frankenstein meus sonhos tornaram-se imediatamente mais fan-tásticos e agradáveis do que os meus...

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Mary Shelley Frankenstein Tradução de João Costa

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Mary Shelley

FrankensteinTradução de

João Costa

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Os editores das Standard Novels, quando seleccionaramFrankenstein para uma das suas colecções, expressaram odesejo de que lhes fornecesse um relato das origens da histó-ria. Agrada-me imenso satisfazer-lhes a vontade, porque pode-rei assim dar uma resposta geral à pergunta que tão frequen-temente me fazem: «Como é que eu, na altura uma jovem, melembrei – e desenvolvi – de uma ideia tão hedionda?» É ver-dade que sou muito avessa a expressar-me desse modo porescrito; mas como o meu relato aparecerá só como um apên-dice a uma produção anterior e como ficará limitado a tópicosrelacionados apenas com a minha qualidade de autora, nemsequer posso acusar-me de intrusão pessoal.

Não causa estranheza que, sendo filha de duas pessoas dedistinta celebridade literária1, eu haja desde muito cedo pen-sado em escrever. Quando criança, escrevinhava; e o meu pas-satempo favorito, durante as horas do recreio, era «escreverhistórias». Contudo, tinha um prazer ainda mais querido doque este e que era a formação de castelos no ar – isto é, sonharacordada – seguindo os trilhos do pensamento que tinhamcomo tema a formação de uma sucessão de incidentes imagi-

—————1 Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851) era filha de Mary Wollsto-

necraft, feminista notável, e de William Godwin, publicista e romancista.Em 1816 desposou o poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822), quando esteenviuvou. (N. do T.)

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nários. Os meus sonhos tornaram-se imediatamente mais fan-tásticos e agradáveis do que os meus escritos. Neste últimocaso, eu não passava de uma imitadora servil… preferindo fazero que os outros tinham feito a aproveitar as sugestões da minhaprópria mente. O que eu escrevia destinava-se pelo menos aoutro olhar – o meu companheiro e amigo da infância; mas osmeus sonhos pertenciam apenas a mim; não os relatei a nin-guém; eram o meu refúgio quando andava aborrecida – o meuprazer mais querido quando livre.

Enquanto criança, vivi principalmente no campo, e passeium tempo considerável na Escócia. Visitei ocasionalmente oslocais mais pitorescos; mas a minha residência habitual ficavanas margens alvacentas e lúgubres situadas a norte do Tay, pró-ximo de Dundee. Alvacentas e lúgubres lhes chamo retrospec-tivamente; na altura não as considerava assim. Eram o ninhoda liberdade e a região agradável onde, ignorada, eu podia con-viver com as criaturas imaginárias. Então eu já escrevia… masnum estilo muito vulgar. Era debaixo das árvores dos terrenospertencentes à nossa casa, nas encostas tristes das montanhasáridas mais próximas, que as minhas verdadeiras composições,os voos airosos da minha imaginação nasceram e se inspira-ram. Eu não me fiz a heroína dos meus contos. A vida parecia--me um caso demasiadamente banal quando encarada pelaminha. Não podia imaginar que angústias românticas ou acon-tecimentos maravilhosos me chegassem alguma vez a aconte-cer; mas não estava confinada à minha própria identidade epodia povoar as horas com criações muito mais interessantespara mim naquela idade do que as minhas próprias sensações.

Depois disto, a minha vida tornou-se mais ocupada e a rea-lidade tomou o lugar da ficção. O meu marido, porém, mos-trou-se desde o início muito ansioso de que eu me mostrassedigna da minha progenitura e me alistasse na página da fama.Estava sempre a incitar-me para que obtivesse reputação lite-rária, o que até me agradava, embora me fosse infinitamenteindiferente. Nessa altura, ele desejava que eu escrevesse, nãotanto com a ideia de poder produzir algo digno de nota, maspara poder avaliar se eu possuía a promessa de melhores coisas para mais tarde. Apesar disso, nada fiz. As viagens e os

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cuidados de uma família ocupavam o meu tempo; e estudaratravés da leitura ou aperfeiçoar as minhas ideias comuni-cando com o seu espírito muito mais cultivado, foi toda a acti-vidade literária a que dediquei a minha atenção.

No Verão de 1816, visitámos a Suíça e tornámo-nos vizi-nhos de Lorde Byron. Ao princípio passámos as nossas horasde lazer no lago ou a passear nas suas margens; e Lorde Byron,que estava a escrever o terceiro canto de Childe Harold2, erao único de nós que transmitia os seus pensamentos ao papel.Estes, quando no-los mostrava, revestidos com a luz e a har-monia da poesia, pareciam revelar as glórias do céu e da terra,cujas influências partilhámos com ele.

Mas, este Verão mostrou-se húmido e desagradável, e achuva incessante obrigou-nos a ficar muitas vezes fechados emcasa. Alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidas doalemão e do francês, caíram-nos nas mãos. Havia a History ofthe Inconstant Lover que, quando pensava abraçar a noiva a quem dedicara os seus votos, se encontrou nos braços dopálido fantasma daquela que tinha abandonado. Havia oconto do pecaminoso fundador da sua raça, cujo triste destinoconsistia em dar o beijo da morte a todos os descendentes dasua fatídica casa assim que eles alcançassem a adolescência. A sua figura gigantesca e indistinta apresentava-se vestidacomo o fantasma de Hamlet, com armadura completa, mascom a viseira levantada, e era vista à meia-noite, à luz incertado luar, avançar lentamente ao longo da sombria avenida. A forma desaparecia na sombra das muralhas do castelo; maslogo um portão rangia, ouviam-se passos, a porta do quartoabria-se e ela avançava para o leito dos jovens profundamenteadormecidos. Manifestava-se-lhe no rosto uma tristeza eternaquando se debruçava e beijava a testa dos rapazes, que a par-tir dessa hora murchavam como flores cortadas. Nunca maisvi estas histórias mas os seus incidentes acham-se tão frescosna minha memória como se os tivesse lido ontem.

—————2 De seu título completo Childe Harold’s Pilgrimage, este poema, come-

çado na Albânia em 1809, teve os dois primeiros cantos publicados em 1812,o terceiro em 1816 e o quarto em 1818. (N. do T.)

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– Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas– disse Lorde Byron, e a sua proposta foi aceite.

Éramos quatro. O autor nobre começou um conto, um frag-mento do qual imprimiu no termo do seu poema Mazeppa.Shelley, mais dotado para incorporar ideias e sentimentos naradiância de imagens brilhantes, e na música dos versos maismelodiosos que adornam a nossa língua, do que para inven-tar a maquinaria de uma história, começou uma baseada naexperiência dos seus primeiros tempos. O pobre Polidori3 an-dava com uma terrível ideia acerca de uma dama com cabeçade caveira que recebera este castigo por espreitar pelo buracode uma fechadura… para ver o quê já não me lembro… masuma coisa certamente muito chocante e má; contudo ficou redu-zida a uma condição pior do que a do famoso Tom de Coven-try, não soube o que haveria de fazer com ela e foi obrigado adespachá-la para o jazigo dos Capuletos, o único local paraonde podia ir. Os ilustres poetas também, entediados com aplatitude da prosa, renunciaram rapidamente à sua desagradá-vel tarefa.

