia 2 dejaneiro de 2005.

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Quando a fábrica fechou em 1o de janeiro,Shin decidiu, com alguma relutância, fazeruma última visita ao pai.

A relação dos dois, sempre distante,tornara-se ainda mais fria. Nos poucos diasem que não tinha de trabalhar na fazenda ouna fábrica, Shin raramente se valia das re-gras que lhe permitiam visitar o pai. Passaralgum tempo com ele tornara-se umaprovação.

Não sabia dizer o que o deixava tão irrit-ado com o pai. Fora sua mãe, não seu pai,que pusera sua vida em risco ao planejaruma fuga quando ele tinha 13 anos. Ela e seuirmão é que haviam, de comum acordo, des-encadeado uma série de eventos que resul-tara em sua prisão e tortura, bem como naperseguição que sofrera na escola secun-dária. Seu pai havia sido mais uma vítima.

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Mas o pai estava vivo e tentandoreconciliar-se com ele. Pelo cálculo im-placável das relações entre pais distantes efilhos ressentidos, isso era razão suficientepara sua aversão.

Eles compartilharam uma soturna ceia deAno-Novo num refeitório do local de tra-balho do pai, comendo fubá e sopa de re-polho. Shin não fez nenhuma alusão ao pla-no de fuga. Ele dissera a si mesmo, enquantocaminhava para ver o pai, que qualquerdemonstração de emoção, qualquer sinal deuma despedida definitiva, poderia pôr a fugaem perigo. Não tinha plena confiança nele.

Depois que a mulher e o filho mais velhotinham sido mortos, o pai tentara ser maisatencioso. Pediu desculpas por ser um maupai e por ter exposto o filho à selvageria docampo. Chegou até a encorajá-lo, se ele al-gum dia tivesse a oportunidade, a “ver comoé o mundo”. Esse morno endosso de uma fu-ga talvez tenha sido expresso em termos

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brandos porque o pai de Shin também nãoconfiava por completo no filho.

Quando Shin foi designado para a fábricade roupas, onde oportunidades de encontrarou furtar comida extra eram particularmenteescassas, seu pai fizera o extraordinário es-forço de obter farinha de arroz e enviá-lapara o filho como um presente paterno. Shinsentiu aversão pelo presente e, mesmo comfome, passou-o adiante.

Agora, sentados juntos no refeitório, nen-hum dos dois mencionou o presente, equando Shin partiu naquela noite não houvenenhuma despedida especial. Ele supunhaque, assim que os guardas soubessem da fu-ga, iriam buscar seu pai e levá-lo de voltapara a prisão subterrânea. Tinha quase cer-teza de que ele não sabia o que estava porvir.

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CAPÍTULO 15A CERCA

Na manhã seguinte, bem cedo, um capatazda fábrica de roupas conduziu Shin, Park

e cerca de 25 outros prisioneiros montanhaacima. Eles começaram a trabalhar perto dotopo de uma encosta de mais de 360 metros.O céu estava claro e o sol brilhava sobre umacamada compacta de neve, mas fazia frio e ovento soprava. Alguns prisioneiros usavammachadinhas para arrancar os galhos deárvores derrubadas, enquanto outros empil-havam madeira.

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Estar na turma que saía para catar lenhaera um extraordinário golpe de sorte. Issopunha Shin e Park muito perto da cerca quecorria ao longo da crista da montanha. Dooutro lado dela, o terreno declina abrupta-mente, mas não é tão íngreme que não possaser atravessado a pé. Pouco depois da cerca,há árvores.

Uma guarita erguia-se sobre a cerca maisou menos 400 metros ao norte do local ondeos prisioneiros cortavam lenha. Duplas deguardas, caminhando lado a lado, patrul-havam o perímetro interno. Shin notou quehavia longos intervalos entre as patrulhas.

O capataz encarregado pela equipe detrabalho era também um prisioneiro, porisso estava desarmado. Nos intervalos entreas patrulhas, não havia ninguém por pertoque pudesse disparar uma arma contra Shine Park. Mais cedo, eles decidiram esperar ocair da noite, quando seria mais difícil que osguardas seguissem suas pegadas na neve.

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Enquanto trabalhava e esperava, Shincismava sobre como os outros prisioneirosignoravam a cerca e as oportunidades que seencontravam do outro lado. Eram como va-cas, pensou, com uma passividade rumin-ante, resignados a suas vidas sem saída.Tinha sido como eles até conhecer Park.

Por volta das quatro horas da tarde, coma luz do dia se esvaindo, Shin e Park an-daram furtivamente em direção à cerca,podando árvores enquanto se moviam. Nin-guém pareceu notar.

Shin logo se viu diante da cerca, quetinha cerca de três metros de altura. Haviauma banqueta de neve que chegava à alturado joelho bem em frente a ele e depois umatrilha onde ela fora pisoteada pelos guardasda patrulha. Mais além, havia uma faixalimpa e lisa de areia. Ela revelaria pegadas sealguém a pisasse. E depois disso vinha a pró-pria cerca, que consistia em sete ou oito fiosde arame farpado de alta voltagem, a

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intervalos de cerca de trinta centímetros,presos entre mourões altos.

As cercas em torno de alguns dos camposde trabalhos forçados na Coreia do Norte in-cluem fossos, com espigões destinados a em-palar quem caísse dentro deles, segundoKwon Hyuk, um desertor que trabalhoucomo administrador no Campo 22. Mas Shinnão viu nenhum fosso nem espigão.

Ele e Park disseram um ao outro que, seconseguissem passar pela cerca sem tocarnos arames, estariam salvos. Quanto àmaneira como fariam isso, não tinham cer-teza. No entanto, à medida que a hora da fu-ga se aproximava, Shin ficou surpreso pornão sentir medo.

Park, porém, estava perturbado.Depois que os guardas passaram ao longo

da cerca como parte da ronda do fim datarde, Shin percebeu medo na voz docompanheiro.

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— Não sei se consigo fazer isso — sussur-rou ele. — Não podemos tentar em algumaoutra ocasião?

— Do que você está falando? — perguntouShin. — Se não fizermos isso agora, nãohaverá outra chance.

Ele temia que se passassem meses, talvezanos, antes que tivessem permissão paraficar longe da fábrica ao cair da noite pertode uma seção da cerca que não podia servista de uma torre de vigilância.

Não podia — não iria — esperar mais.— Vamos correr! — gritou.Agarrou a mão de Park e puxou-o para a

cerca. Por um ou dois segundos torturantes,Shin teve de arrastar o homem que inspiraraseu desejo de fugir. Logo, porém, Parkcomeçou a correr.

Haviam planejado que Shin ficaria àfrente até que os dois estivessem longe dacerca, mas ele escorregou e caiu de joelhos

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sobre a trilha congelada por onde passara apatrulha.

Park chegou primeiro. Ajoelhando-se, eleempurrou os braços, a cabeça e os ombrosentre os dois fios de arame mais baixos.

Segundos depois, Shin viu centelhas esentiu cheiro de carne queimada.

A maioria das cercas elétricas construídaspara fins de segurança repele invasores comum pulso de corrente penoso, mas extrema-mente breve. Não são projetadas para matar,e sim para afugentar animais e pessoas. Cer-cas elétricas letais, porém, usam uma cor-rente contínua que pode fazer uma pessoaficar pregada no arame enquanto a voltagemprovoca contrações musculares involuntári-as, paralisia e morte.

Antes que Shin conseguisse se levantar,Park parara de se mexer. É possível que jáestivesse morto. Mas o peso de seu corpopuxava para baixo o fio de arame inferior,

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prendendo-o contra o chão coberto de neve ecriando uma pequena brecha na cerca.

Sem hesitação, Shin rastejou sobre ocorpo do amigo, usando-o como uma espéciede almofada isolante. Enquanto se contorciaatravés da cerca, pôde sentir a corrente.Parecia que havia agulhas se fincando nassolas de seus pés.

Havia quase terminado de atravessar acerca quando a parte inferior de suas pernasescorregou do torso de Park e entrou emcontato direto, através dos dois pares decalças que usava, com o fio de baixo. Avoltagem do arame causou-lhe queimadurasseveras dos tornozelos aos joelhos. Os feri-mentos sangraram por semanas.

Mas levaria em torno de duas horas atéque ele percebesse a gravidade dosferimentos.

A lembrança mais clara que tem dos mo-mentos em que rastejava através da cerca era

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que o corpo de Park cheirava como se est-ivesse queimando.

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O corpo humano é imprevisível no que dizrespeito à condução de eletricidade. Porrazões não claramente compreendidas, a ca-pacidade dos indivíduos de sofrer um choquede alta voltagem e sobreviver varia muito.Não é uma questão de constituição ou pre-paro físico. Pessoas corpulentas nãomostram maior resistência que as esguias.

A pele humana pode ser um isolante re-lativamente bom se estiver seca. O tempofrio fecha os poros da pele, reduzindo a con-dutividade. Múltiplas camadas de roupa po-dem ajudar também. Mas mãos suadas eroupas molhadas podem derrotar facilmentea resistência natural da pele à corrente. Umavez que a eletricidade de alta voltagem

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penetra num corpo bem aterrado (sapatosmolhados sobre um solo coberto de neve), oslíquidos e sais no sangue, músculos e ossossão excelentes condutores. Já houve caso depessoas molhadas, de mãos dadas, que mor-reram, juntas, eletrocutadas.

O sucesso de Shin em se arrastar e at-ravessar uma cerca elétrica projetada paramatar parece ser sido uma questão de sorte.A dele foi estarrecedoramente boa; a de Parkfoi terrível. Se Shin não tivesse escorregadona neve, teria chegado à cerca em primeirolugar e é muito provável que tivesse morrido.

Ele não sabia, mas para passar em segur-ança pela cerca ele precisava de um disposit-ivo que pudesse desviar o fluxo da correntedela para o chão. O corpo de Park, deitadosobre o solo úmido acima do fio inferior dearame, transformou-se nesse dispositivo.

Com Park extraindo a corrente do fio ecanalizando-a para o solo, o nível devoltagem a que Shin foi exposto enquanto

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rastejava sobre as costas do amigo provavel-mente não estava perto de ser letal. As cama-das extras de roupa que usava também po-dem ter ajudado.

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Quando se afastou da cerca, Shin não faziaideia de para onde ir. No topo da montanha,a única direção que ele podia considerar erapara baixo. A princípio, avançou sinu-osamente em meio a um grupo de árvores.Dentro de minutos, porém, estava numdescampado, enfiando-se em campos e pas-tos elevados esporadicamente iluminadospor uma meia-lua que aparecia entre asnuvens.

Correu por cerca de duas horas, semprerumando para baixo, até que entrou numvale. Havia celeiros e casas espalhadas. Nãoouviu nenhum alarme, nenhum tiroteio,

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nenhum grito. Até onde podia ver, ninguémo perseguia.

Quando a adrenalina da fuga começou arefluir, percebeu que as pernas de suas calçasestavam pegajosas. Suspendeu-as, viusangue brotando das pernas e compreendeua gravidade de suas queimaduras. Os péstambém sangravam. Ele pisara em pregos,ao que parecia, quando estava perto da cercado campo. Fazia muito frio, a temperaturaestava bem abaixo dos 12 graus negativos.Ele não tinha agasalho.

Park, morto na cerca, não lhe disseraonde poderia encontrar a China.

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CAPÍTULO 16FURTOS

Precipitando-se montanha abaixo na escur-idão do início da noite através do restolho

de um campo de trigo, Shin deparou com umbarracão de fazenda semienterrado na en-costa. A porta estava trancada. Como nãohavia nenhuma casa nas proximidades, elequebrou o cadeado com um cabo demachado que achou no chão.

Logo ao entrar, descobriu três espigas demilho seco e devorou-as. O milho o fez per-ceber como estava faminto. Ajudado pelo lu-ar, vasculhou o barracão à procura de mais

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alguma coisa para comer. Em vez disso, deucom um velho par de calçados de algodão eum surrado uniforme militar.

Há uniformes por toda parte na Coreia doNorte, a sociedade mais militarizada domundo. O recrutamento é quase universal.Os homens servem por dez anos, as mul-heres por sete. Com mais de um milhão desoldados no serviço ativo, cerca de 5% dapopulação do país usa uniforme, contraapenas 1% nos Estados Unidos. Outros cincomilhões de pessoas servem no Exército dereserva durante grande parte de suas vidasadultas. O Exército é “o povo, o Estado e oPartido”, diz o governo, que não se qualificamais como um Estado comunista. Seuprincípio norteador, segundo a Constituição,é “em primeiro lugar as forças armadas”.Soldados uniformizados catam mexilhões elançam mísseis, colhem maçãs e constroemcanais de irrigação, vendem cogumelos e

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supervisionam a exportação de jogos Nin-tendo falsificados.

Inevitavelmente, uniformes acabam emceleiros e barracões.

As calças e a camisa que Shin encontroueram muito grandes para ele, assim como oscalçados. Porém, encontrar uma muda deroupa — menos de três horas depois de fugirdo campo e antes que qualquer pessoapudesse vê-lo — foi um extraordinário golpede sorte.

Ele tirou os sapatos molhados e frios edespiu os dois pares de calças da prisão. Dosjoelhos para baixo elas estavam rígidas desangue e neve. Tentou fazer uma bandagempara as pernas com páginas arrancadas deum livro que encontrou no barracão. Elasgrudaram nas suas canelas laceradas. Vestiuo uniforme roto, grande demais, e enfiou ospés nos sapatos que encontrara.

Não mais reconhecível instantaneamentecomo um prisioneiro fugitivo, ele se tornara

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apenas mais um norte-coreano malvestido,mal calçado e malnutrido. Num país ondeum terço da população era cronicamentedesnutrida, onde os mercados e estações detrem locais estavam repletos de vendedoresitinerantes imundos e onde quase todomundo servia o Exército, Shin se misturavafacilmente aos demais.

Fora do barracão, ele também encontrouuma estrada e seguiu-a até chegar a umaaldeia no fundo do vale. Ali, para sua sur-presa, viu o rio Taedong.

Apesar de ter corrido tanto, estava a pou-co mais de três quilômetros rio acima doCampo 14.

Notícias da sua fuga não haviam chegadoà aldeia. As ruas estavam escuras e vazias.Shin cruzou uma ponte sobre o Taedong erumou para o leste numa estrada paralela aorio. Escondeu-se dos faróis quando um únicocarro passou por ele. Depois subiu num

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trilho de estrada de ferro que parecia aban-donado e continuou andando.

Tarde da noite, tendo caminhado cerca dedez quilômetros, ele alcançou os arredoresde Bukchang, uma vila produtora de carvãologo ao sul do rio, com cerca de dez mil hab-itantes. Havia alguns transeuntes na rua,mas sua presença não lhes pareceu despertarespecial atenção. Com uma fábrica dealumínio, minas de carvão e uma grande us-ina elétrica, a vila talvez estivesse acos-tumada a ver trabalhadores andando pelasruas mesmo em horas tardias.

Avistou um chiqueiro, uma visão familiare confortadora. Pulou uma cerca, encontrouum pouco de palha de arroz e enfiou-se nelapara passar a noite.

Durante os dois dias seguintes, procuroucomida pelas redondezas de Bukchang, de-vorando tudo que conseguia encontrar nochão ou em montes de lixo. Não tinha ideiado que deveria fazer ou de para onde deveria

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ir. As pessoas na rua pareciam ignorá-lo. Aspernas doíam, e ele sentia fome e frio.Apesar disso, estava radiante. Sentia-secomo um extraterrestre caído na Terra.

Nos meses e anos seguintes, Shindescobriria todas as coisas modernas: vídeosem streaming, blogs e viagens aéreas inter-nacionais. Terapeutas e conselheiros profis-sionais o orientariam. Pregadores lhemostrariam como orar para Jesus Cristo.Amigos o ensinariam a escovar os dentes,usar um cartão de débito e andar por aí comum smartphone. Por meio de obsessivas leit-uras na internet, a política, a história e a geo-grafia das duas Coreias, da China, do SudesteAsiático, da Europa e dos Estados Unidos setornariam todas familiares para ele.

Nada disso, porém, contribuiu mais paramudar sua compreensão de como o mundofunciona — e de como seres humanos inter-agem uns com os outros — do que osprimeiros dias que passou fora do campo.

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Chocou-o ver norte-coreanos cuidandodas próprias vidas sem receber ordens deguardas. Quando tinham a audácia de rirjuntos na rua, ou de usar roupas muito color-idas, ou ainda de pechinchar numa feiralivre, Shin esperava que homens armados in-terviessem, golpeassem cabeças e acabassemcom aquele disparate.

A palavra que Shin usa reiteradamentepara descrever aqueles primeiros dias é“choque”.

Não era significativo para ele que a Cor-eia do Norte no auge do inverno seja feia,suja e escura, ou que seja mais pobre que oSudão, ou que, tomada como um todo, sejavista pelos grupos de direitos humanos comoa maior prisão do mundo.

Seu contexto eram 23 anos numa jaula aoar livre dirigida por homens que enforcaramsua mãe, fuzilaram seu irmão, aleijaram seupai, assassinaram mulheres grávidas,

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surraram crianças até a morte, o ensinaram atrair sua família e o torturaram com fogo.

Sentia-se maravilhosamente livre — e, atéonde lhe era possível perceber, ninguém es-tava a sua procura.

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Mas também estava fraco de fome e, en-quanto vagava pelas ruas, começou a procur-ar uma casa vazia onde pudesse comer e des-cansar. Encontrou uma no fim de uma ruela.Forçando uma janela dos fundos feita devinil, pulou para dentro.

Na cozinha, encontrou três tigelas de ar-roz cozido. Imaginou que quem o prepararadevia estar prestes a voltar. Temendoarriscar-se a comer ou dormir na casa, es-vaziou o arroz num saco de plástico e pôsjunto um pouco de pasta de soja que encon-trou numa prateleira.

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Vasculhando o resto da casa, encontrouum par de calças grossas de inverno pen-duradas num cabide e mais um par de sapa-tos. Encontrou também uma mochila e umcasaco de inverno marrom-escuro, que erade estilo militar e muito mais quente do quequalquer casaco que já tivesse usado. Abriuuma última gaveta da cozinha e descobriuum saco de cinco quilos de arroz. Enfiou-ona mochila e saiu.

Perto do centro de Bukchang, umafeirante gritou-lhe. Queria saber o que haviana sua mochila, se ele tinha alguma coisapara vender. Tentando manter a calma, elerespondeu que tinha um pouco de arroz. Elase ofereceu para comprá-lo por quatro milwons norte-coreanos, que valiam cerca dequatro dólares no câmbio negro.

Shin descobrira a existência do dinheiropor meio de Park. Antes que a senhora nafeira o chamasse, observara, maravilhado,pessoas usarem pequenos pedaços de papel

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— que supunha serem dinheiro — para com-prar comida e outras mercadorias.

Não tinha a menor ideia se quatro milwons era um preço justo por seu arroz fur-tado, mas vendeu-o alegremente e comproualgumas bolachas e biscoitos. Guardou oresto do dinheiro e deixou a vila a pé. Seudestino era a China, mas ainda não sabiaonde ela ficava.

Na estrada, encontrou vários homens an-drajosos e escutou sua conversa. Eles es-tavam procurando trabalho, surrupiandocomida, viajando de uma feira livre paraoutra e tentando manter-se longe da polícia.Um ou dois deles perguntaram a Shin deonde era. Ele respondeu que crescera na áreade Bukchang, o que não deixava de ser ver-dade e satisfez a curiosidade dos homens.

Shin logo percebeu que quase todosaqueles homens eram estranhos uns para osoutros. Mas tinha medo de fazer perguntas

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demais. Não queria se sentir obrigado a falarsobre si mesmo.

As pessoas que vagavam pela Coreia doNorte na época eram, em sua maioria, oper-ários desempregados e agricultores fracassa-dos, segundo um levantamento feito entremais de 1.300 refugiados norte-coreanos naChina no fim de 2004 e em 2005.1 Haviatambém estudantes, soldados, técnicos ealguns ex-funcionários do governo.

A pesquisa sugeriu que eles estavam naestrada sobretudo por razões econômicas, naesperança de encontrar emprego ou ocu-pação na China. Suas vidas haviam sido ex-tremamente difíceis, e as relações com o gov-erno eram tensas: quase 25% dos homens e37% das mulheres disseram que parentestinham morrido de fome. Mais de um quartodeles tinha sido preso na Coreia do Norte, e10% disseram ter sido postos na cadeia, ondea fome forçada, a tortura e as execuçõeseram comuns. Para sair da Coreia do Norte,

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mais da metade dos refugiados contou terusado dinheiro para subornar funcionáriosou comprar a ajuda de contrabandistasprofissionais.

Shin juntou-se a essa população errante,supondo que estaria mais seguro em suacompanhia do que viajando sozinho. Tentavacopiar o comportamento dos homens queencontrava na estrada. Não era difícil. Comoele próprio, eles eram esfarrapados, pare-ciam sujos, cheiravam mal e estavam deses-perados por comida.

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Como um Estado policial, a Coreia do Nortenão tolera andarilhos desocupados. Leisproíbem estritamente os cidadãos de viajarentre cidades sem a devida autorização. Masno período que se seguiu à fome — com ocolapso da economia dirigida pelo Estado, a

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ascensão dos mercados privados e a quaseonipresença de negociantes com mercadori-as contrabandeadas da China — as leis eramignoradas com frequência. Policiais podiamser subornados; na verdade, muitos delesviviam de subornos. Desocupados com umpouquinho de dinheiro podiam viajar emdireção à China sem atrair atenção.

