eva perón - a razão da minha vida

231

Upload: ramonlucas

Post on 02-Nov-2015

88 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Livro completo

TRANSCRIPT

  • EVA PERN

    ARAZO

    DAMINHA VIDA

  • Capa: SE. CastanMaio de 1999

    Tradutor: Hlio J. de OliveiraFotografias: Servio Internacional de Publicaes Argentinas

    Ia Edio composta pela Reviso Editora e Livraria Ltda.

    EVA PERON

    A RAZO DA MINHA VIDA

    Reviso Editora e Livraria Ltda.Caixa postal, 1046690.001-970 Porto Alegre, RS., Brasil

    230 pginas 16x21 cm

    Autobiografia - Histria - Poltica

    LS.B.N. N 85-7246-021-7

    ISBN 85-7246-831-?

  • EVA PERON

    ARAZO

    DAMINHA VIDA

  • Todos na vida temos umdia maravilhoso". Para mim,foi o dia em que a minha vidacoincidiu com a vida de Pern.

  • A obra social e humana, levada a cabo em seis anos por Eva Pern, demarcaa transio histrica da Argentina, que, do privilgio odioso imposto como sistemapela oligarquia, passou para o imprio da justia, que, em essncia, constitui a obradoutrinria e prtica do peronismo. Eva Pern, colaboradora insupervel do lder dopovo argentino, o General Juan Pern, demonstrou ser, atravs de todo o seu dinamismo criador, do seu amor pelos humildes, o fator mais eficazmente capacitado paracoadjuvar a profunda transformao social argentina, constatada com verdadeiro ri-gozijo, por todo o povo da Repblica.

    Seria longo enumerar as extraordinrias realizaes levadas a cabo, desde1946, por aquela, que com toda a propriedade, foi denominada a Paladina dos Humildes. No foi, certamente, tarefa fcil a desta mulher excepcional, cujo carter e frrea

    vontade jamais desfaleceram perante os obstculos duma luta titnica, que, luz dosacontecimentos, assume envergadura histrica. Todo o pas pde ver esta admirvelmulher enfrentar as maiores dificuldades com toda a deciso; nenhuma vacilao, nenhum temor, conseguiu apagar as nsias de justia e de redeno social entesouradas

    no seu corao vibrante, as quais, mais do que nunca nessa hora, so o blsamo quemitiga a dor e cura a ferida de todos aqueles que precisam de luz para suas almas e

    bem estar para suas vidas.Em 1946 Eva Pern inicia sua mltipla tarefa em prol do povo. Junto do General Pe

    rn, trabalha sem cessar. No h repouso para ela: repouso que no procura nemquer.Todas as suas fibras da sua nobre vontade trabalham pelo bem estar desse povoque ela ama de maneira entranhvel e apaixonada. Vo surgindo, ento, as maravilho

    sas realizaes que constituem um motivo de orgulho para o sentimento civil dos argentinos. Contra a fora oponente da oligarquia, em luta aberta com os poderosos, ela

    lanou o ardente clamor da verdade. Defende e alenta os trabalhadores e os humildes.Empreende a campanha para a consecuo dos direitos cvicos da mulher, no existindo descanso na vida de Eva Pern. Trabalha de sol a sol, queimando a sua vida. A

    Fundao que ela criou e que leva seu nome, erige Policlnicas, Escolas, Clnicas deReconstituio, Lares de Trnsito, o Lar da Empregada, Lares para Ancios, Cidades

    Infantis, Cidades Estudantis, Cidades Universitrias, Escolas de Enfermeiras, BairrosOperrios, Provedorias, Colnia de Frias para trabalhadores e Colnias Infantis deFrias. Ausculta permanentemente as angstias, as necessidades do seu povo e alvitraas solues materiais e espirituais para cada caso. O seu nome e sua obra ultrapassa as

    fronteiras da Ptria, e os olhos do mundo admiram essa extraordinria ao. Dos maislongnquos recantos da terra querem ver essa mulher que para muitos somente uma

    concepo idealista. Assim, convidada pelos governos de velhos pases da Europa,onde trava contato com os povos, que aclamam a sua presena, deixando neles a li

    o exemplar da sua vida, da sua predica e do seu exemplo.

  • A sua obra retificao do passado, realizao do presente e projeo sem dimensespara o futuro. Na realidade a sua ao to vigorosa, to evidente, que preciso es

    perar a passagem do tempo para avaliar sua obra em toda sua dimenso.Eva Pern julgada j nas suas estupendas realizaes e na projeo das mesmas; na sua ao ori

    entadora do movimento gremial argentino; no amor ao seu povo, que o amor de Pern e o amor a Pern; no seu fanatismo pela causa e pelo Lder; na sua apaixonadainclinao para o bem; na sua fina sensibilidade feminina, que comea com o cuidado

    e proteo s crianas e se estende ao amparo da ancianidade; na sua vitoriosa batalha, aps a qual consegue a incluso da mulher na vida cvica da Repblica; na suahistrica concepo da dor sem fronteiras e na luminosa aspirao, qual entrega os

    dias e as horas da sua vida, para construir um mundo melhor, de amor, de paze de justia.

    OS EDITORES

  • Gva iPeron

    rnzhts *a mttlfa iria

    Prefacid

    ste livro emergiu do mago do meu corao Por mais que'as pginas falem dos meus sentimentos, pensamentos e de/minha vida, o leitor encontrar nele to somente a alma, aexistncia do general Peron, bem como o amor que sinto por ele e sua casa.

    Muitos criticar-me-o por ter escrito isto pensando somentenele. Entretanto isto no exato.

    Tenho minhas razes poderosas, indiscutveis e indubitveis,pois no fui nem sou mais que uma humilde mulher. Um pardal

    entre muitos em revoada, enquanto ele o condor que voa alto entreos cumes e prximo de Deus.

    Se no fosse por ele, que veio a mim e ensinou-me a voar emoutro estilo, talvez nunca soubesse o que ser um condor, nemcontemplar a magnfica grandeza do meu povo. Por isso, nem minhavida, nem meu corao e o que tenho me pertencem. Tudo o que

    sou, tenho, penso e sinto so de Peron.Jamais esquecerei que sou um simples pardal. Se expandomeu vo at as nuvens por ele. Se quase chego a tocar o cu porele. Se conheo o meu povo, o quero e o sinto acariciando o meunome somente por meio dele.

    Por isso, a ele dedico este conto que, tal como o dos pardais, destitudo de beleza, mas, sendo humilde e sincero, encerra todo o

    amor do meu corao.

  • Primeira Parte

    causas ha mtnlja mtssir

    I

    uita gente no explica o destino da minha existncia.! Freqentemente, detenho-me a pensar na seqncia' dos acontecimentos que constituem o meu viver.

    Alguns dos meus conterrneos atribuem-no eventualidade, esse fenmeno raro e inexplicvel que nadaexplica. Todavia, no foi o acaso que me levou ao lugar que

    hoje ocupo, nem vida que desfruto.Obviamente, isto tudo seria absurdo, como a sorte, talqual acusam meus crticos acrrimos, se proviesse da noitepara o dia, de uma mulher superficial, de cultura escassa,vulgar, alheia aos interesses da Ptria, indiferente aos

    sofrimentos do povo e injustia social, futil, e que de sbitotenha me tornado uma fantica defensora da causa da

    populao e que, abraando este anseio, voltei-me a uma vidade incompreensvel sacrifcio. Quero enfaticamente explicar ofenmeno, escrevendo estes apontamentos.

    No o fao para contradizer ou refutar ningum. Queroapenas que os homens e as mulheres do meu Pas saibam oque sinto e penso; que partilhem dos grandes sentimentos quetrago em meu corao e dos ensinamentos que transcreverei,recebidos de Pern e que no me considero no direito de

    mant-los em sigilo.

  • II

    ara desvendar o motivo condutor ao que tudo o que| agora me sucede, reportei-me aos primrdios de1 minha vida. possvel que tenha me expressado mal,argumentando: a razo principal, porque certo que sempreagi, guiada e impelida pelo sentimento.

    Ainda hoje, neste caudal de acontecimentos de quetomo parte, deixo-me, comumente, guiar, antes pelo

    sentimento do que pela razo.Sou costumeiramente forada a apelar ao bom senso,para justificar o que sinto: eis porque, para justificar minhavida atual, em que a obedincia ao que a existncia impe,

    tive que retroceder aos primeiros anos dela, perquirindo essessentimentos que explicam tudo aquilo que para meusobsessivos crticos constitui um sacrifcio incompreensvelque no , para mim, nem sacrifcio nem incompreensvel.

    Assim, pulsando no meu corao, deparei-me com umsentimento fundamental que domina o panorama do meuviver: este sentimento a minha decidida revolta contra a

    injustia.

  • III

    tema de ricos e pobres foi, a partir de ento, o tema(obsessivo de minhas preocupaes. Creio que nunca

    o comentei com outros, nem mesmo com minhame, porm, sobre ele pensava com freqncia. Faltava,entretanto, dar um passo alm no percurso das minhas

    constataes.Obviamente, no ignorava a existncia de ricos epobres, que estes eram mais numerosos que aqueles e que se

    achavam em toda a parte.Ao completar onze anos, comparei os pobres gramados campos e, os ricos, s rvores das florestas.

    Entretanto, ouvi de um trabalhador que a existncia dospobres era devida aos demasiadamente ricos. Compreendi,

    como num claro, que ele tinha razo. Mais convencida pelarazo, senti que dissera a verdade. Alm do mais, j naquela

    poca, os pobres, mais sinceros e bondosos, mereciam mais aminha f do que os ricos. Logo percebi que a terceira

    dimenso era a injustia social.A maioria dos seres sabe, sem qualquer dvida, queexistem pobres pelo fato de haverem ncos, porm concluemisso em etapas sucessivas, fazendo a afirmao parecer

    evidente. Em compensao, percebi, de chofre, o sofrimento,o que fez com que se apresentasse aos meus olhos, de forma

    lgica e natural. Senti, ento, no meu ntimo que, o que queriaque fosse, constatava um sentimento de indignao e revolta.No compreendia que, havendo pobres h, ao mesmo tempo,

    10

  • ricos, e que a ganncia demasiada destes seria a causa quedeterminava a pobreza daqueles.

    Da em diante, jamais pude apreciar essa injustia semum sentimento de indignao Pensar naquilo causava-me uma

    sensao de asfixia, como se, no pudesse remediar o mal,sofresse com a falta de ar.

    Hoje, julgo que nos habituamos injustia social desdea nossa tenra infncia. At os pobres se convencem de que apobreza natural e tem lgica. Acostumaram-se misria deque so vtimas, da mesma maneira como se habituam aoveneno, progressivamente inoculados nos corpos.

    Todavia, nunca pude me acostumar ao veneno. Ainjustia social parecia-me artificial e ilgica desde os onze

    anos de idade.Talvez, isto seja o nico fato insusceptvel de explicaoe que se me apresenta sem causa aparente. Tal como aesttica, que se manifesta cedo, fazendo surgir os poetas epintores, assim a injustia social apareceu-me mostrando aface de rara e dolorosa intensidade, qualquer que seja a formacomo se manifesta.

    Pode um pintor explicar como v e sente as cores? Podeo poeta expor por que faz os poemas? Da mesma forma, noposso justificar porque sinto a injustia nem porque no meconformarei em aceit-la como material, ao contrrio damaioria.

    Mesmo sem encontrar justificativa plausvel, estefenmeno me inaceitvel, tornando-me uma revoltada contra

    a iniqidade social, revolta que me conduziu pela mo, desdeas primeiras constataes at ao dia de hoje ... a causadecisiva que explica como uma mulher superficial, comum eindiferente tenha podido se devotar a tal e incompreensvelsacrifcio.

