estado e ideologia (alaor caffé alves)

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Page 1: Estado e Ideologia (Alaor Caffé Alves)

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• Dialética do Conhecimento - Massimo Canevacci • A Fala dos Homens - Análise do Pensamento tecnocrático

- 1964-1981 - Maria de Lourdes M. Covre • Filosofia da Ciência - Introdução ao jogo e suas regras -

Rubem Alves • Introdução à Organização Burocrática - Fernando

Motta/Luiz Bresser Pereira • Linhagens do Estado Absolutista - Perry Anderson • Passagem da Antiguidade ao Feudalismo - Perry Anderson • Sacerdotes e Burocratas - Introdução ao socialismo real -

Adolfo G11/y • Socialismo ou Barbárie - Cornelius Castoriadis • Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna -

Norberto Bobbio!Michelangelo Bovero

Coleção Primeiros Passos

• O que é Burocracia - Fernando Motta • O que é Direito - Roberto Lyra Filho • O que é Direito Autoral - Eduardo Vieira Manso • O que é Direito Internacional - José Monserrat F.0

• O que são Direitos da Pessoa - Dalmo Dallari • O que é Ideologia - Marilena Chaui • O que é Participação Política - Dalmo Dallari • O que é Poder - Gerard Lebrun

Alaor Caffé Alves

Estado e Ideologia Aparência e realidade

Apresentação: Dalmo de Abreu Dallari

editora brasiliense DIVIDINDO DPINIOES MUL TIPliCANDD CUlTIJRA

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Page 3: Estado e Ideologia (Alaor Caffé Alves)

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/J,!t2e_ CopyriJ:hl © Alaôr Caffé Alves

Capa: · Ana Aly

Revisão: Leila Nunes de Siqueira Heloísa H.G . Lima

N° Reg. ..~ .. .'.,. 4. . .r-'--'-"'---------

11 brasiliense

editora brasiliense s.a. rua da consolação, 2697 01416 - são paulo- sp. fone (011) 852-4013 telex: 11 33271 DBlM BR

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Indice

Apresentação - Dalmo de Abreu Dallari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Prefácio .... ...... ... .... . . .. .. .. ... .. . . _. . . . . . . . . . . . . . 11 Introdução .... . . .. ... .. ............. . ·:, :"!-:?.·:·· .. : .- .· . . . . . . 15

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PRIMEIRA PARTE . . ~

QUESTõES SUBJACENTES E INSTRUMENTAIS . ·~~~ -~ ..

Aparência, realidade e ideologia ..................... ·: . . . .. . 23 Dialética e relação social ................... : ~-· . . : .... · .... · 55

SEGUNDA PARTE QUESTõES SUBSTANCIAIS

Estrutura social e relações intersubjetivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 O indivíduo e a prática social ................. .' :· . ........ 'í 15 As classes sociais . ...... .. ...... ... . ............ : . . . . . . . 135

TERCEIRA PARTE QUESTÕES NUCLEARES

Poder, ideologia e legitimidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Sociedade civil e Estado ..... .... ·. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Coercibilidade jurídica e constrangimento econômico difuso . . . . 253 Estado e relação estrutural capitalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273 Formalismo jurídico e mediação ideológica .................. 301 Considerações finais . ..... . ....... .. .... . ........ .' . . . . . . 339 Bibliografia ........................................... 347

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"Toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coin­cidissem imediatamente. ( . .. ) A . verdade científica é sempre um paradoxo, se julga­da pela experiência cotidiana, que apenas agarra a aparência efêmera das coisas."

K. Marx

"A aproximação dialética no conhecimento da singularidade não pode ocorrer separa­damente das suas múltiplas relações com a particularidade e com a universalidade."

G. Lukács

"Será preciso ainda muito tempo para que a infelicidade e a felicidade não sejam mais o efeito de deuses mortos que não querem morrer e jamais cessaram de se nutrir da carne e do pensamento dos homens vivos, de suas relações, de nossas relações."

M. Godelier

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Apresentação

Existem pessoas que pensam que são a favor do Estado e outras que pensam que são contra, simplesmente porque ainda não perceberam o que o Estado realmente é. Essa é uma das principais conclusões deste livro, que faz a crítica da própria discussão sobre o Estado, com abordagens provocativas que par­tem de indagações muito agudas e que, ao final, provocam novas indagações.

O que se conhece do Estado, o que aparece como sendo o Estado é diferente daquilo que o Estado realmente é? Se não há coincidência entre realidade e aparência, isso quer dizer que o Estado utiliza disfarces, deliberadamente, para ocultar sua ver­dadeira natureza? Muitos dirão logo que sim, que o Estado é essencialmente mau e que, no entanto, procura esconder essa maldade atrás de uma enganosa máscara de promotor do bem comum. Essa é uma das afirmações fundamentais deste livro.

Apesar da coerência teórica e do rigor que dão grande soli­dez à veemente argumentação do autor, seu enfoque dos temas é aberto, amplo, e por isso é possível questionar suas afirmações, confrontando-as com as múltiplas razões de outros teóricos e da­queles que, na prática política e social, reagem intensamente por terem seus interesses imediata e fundamente afetados pelas ações do Estado.

Antes de tudo, o espaço por excelência do Estado é a esfera pública. Ainda que as decisões sejam tomadas na penumbra dos subterrâneos políticos, sua execução é inexoravelmente pública, evidente, e seus efeitos podem ser percebidos por qualquer obser-

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L-I.

vador razoavelmente atento e que saiba ver a realidade. Isso, em princípio, permite questionar a afirmação de Alaôr Caffé Alves, que vê um contraste entre aparência e realidade e que argumenta como se ninguém pudesse ver além da aparência. Não seria mais próprio dizer que o Estado tem uma face má ou perigosa, que procura manter oculta, e outra, favorável aos seres humanos e à sua conveniência, ambas fazendo parte da mesma realidade e sendo mais ou menos visíveis de acordo com o ângulo em que se posiciona o observador?

A par disso é preciso ter em conta que o Estado geralmente é avaliado segundo parâmetros estabelecidos pelos pressupostos teóricos ou pelas conveniências de quem avalia. Existem teorias pró-Estado e outras anti-Estado e nas duas hipóteses os adeptos são facilmente levados por preconceitos, acreditando ver clara­mente apenas o que querem ver, mesmo que seja na face oculta do Estado, e não vendo o que não querem ver, ainda que agres­sivamente expresso. Assim também ocorre que muitas -pessoas chegam · a uma opinião sobre o Estado observando-o pela ótica de suas conveniências de momento. Um oposicionista poderá ser contrário ao excesso de estatização, enquanto ' oposição, passando a ser favorável quando se tornar governo. Do mesmo modo, um empresário que tiver seus lucros exorbitantes limitados pelo Es­tado afirmará que os serviços prestados pelo Estado não passam de disfarces de sua maldade intrínseca. Mas dirá que o Estado existe para realizar o interesse comum quando quiser que sejam aumentados os investimentos públicos, especialmente se estes lhe propiciarem vantajosas contratações com o Estado.

Por tudo isso, é necessário ler este livro a partir de uma dúvida fundamental: será correto afirmar que existem uma apa­rência e uma realidade do Estado, não coincidentes, ou será mais preciso dizer que a realidade é uma só, com partes mais e outras menos evidentes, e que as expressões do Estado são consideradas falsas ou autênticas segundo as inspirações do interesse prático ou de convicções teóricas?

· Outra questão fundamental, antiga fonte de controvérsias a que o autor deste livro não fugiu, é a relação entre sociedade e Estado. É a sociedade que determina o Estado, estabelecendo seu papel e suas características, ou é o contrário que sucede, sendo o Estado o dominador e modelador da sociedade?

É freqüente nas obras de cientistas políticos e de sociólogos :z afirmação de que cada sociedade gera uma forma característica

de centro de poder político. E assim o Estado é produto de deter­minada espécie de sociedade, o que permitiria concluir que uma profunda mudança social poderá levar à modificação substancial do Ewulo Oll até mesmo ao seu desaparecimento.

Ora, se for verdadeira essa afirmação não é coerente respon­l.iClbilizar o Ustado por clesajustes e injustiças sociais, pois o Estado é o que a sociedade determina que ele seja. E do ponto de vista prático se torna irrecuiiável a conclusão de que os que procuram agir sobre o Estado para, através desse caminho, chegarem à me­lhoria da sociedade estão incorrendo numa equivocada inversão, pois devem agir sobre a sociedade para que, por via de conse­qüência. o Estado melhore ou desapareça.

Essa discussão está presente no livro de Alaôr Caffé Alves e contribuiu para tornar mais agudo seu caráter provocativo. É importante assinalar que o autor, além de ser um vigoroso argu­mentador, tem a seu favor o amadurecimento teórico resultante de inúmeros trabalhos que já produziu sobre a temática do Estado. A par disso, sendo professor universitário ajeito ao diálogo, talvez mesmo apaixonado pelo diálogo, tem tido oportunidade de testar suas conclusões como docente ou orientador de pesquisas. E ain­da se deve acrescentar sua experiência no exercício de funções públicas relevantes, o que lhe dá a condição de agente do Estado e talvez tenha influído bastante para que ele chegasse à conclusão de que, a semelhança da imagem platônica, muitos só conseguem ver as sombras projetadas pelo Estado e por isso não avaliam corretamente a realidade, que seria bem diversa do que é sugerido pelas projeções.

Concorde-se ou não com as afirmações e conclusões do autor, este livro é uma importante contribuição para a busca de com­preensão do Estado, que, bom ou mau, tem papel fundamental como agente conservador ou transformador no mundo contem­porâneo.

Dalmo de · Abreu Dallari

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Prefácio

De longa data preocupam-me os efeitos deletérios do óbvio, do cotidiano, do senso comum, enquanto vividos como se fossem a única realidade. Nesse processo observo a profunda dissociação, promovida e estimulada pelas forças sociais dominantes, entre a vida vivida e a vida refletida, entre a prática e a teoria, entre o espontâneo e o ela­borado, entre o aparente e o essencial. Em nosso país, as questões políticas são tratadas como algo setorial, deixadas para os especia­listas ou para os que exercitam certas práticas ligadas aos assuntos do governo. Impressiona-me, nas práticas políticas, a presença hege­mônica da ideologia dominante que mistifica o povo e o impede de olhar para dentro das relações sociais e de ver sua autêntica expres­são, as reais determinantes sociais e econômicas de sua miséria .. e opressão. A ação política dominante, utilizando-se de todos os meios disponíveis, serve para "despolitizar" o povo, ou seja, serve para mantê-lo cego às questões subjacentes de sua própria vida social e econômica. Essa "despolitização" é uma forma alienada de subjugar politicamente o povo, sem que as próprias forças opressoras tenham disso clara consciência. Tudo soa como se fosse espontaneamente natural, como se a prática social e política tivesse que fazer exata­mente isso, não podendo correr outra via senão essa.

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Meu trabalho, que agora se publica, orienta-se na linha da busca, ainda que notoriamente incompleta, da transparência e da autentici­dade daquelas práticas. A viabilidade desse escopo está fundamentada no interesse de transformação sócio-econômica de nossa realidade, motivo pelo qual tenho a confiança de que surpreendo até certo ponto parte da verdade, ~em o que não há como lutar contra os privilégios odiosos de classe, cujo principal interesse é manterem-se, mesmo con­tra o movimento da História. Para isso, tais interesses se exprimem na linha de sustentação da consciência social alienada, atada ao ime­diato, ao senso comum, ao espontâneo, precisam~nte para impedir a ação transformadora da teoria crítica do ser social.

Estou plenamente consciente de que meu empreendimento se desenrola no âmbito abstrato do exame de alguns dos pressupostos ideológicos relativos às práticas político-institucionais, ainda bastante distante do equacionamento da ação concreta e adequada para se obter a referida transformação. Moveu-me, entretanto, essa abordagem, exatamente porque constatei, em largas camadas sociais e em grande parte dos segmentos orientados para a mudança progressista de nossa realidade econômico-social, a ausência da explicitação clara dos pres­supostos ideológicos da ação e da palavra, configurando uma situação de confusão e de não-transparência dos princípios sob os quais inter­pretamos nossa própria realidade e orientamos nossas práticas. Em­bora nem sempre nos demos conta disso, o esclarecimento explícito dos níveis mais abstratos de nosso pensar, com base na práxis crítica para a superação dialética do cotidiano e do empírico, é igualmente importante para a concretização de práticas conscientes e apropriadas à transformação do real. Isso não _quer dizer absolutamente que a presente obra se en:tregue à pretensão utópica de esclarecer plenamen­te os pressupostos ideológicos da ação social relativa à sociedade po­lítica, ao Estado. Ela se define como uma tentativa para motivar o diálogo político-institucional a se empenhar na elucidação crítica dos elementos preliminares e originários que informam as bases de nossas práticas sociais, com o objetivo de lograr maior atenção sobre esses elementos no sentido de pô-los na ordem do dia e discuti-los perma­nentemente.

Na elaboração deste trabalho, que foi apresentado como tese de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,_

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junto ao Departamento de Direito do Estado, tive a felicidade de con­tar com a compreensão, cooperação e tolerância de inúmeros amigos, companheiros e familiares. Por isso, quero deixar expressos meus agradecimentos aos professores do Departamento de Direito do Es­tado, especialmente ao Prof. Dalmo de Abreu Dallari, intelectual preocupado com os problemas de nosso país e de sua população em grande parte marginalizada, carente e oprimida. Deixo também, aqui, meu profundo reconhecimento aos professores do Departamento de Filo:.. sofia e Teoria Geral do Direito, destacando os professores Tércio Sampaio Ferraz Jr. e José Eduardo Faria, que me encorajaram no desenvolvimento e exploração temática deste trabalho, ao abrirem perspectivas para novas direções na pesquisa e reflexão sobre as ques­tões sociais, políticas e jurídicas de nossa realidade. Cumpre destacar, ainda, o apoio dos professores Celso Lafer e Cláudio de Cicco, pelo incentivo e atenção com que me agraciaram nesta empreitada. Final­mente, não posso deixar de exprimir os sentimentos de profunda gra­tidão aos meus filhos e à minha esposa, companheira de todos os dias, que não mediram esforços para tornar minha tarefa menos penosa e mais gratificante.

Alaôr Caffé Alves São Paulo, novembro de 1986

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Introdução

O presente trabalho se colà:a no campo de investigação sobre o Estado, na tentativa de captar sua aparência expressa e objetivada em contraposição a sua essência oculta, com vistas a revelar-lhe a autêntica realidade. Com ele, pretendemos oferecer uma contribuição

à i~vestigação, ~os fundamentos da~ _formas ideológicas pelas quai~ a soctedade pohttca se mostra na prattca comum dos homens e obtem · sua justificação e legitimidade. Procuramos analisar o Estado sob o ângulo de sua manifestação externa e visível, enquanto momento · apa~ rente aberto ao senso comum, em contraste dialético com suas rela­ções intrínsecas, enquanto momento velado que traduz suas conexões orgânicas com a estrutura social básica. Limitamo-nos, contudo, a um estudo dos fundamentos teóricos da relação entre o fenômeno da apa­rência - explícita na experiência imediata e direta dos fatos cotidia­nos e nos conceitos gerais descritivos desse fenômeno utilizados pela teoria tradicional sobre o Estado e os aspectos essenciais estrutura­dores da realidade social do sistema capitalista de produção. Nesse sentido, deixamos de lado, entre parênteses, para uma retomada opor­tuna, a investigação histórico-empírica articulada em razão das dimen­sões concretas e específicas de cada formação econômico-social.