Eu entretive-me a pensar numa história – uma que rivali-zasse com aquelas que nos haviam incitado a esta tarefa. Umaque falasse aos medos misteriosos da nossa natureza e desper-tasse horror arrepiante… uma que fizesse com que o leitorreceasse olhar à sua volta, lhe gelasse o sangue e lhe acelerasseas batidas do coração. Se não conseguisse estas coisas, a minhahistória de fantasmas seria indigna deste nome. Pensei e pon-derei… inutilmente. Estava a sentir aquela vazia incapaci-dade de invenção que é o pior que pode acontecer a um autor,quando o monótono Nada replica às nossas invocações ansio-sas. «Já pensaste numa história?», perguntava a mim própria

—————3 Este «pobre Polidori» – John-William Polidori (1795-1821) – além de

médico afamado, foi o criador da personagem literária do vampiro, já comtodas as características que a celebrizariam, no conto The Vampyre, publi-cado em Londres no número de Abril de 1819 do New Monthly Magazine,por seu turno, o irlandês Bram Stoker (1837-1912) desenvolveu o tema noromance Dracula (1897) e contribuiu assim decisivamente para o populari-zar de um modo irreversível. (N. do T.)

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todas as manhãs e todas as manhãs era forçada a respondercom uma mortificante negativa.

Todas as coisas devem ter um começo, para empregar a frasede Sancheana, e esse começo deve achar-se ligado a qualquercoisa acontecida antes. Os Hindus dão ao mundo um elefantepara suportá-lo, mas puseram o elefante em cima de uma tar-taruga. Invenção, devemos admiti-lo humildemente, não con-siste em criar a partir do vazio, mas a partir do caos; os mate-riais devem, em primeiro lugar, ser proporcionados; pode-sedar forma a substâncias escuras e informes, mas não se podedar vida à própria substância. Em todas as matérias de desco-berta e invenção, mesmo naquelas que pertencem à imaginação,somos continuadamente recordados da história de Colombo e do seu ovo. A invenção consiste na capacidade de um tema eno poder de moldar e afeiçoar ideias que lhe foram sugeridas.

Muitas e longas foram as conversas entre Lorde Byron eShelley, das quais eu fui uma devota mas praticamente silen-ciosa ouvinte. Durante uma delas foram discutidas váriasdoutrinas filosóficas e, entre outras, a natureza do princípio davida e se existiria alguma possibilidade de ele ser descobertoe comunicado. Falaram das experiências do Dr. Darwin (nãoestou a falar daquilo que o doutor realmente fez, ou disse quefez, mas, mais no meu propósito, do que então se dizia ter sidofeito por ele), que guardava um pedaço de aletria num frascoaté ela, graças a algum meio extraordinário, se começar amexer sozinha. Não era assim, afinal, que se dava a vida. Tal-vez um cadáver pudesse ser reanimado; o galvanismo já tinhadado indícios de tais coisas; talvez as partes componentes deuma criatura pudessem ser manufacturadas, unidas e anima-das com calor vital.

A noite já ia alta quando nos fomos deitar e mesmo a horadas bruxas já passara antes de nos retirarmos para descansar.Quando pus a minha cabeça no travesseiro não adormeci nempodia dizer-se que estivesse a pensar. A minha imaginação, semser solicitada, possuiu-me e guiou-me, ofertando-me imagenssucessivas que me surgiram no espírito com uma nitidez muitosuperior aos limites usuais dos sonhos. Vi – de olhos fechadosmas com uma visão mental aguda – vi o pálido estudante de

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artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que acabara de jun-tar. Vi o hediondo fantasma de um homem distender-se e depois,graças a uma poderosa máquina, mostrar sinais de vida e agi-tar-se com um ansioso movimento semivital. Assustador deveser; pois supremamente assustador seria o efeito de qualquercomportamento humano que escarnecesse do estupendo meca-nismo do Criador do mundo. O seu êxito aterrorizaria o artista,ele fugiria apavorado da sua odiosa obra. Esperaria que, entre-gue a si própria, a centelha de vida por ele comunicada se des-vanecesse; que esta coisa, que recebera uma tão imperfeita ani-mação, acabasse aluída em matéria morta; e poderia adormecerna crença de que o silêncio do túmulo extinguiria para sem-pre a existência transitória do hediondo cadáver que ele con-siderara o berço da vida. Adormece, mas está acordado; abreos olhos; reparai na coisa horrenda junto da sua cabeceira, cor-rendo as cortinas do leito e observando-o com olhos amarela-dos, aquosos mas especulativos.

Abri os meus aterrorizada. A ideia possuía a tal ponto omeu espírito que um arrepio de medo me percorreu e desejeitrocar a imagem pavorosa da minha imaginação pelas reali-dades que me cercavam. Estava a vê-las ali: o quarto, o soalhoescuro, as persianas corridas, com o luar a atravessá-las e a sen-sação de que o lago gelado e os elevados Alpes brancos seencontravam ali atrás. Não conseguia afastar muito facilmentea visão do meu hediondo fantasma; continuava a assombrar--me. Devo tentar pensar noutra coisa qualquer. Tornei à minhahistória de fantasma… à minha enfadonha e infeliz história de fantasma! Oh, se ao menos conseguisse imaginar uma queassustasse tanto o meu leitor como eu própria ficara assustadanaquela noite!

Veloz e alegre como a luz foi a ideia que me ocorreu.Descobri! O que me aterrorizava irá aterrorizar os outros;

e apenas preciso de descrever o espectro que assombrou o meutravesseiro da meia-noite.

Na manhã seguinte anunciei que tinha pensado numa his-tória. Comecei naquele dia com as palavras: «Aconteceu numanoite sombria de Novembro», fazendo apenas uma transcri-ção dos sinistros terrores do meu sonho acordado.

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A princípio pensei em apenas algumas páginas… num contocurto; mas Shelley incitou-me a desenvolver a ideia numa exten-são maior. É certo que não fiquei a dever ao meu marido asugestão de um incidente, nem de um rastilho de sentimento e,contudo, sem o seu incitamento a história nunca teria tomadoa forma com que foi apresentada ao mundo. Desta declaraçãodeve exceptuar-se o prefácio. Tanto quanto posso recordar-me,foi inteiramente escrito por ele.

E agora, mais uma vez, espero que o meu rebento hediondová por diante e prospere. Sinto afeição por ele, pois foi a pro-génie de dias felizes, quando morte e sofrimento eram simplespalavras que não achavam verdadeiro eco no meu coração. As suas várias páginas falam de muitos passeios, de muitasviagens e de muitas conversas quando eu não estava sozinha;e o meu companheiro era alguém que, neste mundo, nuncamais voltarei a ver. Mas isto é só para mim; os meus leitoresnão têm nada a ver com estas associações.

Acrescentarei apenas uma palavra às alterações que fiz. Sãoprincipalmente estilísticas. Não modifiquei nada da histórianem introduzi quaisquer novas ideias ou circunstâncias. Alte-rei a linguagem onde a considerei tão árida que interferia como interesse da narrativa; e estas alterações ocorrem quase exclu-sivamente no início do primeiro volume. Estão, contudo, intei-ramente confinadas às partes meramente acessórias da histó-ria, deixando o seu núcleo e a sua substância inalterados.