    11

  • IV

    junca imaginei vir a ter qualquer participao direta.jna luta ao lado do meu povo, pela conquista daInjustia social.

    Mulher dbil, nunca imaginara que esse graveproblema pudesse, um dia, bater porta do meu corao,

    angariando meu humilde esforo. medida que avanava em anos, mais me sentiaoprimida.

    Talvez, por isso, procurei afastar-me de mim,esquecendo a obsesso; por ventura essa tenha sido o motivoque me fez dedicar-me por inteiro estranha e profundavocao artstica.

    Recordo-me que, na infncia, gostava de declamar.Diria estar sempre a querer me comunicar com os outros,

    desejando expressar algo grandioso que sentia borbulhar nocentro do meu corao.

    Hoje, quando falo a meu povo, percebo que estoutransmitindo aquilo que, em vo, desejava dizer nas

    festividades escolares.A vocao artstica levou-me a descortinar outroscenrios; perdi contato com as injustias vulgares do dia-a-

    dia, comeando a vislumbrar, no comeo, e penetrar, depois,na essncia das grandes injustias

    No as via somente na fico, mas sentia-as na realidadeda nova vida. Simulava no v-las, nem desgraa. Desviei

    propositadamente os olhos ao infortnio. Quanto mais tentavaesquec-las, mais elas me envolviam. As evidncias da

    injustia social em que minha Ptria se debatia, manifestavam-12

  • se a cada passo, em todo o momento, perseguindo-me emcada esquina do caminho, em tudo e em todos os dias ...

    Logo a revolta da iniqidade transbordava da taa domeu silncio, quando resolvi, ento, participar de alguns

    conflitos.Pessoalmente, nada tinha a ganhar, passando-me pormediadora amigvel. Ao contrrio, tornara-me malquista por

    aqueles que, contrrios ao meu ponto de vista, exploravamsem d a fraqueza alheia.

    Aquilo superava as minhas foras. De nada valera-me ointento que a mim mesma fizera, de enclausurar-me numpertinaz e misterioso silncio.

    Minha rebeldia interior comeava a aflorar ...Por vezes, devo reconhecer que minhas reaes foramimprprias, minhas palavras e atos, excessivos, a respeito da

    amplitude da injustia que os afrontava.Desoprimia-me, dessa forma, libertando-me pelodesabafo, que mais violento quanto maior for o mpeto quenos oprime.

    Nalgumas dessas reaes, lembrava-me: Um dia istomudar.

    Ignorava se estava suplicando, praguejando ouexpressando ambas as coisas ao mesmo tempo.

    Conquanto as frases fossem inseparveis de qualquerrebeldia, confortava-me como se de maneira convicta, cresse

    nelas. possvel que j, ento, acreditasse verdadeiramente,que aquilo mudaria um dia. Ignorava, todavia, quando e comoaquilo ocorreria, no me passando pela cabea que a sina meestava reservando uma posio humilde, mas, entretanto,numa cruzada redentora no porvir.

    Onde minha infncia se passou, os pobres eram bemmais numerosos que os ricos. Na ingenuidade, teimava quehaveriam outros stios ou no resto do mundo, onde os fatos

    13

  • se desenvolvesse de outra forma, diferente, com a proporoinvertida. Por exemplo, sonhava que as cidades fossemlugares maravilhosos, cheias de riqueza. Tudo o que ao redor

    ouvia, confirmava aquela crena, como se fossem parasos,brandura, onde as pessoas fossem mais pessoas do que no

    meu vilarejo.

    sfer

    Certo dia, talvez nos meus sete anos, conheci a cidadepela primeira vez. Logo percebi que era muito diferente do

    que eu tinha imaginado. O que por primeiro vi foram osbairros pobres. Pelo aspecto das ruas e dos prdios, percebi

    que, na cidade, tambm haviam pobres e ricos A dolorosaconstatao penetrou-me na alma com profundidade, a tal

    ponto que, ainda hoje, quando volto do interior, sinto-metomada da mesma e indefinvel tristeza que naquela poca

    experimentei.Que me recorde, apenas uma vez assaltou-me asensao melanclica igual a que provocou aqueledesapontamento: foi quando soube das inexistncia dos Reis-Magos, seus camelos e brinquedos.

    Aquela descoberta, a certeza de que tambm na cidadehaviam pobres e ricos, marcou-me a alma com ferrete

    doloroso e pungente.Naquele mesmo dia, compreendi, sem contestaopossvel, que os pobres, em muito, ultrapassavam os ricos,

    no s na minha cidade, como em todas as partes do mundo.

    14

  • Vierto dia, movida pela curiosidade provinda das} minhas inclinaes, debrucei-me sobre as colunas da

    imprensa que se intitulavam do povo.Andava cata de companhia ... No ,porventura, verdade que, cada vez que, correndo os olhos

    pelas pginas de um livro, estamos, a rigor, procurando antesuma companhia do que um roteiro a seguir ou um guia que

    nos oriente?Quem sabe se no foi por isso que corri os olhos pelaimprensa esquerdista do Pas? Porm, no encontrei, nem

    companhia, nem roteiro e nem qualquer guia que meorientasse.

    bem verdade que os jornais do povo esbravejavamcontra o capital e contra os capitalistas com linguajar rude eforte, desmascarando as iniqidades do regime social, que

    oprimia o Pas. Porm, nos detalhes e ainda no fundo dapredica, percebi sem dificuldades a influncia de idias

    remotas separadas do autenticamente argentino: sistemas efrmulas alheias aos nossos pontos de vista, concebidas pelas

    mentes de homens estranhos nossa cultura e sentimentosnacionais. Notava-se logo que eles desejavam para o povo

    argentino, no aquilo que ele aspirava. A constatao ps-meem alerta. Havia outra coisa que ainda repugnava meu

    esprito: a soluo para a injustia social era a mesma paratodos os povos e pases do mundo. Eu, porm, considerava

    inconcebvel que, para destruir esse grande mal, fosse precisoaniquilar, concomitantemente, algo to elevado como a Ptria.

    15

  • Nesta altura, quero deixar claro que at alguns anospassados, muitos sindicalistas argentinos, patrocinados por

    organizaes estrangeiras, consideravam a Argentina e seussmbolos, como meros preconceitos do capitalismo e dareligio.

    Mais tarde, comecei a desconfiar daqueles veementesdefensores do povo. Pela leitura daquela imprensa deduzi que,

    em minha Ptria, a iniqidade social s poderia ser banida poruma Revoluo, por ventura, internacional, do exterior e

    conduzida por seres alheios nossa cultura. No cabiam, paramim, seno solues nacionais, resolvendo problemas visveis,

    com solues simples, ao contrrio das rebuscadas teoriaseconmicas. Isto , optar por solues patriticas, prprias

    para remir o prprio povo. Assim, perguntava-me: Para queaumentar ainda mais os sofrimentos das vtimas dessa

    injustia, tirando-lhes os anseios de Ptria e de F, a que estoacostumadas? Por conseguinte, seria como tirar da paisagem

    o firmamento que a emoldura.Em vez de atacar a Ptria e a Religio, por que taisdirigentes no trataram de uni-las a favor desse mesmo povo?

    Suspeitei de que aquela gente trabalhava mais para oenfraquecimento da moral da nao do que pelo bem-estar dooperariado. Por isso, no gostei da soluo.

    Embora sabendo pouco da situao global, tinha aorientao do corao e do sentido comum. Pesarosa, voltei

    s minhas meditaes anteriores, convencida de que nopossuiria lugar naquela luta inglria. Resignei-me a viver na

    minha revolta ntima e que, agora, se somava quela outra,gerada no meu corao, oriunda da deslealdade daqueles

    pretensos condutores do povo, cuja traio acabara dedescobrir. Resignei-me em ser vtima.

    16

  • VI

    i a vida de todos ns h sempre um momento que se|>nos apresenta como definitivo. um dia queI" supomos ser montono, sem oscilaes, sem curvas,nem paisagens. Pensamos, nesse momento, que, para o futuro,teremos uma rotina para o resto da nossa existncia, cingidos

    a um rumo tomado em definitivo. Foi mais ou menos isso oque me ocorreu naquela etapa da vida.

    Anteriormente, disse que me resignaria a ser vtima.Pois iria alm: na verdade, acomodei-me a passar uma vida

    comum, montona, que supunha estril e inevitvel. No viamaneira de evit-la. Do outro lado, aquela minha vida se

    agitava dentro da monotonia diuturna, no me reservandotempo para nada.

    Entretanto, o fato era de que, no fundo do meu ntimo,no me conformava em aceitar aquela insipida situao como

    definitiva.Finalmente, chegou o dia maravilhoso, quando minhavida coincidiu com a de Peron. Aquele primeiro encontro

    deixou no meu corao uma impresso indelvel. No possofurtar-me ao prazer de descrev-lo, porque ele assinalava oincio da minha verdadeira existncia ...

    Hoje, sei que os homens se classificam em dois grupos.Um, muitssimo numeroso, arregimenta os que se ligam s

    azfamas comuns e fugazes. Esses s concluem roteiros17

  • conhecidos, j palmilhado pelos pioneiros. Outro, muitopequeno, formado por homens que s se ligam a grandes

    realizaes. Estes s se aprazem na glria.Aspiram, na atualidade, o ar do prximo sculo que lhesh de entoar as virtudes e que vivem quase na eternidade.Enfileiram-se, nessa legio de escol, os homens para quem

    uma nova vereda a desbravar oferece sempre o encantamentoe o fascnio irresistvel. Para Alexandre, foi o caminho daPrsia. Para Colombo, o das ndias. Para Napoleo, o quelevava ao imprio do mundo. Para San Martin, o da escalada

    dos Andes e liberdade da Amrica. Neste mundo restrito,formava-se o homem com quem me deparei. No meu pas, o

    que estava para ser feito era, nada menos, que umaRevoluo. Para isto, o nmero dos homens capazes de

    concluir o spero caminho se deduz ao extremo de quasedesaparecer totalmente.

    Muitas foram as revolues aqui realizadas. Muitas sefizeram em outros pases do mundo. Qualquer revoluo

    sempre um caminho difcil de percorrer. Ela reservada aoreduzido nmero dos que sentem, no ntimo, o engodo das

    empresas arriscadas. Da, a causa de terem fracassado, nopassado, as revolues almejadas pelo povo ou realizadas

    com seu apoio integral. Quando a Segunda Guerra Mundialafrouxou a influncia dos imperialismos, que, protegendo a

    oligarquia, se haviam encastelado em nosso pas, um punhadode homens se atirou ao empreendimento de realizar aRevoluo que o povo almejava.

    Aquele punhado tencionava palmilhar o novo percurso.Todavia, aos primeiros embates da dura realidade, a maioria

    deu para repetir o que j fora alardeado at ao cansao emoutros movimentos ... e a Revoluo, essa foi jogada para o

    meio da rua, desfeita no ar, na esperana frustrada de um

    18

  • povo, a feio de qualquer coisa frustrada e por conseqncia,no realizado ...

    Porm, entre os mentores daquele movimento, havia umque insistia em progredir pelo rido caminho traado. Eu vi

    este homem surgir do miradouro da minha velha inquietudeinterior. Era diferente de todos. Os outros bradavam: fogo emandavam avanar. Ele ordenava: fogo e avanava ele

    prprio, resoluto, tenaz, numa nica direo, sem hesitar antequalquer obstculo.