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Q_ Est~do _ é_ produto e a~ I!!es~ tempo garantia das relações ~ciais C2{litalistas de E_!9dução. Na atual fase monopolista, amplia sua intervenção sobre a sociedade não só para atender às necessidades diretas do capital, mas também para assumir interesses das classes subalternas, com o objetivo de assegurar a reprodução adequada da forÇj! de trabalho, em níveis compatíveis com as exigências da eco­nomia e da cultura em determinada época e lugar. Entretanto, o apoio direto e indireto do Estado ao capital em geral, ~ não aos capitalistas privados, aumenta na medida em que estes vêem diminuídas suas possibilidades específicas para exercerem diretamente a dominação social. Como conseqüência, há o progressivo crescimento das funções e atividades do Estado, acarretando, correlativamente, o aumento do grau de dependência relativa de cada setor social em face do Estado.

' A expansão, desenvolvimento e fortalecimento da atividade do Estado, através de suas inúmeras agências públicas, representam o aumento <tts mediaçõ~ estrutur~s que lhe propiciam maior grau de autonomia relativa. Esta se traduz .1!9 reforço da aparência ideolÓgica do Estado como agente social neutro, como gestor eqüidistante e indiferente das co ntradições estruturais da sociedade de classes, das quais ele mesmo é também produto. Esse processo, seguido da ~iciência burocrática, racionalização dos meios de intervenção e formalização jurídica, tende ~ amplü~·r -~s bases de legitimação do poder, como resposta às crises sociais e econômicas cada vez mais agudas, originadas do aprofunda­mento das contradições para cujo mascaramento concorre esse mesmo esforço de legitimação hegemônica. Para comprovar essa tese, torna-se indispensável o desdobramento de questões articuladas e orientadas no sentido da desmistificação do Estado como ente político indepen­dente da sociedade civil.

A desigualdade social é patente. Ela é a expressão de uma socie­dade em conflito consigo mesma, mediante a diferenciação desta em classes sociais antagônicas. Mas se os homens são socialmente desi­guais, e isso é notoriamente condenável, de onde provém a tolerância para que este estado de coisas perdure? Essa desigualdade existe; mas com ela é possível? Quais são as condições de possibilidade dessa inequação social? Como é possível que seja ao mesmo tempo conde­nada e tolerada? Quais os fatores e os mecanismos sociais que per­mitem esse efeito? Como esses fatores e mecanismos se diferenciam

ESTADO E IDEOLOGIA 17

de conformidade com as condições objetivas de cada época histórica? Como se especificam e se configuram esses elementos no período h1s­tórico em que predomina o modo de produção capitalista? O Direito e o Estado fazem parte desse processo?

Se o conflito social é inerente à própria estrutura social do capi­talismo, visto ser esta sociedade composta de forças antagônicas em razão da desigualdade das relaÇões econômicas básicas, como é pos­sível a existência de uma força de coesão, que parece ser autônoma, na figura do Estado, sem se recorrer a idéias transcendentes impostas . do exterior à sociedade; isto é, sem fundamento nela mesma? Mas, de modo oposto, sendo resultado e produto da sociedade essencial­mente antagônica, como é possível o Estado se revelar exatamente como o seu contrário, isto é, como unificador e como condição de reprodução dessa mesma sociedade? Que estranha contradição esta que remarca profundamente o se~ social, onde o Estado é a um só tempo o produto das relações antagônicas e seu gestor independente! B essencial à existência do Estado a forma autônoma e neutra de que se reveste em face dos antagonismos sociais? Se o Estado não é expressão instrumental da classe dominante - pois, neste caso, não teria autonomia - e não é a representação de uma idéia transcen­dente que se impõe à socie.dade "por fora ' ' - e neste caso teria auto­nomia absoluta-, como é possível então sua autonomização relativa? Como é possível a neutralidade e a autonomia relativa do Estado (do político) em face dos conflitos das classes sociais? A aparência de autonomia e de neutralidade nesse sentido revela algo acidental ou

· essencial para a vida do Estado? Não há realidade do Estado senão em e através de seu modo fenomênico de aparecer; entretanto, esse seu modo de aparecer já é também fundamento de sua própria rea­lidade? Como é que a realidade estatal pode ser ocultada e ao mesmo tempo revelada em razão da maneira pela qual ela mesma aparece? Como se realiza esse disfarce e desmascaramento simultaneamente? Enfim, qual é a realidade do Estado para além de sua aparência ime­diata? Eis as questões mais expressivas que devem nortear nossas pesquisas e demonstrações no sentido de comprovar a tese segundo a qual o modo de aparecer do Estado, ao mascarar as contradições sociais das quais este se origina, é a forma pela qual o próprio Estado encontra os meios de sustentação e sobrevivência legitimada, tornando

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possível a reprodução garantida das relações antagônicas que caracte­rizam o sistema social capitalista.

Nossa abordagem situa-se estritamente no campo da teoria geral do Estado, entendida não como teoria de toda e qualquer forma his­tórica de organização política, mas como conhecimento das relações específicas de poder que perfazem a sociedade política no interior da formação econômico-social capitalista. Neste contexto preliminar, convém frisar que nosso objetivo é caracterizar fundamentalmente as bases estruturais do Estado, na tentativa de captá-lo e explicá-lo pre­cisamente como organização política específica de qualquer formação social onde predominam as relações capitalistas de produção. Esse propósito, portanto, é orientado com vistas à determínação essencial de um foco teórico instrumental para possibilitar, cremos, melhor compreensão, no plano das pesquisas empíricas e históricas, das múl­tiplas manifestações fenomênicas relacionadas com os diversos regi­mes políticos existentes ou passados, de países desenvolvidos ou subdesenvolvidos cujos sistemas sociais se enquadrem na perspectiva da formação capitalista.

Exatamente porque a presença do Estado é o produto e ao mesmo tempo determinante das relações estruturais que tipificam o modo de produção capitalista, não vemos como estudar esse tipo de organiza­ção política, em busca de sua verdade, sem apelar para um complexo de proposições interdisciplinares, onde as. mediações sociológicas, eco­nômicas, políticas, jurídicas, antropológicas e filosóficas precisam ser identificadas e operadas para a compreensão desmistificada dessa rea­lidade. É por esse motivo que, a nosso ver, o enfoque não pode ser de caráter predominantemente jurídico, ainda que as relações apreen­didas segundo esse enfoque setorial sejam de extrema importância para explicar as objetivações institucionais do Estado. O Estado e o Direito não podem se explicar por si mesmos e, por isso, sua verdade exige uma progressiva visão integrada do todo social, dentro da qual ganha sentido e consistência.

Para esse objetivo, desenvolvemos nossa investigação e análise em três segmentos de abordagem teórica que traduzem progressiva­mente a passagem dos conceitos mais abstratos e gerais aos mais con­cretos e particulares, não no sentido analítico-dedutivo, mas no sentido do movimento dialético consignado pelo enriquecimento crescente das

ESTADO E IDEOLOGIA 19

unidades conceituais em função da descoberta e exame da diversidade de seus elementos constitutivos. Começamos com as questões subja­ccn lc!l c lnsll'umcntais, onde analisamos de modo crítico os pressu­poHioM cpl!;tcnlológicos da investigação sobre o Estado, com inevitáveis I'Cpcrcussões no pluno metodológico em razão da articulação dialética de múlti plas ca tcgoriHS, como "aparência", "essência", " realidade", "ideologia", " relação", etc. Daí passamos para as questões substan­ciais, já numa linha em que os conceitos sociológicos e econômicos predominam. Tais questões são mais concretas e indispensáveis à compreensão crítica da sociedade política, embora possam não ser a esta referidas de forma imediata ou específica. Assim, tratamos da estrutura social, das relações econômicas e relações intersubjetivas , do indivíduo em face da práxis social e, ainda, das classes sociais. Finalmente, abordamos o grupo das questões nucleares, particulari­zado em razão da estreita associação com as relações especificamente políticas e jurídicas, onde analisamos o poder e . sua legitimidade, o vínculo dialético entre sociedade civil e Estado, a coação, a coercibi­Jidade e o constrangimento econômico difuso, a garantia estatal às relações estruturais capitalistas, os Estados de transição e as mediações jurídico-ideológicas entre Estado e sociedade civil.

Todas essas questões são analisadas dentro de uma perspectiva de totalidade dialética segundo a qual o universo social é uma uni­dade que se realiza, no movimento histórico, pela diversidade contra­ditória de elementos que se implicam e se excluem mutuamente . Por isso, no plano da sociedade política, nossa demonstração se concentra na tese de que o Estado aparece, no mundo fenomênico, precisamente como aquilo que ele não é; porém, esse modo negativo de aparecer, esse modo de não ser , é fundamental e necessário para que o Estado seja o que ele realmente é; ao ocultar sua essência, ele perfaz sua própria realidade na exata medida em que a oculta. Estamos, pois, convencidos de que essa revelação crítica do Estado "em" e "pelo" seu não-ser conduz à ruptura epistemológica indispensável ao trata- · mento de sua verdade . É o que pretendemos demonstrar.

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Aparência, realidade e ideologia

A forma de abordagem de um objeto de conhecimento já faz parte da constituição desse mesmo objeto. Tal forma traduz a con­dição histórica e social do sujeito cognoscente, tanto na sua realidade presente, retratada pelos múltiplos fatores que a singularizam aqui e agora, quanto na expressão de uma determinada estrutura obtida pela sedimentação de práticas sociais ao longo da História.

Isso significa que o objeto de nossa consideração - o Estado - não pode ser captado como algo externo ao modo como o consi­deramos, quer na vida prática cotidiana, quer no plano da reflexão teórica. Vale dizer que nele inserimos os elementos constitutivos de nossa subjetividade, correspondentes ao modo ideológico de apreen­dermos nossa própria realidade, à situação existencial, à carga de interesses emergentes dessa situação, aos hábitos mentais, aos estratos de formação teórica e ao enquadramento institucional a que estamos sujeitos. Esse objeto, portanto, não pode ser neutro, não corresponde a uma realidade em si e por si, entendida como algo universal inde­pendente das condições que singularizam histórica e socialmente o momento da pesquisa.1

1 A relação dialética sujeito-objeto não permite a captação do objeto "em s1 , independ~nte da subjetividade ativa, da práxis subjetiva. " . . . nem o signifi-

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Essa questão, entretanto, se levada a uma postura absoluta, su­geriria a impossibilidade de apreender de alguma forma o objeto de nosso estudo, subsumindo-o a esquemas puràmente inventivas ou me­ramente justificadores de certas posições. Nesse sentido, ao denun­ciarmos nossos compromissos com a ideologia, acabaríamos por re­duzir todo o esforço de pesquisa ao plano do relativismo subjetivo, inventor de uma realidade imaginária, destinada antes a satisfazer nossos interesses pessoais ou de grupo, do que a exprimir o caráter da realidade. Se, de alguma forma, acreditamos que ao fazer ciência realizamos um esforço para surpreender a realidade como tàl, é por­que esta nos preocupa e de certo modo nos conduz a admiti-la de alguma maneira, sobretudo tendo em vista o êxito da prática social no plano do domínio da natureza.

Considerando o âmbito de nossa abordagem, esperamos empreen­der um trabalho analítico e ao mesmo tempo crítico das relações entre a aparência e a essência do Estado, configurando a realidade estatal em função do jogo entre as correspondentes formas de . aparição existen­cial, base de sua justificação ideológica, e suas conexões subjacentes com as demais dimensões sociais e históricas da formação econômico­social capitalista de produção.

Nesse sentido, a pesquisa realizada questiona não só os produtos teóricos do juridicismo ao qual quase sempre esteve sujeita a investi­gação sobre o Estado no âmbito do Direito, como igualmente proble­matiza o instrumental de captação e construção dessa mesma realidade.

Essa linha de consideração leva-nos inicialmente a ponderar sobre a necessidade de apontar a ~streiteza da tradição empirista no âmbito da investigação sobre a origem, natureza e função do Estado. Sabe-se o quanto de prejuízo para a ação política causou a busca da mera regularidade empírica nas manifestações da sociedade política .

cado, nem a imagem refletem uma realidade em si e estabelecida de maneira definitiva, pois a relação cognoscitiva do ser humano com seu meio implica a ambos reciprocamente em um processo dialético de interação em que os ter­mos ' interior' e 'exterior' constituem os pólos de uma relàção dinâmica na qual ambos se apóiam e se contrapõem sem cessar". Cf. Francisco Meix Izquierdo, La Dialéctica Del Significado Linguístico, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1982, p . 15. Ver, nesse sentido, Theodor W. Adorno, Dialéctica Negativa, Madri, Taurus, 1975, pp. 176-180.

ESTADO E IDEOLOGIA 25

A visão especulativa dessas manifestações, na verdade, encobriu e ainda continua a encobrir o propósito implícito, sob o manto da ideo­logia, .da justificação dos sistemas políticos caracterizados pelos anta­gonismos das classes sociais.

A ruptura epistemológica, com vistas à superação do empirismo social, remete-nos à crítica das generalizações elaboradas a partir de of!.!ervações dos fatos singulares. Na perspectiva contemporânea da crítica da ciência, já se demonstrou de forma inequívoca que as hipó­teses científicas não resultam diretamente da observação e da gene­ralização indutiva; tal estratégia não proporciona uma adequada versão da estrutura do conhecimento científico. Por esse motivo, a constru­ção de uma perspectiva destinada a obter uma aproximação com respeito à realidade do Estado, segundo nosso modo de entender, não se coaduna com sua simples concepção jurídica, vinculada predomi­nantemente à tutela teórica do descritivismo jurídico-formal. Essa tutela teórica, produzindo uma saber acrítico, imediatista, que acre­dita apenas na superficialidade do fenômeno, calcado no procedimento da observação e generalização, conduz tão somente à sistematização daquilo que é apreensível pelo senso comum, ao processo antes des­crito ordenadamente do que à sua explicação. Não se explica o Es­tado, suas manifestações como sociedade política, suas relações com ---- - --a sociedade civil e com a estrutura econômica, suas funções opera-- - . . . -tivas _para ~anter a ~eproduç_!o j as relações . sociais emergentes d~ formação econômico-social capitalista, se o reduzirmos a uma expres­sã o ~e~mente legalista ou institucioo.àl, assegurada constitucionaÍ­mente, afastando-nos assim da complexa integração entre o Estado, o direito e a sociedade?