Não há números confiáveis sobre asdeserções para a China ou sobre o movi-mento de pessoas que perambulam no interi-or da Coreia do Norte. A probabilidade de es-capar de uma prisão e conseguir entrar nopaís vizinho parece mudar de um períodopara outro. Depende de quão recentemente ogoverno ordenou uma intensificação das me-didas de segurança, do grau de vigilância dasautoridades chinesas na repatriação dosdesertores, da disposição dos guardas paraaceitar subornos e do quanto os norte-coreanos estão desesperados para cruzar afronteira. O governo norte-coreano criou

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novos campos de trabalhos forçados para ab-rigar negociantes e viajantes pobres demaisou sem sorte de abrir caminho para o nortemediante subornos.

Mas uma tendência é clara. O número denorte-coreanos que buscam asilo na Coreiado Sul vem aumentando a cada ano desde1995. Naquele ano, chegaram 41. Em 2009,esse número havia saltado para quase trêsmil. Entre 2005 e 2011 chegaram maisdesertores ao Sul do que em todo o períododesde o fim da Guerra da Coreia, em 1953.

Quando Shin começou a andar rumo àfronteira em janeiro de 2005, as condiçõespara a fuga eram, ao que parece, relativa-mente boas. Evidências disso podem ser en-contradas no grande número de fugitivos —cerca de 4.500 — que chegaram à Coreia doSul entre 2006 e 2007. Os desertores levam,em geral, um ou dois anos para se deslocarda China à Coreia do Sul.

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A permeabilidade da fronteira norte-coreana tende a aumentar quando guardas efuncionários locais podem aceitar propinassem receber uma punição draconiana deautoridades superiores.

— Mais do que nunca, o dinheiro falamais alto — disse Chun Ki-won, um pastorprotestante em Seul que me contou que,entre 2000 e 2008, ele ajudou mais deseiscentos norte-coreanos a entrarem na Ch-ina e depois seguirem caminho até a Coreiado Sul.

Quando Shin se arrastou pela cercaelétrica, havia uma bem estabelecida rede decontrabando humano, com tentáculos quealcançavam as profundezas da Coreia doNorte. Chun e vários outros agentes basea-dos em Seul me disseram que, se recebessemdinheiro suficiente, podiam tirar pratica-mente qualquer norte-coreano do país.

Divulgando seus serviços através do bocaa boca, agentes em Seul ofereciam “fugas

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planejadas”. Uma versão econômica custavamenos de dois mil dólares. Ela envolviameses de viagem pela China, via Tailândia ouVietnã, até Seul e podia exigir travessias derios traiçoeiros, árduas viagens a pé e seman-as de espera em insalubres campos de refugi-ados tailandeses.

Uma fuga planejada de primeira classe,incluindo passaporte chinês falsificado e pas-sagem aérea de Pequim a Seul, custava dezmil dólares ou mais. Do princípio ao fim, dis-seram agentes e desertores, a fuga deprimeira classe podia durar menos de trêssemanas. Pastores ativistas de igrejas sul-coreanas inventaram o negócio da fuga no fi-nal dos anos 1990 e início da década de2000, contratando agentes que subornavamguardas do Norte na fronteira com dinheirodoado por paroquianos em Seul. Quando Sh-in caiu na estrada, os próprios desertores,muitos deles ex-oficiais das forças armadas eda polícia da Coreia do Norte, haviam

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tomado conta do negócio e dirigiam discreta-mente operações com fins lucrativos.

Essa nova linhagem de agentes muitasvezes recebia pagamento adiantado em din-heiro de famílias sul-coreanas abastadas oude renda média que buscavam a libertaçãode um parente. Às vezes, eles trabalhavamnum sistema de crediário, recebendo poucoou nenhum dinheiro à vista do desertor oude sua família. Quando o beneficiado peloplano em prestações chegava a Seul e tinhaacesso a parte dos mais de quarenta mildólares que o governo sul-coreano dava arecém-chegados do Norte, eles costumavamexigir mais dinheiro que sua remuneraçãobásica.

“Meu chefe está disposto a adiantar todoo dinheiro para pagar subornos e tirar al-guém do país”, disse um agente baseado emSeul e ex-oficial militar norte-coreano quetrabalhou para uma organização de contra-bando humano na China. “Mas, quando o

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sujeito chega a Seul, tem de pagar o dobropor esse serviço.”

Em 2008, muitos desertores estavam tãoendividados com os contrabandistas que ogoverno sul-coreano mudou sua maneira dedistribuir ajuda monetária. Em vez de pagara quantia total, dava o dinheiro ao longo dotempo, com incentivos para os que arran-javam empregos e se mantinham neles.Cerca de um quarto do dinheiro passou a irdiretamente para a moradia, impossibilit-ando sua transferência para um agente.

Usando contatos pessoais e institucionaisno Norte, agentes contratavam guias paraescoltar pessoas de suas casas na Coreia doNorte até a fronteira chinesa, onde elas eramentregues a guias que falavam chinês e aslevavam até o aeroporto de Pequim.

Perto de Seul, conversei com umadesertora norte-coreana que, em 2002,pagou 12 mil dólares a um agente para tirar

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clandestinamente do país seu filho de 11anos.

“Eu não sabia que a coisa podia acontecercom tanta rapidez”, declarou a mulher. Elanão quis revelar seu nome porque, na época,junto com os irmãos, estava providenciandoa retirada clandestina de sua mãe. “Bastaramcinco dias para que meu filho fosse arran-cado de lá e cruzasse o rio para chegar à Ch-ina. Fiquei pasma quando recebi um tele-fonema de funcionários do aeroporto emSeul informando que ele estava aqui.”

Na fronteira e dentro do país, o governonorte-coreano tem tentado reprimir essasoperações — e periodicamente consegue.

“Muita gente foi apanhada”, disse-me LeeJeong Yeon, um ex-funcionário norte-coreano da fronteira. “A polícia é a favor daexecução de 100% dos que são pegosajudando pessoas a desertar. Eu mesmo vivárias dessas execuções. Os contrabandistasde gente bem-sucedidos são pessoas

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experientes, com bons contatos nas forçasarmadas e que dão dinheiro aos guardas”,afirmou. “Os guardas são trocados com fre-quência, e novas pessoas precisam sersubornadas.”

Lee, cuja identidade foi confirmada porfuncionários do serviço sul-coreano de in-formações, trabalhou durante três anos juntoda fronteira da China com a Coreia do Norte.Ele supervisionava agentes secretos que sepassavam por intermediários e guias, com oobjetivo de se infiltrar no negócio de retiradaclandestina de pessoas e desmantelá-lo. Leecontou-me que, após sua deserção para oSul, usou seus contatos no Norte para trazer34 pessoas para a liberdade.

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Shin não tinha a consciência, o dinheiro nemos contatos necessários para usar as redes de

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contrabando humano, e por certo não tinhaninguém fora do país para contratar profis-sionais para ajudá-lo.

Mas, mantendo a boca fechada e os olhosabertos, ele penetrou no turbilhão de contra-bandos, negociações e pequenos subornosque tomou conta da economia pós-fome daCoreia do Norte.

Negociantes informais lhe mostravammontes de feno onde podia dormir, bairrosem que podia arrombar casas e feiras ondepodia trocar mercadorias roubadas por ali-mento. Shin muitas vezes compartilhavacomida com eles à noite, quando todos seamontoavam em torno de uma fogueira àbeira da estrada.

Quando partiu de Bukchang naquele dia,usando seu paletó recém-roubado e car-regando um farnel escondido de biscoitos,Shin juntou-se a um grupinho de mercadoresque por acaso se dirigia para o norte.

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CAPÍTULO 17RUMO AO NORTE

Amenos que pudesse ir para bem longe — erápido —, Shin temia logo ser apanhado.Ele andou quase 15 quilômetros até um

povoado na montanha chamado Maengsan,onde lhe disseram que um caminhão apare-ceria perto do mercado central. Por umapequena quantia, o veículo transportava pas-sageiros até a estação ferroviária de Ham-hung, a segunda maior cidade da Coreia doNorte.

Shin ainda não aprendera geografia sufi-ciente para saber onde ficava Hamhung. Mas

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não se preocupou com isso. Estava desesper-ado para encontrar um meio de transporteque não fossem suas pernas doloridas. Faziatrês dias que atravessara a cerca elétrica,arrastando-se, e ainda estava a pouco maisde vinte quilômetros do Campo 14.

Após fazer fila com mercadores que es-peravam o caminhão, conseguiu enfiar-se nacarroceria. A estrada era ruim, e a viagem demais de 95 quilômetros até Hamhung levouo dia todo e avançou pela noite. Na carrocer-ia do caminhão, um par de homens pergun-tou a Shin de onde ele vinha e para onde ia.Sem ter certeza de quem eram ou por queperguntavam aquilo, ele fingiu estar confusoe não disse nada. Os homens perderam o in-teresse nele.

Sem que soubesse, Shin fazia a viagemem um momento muito propício.

Outrora, os deslocamentos interurbanosna Coreia do Norte haviam sido impossíveissem uma autorização de viagem, carimbada

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ou inserida num “certificado de cidadão”,documento do tamanho de um passaporteque tinha por modelo a carteira de iden-tidade da antiga União Soviética.

Prisioneiros criados num campo comoShin não recebiam certificado de cidadão.Para os norte-coreanos que não o possuíam,era muito difícil obter autorizações paraviagem. Em geral, eram concedidas porrazões relacionadas a trabalho ou a umevento familiar que pudesse ser confirmadopor burocratas, como um casamento ou umfuneral. Mas a fiscalização policial sistemát-ica desses documentos havia terminado emgrande parte em 1997, exceto para viagenscom destino a Pyongyang e outras áreas re-stritas.1 As regras foram relaxadas quando afome impeliu as pessoas para as estradas, embusca de comida. Desde então, os subornospagos pelos mercadores evitavam que a polí-cia e outros agentes de segurança aplicassema lei. Em poucas palavras, a cobiça da

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burocracia faminta por dinheiro pareceupermitir a viagem de Shin.

Com toda probabilidade, o caminhão emque ele viajou era um veículo militar conver-tido ilegalmente em meio de transportepago. O sistema, conhecido como servi-cha,ou carro de serviço, foi inventado no finaldos anos 1990 por elites do governo e milit-ares para arrancar dinheiro daqueles queprecisavam se locomover e transportar mer-cadorias pelo país. Foi parte de um sistemaemergente que logo obteve grande sucesso eque o Daily NK, um site baseado em Seulcom informantes do Norte, descreve como a“principal ferramenta de transporte” do paíse provavelmente a “mais decisiva influênciano crescimento” dos mercados privados.2

Na Coreia do Norte os veículos não per-tencem a indivíduos, mas ao governo, aopartido e às forças armadas. Oportunistasempregados dentro dessas organizações des-viavam caminhões e tramavam com

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contrabandistas para trazer frotas de carrosde segunda mão, vans e ônibus da China. De-pois que os veículos eram registrados emnome de entidades estatais, motoristasprivados eram contratados, e andarilhoscomo Shin podiam se deslocar por grandeparte do país sem que lhes fizessemperguntas.

O capitalismo insurgente apavorava ogoverno da Coreia do Norte, que se queixavapublicamente de um declive escorregadiorumo à mudança de regime e à catástrofe.Mas tentativas periódicas de disciplinar oscorruptos, restringir as atividades dos mer-cados, tirar os veículos do servi-cha das es-tradas e confiscar dinheiro defrontavam-secom uma resistência generalizada. Grandeparte dela vinha de um funcionalismopúblico mal remunerado, cujo sustento de-pendia do uso da autoridade policial e ad-ministrativa para arrancar dinheiro de capit-alistas em ascensão.

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Para obrigar os comerciantes a pagar, asforças de segurança da Coreia do Norte in-troduziram uma nova modalidade de camposde trabalhos forçados, diferentes daquele emque Shin nascera. Em vez de abrigar crim-inosos políticos em caráter perpétuo, eles en-carceravam — e ocasionalmente torturavam— mercadores que não pagavam subornos aagentes de segurança. Policiais percorriamde quando em quando os mercados e pren-diam os negociantes a pretexto de vagas leisque proibiam compras e vendas. Eles só po-diam evitar uma horrível viagem para umcampo de trabalhos forçados mediante paga-mentos em moeda forte.

A existência desses campos, que o gov-erno começou a construir antes da fuga deShin, foi revelada pela primeira vez em “Re-pression and Punishment in North Korea”(Repressão e punição na Coreia do Norte),um relatório de 2009 baseado em inform-ações de mais de seiscentos refugiados

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entrevistados na China e na Coreia do Sulentre 2004 e 2008.

Os agentes de segurança usavam essasprisões como “um sistema para extorquir aspessoas”, contou-me, em Washington, Mar-cus Noland, economista e coautor do docu-mento. “Parece de fato o trabalho de umaquadrilha, uma espécie de Estado ‘Soprano’.”

Cerca de dois terços das pessoas presasnesses campos tinham permissão para voltarpara casa dentro de um mês, segundo apesquisa feita entre os refugiados. Geral-mente, não eram locais muito grandes, haviapoucos guardas e não muitas cercas, mas,durante a breve estada lá dentro, muitosnorte-coreanos disseram ter testemunhadode maneira rotineira execuções e mortes portortura e inanição. O efeito desse encarcera-mento expresso para crimes econômicos es-palhou medo entre as pessoas que ganhavama vida com o comércio.

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“O governo norte-coreano ordena à polí-cia restringir os mercados, mas ela nemsempre obedece porque muitos policiais eoutras autoridades estão ganhando din-heiro”, afirmou Jiro Ishimaru, o editor deRimjin-gang, um jornal baseado no Japãoque compila relatos de testemunhas ocu-lares, fotos e vídeos contrabandeados porrepórteres anônimos. “As pessoas de foranão compreendem, mas a Coreia do Norteestá passando neste exato momento por umamudança drástica.”

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Shin chegou à noite às imediações da estaçãoferroviária de Hamhung, uma cidade lit-orânea com cerca de 750 mil habitantes. Amaioria deles trabalhava em fábricas, ou ofizera, antes que elas fossem fechadas por

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conta da falta de eletricidade e de matérias-primas.

Durante a fome dos anos 1990, o sistemaestatal de distribuição de alimentos se desin-tegrou em Hamhung, deixando os operáriossem quaisquer formas alternativas de obtê-los. Em consequência, a cidade foi maisduramente atingida pela fome e pela inan-ição que qualquer outro centro populacionalna Coreia do Norte, segundo relatos de refu-giados.3 Jornalistas ocidentais que visitaramo país em 1997 observaram que os morrosque cercam a cidade estavam cobertos detúmulos novos. Um sobrevivente disse que10% dos habitantes da cidade morreram, aopasso que outro estimou que 10% fugiramem busca de comida.

Em 2005, quando Shin chegou a Ham-hung, a maioria de suas fábricas ainda estavafechada. Mas o grosso do tráfego de trensnorte-sul da Coreia do Norte ainda con-tinuava a passar por seus pátios ferroviários.

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Protegido pela escuridão, Shin foi comoutros mercadores do caminhão até umtrecho do pátio ferroviário onde trens decarga eram montados e despachados. Viu al-guns guardas na estação, mas eles não es-tavam verificando documentos de identidadee não fizeram nenhum esforço para afastaros comerciantes dos vagões.

Ainda seguindo outros homens, Shinsubiu num vagão de carga fechado que iriapara Chongjin, a maior cidade do extremonorte do país e um portão para estradas deferro que rumavam para a fronteira chinesa.O trem partiu antes do amanhecer para umpercurso de cerca de 280 quilômetros. Setudo corresse bem, eles chegariam ao destinoem um dia, talvez dois.

Shin logo aprendeu algo que todo mundona Coreia do Norte já sabia havia anos — ostrens andam devagar, quando andam.

Durante os três dias seguintes, ele viajoumenos de 160 quilômetros. No vagão de

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carga fechado, fez amizade com um rapaz decerca de vinte anos que disse estar indo paraGilju, uma cidade de 65 mil habitantes poronde passava a principal ferrovia paraChongjin. O rapaz contou que voltava deuma tentativa malograda de encontrar tra-balho; não tinha comida, nem dinheiro, nemagasalho de inverno. Mas ofereceu-se paradeixar Shin passar alguns dias no aparta-mento de sua família. Disse que ele ficariaaquecido e que lá haveria o que comer.

Shin precisava descansar. Estava exaustoe faminto. A comida que comprara emBukchang acabara. As queimaduras em suaspernas continuavam a sangrar. Aceitou comgratidão o oferecimento do rapaz.

Era o começo da tarde, fazia frio ecomeçava a nevar quando desceram do tremna estação de Gilju. Por sugestão do novoamigo de Shin, que conhecia lugares ondehavia comida barata, eles pararam a cam-inho do apartamento e compraram macarrão

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quente de um vendedor de rua. Shin pagou arefeição com as últimas notas do que rece-bera pelo arroz furtado.

Quando terminaram a refeição, o rapazdisse que o apartamento de sua famíliaficava bem perto dali, mas confessou estarconstrangido de se apresentar aos paisusando roupas puídas. Perguntou se Shin seimportaria de lhe emprestar seu paletó poralguns minutos. Assim que tivessecumprimentado a família, acrescentou, viriabuscá-lo naquele mesmo lugar e o levariapara o apartamento, onde poderiam se aque-cer e dormir.

Desde que fugira do campo, Shin se es-forçava para aprender qual era o comporta-mento normal dos norte-coreanos. Mas, de-pois de apenas uma semana, ele não haviadescoberto muita coisa. Emprestar umpaletó para um amigo que precisava manteras aparências para a mãe e o pai talvez fosse

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normal, pensou. Entregou o agasalho e con-cordou em esperar.

Passaram-se horas. A neve continuou acair. Seu amigo não voltou. Shin não pensaraem segui-lo para ver em que prédio ele haviadesaparecido. Começou a procurar nas ruaspróximas. Não encontrou nenhum sinal dorapaz. Após várias horas, trêmulo e confuso,enrolou-se num sujo encerado de plásticoque encontrou na rua e esperou oamanhecer.

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Durante os vinte dias seguintes, Shin vagoupor Gilju. Sem casaco, sem dinheiro, semcontatos e sem nenhuma ideia de para ondedeveria ir, foi uma tarefa formidável simples-mente permanecer vivo. A temperatura mé-dia de janeiro na cidade é sete graus

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negativos, muito abaixo do ponto decongelamento.

Uma coisa o salvou: a companhia — e osconselhos sobre gatunagem — dos sem-tetoda cidade, muitos deles adolescentes. Ele osencontrou nas proximidades da estação fer-roviária, onde mendigavam, trocavam in-formações e periodicamente partiam embandos em busca de comida.

O grupo a que Shin se juntou era espe-cializado em desenterrar daikon, um ra-banete branco com formato de cenoura,típico do Leste da Ásia, muito usado parafazer kimchi, o condimento fermentado epicante que é o prato mais famoso da Coreia.Para impedir que a safra de outono congeledurante os meses frios, os norte-coreanospor vezes os enterram em montes de terra.

Durante o dia, Shin seguia turmas de lad-rões adolescentes até os arredores da cidade,procurando casas isoladas com os reve-ladores montes de terra em seus quintais.

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Após um dia desenterrando e comendodaikons crus, voltava para o centro com to-dos que conseguia carregar, vendia-os nasfeiras livres e comprava lanches. Quando nãoconseguia furtar daikons, revirava o lixo àprocura de comida.

À noite, mais uma vez seguia os sem-tetoe ia dormir em lugares semiprotegidos queeles tinham encontrado perto de prédios comsistemas de aquecimento central. Tambémdormia em montes de feno e perto defogueiras que os sem-teto às vezespreparavam.

Não fez nenhum amigo e tomava muitocuidado para não falar sobre si mesmo.

Em Gilju, como ao longo de toda a Coreiado Norte, ele via fotografias de Kim Jong Il ede Kim Il Sung em toda parte — em estaçõesferroviárias, praças e nas casas que ele àsvezes invadia. Mas ninguém, nem mesmo osvagabundos e adolescentes sem-teto, ousavacriticar seus líderes ou ridicularizá-los.

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Sondagens realizadas entre desertoresrecém-chegados à China constataram queesse medo é persistente e quase universal.

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Para Shin, a maior luta ainda era encontrar osuficiente para comer. Mas furtar comida es-tava longe de ser uma atividade excepcionalna Coreia do Norte.

“O furto sempre foi um problema”, rev-elou Charles Robert Jenkins nas memóriasque escreveu em 2008 sobre os quarentaanos que viveu no país. “Se o sujeito não to-masse conta de suas coisas, não faltava quemficasse feliz em livrá-lo delas.”4

Jenkins era um sargento do Exércitonorte-americano pouco instruído e pro-fundamente infeliz que serviu na Coreia doSul em 1965, quando decidiu que a gramadevia ser mais verde no Norte. Depois de

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tomar dez cervejas, topou com a fronteiramais fortemente militarizada do mundo eentregou seu fuzil M14 para espantadossoldados norte-coreanos.

“Eu era ignorante a esse ponto”, disse-meele. Contou que havia desertado do Exércitoem troca do encarceramento autoimpostonuma “prisão gigantesca, insana”.

No entanto, na qualidade de desertornorte-americano, Jenkins foi bem mais queum prisioneiro. O governo norte-coreanotransformou-o no ator que sempre fazia opapel do branco perverso nos filmes de pro-paganda que demonizavam os EstadosUnidos.