M. W. S.Londres, 15 de Outubro de 1831

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PREFÁCIO

O acontecimento em que esta ficção se baseia foi admitido,pelo Dr. Darwin, e por alguns dos escritores fisiólogos da Ale-manha, como não sendo de ocorrência impossível. Não sedeverá supor que eu concedo o mais remoto grau de fé séria a umatal imaginação; contudo, admitindo isto como a base de umtrabalho de imaginação, não me considerei como uma meracriadora de séries de terrores sobrenaturais. O acontecimentode que depende o interesse da história está isento das desvan-tagens de um simples conto de espectros ou encantamento. Erarecomendado pela novidade da situação que desenvolve e, noentanto, impossível como facto físico, proporciona um pontode vista à imaginação para o delineamento das paixões huma-nas mais compreensivo e dominante do que qualquer das nor-mais relações de acontecimentos humanos pode produzir.

Assim, esforcei-me por preservar a verdade dos princípioselementares da natureza humana, pois não hesitei em inovarrelativamente às suas combinações. A Ilíada, a poesia trágicada Grécia, Shakespeare em A Tempestade e em Sonho de Uma Noite de Verão, e mais especialmente Milton em O Paraíso Perdido, conformam-se a esta regra; e o romancistamais humilde, que procura conferir ou receber divertimentodos seus trabalhos, pode, sem presunção, aplicar à ficção emprosa uma licença, ou, antes, uma regra, de cuja adopção resul-taram tantas requintadas combinações de sentimentos huma-nos nos espécimes mais elevados da poesia.

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A circunstância em que a minha história assenta foi suge-rida numa conversa ocasional. Começou em parte como umafonte de divertimento, e em parte como um expediente paraexercitar todos os recursos não experimentados do meu espí-rito. Outros motivos misturaram-se com estes à medida que otrabalho avançava. Não sou de maneira nenhuma indiferenteao modo como as tendências morais existem nos sentimentosou como as suas personagens irão afectar o leitor; todavia, aminha preocupação fundamental a este respeito limitou-se a evitar os efeitos enervantes dos romances actuais e exibir adelicadeza da afeição doméstica e a excelência da virtude uni-versal. As opiniões que naturalmente são emitidas pela perso-nagem e a situação do herói não devem ser concebidas comotendo sempre existido na minha própria convicção; nem deveser retirada qualquer inferência das páginas seguintes no sen-tido de prejudicar qualquer doutrina filosófica.

Constitui também matéria de interesse adicional para aautora que esta história tenha principiado na majestosa regiãoonde a cena se situa principalmente e em companhia que nãoposso deixar de recordar1. Passei o Verão de 1816 nos arredo-res de Genebra. A estação revelou-se fria e chuvosa e, ao serão,reuníamo-nos à volta da lareira e ocasionalmente divertíamo--nos com algumas histórias de fantasmas que calhavam a virparar-nos às mãos. Estes contos excitaram em nós um divertidodesejo de imitação. Dois outros amigos (uma história saída dapena de um seria de longe muito mais aceitável para o públicodo que qualquer coisa que eu possa ter a esperança de produ-zir) e eu própria concordámos em que cada um escrevesse umahistória baseada em alguma ocorrência sobrenatural.

—————1 Também dessa companhia não se esqueceu John Cam Hobhouse

(1786-1869), político e amigo de Lord Byron, que lhe dedicou o V Canto deChilde Harold, cujas notas foram, aliás, escritas por ele; e no seu diário exa-rou a indelével lembrança: «Dos cinco jovens que se reuniram na Villa Dio-dati, em Genebra – Polidori, Shelley, Byron, Scrope Davies e eu próprio – oprimeiro suicidou-se [por causa de uma dívida de honra], o segundo mor-reu afogado, o terceiro foi morto pelos médicos, o quarto está no exílio...»(N. do T.)

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O tempo, todavia, ficou subitamente sereno; e os meus doisamigos abandonaram-me para fazerem uma viagem pelosAlpes e perderam por completo, nas magnificentes cenas queapresentaram, a memória das suas visões fantasmagóricas. A história seguinte é a única que foi completada.

MarlowSetembro de 1817

Primeiro Volume

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Primeira Carta

Para Mrs. Saville, Inglaterra.

Sampetersburgo, 11 de Dezembro de 17..

Vais alegrar-te por saber que o começo da aventura quetanto temias decorreu muito bem.

Cheguei aqui ontem, e o meu primeiro cuidado é tran-quilizar-te, minha querida irmã, sobre a minha saúde e a minhaconfiança crescente no êxito do meu empreendimento.

Encontro-me já longe de Londres; enquanto caminhopelas ruas de Sampetersburgo, sinto a brisa fria do Norteacariciar-me o rosto e isso reforça-me a coragem e enche-mede alegria. És capaz de compreender uma tal sensação? Estevento, que vem das regiões para onde me dirijo, propor-ciona-me um antegosto do seu clima gelado. Pleno de pro-messas, inspira os meus sonhos, que se tornam mais arden-tes e mais vivos. Tento em vão persuadir-me de que o Póloé a região do frio e da desolação; imagino-o sempre comouma terra de beleza e alegria. Aí, Margaret, o Sol é semprevisível, o seu disco imenso, que borda o horizonte, espalhaum esplendor eterno. Aí, acreditando nas narrativas dosnavegadores, foram banidos a neve e o frio e, vogando nummar calmo, podemos ser levados para uma terra que ultra-passa em maravilhas todas as regiões do mundo até agoradescobertas. Podemos descobrir produtos e horizontes total-

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mente desconhecidos, porque os poderes divinos se mani-festam, por certo, nestas solidões inexploradas. É de espe-rar tudo de uma região de luz eterna! Posso descobrir lá aforça misteriosa que atrai a agulha; posso fixar as milharesde observações celestes cujas aparentes anomalias se torna-rão talvez explicáveis graças a esta viagem. Tranquilizarei aminha ardente curiosidade perante a vista de uma parte domundo até hoje desconhecida e poderei, talvez, roçar umaterra que nunca recebeu pegadas de homem. Tais atractivoschegam para vencer quaisquer receios e incitam-me a em-preender esta viagem difícil com a alegria de uma criançaque se mete num barquinho para explorar o rio da sua terranatal. Mesmo se todas estas suposições fossem falsas, nãopodes negar o inestimável serviço que seria prestado àhumanidade se descobrisse uma passagem do Pólo para asregiões que actualmente levam tantos meses a alcançar; e também, talvez, o segredo do magnetismo que só pode ser efectuado através de um empreendimento como o meu.

Estas reflexões dissiparam a agitação com que comecei acarta. Ardo de entusiasmo porque não há nada que acalmetanto o espírito como uma resolução firme e um objectivopreciso, um ponto em que a alma pode fixar o seu olharintelectual.