2 É expressivo nessa linha o grito de alerta de Michel Miaílle: "Na verdade, pensam que a ciência jurídica vai analisar as relações que mantêm o imaginá­rio e o real e, a partir desse trabalho, explicar simultaneamente o funciona­mento da imagem e o da vida social real? Nada disso! Por mais aberrante que isso pareça, a ciência jurídica vai tomar como certa a imagem que lhe trans­mite a sociedade e tomá-la pela realidade. A sociedade afirma-nos que o Estado é a instituição encarregada do interesse geral? A ciência jurídica responde em eco com uma teoria inteiramente fundada na noção de interesse geral". cf. Michel Miaille, Une lntroduction Critique au Droit, Paris, François Maspero, 1976, p. 54. Ver na mesma .obra "O funcionamento do Estado e funcionamento do direito", pp. 149-154. Dentro da mesma concepção geral, porém com orien-

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26 ALAOR CAFFÉ ALVES

Rejeitando a idéia de que os modelos idealizadores explicativos não são 9 produto de generalizações indutivas de dados empíricos, os resultados da Ciência Política, como proposições que exprimem leis de tendência, são distinguidos como relacionados com a essência do fenômeno "Estado". A explicação, portanto, não consiste em subsumir tal fenômeno sob proposições gerais e abstratas, relacionadas com o direito ou com as instituições sob as quais transparece. O Est~_9,

como fenômeno, ~ -explica mediante_ ~ revelação de sua essênci~ ~.!P ~ções internas apropriadas, mostrando simultaneamente como esJ a mesma essência se manifesta através das especificações singulares 2}0

plano da existência fenomênica. Isso implica que o Estado não se esgota na sua expressão jurídica e institucional; tal abordagem com­preende também a necessidade de reformulação da base teórka a seu respeito, a partir de uma posição epistemológica de caráter crítico, onde os pressupostos devem ser sempre considerados como objeto de contínua verificação, transformação e até mesmo de possível substitui­ção por outros mais adequados à captação explicativa desse fenômeno.

A apropriação cognoscitiva da realidade do Estado envolve um encaminhamento do abstrato ao concreto, visto que supõe aproxima­ções sucessivas com a prévia construção de modelos ideais abstratos pelos quais se procura dar conta da ocorrência de certas variáveis que, por hipótese, se consideram essenciais, sem interferência de todos os aspectos singulares e determinações referentes à circunstância do fe­nômeno tal como se manifesta. Esses aspectos são incorporados à aná-

tação totalmente diversa, Jellinek trabalha o conceito de Estado na linha não­exclusivamente jurídica. Dá, entretanto, ao Direito um campo de realidade que não se funde nos fatos empíricos; isso decorre da irredutível dicotomia kan­tiana entre o mundo do "ser" e do "dever ser", manifesta também e com maior intensidade na doutrina do Direito de Kelsen. Jellinek afirma: "Por isto, me­diante os conceitos jurídicos, não se chega a conhecer um ser real, como já foi dito, senão normas que hão de realizar-se mediante os fatos humanos ... Ao conceito de Direito como tal não corresponde, fora de nós, realidade al­guma; fora de nós não há mais que corpos materiais, não coisas em sentido jurídico ... " Cf. Georg Jellinek, Teoría General del Estado, Buenos Aires, Albatros, 1970, p. 120. No plano constitucional, ver José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1968, pp . 9-34.

ESTADO E IDEOLOGIA 27

lise, progressivamente, e nos limites de sua elasticidade, à medida que se realiza a verificação do modelo teórico originaL3

A forma pela qual o pensamento se apropria do real procede pela ·gradual elevação do abstrato, considerado quer como singular isolado; quer como universal abstrato, para o concreto, considerado como universal determinado ou, como ainda se pode dizer, sob a ca­tegoria da particularidade dialética pela qual o real é reproduzido como concreto pensado.4 Nesse sentido, "o objetivo do conhecimento é o conhecimento do real, do concreto; mas, apesar disso, não se deve pretender eludir a abstração, não se deve querer que o concreto nos seja dado imediatamente em sua vida. Para apreender o concreto, é preciso passar pela abstração. A riqueza concreta que um pensa­mento apreende pode ser medida pelas etapas por que passa, pelos graus de abstração atravessados e superados no curso do seu esforço. A fome de concreto, se assim podemos nos expressar, não deve pre­tender uma satisfação apressada. O método do conhecimento não con­siste em começar pelo "mais alto", pelo concreto, porém em buscar "o verdadeiro como resultado", ou seja, "em começar pelo começo, pelo abstrato".5

3 Ver Carlos Pereyra, El Sujeto de la Historia, Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 114. Para uma visão aprofundada, ver Thomas A. McCarthy, Geschwister School Instituí Universidade de Munique, e Karl G. Ballestrem, Friburgo de Brisgovia, Ciencia, in Marxismo y Democracia, Filosojía 1, Madri, Rioduero, 1975, pp. 67-119.

4 É de grande valor para a compreensão da categoria da particularidade dialé­tica a obra de Georg Lukács, Prolegómenos a una Estética Marxista, Sobre la Categoría de la Particularidad, México, Grijalbo, 1965, especialmente o item 111 da primeira parte, pp. 83-130. Ver J. Chasin, "Lukács: Vivência e Reflexão da Particularidade", in Ensaio, São Paulo, Livraria Escrito, 1982, ano IV, n.• 9, pp. 55-69.

5 Cf. Henri Lefebrve, Lógica Formal, Lógica Dialética, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1975, p. 113. Ver Mitrofan N. Alexeiev, Dialéctica de Las Formas del Pensamiento, Buenos Aires, Platina, 1964. Ver Georg Lukács, História e Consciência de Classe, Porto, Publicações Escorpião, 1974. Ver Jindrich Zeleny, La Estrutura Lógica de "El Capital" de Marx, Madri, Grijalbo, 1974. Ver Jean-Marie Brohm, Qu'est-ce que la Dialectique, Paris, Savelle, 1979. Ver tam­bém Georg Lukács, Ontologia do Ser ·social, Os Princípios Ontológicos Fun­damentais de Marx, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, especialmente as "Questões Metodológicas Preliminares", pp. 11-34.

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28 ALAóR CAFFÉ ALVES

Essa fórmula metodológica afasta-se radicalmente do empirismo generalizador. Sua adoção fundamenta-se também no fato de que a observação enquanto tal não permite distinguir, no exame da reali­dade, ~tre fatores e~nciais e secundários, nem a conexão inteligível entre eles. Em face dessa questão, é indispensável ultrapassar o empi­rismo estreito, adotando-se uma perspectiva metodológica segundo a qual ~-Jzrática científica consiste exatamente em penetrar a ~parência .tenomênica e captar; em conexão com essa apa_rência, a essê!1_ciq_dps

rocessos.

Assim, a representação teórica nessa abordagem conduz a uma transcendência dos dados da experiência, numa tentativa de ·apreendê­los ao nível âe uma trama conceitual compreensiva, abrangente e aiativa, .elaborada com futl.damento em relações de "práxis" crítica que superam ·a simples descrição dos fatos ou a generalização de base meramente empírica. Nessa linha metodológica, consideramos suspei­to o conhecimento científico a · respeito do Estado que corresponda exatamente às mesmas qualidades do saber cotidiano, isto é, sem so­lução de continuidade entre o saber comum da experiência diária e ó conhecimento que a prática científica produz. Em nosso entender, ~onhecil!!ento -~ientífico não se reduz a UI!!_ <liê..Clli:§O que apel!!!_S pr.o­longa, em outro nível de _precisão, o ~ber e~~ntâneo~ Consideramos que o cofihecimento científico . se produz mediante uma ruptura com esse saber.6 Neste contexto, o Estado não se reduz às formas de sua objetivação, através das instituições pelas quais se destaca concreta­mente na vida cotidiana e do ordenamento jurídico que regula sua manifestação racional-formal e burocrática. Partimos da hipótese de que esse fenômeno da vida política dos povos não pode ser compreen­dido em toda a sua dimensão real atendendo-se tão somente à expres­são de suà aparência para o senso comum. Na verdade, _o Estado nã~

6 Ver Carlos Pereyra, op. cit., pp. 155-157. Ver, nesse sentido, Michel Miaille, op. cit., pp. 38-48. Com muita propriedade Bachelard afirma que "o espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos qua­dros do conhecimento. Julga seu passado histórico, condenando-o. Sua estru­tura é a consciência de suas faltas históricas. Cientificamente, pensa-se o ver­dadeiro como retificação histórica · de um longo erro, pensa-se a experiência como retificação da ilusão comum e primeira". Cf. G. Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique, Paris, PUF, 1966, p. 147.

E STADO E IDEOLOGIA 29

l ' t•x plltu pot• si mesmo, _s~.a realidad_ti deita raízes sobre a sociedade t•lvl l du q11 ul promana e na gual te_!!l sua razão de ser.7

I MMU 11110 quer dizer, e é bom observar com rigor, que devemos 11 u E~ t udo enquanto forma aparente, como se essa forma não

tl plll'll' de sua realidade. Puro engano; a teoria que visa explicar n•rw lunómcno deve dar conta dessa aparência e de suas conexões n1111 11 l'NHÚncio subjacente, em função da qual aquela aparência se llllllllfl:N iu l'Omo aparência. O processo que envolve a busca da gene­ll il ldudll l'Oncreta (ou determinada) para captar essa realidade, ao ser q11ullflrudo como científico, deve compreender uma visão crítica que H' lll)(l', t•m lermos de superação dialética, à simplicidade do senso t'llltlll lll, o qual, por ser acrítico e imediatista, acredita haver pleni­t udu e uxuustão do saber no conhecimento calcado apenas na super­fklnlidudc do fenômeno. Nesse sentido, "toda ciência seria supérflua se u forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem ime­dlalamente".8 "As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fu ndamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência" .9

A questão, em sua linha justa, não é afastar o senso-comum como lnopcrn nle e indesejável para a explicação científica, mas superá-lo ''" st•ll iltlo C'r ft ico, fazendo ver que a espontaneidade natural na con­rh• l u~Htt doM fu loH colidio nos da vida política não é suficiente nem

t'Nfllllll u uulwrNo dus ClHHliçóes metodológicas para aquela explicação.

" A l ~ t• t dt• pt•cciMn t· cnfrcutor o enigma de sua auto-instituição, a sociedade hiHhhktt pn•ciNu cnfrcn lar o problema do advento do poder político como um pólo ~opumdo do social e que, no entanto, nasceu da própria ação social. I! forçuda, portanto, a compreender como o poder nasce em seu interior e como dele se destaca , indo alojar-se numa figura visível que parece pairar fora e acima dela: o Estado." Cf. Marilena Chaui, "Crítica e Ideologia" , in Cultura e Democracia, o discurso competente e outras falas, São Paulo, Moderna, 1981, p. 18. Uma análise histórico-política de grande valor para exemplificar essa relação entre Estado e sociedade civil é feita por Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, Paz e Terra, 1978. Ver nesse sentido, Antonio Gramsci, Maquiavel, A Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civ. Bra­sileira, 4.' ed., 1980, pp. 141-151. Ver também, Karl Marx e Friedrich Engels, La Jdeología Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 94-97. 8 Karl Marx, O C~pital, 111, sec. VII, cap. XLVIII, lll, São Paulo, Abril Cul­tural, 1983, p. 271. n Karl Marx, op. cit., I , sec. VI, cap. XVII , p. 131.

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Se atendermos à perspectiva do · empirismo ingênuo, não adotando uma atitude crítica quanto aos obstáculos e condições epistemológicas da prática científica, para o conhecimento do Estado, fatalmente se­remos vítimas da ilusão de que, com generalizar, classificar e siste­matizar os dados do senso comum, a respeito da sociedade política, estaremos fazendo verdadeira ciência do Estado. Por esse motivo, di­ríamos que o mundo de nossa manipulação cotidiana no plano da sociedade política não é em si mesmo um obstáculo epistemológico, a não ser que o tomemos como única base para a explicação exaustiva do Estado. Essa questão é de extrema importância, visto que uma perspectiva estreitamente empírica a seu respeito pode nos levar aos descaminhos da ideologia mistificadora. Isso exige alguns desdobra­mentos a seguir.

Neste trabalho, nossa maior preocupação será a de estabelecer, quanto à realidade do Estado, a relação orgânica entre o visível e o invisível, entre a aparência e a essência, entre o fato como momento explícito de existência e o complexo ou totalidade das relações em que esse fato se insere e ganha realidade e significação. Isso pressupõe uma linha de partida que considera fundamental a comunhão de ele­mentos opostos numa unidade que os separa e os une ao mesmo tempo. Entretanto, se aquela preocupação se mantém, a tarefa de buscar a unidade pressupõe que, de certo modo, os elementos dela constituin­tes sejam também apreendidos de forma separada, ou ainda que apenas um dos pólos seja considerado como a plena realidade.

No mundo da vivência política, onde o Estado transparece em sua forma concreta, o~ melhor, pseudoconcreta, os atos de decisão ou as instituições estatais e jurídicas consideradas estáveis constituem o ambiente cotidiano, imerso numa atmosfera de práxis utilitária da vida humana comum. Nesse ambiente, o que conta como "real" é a expressão do dado imediato, espontaneamente apresentado à consi­deração ordinária dos sujeitos sociais, prescindindo de maior verti­calização em busca de suas raízes de formação e estruturação.10

· lO Nesse sentido, Karel Kosik afirma que "no mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que esta se manifesta e se esconde, é con­siderado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece". Cf. Karel Kosik, Dialéctica de lo Concreto, México, Grijalbo, 1967, p. 28.

ESTADO E IDEOLOGIA 31

A práxis espontânea e reiterativa do dia-a-dia exige a visão do senso comum de "familiaridade" e "segurança" a respeito dos dados que lhes são ofertados pelos sentidos, tendo e~ vista a busca e o alcance do êxito imediato. Em razão da manipulação prático-utilitária desses dados, a sua regularidade, trivialidade, imediatismo e evidência sen­sível acabam por impregnar a consciência dos suieitos •. tomando a forma de única re~lidade com feição independente, fragmentária e natural. O mundo político assume um aspecto singular, povoado de elementos, indivíduos, ações, decisões, organizações, instituições, etc., que não guardam outra relação entre si senão a de serem referenda: dos obséuramente a uma relação imediata de poder, de supremacia ou comando e de sujeição ou impotência. Esse mundo não aparece como algo humanamente construído, ele se apresenta como algo natural do­tado de uma estranha necessidade.11

Nessa linha, onde a alienação social se faz presente, a unidade entre as formas fenomêniéas pelas quais o Estado aparece e se repro­duz imediatamente na consciência dos agentes sociais e sua essênci~ recôndita, illvisível à primeira abordagem, não é compreendida, nem mesmo considerada como possível. Isso significa que no plano da consciência espontânea, a essência do fenômeno não se manifesta di­reta e imediattmumte através de sua aparência; ao contrário, a prática cotidiana da vida política, considerada tanto em sua vivência subjetiva pelo agente político, quanto em suá expressão como dado meramente (:mpírico ao observador comum, longe de mostrar a essência ou lei interna do fenômeno, o que faz é exatamente ocultá-la.12 Veremos, posteriormente, o quanto essa questão influi na construção ideológica do Estado. O que é preciso, entretanto, reter aqui é o fato da predo­minância do fenômeno, da existência positiva, da mera representação figurativa ou descritiva na atividade prática cotidiana dos indivíduos. A necessidade de alcançar objetivos e atetas de caráter prático-utili-

11 Ver, nesse sentido, uma excelente reflexão sobre a relação entre domínio e poder social estranho, gênese e dinâmica da coisificaçãp em Emílio Lamo de Espinosa, La Teoria de la Cosificación: De Marx a la Escuela de . Frttncfort, Madri, Alianza Editorial, 1981, pp. 43-49. 12 Ver, nesse sentido, Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, pp. 5-7. Ver também Guido David Neri, Prassi e Conoscenza, Milão, Giangiacomo Feltrinelli, 1966, pp. 91-111.