Agentes de segurança também lhe en-tregaram uma jovem japonesa e o estimu-laram a estuprá-la. Ela havia sido raptada desua cidade natal no Japão em 12 de agosto de1978, como parte de uma prolongada esempre oculta operação norte-coreana quesequestrava jovens japoneses de

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comunidades litorâneas. Três agentes norte-coreanos a agarraram ao anoitecer perto deuma praia, enfiaram-na num saco preto e alevaram embora num navio.

Mas a mulher, Hitomi Soga, acabou seapaixonando por Jenkins. Os dois se cas-aram e tiveram duas filhas, ambas matricula-das numa escola de Pyongyang que pre-parava espiões poliglotas.

O começo do fim das estranhas aventurasde Jenkins na Coreia do Norte veio em 2002,quando o primeiro-ministro japonês Ju-nichiro Koizumi voou até Pyongyang parauma reunião extraordinária com Kim JongIl. Durante esse encontro, Kim admitiu paraKoizumi que seus agentes haviam se-questrado 13 civis japoneses nas décadas de1970 e 1980, entre os quais a mulher de Jen-kins, Hitomi. Ela recebeu autorização imedi-ata para deixar o país no avião de Koizumi.Depois de uma segunda viagem do primeiro-ministro japonês à Coreia do Norte em 2004,

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Jenkins e as filhas também obtiveram per-missão para ir embora.

Quando entrevistei Jenkins, ele e afamília moravam na remota ilha japonesa deSado, onde sua mulher nasceu e onde haviasido sequestrada por agentes norte-coreanos.

Durante as décadas que passou na Coreiado Norte, Jenkins teve uma casa no campo ecultivou uma grande horta que ajudava a ali-mentar sua família. Ele também recebia dogoverno um pagamento mensal em dinheiro— o suficiente para assegurar que não ficas-sem sem comida durante a fome coletiva.Ainda assim, para sobreviver ele e a famíliatinham de rechaçar vizinhos ladrões e solda-dos que perambulavam a esmo.

“Tornou-se rotina para nós, quando omilho amadurecia, montar guarda a noite in-teira porque os soldados nos deixariam de-penados”, escreveu ele.

Os furtos chegaram ao auge durante a es-cassez dos anos 1990, quando bandos de

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jovens sem-teto — muitos deles órfãos —começaram a se reunir em torno das estaçõesferroviárias em cidades como Gilju, Ham-hung e Chongjin.

O comportamento e o desespero deles sãodescritos em Nothing to Envy (Nada a in-vejar), o livro de Barbara Demick sobre comonorte-coreanos comuns suportaram os anosde fome.

Na estação de Chongjin, contou ela, cri-anças arrancavam lanches das mãos deviajantes. Trabalhando em equipes, as maisvelhas derrubavam bancas de comida e pro-vocavam os vendedores a sair correndo paraagarrá-las. As menores avançavam entãopara recolher a comida caída. As criançasusavam também gravetos de ponta afiadapara fazer buracos em sacos de cereais emtrens e caminhões muito lentos.5

Durante a fome, os funcionários dalimpeza da estação ferroviária faziam rondascom um carro de mão de madeira,

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recolhendo corpos do piso da estação, escre-veu Demick. Havia rumores muito difun-didos de canibalismo, com afirmações de quealgumas crianças que faziam ponto em tornoda estação foram drogadas, mortas e tiveramsua carne retalhada para servir de alimento.

Embora isso não fosse uma prática gener-alizada, Demick concluiu que ela, de fato,ocorreu.

“A partir de minhas entrevistas comdesertores, parece de fato que houve pelomenos dois casos [...] em que pessoas forampresas e executadas por canibalismo”,escreveu.

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Quando Shin ficou retido em Gilju emjaneiro de 2005, a situação alimentar eramuito menos medonha.

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As colheitas em toda a Coreia do Norteforam relativamente boas em 2004. A Coreiado Sul enviava ao país ajuda alimentar e fer-tilizantes gratuitos em quantidade. Auxílioalimentar da China e do Programa Mundialde Alimentação também jorrava nos cofresdo Estado — e parte dele acabava nas feirasde rua.

Os sem-teto em torno da estação de tremtinham fome, mas Shin, no tempo que pas-sou nas ruas de Gilju, nunca viu ninguémmorrendo ou morto de frio ou fome.

As feiras estavam repletas de abundantesprovisões de alimentos secos, frescos e pro-cessados, incluindo farinha de arroz, tofu,biscoitos, bolos e carne. Roupas, utensíliosde cozinha e eletrodomésticos também es-tavam à venda. Quando aparecia comdaikons furtados, Shin encontrava feirantesávidas por comprá-los.

Enquanto ele vivia à custa do alheio emGilju, a fuga para a China desapareceu de sua

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mente. Os sem-teto em cujas fileiras ingres-sara tinham outros planos. Em março, elespretendiam viajar para uma fazenda estatal,onde plantariam batatas, um trabalho queproporcionava refeições regulares. Sem nadamais para fazer e nenhum outro contato, Sh-in resolveu ir com eles. Seus planosmudaram de novo, porém, depois de um diade furtos excepcionalmente produtivo.

Na zona rural nos arredores da cidade,ele se desgarrou do bando, cujos membrosescavavam uma horta. Sozinho, foi até osfundos de uma casa vazia e entrou por umajanela.

Dentro, encontrou roupas de inverno, umchapéu de lã de estilo militar e um saco desete quilos de arroz. Trocou suas roupas poraquelas mais quentes e levou o arroz em suamochila para um comerciante de Gilju, que ocomprou por seis mil wons, cerca de seisdólares.

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Agora que tinha um novo bolo de notaspara comprar comida e pagar subornos, aChina voltou a lhe parecer possível. Foi a péaté o pátio da estação de Gilju e arrastou-separa dentro de um vagão de carga fechadoque iria para o norte.

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CAPÍTULO 18A FRONTEIRA

Orio Tumen, que forma cerca de um terçoda fronteira entre a Coreia do Norte e a

China, é raso e estreito. Em geral, ele congelano inverno, e para atravessá-lo bastam al-guns minutos. Na maior parte dessa área, amargem chinesa do rio oferece uma proteçãorazoável; é densamente arborizada. A vi-gilância no lado chinês é esparsa.

Shin aprendeu sobre o Tumen com mer-cadores que viajavam no trem. Mas nãotinha informações detalhadas sobre ondedeveria atravessá-lo ou que subornos seriam

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aceitáveis pelos guardas norte-coreanos quepatrulham a margem sul.

Assim, viajou num vagão fechado de Giljupara Chongjin e de lá para Gomusan, umajunção ferroviária a cerca de quarenta quilô-metros da fronteira, e começou a fazer per-guntas a pessoas do lugar.

— Olá, está frio, não é? — disse a umvelho que encontrou agachado nos degrausda estação ferroviária de Gomusan.

Ofereceu biscoitos.— Oh, muito obrigado — disse o homem.

— Posso lhe perguntar de onde vem?Shin havia pensado numa resposta ver-

dadeira, mas um tanto vaga. Contou quetinha fugido de casa na província de Pyongando Sul, onde o Campo 14 se situa, porque es-tava faminto e a vida era difícil.

O velho contou que tivera uma vidamuito mais fácil quando vivia na China, ondeera fácil encontrar comida e trabalho. Oitomeses antes, a polícia chinesa o prendera e o

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devolvera para a Coreia do Norte, onde pas-sara alguns meses num campo de trabalhosforçados. Perguntou se Shin pensava em irpara lá.

— Alguém consegue atravessar para a Ch-ina? — perguntou Shin, tentando manter sobcontrole sua curiosidade e sua excitação.

O velho não precisava de muito estímulo.Passou mais da metade do dia falando sobrea China, explicando onde atravessar o Tu-men e como se comportar nos postos de con-trole perto da fronteira. A maioria dos guar-das, segundo ele, era ávida por subornos.Outras instruções que deu: quando guardaspedirem documentos de identidade, dê-lhesalguns cigarros e um pacote de biscoitos,junto com pequenas quantias. Diga-lhes queé um soldado. Diga-lhes que está indo visitarparentes na China.

Cedo na manhã seguinte, Shin entrounum trem de carvão que ia para as proximid-ades de Musan, uma cidade mineira na

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fronteira. Como havia sido avisado de que acidade estava apinhada de soldados, saltoudo trem quando ele reduziu a marcha paraentrar na estação de Musan e rumou para osul a pé. Caminhou o dia inteiro, quase trintaquilômetros, procurando um trecho do Tu-men que fosse raso e fácil de atravessar.

Sem nenhum documento de identidade,ele sabia que seria preso se os vigias fizessemseu serviço. No primeiro posto de controle,um guarda pediu seus papéis. Tentandoesconder o medo, ele disse que era umsoldado voltando para casa. O fato de suasroupas e seu chapéu de lã, furtados em Gilju,serem do verde-escuro dos uniformes milit-ares ajudava.

— Aqui, fume isto — disse, entregandodois maços de cigarros ao guarda.

O guarda pegou os cigarros e, com umgesto, mandou-o passar.

Num segundo posto de controle, outroguarda pediu-lhe um documento de

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identidade. Mais uma vez Shin ofereceu ci-garros e um pacote de biscoitos. Ao avançar,encontrou um terceiro e um quarto guardasda fronteira. Eram jovens, esqueléticos e es-tavam famintos. Antes que ele pudesse abrira boca, pediram-lhe cigarros e comida — masnão quiseram ver qualquer documento deidentidade.

Shin não poderia ter fugido da Coreia doNorte sem uma grande dose de sorte, em es-pecial na fronteira. Quando conseguiu in-gressar na China à custa de subornos no fimde janeiro de 2005, por acaso havia umajanela aberta, permitindo uma passagemilegal relativamente pouco arriscada.

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O governo norte-coreano foi obrigado — pelafome catastrófica de meados da década de1990 e pela importância dos gêneros

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alimentícios chineses para alimentar a popu-lação — a tolerar uma fronteira porosa com aChina. Essa tolerância tornou-se uma polít-ica semioficial em 2000, quando a Coreia doNorte prometeu brandura com quem haviafugido do país à procura de comida. Foi umreconhecimento atrasado de que dezenas demilhares de norte-coreanos atingidos pelafome já haviam ido para a China e de que opaís estava cada vez mais dependente desuas remessas. Além disso, em 2000 os mer-cadores haviam começado a se deslocar aosmilhares para um lado e para outro da fron-teira, fornecendo alimentos e produtos paraas feiras informais que praticamente sub-stituíram o sistema público de distribuiçãodo governo.

Após o decreto de Kim, as pessoas presasao cruzar as fronteiras eram soltas após al-guns dias de interrogatórios ou, no máximo,depois de alguns meses em campos de tra-balhos forçados, a menos que os

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interrogadores concluíssem que elas tinhamcontatos com sul-coreanos ou com mis-sionários na China.1 O governo do Nortecomeçou também a reconhecer e autorizar opapel dos mercadores na alimentação dapopulação. Após seis meses de trâmitesburocráticos e verificação de antecedentes,funcionários do governo — em especial se re-cebessem subornos — por vezes emitiam cer-tificados que autorizavam negociantes a ir evir legalmente entre a Coreia do Norte e aChina.2

A fronteira porosa transformou vidas.Viajantes regulares para áreas rurais da Cor-eia do Norte perceberam que um númeromuito maior de pessoas parecia estar usandoroupas quentes de inverno e que os merca-dos privados estavam vendendo aparelhoschineses de televisão e de videocassete, desegunda mão, bem como fitas de vídeo evídeo-CDs piratas. (Os vídeo-CDs oferecemuma resolução muito mais baixa que os

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DVDs, mas os aparelhos de CD eram maisbaratos que os de DVD e mais acessíveis aosnorte-coreanos.)

Desertores norte-coreanos que chegavama Seul contavam que rádios de pilha fabrica-dos na China lhes permitiam ouvir estaçõeschinesas e sul-coreanas, bem como a RádioÁsia Livre e a Voz da América. Muitos con-tavam histórias sobre como haviam se vi-ciado em filmes de Hollywood e telenovelassul-coreanas.

“Fechávamos as cortinas e abaixávamos ovolume sempre que assistíamos aos vídeosde James Bond”, contou-me uma dona decasa de quarenta anos, em Seul. Ela fugiu desua aldeia de pescadores num bote com omarido e o filho. “Foi com aqueles filmes quecomecei a aprender o que estava aconte-cendo no mundo, foi com eles que o povoaprendeu que o governo de Kim Jong Il nãotrabalha realmente para o seu bem.”

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Seu filho me contou que se apaixonarapelos Estados Unidos, onde esperava viverum dia, vendo As panteras em vídeos fora defoco.

Quando o gotejar de filmes estrangeirostransformou-se em dilúvio, a polícia norte-coreana ficou alarmada e propôs uma novatécnica para deter as pessoas que assistiam aeles. Cortavam a eletricidade de prédios deapartamentos específicos e depois invadiamde surpresa cada unidade para ver que fitas ediscos tinham ficado presos dentro dosaparelhos.

Por volta da época em que Shin e Parkfaziam seu plano de fuga, o governo con-cluíra que a fronteira se tornara porosa de-mais e representava uma ameaça para a se-gurança interna. Pyongyang estava particu-larmente enfurecida com iniciativas sul-coreanas e americanas que tornavam maisfácil para desertores norte-coreanos na Ch-ina viajar para mais longe ainda e

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estabelecer-se no Ocidente. No verão de2004, na maior deserção em massa, a Coreiado Sul transportou de avião 468 norte-coreanos do Vietnã para Seul. A agêncianorte-coreana de notícias denunciou o voocomo “atração premeditada, sequestro e ter-rorismo”. Mais ou menos na mesma época, ocongresso norte-americano aprovou uma leique aceitava norte-coreanos para reassenta-mento nos Estados Unidos, ridicularizadopela Coreia do Norte como uma tentativa dederrubar seu governo sob o pretexto de pro-mover a democracia.

Por essas razões, as regras na fronteiracomeçaram a mudar no final de 2004. A Cor-eia do Norte anunciou uma nova política depunição severa para travessias ilegais dafronteira, com sentenças de até cinco anos deprisão. Em 2006, a Anistia Internacional en-trevistou 16 pessoas que haviam atravessadoa fronteira e apurou que as novas regras es-tavam em vigor e que as autoridades

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divulgavam avisos de que mesmo quem es-tava cruzando a fronteira pela primeira vezseria mandado para a prisão por pelo menosum ano. Para fazer cumprir suas regras, aCoreia do Norte começou a implantar umsistema de vigilância eletrônica e fotográficaao longo da fronteira. Estendeu cercas dearame farpado e construiu novas barreirasde concreto.3 A China, da mesma forma,aumentou a segurança para desencorajar oingresso de norte-coreanos no país àsvésperas das Olimpíadas de 2008.

No fim de janeiro de 2005, quando Shincaminhou em direção à China com cigarros esalgadinhos, a janela da passagem de baixorisco através da fronteira com certeza estavaquase começando a se fechar. Mas ele tevesorte: as ordens superiores ainda não haviamalterado o comportamento ávido por sub-ornos dos quatro soldados andrajosos queencontrou nos postos de controle ao longodo rio Tumen.

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— Estou morrendo de fome aqui — disse oúltimo soldado que Shin subornou quandotentava sair da Coreia do Norte. Ele nãoparecia ter mais de 16 anos. — Você não temalguma coisa de comer?

Seu posto ficava próximo de uma ponteque conduzia à China. Shin deu-lhe salsichade tofu, cigarros e um pacote de balas.

— Muita gente atravessa a fronteira, indopara a China? — perguntou Shin.

— Claro que sim — respondeu o guarda.— Eles atravessam com a bênção do Exércitoe voltam depois de ganhar um bom dinheiro.

No Campo 14, Shin discutira muitas vezescom Park o que fariam depois de transpor afronteira. Tinham planejado hospedar-secom o tio de Park, e agora esse tio lhe veio àmente.

— Seria possível eu visitar meu tio quemora na aldeia do outro lado do rio? —

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perguntou, embora não tivesse nenhumaideia de onde o tio de Park realmentemorava. — Quando eu voltar, vou lhe dar umpresente.

— É claro, vá em frente — respondeu oguarda. — Mas hoje à noite só fico de serviçoaté as sete horas. Volte antes disso, estábem?

O guarda conduziu Shin por uma florestaaté o rio, num ponto em que, segundo ele, atravessia seria segura. Era o fim da tarde,mas Shin prometeu-lhe que estaria de voltabem antes das sete com comida para lhe dar.

— Não corro perigo? — perguntou. — Orio está mesmo congelado?

O guarda garantiu-lhe que sim e que,mesmo que o gelo se quebrasse, a água só lhechegaria aos tornozelos.

— Você não vai ter problema — disse.O rio tinha uns noventa metros de lar-

gura. Shin pôs-se a caminhar devagar sobreo gelo. Na metade do caminho, o gelo

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quebrou-se e seus sapatos ficaram encharca-dos de água gelada. Ele pulou de volta para ogelo firme e avançou de gatinhas pelo restodo caminho até a China.

Na outra margem, levantou-se e virou-separa olhar pela última vez para a Coreia doNorte.

Perguntou a si mesmo se seu pai teriasido morto no campo.

O jovem guarda de fronteira norte-coreano estivera observando seu progresso.Ele agitou o punho num gesto de impaciên-cia, indicando a Shin que se apressasse e de-saparecesse na mata.

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CAPÍTULO 19CHINA

Shin correu margem acima e escondeu-sebrevemente na mata, onde seus pés mol-

hados começaram a congelar. Escurecia e elese sentia exausto depois de um longo dia nofrio. Por ter reservado o pouco dinheiro quetinha para os cigarros e as gulodices que en-tregaria aos guardas da fronteira, havia com-ido pouco nos últimos dias.

Para se aquecer e se afastar do rio, subiuum morro e seguiu uma estrada através decampos cobertos de neve. A uma curta

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distância, além dos campos, podia ver umgrupo de casas.

Entre ele e as casas, havia dois homensna estrada. Eles empunhavam lanternas etinham caracteres chineses impressos nascostas. Mais tarde Shin ficou sabendo queeram soldados chineses da patrulha da fron-teira. Desde 2002, quando centenas denorte-coreanos em busca de asilo criaramconstrangimentos para a China ao invadiremembaixadas estrangeiras, dezenas de mil-hares de pessoas que cruzavam a fronteirailegalmente haviam sido recolhidas e repatri-adas à força.1 Os soldados que Shin viu ol-havam para o céu. Ele imaginou que estavamcontando estrelas. Sua presença não pareceuinteressá-los. Ele apertou o passo em direçãoàs casas.

Seu plano para sobreviver na China eratão simplório quanto o plano para fugir daCoreia do Norte. Ele não sabia para onde irou com quem entrar em contato. Desejava

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simplesmente afastar-se da fronteira o máx-imo possível. Havia entrado numa regiãopobre, montanhosa e esparsamente povoadada província chinesa de Jilin. O vilarejo maispróximo era Helong, cerca de cinquentaquilômetros ao norte do ponto em que elecruzara o rio. Sua única esperança era umboato que ouvira de negociantes itinerantesna Coreia do Norte: pessoas de origemcoreana que viviam na região da fronteirachinesa poderiam se dispor a lhe oferecer ab-rigo e comida — e talvez um trabalho.

Entrando no quintal de uma das casas,Shin provocou os latidos furiosos de umgrande número de cachorros. Contou setedeles — uma quantidade surpreendentepelos padrões da Coreia do Norte, onde apopulação de animais de estimação haviasido dizimada por pessoas à cata de comida,muitas delas órfãs, que furtavam e esfolavamcães para lhes assar a carne nos anos defome.2

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Quando a porta da frente foi aberta, elepediu alguma coisa para comer e um lugarpara dormir. Um homem coreano-chinêsmandou-o embora. Disse-lhe que a polícia oavisara naquela manhã mesmo que nãodeveria ajudar norte-coreanos. Shin dirigiu-se para uma casa de tijolos próxima, ondepediu ajuda a outro coreano-chinês. Foimandado embora de novo. Desta vez, comgrosseria.

Estava desesperado de frio ao sair doquintal. Viu os restos de um fogo de umforno escavado na terra ao ar livre. Apósdesenterrar três toras em brasa, levou-aspara uma floresta de lariços próxima, raspoua neve do chão, encontrou alguns gravetos econseguiu acender uma fogueira. Sem quer-er, adormeceu.

Ao raiar do dia, o fogo morrera. O rostode Shin estava coberto pela geada. Enregel-ado até os ossos, calçou os sapatos e as mei-as, ainda molhados. Caminhou a manhã

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toda, seguindo estradas que ele esperava queo conduzissem para longe da fronteira. Porvolta do meio-dia, viu uma barreira policial adistância, saiu da estrada, encontrou outracasa e bateu à porta.

— Poderia me dar alguma ajuda, por fa-vor? — implorou.

Um coreano-chinês recusou-se a permitirque ele entrasse. Disse que sua mulher tinhauma doença mental. Mas deu-lhe duasmaçãs.

Para evitar postos de controle e afastar-semais da fronteira, Shin seguiu uma trilha queserpenteava pelas montanhas e passou amaior parte do dia caminhando. (Ele nãosabe ao certo por onde andou nesse primeirodia na China; imagens do Google Earth daregião próxima à fronteira mostram montan-has cobertas de florestas e algumas casas es-palhadas.) Ao anoitecer, tentou mais umacasa de fazenda, recém-construída com blo-cos de concreto e cercada de chiqueiros.

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Cinco cães ladraram quando ele entrou noquintal.

Um homem de meia-idade enfiou a caragorducha para fora da porta.

— Você é da Coreia do Norte? — pergun-tou o sujeito.