    Naquele momento, senti que os seus grito e caminhoeram os meus prprios grito e caminho. Coloquei-me a seu

    lado. Surpreendeu-me. E, quando, afinal, me ouviu, s atinavaem dizer-lhe com as melhores palavras: Se a causa do

    povo como afianas, to longe quanto se deva ir pelocaminho do sacrifcio, estarei ao teu lado at desfalecer.

    Ele aceitou minha oferta e aquele foi o meu diamaravilhoso.

    19

  • VII

    i o tardou que, da beira da estrada, homens comuns>nos apedrejassem, cobrindo-nos de injrias e\ insultos. Os homens comuns so os eternos inimigosde tudo o que indito, de todo o empreendimento inusitado,de toda a concepo extraordinria e, por conseguinte, de

    qualquer Revoluo. J foi dito que o medocre o maisferoze frio inimigo do gnio ... O que quer que tenha o mnimo

    trao de extraordinrio, na restrita concepo da palavra,assume, para eles, um significado de loucura imperdovel, de

    fanatismo e se torna, portanto, perigoso.Eu os tenho visto a fitar-me compadecidos emisericordiosos, com aquele qu de superioridade que os

    caracteriza em corpo e esprito.Esses nunca conseguiro compreender como e porquese deve fazer algo diferente do que eles imaginam, Nadafazem que no se volte em proveito prprio.

    Viram Peron avanar. A princpio riram, chamando-o delouco e acreditando que o fosse. Porm, logo que perceberamque aquele louco incendiava coraes, onde as labaredas jtocavam-lhes os interesses e ambies, ficaram alarmados.Da, uniram foras e organizaram-se nas trevas para expuls-

    lo do cenrio.Todavia, no contavam com o povo. Ignorando-o, nolhes ocorreu alguma vez que este poderia realizar por si os

    prprios desgnios e resolver o destino.

    20

  • Ento, pergunto: por que os homens humildes, osoperrios do meu pas no reagiram como os homens comunse, ao contrrio, creram desde cedo em Peron e o

    compreenderam? A justificativa s pode ser uma: basta verPeron para acreditar nele, na sua sinceridade, na sua lealdade

    e na sua franqueza.Eles o viram e lhe deram crdito. Repetia-se, semvariaes, o caso de Belm, ocorrido a dois milnios

    passados. Os primeiras a acreditar foram os humildes, osdesamparados, no os ricos, os eruditos, nem os poderosos.

    Ocorre que os ricos, os eruditos, e os poderosos tm osolhos da alma vendados pelo egosmo e pela avareza.

    Os pobres, em compensao, tal como os de Belm,vivem e dormem ao ar livre, com as janelas da alma

    escancaradas para as coisas e os sucessos extraordinrios. Porisso viram, por isso ainda crem. Bem sei quantas vezes ele

    no apostou a partida numa nica carta!Finalmente, ganhou. Felizmente, porque, do contrrio,tudo estaria perdido, inclusive a vida.

    Eu, de minha parte, mantinha-me fiel promessa depermanecer ao seu lado. Sustentava a lmpada que lhe

    iluminava nas viglias, Encorajei-o como pude e soube,encobrindo-lhe as costas com o meu amor e a minha f.

    Quantas vezes no me recostei imvel a fit-lo, do cantodo gabinete da Secretaria de Trabalho e Previdncia, vendo-opaciente e bondosamente recolher as lamrias dostrabalhadores humildes, dirigir-lhes palavras de consolo,

    prodigalizar em mancheias solues para os problemas que hanos afligiam aquela gente! Quantas vezes!

    Jamais apagar-se-me-o da memria aquelas cenasiniciais da nossa vida em comum! Foi ali que o conheci,

    franco, cordial, humilde, generoso e incansvel. Foi ali que21

  • vislumbrei a grandiosidade da sua alma e o corao indmitodo seu nobre corao.

    Ao fit-lo meu esprito se alarga, como se tudo aquilofosse um cu azul e de ar mais puro. A velha angstia que me

    oprimia o corao comeava a desfazer-se, tal como a neve dederrete aos raios do Sol. Sentia-me felicssima, repetindo,

    cada vez, com mais fora: sim, este o homem do meu povoe ningum ir comparar-se a ele!

    Cada vez que o via cumprimentar as mos calejadas deum trabalhador, fazia com que eu me sentisse entre o povo,

    apertando nele e por ele, pela primeira vez, as mos dafelicidade...

    22

  • VIII

    incndio se espalhava entre ns. Os homens| comuns, da oligarquia comodista e tranqila,' pensavam ter chegado o momento de dar um fim aoincendirio pensamento que alimentava o incndio. Assimdeliberaram a execuo dos planos.

    Isto ocorreu no momento derradeiro da Argentinaoligarquista Depois, amanheceu ..

    Durante oito dias tiveram Peron entre suas mosignbeis. Embora no estivesse com ele no crcere, aqueletempo ainda me punge nas entranhas. Mais intensos do que se

    estivesse compartilhando com ele, numa masmorra daquelesoito lgubres dias. Quando se despediu, recomendou-me quemantivesse a calma. Confesso que, antes, nunca o vira tomagnfico e sereno. Recordo-me de um embaixador, nosso

    amigo, que veio oferecer-nos refugio. Com poucas palavras ecom gestos simples, Peron externou-lhe que ficaria na Ptria,

    decidido a enfrentar tudo entre o seu povo. Desde que Peronpartiu, at quando o povo o trouxe de volta - e para mim -

    meus dias foram perodos de dor e angstia febris. Deixei acasa procura de amigos que se propuseram a fazer algo por

    ele. Perambulei, assim, de porta em porta. No penoso eincansvel caminhar, sentia os batimentos do corao,

    queimando, qual brasa, a minha pequenez. Nunca me senti topequena, to insignificante, como naquela semana memorvel.Percorri todos os bairros da grande cidade. Desde l, tenhoconhecido a gama completa dos coraes que palpitam sob o

    cu da minha terra.

    23

  • A medida que descia dos bairros altos, orgulhosos ericos, em direo aos pobres e humildes, mais sinceras,generosas e cordiais, eram as portas que se me abriam.

    Conheci, no alto, o que eram os coraes frios,calculistas e prudentes dos homens comuns, incapacitados depensar e de realizar algo extraordinrio, que se traduziam emorgulhosos e nauseantes.

    Foi este o madeiro mais amargo do meu calvrio. Acovardia daqueles homens que podendo fazer tanto, nada se

    predispuseram em agir. Lavaram as mos, qual Pilatos,magoando-me mais do que os brbaros espancamentos de que

    fui vtima, quando um bando de covardes me indiciou: "Essa a Eva Peron!" Os golpes sofridos fizeram-me bem. A cada

    pancada eu morria e, ao mesmo tempo, renascia. Foi aquelebatismo de dor, simultaneamente brbaro e inefvel, que

    purificou-me de todas as dvidas e de todas as covardias. Poracaso, no lhe havia dito: "To longe quanto te acompanho

    no sacrifcio, estarei junto a ti at desfalecer."Naquele dia, convenci-me de que no difcil morrerpela. causa que amamos ou mais simplesmente, morrer poramor.

    24

  • IX

    lonservo muitas lembranas daqueles dias aziagos.(Interligados com as sombras da traio e da covardia,

    surgem do mar de minhas recordaes, os gestosiluminados da lealdade e do valor. Entretanto, no meupropsito referir-me a esse captulo em detalhes.

    Outubro de 1945 um quadro de sombras e de luzes.Ser mais prudente no nos aprofundarmos muito nele,contemplando-o de longe. ... Isso, todavia, no me impede deregistrar, aqui, com toda a franqueza e com antecipao do

    que est por vir, quando me decidir a pormenorizar taissucessos, que a luz veio unicamente do povo.

    Esta obra visa somente expor as causas e os fins damisso que tenho me devotado; no podendo esquecer umepisdio que se mantm em meu esprito, como motivo

    determinante do que sou neste momento, para a Ptria e que,pelo profundo significado, contribuiu para me conduzir aolugar que agora ocupo no cenrio do movimento justicialista.Lembro que, em minha solido, enquanto, com desespero,

    percorria a cidade, esperava receber a qualquer momento,alguma mensagem do Lder prisioneiro e ausente. Estava certa

    que, de alguma maneira surgiria algum para me darinformaes do lugar em que estava e do seu estado de sade.Aguardava por essas notcias com a alma pendurada em umfio, torturada pela angstia.

    Guardo daquele dia, diversos bilhetes escritos por ele.Em todos se nota, plo trao claro e firme da letra, o esprito

    sereno com que enfrentou os acontecimentos. Em todos, amesma recomendao insistente: "Cuida dos meus

    25

  • trabalhadores, acalma-os, no os deixes se preocuparemcomigo, aconselha-os a evitar qualquer violncia."

    Quanto a mim, confesso com sinceridade, continuava aprocurar em todas as cartas, uma palavra ao menos quefalasse do seu amor por mim.

    No tardou que esta palavra viesse. Eram todasreferncias aos seus trabalhadores, que, naquela poca,

    comeavam a ser motejados pela oligarquia com o apelido dedescamisados. Esta rara insistncia me iluminou o esprito,

    como num sbito claro.Por que no percebera antes?! Aquele confiar-me seustrabalhadores era a sua palavra de amor, a mais sensvel

    expresso de amor!Capacitar-me da verdade, foi naquele momento, comoainda hoje, um grande archote de luz, iluminando-me a vida.

    A mim, uma humilde e pequena mulher, confiava ele oque mais caro lhe era ao corao: os seus trabalhadores!

    Pensava comigo, poderia ter encarregado esta tarefa aoutra pessoa, a qualquer dos seus amigos mais chegados, aum dirigente sindical. Mas no! Fora eu a escolhida para omelindroso encargo: a mim, que s sabia am-lo, com todas

    as foras da alma!Esta era, sem dvida, a prova mais certa do seu amor.Prova que estava a exigir uma resposta condigna. E eu lhe dei.

    Dei-lhe ento, como continuo ofertando-lhe hoje. Enquantoexistir, no me esquecerei de que Peron me recomendou seustrabalhadores descamisados na hora mais difcil da sua vida.Enquanto restar-me um sopro de vida, no me esquecerei da

    sua prova de amor, confiando-me o cuidado dos seusoperrios. Era a maneira de expressar o testemunho do amor

    que sentia por mim. Hoje sei, sem nenhuma dvida, queaquela foi a mais pura e sublime maneira de faz-lo.

    26

  • Desde ento, cada vez que quero exprimir-lhe o amorde mulher - e quero salient-lo neste momento - no atino

    como meio mais puro, mais tocante, que o de oferecer-lhe umpouco de minha vida, incinerando-a por amor aos seusdescamisados.

    este, muito simplesmente, o meu dever de gratidopara com ele e para com eles, e eu o cumpro feliz, como se

    cumprem todos os deveres impostos pelo amor.

    27

  • XIk o foi certamente o acaso o motivo do que sou hoje,bno meu pas e para o meu povo. Estou convicta delter sido forjada para a tarefa que realizo e para a vidaque sigo. Quando perquiro, na intimidade de minhalma, odestino que me coube seguir, mais adquiro a certeza de que

    acaso e a contingncia nada mais so do que hipocrisiasdesprovidas de contedo.

    Se a contingncia e o acaso governassem o mundo, tudose revolveria num caos grotesco. Ningum poderia convivernum cenrio to mutvel. No. A casualidade no conduz o

    mundo, nem os seres humanos. Por sorte, Deus seja louvado,tudo se processa de forma bem diferente, numa harmonia, a

    que alguns denominam de destino; outros, de providncia e,os demais, Deus. Creio com certeza, numa potncia

    desconhecida, que prepara os seres humanos para odesempenho da misso particular que a cada um atribui nesta

    Terra.Se esta fora maravilhosa divina ou se foi colocadapor Deus na ndole da sociedade ou na prpria essncia da

    alma, no me cumpre averiguar. Somente sei que ela existe,conduzindo-nos sem violncia ao nosso destino, desde que

    no nos furtemos colaborao generosa. O que no admitecontestao que a vontade espiritual infinitamente maisfecunda que a outra, que a tudo subjuga numa contingnciafortuita.