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' tário, na realidade dà vida cotidiana, acarreta uma atitude "normal" diante dos fatos da vida social e política, tornando a atividade prática ordinária algo explicável por si mesma, apresentada como simples dado que não demanda outra elucidaÇão senão a de compô-lo ao nível dos nexos de coerência externa com outros dados para a plena com­preensão do senso comum. Ao não precisar exigir -explicação quanto às relações imanentes e transcendentes à realidade do dado, o sujeito comum, na manipulação cotidiana dos fatos, julga estar numa relação direta e imediata com a própria realidade autêntica, não sentindo ne­cessidade de romper o véu dos convencionalismos, das rotinas, dos costumes, dos preconceitos, das trivialidades, no qual encarna signi­ficativamente sua prática diária.13

No mundo prático-utilitário, a superfície é identificada com o subterrâneo; tudo o que é essencial já está à vista, pronto para o tráfico dos homens. Nesse mundo, a prática reiterativa condiciona a reprodução das relações sociais dominantes; ao caracterizar essa prá­tica como forma de manipulação dos objetos prontos, da assume a feição de uma prática fetichizada que se movimenta numa esfera de condições naturais, onde os sujeitos sociais não reconhecem os objetos e instituições como produtos de sua atividade histórico-social.14

No âmbito da ação política cotidiana, as instituições existem em si e pela significação prática enquanto satisfazem necessidades ime­diatas de indução e orientação da sociedade. Entretanto, tal signifi­cação prática apresenta-se, na consciência comum, como_ imanente às próprias instituições, como se estas fossem independentes dos atos humanos que lhes conferem essa significação. Ao aparecerem como

1<1 Ver Adolfo Sánchez Vázquez, op. cit., pp. 8-11. Uma interessante aborda­gem crítica da relação genético-filosófica do espírito em face da escamoteação do real pode ser colhida em K. Marx e F. Engels, La /deología Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 131-142. 14 Ver Karel Kosik, op. cit., p. 27. "O homem prático, cuja imagem tem diante de si a consciência comum, vive, num mundo de necessidades, objetos e atos 'práticos', que se impõe por si mesmo como algo perfeitamente natural, e ao qual não é possível subtrair-se a menos que se queira tropeçar como trope· çam a cada instante os teóricos, particularmente os filósofos" . Cf. Adolfo Sánchez Vázquez, op. cit., p. 14. Ver também K. Marx, O Capital, I, sec. I, cap. I, n.• 4, ·O caráter fetichista Ja mercadoria e seu segredo", São Paulo, Abril Cultural, 1983, pp. 70-78.

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:;IRnlficnnft~N pOI' tll mesmos, os instituições da sociedade política assu­lnt•m nuhu11unln frente uo sujeito, retratando um mundo já pronto, um "'"""" oh/t•lo tft• mmli ptllaçao e onde os homens igualmente são fllilfllftttltttf'-'"

1 ~ HNNt• unlvtnHo envolve intensamente os indivíduos em 111111 pnWu, rrdtrr11tlvn, mtldlnun t• rotineira, ocupando-os pragmatica­lllciJthl Nl' lll qunlq11r1 u•llt•xho HOlli'C suo própria obra social ao nível dn totulldnd,•; ,,,,,.,.,, M'f' 11111 /1/tiiHLo natural e não um produto de sua '''"'r•lt' ltt.\ltlt IC'o ,\lwlal. 111

Hnt~t•fnnto, t· ]H ccl~o considerar que as manifestações empírico­utlllttldnit dnN ntlvldudcs sociais, econômicas e políticas, nessa atmos­lrl'll d11 tntldlunt>, embora mistificadas e mistificadoras, têm seu pró­pilo t•Nfufu to enquanto expressão fenomênica pela qual a essência Wl ll'Npondentc se realiza concretamente. Isso quer dizer que o mundo du práxis utilitária não é um mundo de puro engano, ele inclui tam­bém, e necessariamente, a verdade de sua essênciaY Tendo um duplo sentido, a expressão aparente do Estado, por exemplo, através de suas mstituições e ordens de imposição normativa, aponta para sua essên-

1 ~ Ver Marx Horkheimer, Crítica de la Razón Instrumental, Buenos Aires, Editorial Sur, 1973, pp. 15-68. Ver Karel Kosik, op. cit., pp. 86-87. 1 o "O indivíduo se move em um sistema formado de aparelhos e equipamen­

tos que ele próprio determinou e pelos quais é determinado, mas já há muito tempo perdeu a consciência de que este mundo é criação do hómem ". Cf. Karel Kosik, op. cit., pp. 86. 17 A unidade dialética entre a essência e o fenômeno (aparência) é traduzida

por Hegel assim: ·A existência é a imediaticidade do ser, na qual a essência se estabeleceu. Esta imediaticidade é em si mesma a reflexão da essência em si ( ... ). A existência é esta imediaticidade refletida, porquanto nela mesma é a absoluta .negatividade ( ... ). Por conseguinte, a aparência é antes de tudo a essência em sua existência; a essência se acha de modo imediato nela . . . Há somente aparência no sentido de que a existência como tal é só algo posto, não um ~er existente em si e por si. O que constitui sua essencialidade é o seguinte: o ter em si mesma a negatividade da reflexão, a natureza da essência. Não se trata de uma reflexão estranha, extrínseca, à qual pertença a essência e que, por meio de sua comparação com a existência, explique a esta como aparência. Esta essencialidade da existência, isto é, do ser aparência, é a pró­pria verdade da existência. A reflexão, por cujo meio ela representa isso, per­tence·lhe como própria" . Cf. G. W. F. Hegel, Ciencia de la Lógica, tomo II, Buenos Aires, Hachette, 1956, p. 149. Ver, também, G. W. F. Hegel, Enci.clo­pedia de las Ciencias Filosóficas; segunda sección de la lógica, §§ 112, 113, 114, 115 ; 123, 131 e 32, México, Porrua, 973, pp. 66-69, 72 e 75.

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cia e, ao mesmo tempo, a oculta. As relações internas explicativas da sociedade estatal se manifestam de certo modo no fenômeno de sua existência concreta, embora de forma inadequada à apreensão ime­diata e direta da própria essência~ A aparência é sempre aparência de algo que se esconde em sua autenticidade; ela aponta para algo que não é ela mesma; ela se afirma como tal exatamente . enquanto mani­festação de seu contrário, daquilo que ela não é, mas sem o que ela não seria aparência.18 De modo inverso, a essência não se reduz a si mesma; ela exige, no plano da existência, sua representação em "outro" que não ela mesma; por isso a aparência não é mera aparên­cia ou um não-ser; ela é a expressão de uma essência que só pode exatamente existir como aparência, como forma singular de exis­tência.19

Assim, a essência do Estado flão se . apresenta de forma imediata ou direta, e sempre se manifesta em algo distinto daquilo que é, me­diante os múltiplos aspectos de sua existência. Esses aspectos feno­mênicos possuem uma ordem própria, uma certa legalidade que pode ser descrita e configurada dentro de uma determinada coerência ex­tema, formal, mas nem por isso diretamente reveladora da estrutura essencial de sua realidade.20 É por essa razão que, ao nível da cons-

18 Ver Nicola Abbagnano, verbetes "aparência· e "essência·, Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1962. 19 Ver, nesse sentido, Herbert Marcuse, Razão e Revolução, 2.• ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 95-120. Ver também G. W. F. Hegel, Fenome­nología del Espiritu, México, Fondo de Cultura Económica, 1966, pp. 82-104. Ver Hannah Arendt, La Vida del Espiritu: El pensar, la voluntad y el juicio en la filosofía y en la política, Madri, Centro de Estudios Constitucianales, 1984, Primeira Parte, I, "La Aparencia", pp. 31-84. Consulte-se Theodor W. Adorno, op. cit., pp. 169-173. Ver Jean-Marie Brohm, op. cit., pp. 80-84. 20 A extensão desse formalismo epidérmico compromete não só o conteúdo de cada corpo científico mas também a conexão entre os diversos campos do saber relacionados com uma mesma temática e vice-versa, "Pensemos até que ponto tem sofrido, a problemátia científica do Estado moderno, as conseqüên­cias da puntual separação entre uma filosofia do Direito, uma doutrina jurí­dica do Estaoo (em suas diversas articulações), uma ~ histÓria das doutrinas políticas e uma ciência política (à qual se pode até acrescentar uma sociologia política). Confinamentos desse gênero, já formalistas de por si, não podem mais que perpetuar os formalismos internos das disciplinas". Cf. Umberto Cerroni, Introducci6n a la Ciencia de la Sociedad, Barcelona, Editorial Crítica,

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t'1(111d11 comum, se pode tratar o mundo jurídico, por exemplo, no lttlllt'lm de uma textura conceitual dogmática, com relativo êxito prá-111 11, lendo em vista as funções utilitárias do mundo cotidiano, aten­"' '11!10 apenas aos critérios da descrição e generalização das aparências ,. da consistência lógico-formal de seus elementos constituintes, sem descer às raízes essenciais explicativas desse mesmo mundo. Eviden­temente, na perspectiva da práxis transformadora e não meramente rciterativa, essa forma de abordagem é insuficiente; ela apenas ganha significação enquanto possa ser, para a consciência crítica, a expressão teórica de uma vivência espontânea que revela e ao mesmo tempo oculta a estrutura essencial subjacente.

Nesse sentido, existe unidade dialética entre aparência e essência, integrada por uma relação onde esses termos são respectivamente identificados um em razão do outro, conservando sua essencial co­nexão e identidade a par de sua essencial distinção e oposição. Assim, o fenômeno do Estado não pode ser algo empírico radicalmente dife­rente de sua essência, e esta não é um elemento constituinte de uma ordem completamente diversa da daquele fenômeno. Portanto, essên­cia e aparência não estão numa relação externa reciprocamente indi­ferente; existe aí uma integração dialética. Essa integração exige a rejeição da idéia de considerar aqudes termos de forma isolada, de tal sorte que não se pode admitir a completa ou maior realidade de um em relação ao outro. Isso significa que a realidade do Estado não se circunscreve quér ao fenômeno pelo qual empiricamente se mani­festa, quer à essência pela qual ganha significação e consistência ra­cional. Se cada momento, seja o empírico, seja o racional, for apre­ciado com exclusão do outro, a realidade resultará insanavelmente mutilada, com inequívocos prejuízos à compreensão total do objeto.21

Em conseqüência, "o procedimento que se tem de seguir na investi­gação científica não pode ser o de reunir múltiplos casos como apoio

1977, pp. 68-69. Ver, nesse sentido, Eugene Fleischmann, "Ligação formal e relação dialética em Marx", in A Lógica em Marx, org. Jacques d'Hondt, Lis­boa, Iniciativas Editoriais, 1978, pp. 33, 52. ~1 "A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considera­dos como a única ou "autêntica realidade". Cf. Karel Kosik, op. cit., p. 28.

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a uma tese particular, senão o de reconstruir o processo de gênese de qualquer desses múltiplos casos, dissolvendo-o em seus elementos sim­ples e indispensáveis a sua existência, demonstrando o 'porquê' de cada um deles e recompondo o todo como resultado da combinação desses elementos simples. Desta forma obteremos um conhecimento das causas, do 'porquê' de um Estado e não simplesmente de que tal Estado existe" .22 Por essa linha, rejeitamos a perspectiva do empi­rismo por considerar que o conhecimento científico não pode se limi­tar a mostrar muitos casos de um fenômeno, a compará-los uns com outros e a fixar seus elementos coincidentes ; na verdade, o que im­porta é chegar à lógica do fenômeno, às suas leis internas, às condi­ções necessárias de sua existência.

Contudo, no plano da vida política, a consciência espontânea, ao apreciar e emitir opiniões a respeito da ação estatal, mesmo sob a forma de juízos '_'científicos" com a pretensão de exprimir a realidade do Estado, confunde a aparência contingente daquela ação com sua essência, na crença de que há uma identidade imediata entre essência e existência; parte do pressuposto de que o dado empírico imediato é a manifestação da plena e última realidade023 Como já foi antes considerado, esse processo, sem o crivo da reflexão crítica, conduz-nos irremediavelmente à mistificação ideológica.

Neste momento, devemos explorar outra vertente de nossa abor­dagem metodológica: a que se refere às questões ideológicas. O termo "ideologia" é polissêmico, prestando-se a múltiplos usos nem sempre suficientemente caracterizados de modo a evitar confusão. Podemos apontar especialmente para duas significações a respeito das quais há um relativo consenso entre os teóricos . Primeiramente, o termo con­signa um conjunto de idéias através das quais se toma consciêncià da realidade, formando uma totalidade mais ou menos estruturada que

22 Cf. Javier Perez Royo, Introducción a la Teoría del Estado, Barcelona, Blume, 1980, p. 95. Para uma reflexão a respeito das explicações histórico­empírica e lógico-racional, ver Hegel, Princípios de Filosofia do Direito, Lisboa, Guimarães Editores, pp . 19-54. 23 Herbert Marcuse abrange o tema nesse sentido, dizendo que "o senso co­mum confunde a aparência ·acidental das coisas com sua essência, e persiste na crença de que há uma identidade imediata entre a essência e a existência". Cf. H. Marcuse, op. cit., p. 55.