Cansado, Shin assentiu com a cabeça.O homem, um agricultor chinês que fa-

lava um pouco de coreano, convidou-o a en-trar e mandou uma moça cozinhar arroz.Contou que outrora havia empregado doisdesertores norte-coreanos e que eles haviamsido trabalhadores úteis. Ofereceu a Shincomida, um lugar para dormir e cinco iuanespor dia — certa de sessenta centavos de dólar— se ele estivesse disposto a cuidar deporcos.

Antes de comer sua primeira refeiçãoquente na China, Shin tinha um emprego eum lugar para dormir. Ele já fora um pri-sioneiro, um dedo-duro, um fugitivo e umladrão, mas nunca um empregado. O

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emprego era um novo começo e um alívio co-lossal. Punha fim a um terrível e gélido mêsde fuga. Uma vida inteira de escravidãotransformava-se de repente em passado.

Durante o mês seguinte, na cozinha docriador de porcos, Shin encontrou, por fim,comida em abundância. Ele enchia o es-tômago três vezes ao dia com a carne assadasobre a qual tecera fantasias no campo, aolado de Park. Tomava banho com sabão eágua quente. Livrou-se dos piolhos que oacompanhavam desde o nascimento.

O agricultor comprou antibióticos para asqueimaduras nas pernas de Shin, junto comroupas quentes de inverno e botas de tra-balho. Logo ele jogou fora as roupas furtadase mal ajustadas que o identificavam comonorte-coreano.

Tinha um quarto só para si, onde dormiano chão com vários cobertores. Podia dormiraté dez horas por noite, um luxo inima-ginável. A moça que morava na casa — Shin

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descobriu que ela era amante do agricultor —cozinhava para ele e ensinava-lhe rudimen-tos de chinês.

Ele trabalhava do nascer do sol até as seteou oito horas da noite por sessenta centavospor dia. Além de cuidar dos porcos, caçavajavalis com o fazendeiro nas montanhaspróximas. Depois que o fazendeiro atiravaneles, Shin arrastava a carcaça para fora damata para ser retalhada e vendida.

Embora o trabalho fosse muitas vezes ex-austivo, ninguém o esbofeteava, chutava ouesmurrava, e ninguém o ameaçava. O medocomeçou a refluir à medida que a comidaabundante e o sono lhe permitiam recuperaras forças. Quando a polícia visitava afazenda, o agricultor o instruía a se fazer demudo. O fazendeiro dava testemunho de seubom caráter e a polícia ia embora.

Entretanto, Shin compreendia que só erabem-vindo na casa do fazendeiro por sermão de obra barata.

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A capacidade que as fronteiras chinesas têmde absorver norte-coreanos é muito grande— e bastante subestimada fora do Nordesteda Ásia. A área não é assim tão estrangeira —ou pouco acolhedora — para imigrantes delíngua coreana.

Quando desertores entram no país, osprimeiros “estrangeiros” que encontram são,em geral, chineses de origem coreana quefalam a mesma língua que eles, comem com-ida parecida e compartilham os mesmosvalores culturais. Com um pouco de sorte,podem, como Shin, encontrar trabalho, ab-rigo e certo grau de segurança.

Essa situação se desenrola desde o finaldos anos 1860, quando a fome atingiu a Cor-eia do Norte e lavradores famintos fugirampara o Nordeste da China através dos riosTumen e Yalu. Mais tarde, o governo imperi-al chinês recrutou agricultores coreanos para

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criar uma barreira contra a expansão russa, ea dinastia Choson, da Coreia, permitiu quepartissem legalmente. Antes da SegundaGuerra Mundial, os japoneses que ocuparama península coreana e o Nordeste da Chinaempurraram dezenas de milhares de agri-cultores coreanos para o outro lado da fron-teira, com o objetivo de enfraquecer odomínio chinês sobre a região.

Quase dois milhões de chineses de etniacoreana vivem agora nas três províncias doNordeste da China, concentrando-se em Jil-in, onde Shin entrou depois de, engatin-hando, atravessar o rio congelado. Dentro daprovíncia de Jilin, a China criou o DistritoAutônomo Coreano de Yanbian, onde 40%da população é de etnia coreana e o governosubsidia escolas e publicações em línguacoreana.

A população de idioma coreano radicadano Nordeste da China foi também uma forçanão devidamente reconhecida de mudança

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cultural dentro da Coreia do Norte. Elaproduziu essa mudança ao assistir atelenovelas sul-coreanas captadas por anten-as parabólicas, gravá-las em CDs de baixaqualidade e contrabandear centenas de mil-hares deles para a Coreia do Norte, onde sãovendidos até por meros 15 centavos de dólar,segundo Rimjin-gang, a revista publicadaem Osaka com informantes baseados noNorte.

As telenovelas sul-coreanas — que ex-ibem os carros velozes, as casas opulentas e aexplosão de confiança no país — são classi-ficadas como “materiais visuais gravados im-puros” e é ilegal assisti-las na Coreia doNorte. Mas arrebataram enormes audiênciasem Pyongyang e outras cidades, onde até ospoliciais encarregados de confiscá-las apar-entemente as veem e os adolescentes imitamas entonações suaves da língua coreana talcomo falada pela elite das estrelas de Seul.3

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Esses programas de TV demoliram déca-das de propaganda norte-coreana, queafirma que o Sul é um lugar pobre, reprimidoe infeliz e que os sul-coreanos anseiam pelaunificação sob a mão paternal da dinastiaKim.

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No último meio século, os governos da Chinae da Coreia do Norte usaram suas forças desegurança de maneira cooperativa paragarantir que a infiltração através da fronteiranunca se transformasse numa inundação.Segundo o governo sul-coreano, no iníciodos anos 1960 os dois países assinaram umacordo secreto sobre segurança na fronteira.Por meio de outro acordo, em 1986, a Chinacomprometeu-se a enviar os desertoresnorte-coreanos de volta para casa, onde

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muitas vezes enfrentam prisão, tortura emeses ou anos de trabalhos forçados.

Ao prender seus cidadãos dentro do país,a Coreia do Norte viola um acordo inter-nacional que se comprometeu a cumprir. Oacordo de 1966 diz: “Todos devem ser livrespara deixar qualquer país, inclusive o seupróprio.”4

Ao definir todos os desertores norte-coreanos como “refugiados econômicos” eenviá-los de volta a seu país para seremperseguidos, a China viola suas obrigaçõescomo signatária de uma convenção inter-nacional dos refugiados de 1951. Pequimrecusa-se a permitir que os desertoresreivindiquem asilo e impede o escritório doAlto Comissariado da ONU para Refugiadosde trabalhar ao longo da fronteira com a Cor-eia do Norte.

O direito internacional, na verdade, foiderrotado pelos interesses estratégicos daCoreia do Norte e da China. Um êxodo em

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massa da primeira poderia despovoar sub-stancialmente o país, solapar sua já inad-equada capacidade de cultivar alimentos eenfraquecer — ou talvez até derrubar — ogoverno. O risco de um êxodo como esseaumenta à medida que a economia da Chinaprospera, a da Coreia do Norte afunda e anotícia de que a vida na China é melhor seespalha.

Para o governo chinês, uma onda descon-trolada de refugiados coreanos empobre-cidos é indesejável por várias razões. Issoagravaria enormemente a pobreza em trêsprovíncias do Nordeste da China, que per-deram em grande parte a chance de se bene-ficiar da riqueza gerada pelo boom econ-ômico do país. E, o que é ainda mais relev-ante, poderia precipitar o colapso do regimena Coreia do Norte e levar à unificação dapenínsula sob um governo baseado em Seul eestreitamente aliado aos Estados Unidos. Noprocesso, a China perderia uma importante

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barreira entre uma de suas regiões maispobres e uma Coreia unida, abastada evoltada para o Ocidente. Isso, por sua vez,poderia despertar sentimentos nacionalistasentre chineses de etnia coreana nasfronteiras.

A aversão de Pequim por desertoresnorte-coreanos, tal como expressa pela polí-cia e pelos soldados na fronteira, é bem com-preendida por fazendeiros, capatazes defábricas e outros patrões nas províncias doNordeste da China.

Mas, como Shin descobriu, eles tinhamgrande propensão a ignorar diretivas nacion-ais quando se viam diante de um norte-coreano laborioso, que mantém a bocafechada e trabalha duro em troca de sessentacentavos por dia. Além disso, osempregadores chineses estão livres paralesar e agredir esses trabalhadores norte-coreanos ou se desvencilhar deles a qualquerhora.

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Depois de um mês, o arranjo de Shin com oagricultor azedou.

Ele apanhava água num riacho perto dafazenda quando encontrou dois outrosdesertores norte-coreanos. Esfaimados ecom frio, eles estavam vivendo numa choçaabandonada no bosque, não muito longe dafazenda de porcos. Shin pediu ao fazendeirochinês para socorrê-los e ele o fez, mas comuma relutância e uma irritação que oempregado demorou a perceber.

Um dos desertores era uma mulher nacasa dos quarenta anos, que havia cruzado afronteira antes. Ela tinha um marido chinês eum filho. Eles moravam ali perto, e ela quislhes falar por telefone. O fazendeiroautorizou-a a usar seu aparelho. Alguns diasdepois, ela e o outro desertor foram embora.

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Mas abrigar três norte-coreanos inco-modara o fazendeiro, que disse a Shin queele também teria de partir.

O fazendeiro sabia de outro emprego:cuidar de gado nas montanhas. Ofereceu-separa levar Shin até lá em seu carro. Após di-rigir em estradas nas montanhas por duashoras, deixou-o no rancho de um amigo. Nãoficava longe de Helong, uma cidade comcerca de 85 mil habitantes. Se Shin trabal-hasse com afinco, disse-lhe o fazendeiro, ser-ia generosamente compensado.

Só depois que o fazendeiro foi emboraShin descobriu que ninguém no rancho fa-lava coreano.

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CAPÍTULO 20ASILO

Durante os dez meses seguintes, Shin ficouonde o criador de porcos o deixara, cuid-

ando de gado em pastos na montanha e dor-mindo no chão de uma casa de fazenda comdois carrancudos vaqueiros chineses. Eralivre para ir embora quando bem entendesse.Mas não sabia para onde ir ou que outracoisa fazer.

O futuro era para ter sido responsabilid-ade de Park. No campo, ele havia asseguradoque, depois que os dois chegassem à China,ele providenciaria passagens para a Coreia

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do Sul. Pediria ajuda ao tio. Dinheiro, docu-mentos e contatos lhes seriam fornecidos.Mas Park estava morto e a Coreia do Sulparecia impossivelmente distante.

A permanência num só lugar, porém,proporcionou alguns benefícios. As pernasde Shin ficaram curadas; o tecido cicatricialpor fim cobriu as queimaduras. Com osvaqueiros e o administrador da fazenda, eleaprendeu um pouco de chinês coloquial. E,pela primeira vez na vida, teve acesso a umamáquina produtora de sonhos.

Um rádio.Shin brincava com os botões toda manhã,

mudando entre cerca de uma dúzia de es-tações de língua coreana que fazem trans-missões diárias na Coreia do Norte e noNordeste da China. Essas emissoras, finan-ciadas pela Coreia do Sul, pelos Estados Un-idos e pelo Japão, misturam notícias da Ásiae do mundo com uma cobertura acerba-mente crítica da Coreia do Norte e da

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dinastia Kim. Elas se concentram na escassezcrônica de alimentos, nas violações dosdireitos humanos, nas provocações militares,no programa nuclear e na dependência emrelação à China. Um tempo considerável édedicado às vidas confortáveis, pelos padrõesnorte-coreanos, dos desertores que vivem naCoreia do Sul, onde recebem moradia e out-ros subsídios do governo na capital.

Algumas dessas estações são dirigidaspor desertores (com ajuda financeira dosEstados Unidos e de outras fontes), que re-crutam repórteres dentro da Coreia doNorte. Esses repórteres, munidos de tele-fones celulares e que contrabandeiam parafora do país gravações de som e vídeo emminúsculos pen drives, revolucionaram acobertura noticiosa da Coreia do Norte. Em2002, o mundo exterior levou meses paraficar sabendo das reformas econômicas querelaxaram as restrições sobre os mercadosprivados. Sete anos depois, quando o

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governo norte-coreano lançou uma de-sastrosa reforma da moeda que empobreceue encolerizou dezenas de milhares de negoci-antes, a notícia foi transmitida horas depoispela Rádio Coreia do Norte Livre.

Na Coreia do Norte, a punição por ouviressas emissoras pode chegar a dez anos numcampo de trabalhos forçados. Mas, recente-mente, o país foi inundado com aparelhos derádio de três dólares contrabandeados daChina, e entre 5 e 20% dos norte-coreanos assintonizam diariamente, segundo um levan-tamento feito na China com desertores, ne-gociantes e outras pessoas que cruzaram afronteira.1 Muitos deles disseram aospesquisadores que ouvir rádios estrangeiraslhes forneceu uma importante motivaçãopara deixar o país.2

Na fazenda de gado chinesa, ao ouvir orádio, Shin sentia-se confortado por escutarvozes falando numa língua que compreendia.Ele escutou a notícia empolgante, embora já

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com um ano de idade, de que várias centenasde desertores norte-coreanos haviam sidolevadas de avião do Vietnã para Seul.Prestava particular atenção aos relatos sobreas condições de travessia da fronteira, sobreas rotas que os desertores tomavam paraviajar da China para a Coreia do Sul e as vi-das que levavam depois que chegavam lá.

Precisava fazer um grande esforço,porém, para compreender a maior parte doque ouvia no rádio.

As transmissões eram destinadas a norte-coreanos instruídos, que tinham crescidocom uma mídia estatal que venera ospoderes e a sabedoria divina da dinastia dafamília Kim e também adverte queamericanos, sul-coreanos e japoneses con-spiram para assumir o controle de toda apenínsula coreana. O Campo 14 excluíra Shindo circuito da propaganda, e ele ouvia a con-trapropaganda do Ocidente com os ouvidosde uma criança — curioso, confuso, por vezes

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até entediado, mas sempre carecendo de umcontexto.

Durante as quatro semanas em que in-struíra Shin sobre o modo como o mundofuncionava, Park também havia criticadoseveramente o governo norte-coreano. MasShin só fingia estar interessado, excetoquando o amigo falava de comida.

Ele se sentia aturdido com grande partedas notícias que ouvia no rádio sobre a Cor-eia do Norte. Sabia pouco sobre a famíliaKim e menos ainda sobre como ela era vistaao redor do mundo. Mesmo quando ouviaboatos saborosos sobre as vidas dedesertores na China e na Coreia do Sul, nãotinha com quem compartilhá-los.

Sem uma língua para se comunicar comquem quer que fosse, sua solidão na fazendade gado tornou-se maior do que havia sidono campo de trabalhos forçados.

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No final de 2005, com o inverno avançandosobre as montanhas, Shin decidiu mudar-se.

Ele tinha ouvido no rádio que igrejascoreanas na China às vezes ajudavamdesertores. Assim, traçou um plano vago: iriaviajar para o oeste e para o sul, afastando-seo máximo possível da Coreia do Norte e dossoldados dos postos de controle da fronteira.Depois procuraria coreanos amistosos. Coma ajuda deles, esperava encontrar umemprego estável no Sul da China e passar aviver discretamente. Nessa altura havia per-dido toda a esperança de chegar à Coreia doSul.

Sabia chinês suficiente agora para dizerao administrador da fazenda de gado por queestava indo embora. Explicou que, se con-tinuasse vivendo perto da fronteira, seriadetido pela polícia e enviado à força de voltapara a Coreia do Norte.

Sem dizer muita coisa, o administradorpagou-lhe seiscentos iuanes, ou cerca de 72

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dólares. Pelos dez meses em que Shin cuid-ara do gado, isso equivalia a menos de 25centavos de dólar por dia. Com base nos ses-senta centavos que havia ganhado nafazenda de porcos, ele esperara ganhar pelomenos o dobro.

Fora lesado, mas, como todos os norte-coreanos que trabalhavam na China, nãotinha condições de protestar. Como presentede despedida, o administrador da fazendalhe deu um mapa e o levou à estação ro-doviária em uma cidade próxima, Helong.

Comparada à viagem pela Coreia doNorte, a viagem pela China pareceu a Shinfácil e segura. Suas roupas — presente dofazendeiro de porcos — eram de fabricaçãolocal e atraíam pouca atenção. Viajando soz-inho e mantendo a boca fechada, descobriuque seu rosto e suas maneiras não anun-ciavam sua identidade de fugitivo norte-coreano.

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Mesmo quando mencionava que viera daCoreia do Norte em conversas com pessoasde etnia coreana a quem pedia comida, din-heiro ou trabalho, aprendeu que não era nin-guém especial. Uma longa fila de desertoresmendigara antes dele. A maioria das pessoasque encontrou não se assustava com norte-coreanos nem se interessava por eles. Estavaenjoada deles.

Ninguém pediu para ver seus docu-mentos de identidade quando ele comprouuma passagem em Helong para a viagem de169 quilômetros até Changchun, a capital daprovíncia de Jilin, ou quando pegou um trempara a viagem de mais de oitocentos quilô-metros até Pequim, ou quando viajou maisde 1.600 quilômetros de ônibus para Cheng-du, uma cidade de cinco milhões de habit-antes no Sudoeste da China.

Chegando a Chengdu, destino que escol-hera ao acaso na estação rodoviária dePequim, Shin começou a procurar trabalho.

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Num restaurante coreano, encontrouuma revista que arrolava nomes e endereçosde várias pequenas igrejas. Em cada uma,pedia para falar com o pastor, explicandoque era um norte-coreano que precisava deajuda. Os pastores de etnia coreana davam-lhe dinheiro, até o equivalente a cinquentadólares em iuanes. Nenhum deles, porém,lhe ofereceu trabalho ou moradia. Diziam-lhe também para ir embora. Era ilegal, se-gundo eles, ajudar um desertor.

Quando pedia ajuda na China, Shin to-mava cuidado para não falar demais. Nãocontou a ninguém que havia fugido de umcampo de trabalhos forçados para prisioneir-os políticos, temendo que isso pudesse in-duzir alguém a denunciá-lo à polícia.Tentava evitar conversas prolongadas.Mantinha-se também longe de hotéis e hos-pedarias, onde tinha medo de que lhe pedis-sem para mostrar documentos.

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Em vez disso, passava muitas de suasnoites em PC bangs, como são chamados osonipresentes cibercafés do Leste da Ásia,onde homens jovens, sobretudo solteiros, jo-gam no computador e surfam na internet 24horas por dia.

Ele descobriu que num desses cibercaféspodia obter endereços e algum descanso, senão exatamente sono. Parecia-se com muitosdos jovens desempregados e sem rumo quefaziam ponto nesses lugares, e ninguém lhepedia documentos.

Depois que oito igrejas o mandaram em-bora, fez a longa e sofrida viagem de ônibusde volta a Pequim, onde durante dez diasvoltou a se concentrar na procura deemprego em restaurantes coreanos. Porvezes os proprietários lhe davam comida oualgum dinheiro. Mas nenhum lhe ofereceuuma vaga.

Enquanto fracassava em sua busca portrabalho, Shin não entrou em pânico ou

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perdeu a coragem. Comida significava muitomais para ele do que para a maioria daspessoas, e em toda parte aonde ia na Chinahavia uma impressionante abundância. Paraseu espanto, naquele país até os cães pare-ciam bem alimentados e, quando ficava semdinheiro para comprar comida, elemendigava. Descobriu que os chineses emgeral lhe davam alguma coisa.

Convenceu-se de que nunca passariafome. Isso foi o bastante para acalmar seusnervos e dar-lhe esperança. Não tinha de ar-rombar casas para encontrar alimento, din-heiro ou roupas.

Deixou Pequim e fez uma viagem deônibus de 113 quilômetros para Tianjin, umacidade de dez milhões de habitantes, ondetentou novamente procurar pastorescoreanos. Estes novamente lhe oferecerampequenas quantias, mas nenhum trabalho oumoradia. Ele pegou um ônibus e foi para Jin-an, uma cidade de cinco milhões de

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habitantes mais de 350 quilômetros ao sul, epassou cinco dias procurando igrejascoreanas. Ainda assim, não encontroutrabalho.

Foi de novo para o sul. No dia 6 de fever-eiro de 2006 — um ano e uma semana de-pois de ter cruzado o rio Tumen congeladopara entrar na China —, chegou a Hangzhou,uma cidade com cerca de seis milhões dehabitantes no delta do rio Yang-tsé. No ter-ceiro restaurante coreano em que entrou, oproprietário ofereceu-lhe um emprego.

O restaurante, chamado HaedanghwaCozinha Coreana, era muito movimentado, eele trabalhava longas horas, lavando pratos elimpando mesas. Depois de 11 dias, estavafarto. Avisou ao proprietário que ia embora,recebeu seu pagamento e embarcou numônibus para Xangai, cerca de 145 quilômet-ros ao sul.

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Na estação rodoviária de Xangai, folheandouma revista escrita em coreano, Shin encon-trou uma relação de restaurantes coreanos epartiu mais uma vez em busca de trabalho.

— Eu poderia falar com o proprietário? —perguntou à garçonete no primeiro restaur-ante de sua lista.

— Por que pergunta? — retrucou ela.— Sou da Coreia do Norte, acabo de des-

cer do ônibus, não tenho para onde ir —disse ele. — Pensei que talvez pudesse trabal-har neste restaurante.

A garçonete disse que o proprietário nãoestava disponível.

— Há alguma coisa que eu possa fazeraqui? — suplicou ele.

— Não há nenhum emprego, mas aquelehomem que está comendo ali diz que é daCoreia; você deveria perguntar a ele.

A garçonete apontou para um cliente quealmoçava.