A expedição constituiu o sonho favorito da minha infân-cia. Li com paixão os relatos das diversas viagens empreen-didas na esperança de chegar à parte norte do oceano Pacífico,através dos mares que rodeiam o Pólo. Talvez te recordesde que a biblioteca do nosso bom tio Thomas se compu-nha, em grande parte, de narrativas de explorações. Estudeiesses volumes noite e dia, e os conhecimentos que delesretirei mais me fizeram lamentar as derradeiras vontades demeu pai, proibindo o tio de me autorizar a seguir a carreirade navegador.

Tais sonhos desvaneceram-se quando li, pela primeira vez, os poetas cujos versos me arrebataram a alma e a eleva-ram ao céu. Tornei-me também poeta e, durante um ano,vivi num paraíso criado por mim. Imaginava que poderiaigualmente obter um lugar no templo em que os nomes de

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Homero e de Shakespeare se acham gravados. Sabes domeu insucesso e do grande desapontamento que sofri. Mas,nessa altura, herdei a fortuna do meu primo e as ideias deviajar voltaram.

Seis anos decorreram desde o dia em que decidi estegrande empreendimento e ainda agora me consigo lembrarda hora em que me lhe consagrei. Comecei a endurecer o meucorpo. Acompanhei os pescadores de baleias nos mares doNorte. Suportei voluntariamente a fome, o frio, a sede e afalta de sono; trabalhava muitas vezes durante o dia maisduramente do que os simples marinheiros, e passava as noi-tes a estudar as matemáticas, a medicina e as ciências físicasúteis a um explorador. Engajei-me por duas vezes comomarinheiro num baleeiro gronelandês e consegui a estima detodos. Devo confessar que me senti muito vaidoso quandoo comandante me convidou a ser o imediato a bordo e mesuplicou que ficasse, tanto apreciava os meus serviços.

E agora, querida Margaret, não mereço eu realizar umgrande feito? Teria podido passar a vida no conforto e noluxo, mas preferi a glória a todas as tentações da riqueza.Estou firmemente decidido, mas ainda duvido do êxito esinto-me muitas vezes desmoralizado. Vou partir para umalonga e difícil viagem cheia de imprevisto e necessito detoda a minha força de ânimo. Devo não só sustentar a cora-gem dos outros mas também, algumas vezes, a minha quandoa deles enfraquecer.

É a época mais favorável para viajar na Rússia. Avança--se rapidamente de trenó; este modo de transporte é, naminha opinião, mais agradável do que uma diligência inglesa.O frio não é excessivo mas temos de cobrir-nos de peles,porque há uma enorme diferença entre percorrer em gran-des passadas o convés de um barco e ficar sentado durantehoras sem fazer nenhum exercício para impedir o sangue degelar literalmente nas veias. Não tenciono morrer destamaneira na estrada entre Sampetersburgo e Arcângel.

Ficarei duas ou três semanas nesta cidade, o tempo dealugar um barco, coisa possível, pagando um seguro e enga-jando a tripulação necessária entre os marinheiros habitua-

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dos à pesca da baleia. Não conto embarcar antes do mês deJunho, mas quando voltarei? Se triunfar, minha queridairmã, muitos meses, talvez anos, se escoarão antes de nosvoltarmos a ver. Se falhar, ver-me-ás em breve ou nunca.

Adeus, minha querida e excelente Margaret. Que os céuste abençoem, e me salvem, para que eu possa, uma e outravez, testemunhar a minha gratidão por todo o teu amor ebondade.

O teu irmão afectuoso,

R. Walton

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Segunda Carta

Para Mrs. Saville, Inglaterra.

Arcângel, 28 de Março de 17..

Como o tempo passa lentamente aqui, rodeado comoestou pelo gelo e pela neve! No entanto, um segundo passofoi dado em direcção ao meu objectivo: aluguei um navio eengajo marinheiros. Os que já tenho parecem ser homensseguros e de uma coragem a toda a prova.

Mas sinto um desejo que ainda não pude satisfazer e queé mais violento do que nunca. Não tenho um único amigo,Margaret. Quando for arrebatado pelo entusiasmo do êxito,ninguém participará da minha alegria; se me invadir o desen-corajamento, ninguém tentará reconfortar-me. Confiarei, écerto, as minhas ideias à pena, mas é um meio insuficientepara comunicar tais sentimentos. Desejo a presença de umhomem que me compreenda e cujo olhar responda ao meu.Vais, sem dúvida, achar-me um pouco romanesco, mas sofrocruelmente da ausência de uma tal amizade. Não tenho nin-guém perto de mim que alie o afecto à coragem, a reflexãoà audácia, que possua os mesmos gostos que eu, que aproveou critique os meus projectos.

Como um tal amigo refrearia os impulsos do teu pobreirmão! Agi depressa de mais e sinto-me excessivamente im-paciente perante as dificuldades. A minha desgraça maior é

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ter-me educado a mim mesmo. Durante os primeiros catorzeanos da minha vida corri pelos campos como um jovem ani-mal selvagem e apenas li os livros de aventuras do tio Tho-mas. Nessa idade conheci os poetas célebres do nosso paíse foi só quando percebi que já não podia colher qualquerbenefício das minhas relações com eles que compreendi a necessidade de aprender outras línguas além da minha.Agora tenho vinte e oito anos e acho-me, na verdade, menosculto do que muitos rapazes de quinze anos. É certo que re-flecti mais e que os meus pensamentos são mais elevados emais vastos; mas eles precisam (como dizem os pintores) deser «fixados» e, por certo, ser-me-ia indispensável um amigocom raciocínio bastante para não zombar do meu espíritoromanesco, e afecto para tentar pôr ordem nas minhas ideias.

Mas estas queixas são inúteis. Não descobrirei certamenteamigo em pleno mar, nem sequer aqui, em Arcângel, entreos mercadores e os marinheiros. Todavia, estes homens durospossuem sentimentos que não se ligam com a rudeza da suanatureza. O meu adjunto, por exemplo, é um homem cheiode coragem e de uma audácia maravilhosa. Ambicionaapaixonadamente o êxito ou, para empregar palavras maisexactas, elevar-se no seu ofício. É inglês: se bem que nãoseja muito culto, e apesar dos seus preconceitos nacionaise profissionais, possui algumas das mais belas qualidadeshumanas. Conheci-o num baleeiro e, ao saber que se achavasem trabalho nesta cidade, pude engajá-lo facilmente parame secundar durante a viagem.

O meu imediato é um homem dos mais apreciáveis. Esti-mam-no a bordo pela sua bondade e destreza de comando.Estas qualidades, além da sua bem conhecida honestidadee grande coragem, tornaram-me desejoso de engajá-lo. A minha juventude, passada debaixo da tua doce e mater-nal tutela, refinou de tal modo o fundo do meu carácter quenão posso lutar contra o imenso desgosto que me provocaa brutalidade das gentes do mar. Nunca a julguei necessáriae, quando ouvi falar de um marinheiro conhecido pela suabondade e ao mesmo tempo respeitado e obedecido pelasua tripulação, senti-me feliz por assegurar os seus serviços.