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permite e orienta de certo modo a produção de juízos, opiniões, cren­ças e explicações acerca do mundo. Esse complexo tem por base, normalmente, as condições estruturadoras de grupos sociais, tais como partidos políticos, classes sociais, estratificações estamentais, raças, comunidades isoladas, etc., não excluindo o fato de que tal complexo de idéias faz parte inerente dessas mesmas cóndições estruturadoras. A ideologia, neste sentido, pode ser considerada como cosmovisões alternativas através das quais o homem toma consciência do mundo e em razão das quais esse mesmo mundo torna-se inteligível. Numa_ segunda acepção, o termo "ideologia" traduz um estado de subjeti­vidade social, com fundamento objetivo, a respeito do qual se avalia o correspondente complexo de idéias sob o ângulo do conteúdo de verdade ou falsidade que elas possam comportar e na medida em que elas possam formar uma falsa representação que induz ao engano em relação a determinadas situações sociais, escamoteando-as de maneira justificada. Nesse sentido, qualificar como ideológicas certas proposi­ções significa considerá-las sob o ângulo de uma avaliação crítica. "Geralmente, ambos os usos do termo ideologia - descrição de um corpo ou conjunto de idéias, por um lado, e valoração sobre a validez deste conjunto, por outro - se confundem e desse modo fica formado o sentido mais comum: conjunto de idéias de cuja validez se duvida em razão das bases sociais sobre as quais s~ edifica. Desta forma, o conceito de ideologia denota um campo de idéias determinado, de­fine um corpo objetivo e conota uma valoração epistemológica do mesmo." 24

24 Cf. Rafael del Aguila Tejerina, Ideología y Fascisriw, Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1982, pp. 24-25. Ver sobre a temática Ferruccio Rossi-Landi, Ideologia Barcelona, Labor, 1980; Lucio Colletti, Tramonto Dell'Ideologia, Roma, Laterza, 1980; Karl Marx e F. Engels, La Ideologia Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973; Karl Mannheim, Ideologia e Utopia, Rio de Janeiro, Zahar, 1972; Eugenio Trias, Teoría de las Ideologías, Barcelona, Península, 1975; Theodor Geiger, Ideologia y Verdad, Buenos Aires, Amorrortu, 1972; diversos autores, Irving Louis Horowitz (org.) , Historia y Elementos de la Sociologia del Conocimiento, 2 vols., 3.• ed., Buenos Aires, Universitaria, 1974; Max Weber, Sobre a Teoria das Ciências Sociais, Lisboa, Presença, 1974; G. D. Neri, Prassi e Conoscenza, Milão, Giangiacomo Feltinelli, 1966; Leszek Kolakowski, Tratado sobre la Mortalidad de la Razón, Caracas, Monte Avila, 1969; diversos autores, Da Ideologia, organizado pelo Centre for

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A ideologia se caracteriza, basicamente, pelo empenho mais ou menos consciente ou mesmo inconsciente de justificação a respeito de uma realidade social e que toma a forma de uma expressão teórica ou de uma determinação prática. O discurso ideológico sobre o Estado, assumindo a expressão de uma argumentação teórica, a par da pos­sível veracidade de seu conteúdo, também oculta o esforço mais ou menos consciente ou inconsciente com vistas a obter a convicção, a adesão, a defesa da questão em foco. Esse discurso, sob a capa da explicação teórica, encobre formas prescritivas que dirigem nosso co-

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.lise do Pensamento Tecnocrático, São Paulo, Brasiliense, 1983; Vera Rudge Werneck, A Ideologia na Educação, Petrópolis, Vozes, 1982; Simon Schwartz­man, Ciência, Universidade e Ideologia, a Política do Conhecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1981; A. Sedas Nunes, Questões Preliminares sobre as Ciên­cias Sociais, Lisboa, Editorial Presença, 1977; Caio Navarro de Toledo, ISEB: Fábrica de Ideologias, São Paulo, Atica, 1982; João Paulo Monteiro, Teoria, Retórica, Ideologia, São Paulo, Atica, 1975; Alcantara Nogueira, Filosofia e Ideologia, São Paulo, Sugestões Literárias, 1979; Maurício Tragtemberg, Buro­cracia e Ideologia, São Paulo, Atica, 1974; Marilena Chaui e 1\laria Sylvia C. Franco, Ideologia e Mobilização Popular, Rio de Janeiro, Paz e _Terra, 1978; Miriam Limoeiro Cardoso, Ideologia do Desenvolvimento, Brasil: JK, JQ, 2." ed., de Janeiro, Paz e Terra, 1978; Pierre Ansart, Ideologias, Conflitos e Poder, Rio de Janeiro, Zahar, 1978; Robin Blackburn (org.), Ideologia na Ciência Social, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

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nh~cimento e nossa atividade prática para uma linha de maior inte­resse. Esse processo pode induzir à eventual deturpação da realidade em prol do ponto de vista defendido, compreendendo uma posição predominantemente partidária sob um discurso aparentemente neutro, isento de valoração. No âmbito da teoria do Estado, o conhecimento não pode escapar ao julgamento de valor, ao posicionamento político, manifesto ou latente. É evidente que a interpretação da realidade so­cial é sempre realizada por uma consciência interessada. Neste plano, o sujeito cognoscente faz parte do objeto estudado. Portanto, a depu­ração das inclinações ideológicas, no campo específico das ciências sociais, só pode ser relativa. Nessa linha, devemos considerar não ser possível um conhecimento científico do Estado contraposto externa­mente à sua justificação ideológica. Entretanto, por não poder ser contraposto externamente àquela justificação, não significa que o conhecimento científico a respeito das questões sociais ou políticas não possa ser expresso por Üm discurso objetivo.

Neste passo, é conveniente notar que a expressão "discurso objetivo" não equivale a "discurso livre de valores". A neutralidade valorativa não é um critério de objetividade, visto que a parcialidade ideológico-valorativa não desvirtua necessariamente a verificabilidade ou o potencial transformativo (da realida~e) da explicação; além disso, a "neutralidade valorativa" é consignada exatamente para dar maior credibilidade a uma posição ideológica inconfessável. A introdução de posições ideológicas ou esquemas valorativos em um discurso cancela a imparcialidade, porém não necessariamente a objetividade.'25 Essa objetividade, entretanto, não deve, em nosso entender, ser considerada como referente a um objeto tomado em si e por si, independentemente do sujeito cognoscente. "O sujeito não é um ente passivo que possui como único atributo o de ser espelho da realidade. O sujeito não vê, senão que aprende a ver, e este processo de aprendizagem não se pode desligar de sua relação com o objeto mesmo. De nenhum modo se pode manter a ficção de que no curso da História sucederam-se diver­sas estruturas econômicas, dinastias nasceram e foram abolidas, revo­luções triunfaram, e que, no entanto, a faculdade humana de fotogra-

25 Ver Carlos Pereyra, op. cit., p. 161.

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far o mundo não se tenha alterado desde a antiguidade até hoje." 2-G

" Assim como o objeto não só existe sob a forma de uma situação

dada, mas também como parte da atividade de múltiplos sujeitos in­dividuais e coletivos, e em geral como atividade humana em processo, igualmente o sujeito, tanto histórico como do conhecimento, é pro­cesso e se realiza a si mesmo nesse processo." 27

E preciso, pois, fazer a distinção entre o conteúdo de um dis­curso e a questão das condições de sua elaboração e aceitação. A confiabilidade de um discurso quanto ao seu valor de verdade, ou seja, à sua adequabilidade ao real a ser transformado, é algo diferente das questões relativas aos fatores pessoais e determinações sociais que tornam possíveis a construção desse discurso e seu grau de aceitação. Assim, segundo nosso modo de entender, a eficácia explicativa de

uma teoria do Estado não aumenta à medida que nos afastamos das valorações ideológicas a seu respeito e, ao mesmo tempo, não é incom­

patível com sua utilização no jogo das ações políticas. Se é certo que um discurso teórico de tal natureza pode ter sua contrastabilidade de certo modo alterada pelo embate político-social, não menos certo que contribui extraordinariamente para esclarecer aspectos ocultos da rea­lidade social, invisíveis fora dessa contrastabilidade.28

Nesta linha, a verdade de um discurso teórico-social passa a depender das condições que ele preenche para orientar a ação no

sentido da transformação da realidade social. Assim, seu falseamento não se verifica, a nosso ver, em razão do "amor ao poder" · por uma

classe social, de modo indiferente, tanto na medida em que aquele ainda não tenha sido conquistado quanto pelo esforço em conservá-lo após a conquista. Equivocamo-nos, portanto, quando consideramos apenas o "interesse pelo poder", seja para obtê-lo, seja para conservá­lo, e não "as relações de poder em si mesmas", o determinante do falseamento ideológico. E exatamente neste equívoco que incide K. Mannheim ao postular que tanto o interesse conservador quanto o

2·6 Cf. Karel Kosik, op. cit., p. 149.

27 Cf. Rafael del Aguila Tejerina, op. cit., pp. 42-43.

28 Ver Carlos Pereyra, op. cit., p. 164.

1~'---

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revolucionário são nocivos ao conhecimento sociaJ.29 Nesse sentido, equipara-se o desejo de conservar com o desejo de transformar, ou seja, enquanto desejos e vontades, ambos são igualmente extrateoré­ticos, estranhos ao processo cognoscitivo e, portanto, suas influências resultam falseadoras do mesmo. Entretanto, como a relação de poder se realiza no interior de um processo que abrange avanços e recuos de todas as forças sociais em jogo, não se pode afirmar que o falsea­mento ideológico na elaboração teórica dependa deste ou daquele setor ou classe social, mas sim das circunstâncias históricas decorrentes do dinamismo das classes em luta, do empenho dos agentes coletivos com interesses divergentes ou antagônicos na linha da transformação da realidade social. Por isso, a ideologia se instala com mais força. quando a consciência de classe se mostra não como consciência crí­tica, senão como consciência justificadora do existente."0

Bm face da complexidade dessa questão, convém sublinhar e esclarecer certos pontos para se evitar mal-entendidos. Consideramos a ideologia como um fator prático-valorativo que caracteriza, a nível da "práxis" teórica, o modo operacional como se manifesta um discurso. Esse discurso pode apresentar-se como um saber teoricamen­te válido, fundado em exame crítico-epistemológico e em termos de seu poder para a transformação social, ou apresentar-se como não possuindo tais predicados, afirmando-se como mera hipótese (abstrata) ainda a ser verificada, ou como um "conhecimento" de mera con­vicção sem fundamento explícito no âmbito da prática científica, ser­vindo apenas como apoio ou justificação da ação social. Como já vimos, no âmbito das ciências sociais, ao conhecimento pode-se atri­buir um caráter de objetividade - o qual não exclui a subjetividade

29 Nesse sentido, K. Mannheim, ao definir a ideologia como falsa consciência sustenta "que, para além das fontes de erro comumente reconhecidas, devemos admitir igualmente os efeitos de uma estrutura mental deformada. Reconhece ( .. . ) que, na mesma época histórica e na mesma sociedade, possam existir vários tipos deformados de estrutura mental interna, uns por ainda não haverem chegado ao presente, outros por já se encontrarem além do presente. Em qual­quer dos casos, entretanto, a realidade a ser compreendida se acha deformada l dissimulada, pois esta concepção da ideologia e da utopia trata de uma realidade que se desenrola somente na prática efetiva". Cf. Karl Mannheim, fdeologia e Utopia, Rio de Janeiro, Zahar, 1972, p. 123. ll f\ Ver Rafael Del Aguila Tejerina, op. cit. , pp. 49-53.

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- perfeitamente compatível com sua utilização para fins práticos, em função de interesses determinados, parcelares ou mesmo antagônicos, da coletividade a que tal conhecimento corresponde. Não é porque uma formulação teórica a respeito da realidade sócio-política possa servir a uma parcela da sociedade, e até mesmo ser utilizada para justificar sua ação de conformidade com seus interesses, que essa for­mulação deva possuir necessariamente um caráter somente ideológico. Neste caso, o ideológico pode assumir, como fundamento de sua pró­pria força de justificação, o conhecimento válido, verificado de con­formidade com os critérios de apuração controlada da prática cientí­fica para a transformação do real. A contraposição crítica entre o discurso ideológico e o discurso científico, portanto, é sempre possí­vel; essa contraposição será, porém, de caráter interno, visto que não há conhecimento científico desinteressado, e isso se revela de modo especial no plano das ciências sociais. Naturalmente, essa contrapo­sição crítica decorre de uma posição prático-social que compreende nossa progressiva conscientização da relação entre os elementos do discurso que elaboramos e o contexto das variáveis psicológicas e sociais condicionantes dessa mesma elaboração. Nesse curso de análise crítica, encontra-se também o exame dos fundamentos e critérios de nossa perspectiva em contraste com os de outras perspectivas a res­peito das mesmas questões. A contrastabilidade teórico-prática, sem dúvida, é um dos meios para se ganhar a auto-consciência de nossas posições particularizadas.'11 Porém, esse meio é insuficiente, visto que a superação ideológica não é uma questão meramente pessoal; ela compreende fundamentalmente a relação teórico-prática de caráter social.

Cumpre-nos estabelecer a função e os limites dessa contraposição crítica para aclarar melhor este ponto. Se não fosse possível haver a contraposição entre o saber científico e a ideologia, ocorreria a invia­bilidade da distinção entre conhecimento verdadeiro e conhecimento pautado na consciência justificadora com aspirações prescritivas. Sem a contraposição, possível apenas pelo exame crítico-epistemológico com fundamento na práxis transformativa e mediante a aplicação de cri­térios empíricos de contrastabilidade e controle - que demandam uma

31 Ver K. Mannheim, op. cit., p. 129.

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crítica constante, porque também estão sob influxo ideológico -, não haveria como dissolver a identidade entre conhecimento verdadeiro e aparência de conhecimento verdadeiro. Tudo seria relativo, sem a possibilidade de fundamentação última. A prática científica não pas­saria de um jogo descompromissado, segundo o qual se poderia dizer e aceitar arbitrariamente o que bem entendesse.

Contudo, é preciso que se note que tal contraposição, na esfera das ciências sociais, não se apresenta nunca no plano de uma relação reciprocamente externa, ou seja, não se pode, com exceção do apon­tamento da distinção ao nível da consciência crítica, contrapor, em termos de separação, o saber em sua expressão puramente científica ao discurso puramente ideológico, um ao lado do outro. Se houver conhecimento autêntico, ele será sempre interessado e por isso per­meado ou sobredeterminado pelas funções ideológico-valorativas jus­tificadoras das posições assumidas pelos agentes cognoscentes. Mas, neste caso, mediante análise específica e permanente de caráter crí­tico, pela aplicação e revitalização constante de critérios prático­sociais orientados para a transformação da sociedade, se poderá consignar· o valor veritativo desse conhecimento, discriminando-o do mero desejo ou interesse que norteiam sua utilização prescritiva.

Até aqui, a questão não passa de um aproveitamento instrumental da teoria verificada segundo determinados termos, para a consecução de certos fins da ação social. A própria teoria é veículo e suporte da ação prescritiva. Não há, neste ponto, proposições científicas e pro­posições de caráter puramente ideológico; neste caso só há proposi­ções científicas engajadas numa linha indiretamente justificadora de uma certa posição. Somente a análise crítico-epistemológica e o con­trole prático-social permitem realizar a distinção, mas não a separação, entre o momento do discurso teórico autêntico e o momento da ten­dência parcial manipuladora daquele discurso.

Por outro lado, no sentido da mistificação, a ideologia pode se manifestar na ausência de um suporte teórico autêntico, ao aparecer na forma de um "saber" que se vende como científico, mas cuja ver­dadeira finalidade é exercer uma função puramente racionalizadora. Sob proposições aparentemente científicas, com pretensões objetivas e universais, escondem-se diretivas que representam inconfessáveis interesses parciais. Neste caso, o discurso ideológico fica órfão de

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fundamento teórico-objetivo e reveste-se com uma sofisticada aparên­cia de confiabilidade científica exatamente para escamotear seu ver­dadeiro propósito e função mistificadora. Aqui, as proposições são apenas de caráter ideológico expressivo, visto que manifestam apenas interesses e necessidades de uma classe social; elas tomam o corpo e feição de um discurso pretensamente verdadeiro para veicular a in­dispensável respeitabilidade do saber científico, visando com isso ao mascaramento simultâneo de uma realidade que não se quer ver des­nudada e de uma orientação prática, subjacente à formulação pseudo­teórica, para manter a ação dos agentes sociais nos limites daquela mesma realidade. Nesse segmento da ideologia mistificadora, a con­traposição crítica destina-se especialmente a denunciar a lacuna exis­tente em relação ao pretenso saber científico; pretende-se, com a análise crítica e a ação social correspondente, filtrar, por dentro do próprio discurso ideológico, os elementos reveladores de sua falsa composição teórico-objetiva.