    Sim, porque quem se julga filho da sorte, a nada sesente obrigado. por isso que o acaso carece depersonalidade e no faz quaisquer exigncias. Aquele, porm,

    28

  • que se considera filho do destino, da providncia ou de outrafora qualquer, ignorada, mas, em todo o caso, superior suaprpria vida e natureza, sente-se irremediavelmente

    responsvel pela misso que lhe foi investida. Escuso-me poressas divagaes que, sem intuito deliberado, saram-meenvolvidas num tom filosfico, que no lhes quis atribuir.

    Todavia, julgo que devia proferir tudo quanto disse, de umlado, porque sinto-as desse modo, e de outro, porque se meparecem trusmos.

    Toda a minha vida uma prova irrefutvel do que acabode afirmar. Se no tivesse chegado a ser o que sou, hoje, toda

    a minha existncia teria ficado sem explicao. Por que tenhosofrido sempre, frente injustia? Por que nunca me resignei aaceitar a diviso entre pobres e ricos como um fenmenonatural? Por que esta sensao de revolta face aos detentores

    do poder, dos possuidores onipotentes do dinheiro, quesugam o sangue dos humildes e dos pobres? Por que no pudelivrar-me nunca desta angstia que me abafava? Por que atao advento do meu dia maravilhoso, me senti solitria,

    desconcertada, como se minha vida carecesse de sentido erazo? Estas e outras perguntas teriam ficado sem resposta, se

    no tivesse me deparado com Peron, se no visse nele a causado meu povo.

    No! No certamente o acaso que coloca um homeme uma mulher frente de um acontecimento expressivo! Pelo

    contrrio, poder-se-ia dizer que as grandes causas temperamas almas que as abraam. Em parte, isto pode ser vocao,entretanto, evidente a existncia de outro fator, cujaexplicao no est em ns e que no se condiciona aqualquer contingncia.

    Todo aquele que se vir de sbito guindado a um cargode responsabilidade, na direo de um magno propsito,

    dever procurar na vida passada, vasculhar as suas lembranas29

  • cata da explicao, que, sem dvida, a encontrar. S destamaneira poder conscientizar-se da responsabilidade e

    habilitar-se a trabalhar lealmente pela obra que abraar. Julgoque os espectadores dos fatos dessa natureza mostrar-se iam

    desavisados, atribuindo tudo sorte. No seria mais plausvelaceitar a presena de algo alm?

    claro que no estou afirmando ser Deus quemdetermina todas essas coisas. Considero que Ele, no magnficoordenamento de todas as leis e potestades, dever ter criadoalguma que dirige aqueles que, livre e generosamente, se

    deixam levar. Esta a despretensiosa explicao que dou minha vida e ao meu caso. Entre os alfarrbios de Peron,

    conservo um que focaliza um tema similar, datado antes deassumir a presidncia. Nele, est abordado com sinceridade, o

    que lhe nato, neste assunto sempre atual da vocao e dodestino.

    Nada melhor do que reproduzi-lo integralmente, talcomo ele o concebeu. Pois ali se lhe retrata a alma, na

    simplicidade e na grandeza, poupando-me ao grave encargode lhe fazer o esboo, o que, de resto, seria impossvel aosmeus meios escassos. Para conhecer o Sol, no basta apenas a

    sua descrio Ningum, que no o sentiu, tentaria, jamais,descrev-lo. Para conhec-lo preciso senti-lo e fit-lo.Todavia, fitando-o, a luminosidade nos ofuscar.

    Vo, a seguir, suas palavras, sua alma e seu corao.Convido-te simplesmente a l-los.

    30

  • XI

    i anto na vida dos povos como na dos indivduos, nemi tudo depende do destino, disse Peron. A eles cabe

    auxiliar o porvir. Tanto em minha vida, como na domeu povo, esta verdade cumpre-se risca.

    No conduzo meu povo apenas por um decreto dodestino. De uma forma paralela, posso afirmar e demonstrar

    que este povo se preparou com pacincia, embora de formainconsciente, para esta hora do destino. A providncia limita-

    se a dispor os meios de molde a se harmonizarem aosacontecimentos de tal e no de qual maneira No entanto,estes sobrevm, quase sempre, porque o queremos. Tivessenascido em qualquer outro ponto do pas e, talvez, no fosse

    o Presidente da Repblica. Mesmo porque, nesta alternativa,o meio lhe teria impelido a outras direes. No teria sidomilitar nem teria aprendido na carreira escolhida todo este

    acmulo de conhecimentos e nem teria se colocado naconjuntura de promover uma Revoluo. Estas so as

    pequenas coisas que esto nas mos da Providncia Elacombina as infinitas circunstncias, sem que ningum ouse,jamais, devassar o mistrio do seu mecanismo. Quanto ao

    resto, ns o fazemos. Foi assim que me vi, um dia, naencruzilhada que resolveu meu destino.

    O pas estava s. Marchava sem rumo. Tudo havia sidoentregue ao estrangeiro. O povo gemia, oprimido, negado,privado da justia. Pases estranhos e foras internacionais

    atrelavam-no a um domnio em nada diferente da opresso

    1 Extrado dos apontamentos do general Peron.31

  • colonial. Adverti que tudo isso tinha remdio. Em poucotempo, conclura que estava em minhas mo conduzi-lo. Neste

    preciso instante, o problema do meu pas passou a ser umproblema da minha conscincia. Resolvi-o, decidindo pela

    Revoluo. Nesta deciso consistiu minha ajuda ao destino.

    Passados dois anos e meio, tudo parecia perdido. Tinhalutado intensamente na Secretaria do Trabalho e Previdncia.

    O povo me compreendia. Os trabalhadores do pas sabiamagora o que era justia social e trilhavam no meu rastro, como

    no encalo de uma bandeiraPorm, as foras conjuradas da oligarquia e dos poderesinternacionais se impuseram, em dado momento, mais do que

    o povo e mais do que a minha prpria vontade. Isto foi emoutubro de 1945 Essa , todavia, a histria conhecida

    Durante oito dias conheci toda a sorte de solido, deabandono e de amargura E, tal como num dia pressenti ser

    imperioso fazer uma Revoluo, assim senti que este era odesejo do povo, vivendo no momento supremo da suahistria

    Conheceu que tudo se havia perdido, mas que tudoainda poderia ser recuperado Advertiu a tempo que tudo

    dependia da deciso que adotasse. E adotou-a O resto foifeito pela providncia Porm, a deciso, esta sim, coube ao

    povo: foi a ajuda que ele deu ao seu destino. Eis a as razesda minha eleio. Duas decises em dois momentos

    providenciais.Mas para a grande culminncia deste supremo momentofoi antecedida por um longo perodo de preparao.

    32

  • A mim, prepara-me a vida, o lar paterno, minha infnciana Patagnia bravia, a vida na montanha e minhas viagens pelaEuropa.

    Acamaradei-me com a vitria. Vencer a natureza tarefa bem mais rdua do que conduzir e dominar homens. E

    quantas vezes no tive de enfrentar as foras naturais! Equantas vezes no as venci!

    Tudo isto habilitou-me a sentir com maior intensidade asorte do meu povo. Este encadeamento de sucessos anteriorespreparou-me para o momento crtico da deciso.

    Quanto ao povo, antes de adotar, em outubro de 1945,a vontade de me resgatar e de me confiar logo a direo doseu destino, passara igualmente por longa etapa depreparao. Esta etapa resumiu-se num lento despertar.

    No perodo que transcorreu de 1943 a 1945, o povonada mais fez do que sair de uma velha letargia de mais de umsculo. Ao longo de todos esses cem anos, vivera apenas das

    suas velhas glrias. No esquecera a faanha dos granadeiros.Subsistia, lmpida e pura, a irrenuncivel vocao para aliberdade e para a justia. Assim, foi-me fcil despert-lo.Bastou-me, para tanto, insistir nos velhos temas da hora inicial

    da sua vida: a justia, a liberdade, a independncia e asoberania.

    fer

    evidente que minha eleio no foi obra do acaso. Aprovidncia desempenhou obviamente o seu papel. Istoagradeo a Deus. Entretanto, o povo e eu a auxiliamos. Achave do porvir jaz em que velemos para que isto se de

    sempre entre ns.

    33

  • XII

    uem leu o captulo anterior, est apto a compreender) porque, sendo Peron como : - genial na sua

    ' grandeza humilde -, sou eu como sou: fervorosa efanaticamente peronista. O prprio lder ousa dizer-me, svezes, em tom carinhoso, que sou por demais peronista.

    Lembro-me de que, numa tarde, estivera a falar-lhelongamente do que poderia falar, seno dele, dos seus

    devaneios, dos seus feitos, da sua doutrina, das suasconquistas? De sbito, interrompeu-me, dizendo: "Tanto me

    falas de Peron que vou acabar me antipatizando com ele!".No se admire, portanto, quem, procurando nestaspginas um retrato meu, acabar deparando-se com a figura

    dele. que reconheo que, de h muito, deixei de existir emmim mesma. ele quem mora na minha alma, o dono deminhas palavras e dos meus sentimentos, senhor absoluto domeu corao e da minha vida. Velho, velhssimo milagre de

    amor, que, podendo repetir-se no mundo, nos faz cada diamenos milagroso.

    Certa feita, disseram-me que eu era por demais ligadaao peronismo para poder conduzir um movimento feminista

    em minha Ptria. Muitas vezes tenho repetido esta frase nospensamentos e, conquanto haja sentido, desde logo, sintotratar-se de uma falcia. Hesitei durante um longo tempo em

    procurar uma explicao que tornasse evidente aos meusolhos, a razo dessa mentira. Hoje posso afirmar minhasconcluses: verdade, sou peronista, fanaticamente

    peronista. Mas no em demasia. Demasiadamente seria se operonismo no fosse, como , o anseio de um homem que,

    34

  • identificado com a causa de um povo, cobra valor infinito. E,ao p do vocbulo - infinito - no procede salientar a palavrademasiado.

    Peron diz que sou excessivamente peronista porque nopode medir sua prpria grandeza com a rgua da humildade.

    Os outros, aqueles que sem o dizer, assim pensam porquepertencem categoria dos homens comuns. E, como tal, nomerecem resposta.

    Quanto assertiva de que sendo peronista, no possoliderar um movimentos feminista em minha ptria, isio

    merece, a meu ver, uma explicao a parte. Como iria a senhora, diziam-me, dirigir ummovimento feminista, fanaticamente apaixonada, como est,pela causa de um homem? No est com isto reconhecendo,

    implicitamente, a superioridade do homem sobre a mulher?No isto contraditrio?

    No. No . Pois eu o sentia. Agora sei. O feminismono incompatvel com a natureza da mulher. O natural, namulher, a entrega de si mesma, a entrega por amor, que lhevo nessa entrega a glria, a salvao e a eternidade.

    O melhor movimento feminista do mundo no seriaassim, aquele que se entregasse por amor causa e doutrinade um homem, que tivesse demonstrado ser tal, em toda a

    extenso da palavra?Da mesma forma que uma mulher alcana a eternidade ea glria, doando-se por amor a um homem, e se poupa da

    solido e da morte, assim penso que um movimento feministaalcanar, no mundo da glria e da eternidade, se no se

    devotar causa de um homem. O que importa, acima de tudo, que a causa e o homem sejam dignos dessa entrega total!