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Tinha ouvido falar dele de um modo bastante romanesco a uma mulher que lhe deve toda a sua felicidade. Aqui vai, em breves palavras, a sua história. Há alguns anos, eleapaixonou-se por uma dama russa de certas posses; e tendoacumulado uma soma considerável em dinheiro, o pai darapariga consentiu no casamento. Apenas viu a rapariga umavez antes da cerimónia; mas ela estava banhada em lágrimase, lançando-se aos pés dele, implorou-lhe que a poupasse,confessando que amava outro homem, mas que este erapobre, e que por esse motivo o pai nunca consentiria numaunião. O meu generoso amigo acalmou a dama e, ao tomarconhecimento do nome do amado, desistiu imediatamentedos seus intentos. Já havia comprado uma quinta com o seudinheiro, na qual tencionara passar o resto dos dias; masdoou tudo ao rival, juntamente com algumas economiaspara que comprasse gado, e em seguida ele próprio faloucom o pai da noiva, pedindo-lhe que consentisse que a filhacasasse com o outro. Mas o velho recusou peremptoriamente,julgando-se ligado ao meu amigo por laços de honra. Ao vera inexorabilidade do pai da dama, deixou o país, só regres-sando no dia em que a soube casada e feliz. «Que nobrecarácter!», dirás tu. É certo, mas não passa de um rústico; ésilencioso como um turco, absolutamente indiferente atudo, atitude que embora torne a sua conduta mais espan-tosa, diminui o interesse e a simpatia que atrairia sobre si.

Contudo, não suponhas, porque me queixo um poucoou porque posso conceber um consolo para as minhas labu-tas, que vacilo nas minhas resoluções. Estas são tão segurascomo o destino e a minha viagem só se encontra agora adiadaaté o tempo permitir o meu embarque.

O Inverno foi muito rude, mas a Primavera mostra-secheia de promessas e anuncia-se precoce. Talvez possa par-tir mais cedo do que pensava. Não farei nada no ar; conhe-ces-me bem para teres confiança na minha prudência quandoa segurança dos outros me é confiada.

Não posso descrever-te as minhas sensações ante a pers-pectiva da viagem. É impossível dar-te uma ideia destaespécie de enervamento misto de prazer e de apreensão

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com que preparo a expedição. Vou para regiões inexplora-das, para o «país do nevoeiro e da neve»; mas não matareio albatroz e por isso não te inquietes com a minha sorte,mesmo se voltar tão cansado e miserável como o «VelhoMarinheiro1». Esta referência far-te-á sorrir, mas vou reve-lar-te um segredo. Atribuí muitas vezes a atracção extraor-dinária que sinto pelos perigosos mistérios do Oceano, aessa obra do mais imaginativo dos nossos poetas modernos.Há algo a agitar-se na minha alma que eu não entendo. Souum homem muito diligente, cuidadoso e perseverante notrabalho, mas, além disso, existe um amor pelo maravilhoso,uma crença no maravilhoso, interligados em todos os meusprojectos, que me impelem para fora dos caminhos comunspercorridos pelos homens, até mesmo para o mar revolto eas regiões não visitadas que estou prestes a explorar.

Mas voltemos a considerações que me são mais caras.Tornarei a ver-te após ter cruzado mares imensos e regres-sado pelo cabo mais ao sul da África ou da América? Nãome atrevo a contar com um tal êxito e, todavia, não possosuportar o pensamento de um fracasso. Continua porenquanto a escrever-me sempre que possas; posso calhar areceber as tuas cartas nos momentos em que tiver maiornecessidade de reconforto. Amo-te ternamente. Lembra-tede mim com saudade se tiveres de ficar para sempre semnotícias minhas.

O teu irmão afectuoso,

Robert Walton

—————1 Alusão à balada The Rime of the Ancient Mariner (1798), da autoria

do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). (N. do T.)

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Terceira Carta

Para Mrs. Saville, Inglaterra.

7 de Julho de 17..

Minha querida irmã,

Escrevo-te algumas palavras à pressa para te dizer queestou em segurança e que a viagem prossegue. Esta cartachegará a Inglaterra graças a um navio mercante que efec-tua a viagem de regresso de Arcângel; mais feliz do que eu,que talvez não torne a ver o meu país natal antes de váriosanos. Contudo, o moral é bom: os meus homens são reso-lutos e os gelos que flutuam à nossa volta, anunciando osperigos da região de que nos aproximamos, não pareceminquietá-los. Já atingimos uma latitude elevada; estamos noVerão e os ventos do sul, que nos impelem depressa paraas margens que desejo tão ardentemente alcançar, emboramenos quentes do que a Inglaterra, trazem-nos uma tepi-dez benfazeja e inesperada.

Nenhum incidente que valha a pena ser relatado. Umaou duas tempestades, a reparação de um rombo, são coisasque os navegadores experimentados raramente pensam emcontar; e sentir-me-ei satisfeito se nada de pior nos sucederdurante a viagem.

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Adeus, minha querida Margaret. Fica certa de que tantopor mim como por ti não desafiarei o perigo. Serei calmo eprudente.

O êxito deve coroar os meus esforços. Porque não? Atéaqui abri um caminho neste mar que não indica e não con-serva qualquer vestígio. Apenas as estrelas são as testemu-nhas e as provas do meu triunfo. Porque não insistir com oselementos indomados e, não obstante, obedientes? Quempode parar um coração determinado e a vontade firme deum homem?

O meu coração cansado expande-se involuntariamentepara ti. Mas tenho de terminar! Que o Céu te abençoe,minha irmã bem amada!

R. W.

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Quarta Carta

Para Mrs. Saville, Inglaterra.

5 de Agosto de 17..

Sucedeu-nos um acontecimento tão estranho que nãoposso deixar de to contar, embora seja muito provável queme vejas antes de estas palavras te poderem chegar às mãos.

Na passada segunda-feira (31 de Julho), estávamos quasebloqueados pelo gelo que cercava o navio por todos oslados, mal lhe permitindo flutuar. A nossa situação era assazperigosa porque nos encontrávamos, além disso, rodeadospor um nevoeiro espesso. Ficámos na expectativa, à esperade que o tempo clareasse.

Por volta das duas horas, a bruma levantou-se e vimos,em todas as direcções, imensas e irregulares planícies de gelo que pareciam infindáveis. Alguns dos meus companhei-ros inquietaram-se e mesmo eu comecei a tornar-me ansioso.

De súbito, uma visão estranha atraiu-nos as atenções efez-nos esquecer a inquietação.

Vimos a dirigir-se para norte, a uma distância de meiamilha, um trenó puxado por cães. Um ser de aparência hu-mana, mas de estatura gigantesca, achava-se sentado no trenóe conduzia os cães. Acompanhámos com a nossa luneta amarcha rápida do viajante, que se perdeu por fim nos vala-dos longínquos do gelo.

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Esta aparição provocou entre nós um espanto sem nome.Pensávamos estar a várias centenas de milhas de terra, masesta presença provava-nos que não. Todavia, bloqueadospelo gelo, não podíamos sonhar em seguir o rasto do via-jante que, no entanto, observávamos com a maior atenção.