Neste ponto, é preciso fazer algumas considerações a respeito da ideologia tomada como falsa consciência. Segundo essa concepção, a ideologia designa um conjunto de crenças socialmente difundidas que exprimem pseudo-realidades, fundadas em interesses cuja origem de classe não é diretamente apercebida pelos sujeitos sociais. Há, neste caso, um jogo de generalizações abstratas e inversões de idéias que se traduz numa dissimulação inconsciente da realidade social; a ideo­logia dominante empreende uma função de ocultação, de mascara­mento, sem que haja consciência desse processo; seu fim é escamotear "inocentemente" as contradições da sociedade real.~ 2 Assim, os inte­resses recônditos da classe dominante impulsionam a elaboração, ma­nutenção e transformação dos complexos ideológicos, representados por idéias religiosas, filosóficas, políticas, estéticas, jurídicas, etc.; esses interesses de classe não se retratam manifestamente à consciên­cia e, mascarados por representações imaginárias ou expressivas das aparências fenomênicas, permanecem como base dinâmica das racio­nalizações ideológicas dos próprios sujeitos que delas se beneficiam. A ideologia, neste caso, se apresenta como um esforço para univer-

32 Ver a respeito comentário singularmente interessante feito por José M. Ro­driguez Paniagua, Marx y el Problema de la ldeología, Madri, Tecnos, 1972, pp. 69-83.

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salizar e "naturalizar" pensamentos e pautas de ação prática que têm por fim legitimar, através de motivos aparentemente racionais e obje­tivos, atitudes sociais favoráveis aos interesses inconfessáveis de uma determinada classe social. Neste sentido, a ideologia é um meio de dominação de classe. Assim, por exemplo, o liberalismo político pro­pugnado pela burguesia revolucionária do século XVIII, ao pretender e acreditar ser imparcial, com a criação de um Direito justo e uni­versalmente válido, não era senão a expressão de uma ideologia que, sob o manto da liberdade e igualdade formais, nada mais fazia do que ocultar as profundas desigualdades econômicas imperantes na so­ciedade civil. Os magistrados julgavam com consciência, com lisura e retidão, mas sua consciência era "falsa", porque o Direito aplicado era um Direito que em última instância legitimava e garantia a desi­gualdade material, isto é, a pretensão dos proprietário§ economica­mente poderosos, detentores dos meios e condições da produção sociaL

A ideologia na acepção de "falsa consciência" implica dois mo­mentos interdependentes. Em primeiro lugar, pelo lado subjetivo, cumpre ressaltar que a ideologia não é fantasia, ficção imaginária ou invenção arbitrária; ela se manifesta como uma ilusão, isto é, como falsa representação que provém não dos próprios dados da sensação, senão do modo como os interpretamos e com eles nos relacionamos praticamente. O exemplo paradigmático é extraído da óptica, no que se refere ao estudo da refração da luz; esta é responsável por uma série de fenômenos ópticos, como o fato de uma colher parecer que­brada quando mergulhada na água e de a profundidade de uma piscina parecer menor do que realmente é. Segundo Kant, numa perspectiva idealista, a verdade ou a ilusão não estão no objeto, mas no juízo sobre ele; os sentidos não podem errar exatamente porque não podem julgar. Entretanto, na posição dialético-realista, elas não estão nem na mera aparência do objeto, nem no puro julgamento teó­rico do sujeito, mas na relação prática sujeito-objeto; descobre-se a verdade ou a ilusão não por um simples afrontamento teórico-abstrato do sujeito perante o objeto, mas por uma atividade crítico-prática desveladora da relação entre aparência e essência.33

33 "Por existir, no interior da sociedade capitalista, uma espécie de ruptura interna entre as relações sociais e o modo pelo qual são vivenciadas, o cientista dessa sociedade vê-se frente à necessidade de construir a realidade contra as

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Vê-se, então, num segundo momento, pelo lado objetivo, que o engano é cometido a partir de uma "aparência objetiva", visto que mesmo que nos certifiquemos, com a prática, não ser o caso, o fenô­meno continua ali, embora nossa consciência possa já estar armada pela atividade crítica para não "se iludir". A ilusão só pode desapa­recer em termos efetivos quando, pela prática social transformadora da própria realidade, alteramos as condições objetivas que determinam o fenômeno.

Desse modo, a ideologia, . mesmo concebida como um discurso apenas expressivo, não pode ser confundida com uma espécie de "alucinação coletiva", onde as imagens são constrangedoramente im­postas aos sujeitos a partir tão-somente de processos ocorridos neles próprios. A ideologia, ao contrário, expressa uma aparência que não cessa quando reconhecida como tal. Entretanto, neste caso, ao reco­nhecer a aparência como aparência que oculta e ao mesmo tempo desvela relações essenciais distinguíveis daquela mesma aparência e pela qual ganham existência fenomênica, estaremos no caminho crí­tico-prático para a superação da ideologia mistificadora, da falsa consciência.'34

A ideologia como ilusão consiste em integrar dados dos sentidos, do pensamento e da voQtade em determinadas condições que permi­tem elaborar e cristalizar, ao nível social, juízos falsos estruturadores de concepções, crenças e práticas que impedem a compreensão clara da realidade social, de suas contradições e antagonismos, de modo a evitar práticas transformadoras que resultem na destruição dos pri­vilégios das classes dominantes. É preciso compreender, entretanto, que não basta, para as estruturações ideológicas, a existência desses juízos observados apenas sob sua forma meramente lógica, isto é, en-

aparências". Cf. Norman Geras, "Marx e a Crítica da Economia Política", in Robin Blackburn (org.), Ideologia na Ciência Social, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 264. 34 Nesse sentido, Norman Geras destaca "aquelas aparências, ou formas de manifestação que são expressão das relações sociais e que não são mistificadoras ou falsas em si mesmas, na medida em que correspondem a uma realidade objetiva; tornam-se mistificadoras apenas quando consideradas como produtos da natureza ou das intenções subjetivas dos homens" . Cf. Norman Geras, op. cit., p. 268.

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quanto proposições formais reveladoras de simples conexões de coe­rência; eles devem compreender a necessária adesão afetiva e prática da consciência, num plano de convicção fundado em interesses domi­nantes particulares transfigurados na forma de interesses gerais, indu­zindo o sentimento de que são "lógicos", "evidentes", "sensatos" e de que expressam uma realidade "em ordem", perfeitamente "natural"

e legítima.35

Ainda nessa linha de consideração, percebe-se que a ideologia deve ter, para sua consistência como ideologia no sentido de falsa consciência, um fundamento no real, uma base subjetiva de aparência que não permite, a nível da sociedade como um todo, a consecução do "desengano" mediante eventual esclarecimento promovido pelas consciências críticas; isso significa que, sem práxis transformadora do real, a mistificação ideológica não desaparece. Esse fato se dá porque a realidade, como já dissemos antes, consiste de uma unidade dialética entre aparência e essência, e ela só pode ser desvelada na sua auten­ticidade através da atividade da práxis transformadora, com a negação crítico-prática da experiência imediata do cotidiano. Enquanto se per­manece ligado à feição externa e imediata do mero fenômeno, tal como se oferece à nossa experiência direta, como algo dado, · feito

·e acabado, o real social ou natural se nos apresenta irremediavelmen-te como um aglomerado de fatos fixos, isolados e sem história, isto é, como um conjunto de elementos abstratos que podem ser apenas descritos, classificados, ordenados e sistematizados e nunca realmente explicados. A ideologia, portanto, ao não ter por função explicar os vínculos internos da realidade, a conexão entre aparência e essência, completa os dados da aparência mediante representações que lhes emprestam relações externas de coerência formal, exatamente para ocultar as lacunas de compreensão da própria realidade, as quais não podem ser preenchidas sob pena de se desnudar como ideologia. Assim, ela trabalha com abstrações, com o mundo das aparências, apenas com os dados direta e imediatamente oferecidos na prática utilitária dos homens, numa sociedade fragmentada e dividida pelos antagonismos de classe.

35 Ver Clodovis Boff, "Sobre Ideologia", in Clarêncio Neotti (org.), Comuni­cação e Ideologia, São Paulo, Loyola, 1980, pp. 29-32.

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Como decorrência dessa manipulação abstrata e cotidiana do mundo das aparências e da atitude de considerar os objetos reais como coisas significantes por si mesmas, não admitindo uma distân­cia entre o pensar e a realidade e descon_hecendo esta como processo, como História, a ideologia toma o mundo aparente como o único mundo existente, reproduzindo um real invertido. Assim o resultado de um processo passa a ser considerado seu começo; o falso aparece sob a forma de verdade; a aparência apresenta-se como essência; o produto humano se torna algo natural; o que é transitório e contin­gente transforma-se em definitivo e necessário; os efeitos são tomados como causas; o criado como criador; a idéia como realidade; o que é histórico como algo eterno, e assim por diante. Esse procedimento ilusório, mediante a abstração e a inversão da realidade, fundamenta um consenso social a respeito da aparente unidade e harmonia de uma sociedade estruturalmente conflitiva; nele as diferenças e os an­tagonismos de classe são apagados através da manipulação incons­ciente de padrões significativos com funções universalizantes, tais como "cidadão", "humanidade", "liberdade", "bem comum", "nação", "Estado", etc."6

Por essa manifestação ideológica, facilmente se verifica a tendên­cia de 1'teorizar" a realidade política mediante a descrição generali­zadora e o decalque puro e simples das instituições sob o prisma formal de sua expressão técnico-utilitária. Na esfera da vida cotidiana, a conduta prática conduz à incontornável economia de esforço na compreensão dos fenômenos políticos; isso leva à normal utilização de certas categorias, instituições e instrumentos para os efeitos prag­máticos da ação política. Até aqui nada seria especialmente relevante se não houvesse, numa postura acrítica, a incorporação direta dessas categorias, instituições e instrumentos à "teoria política", sem ne­nhuma alteração. O fenômeno político, neste caso, não é senão algo refletido apenas em sua aparência; porém, é julgado como se fosse toda a realidade, numa inversão ideológica inequívoca. Obviamente, essa atitude "científica" não leva à explicação da lei interna dos fe­nômenos políticos, mas sim à mera e mais sofisticada reprodução des-

36 Ver, nesse sentido, Marilena Chaui, O que é Ideologia, ~ão Paulo, Brasi­liense, 1980, pp. 102-115.

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tes na consciência ingênua, tal como ocorrem na experiência empírica imediata.

Através desse processo, os mecanismos de poder são retratados por fatos, condutas e instituições com os quais lidamos na faina diária e que são considerados, em seu conjunto, com a própria realidade do Estado. Assim, as repartições e funcionários públicos e suas diuturnas funções disciplinares e administrativas; os juízes e suas sentenças; os governantes e suas decisões de interesse público; o "diário oficial" e suas comunicações de atos da administração e das leis; a polícia e sua presença nas ruas; o exator e sua cobrança de tributos; as assembléias legislativas e seus deputados eleitos; as forças armadas e seus aparatos de violência, etc., são as formas "autênticas" pelas quais o Estado habitualmente aparece aos olhos da consciência espontânea. As siste­matizações relativamente coerentes das representações dessas aparências colhidas e organizadas em função de critérios relacionados ao bem comum, julgado este como fundamento da unidade política suprema, induzem à construção de edifícios teóricos que não alteram essencial­mente em nada a espontaneidade da intuição imediata. Neste plano, a teoria do Estado ortoçloxa move-se no contexto da descrição, classi­ficação e ordenament6 dos dados da política utilitária, cuja credibili­dade e "bom senso" se amparam na segurança da consciência comum garantidora da verdade por todos sentida como "evidente". Essa teoria, ao julgar que traça as categorias que tornam possível o autên­tico exame das relações internas explicativas do poder e das organi­zações políticas, realiza na verdade uma inversão ilusória, pois apenas espelha nessas categorias o sistema político que acredita analisar, e tudo resulta num grande esforço cujo fim', entretanto, não é outro senão o de participar inconscientemente na reprodução desse mesmo sistema.37

w; "Tanto o politicismo 'prático' como o apoliticismo por motivos 'práticos' satisfazem as aspirações e os interesses do homem comum e corrente, do homem 'prático', mas, na verdade, só servem para afastá-los de uma verdadeira atividade política e, especialmente, de uma práxis revolucionária". Cf. Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, p. 13. Ver, nesse sentido, Michel Miaille, Une lntroduction Critique au Droit, Paris, Francois Maspero, 1976, pp. 25-48.

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Ao problematizar o Estado em seu tratamento empírico, oferecido como dado singular ou generalizado, através de suas instituições e do ordenamento jurídico, questionamos de forma crítica a correspondência entre as proposições que traduzem aquele modo de tratá-lo e as múltiplas . formas de sua manifestação em nossa experiência. Entre­tanto, o objetivismo empirista da teoria ortodoxa propõe a descrição dos dados que acredita imporem-se ao sujeito. O Estado, nessa linha, apresenta-se como totalidade em sua aparência e nessa aparência ele é proposto como se revelasse sua inteira realidade, não comportando outras relações subjacentes. Ele se impõe como um dado pleno e exaurido.

Por outro lado, no curso de uma linha oposta, em sua caracteri­zação extrema, corremos o risco de cair no relativismo subjetivo ao vincular nossa pesquisa a uma estruturação espontânea do real, num esforço de invenção arbitrária. Essas duas posições se prestam facil­mente à construção de ideologias mistificadoras a respeito do Estado. Ou ele já está aí, diante dos nossos olhos, ou é produto da aplicação de critérios convencionais. Entretanto, a realidade do Estado não pode ser reduzida nem à sua manifestação empírica imediata nem a representações imaginárias ou ideais, ou seja, tanto não pode ser imposta pelos fatos de nossa experiência cotidiana quanto não pode ser a expressão de um esforço simplesmente inventiva. ' Finalizando esse quadro de considerações, cumpre frisar que

nossa linha de abordagem representa uma ruptura com a concepção de que o conhecimento científico está associado ao desinteresse, como se fosse o resultado de uma razão contemplativa, receptora e passiva, que parte do pressuposto de que a teoria não é uma forma da prática social..as Por essa razão, propugnamos pela tese oposta segundo a qual o conhecimento é produto de uma "construção" e não se constitui pela apreensão do real mediante meras "representações" em cuja gênese não intervém a atividade subjetiva; como uma forma da prática social, o conhecimento não pode ser o reflexo passivo da realidade; ele se caracteriza por ser uma construção do sujeito social, considerado não abstratamente, mas em sua realidade concreta, como ser integrado

as Ver Carlos Pereyra, El Suieto de la Historia, Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 169.