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— Com licença, sou da Coreia do Norte eestou procurando trabalho — disse Shin. —Por favor, ajude-me.

Após estudar-lhe o rosto por um mo-mento, o homem lhe perguntou qual era suacidade natal. Ele respondeu que era deBukchang, a vila próxima do Campo 14, olugar onde furtara seu primeiro saco dearroz.

— Você é mesmo da Coreia do Norte? —perguntou o homem, tirando do bolso umbloco de repórter e começando a fazeranotações.

Shin topara com um jornalista, o corres-pondente em Xangai de uma importantecompanhia de mídia sul-coreana.

— Por que veio para Xangai? —perguntou-lhe ele.

Shin repetiu o que acabara de dizer.Estava à procura de trabalho. Tinha fome. Ojornalista anotava tudo. Esse não era o tipode conversa a que Shin estava acostumado.

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Ele nunca conhecera um jornalista. Aquilo odeixou nervoso.

Depois de um longo silêncio, o homemlhe perguntou se ele queria ir para a Coreiado Sul — o que o deixou ainda mais nervoso.Quando chegou a Xangai, Shin já abandon-ara havia muito qualquer esperança de viajarpara lá. Disse ao jornalista que não poderia irporque não tinha nenhum dinheiro.

O homem sugeriu que saíssem juntos dorestaurante. Na rua, ele parou um táxi,mandou Shin entrar e instalou-se a seu lado.Após vários minutos, disse-lhe que eles es-tavam a caminho do consulado da Coreia doSul.

A inquietação de Shin transformou-se empânico quando, em seguida, o jornalista pas-sou a lhe explicar que poderia haver perigoao saírem do táxi. Ele lhe disse que, se al-guém o agarrasse, deveria se desvencilhar ecorrer.

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Quando se aproximaram do consulado,viram carros de polícia e vários policiais uni-formizados andando de um lado para ooutro, diante da entrada. Desde 2002, o gov-erno de Pequim tentava — com considerávelsucesso — impedir que norte-coreanos inva-dissem embaixadas e consulados estrangeir-os em busca de asilo.

Shin havia se mantido longe da políciachinesa. Temendo ser preso e deportado,nunca ousara invadir casas à procura deroupas ou comida. Havia tentado ser in-visível, e conseguira.

Agora um estrangeiro o levava para umprédio fortemente vigiado — e o aconselhavaa correr se a polícia tentasse detê-lo.

Quando o táxi parou em frente ao prédiocom a bandeira sul-coreana, Shin sentiu umaopressão no peito. Ao descer na rua, tevemedo de não conseguir andar. O jornalistadisse-lhe para sorrir; passou o braço emvolta dele e puxou-o para próximo de seu

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corpo. Juntos, caminharam rumo ao portãodo consulado. Falando em chinês, o jor-nalista disse aos policiais que ele e seu amigotinham negócios a tratar lá dentro.

Um policial abriu o portão e fez sinal paraque entrassem.

Assim que entraram, o jornalista disse aShin para relaxar. Mas ele não compreendeuque estava em segurança. Apesar de repeti-das garantias do pessoal do consulado, nãoera capaz de acreditar que estava realmentesob a proteção do governo da Coreia do Sul.Imunidade diplomática não fazia sentidopara ele.

O consulado era confortável, osfuncionários sul-coreanos eram prestativos,e havia outro desertor com quem ele podiaconversar.

Pela primeira vez em sua vida, Shin to-mava banho de chuveiro diariamente. Tinharoupas novas, cuecas limpas. Repousado,limpo e sentindo-se cada vez mais seguro,

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esperou que fossem processados os docu-mentos que lhe permitiriam viajar para aCoreia do Sul.

Soube pelos funcionários do consuladoque o jornalista que o ajudara (e que aindanão quer ter seu nome e o de seu órgão denotícias divulgados) havia se envolvido emdificuldades com autoridades chinesas.

Após passar seis meses dentro do consu-lado, Shin voou para Seul, onde o ServiçoNacional de Inteligência da Coreia do Sulmanifestou um interesse incomum por ele.Em interrogatórios que duraram um mês in-teiro, ele contou sua história de vida aagentes do serviço de informações. Tentouser o mais verdadeiro possível, embora tenhadeixado de fora a parte referente à denúnciada mãe e do irmão.

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CAPÍTULO 21K’UREDIT K’ADUS

Quando os agentes do serviço secreto ter-minaram com ele, Shin apresentou-se a

Hanawon, que significa “Casa da Unidade”em coreano. Trata-se de um centro de read-aptação empoleirado numa verdejante regiãomontanhosa a uns 65 quilômetros de Seul,megalópole de mais de vinte milhões de hab-itantes. O complexo parece um hospitalpsiquiátrico com fartos recursos financeirose uma obsessão por segurança: prédios de ti-jolos vermelhos de três andares cercados por

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uma cerca alta encimada por videocâmeras epatrulhados por guardas armados.

Hanawon foi construída em 1999 peloMinistério da Unificação para abrigar e ali-mentar desertores norte-coreanos e instruí-los sobre como se ajustar e sobreviver na cul-tura capitalista ultracompetitiva do Sul.

Com esse fim, o centro tem um quadro defuncionários que inclui psicólogos, con-sultores de carreira e professores dos maisdiversos assuntos, de história do mundo àdireção de automóvel. Há também médicos,enfermeiros e dentistas. Durante uma estadade três meses, os desertores aprendem quaissão seus direitos sob as leis coreanas e fazemexcursões a shopping centers, bancos e es-tações de metrô.

“Todos os que desertam têm problemasde adaptação”, disse-me Ko Gyoung-bin, odiretor-geral de Hanawon, quando visitei olugar.

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De início, Shin parecia estar se adaptandomelhor que a maioria.

As excursões não o surpreendiam ouamedrontavam. Tendo circulado sozinho porvárias das maiores e mais prósperas cidadesda China, ele estava acostumado a multidõesagressivas, prédios altos, carros vistosos eengenhocas eletrônicas.

No primeiro mês em Hanawon, ele rece-beu documentos de identidade com foto quecertificavam sua cidadania sul-coreana, con-cedidos automaticamente pelo governo a to-dos os que fogem do Norte. Assistiu tambéma aulas que explicavam os muitos benefíciose programas oferecidos aos desertores, entreos quais um apartamento gratuito, um es-tipêndio mensal de oitocentos dólares parareadaptação durante dois anos e nada menosde 1.800 dólares por mês enquanto semantivesse fazendo um curso de treina-mento para o trabalho ou de educaçãosuperior.

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Numa sala de aula com outros desertores,aprendeu que a Guerra da Coreia começaraquando a Coreia do Norte iniciara uma in-vasão de surpresa e não provocada do Sul em25 de junho de 1950. Essa é uma lição dehistória que deixa estupefata a maioria dosrecém-chegados do Norte. Desde a maistenra infância, eles são ensinados pelo gov-erno que a Coreia do Sul iniciou a guerracom o estímulo e a assistência armada dosEstados Unidos. Em Hanawon, muitosdesertores simplesmente se recusam a acred-itar que esse pilar fundamental da histórianorte-coreana é uma mentira. Ficam irrita-dos. É uma reação comparável à que norte-americanos poderiam ter se alguém lhes dis-sesse que a Segunda Guerra Mundialcomeçou no Pacífico depois de um sorrateiroataque americano a Tóquio.

Como quase nada lhe havia sido ensinadono Campo 14, uma revisão radical da históriada península coreana não era significativa

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para Shin. Ele estava muito mais interessadoem aulas que lhe ensinavam como usar umcomputador e encontrar informações nainternet.

Mas perto do final de seu primeiro mêsem Hanawon, exatamente quando começavaa se sentir à vontade no lugar, ele começou ater sonhos perturbadores. Via a mãe enfor-cada, o corpo de Park na cerca, e visualizavaas torturas a que achava que o pai havia sidosubmetido após sua fuga. Com a continuaçãodos pesadelos, abandonou um curso demecânico de automóveis. Não aprendeu a di-rigir. Parou de comer. Esforçava-se em vãopara dormir. Estava praticamente paralisadopela culpa.

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Quase todos os desertores chegam a Hana-won com sintomas de paranoia. Falam aos

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sussurros e envolvem-se em brigas. Têmmedo de revelar nome, idade ou local de nas-cimento. Seus modos, em geral, ofendem ossul-coreanos. Tendem a não dizer “obrigado”ou “desculpe”.

Perguntas feitas por caixas de banco sul-coreanos, que eles encontram em excursõespara abrir contas bancárias, com frequênciaaterrorizam desertores. Eles desconfiam dasintenções de quase todas as pessoas emposições de autoridade. Sentem-se culpadosem relação aos que deixaram para trás.Angustiam-se, por vezes ao ponto do pânico,em razão de sua inferioridade educacional efinanceira em comparação com os sul-coreanos. Têm vergonha do modo como sevestem, falam e cortam o cabelo.

“Na Coreia do Norte, a paranoia era umaresposta racional a condições reais e ajudavaessas pessoas a sobreviver”, disse Kim Hee-kyung, uma psicóloga clínica que conversoucomigo em seu consultório em Hanawon.

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“Mas ela os impede de compreender como ascoisas se passam na Coreia do Sul. É um ver-dadeiro obstáculo à assimilação.”

Adolescentes que vêm do Norte passamde dois meses a dois anos na Escola Secun-dária Hangyoreh, um estabelecimento de en-sino em regime de internato para alunos comdificuldades, filiado a Hanawon. Ela foi con-struída em 2006 para ajudar jovens recém-chegados do Norte, cuja maioria é inaptapara a escola pública na Coreia do Sul.

Quase todos eles se esforçam para apren-der rudimentos de leitura e matemática. Al-guns têm déficits cognitivos, claramente emconsequência de desnutrição aguda naprimeira infância. Mesmo entre os jovensmais inteligentes, o conhecimento de históriado mundo reduz-se essencialmente a históri-as pessoais míticas do Grande Líder, Kim IlSung, e de seu querido filho, Kim Jong Il.

“A educação que se recebe na Coreia doNorte é inútil para a vida na Coreia do Sul”,

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disse-me Gwak Jong-moon, o diretor deHangyoreh. “Quando a pessoa está commuita fome, não vai aprender e os profess-ores não vão ensinar. Muitos estudantes pas-saram anos escondidos na China, sem nen-hum acesso a escolas. Como crianças na Cor-eia do Norte, eles cresceram comendo cascasde árvore e pensando que isso era normal.”

Durante excursões aos cinemas, jovensdesertores muitas vezes entram em pânicoquando as luzes se apagam, temendo que al-guém possa sequestrá-los. Ficam aturdidoscom o coreano falado na Coreia do Sul, ondea língua foi contaminada por americanismoscomo syop’ing (shopping) e k’akt’eil(coquetel).

Consideram inacreditável que dinheiroseja armazenado em k’uredit k’adus (creditcards; cartões de crédito) de plástico.

Pizza, cachorros-quentes e hambúrgueres— itens básicos da alimentação de um ad-olescente coreano — lhes dão indigestão. O

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mesmo efeito é provocado pelo excesso dearroz — o alimento básico de outrora, que naera pós-fome se tornou comida de rico naCoreia do Norte.

Uma adolescente na Escola Hangyorehfez gargarejo com amaciante de roupa,confundindo-o com antisséptico bucal. Outragarota usou sabão em pó como farinha detrigo. Muitos alunos ficam aterrorizadosquando ouvem pela primeira vez o ruído deuma máquina de lavar em funcionamento.

Além de paranoicos, confusos e intermit-entemente tecnofóbicos, os desertores ten-dem a sofrer de doenças evitáveis e malesquase inexistentes na Coreia do Sul. ChunJung-hee, enfermeira-chefe de Hanawon hámais de dez anos, contou-me que uma altaporcentagem das mulheres provenientes doNorte tem infecções ginecológicas crônicas ecistos. Disse que chegam muitos desertorescontaminados por tuberculose que nunca fo-ram tratados com antibióticos. Eles também

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chegam comumente com indigestão crônicae hepatite B. Muitas vezes é difícil diagnosti-car enfermidades rotineiras, contou a enfer-meira, porque os desertores não estão acos-tumados com médicos e desconfiamdaqueles que lhes fazem perguntas pessoaise prescrevem remédios. Homens, mulheres ecrianças têm problemas dentários graves res-ultantes de desnutrição e da falta de cálcioem suas dietas. Metade do dinheiro gastoanualmente em cuidados médicos em Hana-won vai para tratamento dentário protético.

Muitos, se não a maioria, dos desertoresque chegam a Hanawon fugiram da Coreiado Norte com a ajuda de contrabandistasbaseados na Coreia do Sul. Estes esperamansiosamente que eles terminem a tem-porada no centro de readaptação e comecema receber estipêndios mensais do governo.Então cobram seu dinheiro. A ansiedadeprovocada por dívidas atormenta desertores

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dentro de Hanawon, disse-me a enfermeira-chefe.

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Shin não precisava se preocupar com contra-bandistas, e sua saúde física era relativa-mente boa após meio ano de repouso e re-feições regulares no consulado em Xangai.

Mas os pesadelos não iam embora.Eles se tornaram mais frequentes e mais

perturbadores. Shin não conseguia conciliarsua vida de conforto e alimentação farta comas horríveis imagens do Campo 14 que lhepovoavam a cabeça.

À medida que sua saúde mental se deteri-orava, a equipe médica de Hanawon perce-beu que ele precisava de cuidados especiais etransferiu-o para a enfermaria psiquiátricade um hospital próximo, onde permaneceudois meses e meio; ele ficou isolado durante

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um período e na maior parte do tempotomou medicamentos que lhe permitiamdormir e comer.

Havia começado a manter um diário noconsulado sul-coreano em Xangai, e médicosna enfermaria psiquiátrica do hospitalestimularam-no a continuar escrevendocomo parte de seu tratamento para o quediagnosticaram como transtorno de estressepós-traumático.

Shin lembra-se de pouca coisa do tempoque passou no hospital, a não ser que ospesadelos diminuíram pouco a pouco.

Após ter alta, mudou-se para umpequeno apartamento comprado para elepelo Ministério da Unificação. O imóvellocalizava-se em Hwaseong, uma cidade decerca de quinhentos mil habitantes nasplanícies baixas da península coreana cent-ral, perto do mar Amarelo e pouco menos decinquenta quilômetros ao sul de Seul.

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Durante o primeiro mês, Shin raras vezessaiu de casa. Observava a vida sul-coreanadesenrolar-se das janelas de seu aparta-mento. Por fim, aventurou-se nas ruas. Elecompara sua emergência ao lento cresci-mento de uma unha. Não sabe explicar comoou por que ela aconteceu. Simplesmenteaconteceu.

Depois que começou a se aventurar nacidade, ele fez aulas de direção. Por causa deseu vocabulário limitado, foi reprovado duasvezes na prova escrita para a obtenção dacarteira de motorista. Tinha dificuldade deencontrar um emprego que o interessasse oude se manter em algum que lhe era ofere-cido. Juntou restos de metal, fez potes de ar-gila e trabalhou numa loja de conveniência.

Conselheiros de carreira em Hanawondisseram que a maioria dos norte-coreanostem experiências semelhantes do exílio.Muitas vezes eles dependem do governo sul-coreano para resolver seus problemas, não

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conseguem assumir responsabilidade pess-oal por maus hábitos de trabalho ou por at-rasos no emprego. Os desertores muitasvezes abandonam os postos que o governoarranja para eles e iniciam negócios que fra-cassam. Alguns recém-chegados sentem re-pulsa pelo que veem como a decadência e adesigualdade da vida no Sul. Para encontrarempregadores que tolerem a irritabilidade derecém-chegados do Norte, o Ministério daUnificação paga a empresas até 1.800dólares por ano caso se arrisquem a con-tratar um desertor.

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Shin passava longas horas sozinho, sentindo-se desesperadamente solitário em seu sala equarto. Tentou localizar o tio mais velho, Sh-in Tae Sub — cuja fuga para o Sul depois daGuerra da Coreia fora o crime pelo qual seu

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pai e toda a família haviam sido enviadospara o Campo 14.

Mas tinha apenas um nome, e o governosul-coreano lhe disse não ter nenhuma in-formação sobre ele. O Ministério da Uni-ficação disse que só podia procurar pessoasque haviam se registrado para ser reunidascom parentes perdidos. Shin desistiu daprocura.

Um dos psiquiatras que trataram dele nohospital o pôs em contato com um consel-heiro do Database Center for North KoreanHuman Rights, uma organização não gover-namental em Seul que reúne, analisa e pub-lica informações sobre abusos no Norte.

O conselheiro estimulou-o a transformarseu diário terapêutico nas memórias que oDatabase Center publicou em coreano em2007. Enquanto trabalhava no livro, Shincomeçou a passar quase todo o seu tempo noescritório dessa organização em Seul, ondelhe deram um lugar para dormir, e ele fez

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amizade com seus editores e outrosfuncionários.

Quando a história de seu nascimento efuga de um campo de trabalhos forçados eperpétuos espalhou-se, ele começou a con-hecer muitos dos mais importantes ativistasdos direitos humanos e chefes de organiza-ções de desertores no Sul. Sua história foicuidadosamente examinada e esmiuçada porex-prisioneiros e guardas dos campos, bemcomo por advogados especializados emdireitos humanos, jornalistas sul-coreanos eoutros especialistas com amplo conheci-mento sobre o tema. Sua compreensão domodo operacional dos campos, seu corpomarcado por cicatrizes e a expressão assom-brada de seus olhos eram convincentes — eele foi amplamente reconhecido como oprimeiro norte-coreano a ir para o Sul apósfugir de uma prisão política.

An Myeong Chul, que foi guarda e mo-torista em quatro campos no Norte, declarou

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ao International Herald Tribune não terdúvida de que Shin havia vivido numa zonade controle total. Quando eles se conhe-ceram, An disse ter percebido sinais reve-ladores: Shin evita olhar o interlocutor nosolhos e tem os braços arqueados pelo tra-balho infantil.1

“A princípio eu não podia acreditar emShin porque nunca alguém teve sucesso nafuga antes”, disse-me Kim Tae Jin em 2008.2

Ele é presidente da Democracy NetworkAgainst North Korean Gulag (Rede deDemocracia Contra o Gulag Norte-Coreano)e um desertor que passou uma década noCampo 15 antes de ser libertado.

Depois de se encontrar com Shin, porém,Kim, como outros com conhecimento emprimeira mão dos campos, concluiu que suahistória era tão sólida quanto extraordinária.

Fora da Coreia do Sul, especialistas emdireitos humanos começaram a dar atenção aShin. Na primavera de 2008, ele foi

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convidado a contar sua história no Japão enos Estados Unidos. Apresentou-se naUniversidade da Califórnia, em Berkeley, ena Universidade de Columbia e conversoucom funcionários do Google.

Fez amigos entre pessoas que compreen-diam e valorizavam o que ele haviasuportado, ganhou confiança e começou atentar preencher lacunas na compreensãoque ele tinha da sua terra natal. Devoravanotícias sobre a Coreia do Norte na internete em jornais sul-coreanos. Lia sobre ahistória da península coreana, a reputaçãoda ditadura da família Kim e o status de seupaís como um pária internacional.

No Database Center, onde os membrosdo pessoal haviam trabalhado com norte-coreanos durante anos, era visto como umaespécie de prodígio em bruto.

“Comparado a outros desertores, eleaprendia depressa e mostrava-se altamente

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adaptável ao choque cultural”, disse LeeYong-koo, um chefe de equipe da instituição.

A exemplo de seus novos amigos, Shincomeçou a ir à igreja nas manhãs de domin-go, mas não compreendia o conceito de umDeus amoroso e clemente.

Por uma questão de instinto, relutava emindagar sobre o que quer que fosse. Nocampo, os professores puniam crianças quefaziam perguntas. Em Seul, mesmo quandoestava cercado por amigos solícitos e bem in-formados, parecia quase impossível a Shinpedir ajuda. Lia vorazmente, mas não usavaum dicionário para consultar as palavras quenão conhecia. Jamais pedia a um amigo paralhe explicar alguma coisa que não entendia.Como fazia vista grossa a tudo que não podiacompreender de imediato, suas viagens aTóquio, Nova York e Califórnia pouco fizer-am para lhe provocar uma sensação de ad-miração e entusiasmo. Sabia estar minandosua capacidade de se adaptar à nova vida,

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mas também sabia que não podia se obrigara uma mudança.

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CAPÍTULO 22OS SUL-COREANOS NÃOESTÃOTÃO INTERESSADOS

Os únicos aniversários que importavam noCampo 14 eram aqueles de Kim Jong Il e

Kim Il Sung. As datas são feriados nacionaisna Coreia do Norte, e até num campo de tra-balhos forçados valiam um dia de folga paraos prisioneiros.

Quanto ao aniversário de Shin, ninguémlhe dedicava a menor atenção enquanto elecrescia, nem o próprio Shin.

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Isso mudou quando ele completou 26anos, na Coreia do Sul. Quatro de seus ami-gos organizaram uma festa surpresa numrestaurante da rede T.G.I. Friday’s, no centrode Seul.

“Fiquei muito comovido”, disse-me elequando nos encontramos pela primeira vezem dezembro de 2008, alguns dias após seuaniversário.

Mas ocasiões como essa eram raras, e,apesar da festa, Shin não estava feliz na Cor-eia do Sul. Ele havia deixado recentementeum emprego de meio expediente servindocerveja num pub de Seul. Não sabia comopagar o aluguel de trezentos dólares dominúsculo quarto que ocupava num aparta-mento coletivo no centro, e o estipêndiomensal de oitocentos dólares que recebia doMinistério da Unificação havia acabado.Tinha zerado sua conta bancária. Expressouem voz alta o temor de ter de se juntar aos

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sem-teto na estação ferroviária central deSeul.