Cerca de duas horas depois deste incidente, ouvimos ros-nar o mar debaixo dos nossos pés e, antes da noite, o geloquebrou-se e libertou o barco. Contudo, permanecemos nolocal até de manhã, temendo deparar na obscuridade comestas grandes massas que flutuam à deriva quando a crosta sequebra. Aproveitei este tempo para descansar algumas horas.

De manhã, assim que surgiu o dia, subi ao convés. Todosos marinheiros estavam do mesmo lado do navio a conver-sar com alguém no mar. Era um trenó como o que já tínha-mos visto: o vento, durante a noite, havia-o impelido nanossa direcção sobre um banco de gelo.

Dos animais de tiro, um único cão estava vivo; mas en-contrava-se a seu lado um ser humano que os marinheirosqueriam persuadir a subir para bordo. Não era, como pare-cia sê-lo, o viajante da véspera, um selvagem habitante deuma ilha inexplorada, mas um europeu. Quando apareci noconvés, o imediato anunciou:

– Eis o nosso comandante, e ele não vai permitir que osenhor pereça no mar!

Ao ver-me, o desconhecido dirigiu-se-me em inglês,embora com um sotaque estranho:

– Antes de subir para bordo do seu navio quererá ter aamabilidade de me dizer em que direcção vai?

Podes imaginar a minha surpresa ao ouvir uma seme-lhante pergunta da parte de um homem em perigo de morte,para quem o meu navio deveria representar um socorrosem preço. Respondi-lhe, porém, que empreendíamos umaviagem de descoberta na direcção do Pólo Norte.

Pareceu satisfeito e consentiu em subir para bordo. Deusdo Céu! Margaret, se tivesses visto aquele homem, comoficarias surpreendida! Os seus membros estavam quasegelados e o corpo horrivelmente emagrecido pela fadiga epelo sofrimento. Nunca vi um ser em estado mais lastimável.

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Tentámos transportá-lo para o camarote mas, assim que saiudo ar livre, desmaiou. Fomos obrigados a trazê-lo nova-mente para o convés e a reanimá-lo esfregando-o com aguar-dente e forçando-o a beber um pouco. Logo que deu sinalde vida, envolvemo-lo em cobertores e pusemo-lo perto doforno da cozinha. Voltou a si lentamente e comeu um poucode sopa, que o reconfortou. Passaram dois dias antes depoder falar; e temi muitas vezes que o sofrimento lhe hou-vesse transtornado o espírito. Quando ficou pouco mais oumenos restabelecido, levei-o para o meu camarote e cuideidele dentro do que as minhas ocupações mo permitiam. É um ser muito curioso: os olhos têm habitualmente umaexpressão perturbada, até um ar de loucura; mas em certosmomentos, quando nos ocupamos dele ou lhe prestamos omais pequeno serviço, toda a sua fisionomia parece ilumi-nar-se com um clarão de bondade e de doçura que aindanunca vi num ser humano. Mas anda quase sempre triste edesesperado; por vezes, range os dentes como se nãopudesse suportar o peso das suas desventuras.

Quando o meu hóspede ficou um pouco restabelecido,tive grandes dificuldades para afastar dele os homens quedesejavam fazer-lhe mil perguntas; não queria que o ator-mentassem com a sua vã curiosidade porque o seu restabe-lecimento físico e moral exigia, evidentemente, um repousocompleto. Uma vez, porém, o adjunto perguntou-lhe por-que se aventurara tão longe para o Norte num veículo tãoestranho. O rosto adquiriu logo uma expressão profunda-mente dolorosa e respondeu:

– Para procurar alguém que me fugiu.– E o homem que perseguia viajava do mesmo modo? – Sim.– Então suponho que o vimos, porque, na véspera do dia

em que o recolhemos, distinguimos no gelo um trenó noqual ia um homem.

Isto despertou a atenção do desconhecido, que fez milperguntas acerca da rota que o demónio, tal como ele lhechamava, tomara. Um pouco mais tarde, quando ficámossozinhos, disse-me:

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– Com certeza despertei tanto a sua curiosidade como adessa boa gente, mas o senhor é demasiado discreto parame interrogar.

– Certamente! Seria muito incorrecto e desumano daminha parte aborrecê-lo com a minha curiosidade.

– E, no entanto, salvou-me de uma situação estranha eperigosa; devolveu-me generosamente à vida.

Pouco tempo depois perguntou-me se pensava que arotura da crosta havia engolido o outro trenó. Disse-lhe quenão podia afirmá-lo. O gelo quebrara-se por volta da meia--noite apenas e o viajante podia já encontrar-se em lugarseguro; mas nada sabia ao certo.

A partir deste momento um novo ardor animou o corpoenfraquecido do desconhecido. Queria ficar no convés paravigiar o trenó já visto; mas persuadi-o a permanecer nocamarote, porque estava fraco de mais para suportar a fres-cura da atmosfera. Prometi mandar vigiar por ele e pô-loimediatamente ao corrente se aparecesse alguma coisa.

Tal é o meu diário acerca deste acontecimento estranho.A saúde do desconhecido melhora a pouco e pouco, masmostra-se muito silencioso e parece incomodado quandoalguém, que não seja eu, entra no seu camarote. Todavia, osseus modos são tão afáveis e doces que os marinheiros seinteressam por ele. Pela minha parte, começo a amá-lo comoa um irmão; e a sua constante e profunda mágoa enche-mede simpatia e de compaixão. Foi certamente uma criaturade escol nos seus bons tempos, porque mesmo na desgraçapermanece profundamente simpático.

Contei-te numa das minhas cartas, minha querida Mar-garet, que não julgava encontrar um amigo durante a minhaexpedição; no entanto, dei com um homem que gostariaque fosse meu irmão antes de a desgraça o ter alquebrado.

De vez em quando continuarei a escrever o meu diáriosobre o estranho, desde que possua novos incidentes pararelatar.

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13 de Agosto de 17..

A minha afeição pelo meu hóspede aumenta de dia paradia.

Atraiu-me a admiração e a simpatia a um ponto espan-toso. Como podia eu ver um ser tão nobre aniquilado pelador sem sentir a mais profunda mágoa? Mostra-se, porém,amável e ponderado; o seu espírito é cultivado; e quandofala, as suas palavras, escolhidas com a maior cautela, fluemcom uma rapidez e uma eloquência inigualáveis.

Agora quase restabelecido, fica sempre no convés, vigiandoaparentemente o trenó que precedeu o seu. Apesar do in-fortúnio, interessa-se imenso pelos projectos dos outros.Falou-me muitas vezes dos meus, revelei-lhos francamente.Seguiu com atenção todos os argumentos favoráveis ao meuêxito e, nos mais ínfimos pormenores, as medidas que tomeipara o garantir. Falei de coração nas mãos perante o inte-resse amigo que manifestava e disse o quanto sacrificavacom alegria a fortuna, a vida, todas as esperanças pelo êxitoda minha expedição. A vida ou a morte de um homem nãosão um preço demasiado alto para o domínio que exerceriasobre os elementos, inimigos da nossa raça. Enquanto assimfalava, passou uma sombra pelo rosto do meu ouvinte. Pri-meiro, notei que tentava ocultar a emoção; pôs as mãos emfrente dos olhos; a minha voz quebrou-se quando vi corre-rem-lhe lágrimas e quando ouvi um queixume escapar--se-lhe do peito oprimido. Calei-me. Por fim, falou numavoz sumida:

– Desgraçado! Acaso partilha da minha loucura? Tam-bém bebeu a poção maléfica? Ouça-me, deixe-me contar--lhe a minha história, e depois afastará a taça dos lábios!