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e participante de todas as suas contingências existenciais condicionadas historicamente.39

Desse modo, o conhecimento da essência não provém tão-só de um contato direto com as coisas do mundo externo, não corresponde a uma leitura_ do imediato oferecido aos sentidos . Por isso não pode haver objeto significativo para o homem que se entregue plenamente como algo já acabado externamente; ao se mostrar em seu sentido objetivo, a coisa já se define como construção humana e, ao se definir como construção humana, se mostra necessariamente dentro de uma textura histórico-social determinada. Se o homem a que nos referimos não é o "homem em geral", o objeto de seu conhecimento fatalmente se reveste da singularidade que especifica seu modo de ver o mundo em decorrência de sua posição existencial dentro da sociedade de classes. E por esse motivo que todo objeto de conhecimento se deve caracterizar como algo precário e histórico, exigindo continuamente sua retificação diante das dúvidas formuladas pela práxis.40 Por aí se compreende o obstáculo epistemológico que representa o excesso de clareza e de certeza do conhecimento ao nível da consciência es­pontânea; a evidência da vida cotidiana acaba por ofuscar o lado construído do conhecimento, impedindo freqüentemente o indispen­sável distanciamento em relação à prática utilitária, reiterativa e rotineira, com vistas à consecução do autêntico saber científicoY

39 Ver Carlos Henrique Escobar et alii, Epistemologia e Teoria da Ciência, Petrópolis, Vozes, 1971. Ver também Carlos Henrique Escobar, Epistemologia dás Ciências Hoie, Rio de Janeiro, Palias, 1975. Ver Della Volpe, "Cenno Sommario di un Metodo", in Rousseau e Marx, Opere, Roma, Editori Riuniti, 1973, vol. V, pp. 357-365. Ver Gyorgy Markus, Teoria do Conhecimento no Jovem Marx, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. 40 Numa perspectiva mais abrangente, inovadora e caracterizada segundo uma função paradigmática, J. Kuhn considera que "a transição de um paradigma em crise_ para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe . de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. :E: antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações". Cf. Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, 2.• ed., São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 116. u Ver Miriaril Limoeiro Cardoso, Ideologia do Desenvolvimento, Brasil: /K, JQ, op. cit., pp. 32-33.

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52 ALAOR CAFFJ!: ALVES

A compreensão da realidade do Estado se perfaz então de con­formidade com uma estrutura em construção. Essa estrutura pressupõe a perene tarefa de construção e mesmo de reconstrução, sempre vin­culada à idéia de processualidade. Como construção, o saber a res­peito da sociedade política parte de elementos cuja estrutura não depende do arbítrio do sujeito cognoscente, mas compreende igual­mente não só a seletividade segundo critérios de referência conjecturai, como também o ordenamento criativo desses mesmos elementos, visan­do a edificação do conhecimento que dê conta daquela realidade. Entretanto, a "realidade construída" do Estado, sob qualquer que seja o ângulo de seu enfoque, ao nível da teoria, é sempre uma certa forma de desconhecê-lo, visto que o reduzimos ao tamanho da teoria, ou seja, a uma dimensão até certo ponto precária e parcial. Apesar dessa limitação, o esforço de construção é ao mesmo tempo um esfor­ço para conter a subjetividade dentro de certos limites. O empenho em direção à objetividade no conhecimento do Estado é para garantir que a correspondente meta de veracidade seja permanentemente con­servada, embora nunca possa ser plenamente alcançada; é preciso que a conservemos para assegurar que o Estado construído não seja um Estado inventado. 42

Essa direção metodológica parte do princípio de que a adequação entre sujeito e objeto é um processo aberto, caracterizado pela idéia de que a teoria não é jamais um modelo encerrado ou finalizado, não é uma mera cópia da realidade. Daí não se poder olhar o Estado real face a face, na sua expressão original. Ao nível da teoria não temos dele uma réplica fotográfica, mas uma construção que o ilumina e sem a qual não nos aproximamos de sua realidade. 43 Aliás, somente existe o discurso teórico do Estado, em processo, porque dele não se consegue obter a captação direta. Por isso sua realidade não se apre­senta de forma pura, direta e imediata, mas apenas numa construção.

B nesse quadro de referência crítico-epistemológico que preten­demos desenvolver as bases de nosso trabalho, numa tentativa de contribuir para a dissolução de algumas questões tradicionalmente

42 Ver Pedro Demo, Metodologia Científica em Ciências Sociais, São Paulo, Atlas, 1980, p. 19. 43 Ver Rubem Alves, Filosofia da Ciência, Introdução ao Jogo e suas Regras , São Paulo, Brasiliense, 1981 , pp. 36-52.

ESTADO E IDEOLOGIA 53

cristalizadas a respeito da realidade do Estado. A tese, portanto, supõe uma construção teórica não para de imediato resolver problemas, mas paradoxalmente para criá-los, na confiança de que é possível oferecer algumas soluções apenas à medida que se levantem novos problemas.

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Dialética e relação social

O conhecimento do Estado implica um complexo de relações que

exprime o modo e os objetivos em razão dos quais ele é experimentado.

Se essa experiência, sob o ângulo político-social, é fragmentada, em

virtude de convergências ou divergências inerentes à própria estrutura

da sociedade, tais objetivos ou modos de encarar a sociedade política

variarão sensivelmente, de grupo para grupo, de classe para classe,

codificando diferentes relações práticas, que se refletirão inevitavel­

mente no próprio conhecimento dessa realidade e na maneira de

enfocá-la com vistas à sua manutenção ou transformação.

Essas relações, portanto, podem estar distintamente referidas tanto

à esfera gq conhecimento do Estado, compreendendo proposições

teóricas a seu respeito, não deixando, neste caso, de envolver direta

e imediatamente o corresP.ondente plano da ação prático-ideológica,

quanto à esfera da realidade ontológica do "ser do Estado", com­

preendido na sua dimensão histórica . Como, entretanto, não podemos

captar este "ser do Estado" senão dentro de uma relação teórico-prática,

seu aspecto ontológico pode ficar comprometido se não houver a

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preocupação cautelar de postular uma permanente ação crítico-episte­mológica no processo de sua apreensão cognitiva.1

Antes de desenvolvermos as linhas básicas da mencionada refe­rência lógica e ontológica a respeito da sociedade política, cumpre-nos traçar algumas considerações sobre a nossa forma de compreender a categoria de "relação", e por conseqüência a de "totalidade", cuja utilização é nuclear no âmbito da nossa investigação e exposição temática.2

Dentro de uma consideração epistemológica mais abrangente, entendemos que os elementos específicos de um dado pensamento só ganham significação dentro de um contexto determinado, configurado não só por uma trama conceitual a respeito de uma dada situação, mas também pelas ações ou elementos reais que perfazem a referida situação. Para suscitar, porém, uma compreensão mais aproximada do que queremos dizer, convém sublinhar que das ações e elementos reais de uma dada situação faz parte inerente a própria tecitura con­ceitual que lhe demarca o significado. Por isso, a situação real encarna concretamente o significado prático-subjetivo e o faz de tal modo que

1 Esse processo cautelar pressupõe uma suspensão da alienação com base na

práxis social: "Em uma práxis que faz .Penetrar, tão profundamente como seja possível, na aparente contingência dos fatos e no destino que a reificação tornou opaco, o processo de produção e as . relações humanas que esse processo põe em marcha. A dialética, assim concebida; tem que resignar-se a não seguir sendo o procedimento com que se abordam as coisas a partir do exterior". C f. Ernest Bloch, Sujeto-Objeto, El Pensamiento de Hegel, México, Pondo de Cultura Económica, 1983, p. 384. Ver Georg Lukács, La Crisis de la Filosofía Burguesa, Buenos Aires, La Pleyade, 1975, pp. 153-187. Ver, do mesmo autor, Os princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, São Paulo, Ciências Huma­nas, 1979. 2

A categoria da .!otalidade, em nossa concepção, adquire no plano ontológico um significado dinâmico e integrador; com isso rejeitamos a concepção do todo como generalidade abstrata "O verdadeiro é o todo. Porém, o todo é somente a essência que se completa mediante seu desenvolvimento. Do absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado, que só no fim é o que é na verdade". Cf. Hegel, Fenomenologia del Espiritu, México, Pondo de Cultura Econ6mica, 1966, p. 16. Ver, no mesmo sentido, o excelente estudo de Lukács, A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, pp. ,65-112. Ver também Lucien Goldmann, Origem da Dialética, A C~munidade Hu~af!a e o Universo em Kant, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1067, pp. 41-49.

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não é possível consignar o fato enquanto tal, ou seja, como puro fato sem referendá-lo imediatamente à sua forma significativa.3 Assim, esses dois aspectos aparecem como momentos inseparáveis - o objetivo e o subjetivo - de uma mesma realidade. Para maior aproximação ainda do significado dessa relação entre os momentos objetivo e su~­jetivo, no processo cognitivo, é preciso apontar que a referida relação é de caráter teórico-prático, compreendendo as contingências histórico­sociais em que são engendradas. 4 Por esta razão, o complexo conceitual dominante referente ao Estado deve refletir e, ao mesmo tempo e de certa forma, construir em parte as relações reais que o encarnam.

Os termos, regras e noções a respeito das relações estatais não são seus meros "reflexos" a posteriori, mas componentes ·de sua própria existência. O conhecimento da sociedade política não a põe como um objeto indiferente; isso significa que, . distintamente dos objetos naturais, as idéias a respeito das questões estatais de algum modo contribuem para manter ou transformar a própria .realidade dessas qwistões. 5 Entretanto, se neste caso há um potencial ativo e

3 "O defeito principal de todo o materialismo passado - incluído o de Feuerbach - consiste em que o existente (a coisa), a realidade, o sensível, só é concebido sob a forma de objeto ou de intuição (contemplação), porém não como ativi­dade humana sensível, como práxis, não subjetivamente". Cf. K. Marx "Primeira Tese Sobre Feuerbach", incluída como apêndice da obra La Ideología Alemana, K. Marx e F. Engels, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, p. 665. 4 "Não vê (Feuerbach) que o mundo sensível que o rodeia não é algo direta­mente dado desde toda uma eternidade e constantemente igual a si mesmo, mas sim o produto da indústria e do estado social, no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais se ergue sobre os homens da anterior, continua desenvolvendo sua indústria e seu intercâmbio e modifica sua organização social com relação a novas necessidades. Até os objetos da "certeza sensorial" mais simples lhe são dados apenas pelo desenvolvimento social, a indústria e o intercâmbio comer­cial". Cf. K. Marx e F. Engels, La Ideología Alemana, op. cit., p. 47. 5 Essa consideração se estampa, num plano teórico mais geral, com grande propriedade em Jean-Paul Sartre, quando afirma: "Para que a realidade se desvele é preciso que . o homem lute contra ela; em uma palavra, o realismo revolucionário exige igualmente a existência do munc!o e da subjetividade; melhor ainda, exige uma correlação tal entre um e outro que não se pode conceber uma subjetividade fora do mundo nem um mundo que não seja aclarado pelo esforço de uma subjetividade". Cf. Jean-Paul Sartre, Matérialisme et Révolution", in Situations, I, Paris, 1957, p. 213. Ver também Alfred Schmidt,

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construtivo das representações ou teorias com respeito às relações efetivas da realidade da qual pretendem dar conta, é preciso não olvidar que essa realidade é em si mesma muito mais complexa do que seus componentes ideais. Isso, naturalmente, só pode ser compreendido sob o ângulo da "práxis", onde a realidade não se subsume a um simples esquema lógico. 6 As relações que compreendem a realidade do Estado não se reduzem aos seus diversos componentes ideais, mas não podem existir sem eles. Assim, aquelas relações nascem e existem simulta­neamente no pensamento e fora dele, contendo desde a origem uma parte ideal que corresponde à ativa interpretação da realidade do Estado. Esse componente ideal, portanto, não é seu mero reflexo a posteriori, mas uma condição necessária ao seu aparecimento. 7 Por essa razão, as representações da sociedade política existem não so­mente como conteúdos de consciência, mas também como aspectos de ordem prática constituintes das ·próprias relações sociais corres­pondentes e que fazem delas relações de significação. e preciso subli­nhar que o pensamento, ao interpretar a realidade do Estado, organiza ao mesmo tempo as práticas sociais sobre essa realidade e, por conse­guinte, contribui para sua reprodução ou transformação. Dessa forma, se o Estado é produto de relações sociais determinadas, é preciso sem­pre ter em conta que elas não podem existir senão sob esse duplo aspecto, ou seja, como realidade ao mesmo tempo material e ideal.8

Vê-se, por essa abordagem, que propugnamos por uma perspec­tiva que não exclui o aspecto ontológico a respeito das relações esta-

El Concepto de Natureza en Marx, México, Siglo XXI Editores, 1976, pp. 127-140. Para uma compreensão aprofundada da relação dialética entre a práxis teórica e a realidade por ela transformada, ver Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e T~~a, 1968, pp. 137-182. H Ver, nesse sentido, K. Marx, Miséria da Filosofia, Rio de Janeiro, Leitura, 1965, pp. 104-105, 178-179, 187-188.

7 "A atividade prática humana é tal, propriamente, quando transcende desse aspecto subjetivo, ideal, ou, mais exatamente, quando o sujeito prático trans­forma algo material, exterior a ele, e o subjetivo se integra assim num processo objetivo ( ... ) (o sujeito) é prático na medida em que se objetiva, e seus produtos são a prova objetiva de sua própria objetivação." Cf. Adolfo Sánchez Vazquez, op. cit., pp. 241-242.

s Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, "Infra-Estruturas e História", in "Gran­des Cientistas Sociais", 21, Antropologia, Edgard de Assis Carvalho (org.), São Paulo, Atica, 1981 , pp. 182-184.