    Ora, Peron e a sua causa so suficientemente grandes edignas para receber a oferenda total do movimento feminista

    da minha Ptria. Mais ainda. Todas as mulheres do mundo35

  • poderiam brindar-se ao seu Justicialismo, certas de que,entregando-se por amor a uma causa, que j patrimnio dahumanidade, estariam sublimando sua prpria essncia feminil.

    Por que, se bem verdade, que a causa se glorificaria,recebendo-as, no seria menos certo que elas, por sua vez, se

    glorificariam na entrega. Por isso sou e continuarei sendoperonista at o ltimo alento; porque a causa de Peron me

    glorifica e dando-me, como me d, a fecundidade de sua vida,est, de passo em passo, projetando-me na eternidade das

    obras que por ele realizo e que me sobrevivero, como minhasfilhas diletas, muito depois que me tenha ido deste mundo.

    Mas no somente pela causa que Peron defende quesou peronista. Sou-a tambm pela sua pessoa, como homem,ao ponto que no saberia dizer ao certo qual dessas duasrazes prevalece sobre a outra.

    J disse como e em que medida sou peronista. Agora,resta-me dizer como e em que medida o sou por ele.

    Aqui aconselho a virar a pgina queles que pensam queentre Peron e mim se deu um matrimnio de conveninciapoltica.

    Os que assim pensam, s vero nesta pgina literatura epropaganda.

    Casamo-nos por amor e amvamo-nos porquequeramos a mesma coisa, se bem que de maneira diversa; ele,cnscio do que se propunha a fazer, eu, pressentindo-o, no

    ntimo de mim mesma; ele com a inteligncia e eu, com ocorao; ele aparelhado para a luta e eu, disposta a tudo, mastudo ignorando: ele, culto, eu, simples, ele, enorme, eu,

    pequena; ele, o mestre, eu, sua aluna; ele, a figura, eu asombra; ele, seguro de si, eu, certa apenas dele. Eis porquenos casamos antes mesmo da batalha decisiva pela liberdade

    do nosso povo, previamente certos de que nem o triunfo, nem

    36

  • a derrota, nem a glria, nem o fracasso poderiam destruir aunidade dos nossos coraes. Sim, eu estava certa dele!

    Sabia que o poder no o afetaria, nem haveria detransform-lo. Sabia que continuaria a ser o que sempre fora:

    sbrio, madrugador, insacivel em sua sede de justia, simplese humilde. Tal como o vira pela primeira vez: estendendo,generoso, a mo espalmada aos homens do povo. Sabia queno se sentiria a gosto nos sales onde campeia a mentira, queum homem do seu quilate repeliria. Sabia, por outro lado,

    como deveria pautar minha conduta, para harmoniz-la a dele.Para tanto, deveria galgar altos cumes, mas no me escapava

    o quanto era maravilhosa sua humildade, que o fazia descer amim.

    Apliquei-me, a partir daquele momento, a fazer com quecada dia visse ele em mim um defeito a menos, at que

    desaparecessem de todo. Que outra coisa poderia fazer,conhecendo seu planos e projetos? Porque ele no me

    conquistou com palavras bonitas, nem acenando-me comfalsos chamarizes. No me prometeu glria ou honrarias.Nada maravilhoso. Mais ainda, creio que nunca me prometeu

    coisa alguma. Falou-me unicamente do seu povo, com tantafreqncia que acabei me persuadindo que sua verdadeirapromessa de amor estava ali, no seu povo, no meu povo, no

    nosso povo.Tudo isto muito simples e fcil de compreender. ocaminho que percorre todas as mulheres quando amam ohomem de uma causa. A princpio, esta causa simplesmentea sua causa. Passado algum tempo, comeamos a dizer aminha causa. E quando o amor atinge, enfim, sua perfeio

    definitiva, este sentimento egosta, que nos leva a dizer minhacausa, substitudo por outro, de unidade total, e passamos adizer nossa causa. Quando este momento chega, j no se

    pode afirmar que o amor causa seja maior ou menor do que37

  • o amor ao homem que a advoga. Creio, por mim, que sejamuma e mesma coisa. Eis porque digo agora: sim, souperonista, fanaticamente peronista!

    Todavia, no poderia dizer que amo mais a Peron doque sua causa e vice-versa; que, para mim um e outra soum nico envolvimento, tudo num s amor.

    Quando afirmo, nos meus discursos e conversas que acausa de Peron a causa do povo, e que Peron a Ptria e o povo, nada mais fao que dar uma prova rrecorrvel de quetudo na minha vida est selado por um nico amor.

    38

  • XIII

    SS0 contmuar falando de Peron9 E ainda que algumdissesse: pudera!, o que, propsito de serdeselegante, seria torpe, devo continuar tecendoelogios ao meu Lder Quem, melhor do que eu poderia faz-lo9 Conheo-o como mulher e como peronista Conheo-o emsua misso de presidente e em sua vida no lar. Sei comotrabalha e como descansa Como fala e como silencia. Como

    se alegra e como sofre Como ningum, conheo seuspequenos gestos Esses gestos que definem as grandes almas

    Alm do mais, estaria sendo desleal para com meu povo , seno o fizesse Tanto mais que ningum poder pensar que osmeus elogios tenham o menor laivo de interesse

    Dele tenho recebido tudo o quanto poderia aspirar, arigor, muito mais do que mereo. Mas no levada por um

    sentimento de gratido que falo dele a toda a hora, em toda aparte, nos meus discursos, como nas minhas palestrasprivadas No Fao-o por necessidade, pela mesma razo queleva os poetas a compor versos e as rosas a florescer .

    Tenho bem presente no esprito, por exemplo, o modopor que me ensinou sua doutrina, mostrando-me seus

    programas, pondo-me a par dos grandes problemas da vidanacional. Como me fez distinguir o possvel do impossvel, e oideal do prtico.

    39

  • Cada conversa que tenho com ele se resume numa liomaravilhosa, num tom que nunca foge da amenidade. No soueu, sua mais constante discpula, a nica a afirm-lo.

    Afirmam-no todos quantos dele se acercam, qualquer que sejao motivo. Acontece que ele sabe falar com simplicidade tanto

    das coisas mais simples como das mais complexas. Nada h,para ele, que no tenha uma explicao acessvel, mesmo para

    os menos avisados. Ningum se enfastia com ele. Ningum sesente importuno. Todos os que, por qualquer razo, entramno seu gabinete, acanhados e constrangidos, vem esseconstrangimento desaparecer como por passe de mgica, ao

    condo de suas primeiras palavras. Logo no cumprimentoinicial, ningum o ver como o Presidente, o lder de milhes

    de homens e mulheres, mas, simplesmente, um amigo afvel ecordial. amvel e solcito com todos, como se mostra emtodos os atos da vida. Foi assim, numa cordialidade

    encantadora, que me ensinou tudo o que sabia para medesembaraar, com proficincia, da misso que me cabe, e,coisa estranha, dando-me a sensao de ser eu quem estava

    ensinando.

    Dele aprendi, por exemplo, a deixar de lado tudo o queseja negativo e a procurar sempre empresas irrealizadas,regies nvias, que ningum ousa trilhar. Freqentementeocorre-me conceber uma idia, sentir que fecunda e til, e

    que, se realizada, render grandes benefcios causa do povo.Exponho-a primeiro ao crculo restrito dos amigos. Quasetodos a aprovam, conquanto nem todos convictos do seu

    prstimo.

    40

  • Entretanto, h alguns que tentam dissuadir-me. E assimvenho a saber que dissentem comigo. Neste aspecto

    particular, eu, porm, quando absolutamente convencida dasexcelncias da idia, quando sinto que tem por fora para dar

    certo, inclino-me a corporiz-la, sem atentar para vaticnios.E so estas as melhores realizaes de minha vida!

    Assim nasceu a Fundao, e, tambm assim, surgiu oMovimento Peronista Feminino.

    Ainda com ele, aprendi a realizar. Ele sempreconstrutivo, tanto na palavra como na ao. Com freqncia,me diz: "No te esqueas que "o melhor o inimigo do bom".E aludindo doutrina: "De nada valeria uma doutrina, com

    todas as suas vantagens, se no houvessem homens pararealiz-la...".

    Confesso que padeo de uma febre permanente derealizaes, febre que ele me contagiou.

    Foi ele quem me ensinou que nem sempre os planos soindispensveis realizao dos grandes programas. Se os h,

    melhor, mas em se no dispondo deles, o que importa, acimade tudo, iniciar as obras, para, mais adiante, formular os

    planos.Mas, para que no se pense que Pern tenha pecadocontra a arte de governar, apresento-me a dizer que ele foi oprimeiro Chefe de Estado argentino a gerir os destinos daPtria, disciplinada a um plano determinado.

    41

  • Ainda mais, com Peron aprendi a lidar com os homens.Neste ponto, reconheo a subsistncia de alguns tantosdefeitos, se bem que, a rigor, no esteja de todo segura de queem verdade o sejam.

    Peron nunca espera muito dos homens. Satisfaz-se compouco. Hipoteca, sem restries, sua confiana, at receber

    prova em contrrio. Eis porque nada h que ele maisprofundamente deteste do que a mentira, especialmente sevinda dos amigos ou colaboradores. Eu, em compensao,

    exijo muito mais dos meus amigos e colaboradores imediatos.Para comear, no posso ter a minha volta,colaboradores em quem no confio plenamente. Nisso, poucasvezes tenho errado

    Certa vez, algum me indagou: Por que confiaste em mim, logo primeira vez que me

    viste?No consegui dar um resposta imediata. Simplesmente,respondi: Porque senti desde logo que podia confiar em ti...

    Algumas vezes, muitas, infelizmente, devo desconfiar,tanto mais porque pesa sobre meus ombros muitas obras e aingente responsabilidade de cuidar das costas de um homem e

    de uma causa.Nisso de se conhecer os homens, h muito de intuitivo.E, na devida conta do tema, porque me agrada. A este

    respeito, quero dedicar um captulo parte.

    42

  • XIV

    tema da intuio estimula-me especialmente porque,(muitas vezes, tenho ouvido louvores a respeito de

    minha prpria capacidade intuitiva. Ainda que,poucas vezes, tenha me detido a pensar num elogio,freqentemente tenho ouvido elogios minha intuio que

    incorreria em inverdades se pretendesse no ter meditado, vezpor outra, sobre este ponto. Aqui, arrolo minhas reflexes a

    este respeito, que visam menos expor um problemapsicolgico, do que dizer o que penso, com a mais absolutafranqueza.

    A intuio no , segundo minha concepo, um sextosentido, como dizem alguns, nem uma faculdade quasemisteriosa das mulheres, como aludem outros. Simplesmente,no uma maneira de ser da inteligncia. Cada criatura temuma inteligncia prpria, que se diferencia das demais.Numas, atua rapidamente, noutras, de com mais vagar.

    Cada um v as coisas pelo prisma dos prpriosinteresses, esquecendo-se que, por imposio da nossanatureza, vemos os objetos, os seres e a vida de uma maneirapeculiar.

    Ns, as mulheres, percebemos a dor e a padecemos emgrau mais elevado que a dos homens. Na mulher, ainteligncia se desenvolve sombra do corao. Da, que atuanela atravs do prisma do amor. O amor, cujo mistrio

    infinito, faz a inteligncia perscrutar horizontes que esta, porsi s, e aguda como , jamais conseguiria penetrar.