Estas palavras, podes imaginá-lo, excitaram a minha curio-sidade ao máximo. Mas o paroxismo de dor que se apode-rou do desconhecido destruiu-lhe as fracas forças e só umdemorado repouso conseguiu devolver-lhe a calma.

Tendo vencido a violência dos seus sentimentos, pareceudesprezar-se por tê-los mostrado e, dominando o desespero,incitou-me a voltar a falar de mim. Pediu-me a história da

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minha infância. Depressa foi contada, mas despertou umasérie de reflexões. Falei-lhe no meu desejo de encontrar umamigo, na minha sede de descobrir uma alma irmã; e expri-mia a convicção de que um homem que não tem estabenesse não pode gabar-se de ser feliz.

– Sou da sua opinião – respondeu o desconhecido. – Nãopassamos de criaturas informes e incompletas enquanto umser mais sábio e superior não nos der ajuda para melhorar anossa natureza fraca e imperfeita. Possuí um amigo, a maisnobre das criaturas humanas, e posso assim avaliar a ami-zade. Vós tendes a esperança e o mundo à vossa frente, semmotivos para desesperar. Mas eu… tudo perdi e não possorecomeçar a minha vida.

Ao dizer isto, o seu rosto adquiriu uma expressão pro-fundamente entristecida que me revolveu até ao coração.Mas permaneceu silencioso e retirou-se logo a seguir para ocamarote.

Apesar do desespero, ninguém apreciava mais do que eleos encantos da natureza. O céu estrelado, o mar e a paisa-gem destas regiões maravilhosas parecem elevar ainda maisa sua alma acima da terra. Um tal homem tem uma existên-cia dupla; sofre desesperadamente mas, quando se recolhedentro de si, torna-se semelhante a um espírito que nenhumamágoa conseguiria atingir.

Vais sorrir do meu entusiasmo por este viajante? Não ofarias se o visses. Foste formada pelos livros, longe do mundo,e isso tornou-te difícil, mas deveria permitir-te apreciarmelhor ainda os méritos deste homem maravilhoso.

Esforço-me algumas vezes por descobrir qual é a quali-dade que ele possui e que o eleva tão desmesuradamenteacima das outras pessoas que conheci. Acho que é uma per-cepção intuitiva, uma rápida mas infalível faculdade de julgar,uma penetração nas causas das coisas, sem igual em clarezae precisão; acrescenta a isto uma facilidade de expressão euma voz cujas variadas entoações são como música para aalma.

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19 de Agosto de 17..

O desconhecido disse-me ontem:– Com certeza vos désteis facilmente conta, comandante

Walton, de que padeci infortúnios sem nome. Tinha deci-dido, a certa altura, que a sua lembrança morreria comigo.Mas haveis-me levado a mudar de ideias. Buscais, como eufiz, a luz e a sabedoria; e espero ardentemente que a recom-pensa dos vossos esforços não seja como uma serpente quevos pique, porque foi isso que me aconteceu. Ignoro, porém,se a narrativa dos meus infortúnios vos será útil, pois seguisa mesma rota que eu, expondo-vos aos mesmos perigos epodereis talvez aproveitar a minha experiência.

«Se nos encontrássemos em paisagens mais calmas, teme-ria a vossa incredulidade, talvez até os vossos sarcasmos,mas muitas coisas, que fariam rir os que não conhecemtodas as forças da natureza, podem parecer possíveis nestasregiões misteriosas e selvagens, que provocariam o riso dosdesconhecedores dos sempre variados poderes da natureza;nem posso duvidar de que a minha história transmite aprova interior da verdade dos acontecimentos que a com-põem.»

Podes facilmente imaginar como lhe fiquei grato pelacomunicação que me ofereceu, mas não podia suportar querenovasse as suas mágoas com um recital dos seus infortú-nios. Senti-me ansioso por ouvir a prometida narrativa, emparte por curiosidade e em parte devido a um forte desejode melhorar o seu destino se tal estivesse em meu poder.Expressei estes sentimentos na minha resposta.

– Agradeço-vos – replicou ele – a vossa simpatia, mas nãotem préstimo; o meu destino acha-se quase cumprido.Aguardo apenas um acontecimento e depois descansareiem paz. Compreendo os vossos sentimentos – continuou,ao aperceber-se de que eu pretendia interrompê-lo –, masestais enganado, meu amigo, se me permitis que vos trateassim; nada pode mudar o meu destino; escutai a minha his-tória e percebereis quão irrevogavelmente ele está determi-nado.

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Disse-me então que começaria a sua narrativa no diaseguinte quando eu estivesse desocupado. Esta promessaarrancou-me os mais calorosos agradecimentos. Resolvi quetodas as noites, quando não me encontrasse imperativa-mente ocupado com as minhas obrigações, registaria, tantoquanto possível nas suas próprias palavras, o que relatassedurante o dia. Se estiver ocupado, tomarei, pelo menos,algumas notas. Este manuscrito dar-te-á, sem dúvida, umgrande prazer, mas para mim, que o conheço e o recebo dosseus lábios… com que interesse e simpatia o hei-de ler numdia futuro! Mesmo agora, quando dou início ao meu traba-lho, a sua voz cheia ecoa-me nos ouvidos; os seus olhos bri-lhantes fitam-me com toda a sua suave melancolia; vejo asua mão fraca agitar-se, enquanto os delineamentos do seurosto são irradiados pela alma. Estranha e pungente deveser a sua história, apavorante a tempestade que envolveu afrágil embarcação no seu rumo e a fez naufragar… assim!

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Capítulo Primeiro

Sou genebrino de nascimento e pertenço a uma das maisimportantes famílias desta república. Os meus antepassadosforam conselheiros e síndicos durante longos anos. O meupai adquiriu uma reputação excelente no desempenho comhonra de diversas funções públicas.

Passou a juventude a ocupar-se sem tréguas dos negóciosdo seu país. Apenas no declínio da vida tomou mulher etornou-se pai de família. Como o casamento explica o seucarácter, não posso deixar de vo-lo contar. Um dos seus ami-gos íntimos, chamado Beaufort, que era negociante, depoisde ter vivido uma situação florescente, viu-se arruinado.Este homem possuía um carácter orgulhoso e íntegro, e nãopôde suportar a ideia de viver pobre na cidade que o tinhavisto rico. Após ter pago escrupulosamente as dívidas, reti-rou-se com a filha para a cidade de Lucerna onde viveu naobscuridade. O meu pai apreciava profundamente Beau-fort e sentiu-se muito triste com o seu afastamento. Eledeplorou com amargura o falso orgulho que levou o seuamigo a agir segundo uma conduta tão pouco meritória doafecto que os unia. Não perdeu tempo e procurou-o, naesperança de o convencer a começar de novo com o seuapoio.