Sua vida social também não era lá grandecoisa. Vez por outra ele compartilhava umarefeição com os companheiros com quemmorava, mas não tinha namorada ou ummelhor amigo. Recusava convites para sairou trabalhar com outros norte-coreanoslibertados de campos de trabalhos forçados.Nesse aspecto, era como muitos desertores.Estudos constataram que eles relutam em terconvívio social e evitam contato com outraspessoas durante dois ou três anos depois dechegarem ao Sul.1

O livro de memórias de Shin foi um com-pleto fracasso, vendendo cerca de quinhen-tos exemplares de uma tiragem de três mil.Shin diz que não ganhou dinheiro nenhumcom o livro.

“As pessoas não estão muito interessa-das”, declarou Kim Sang-hun, diretor doDatabase Center, ao Christian Science

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Monitor depois que sua organização pub-licou o livro. “A indiferença da sociedade sul-coreana à questão dos direitos na Coreia doNorte é apavorante.”2

Mas Shin estava longe de ser o primeirosobrevivente de um campo do Norte a ser re-cebido com um bocejo coletivo pelos sul-coreanos.

Kang Chol-hwan passou uma década coma família no Campo 15, antes de ser de-clarado “redimível” e libertado em 1987. Massua dolorosa história, escrita com a colabor-ação do jornalista Pierre Rigoulot e pub-licada primeiro em francês em 2000, tam-bém recebeu escassa atenção na Coreia doSul, até que foi traduzida para o inglês sob otítulo The Aquariums of Pyongyang (Osaquários de Pyongyang) e um exemplarchegou à mesa do presidente George W.Bush. Ele convidou Kang para discutir a Cor-eia do Norte na Casa Branca e mais tardedescreveu Aquariums como “um dos livros

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mais influentes que li durante meu man-dato”.3

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“Não quero criticar este país”, disse-me Shinno dia em que nos conhecemos, “mas eu di-ria que, de toda a população da Coreia doSul, só 0,001% tem qualquer interesse realpela Coreia do Norte. Não há lugar em seumodo de vida para pensar sobre coisas alémde suas fronteiras. Não há interesse nisso”.

Shin exagerava a falta de preocupação doSul pelo Norte, mas tinha razão. É um pontocego que desconcerta os grupos internacion-ais de defesa dos direitos humanos. Evidên-cias esmagadoras de atrocidades incessantesdentro dos campos de trabalhos forçados noNorte pouco fizeram para mobilizar opúblico. Como a Associação Coreana dos Ad-vogados observou, “sul-coreanos que prezam

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em público a virtude do amor fraterno têm semantido inexplicavelmente atolados numprofundo lamaçal de indiferença”.4

Quando o presidente sul-coreano LeeMyung-bak foi eleito em 2007, apenas 3%dos eleitores citaram a Coreia do Norte comouma preocupação importante. Eles disseramaos pesquisadores que estavam mais in-teressados em obter salários mais elevados.

Em se tratando de ganhar dinheiro, aCoreia do Norte é uma total perda de tempo.A economia da Coreia do Sul é 38 vezesmaior que a do Norte; seu volume de comér-cio internacional é 224 vezes maior.5

A beligerância periódica da Coreia doNorte, no entanto, é capaz de desencadearmanifestações de ira no Sul. Isso foi especial-mente verdadeiro em 2010, quando o Nortepromoveu um ataque submarino sorrateiroque matou 46 marinheiros e afundou oCheonan, um navio de guerra que navegavaem águas territoriais sul-coreanas. O Norte

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promoveu também uma chuva de projéteisde artilharia sobre uma pequena ilha sul-coreana, matando quatro pessoas. Mas ogosto do Sul pela vingança tende a se dissi-par com rapidez.

Depois que investigadores internacionaisconfirmaram que um torpedo norte-coreanoafundou o Cheonan, os eleitores no Sul se re-cusaram a dar apoio ao presidente Lee, quehavia declarado que o governo norte-coreanodeveria “pagar”. Não houve nenhuma versãosul-coreana do efeito “11/9”, que impeliu osEstados Unidos para guerras no Afeganistãoe no Iraque. Em vez disso, o partido de Leesofreu uma estrondosa derrota numa eleiçãode meio de mandato que mostrou que os sul-coreanos estão mais interessados em preser-var a paz e proteger padrões de vida que emensinar uma lição ao Norte.

— Não haverá vencedor se a guerra fordeflagrada, seja ela quente ou fria — disse-me Lim Seung-youl, um distribuidor de

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roupas de 27 anos de Seul. — Nossa nação émais rica e mais capaz que a Coreia do Norte.Temos de usar a razão e não o confronto.

Os sul-coreanos passaram décadas refin-ando o que significa usar a razão em respostaa um governo ditatorial vizinho que deslocoucerca de 80% de seu poder de fogo militartotal para pouco mais de 95 quilômetros daZona Desmilitarizada, a faixa fortementeguardada que separa as duas Coreias, eameaçou várias vezes transformar Seul (loc-alizada a apenas 56 quilômetros da fronteira)num “mar de fogo”. Sangrentos ataques desurpresa promovidos pela Coreia do Nortetendem a se repetir com intervalos de dez a15 anos. Tudo começou em 1968 com umbando de pistoleiros que tentaram assassinarum presidente sul-coreano e segue até os di-as de hoje com os episódios mais recentes: oafundamento de um navio de guerra e olançamento de projéteis sobre a ilha em2010, passando pelo bombardeio de um

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avião a jato de passageiros da Korean Air em1987 e pela infiltração fracassada de coman-dos das forças especiais norte-coreanas abordo de um submarino em 1996.

Os ataques mataram centenas de sul-coreanos, mas ainda não incitaram o eleitor-ado a exigir que seu governo desfira umcontra-ataque de vulto. Nem impediram osul-coreano médio de ficar mais rico, maisinstruído e dono de uma casa melhornaquela que se tornou a quarta maior eco-nomia da Ásia e a 11ª economia do mundo.

Os sul-coreanos prestaram muita atençãoao preço da reunificação alemã. A carga pro-porcional sobre a Coreia do Sul, constataramalguns estudos, seria duas vezes e meiamaior do que a que recaiu sobre a AlemanhaOcidental depois que ela absorveu a antigaAlemanha Oriental. Os estudos concluíramque a unificação poderia custar mais de doistrilhões de dólares ao longo de trinta anos,elevar os impostos durante seis décadas e

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exigir que 10% do PIB do Sul fosse gasto noNorte por todo o futuro previsível.

Os sul-coreanos querem a reunificaçãocom o Norte, mas não estão com pressa.Muitos não desejam que ela aconteça en-quanto estiverem vivos — em grande parteporque o custo seria inaceitavelmente alto.

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Shin e muitos outros desertores da Coreia doNorte queixam-se, com razão, que os sul-coreanos os veem como broncos e ignor-antes, que falam e se vestem mal, cujamixórdia de país dá mais preocupação doque merece.

Há amplas evidências de que a sociedadesul-coreana dificulta a adaptação dosdesertores. A taxa de desemprego entre osnorte-coreanos no Sul é quatro vezes maiorque a média nacional; a taxa de suicídio

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entre eles é mais de duas vezes e meia super-ior à dos sul-coreanos.

Mas os próprios sul-coreanos fazem umenorme esforço para se ajustar a sua culturaobcecada pelo sucesso, preocupada comstatus e maníaca por educação. Shinesforçava-se para encontrar seu lugar numasociedade singularmente extenuada pelo tra-balho, insegura e estressada. Os sul-coreanostrabalham mais, dormem menos e se matamnuma taxa maior que os cidadãos dequalquer outro país desenvolvido segundo aOrganização para a Cooperação e o Desen-volvimento Econômico (OCDE), um grupoque apoia o crescimento econômicosustentável em 29 países ricos.

Eles também veem uns aos outros comum olhar crítico e devastador. A autoestimatende a ser definida de maneira estrita pelaadmissão num pequeno número de univer-sidades extremamente seletivas e empregosprestigiosos e muito bem remunerados em

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conglomerados como a Samsung, a Hyundaie a LG.

“Esta sociedade é implacável, inflexível, ea competição é constante”, disse-me AndrewEungi Kim, professor de sociologia naUniversidade da Coreia, uma das mais elitiz-adas do país. “Se não obtêm as credenciaiscertas — eles chamam isso de ‘especificaçãocorreta’ —, os jovens se tornam muito pess-imistas. Acreditam que não poderão ter umbom começo na vida. A pressão para obtersucesso na escola começa a crescer na quartasérie primária, acredite se quiser, e passa aser tudo para os estudantes na altura da sé-tima série.”

A busca da “especificação correta” super-aqueceu os gastos com a educação. Entre ospaíses ricos, a Coreia do Sul ocupa oprimeiro lugar em gasto per capita em edu-cação privada, o que inclui professores par-ticulares, períodos intensivos de estudo ecursos de inglês no próprio país e no

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exterior. Quatro entre cinco estudantes daescola primária até a secundária fazemcursos intensivos após o horário da escola.Cerca de 6% do PIB do país é gasto em edu-cação, mais do que o dobro da porcentagemdestinada a esse fim nos Estados Unidos,Japão ou Grã-Bretanha.

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A obsessão da Coreia do Sul com o desem-penho pagou dividendos assombrosos.Economistas internacionais descrevem-nacom frequência como o mais impressionanteexemplo isolado do que livres mercados,governo democrático e trabalho árduo po-dem fazer para transformar um lugar at-rasado e agrário numa potência global.

Mas o custo humano do enriquecimentorepentino foi igualmente assombroso.

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Enquanto na maioria dos outros paísesricos a taxa de suicídio atingiu seu pontomais alto no início dos anos 1980, na Coreiado Sul ela continua a subir, tendo duplicadodesde 2000. Em 2008, era duas vezes e meiamaior que nos Estados Unidos e bem maisalta que no vizinho Japão, onde o suicídiotem profundas raízes culturais. A tendência ase matar parece ter se disseminado comouma espécie de doença infecciosa, ex-acerbada pelas pressões da ambição, daprosperidade, da desintegração da família eda solidão.

“Relutamos em procurar ajuda para a de-pressão. Temos muito medo de sermos vistoscomo loucos”, disse-me Ha Kyooseob,psiquiatra da Faculdade de Medicina daUniversidade Nacional de Seul e chefe da As-sociação Coreana para a Prevenção do Suicí-dio. “Este é o aspecto sombrio de nossorápido desenvolvimento.”

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Embora os estresses da afluência possam ex-plicar boa parte da indiferença do Sul pordesertores como Shin, há outro fator import-ante: uma divisão na opinião pública sobre amaneira de administrar os riscos de viver aolado da Coreia do Norte.

Dependendo da direção em que os ventospolíticos sopram, o público e o governo emSeul oscilam entre a conciliação bitolada e oconfronto cauteloso.

Após tomar posse em 2008, o presidenteLee e o partido da situação assumiram umapostura mais dura em relação à Coreia doNorte, cortando quase toda a ajuda e condi-cionando a cooperação a progressos no de-sarmamento nuclear e nos direitos humanos.Essa política resultou em vários anos turbu-lentos de lançamentos de mísseis, nego-ciações econômicas paralisadas, tiroteios na

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fronteira e ameaças periódicas de “guerratotal” por parte da Coreia do Norte.

Antes de Lee, a Coreia do Sul adotavauma abordagem quase exatamente oposta.Como parte de sua política, a chamada Sun-shine Policy (Política do Raio de Sol), ospresidentes Kim Dae-jung e Roh Moo-hyuncompareceram a reuniões de cúpula comKim Jong Il em Pyongyang, aprovaramgrandes remessas de alimentos e fertilizantese aceitaram selar generosos acordos econ-ômicos. Essa política praticamente ignoravaa existência dos campos de trabalhos força-dos e não fazia nenhuma tentativa de monit-orar quem se beneficiava com a ajuda naCoreia do Norte. Mas valeu a Kim Dae-jung oprêmio Nobel da Paz.

Por vezes, a esquizofrenia do Sul sobre amaneira de lidar com o Norte era encenadanuma espécie de teatro kabuki na fronteiraentre as duas Coreias. Ali, desertoreslançavam balões destinados a sua pátria com

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mensagens que pretendiam ofender KimJong Il. Os folhetos o descreviam como con-sumidor de caríssimos vinhos importados,um sedutor de esposas de outros homens,um assassino, um senhor de escravos e “odemônio”.

Assisti a um desses lançamentos debalões e observei a polícia do governo Leeesforçar-se para proteger um desertor norte-coreano chamado Park Sang Hak contra uni-onistas irritados e intelectuais acadêmicos,que insistiam que a política de não agressãoao governo Kim era a única opção possível.

Antes que o ato estivesse encerrado, Parkdeu um pontapé bem na cabeça de uma daspessoas que se opunham ao protesto — umgolpe que soou como um bastão atingindocom toda força uma bola de beisebol. Elecuspiu também em várias outras. Puxou umrevólver de gás lacrimogêneo do bolso dopaletó e fez disparos para o ar antes que apolícia lhe tomasse a arma. Não foi capaz,

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porém, de impedir seus opositores de rasgarquase todos os sacos que continham folhetosde ataque à Coreia do Norte.

No final, o grupo de Park só conseguiulançar um de seus dez balões, e dezenas demilhares de folhetos se esparramaram pelochão.

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Shin e eu nos encontramos pela primeira vezno dia seguinte a esse desastre dos balões.Ele não comparecera. Confrontos de rua nãoeram seu estilo. Estivera assistindo a filmesantigos sobre a libertação de campos de con-centração nazistas pelos Aliados, que in-cluíam cenas de máquinas de terraplanagemdesenterrando corpos que o Terceiro Reichde Adolf Hitler, em colapso, tentaraesconder.

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“É apenas uma questão de tempo”, disse-me Shin, até que a Coreia do Norte decidadestruir os campos. “Espero que os EstadosUnidos, mediante pressão e persuasão, con-sigam convencer o governo a não assassinartodas aquelas pessoas.”

Shin não havia solucionado os problemasde como pagar suas contas, ganhar a vida ouarranjar uma namorada na Coreia do Sul.Mas já decidira o que queria fazer com oresto de sua vida: seria um ativista dosdireitos humanos e promoveria a consciênciainternacional sobre a existência dos camposde trabalhos forçados.

Para isso, pretendia deixar o país emudar-se para os Estados Unidos. Haviaaceitado uma proposta da Liberty in NorthKorea, a organização sem fins lucrativos quepatrocinara sua primeira viagem àquele país.Estava de mudança para o Sul da Califórnia.

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CAPÍTULO 23ESTADOS UNIDOSDA AMÉRICA

Numa noite fresca de fim de verão, numsubúrbio à beira-mar de Los Angeles, Shin

estava postado diante de uma pequenaplateia de adolescentes americanos de ori-gem coreana. De camiseta vermelha, jeans esandálias, ele parecia relaxado e sorriaamavelmente para os atentos garotos senta-dos em cadeiras de armar. Era o principal or-ador da noite na Torrance First Presbyterian

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Church. Seu assunto, como sempre em apar-ições públicas, era a vida no Campo 14.

Havia mais de um ano que seus patro-cinadores na LiNK o enviavam para esse tipode evento, importunando-o para prepararcomentários apropriados. Eles queriam quedesse uma palestra bem preparada, emo-cionalmente poderosa, de preferência eminglês, usando sua história para sacudirespectadores norte-americanos, motivarvoluntários e talvez arrecadar dinheiro paraa causa dos direitos humanos na Coreia doNorte. Como um dos executivos da LiNK medisse: “Shin poderia ser um incrível trunfopara nós nesse movimento. ‘Você poderia sero rosto da Coreia do Norte’, nós lhedizemos.”

O próprio Shin não tinha tanta certeza.Naquela noite em Torrance, ele não havia

preparado nada. Depois de ser apresentadopor um membro da LiNK, saudou osestudantes em coreano e perguntou-lhes, por

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meio de um intérprete, se tinham algumapergunta.

Quando uma menina na plateia pediu-lhepara explicar como havia fugido, ele pareceuconsternado.

“Esse é um assunto realmente muitopessoal e delicado”, respondeu. “Tento evitarfalar sobre ele o máximo possível.”

Com relutância, contou uma história cur-ta, esquemática e pasteurizada de sua fuga —em grande parte incompreensível para al-guém que não estivesse plenamente familiar-izado com os detalhes de sua vida.

“Minha história pode ser muito triste”,disse ele, encerrando a sessão depois decerca de 15 minutos. “Não quero que vocêsfiquem deprimidos.”

Tinha aborrecido e desconcertado opúblico. Um menino — claramente confusosobre quem era ele e o que tinha feito naCoreia do Norte — fez uma última pergunta.Como foi a experiência de servir nas forças

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armadas norte-coreanas? Shin corrigiu omenino, dizendo que não tinha servido noExército do Povo Coreano. “Eu não eradigno”, acrescentou.

Após assistir a sua apresentação naigreja, pressionei Shin a explicar o que estavaacontecendo: Por que quer ser umatestemunha em prol dos direitos humanosquando lhe parece tão difícil falar em públicosobre o que aconteceu no campo? Por quedeixa de fora da sua história partes que po-deriam enfurecer uma plateia?

“As coisas pelas quais passei pertencemunicamente a mim”, respondeu ele, sem meolhar nos olhos. “Creio que para a maioriadas pessoas será quase impossível sabersobre o que estou falando.”

Pesadelos — imagens de sua mãe na forca— continuavam a assombrar-lhe o sono. Seusgritos acordavam os companheiros na casaque ele compartilhava em Torrance com umgrupo de voluntários da LiNK. Ele recusava o

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aconselhamento gratuito de psicoterapeutasfalantes de coreano baseados em LosAngeles. Não se dispôs a se matricular emcursos que poderiam lhe dar uma certi-ficação equivalente ao ensino médio.Recusou-se a considerar a ideia de fazer umafaculdade.

Várias vezes, durante nossas longas en-trevistas, mencionou um “espaço morto”dentro de si, que dizia tornar difícil para elesentir qualquer coisa com intensidade. Porvezes fingia estar feliz, disse-me, para vercomo outras pessoas reagiam. Muitas vezesnão fazia nenhum esforço.

A adaptação de Shin à vida nos EstadosUnidos não havia sido fácil.

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Pouco depois de chegar à Califórnia naprimavera de 2009, Shin começou a ter

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dores de cabeça severas e recorrentes. Seuscolegas na LiNK temeram que estivesse so-frendo de transtorno do estresse pós-traumático. Verificou-se que as dores decabeça eram um sintoma de cáries não trata-das. Um dentista fez uma cirurgia de canal.As dores de cabeça desapareceram.

Essa cura instantânea foi a exceção.Não há — não haverá — nenhuma

maneira rápida e fácil para Shin se adaptar àvida do outro lado da cerca, seja nos EstadosUnidos ou na Coreia do Sul. Foi o que seusamigos me disseram, e ele também.

“Shin continua sendo um prisioneiro”,disse Andy Kim, um jovem coreano-amer-icano que ajudava na direção da LiNK e que,durante algum tempo, foi o confidente maischegado de Shin. “Ele não consegue des-frutar sua vida enquanto há pessoas so-frendo nos campos. Vê a felicidade comouma forma de egoísmo.”

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Andy e Shin têm mais ou menos a mesmaidade e almoçavam juntos com frequênciaem Los Chilaquiles, uma espelunca mexicanabarata num centro comercial próximo do es-critório da LiNK, situado num distrito indus-trial de Torrance. Shin era louco por comida,e seus momentos mais falantes aconteciamem restaurantes coreanos e mexicanos. Aolongo de vários meses, Andy encontrou-secom ele uma vez por semana durante umahora para discutir o rumo que sua vida nosEstados Unidos estava tomando.

Havia várias coisas boas acontecendo.Shin passara a falar muito e a brincar no es-critório. Deixava Andy e outros na LiNK pas-mos ao aparecer de repente em suas salas edizer que os “amava”. Muitas vezes, porém,não reagia bem aos conselhos dessas mes-mas pessoas e tinha dificuldade em distin-guir entre críticas construtivas e deslealdadepessoal. Fez poucos progressos no aprendiz-ado de como administrar seu dinheiro, por

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vezes gastando mais do que podia emjantares e passagens aéreas para amigos. Emchorosas conversas com Andy, descrevia-secomo “lixo inútil”.

“Às vezes Shin se vê através dos olhos deseu novo eu, e às vezes através dos olhos dosguardas do campo”, disse Andy. “Ele está umpouco aqui e um pouco lá.”

Quando perguntei a Shin se isso era ver-dade, ele concordou com a cabeça.

“Estou evoluindo, deixando de ser um an-imal”, respondeu. “Mas é um processomuito, muito lento. Às vezes tento chorar erir como outras pessoas, só para ver se tenhoalguma sensação. Mas as lágrimas não vêm.O riso não vem.”

Seu comportamento era compatível comum padrão que pesquisadores encontraramentre sobreviventes de campos de con-centração no mundo todo. Eles muitas vezesavançam pela vida com o que Judith Lewis

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Herman, psiquiatra de Harvard, chama de“identidade contaminada”.