    Os homens no sentem nem sofrem o amor comintensidade, como ns, mulheres, sentimos e sofremos. Por

    43

  • ser um trusmo, isto no necessita de demonstrao. Ainteligncia se desenvolve no homem, livre e sem entraves de

    qualquer espcie. Este tudo v por meio de um arrazoado frio,quase matemtico, tanto mais frio e matemtico, quantomenos tenha sofrido o amor.

    Os que elogiam minha intuio, referem-se ao rpidoconhecimento que fao das pessoas com quem trato Por

    vezes, tenho confiado em pessoas que outros desconfiam, e,de modo inverso, desconfiado, quando outros confiam. Quase

    sempre o tempo me deu razo.Ser esta uma virtude misteriosa9 Creio que no. Aocontrrio, tudo me parece bastante simples Olho as pessoasde maneira bem diversa da maioria Olho-as atravs de um

    cristal muito fino: o amor a Peron e sua causa. O amoragua o olhar da inteligncia. Se no fosse assim, como

    poderia aprender, pela intuio, tantas coisas que, por vezes,no entendo7

    Certa noite, recolhi-me tarde. No pude fechar os olhosObsedava-me um problema nacional que, durante a jornada,fora submetido pelos tcnicos do Governo considerao do

    presidente. Eu, que com ningum falara a respeito, sconhecia o assunto pelas publicaes dos jornais. Era, um

    problema rduo e difcil que eu jamais intentara resolver. Masa soluo proposta me desagradava. E o pior era que no

    sabia ao certo o porqu claro que, no dia seguinte poderiadizer, simplesmente isso: que a soluo no era do meu

    agrado. Todavia, deveria invocar as razes. E no havia meiode encontr-las!

    44

  • Tampouco no as encontrei. Mas deliberei confiar aoPresidente as minhas dvidas, e acertei, porque ele, a quem

    tambm preocupava o problema, j resolvera revis-lo no diaseguinte.

    Estranho? Misterioso? No Simplesmente a maravilhado amor, iluminando uma inteligncia igual de todos.

    No de estranhar, pois, que esta virtude ou sentidoextraordinrio esteja presente em todos os atos de Peron,provocando a admirao de todos quantos o conhecem ou

    com ele tratam.Ele que ama profundamente seu povo, tudo v atravsdeste grande amor. Portanto, conforme est demonstrando, imperioso que visualize tudo de uma maneira especial, diversa

    da que orienta o olhar dos demais. Ele v pelo povo e para opovo.

    Como surpreender-nos, pois, de que ele, iluminado poreste grande amor, adivinhe onde est a felicidade dos

    argentinos e a grandeza nacional?Estou habilitada, mais do que ningum, a dartestemunho desta intuio maravilhosa. Peron conhece os

    homens num relance, por mais que procurem empanar-lhe apresena. Tenho-o visto resolver graves problemas de maneiracontrria prestigiada pelos tcnicos e especialistas. minhapergunta de dvida, responde sempre: uma questo de simples bom senso. Os especialistas

    vem o problema do ponto de vista tcnico, acanhado erestrito, como o campo de um microscpio. Eu sou forado a

    abrang-lo em sua integridade, com lentes planas. Devo v-locomo o povo o veria.

    45

  • Depois de meditar muito nestas explicaes, conclui queo senso comum e a intuio so, ambas, virtudes ainda nobem definidas, acaso idnticas. Mas creio, em todo o caso,

    que esto presentes em todos os seres em maior ou menorproporo, e que somente crescem e se desenvolvem quando

    um grande amor as vitaliza com o sopro maravilhoso do seupoder infinito.

    Tambm posso garantir que nenhum homem comumpoder, auxiliado pela intuio, fazer ou pensar coisa alguma,

    uma vez que os homens comuns se arrebanham no nmerodaqueles seres inferiores que desprezam o amor como coisa

    exagerada.

    46

  • XV

    mpossado Peron, na presidncia da Repblica, pouco> demorou a convencer-se da impossibilidade materialrf/de aglutinar as responsabilidades e trabalhos do seucargo, com o desejo firme de manter contato permanente com

    a populao. Este contato, que tem sido absolutamentenecessrio, no criava lacunas de qualquer espcie.

    Nosso povo vivera, por mais de um sculo, submisso agovernos oligrquicos, mais desatentos em cuidar dos

    interesses populares, do que dos de uma minoria privilegiada,talvez oculta e refinada, porm, acima de tudo, terrivelmente

    egosta.Ultrapassado este sculo, interrompido aqui e ali poruma tentativa ocasional de governar para o povo, ou melhor,

    por um outro gesto isolado que nunca chegou a se cristalizar,surgiu Peron no cenrio nacional e, em menos de trs anos deincndio revolucionrio, como governante, chegou ao corao

    do povo. Este soube, assim, das vantagens deste contatontimo.

    Ao longo de trs laboriosos anos, homens e mulheres,associaes de classes econmicas e polticas, bem como opovo inteiro, desfilavam, arcando com antigas dificuldades eesperanas fraudadas, na presena realizadora do condutor.

    Todos esses problemas e todas essas esperanas haviam sidosatisfeitas por ele, na medida de suas possibilidades, e,freqentemente, alm das medidas.

    Com Peron na Presidncia, investido de um poderpleno, escasso na nossa Repblica, como no haveriam deredobrar-se as iluses daquela gente que experimentava o

    47

  • gosto de um governo nascido do povo e exclusivamentevoltado para o mesmo povo?

    Todavia, iria ser precisamente a plenitude do poder oque iria impedir o Condutor de se manter em contato diretocom o povo. Enquanto testa da Secretaria de Trabalho ePrevidncia, no tivera outros problemas que os inerentes

    soluo das necessidades mais prementes da populao.Agora, porm, elevado Presidncia da Repblica, bem

    diversa era a natureza dos temas submetidos suaconsiderao e todos instando por solues definitivas, sob o

    perigo de deixar soobrar tudo o que to arduamente seerguera em trs anos de reforma social.

    De que teriam valido trs anos de Revoluo se, ao finalda luta, tivssemos novamente recado nas mos dos nossos

    tradicionais exploradores capitalistas? De que teria valido areforma social, num pas sem riqueza e sem trabalho, entregue

    manietado s injunes externas do capitalismo internacional?Tudo isso foi visto claramente por Peron, desde o diaem que se tornou presidente. E foi para prevenir esse perigoque ele se devotou a fazer o que fez: firmar a independncia

    econmica da Nao. Em quatro meses elaborou um plano degoverno para o qinqnio. Em dois anos consumou a

    independncia econmica. No pretendo consignar, aqui, tudoo que o General tem feito como presidente da Repblica,

    muito embora me aprouvesse escrever a respeito pginas semconta.

    Direi somente que este empenho gigantesco, arrancadoda prpria organizao do Governo, devia culminar com a

    Reforma Constitucional, deixando pouca margem para mantercontato com o povo.

    Se no tivssemos procurado, de comum acordo, umasoluo, sem a havermos achado, a voz do povo no teria

    48

  • chegado cada vez mais abafada torre do governo, bem comosilenciado de todo.

    Por outro lado, era necessrio manter aceso, nosespritos, o fervor revolucionrio. A Revoluo acabava deser posta em marcha. Impunha-se para Peron, e para oprprio governo, ir vencendo as etapas sucessivas. Nisto,nada haveria de impossvel, uma vez que a populao

    mantivesse aceso o fervor revolucionrio e no se deixasseenvolver pelas lamentaes dos homens comuns, para quetodo o ato revolucionrio surgisse de forma impulsiva eimperdovel.

    Entre o decreto, a lei revolucionria e o seucumprimento, ou seja, entre o governo e o povo, erguem-seinmeras barreiras, nem sempre perceptveis do alto, mas

    detectadas claramente na plancie. O contato de Peron com opovo era algo indispensvel.

    Alm do mais, haviam modestas, porm, prementesnecessidades populares, cuja medicao imediata deveria ser

    providenciada. No rol das esperanas dos descamisados haviamuitas iluses modestas que eles depositavam em Peron, tal

    como os filhos almejam dos pais.No mago de uma famlia remediada, os pedidos eexigncias so os mais variados possveis: os mais velhospleiteiam assuntos elevados; os menores aspiram a obteno

    de brinquedos. Ora, na grande famlia, que a Ptria, tambmos pedidos formulados ao presidente, pai comum de todos,

    eram os mais diversos e imaginveis. Alis, tnhamosconstatado esta mirade de aspiraes populares, desde

    quando Peron foi empossado. As esperanas populares iam deuma obra governamental, beneficiando toda uma cidade, a

    uma bola de futebol, pedida por um pequerrucho do norte, auma simples boneca, desejada por uma garotinha do interior.

    49

  • Urgia conciliar todos os pedidos, grandes e pequenos,se no quisssemos que o povo deixasse de ver, em Peron, oseu condutor. Reservei para mim a humilde tarefa de atenderaos pequenos pedidos. Escolhi o meu lugar dentre o povo,para melhor descortinar, da plancie, as barreiras quepudessem embaraar a marcha da Revoluo.

    Resolvi ser Evita para que, por meu intermdio, tivesseo povo e, especialmente, os trabalhadores, desimpedido ocaminho que os levassem ao Lder. A soluo no poderia tersido melhor.

    Os problemas governamentais sobem a Peron, todos osdias, por intermdio dos ministros, dos funcionrios de Estado

    ou dos prprios interessados. Mas, cada uma dessas pessoas,como no podia deixar de ser, dispe apenas de escassosminutos da jornada estafante de um presidente, como Peron.Os problemas populares, entretanto, chegam-lhe todos osdias, hora do almoo ou do jantar, nas tardes aprazveis dos

    sbados e nos domingos tranqilos. E chegam-lhe pela minhavoz franca e leal, em circunstncias propcias, quando o seu

    nimo se livrou dos problemas graves ou de preocupaesagudas.

    O povo pode estar certo de que no haver divrciopossvel entre ele e o Governo. Mesmo porque, para que tal

    ocorresse, deveria o Chefe do Governo comear por seafastar da sua prpria mulher!

    50

  • XVI

    K ada h de extraordinrio ou de contingente no meu> destino. No poderia afirmar que considere lgico ou(razovel tudo o que me tem ocorrido, mas tampoucoestaria sendo sincera se escondesse que me parece, quandomenos natural.

    J arrolei as grandes causas da minha misso a servioda Ptria. Todavia, esta exposio ficaria inacabada sem

    algumas esparsas referncias aos motivos circunstanciais queme impeliram a uma ntima colaborao com o General Peron,

    depois de sua escalada ao poder.Antes de abordar o tema, considero convenienterelembrar que Peron no apenas o Presidente da Repblica., tambm o condutor do povo. Eis a uma circunstnciafundamental, intimamente ligada minha deciso de me tornarnuma esposa de Presidente diferente do padro antigo. Eupoderia, se quisesse, cingir-me a esse padro. Digo isso em

    alta voz e sem rodeios porque no ignoro o que se temprocurado justificar, por a, o absurdo de que os sales da

    oligarquia me haviam rechaado. Nada mais longe darealidade, nada mais falso! Eu poderia ter sido uma mulher de

    presidente diferente das outras. Alis, misso simples eagradvel, de dias festivos, de receber honrarias, de requintese cosmticos, no representar um papel, de acordo com oprotocolo. Isto : fazer o mesmo que fizera antes e acredito

    que sofrivelmente, no teatro e no cinema.Pergunto, agora, por que me teria rechaado aoligarquia? Pela minha origem humilde? Pela minha passadaatividade artstica? Qual! Desde quando atentou essa classe de

    51

  • gente, aqui, ou onde quer que seja, para essas coisas, em setratando da mulher de um presidente?