Beaufort conseguira ocultar-se e dez meses passaramantes de o meu pai poder encontrá-lo. Encantado com a suadescoberta, apressou-se a partir para a casa situada numa

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rua miserável perto de Reuss. Mas quando entrou, deu logocom miséria e desespero. Beaufort apenas salvara da derro-cada uma pequena quantia, que mal chegava para lhe per-mitir viver durante alguns meses. Contava arranjar, entre-tanto, um emprego digno, em casa de um negociante, masa inacção pesava-lhe de tal modo que, ao fim de três meses,caiu doente.

A filha tratou-o com a maior afeição, mas viu com deses-pero que a sua pequena reserva diminuía rapidamente enão havia nenhum auxílio em perspectiva. Contudo, Carolinepossuía uma força de carácter pouco comum, e a sua cora-gem aumentou para assistir ao pai na adversidade. Arranjoupequenos trabalhos; entrançou vergas para fazer cestos econseguiu ganhar com que viver.

Vários meses decorreram desta maneira. O estado do paipiorou. Ela passou o tempo a tratá-lo; ao fim de dez meses,Beaufort morreu-lhe nos braços, deixando-a sozinha e semnenhuns recursos. Acabrunhada, chorava amargamente,ajoelhada junto do caixão, quando o meu pai entrou noquarto. Ela entregou-se nas suas mãos. Depois do enterrolevou-a para Genebra onde a confiou a gente de confiança.Passados dois anos, Caroline tornou-se sua mulher.

Havia uma grande diferença de idade entre os meus pais,mas isso até parecia aumentar-lhes a afeição. O meu paipossuía um sentido de justiça que o teria impedido de amarse não estimasse. Entrava admiração no seu entusiasmopela mulher. Talvez durante os primeiros tempos ele tivessejulgado não ser merecedor do seu afecto e, por isso, dispôs--se a esforçar-se ainda mais. Havia um misto de gratidão edevoção no seu relacionamento com a minha mãe, total-mente diferente do afecto da idade, pois era inspirado pelareverência das suas virtudes e pelo desejo de recompensá-lapelo que ela já sofrera. Tudo fazia para lhe satisfazer osdesejos e assegurar o conforto. Esforçava-se por protegê-latanto como um jardineiro protege as suas plantas exóticas detodos os ventos fortes e cercava-a de tudo quanto pudessedespertar-lhe emoções agradáveis e um espírito benevolente.A saúde de minha mãe ficara comprometida com tudo por

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que passara. Durante os dois anos que precederam o casa-mento, o meu pai abandonara aos poucos as suas funçõespúblicas e, logo a seguir à sua união, foram procurar umamudança de atmosfera sob o agradável céu de Itália. Visita-ram juntos a Alemanha e a França. Eu, o filho mais velho,nasci em Nápoles e, desde muito pequeno, acompanhei-osnas suas excursões. Fiquei filho único durante vários anos.Os carinhos enternecidos de minha mãe e o sorriso feliz demeu pai quando me fitava constituem as minhas primeirasrecordações. Era o brinquedo e o amor deles e, para tudodizer, o seu filho, o ser inocente e fraco dado pelo Céu parao educarem para o bem.

Em cada hora da minha infância recebi uma lição depaciência e de caridade; era como que guiado por um fio de ouro, de tal forma que a vida me parecia uma série dealegrias.

Durante muito tempo, fui o único pensamento dos meuspais. No entanto, a minha mãe desejaria antes ter uma filha.Completara quase cinco anos quando fizeram uma excur-são a Itália e passaram uma semana nas margens do lago deComo. A sua caridade levava-os muitas vezes a entrar nacasa dos pobres. Para minha mãe isso representava mais doque um dever: era, em lembrança do que sofrera, o desejode tornar-se, por sua vez, o anjo protector dos infelizes.Durante um dos seus passeios, uma pobre choça no oco deum vale atraiu-lhes a atenção. À sua volta brincavam crian-ças vestidas de andrajos; tudo revelava a miséria mais som-bria. Um dia em que o meu pai seguira sozinho para Milão,a minha mãe levou-me a visitar essa casa. Demos com umcamponês e a mulher a distribuir uma magra refeição a cincocrianças esfomeadas. Uma delas atraiu particularmente anossa atenção. Era uma rapariguinha que parecia de umaraça diferente. As quatro crianças restantes eram sólidosrapagões pequenos de olhos negros, mas ela era delgada emuito loura, os cabelos tinham tons vivos, brilhantes e dou-rados e, apesar da pobreza da roupa, parecia usar umacoroa na cabeça. A sua testa era clara e ampla, os olhos deum azul límpido, e os lábios e a forma do rosto eram tão

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expressivos de sensibilidade e doçura que ninguém podiacontemplá-la sem ver nela uma grande distinção, um entedescido do céu que revelava em todas as suas feições a marcacelestial.

A camponesa, ao ver que a minha mãe fitava aquela en-cantadora menina com admiração, apressou-se a contar-lhea sua história. A mãe, uma alemã, morrera ao deitá-la aomundo, tinham-na deixado em casa desta boa gente, que naaltura era mais abastada, o pai da menina era um italianoeducado na lembrança da antiga glória da Itália, um dosshiavi ognor frementi que lutavam pela liberdade do seupaís. Tornou-se a vítima do seu ideal e não se sabia se tinhamorrido ou se definhava numa prisão austríaca. Os seusbens foram confiscados, a filha tornou-se órfã e pobre, ficouem casa dos pais de leite e desabrochou naquele casebresombrio, mais bela do que uma rosa no meio das sarças.

Quando o meu pai regressou de Milão, encontrou, abrincar comigo no vestíbulo da nossa moradia, uma meninamais bonita do que os anjos, cujo rosto parecia irradiar luze cujos movimentos eram mais leves do que os das cabras--monteses nas montanhas. A aparição depressa foi explicada.Com a sua licença, a minha mãe conseguiu convencer osrústicos guardiões a deixá-la encarregar-se dela. Gostavamda meiga órfã. A sua presença parecera-lhes uma bênção,mas seria injusto criá-la na pobreza quando a Providêncialhe proporcionou uma tão poderosa protecção. Os pobrescamponeses consentiram após consultarem o cura da aldeia,e Elizabeth Lavenza veio viver com os meus pais. Tornou--se mais do que minha irmã, a minha bela e adorada compa-nheira para todas as tarefas e prazeres. Toda a gente gostavadela. A inclinação apaixonada e quase respeitosa que todossentiam por ela, tornou-se, porque a compartilhava, o meuorgulho e a minha alegria. Na véspera do dia em que foilevada para nossa casa, a minha mãe disse-me a rir:

– Tenho um lindo presente para o meu Victor, que o vaireceber amanhã.

E quando, no dia seguinte, me anunciou que Elizabethera o presente prometido, com o ar sério de uma criança

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tomei à letra as suas palavras, considerando Elizabeth comominha… minha apenas, para protegê-la, amá-la e acarinhá-la.Tratávamo-nos familiarmente pelo nome de primos. Nenhumapalavra, nenhuma expressão podem dar uma ideia do queela era para mim… mais do que uma irmã… pois até mor-rer iria ser só minha.