“Eles sofrem não só de uma síndromepós-traumática clássica, mas de profundasalterações em suas relações com Deus, comas outras pessoas e consigo mesmos”, escre-veu Herman em seu livro Trauma and Re-covery (Trauma e recuperação), um estudodas consequências psicológicas do terrorpolítico. A maioria dos sobreviventes é “ator-mentada pela vergonha, o ódio de si mesmoe um sentimento de fracasso”.1

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Pouco depois da chegada de Shin à Califór-nia, Kyung Soon Chung, a esposa de um pas-tor nascida em Seul, começou a cozinharpara ele, servir-lhe de mãe e monitorar suaadaptação à vida americana. Na primeira vezque ele apareceu na casa de Kyung para

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jantar, ela correu em sua direção e tentou lhedar um abraço. Ele não aceitou. Sentia-sedesconfortável ao ser tocado.

Mas continuou aparecendo para jantar,em parte porque gostava da comida de Ky-ung. Fez também amizade com os filhos dela,de vinte e poucos anos: Eunice, uma ativistados direitos humanos que ele conhecera emSeul, e David, seu irmão mais moço, formadorecentemente em Yale e também interessadoem direitos humanos. A família, que am-parou vários imigrantes norte-coreanos, viveem Riverside, uma cidade a quase cem quilô-metros de Torrance. Kyung e o marido, JungKun Kim, dirigem um pequeno ministériocristão chamado Ivy Global Mission.

Shin descobriu uma família coreana queera aberta, acolhedora e afetuosa. Tinha in-veja e sentia-se um pouquinho sobrepujadopela intensidade com que eles zelavam umpelo outro — e por ele. Durante quase doisanos, em semanas alternadas, passou a noite

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de sábado à mesa de jantar de Kyung.Dormia no quarto de hóspedes e ia à igrejacom a família no domingo.

Kyung, que não fala muito inglês,começou a chamar Shin de seu filho maisvelho. Ele tolerou seus abraços e mais tardepassou a retribuí-los. Ficou sabendo que elagostava muito de sorvete de iogurte e antesdo jantar passava num supermercado paralhe comprar um. Ela caçoava dele, pergunt-ando: “Quando você vai me trazer umanora?”

Ele a lisonjeava, dizendo-lhe que estavamais magra e parecendo mais jovem. Con-versavam por horas a fio, só os dois.

“Por que você é tão boa para mim?”, Shinperguntou-lhe uma vez, entristecendo-se.“Não sabe o que fiz?”

Ele disse a Kyung que tem “nojo” de simesmo, que não consegue fugir dos sonhoscom a morte da mãe, que não pode se per-doar por ter deixado o pai para trás no

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campo e que se odeia por ter se arrastadosobre o corpo de Park. Disse, também, que seenvergonha de ter furtado arroz e roupas denorte-coreanos pobres na sua fuga do país.

A culpa de Shin nunca terá fim, acreditaKyung. Mas ela lhe disse muitas vezes queele tinha uma consciência vigorosa e um bomcoração. Afirmou também que ele tinha umavantagem em relação a outros norte-coreanos: não havia sido contaminado pelapropaganda ou pelo culto à personalidadeem torno da dinastia Kim.

“Há certa pureza em Shin”, disse ela. “Elenunca sofreu lavagem cerebral.”

Seus filhos notaram surpreendentesmudanças na autoconfiança e nas habilid-ades sociais de Shin após uns dois anos naCalifórnia: estava menos tímido, sorria commais frequência e passou a gostar de abraçar.Antes e depois de algumas de nossas entrev-istas, ele também me abraçou.

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“Ele costumava ficar constrangidoquando se encontrava com meus amigos daigreja”, disse Eunice. “Agora dágargalhadas.”

David concordou. “Shin manifesta realcompaixão pelos outros. Essa coisa chamadaamor — talvez haja muito amor dentro dele.”

A autoavaliação de Shin era menosotimista.

“Como estou cercado por pessoas boas,tento fazer o que as pessoas boas fazem”,disse-me. “Mas é muito difícil. Isso não fluide mim naturalmente.”

Na Califórnia, ele começou a atribuir aDeus todo o mérito por sua fuga do Campo14 e pela sorte que teve ao encontrar umamaneira de sair da Coreia do Norte e da Ch-ina. Sua fé cristã emergente, porém, não seaplicava ao passado. Ele só ouviu falar deDeus quando era tarde demais para sua mãe,seu irmão e Park. Duvidava também que

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Deus tivesse protegido seu pai da vingançados guardas.

Da mesma forma, o sentimento de culpanão lhe ocorrera dentro do Campo 14.Quando adolescente, sentia-se furioso com amãe por surrá-lo, por tentar fugir, por causarsua tortura. Não se afligiu quando ela foi en-forcada. Mas como um sobrevivente adulto,à medida que aumenta sua distância emo-cional do campo, sua fúria dá lugar à culpa eao ódio de si mesmo. “Essas são emoçõesque começaram a brotar de dentro de mimpouco a pouco”, declarou ele. Tendo visto emprimeira mão como famílias afetuosas secomportam, Shin não é capaz de suportar alembrança do tipo de filho que foi outrora.

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Shin viera para Torrance com a compreensãode que ajudaria a LiNK trabalhando com

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seus voluntários e falando ocasionalmenteem seus eventos. Em troca, receberia mora-dia gratuita e uma ajuda de custo, mas nen-hum salário.

Com a ajuda da LiNK, obteve um vistoválido por dez anos para múltiplas entradas,podendo ficar no país até seis meses por vez.

A lei de imigração norte-americana dis-pensa especial consideração a refugiadosnorte-coreanos, e o status singular de Shincomo vítima nascida e criada num campopara prisioneiros políticos lhe daria uma ex-celente chance de obter residência perman-ente no país. Mas ele não solicitou um greencard. Não conseguia decidir onde queriaviver.

Tinha dificuldade em se comprometercom o que quer que fosse. Matriculou-senum curso de língua inglesa em Torrance,mas abandonou-o três meses depois. Passavaa maior parte de seu tempo no escritório daLiNK, onde lia na web notícias sobre a Coreia

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do Norte e conversava com as pessoas daequipe que falavam coreano. Por vezes ficavacontente em limpar o chão, pôr caixas em or-dem e carregar móveis. Disse a HannahSong, a diretora executiva, que não deveriaser tratado de maneira diferente de qualqueroutro integrante da equipe. Mas tambémficava amuado quando algumas tarefas lheeram designadas e sucumbia a ataques deraiva. A cada seis meses, seu trabalho era in-terrompido quando viajava de volta à Coreiado Sul, onde passava várias semanas emcada ocasião.

A LiNK estimula os norte-coreanos queajuda a trazer para os Estados Unidos afazerem um “plano de vida” logo quechegam. É uma lista de metas práticas e real-izáveis que podem auxiliar um recém-chegado a construir uma vida estável eprodutiva; em geral ela inclui fluência eminglês, treinamento para o trabalho e aulassobre administração de dinheiro.

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Shin recusou-se a fazer um plano de vida,e Song declarou que ela e os outros na LiNKnão lhe cobraram isso.

“Sua história é tão forte”, disse Song. “Elese sentia no direito de ser uma exceção, e nóspermitimos. Ele apenas perambulava porTorrance. Sente necessidade de compreenderpor que sobreviveu àquele campo. Creio queainda não encontrou a resposta.”

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Fora de sua terra natal, não existe lugar mel-hor para um coreano perambular sem apren-der outra língua do que a grande LosAngeles. Mais de trezentos mil coreano-americanos instalaram-se na cidade e emsuas imediações.

Em Torrance e redondezas, Shin podiacomer, fazer compras, trabalhar e participarde cultos religiosos falando apenas coreano.

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Ele aprendeu inglês suficiente para pedirhambúrgueres e comida mexicana e paraconversar sobre beisebol e o tempo com seuscompanheiros de casa.

Dormia num beliche na casa de quatroquartos em estilo rancho fornecida pelaLiNK, onde até 16 jovens estagiários e volun-tários, todos com idade para cursar a fac-uldade, entravam e saíam. Na cozinha, nodia em que a visitei, um aviso pregado nalava-louça dizia: “Favor não abrir. Estouquebrada e com mau cheiro.” Os móveiseram gastos, o tapete desbotado, e a largavaranda da frente estava coberta de tênis,sandálias e chinelos de dedo. Shin compartil-hava um quarto pequeno e entulhado comtrês voluntários da LiNK.

A camaradagem quase caótica, própriados dormitórios, lhe convinha. Embora seuscompanheiros de moradia nascidos nos Esta-dos Unidos fossem por vezes barulhentos,falassem pouco coreano e nunca parassem

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em casa, ele preferia sua vigorosa transitor-iedade a morar sozinho. Era um efeito re-manescente da vida que conhecera noCampo 14. Dormia melhor e apreciava maisa comida quando estava cercado por pessoas,mesmo desconhecidas. Quando se esforçavapara adormecer na casa coletiva ou quandopesadelos o despertavam, arrastava-se parafora de seu beliche e dormia como no campo— no chão nu com um cobertor.

Ia de bicicleta para o trabalho. É umaviagem fácil de vinte minutos por Torrance,um lugar ensolarado, suburbano-industrial euma mixórdia multicultural. Localizadotrinta quilômetros a sudoeste do centro deLos Angeles há um belo trecho de praia nabaía de Santa Monica, onde Shin às vezes iafazer caminhadas. As largas avenidas de Tor-rance foram traçadas um século atrás porFrederick Law Olmsted Jr., que ajudou aprojetar o Mall, em Washington. A fachadano estilo mediterranean revival da Torrance

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High School foi o pano de fundo para asséries de TV Barrados no Baile e Buffy, aCaça-Vampiros. Torrance tem também umarefinaria da ExxonMobil que produz grandeparte da gasolina consumida no Sul da Cali-fórnia. Antes de morar na casa coletiva, Shinpassou um bom tempo de seu primeiro anoem Torrance num velho e apinhado aparta-mento de três quartos num condomínio comárea verde que a LiNK alugava perto de vast-as instalações de armazenagem de petróleochamadas ConocoPhillips/Torrance TankFarm.

A LiNK transferiu-se de Washington,D.C., para Torrance em busca de aluguéismais baratos, com o objetivo de criar um mo-vimento de base. Considerava o Sul da Cali-fórnia um lugar melhor para recrutar e ab-rigar os jovens voluntários, em sua maioriacoreano-americanos, a quem chamam de“nômades”. Eles são preparados em Tor-rance para viajar pelos Estados Unidos, fazer

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apresentações e aumentar a consciênciasobre as violações dos direitos humanos naCoreia do Norte.

No final do segundo verão de Shin naCalifórnia, um desses “nômades” recém-chegados para treinamento era Harim Lee,uma jovem esbelta e muito atraente que nas-ceu em Seul e se mudou para os Estados Un-idos com a família quando tinha quatro anos.

Ela frequentou a escola secundária nossubúrbios de Seattle e estava no segundo anodo curso de sociologia da Universidade deWashington quando viu Shin pela primeiravez, num vídeo do YouTube. Ele falava numauditório em Mountain View, Califórnia, re-spondendo a perguntas sobre sua vida feitaspor funcionários do Google. Ela também en-controu a matéria que escrevi para o Wash-ington Post, na qual ele dizia que gostaria deter uma namorada, mas não sabia como en-contrar uma.

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Harim, que é bilíngue, havia viajado devolta para a Coreia do Sul para trabalharbrevemente como tradutora em uma ONGque tinha por foco a Coreia do Norte. Depoisde cursar o terceiro ano da faculdade, ela de-cidiu abandonar os estudos e dedicar-se emtempo integral à questão da Coreia do Norte.Soube do programa Nômades da LiNK pelainternet. Não se deu conta de que Shin es-tava morando em Torrance até duas semanasantes de sair de Seattle para começar a tra-balhar na LiNK. No voo para Los Angeles,não conseguia parar de pensar em Shin. Via-o como uma celebridade e rezou no aviãopara que pudessem se aproximar. Em Tor-rance, logo o avistou indo para o escritórioda LiNK em sua bicicleta e tratou de encon-trar uma hora e lugar em que pudessem con-versar. Gostaram um do outro imediata-mente. Ele estava com 27 anos; ela, 22.

A LiNK tem uma norma severa queproíbe namoros entre refugiados norte-

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coreanos e estagiários, muitos dos quais têmentre 18 e 22 anos e estão longe dos pais. Aregra destina-se a proteger tanto os esta-giários quanto os refugiados e facilitar os de-safios da administração do programaNômades.

Shin e Harim ignoraram a regra. Quandoforam avisados de que deveriam parar de seencontrar até que ela terminasse o estágio,ambos ficaram zangados. Harim ameaçouabandonar o programa. “Fizemos muitobarulho para mostrar que a norma nos pare-cia errada”, disse-me ela.

Shin encarou o aviso como um insultopessoal. Queixou-se do uso de dois pesos eduas medidas, de que faziam dele uma pess-oa de segunda classe, e argumentou que seuconfidente Andy Kim estava namorando umaestagiária. “Foi porque esperavam muitopouco de mim”, disse-me ele. “Pensavam quepodiam regular minha vida pessoal.”

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Depois de uma viagem à Coreia do Sul ede remoer o assunto durante vários meses,Shin deixou a LiNK. Seu relacionamentocom Harim não foi a única razão por trás dorompimento. Hannah Song sentia-se frus-trada porque Shin por vezes se furtava à re-sponsabilidade, esperava tratamento espe-cial e fazia pouco esforço para aprenderinglês, o que limitava sua utilidade comoporta-voz nos Estados Unidos. Houve tam-bém um problema de comunicação em re-lação à moradia. Tal como Shin ouviu ascoisas, a LiNK não lhe forneceria mais umamoradia. Segundo Song, o que ela lhe dissefoi que, em algum momento, ele teria de en-contrar seu próprio lugar para morar.

A tensão era provavelmente inevitável. Epor certo não era incomum. Na Coreia doSul, desertores norte-coreanos volta e meiadeixavam seus empregos, afirmando ser alvode perseguições. Em Hanawon, o centro dereadaptação, orientadores vocacionais dizem

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que paranoias associadas ao local de tra-balho, demissões tempestuosas e sentimen-tos persistentes de traição são problemascrônicos enquanto norte-coreanos seajustam a suas novas vidas. Muitos delesnunca conseguem caminhar com os própriospés.

Nos Estados Unidos, o padrão é semel-hante. Cliff Lee, um americano nascido naCoreia que vive em Alexandria, Virginia,forneceu moradia para vários norte-coreanosnos últimos anos e percebeu um padrão emseus problemas de ajustamento: “Eles sabemque tudo que lhes foi dito na Coreia do Norteera mentira e, nos Estados Unidos, têmmuita dificuldade em acreditar em qualquercoisa que uma organização diga.”

Song ficou desolada quando Shin decidiuafastar-se. Culpou-se por não ter exigido queele se responsabilizasse por si mesmo assimque chegou à Califórnia. Sua principal

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preocupação, declarou ela, é não saber o queShin planeja fazer pelo resto de sua vida.

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EPÍLOGOSEM SAÍDA

Em fevereiro de 2011, dias após romper coma LiNK, Shin viajou da Costa Oeste para o

estado de Washington. Foi morar com Har-im e seus pais em Sammamish, um subúrbiode Seattle nos contrafortes a oeste dasmontanhas Cascade.

Sua mudança súbita me surpreendeu.Temi também, como seus amigos em LosAngeles, que ele estivesse sendo impulsivo equeimando pontes sem bons motivos. Con-tudo, sua mudança, sem dúvida, simplificoua logística necessária para nossos encontros.

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Por acaso, sou do estado de Washington. De-pois de deixar Tóquio e o Washington Post,mudei-me de novo para Seattle para trabal-har neste livro. Quando Shin telefonou paraminha casa e me contou num inglês estropi-ado que se tornara meu vizinho, convidei-opara tomar um chá comigo.

Nosso trabalho juntos estava quase ter-minado, e Shin cumprira sua palavra. Per-mitira que eu tivesse acesso aos confins maissombrios de seu passado. Mas eu precisavade um pouco mais: precisava de uma com-preensão melhor do que ele desejava para ofuturo. Quando ele se sentou com Harim nosofá de minha sala de estar, perguntei se po-deria visitar a casa deles. Eu queria conheceros pais de Harim.

Shin e Harim eram gentis demais pararecusar. Em vez disso, disseram que a casaestava muito desarrumada. Teriam de en-contrar um momento oportuno. Voltariam afalar comigo sobre isso. Sem o dizer,

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deixaram claro que prefeririam que nossaslongas entrevistas terminassem — e logo.

Ele e Harim haviam formado uma ONGde duas pessoas chamada North Korea Free-dom Plexus. Para financiá-la, esperavam le-vantar dinheiro de donativos, e ele pretendiadar muitas palestras. Tinham a meta ambi-ciosa de fundar abrigos para desertores queatravessassem a fronteira com a China e deintroduzir panfletos antirregime na Coreiado Norte. Com esse objetivo, Shin disse terviajado duas vezes para áreas de fronteira naChina, com a intenção de voltar a fazê-lo.Quando lhe perguntei se não tinha medo deser raptado ou preso na China, onde se sabiaque agentes coreanos caçavam e se-questravam desertores, respondeu quegozava da proteção de um passaporte sul-coreano e era sempre cuidadoso. Mas essaresposta não satisfazia seus amigos, que oaconselhavam a se manter fora da China.

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Lowell e Lynda Dye — o casal de Colum-bus que lera minha primeira matéria sobreShin em 2008 e ajudara a pagar sua viagemaos Estados Unidos — ficaram decepcion-ados e preocupados ao saber que ele haviadeixado a LiNK e se mudado para Seattle. OsDye e a família Kim, em Riverside, Califór-nia, disseram a Shin que criar uma novaONG era uma ideia arriscada e que ele seriamais eficaz se trabalhasse com uma organiz-ação já estabelecida e bem financiada.

Shin tornou-se muito próximo dos Dye.Chama-os de “pais” e leva suas preocupaçõesa sério. Depois de se mudar para Seattle,aceitou um convite para viajar a Columbus epassar algumas semanas com eles. Harimficou em casa.

Os Dye queriam ajudar Shin a fazer umplano para cuidar de seu futuro. Lowell, con-sultor administrativo, acredita que ele pre-cisa de um agente, um administrador fin-anceiro e um advogado. Mas, em Columbus,

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Lowell não pôde ter um conversa séria comShin, em parte porque o rapaz se manteve nohorário de Seattle, dormindo até tarde demanhã e ficando acordado à noite para con-versar com Harim pelo Skype.

“Ele nos disse que realmente ama Har-im”, contou Lowell. “É por esse caminho queestá seguindo. Ela o faz feliz.”

Quando Shin voltou para Seattle,encontrei-me de novo com ele e Harim. Suacasa continuava desarrumada demais paraque eu a visitasse, disseram-me, e assimtomamos um café em um Starbucks. Quandoperguntei como andava a relação dos dois,Harim corou, sorriu e olhou amorosamentepara Shin.

Ele não sorriu.Não queria falar sobre isso.Insisti, lembrando-o de que me dissera

muitas vezes que não se considerava capazde amar, e por certo não de se casar. Haviamudado de ideia?

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“Acima de tudo, temos de trabalhar”,disse ele. “Mas, depois que o trabalho estáfeito, há esperança de progresso.”

O relacionamento não deu certo. Seismeses depois de se mudar para morar comHarim em Seattle, Shin telefonou-me paradizer que os dois estavam se separando. Nãoquis dizer a razão. No dia seguinte, ele pegouum avião para Ohio e foi morar com afamília Dye. Não sabia ao certo para ondeiria depois, talvez voltasse para a Coreia doSul.

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Quando Shin ainda estava na área de Seattle,convidou-me para ir a uma igreja pentecostalcoreano-americana nos subúrbios ao norteda cidade. Daria uma palestra e parecia espe-cialmente desejoso de que eu fosse ouvi-lo.Quando cheguei à igreja alguns minutos

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antes da hora, numa noite de domingo fria echuvosa, Shin estava a minha espera. Aper-tou minha mão entre as suas, olhou-me nosolhos e disse-me para sentar num dos bancosda frente. Eu não me lembrava de tê-lo vistovestido de maneira mais formal: terno cinza,camisa azul de colarinho aberto e mocassinspretos bem engraxados. A igreja estavacheia.

Após um hino e uma oração feita pelopastor, Shin andou até a frente da igreja e as-sumiu o comando da noite. Sem anotações,sem um só indício de nervosismo, falou semparar durante uma hora. Começou aguilho-ando sua plateia de imigrantes coreanos eseus filhos adultos criados nos Estados Un-idos, com a afirmação de que Kim Jong Il erapior do que Hitler. Enquanto Hitler atacavaseus inimigos, disse, Kim obrigava seupróprio povo a morrer de tanto trabalhar emlugares como o Campo 14.

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Tendo arrebatado a atenção da con-gregação, Shin apresentou-se então comoum predador que havia sido criado no campopara delatar familiares e amigos — e não sen-tir nenhum remorso.

— Meu único pensamento era que eutinha de tirar vantagem dos outros para asse-gurar minha sobrevivência — falou.

No campo, quando seu professor matouuma colega de classe de seis anos a pancadaspor ter cinco grãos de milho no bolso, con-fessou ele à congregação, “isso não me pare-ceu nada demais”.

— Eu não sabia o que eram compaixão outristeza — disse. — Eles nos educavam desdeo nascimento para que não fôssemos capazesde emoções humanas normais. Agora que saíde lá, estou aprendendo a me emocionar.Aprendi a chorar. Tenho a impressão de queestou me tornando humano.

Mas ele deixou claro que ainda tinha umlongo caminho a percorrer.

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— Fugi fisicamente — disse —, não fugipsicologicamente.

Perto do fim de sua fala, descreveu comohavia se arrastado sobre o corpo em com-bustão de Park. Seus motivos ao fugir doCampo 14, declarou, não eram nobres. Nãoestava sequioso de liberdade ou de direitospolíticos. Estava simplesmente faminto decarne.