    A oligarquia nunca se mostrou hostil para quem lhepudesse ser til O poder e o dinheiro no tiveram, jamais,maus antecedentes para um oligarca genuno. A verdade bem outra: fui eu que, de Peron, aprendera a trilhar vias

    pouco freqentadas, que me recusei a, subservientemente,ajustar-me ao padro antigo. Alm do mais, quem quer queme conhea um pouco, no digo de agora, mas de antes,

    quando era uma simples moa argentina, sabe bem que nofui talhada para representar a fria comdia dos sales

    oligrquicos. No nasci para isso. Muito ao contrrio, repelisempre do fundo da alma, "essa encenao teatral" das altasrodas.

    Lembro mais, que eu no era apenas a esposa doPresidente da Repblica. Era tambm, e acima de tudo, a

    mulher do condutor mximo dos argentinos.A dupla personalidade de Peron devia, por fora,corresponder, em mim, tambm uma dupla personalidade:uma, a de Eva Peron, a mulher do Presidente, a quem

    incumbe uma tarefa simples e agradvel, de dias festivos, dehonrarias, de funes de gala; a outra, a de Evita, a mulher doLder de um povo que nele depositara toda a sua f, toda asua esperana, todo o seu amor. Somente uns poucos dias ao

    ano represento o papel de Eva Peron. Creio que deste papel,simples e agradvel, me desincumbo cada vez melhor. Emcompensao, toca-me, os mais dos dias, desempenhar opapel de Evita, primeira peronista argentina, ponte estendida

    entre as esperanas do povo e as mos realizadoras de Peron.Esse sim, me deveras difcil, ao ponto que nunca me sinto

    totalmente satisfeita do modo por que o desempenho.De Eva Peron no interessa falar. O que ela faz e dizaparece profusamente nos jornais e revistas de todo o mundo.

    52

  • Interessa-me falar, e muito, de Evita. No porque sintaqualquer vaidade pelo fato de o ser, mas porque, quemcompreender a Evita achar fcil entender, depois, osdescamisados, o prprio povo, e este nunca sentir mais do

    que a realidade ... nunca se converter em oligarca, o piordos males que poderia sobrevir a um peronista ...

    53

  • XVII

    uando escolhi o papel de Evita, fi-lo plenamente) consciente de estar optando pelo caminho do povo.

    'Hoje, h quatro anos daquela escolha, me fcildemonstrar que no errei. Ningum, a no ser opovo, me chama de Evita. Somente os descamisados

    aprenderam a me chamar assim. Os homens do governo, osdirigentes polticos, os embaixadores, os homens de empresa,

    os profissionais, os intelectuais, tratam-me de senhora,alguns, inclusive, dizem publicamente Excelentssima ouDignssima Senhora, e, ainda por vezes: Senhora Presidente.

    Esses, s vem em mim a Eva Peron Os descamisados,todavia, s me conhecem pelo apelido de Evita.

    De resto, eu prpria me apresentei assim, no dia em quesa ao encontro dos humildes do meu pas, alegando que"preferia ser Evita a ser esposa do Presidente da Repblica,desde que, sendo Evita, pudesse mitigar uma dor ou enxugaruma lgrima ..." E, coisa muito estranha, disse-me um

    embaixador, um poltico, um dirigente, qualquer, enfim, dosque habitualmente me tratam de "senhora", disse-me, repito,Evita, e esse tratamento soaria to falso e artificioso aos

    meus ouvidos, como se um moleque de rua ou um homemhumilde do povo me chamasse de "senhora". Mas, talvez mais

    falso ainda do que aos meus prprios, soasse aos ouvidos dequem o pronunciasse. Agora, sem me perguntarem qual dos

    dois tratamentos prefiro, minha resposta rpida e terminante: prefiro o do povo.

    Quando uma criana qualquer me diz Evita, sinto-me,ao influxo dessa palavra, um pouco me de todas as crianas

    54

  • desamparadas da terra. Quando um operrio profere estapalavra, sinto-me, ao seu conjuro, companheira de todos os

    homens de trabalho de minha terra e do mundo. Quando umamulher me chama de Evita, sinto-me sua irm, a irm detodas as mulheres da humanidade. Assim, quase sem me dar

    conta, classifiquei com trs exemplos, as atividades principaisde Evita, com relao aos humildes, aos trabalhadores e mulher.

    Verdade que, sem qualquer esforo artificial, sem quenada me custe intimamente, tal como se houvesse nascido

    para isto, sinto-me responsvel por todos os humildes, comose lhes fosse me; luto, ombro a ombro, com o operrios,

    como uma companheira a mais de oficina ou de fbrica; frentes mulheres que confiam em mim, considero-me mais velha,incumbida da misso sagrada de velar por elas, sem assumir,com isto, uma honra, mas uma responsabilidade pesada.Penso que, se cada homem, cada mulher, se sentisse um

    pouco mais responsvel por todos e cada um de seus irmos,a humanidade seria certamente mais feliz!

    Do operariado, atendo os problemas sindicais. Doshumildes, recebo as queixas e a exposio de suas

    necessidades, procurando providenciar soluo adequada atudo o que no concerne propriamente ao Estado, fazendo,

    portanto, as vezes de colaboradora oficiosa do Governo.Afinal, tudo gua para o moinho do Lder.

    Da mulher, avio os problemas, nos seus aspectossociais, culturais e polticos.

    Se me perguntarem qual das trs atividades prefiro,hesitaria, sem atinar de imediato com uma resposta exata e

    definitiva.Se adquirida durante o desempenho de minha atividadesindical, minha resposta seria por ela, se me perguntassemquando com a ateno voltada aos problemas dos meus

    55

  • descamisados ou das mulheres de minha Ptria, optaria,talvez, pela atividade que me dedico neste momento. No o

    faria premida por convenincias diplomticas ou polticas.No. Mesmo porque, quando trabalho, parece-me superior e

    muito bem adequado aos meus gostos, minha vocao e sminhas inclinaes a tarefa por mim desempenhada.

    Concordo, entretanto, que, o que em ltima instncia meagrada, estar em contato ntimo com o povo, confundidaentre suas manifestaes mais puras: os trabalhadores, os

    humildes e a mulher. Com eles no tenho que adotar as posesa que me vejo forada, quando fao as vezes de Eva Peron.Falo e sinto como eles, com simplicidade corriqueira efranqueza clara, e, por vezes, rude, mas leal.

    Sempre nos entendemos. J Eva Peron, nem sempre seentende com os que assistem s funes que se v obrigada a

    representar. No infiro da, que o papel de Evita me seja fcil.Ao contrrio, rduo ao extremo, que, como j disse, nunca

    me sinto totalmente satisfeita do meu desempenho como tal.Em compensao, como fcil o papel de Eva Peron! Eno me admiro, pois, no , por acaso, mais fcil representar

    o papel no teatro do que viv-lo na realidade? No meu casoparticular, certo que, como Eva Peron, nada mais fao do

    que jogar um papel que outras mulheres j viveram; mas comoEvita, vivo uma realidade que, talvez mulher alguma tenha

    vivido antes, em toda a histria da humanidade.

    J disse que no sou guiada por nenhuma ambiopessoal. E, talvez, no tenha dito a verdade. Sim, confesso

    que tenho uma ambio, uma nica e grande ambio pessoal:quisera que o nome de Evita ficasse inscrito para sempre na

    56

  • histria de minha Ptria. Quisera que dela se dissesse, numapequena nota inscrita ao p do captulo maravilhoso que ahistria certamente dedicar a Peron, algumas poucaspalavras: "Houve, junto de Peron, uma mulher que foi oveculo das esperanas do povo, que Peron convertia maistarde em realidades ..." De forma sobranceira, sentir-me-ia

    compensada se essa pequena nota terminasse assim: "Dessamulher sabemos apenas que o povo a chamava

    carinhosamente de Evita.

    57

  • xvm

    \ esta incumbncia de unio entre o povo e seu Lder,>h uma circunstncia que me devo cingirescrupulosamente: no me imiscuir em assuntosprprios de Governo.

    No o consentiria, de resto, o Presidente que, pela suaformao militar, tem uma noo severa das responsabilidades

    e limites. Mas, a respeito disso, sou compelida, de tempos emtempos, a dizer ao povo, cara a cara, o que seu Lder lhe diria,

    e, inversamente, sinto-me obrigada a dizer ao Lder o que seupovo anseia por lhe falar. Esta funo leva-me, por vezes, a

    abordar com o General, temas que, em virtude de suanatureza, so prprios e exclusivos do Governo. Quando

    estas ocasies se apresentam, tenho bem presente no espritoque eu prpria escolhi colocar-me ao lado do povo.

    No h dvida que os funcionrios do governo bastam aPeron, para o cumprimento integral de sua tarefa, mas, pensotambm no ser intil que a voz de algum, intimamente

    identificada com ele e sua causa, lhe chegue a cada dia,portadora das notcias frescas de um povo que ele estremece

    com amor at s entranhas.Desincumbindo-me, assim, de minha misso, estou certade lhe alegrar o esprito com as palavras e o amor do seu

    povo, que vou depondo suavemente em seu corao,enquanto descansa das fadigas.

    te58

  • Quanto s caractersticas inditas deste procedimento,no me preocupam. Ao contrrio, a originalidade alegra e

    conforma meu esprito. Enquanto os homens comuns,medocres desprezveis, venenosos e estreis, se afobam procura de um alvo para ataque traioeiro e embuado, onosso movimento lhes oferece todos os dias algo sem

    precedentes, algo nico, que nos pertence com exclusividade.Bem sei que quando criticam minha posio relativa ao

    movimento, visam menos esse alvo do que o triunfo daRevoluo em si. Fere-lhes o meu contato com o povo.

    Sabem que enquanto esta comunicao no se romper - e nose romper por mim - o povo ter livre acesso a Peron ePeron poder satisfaz-lo. Sabem que enquanto isto se der

    eles no voltaro. Eis por que anseiam em me destruir. Nome podem qualificar de ambiciosa e isto os irrita. Pudessematribuir-me a mnima ambio pessoal e regozijar-se-iam emprazer, denunciando ao povo que nele procurara a mimmesma.

    Esto certo de que assim poderiam separar-me dapopulao. No se convencem que eu, nos meus admiradores,nada mais busco seno o triunfo de Peron e de sua causa, poristo que este triunfo se materializa no prprio povo.

    Nem mesmo quando me cerco dos que trabalham oudos que sofrem, o fao procurando satisfao egostica, de

    quem se julga vtima de um sacrifcio pessoal.A cada dia esforo-me para banir de minha alma toda equalquer atitude sentimental em presena dos que meprocuram. No quero sentir pudor de mim mesma, frente a

    eles. Caminho em direo ao meu trabalho, convicta de estarcumprindo com o meu dever, na esperana de dar satisfaoplena justia. Nada de lirismos, nada de charlatanismos

    vazios, nada de comdias, nada de artifcios, nada deromance. Nem mesmo quando me acerco dos necessitados,

    59

  • poder ser alegado que me fao de dama caritativa, que abremo do seu bem-estar para se atribuir a condio de

    instrumento superior de uma obra de misericrdia.Proveio do prprio Peron a frase: "Nada h deconstrutivo, fora do amor", fazendo-me aprender o que sejauma obra altrustica e a maneira de a cumprir. O amor no ,

    segundo a lio que dele aprendi, nem sentimentalismoromntico, nem pretexto literrio. O amor , antes de mais

    nada, uma doao constante, e entregar-se dar a prpriavida.'Enquanto no se entrega a prpria existncia, o que se

    d , simplesmente, justia. Quando se comea a oferecer aprpria vida que se est cumprindo uma obra de amor. No

    pretendo, com isto, estar realizando obras de amor, que estaseu as compreendo demasiado prximas de Deus. Sinto-me

    plenamente satisfeita em estar auxiliando, na medida dopossvel, a realizao plena da justia social. Eis porque

    batizei este labor fraternal de auxlio aos pobres de ajudasocial. Eis porque o creio ser profundamente justicialista. Esta

    ajuda incompatvel com os excessos do corao. Porque obra de justia, sei que devo cumpri-la com a atitude de umjuiz, como quem se desincumbe de uma misso que lhe foi

    confiada e nada mais. Com amabilidade, sim, mas sem alardes.Talvez isto seja um pequeno detalhe, mas, em todo ocaso, um detalhe que tem poupado muitas humilhaes inteisNingum se sentir feliz, mesmo cumulado de riquezas, a

    troco de uma humilhao que lhe afete a dignidade, de todosos tesouros, o mais caro dos homens.

    60

  • Segunda Parte

    misso

    XIX

    uase toda a minha atividade social se desenvolve naI Secretaria de Trabalho e Previdncia, onde ocupo'um pequeno setor. Desempenho o expediente nomesmo gabinete que ocupou o General Peron, de 1943 a

    1945. Tudo isso tem um significado especial.Muito embora a Constituio Justicialista tenhatransformado a Secretaria em Ministrio, os operrios

    argentinos continuam a cham-la de Secretaria. Eu prprianunca a chamo de outra maneira. Este detalhe comprova que

    o povo sente ali, viva e fresca, a presena de Peron.Foi ali que, pela primeira vez, uniu sua personalidadevigorosa de condutor com a populao. Foi ali onde obteve os

    seus primeiros discpulos. Foi ali que desfrutou os primeirosxitos Foi ali, ainda, que firmou a deciso irrevogvel deservir ao povo, com todas as energias e acima de qualquer

    sacrifcio. Para todos ns, ele ainda est presente na velhaSecretaria, como no tempo de suas primeiras lutas.

    Fui para a Secretaria do Trabalho por vrias razes.Primeiro, porque nela sentia mais facilidade de me comunicar

    61

  • com o povo e com seus problemas. Depois, porque o titularda pasta um velho trabalhador, com quem, como tal, Evita

    poderia se entender francamente e sem grandes formalidadesburocrticas. E, finalmente, porque ali me seriam concedidos,

    como foram, os elementos necessrios ao meu trabalho.Na Secretaria, recebo os trabalhadores, os humildes e osque me procuram por qualquer motivo pessoal ou coletivo.Os funcionrios da casa colaboram comigo na resoluo dos

    problemas sindicais, colhendo os dados necessrios eexaminando-os, luz das possveis repercusses econmicas e

    sociais Quanto minha tarefa de ajuda social, desempenho-atambm na Secretaria, j que, neste aspecto, o pessoal lotado

    na casa se restringe a diligenciar os detalhes relacionados comos pedidos de audincias.

    Quanto ao movimento poltico feminino, estes notomam o meu tempo na Secretaria, porque prefiro atend-los

    na sede central do Partido Peronista Feminino ou naresidncia particular.

    Os cuidados do operariado me tomam quase a totalidade doexpediente na Secretaria, no que me mostro ligada com aprpria essncia do Movimento Peronista, triunfante graas

    ao apoio irrestrito do operariado organizado do Pas.O Presidente costuma dizer que os governos e osestados esto deslizando insensivelmente, do perodo em quetudo se resolvia em funo das organizaes polticas, para a

    poca em que tudo se resolve de acordo com as organizaessociais. Eis porque o governo peronista, inspirado pelo seuLder, trata de antecipar-se no tempo, alicerando-se, cada

    62

  • vez mais, nas organizaes sindicais. Apoiando-me nesteconceito visionrio de Peron, julgo que a populao est,hoje, mais cabalmente representada pelas suas organizaesclassistas do que pelos partidos polticos.

    Os partidos polticos caem freqentemente em poderdos crculos fechados, das panelas interesseiras, integradaspor dirigentes que se mantm nos cargos por fora deconchavos nem sempre claros, quando no de negociatas. Talno ocorre no centro das organizaes de classe, cujosdirigentes escolhem entre viver em ntimo consrcio com amassa, que representam, ou serem varridos do cenriodiretivo, pela mesma.

    Em decorrncia da minha experincia de quatro anos,posso, hoje, afirmar com absoluta certeza, que os dirigentesgremialistas conhecem mais a fundo a realidade popular doque os lderes polticos. A bem da verdade, afirmo que esses

    superam queles somente quando sabem manter contatohonrado e permanente com as associaes de classe. Ao dizercontato honrado, refiro-me a esta classe de ligao que novisa atar o trabalhador ao jogo dbio das ambies pessoais.

    Foi na Secretaria que aprendi o que sei a respeito desindicalismo e dos entraves trabalhistas. Ali encontrei tudo emmarcha. Inclusive um estilo e uma tcnica para a resoluo

    dos questionamentos sindicais: o estilo e a tcnica do GeneralPeron. Limitei-me a seguir-lhe as pegadas, guiada pelo seu

    exemplo, onde, muitas vezes, tenho recorrido ao seu conselhode mestre e condutor.

    63

  • Somente assim, consegui que a Secretaria continuasse aser a casa e o lar dos operrios argentinos, tal como aconcebera e corporizara o General Peron, nos primrdios da

    luta.

    64

  • XX

    o mirante da Secretaria descortina-se todo o(panorama sindical argentino. Ningum, como eu, que' vi em 44 e 45, de um cantinho do gabinete detrabalho, onde ele me permitia permanecer, enquantotrabalhava, ningum, como eu, poder atestar a mudana

    radical operada por ele neste setor de minha Ptria.At 1943, as reivindicaes trabalhistas tinham, naArgentina, uma doutrina e uma tcnica, em nada diferentes dadoutrina e da tcnica em vigor nos demais pases do mundo.A doutrina e a tcnica eram, pois, internacionais. Quero dizer,estrangeiras em toda a parte e em todos os povos do mundo.De vez em quando, uma coisa qualquer que internacional,perde, inclusive, o direito de ter uma ptria, mesmo no pas de

    origem.Os dirigentes das reivindicaes trabalhistas argentinasse haviam formado naquela doutrina; somente aquela tcnicalhes fra ensinada. Nada direi que foram, em geral, mausdirigentes, nem incorrerei no erro torpe de afirmar querepresentaram ilegitimamente seus companheiros. No. Creio,pelo contrrio, que se desempenharam o melhor que puderamna confiana ou no desespero da massa que neles confiaram.

    Sim, porque, face ao egosmo brutal da oligarquia capitalista ecruel, que outro sentimento poderia a massa operria pr naeleio de seus dirigentes, seno o clamoroso desespero? Porisso, ele resolveu, muitas vezes, escolher os candidato quepropunham as solues teoricamente mais radicais, ao invs

    de outorgar mandato queles que estavam em condies de

    65

  • pleitear e, porventura, obter algum beneficio prtico eimediato, ainda que mnimo.

    Explica-se, assim, que, eleitos pelo desespero de umamassa sofredora e exacerbada pelo dio, se vissem, aquelesdirigentes, na impossibilidade de dar satisfao aos seus

    representados, compelidos a desviar a ateno da massa parao plano da poltica internacional, em tiradas lricas de

    propaganda doutrinria, que nada tinham que ver com asnecessidades mais prementes e reais do povo. Contudo, o

    grande erro desses dirigentes no foi esse, a que, afinal decontas, eram quase forados. O pecado capital desses homens

    foi pensar, falar e atuar em idiomas estrangeiros, frente aoscompanheiros, de costas para a realidade domstica. No

    advertiram porque no creio que agissem de m f, pelomenos a maioria que o problema do operariado argentino

    quase no se assemelhava ao que assoberbava ostrabalhadores do velho mundo, a braos com a superproduo

    e mngua de reservas econmicas. No aferiram bem arealidade nacional.

    Alguns, porm , talvez o s mais altos dirigentes daquelestempos, no agiam de boa f.

    Da mesma maneira que admito que a maioria atuasseanimada pelo alto esprito sindical, devo dizer tambm que

    alguns traram massa. E isto dizendo, acredito no estarafirmando nada estranho nem desconhecido para o operariado

    argentino. Est vivida na memria de todos a obscura ligaodesses pretensos prceres trabalhistas com a mais autntica

    oligarquia. No estamos esquecidos de como, ao amparo daimprensa conservadora e do capitalismo, conjurados contra os

    argentinos, intentaram a destruio do lder de 1946.Deixaram, com isso, patente aos olhos do povo, ser uma

    mentira grosseira a antipatia que esses falsos dirigentessocialistas e comunistas, dedicassem ao capitalismo.

    66

  • Explica-se, tambm, porque foi to lento e doloroso oavano das organizaes argentinas e to sangrento e

    excessivo, o preo pago por esse raqutico progresso.

    Mas no desses falsos mentores trabalhistas, hojedefinitivamente aliados oligarquia, que me proponho a falar

    aqui, mas dos outros, dos de boa f e de autntico espritosindical.

    J disse que at 1943 se viveu em submisso a umadeterminada doutrina e tcnica de combate. Acreditava-sefirmemente ser esse o melhor e ainda o nico caminho paraatingir o bem-estar planejado. Foi somente Peron, quando da

    Secretaria de Trabalho e Previdncia, falou ao povo de outratcnica, que este se deu conta do erro cometido e do

    esbanjamento intil de tantos anos e esforos. A princpio, oCoronel desconcertou-o.

    Durante cinqenta anos ouviram os dirigentes falarcontra a Ptria e, conseqentemente, em desmerecimento doExrcito! E agora vinha um militar um "obscuro Coronel"(alvitrava a oligarquia), querendo mostrar-lhes o caminho dajustia e da felicidade!

    Para cmulo, o novo lder lhes falava dos valores doesprito. Ao invs de pregar o combate entre o capital e otrabalho, vinha exumar os velhos princpios esquecidos docristianismo. Como, pois, no haveria de desconcert-lo? Aospoucos, porm, foram acreditando nesse "Coronel". Muitoslhe hipotecaram a sua confiana, somente para ouvi-lo

    Outros, logo que o viram. Os mais, quando suas promessascomearam a cumprir-se. Em pouco tempo, os dirigentes

    67

  • probos do sindicalismo argentino aliavam-se a Peron. Ficavamna calada fronteira os que se negavam a ouvir promessas, os

    que com antecedncia furtavam o olhar s realidades. Essestinham hipotecado, antecipadamente, suas posies a favor da

    oligarquia e do capitalismo. A troco disso, iam, em breve,ganhar o esquecimento dos trabalhadores, o olvido, que amoeda com que o povo paga queles que o atraioa.

    A tcnica de Peron imps-se ao final de dois anos deluta acirrada. Empossado na presidncia, ficava ainda o perigode que alguns tantos despeitados especialistas do sindicalismo

    intentassem congregar, em volta de si, a massa obreira,valendo-se, para tanto, da antiga retrica e das velhas idias,

    to bem tramadas por eles, na ctedra estrangeira que osformara ... e lhes pagara; e que, ainda para o mesmo fim,

    procurassem apresentar a Secretaria como uma repartio amais do governo, fria e burocrtica, ao estilo do extintoDepartamento Nacional do Trabalho, que, em 1943, concitara

    o desprezo absoluto e unnime dos trabalhadores argentinos.Poderia ainda ter acontecido que , ausente da Secretaria, o

    criador genial da nova doutrina e da nova tcnica dasreivindicaes trabalhistas, viessem os dirigentes, inclusive osperonistas, a cair na cilada da velha doutrina e dos velhos

    mtodos, inconscientemente vitimados por uma infiltraotraioei