O discurso de Shin assombrou-me. Com-parado ao orador acanhado e incoerente queeu vira seis meses antes no Sul da Califórnia,ele estava irreconhecível. Tirara partido doódio que sentia por si mesmo, utilizando-opara indiciar o Estado que envenenara seucoração e matara sua família.

Sua confissão, eu soube mais tarde, haviasido o resultado calculado de um árduo tra-balho. Ele havia percebido que suas descon-exas sessões de perguntas e respostas faziamas pessoas dormirem. Decidiu então pôr emprática um conselho a que vinha resistindo

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havia anos: esquematizou sua fala, ajustou-aà sua audiência e decorou o que queria dizer.Sozinho numa sala, aperfeiçoou seupronunciamento.

A preparação compensou. Naquela noite,seus ouvintes contorceram-se em seus ban-cos, os semblantes revelando desconforto,asco, raiva e choque. Alguns rostos ficarammanchados de lágrimas. Quando ele termin-ou, quando disse à congregação que umhomem, caso se recuse a ser silenciado, podeajudar a libertar as dezenas de milhares quecontinuam nos campos de trabalhos forçadosda Coreia do Norte, a igreja irrompeu emaplausos.

Com aquele discurso, mesmo sem terconseguido ainda tomar as rédeas de suavida, Shin havia assumido o controle de seupassado.

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A adaptação de Shin (na foto em Seattle,em 2011) à vida fora do Campo 14 tem

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sido vacilante. “Estou evoluindo, deixan-do de ser um animal”, diz ele. “Às vezestento rir e chorar como as outras pess-oas, só para ver se sinto alguma coisa.”

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encontradas no relatório periodica-mente atualizado de Hawk, “The Hid-den Gulag: Exposing North Korea’sPrison Camps”, publicado pelaprimeira vez em 2003.4 Associação Coreana dos Advogados,“White Paper on Human Rights inNorth Korea 2008” (Seul: Korea Insti-tute for National Unification, 2008).5 As jornalistas da televisão americanaLaura Ling e Euna Lee passaram quasecinco meses em prisões na Coreia doNorte após entrar ilegalmente no paísem 2009. Foram libertadas depois queo ex-presidente Bill Clinton viajou aPyongyang e posou para uma fotografiaao lado de Kim Jong Il.6 Hyun-sik Kim e Kwang-ju Son, Docu-mentary Kim Jong Il (Seul, Chonji Me-dia, 1997), p. 202, citado in RalphHassig e Kongdan Oh, The Hidden

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People of North Korea (Lanham, Md.:Rowman & Littlefield, 2009), p. 27.

CAPÍTULO 1: O MENINO QUE COMIA O ALMOÇO

DA MÃE

1 Entrevista do autor com Chun Jung-hee, enfermeira-chefe no centro dereadaptação Hanawon na Coreia doSul. O centro financiado pelo governomede e pesa desertores norte-coreanosdesde 1999.

CAPÍTULO 3: A CLASSE SUPERIOR

1 Entrevistas do autor com desertoresentre 2007 e 2010. Há também umaboa descrição do sistema em AndreiLankov, North of the DMZ (Jefferson,N.C.: McFarland & Company, 2007), p.67-69; e em Hassig e Oh, op. cit.,p. 198-99.

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2 Detalhes sobre o estilo de vida deKim Jong Il estão reunidos em Hassig eOh, p. 27-35. Ver também fotografiasdo Google Earth compiladas por CurtisMelvin, em seu blog, North KoreanEconomy Watch, http://www.nkecon-watch.com/2011/06/10/friday-fun-kim-jong-ils-train/.3 Andrew Higgins, “Who Will SucceedKim Jong Il”, Washington Post (16 dejulho de 2009), A1.

CAPÍTULO 9: FILHO DA PUTA REACIONÁRIO

1 Kang e Rigoulot, op. cit., p. 100.2 Kim Yong, Long Road Home (NovaYork: Columbia University Press,2009), p. 85.

CAPÍTULO 10: OPERÁRIO

1 Andrea Matles Savada (org.), NorthKorea: A Country Study (Washington,

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D.C.: GPO for the Library of Congress,1993).2 Yuk-Sa Li (org.), Juche! The Speechesand Writings of Kim Il Sung (NovaYork: Grossman Publishers, 1972), p.157. Citado no Stanford Journal ofEast Asian Affairs 1, no 1 (primavera de2003), p. 105.

CAPÍTULO 11: UM COCHILO NA FAZENDA

1 Stephan Haggard e Marcus Noland,Famine in North Korea (Nova York:Columbia University Press, 2007), p.175.2 Wonhyuk Lim, “North Korea’s Eco-nomic Futures” (Washington, D.C.:Brookings Institution, 2005).

CAPÍTULO 13: A DECISÃO DE NÃO DELATAR

1 Elmer Luchterhand, “Prisoner Beha-vior and Social System in the Nazi

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Camp”,International Journal of Psychi-atry 13 (1967), p. 245-64.2 Eugene Weinstock, Beyond the LastPath (Nova York: Boni and Gaer,1947), p. 74.3 Ernest Schable, “A Tragedy Revealed:Heroines’ Last Days”, Life (18 deagosto de 1958), p. 78-144. Citado porShamai Davidson in “Human Recipro-city Among the Jewish Prisoners in theNazi Concentration Camps”, The NaziConcentration Camps (Jerusalém: YadVashem, 1984), p. 555-72.4 Terrence Des Pres, The Survivor: AnAnatomy of Life in the Death Camps(Nova York: Oxford University Press,1976), p. 142.

CAPÍTULO 14: A FUGA É PREPARADA

1 Yong, op. cit., p. 106.2 Park era excessivamente otimista. AsNações Unidas, que nomearam um

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relator especial para direitos humanosnorte-coreanos em 2004, não semostraram capazes de exercer nen-huma influência sobre o governo emPyongyang. Não tiveram tampoucomuito sucesso em elevar a consciênciainternacional sobre os campos. A Cor-eia do Norte recusou-se de maneiraterminante a permitir a entrada no paísdo representante da ONU para assun-tos de direitos humanos e condenouseus relatórios anuais como complôspara derrubar o governo. Esses re-latórios estão entre as análises maisfirmemente críticas — e incisivamenteescritas — sobre a crise dos direitos hu-manos no Norte. Em 2009, quando ter-minou seu exercício de seis anos comorelator, Vitit Muntarbhorn declarou: “Aexploração das pessoas comuns [...]tornou-se a perniciosa prerrogativa daelite dominante.” E acrescentou: “A

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situação dos direitos humanos no paíscontinua execrável em razão danatureza repressiva da base do poder:ao mesmo tempo enclausurada, con-trolada e insensível.”

CAPÍTULO 16: FURTOS

1 Yoonok Chang, Stephan Haggard eMarcus Noland, “Migration Experi-ences of North Korean Refugees: Sur-vey Evidence from China”(Washington, D.C.: Peterson Institute,2008), p. 1.

CAPÍTULO 17: RUMO AO NORTE

1 Lankov, op. cit.2 Ver Daily NK, 25 de outubro de2010, para uma descrição detalhada dosistema servi-cha e outra tentativa dogoverno de acabar com ele.

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http://www.dailynk.com/english/read.php?cataId=nk01500&num=6941.3 Andrew S. Natsios, The Great NorthKorean Famine (Washington, D.C.:United States Institute for Peace Press,2001), p. 218.4 Charles Robert Jenkins, The Reluct-ant Communist (Berkeley: Universityof California Press, 2008) p. 129.5 Barbara Demick, Nothing to Envy(Nova York: Spiegel & Grau, 2009),p. 159-72.

CAPÍTULO 18: A FRONTEIRA

1 Human Rights Watch, “HarsherPolicies Against Border-Crossers”(março de 2007).2 Lankov, op. cit., no final do capítulo“Gullible Travels”.3 Entrevista do autor em Seul com fun-cionários da Good Friends, uma organ-ização budista sem fins lucrativos com

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informantes baseados dentro da Coreiado Norte.

CAPÍTULO 19: CHINA

1 Chang et al., op. cit., p. 9.2 Demick, op. cit., p. 163.3 Rimjin-gang: News from InsideNorth Korea, organizado por Jiro Ishi-maru (Osaka: AsiaPress International,2010), p. 11-15.4 United Nations International Coven-ant on Civil and Political Rights, Artigo12 (2), http://www2.ohchr.org/eng-lish/law/ccpr.htm.

CAPÍTULO 20: ASILO

1 Lee Gwang Baek, “Impact of RadioBroadcasts in North Korea”, discursona International Conference on HumanRights, 1º de novembro de

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2010,http://nknet.org/eng/board/jbbs_view.2 Peter M. Beck, “North Korea’s RadioWaves of Resistance”,Wall StreetJournal (16 de abril de 2010).

CAPÍTULO 21: K'UREDIT K'ADUS

1 Choe Sang-hun, “Born and Raised ina North Korean Gulag”,InternationalHerald Tribune (9 de julho de 2007).2 Blaine Harden, “North Korean PrisonCamp Escapee Tells of Horrors”,Washington Post (11 de dezembro de2008), p. 1. http://www.washington-post.com/wp-dyn/content/article/2008/12/10/AR2008121003855.html.

CAPÍTULO 22: OS SUL-COREANOS NÃO ESTÃO

INTERESSADOS

1 Suh Jae-jean, “North Korean Defect-ors: Their Adaptation and

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Resettlement”, East Asian Review 14,no 3 (outono de 2002), p. 77.2 Donald Kirk, “North Korean DefectorSpeaks Out”, Christian Science Monit-or (6 de novembro de 2007).3 George W. Bush, Decision Points(Nova York: Crown, 2010), p. 422.4 Associação Coreana dos Advogados,op. cit., p. 40.5 Moon Ihlwan, “North Korea’s GDPGrowth Better Than South Korea’s”,Bloomberg Businessweek (30 de junhode 2009).

CAPÍTULO 23: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

1 Judith Herman, Trauma and Recov-ery (Nova York: Basic Books, 1997),p. 94-95.

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APÊNDICESAS DEZ LEISDO CAMPO 14

(Shin foi obrigado a memorizar estas regrasna escola do campo, e frequentemente osguardas mandavam que as recitasse.)

1. Não tente fugir.Qualquer pessoa pega fugindo será fuz-ilada imediatamente.Qualquer testemunha de uma tentativade fuga que não a denuncie será fuzil-ada imediatamente.

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Qualquer testemunha de uma tentativade fuga deve notificar prontamente umguarda.É proibida a reunião de duas ou maispessoas para conspirar ou tentar fugir.

2. É proibida a reunião de mais dedois prisioneiros.

Qualquer pessoa que deixe de obterpermissão de um guarda para uma re-união de mais de dois prisioneiros seráfuzilada imediatamente.Aqueles que invadirem a aldeia dosguardas ou danificarem a propriedadepública serão fuzilados imediatamente.Nenhuma reunião pode exceder onúmero de prisioneiros permitido peloguarda encarregado.Com exceção do trabalho, nenhumgrupo de prisioneiros pode reunir-sesem permissão.

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À noite, três ou mais prisioneiros nãopodem deslocar-se em grupos sem apermissão do guarda encarregado.

3. Não furte.Qualquer pessoa encontrada furtandoou de posse de armas será fuziladaimediatamente.Qualquer pessoa que não informe ouque ajude alguém que tenha roubadoou que esteja na posse de armas seráfuzilada imediatamente.Qualquer pessoa que furte ou escondaqualquer alimento será fuziladaimediatamente.Qualquer pessoa que estrague depropósito qualquer material usado nocampo será fuzilada imediatamente.

4. Os guardas devem ser obedecidosde maneira incondicional.

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Qualquer pessoa que hostilize ou ag-rida um guarda será fuziladaimediatamente.Qualquer pessoa que deixe de demon-strar total submissão às instruções deum guarda será fuziladaimediatamente.Não deve haver nenhuma resposta in-solente ou queixa para um guarda.Ao encontrar um guarda, deve-se in-clinar a cabeça em sinal de respeito.

5. Qualquer pessoa que veja um fu-gitivo ou indivíduo suspeito devedenunciá-lo prontamente.

Qualquer pessoa que forneça coberturapara um fugitivo ou o proteja será fuzil-ada imediatamente.Qualquer pessoa que guarde ouesconda os bens de um fugitivo, con-spire com ele ou deixe de denunciá-loserá fuzilada imediatamente.

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6. Os prisioneiros devem se vigiaruns aos outros e denunciar imediata-mente qualquer comportamentosuspeito.

Todo prisioneiro deve observar os out-ros e permanecer vigilante.A fala e a conduta dos outros devem seratentamente observadas. Se algumacoisa despertar suspeita, um guardadeve ser notificado imediatamente.Os prisioneiros devem comparecerfielmente às reuniões de luta ideológicae devem censurar os outros e a si mes-mos com veemência.

7. Os prisioneiros devem mais do quecumprir a tarefa que lhes é designadacada dia.

Prisioneiros que negligenciem sua cotade trabalho ou deixem de cumpri-laserão considerados descontentes e fuz-ilados imediatamente.

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Cada prisioneiro deve ser o único re-sponsável por sua cota de trabalho.Cumprir a própria cota de trabalho élavar os próprios pecados, assim comorecompensar o Estado pelo perdão quemanifestou.A cota de trabalho designada por umguarda não pode ser modificada.

8. Fora do local de trabalho, não devehaver nenhuma convivência entre ossexos por razões pessoais.

Caso ocorra contato físico sexual semprévia aprovação, os perpetradores ser-ão fuzilados imediatamente.Fora do local de trabalho, não devehaver conversas entre os sexos semprévia aprovação.É proibido visitar banheiros designa-dos para membros do outro sexo semprévia aprovação.

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Sem motivo especial, membros desexos opostos não podem circular demãos dadas ou dormir lado a lado.Sem prévia aprovação, prisioneiros nãopodem visitar os alojamentos de pessoado sexo oposto.

9. Os prisioneiros devem se arre-pender sinceramente de seus erros.

Qualquer pessoa que não reconheçaseus pecados e os negue ou mantenhauma opinião desviante sobre eles seráfuzilada imediatamente.O prisioneiro deve refletir profunda-mente sobre os pecados que cometeucontra seu país e a sociedade eesforçar-se para purificar-se deles.Só após ter reconhecido seus pecados erefletido profundamente sobre eles umprisioneiro pode recomeçar.

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10. Prisioneiros que violam as leis eregulamentos do campo serão fuzila-dos imediatamente.

Todos os prisioneiros devem consider-ar os guardas como seus verdadeirosmestres e, obedecendo às dez leis e reg-ulamentos do campo, entregar-se at-ravés da labuta e da disciplina à puri-ficação de seus erros passados.

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A VIDA NO CAMPO 14EM DESENHOS DE SHIN

Cortesia do Database Center for North Korean HumanRights, que publicou o livro de memórias de Shin, Fugapara o Mundo Exterior.

Os professores da escola de Shin, no Campo14, eram guardas uniformizados. Sempreportavam uma pistola, e Shin viu quando um

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deles surrou até a morte uma colega de seisanos de idade, golpeando-a com uma varausada para apontar para o quadro-negro.

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As crianças dos campos viviam em busca de al-imentos, comendo ratos, insetos e grãos demilho não digeridos encontrados no estrumede vaca.

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Shin viu a mãe ser enforcada e o irmão, fuzil-ado, por terem planejado uma fuga. Shin nãodisse nada a ninguém durante quinze anos,mas sabia que era o responsável pelasexecuções.

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Antes que a mãe e o irmão fossem mortos, Sh-in foi detido durante sete meses em umaprisão subterrânea secreta, no interior doCampo 14. Tinha 13 anos de idade.

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Na prisão subterrânea, os guardas torturaramShin sobre uma fogueira, procurandodescobrir seu papel na fuga planejada pelamãe e pelo irmão. Para impedi-lo de se contor-cer e se desviar das chamas, eles furaram suabarriga com um gancho de aço.

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Como punição por ter deixado cair uma má-quina de costura enquanto trabalhava nafábrica de roupas do campo, os guardasusaram uma faca para cortar o dedo médiodireito de Shin, na altura da primeira falange.

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AGRADECIMENTOS

Este livro, é claro, não poderia ter sido es-crito sem a coragem, a inteligência e a pa-ciência de Shin Dong-hyuk. Durante doisanos e em dois continentes, ele dedicoutempo a contar sua história em todos os hor-ríveis detalhes e suportou a dor que isso lheocasionava.

Quero também agradecer a LisaColacurcio, membro do conselho do U.S.Committee for Human Rights in NorthKorea, que primeiro me falou sobre Shin.Kenneth Cukier, correspondente doEconomist, disse-me que a história de Shinprecisava de um livro e ofereceu sugestõesúteis sobre como escrevê-la.

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Como não falo coreano, dependi de intér-pretes. Gostaria de agradecer a Stella Kim eJennifer Cho em Seul. Também em Seul,Yoonjung Seo ajudou com a apuração de in-formações, assim como Brian Lee. EmTóquio, Akiko Yamamoto ajudou com aapuração e a logística. No Sul da Califórnia,David Kim foi um intérprete de grande com-petência e amigo de Shin e meu. Ele tambémforneceu bons conselhos.

Na Liberty in North Korean (LiNK) emTorrance, Hannah Song e Andy Kimajudaram-me a compreender a adaptação deShin aos Estados Unidos. Além disso, Songpassou muitas horas resolvendo problemaslogísticos para Shin e para mim. Em Seattle,Harim Lee também foi prestativa. EmColumbus, Ohio, Lowell e Linda Dye, queajudaram Shin e a quem ele considera comopais, ofereceram perspectiva e conselhos.

Pela orientação em minha tentativa decompreender o que se passa dentro da

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Coreia do Norte, agradeço a Marcus Noland,diretor adjunto e membro sênior do PetersonInstitute for International Economics emWashington. Ele cedeu generosamente seutempo e conhecimento especializado. Suapesquisa sobre a Coreia do Norte comStephan Haggard foi um recurso fundament-al. As conversas com Kongdan Oh, pesquis-adora da equipe do Institute for DefenseAnalyses em Alexandria, Virginia, ajudaram-me a compreender o que ouvi de Shin e deoutros norte-coreanos. Os livros que ela es-creveu com seu marido, Ralph Hassig, umestudioso da Coreia do Norte, foram tambéminestimáveis. Em Seul, Andrei Lankov, queleciona estudos norte-coreanos na Univer-sidade Kookmin, esteve sempre disposto acompartilhar seu conhecimento.

Dois blogueiros incansáveis, JoshuaStanton da One Free Korea e Curtis Melvinda North Korean Economy Watch,forneceram-me informações úteis e

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constantemente atualizadas e análises sobreeconomia, liderança e questões militares epolíticas na Coreia do Norte. Além disso, oexcelente livro de Barbara Demick Nothingto Envy foi decisivo para minha com-preensão do pensamento de norte-coreanoscomuns.

Quero agradecer em especial ao DatabaseCenter for North Korean Human Rights,baseado em Seul. Ele publicou as memóriasde Shin em coreano e o estimulou gener-osamente a cooperar comigo. Também o“White Paper on Human Rights in NorthKorea 2008” da Associação Coreana dos Ad-vogados foi um recurso valioso.

David Hawk, autor de “The Hidden Gu-lag: Exposing North Korea’s Prison Camps” etalvez o indivíduo mais importante no tra-balho de alertar os que estão do lado de forapara a existência e a operação dos campos,compartilhou comigo seu conhecimento es-pecializado e sua pesquisa. Suzanne Scholte,

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que conduziu campanhas no mundo todo emprol dos direitos humanos na Coreia doNorte, também merece meus agradecimen-tos. Em Seattle, Blaise Aguera y Arcas deusagazes sugestões sobre a narrativa, e SamHowe Verhovek deu conselhos sobre o tra-balho de apuração.

Meu agente, Raphael Sagalyn, realizouum trabalho magistral tornando este livropossível. Na Viking, a editora Kathryn Courtabraçou este projeto e ofereceu conselhosque melhoraram significativamente omanuscrito, assim como Tara Singh, assist-ente de Kathryn.

David Hoffman, editor de assuntos es-trangeiros do Washington Post, me envioupara a Ásia e me disse para investigar afundo a Coreia do Norte. Quando hesitei, eleinsistiu. Quando me esforcei, foi encora-jador. Doug Jehl e Kevin Sullivan, editoresdo Post, foram também exigentes e solidári-os. Donald G. Graham, o presidente da

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Washington Post Company, dedicava umasurpreendente atenção à Coreia do Norte esempre me fez saber quando eu conseguiaescrever alguma coisa interessante sobre ela.

Por fim, minha mulher, Jessica Kowal,desempenhou um importante papel nafeitura deste livro. Além de lê-lo e corrigi-lo,ela me convenceu de que contar a história deShin era a melhor coisa que eu poderia fazer.Meus filhos, Lucinda e Arno, fizeram muitasperguntas boas sobre a vida de Shin. Elesnão eram capazes de compreender acrueldade da Coreia do Norte, mas reconhe-ceram Shin como uma pessoa extraordinária.É o mesmo que sinto.

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SOBRE O AUTOR

BLAINE HARDEN (na foto com Shin Dong-hy-uk) é repórter do programa Frontline, da PBS,e colaborador da revista The Economist.Reside em Seattle, depois de uma temporada

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como chefe da sucursal do jornal The Washing-ton Post em Tóquio. É autor dos livros Africa:Dispatches from a Fragile Continent e A RiverLost: The Life and Death of the Columbia.

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