ESTADO E IDEOLOGIA 59

tais, embora essa relações estejam de igual modo fundadas nas funções prático-subjetivas dos agentes sociais. Nesse sentido, comunhamos com a idéia de que a experiência é também fundante do sistema de relações pelo qual explicamos a realidade do Estado. Portanto, a categoria de "relação", como a entendemos, não se identifica com a concepção kan­tiana que a vê como uma espécie de atividade do espírito que se impõe aos fatos, enquanto apenas ordena os dados da sensibilidade ao nível do entendimento.9

·Essa categoria implica também uma questão extremamente sig­nificativa no que diz respeito aos momentos dela integrantes: os termos da relação. A experiência imediata afirma primitivamente ter­mos, e entre termos percebe relações. Porém, progressivamente se dá conta de que os termos não existem independentemente das relações. 10

Posso conceber, por exemplo, "o mais alto mandatário de um Estado" como um termo de certo modo isolado, porém, num exame mais analítico de sua realidade, passo a compreender que ele não se constitui por si mesmo, mas precisamente em razão das condições jurídico­políticas originárias de sua situação, do contexto de poderes real e constitucionalmente consagrados, · da ação política que exerce em face de outras pessoas que em conjunto com ele realizam o governo, da posição que assume frente à dinâmica dos grupos e classes sociais, das medidas normativas e executivas que vai engendrando ao longo de seu mandato, etc. Igualmente esses novos termos são detectáveis em função de outras relações, como as consignadas pelas múltiplas e variadas ações sociais e econômicas decorrentes da dinâmica histórica da sociedade considerada, e assim por diante.U

9 Ver Wolfgang Rõd, La Filosofia Dialéctica Moderna, Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra, 1977, pp. 65-81. Ver também, Georges Gurvitch, Dialéctica y Sociologia; Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1965, pp. 53-59. Ver V. I. Lenin, Materialismo y Empiriocriticismo, Montevidéu, Pueblos Unidos, 1959, pp. 210-222. lO O axioma das "relações internas" pode formular-se da seguinte forma: "As relações que enlaçam termos são parte integrante dos termos que relacionam". "No universo, tudo está enlaçado em uma rede de relações que não são distintas das coisas que relacionam e que penetram em seu ser e as fazem ser o que são". Cf. C. E. M. Joad, Guia de la Filosofía, Buenos Aires, Losada, 1967, pp. 361-362. 11 Pode-se afirmar, portanto, que nenhuma coisa particular é inteiramente real, visto que envolve um contexto. De certo modo, quanto mais isolada é a

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Todas as referências relacionais do citado exemplo parecem explicar não só a situação aparente do mais alto mandatário, mas também sua própria realidade. As qualidades ou atributos que o constituem são integrados por relações, e nos veremos levados a dizer que o mais alto mandatário mesmo é, todo ele, uma estrutura de relações que, por sua vez, se converte em base de novas relações. Desse modo, a idéia com respeito a esse agente político, tomado em sua identidade singular, desaparecerá diante de nossas vistas; se trans­formará na afirmação de que há um certo grupo de relações a que chamamos "o mais alio mandatário de um Estado". Esse mesmo agente político, por outro lado, passará também a ser um dos elementos das múltiplas e complexas relações que perfazem a idéia e a realidade muito mais abrangentes que designamos "Estado". Quanto mais refle­timos sobre essa questão, tanto mais veremos, sem dúvida, os elementos serem dissolvidos, nas relações que os constituem como termos, per­denao aos poucos sua. especificidade originária.12 "É por isso que podemos falar em ' relacionamento', que não é simples justaposição, ligação exterior ou associação de elementos, e significa sim ci desva­necimento desses elementos na relação para a qual eles concorrem. Na relação, e como relação, o que conta não são mais esses elementos, que nela se desfazem, e entram para ela com perda de sua especifici­dade e individualidade; e conta sim o sistema relaciona! que com eles se constitui. No plano da sensibilidade, ilustramos isso com ca representação sensível de uma linha, cuja figura, que dá a representa­ção, pode ser formada de quaisquer outras figuras elementares (pontos, pequenos traços, etc.), e não é assim específica de nenhuma delas." 13

coisa, tanto "menos realidade" significativa tem, dado que se pode considerar que o todo é "mais real" nesse sentido do que as partes tomadas separadamente. Em termos de estrutura de sentido, somente o todo é completamente real. 12 Ver, nesse sentido, Jean Wahl, Tratado de Metafísica, México, Fondo de Cultura Económica, 1960, pp. 155-174. 13 Cf. Caio Prado Júnior, Notas Introdutórias à Lógica Dialética, 2.• ed., São Paulo, Brasiliense, 1961, p. 105. "O mesmo se verifica no caso mais complexo dos contextos da linguagem discursiva, onde o que dá o "sentido" próprio das expressões não são elas, e sim aqueles contextos em que se incluem como termos da relação estruturados nos mesmos contextos. A especificidade de tais expressões, o seu "sentido" específico, se desfaz no "sentido" de conjunto que o contexto em que figuram lhes concede" . Idem, p. 106.

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Vê-se por esse desenvolvimento que sem outras ponderações nos veríamos compelidos a considerar somente as relações. Porém, estas, por sua vez, não se podem conceber de modo substantivo, indepen­dentemente de seus termos. "Podemos portanto dizer que se a relação exclui a especificidade de seus elementos componentes, e portanto desfaz e anula esses elementos que se tornam simples termos de uma relação em função da qual eles passam a existir, nem por isso a relação independe dos mesmos elementos, no sentido de poder subsistir sem o seu concurso, e menos ainda no de se constituir sem eles. A relação resulta e se constitui dos elementos que para ela concorrem, e depende portanto de sua presença, seja embora essa presença unicamente virtual. A relação se alimenta pois permanente­mente, embora de maneira indireta, da especificidade que seus ele­mentos componentes têm fora da relação." 14 Assim, por exemplo, na relação de "paternidade" os elementos (seres humanos) devem persistir dentro da relação, mas é por ela, e somente por ela, que esses elementos passam a se qualificar como termos da relação, como pai e filho (não há filho sem pai e vice-versa), termos os quais, fora daquela relação, não podem subsistir como tais. O "ser humano", nesta relação, perde parte da sua especificidade para dar lugar à qualificação mais rica que aquela relação lhe atribui; entretanto, apesar dessa perda de especificidade, não se pode conceber um pai ou um filho que não sejam seres humanos. O mesmo princípio cabe ser refletido na relação que exprime o capital, na relação entre o capita­lista e o proletário.15 No plano do mundo ·natural, ocorre idêntico processo, como, por exemplo, a perda da especificidade dos elementos oxigênio e hidrogênio, cujas propriedades se alteram quando combi­nados numa certa proporção da qual se origina a água.

A tentativa, portanto, de absorver completamente os termos nas relações que os integram, sem considerar a subsistência dos elementos que eles implicam, acarreta a absolutização das proposições lógicas, com a inevitável redução da realidade aos seus predicados, no interior daquelas mesmas proposições. O mundo, neste caso, se torna uma expressão das relações lógicas, onde o sujeito só ganha realidade me-

14 Cf. Caio Prado Júnior, op. cit., p. 106-07. 15 Ver, nesse sentido, Caio Prado Júnior, Dialética do Conhecimento, 5.• ed., t. li, São Paulo, Brasiliense, 1969, pp. 544-563.

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diante a conexão dos predicados, com evidentes prejuízos idealistas. Por outro lado, considerar as relações como algo externo aos próprios termos, sobrepondo-se a eles de "fora", implica povoar o mundo com entidades absolutamente discretas, incluindo as próprias relações, fi­cando-nos a impossível tarefa de explicar de que modo e sob que leis atuam umas sobre as outras. Nesta linha, reduzimos a realidade a um substancialismo tão formal quanto aquele propugnado pelo puro rela­cionalismo. Isso nos sugere a pobre perspectiva de um empirismo de meras impressões fenomênicas fragmentadas, válidas por si mesmas, cujas leis se definem pela descrição e generalização dessas impressões captadas através da experiência sensoriaP6 A solução dessa questão, a nosso ver, não se pode restringir ao campo do formalismo teórico, visto que o conhecimento, na sua contrastabilidade teórico-prática, aponta inequivocamente para uma realidade que transcende os esque­mas puramente lógicos. Para melhor atentar sobre este ponto e consi­derar com maior amplitude suas conseqüências, desdobraremos algumas linhas a seguir.

A visão crítica a respeito da realidade do Estado, como já obser­vamos, não pode deixar de levar em conta a relação integrada entre seus aspectos lógico e ontológico. Num plano analítico, porém, cons­tatamos a possibilidade de realizar a distinção entre o ser do Estado e o conceito de Estado. Apesar da organicidade dialética desses mo­mentos, a abordagem clássica desse fenômeno político não raras vezes houve por bem considerá-los separadamente. Por exemplo, se uma coisa é a realidade fática "Estado" e outra o conceito "Estado", uma questão consistirá em estudar como é essa realidade em si, como é seu ser

Hl É óbvio que a questão assim colocada pode resultar num empobrecimento dos possíveis desdobramentos que ela comporta, especialmente quando aponta­mos para o questionamento oposto. Se alertamos para esse fato é porque não é nosso propósito aprofundá-lo neste trabalho, Apenas para abrir uma fresta considere a afirmação de um notável filósofo: "Evidencia-se ass~ que a mesa real (se acaso existe) não é o de que temos imediata experiência, pela vista, pelo tato, pelo ouvido. A mesa real (se acaso existe) não pode ser conhe­cida de maneira imediata, senão que há de ser tão somente inferida daquilo que conhecemos imediatamente. Promanam daqui dois difíceis problemas, e que são os seguintes. Primeiro: existe de fato uma mesa real? Segundo: se existe, que espécie de objeto pode ela ser? Cf. Bertrand Russel, Os Problemas da Filosofia, 3.• ed., Coimbra, Armênio Amado Editor, 1974, p. 35.

ESTADO E IDEOLOGIA 63

real, e outra, em estudar seu conceito ou definição. A primeira é uma questão ontológica e a segunda, uma questão meramente lógico-formal. O problema agora se circunscreve às seguintes indagações: Para além da definição do Estado, é possível um conhecimento da realidade do Estado em si mesma, ou tal como ela é em si? Pode sustentar-se esta dualidade? Essa diferença, na perspectiva dualista ora examinada, se deve à distinção entre fato e conceito; na experiência política, um aspecto são as situações reais do Estado, suas manifestações concretas, seu ser, e outro, os conceitos, as representações e idéias a ele relacio­nada, a expressão lógica acerca do próprio ser. Realmente, a questão, nesse plano, consiste em saber se é possível distinguir o problema do que seja a realidade substancial do Estado e o conceito ou definição dessa mesma realidade. Essa questão se coloca até certo ponto com legitimidade porque pode ocorrer a suposição de que o Estado, em seu ser fundamental, só possa entregar-se apenas mediante seu con­ceito, tornando ilusório o problema ontológico. Portanto, é lícito inda­gar se, além daquilo que o conceito nos diz acerca desse objeto, este é em si mesmo algo distinto ou algo'maisP

Nesse ponto, retomamos a questão das relações predicativas que logicamente constroem nosso objeto de investigação. O Estado se apresenta mediante situações específicas de poder político, manifesta­ções institucionais e organizacionais apropriadas a viabilizar o contexto das relações sociais dominantes, através das atividades jurígenas, administrativas, judiciais e de intervenção no âmbito sócio-econômico, sempre referenciado a uma sociedade territorialmente delimitada. Essas formas pelas quais o Estado se manifesta são representadas logica­mente por meio de predicados que se atribuem ao sujeito "Estado". Porém, que será o Estado substancialmente fora da simples relação lógica, ou seja, além de ser a expressão teórico-representativa de um poder político centralizado, de um aparelho administrativo e jurisdi­cional e de uma sociedade territorialmente delimitada? Essa questão se justifica porque se origina de um e mesmo objeto chamado Estado. Assim, por conseqüência, indaga-se: que é o Estado como objeto real

17 Ver, nesse sentido, Juan Manuel Teran, Filosofía dei Derecho, México, Porrua, 1971, pp. 22-24. Ver também Arturo Enrique Sampay, lntroducción a la Teoría dei Estado, Buenos Aires, Bibliográfica Argentina, 1964, pp. 30-41.

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unitário, além daquelas característi~as a ele logicamente atribuíveis? Vê-se, então, que uma coisa é o aspecto lógico, o conceito do que seja Estado, e outra, a sua realidade ontológica, substancialmente tomada na experiência. Tem, portanto, sentido falar de uma realidade do Estado existente concretamente enquanto fundada em efetivas relações sociais, além do que se contém em seu próprio conceito. Entretanto, é bom que se diga, essa linha de enfoque ultrapassa o mero equacionamento teórico-formal, de caráter idealista, ao desbordar o problema da pura descrição lógico-atributiva em que somente a referência a uma estrutura de sentido tem importância.

~ara que essa última colocação tenha sentido é preciso fazer um desdobramento. O aspecto lógico do Estado está referido a sua repre­sentação ideal, isto é, à representação enquanto objeto de relações cognoscitivas (plano epistemológico) em que esse objeto é expresso pelo sujeito constante de múltiplos juízos (plano lógico) encadeados e unificados progressivamente. Isso significa que, sob o ângulo lógico, o objeto de nossa consideração epistêmica, ou seja, o Estado, se reduz ao movimento ideal de sucessivos juízos em que ocorre a determi­nação predicativa, com a incorporação consecutiva de predicados diver­sos ao mesmo sujeito lógico, permitindo a realização significativa da unidade desse objeto e ao mesmo tempo a ampliação de seu caráter inteligível. Fora dessas n;lações nada se poderia entender; logo, nada existiria. Assim, por exemplo, o Estado, inicialmente, é sujeito lógico de um juízo determinado: "o Estado" é "povo"; depois, o sujeito lógico "Estado", incorporando em seu conteúdo o predicado "povo", passa a fazer parte de outros juízos sucessivos, onde novos predicados lhe são atribuídos: o "Estado", além de incluir "povo", é também "poder", "território", "ordem jurídica", e assim por diante. Neste caso, a corporeidade e substancialidade do Estado só se objetiva quando é cientificamente determinada em seu conceito progressivamente mais amplo e rico de determinações.18 Em última instância, dentro dessa

concepção idealista, a realidade substancial do Estado se reduziria ao pensamento que dele se possa ter.

18 Sobre esse modo de ver idealista, sugerimos a leitura dos ensaios de Fausto E. Vallado Berrõp, incluídos como àpêndices em sua Teoría General del Derecho, México, U.niversidad Nacional Autónoma de México, 1972, pp. 213-247.

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Evidentemente, sob o ângulo teórico meramente especulativo, não é possível extrair a realidade fática do Estado apenas do complexo de conceitos a ele referido. Ao ·nível da pura expressão teórica, não se pode compreender muito acerca do Estado existente em nossa experiência, embora nos refiramos sempre a alguma determinação parcial dele, mediante atribuições predicativas de caráter lógico. Sua realidade existencial específica, resistente, agressiva e espessa, demar­cada pelas forças sociais contraditórias e historicamente constituídas, escapa-nos definitivamente na medida em que absolutizamos sua uni­dade simplesmente lógica, reduzindo a sociedade política à dimensão puramente teórica.

Fica, entretanto, a questão de se saber como a unidade de relação, representada pelo sujeito lógico que se exprime pelo termo "Estado"·, o qual unifica uma série de manifestações ou elementos, é ou pode ser, por sua vez, um elemento subsistente em si mesmo, irredutível ao esquema lógico-formal das proposições singulares pelas quais o pen­samos. Nesta questão vemos novamente despontar o problema do relacionamento através das seguintes indagações: Essa unidade de enla­ce pode ser concebida ou caracterizada sem os elementos enlaçados? O que seria o Estado sem uma função de dominação, uma ordem normativa, sem um aparelho administrativo ou jurisdicional, sem uma coletividade ou sem um território? Parece que fora dessas conexões e de outras possíveis o Estado como tal desapareceria. Em certa medida, entretanto, parece que pode ser concebida uma função de dominação, uma ordem normativa, a existência de um aparelho administrativo ou jurisdicional, de uma coletividade ou de um território de forma separada cada um; porém, neste caso, não se trata precisamente do objeto Estado, senão de cada elemento tomado na especificidade que o singulariza. Então, ao nível lógico, somente a reunião desses dados ou fatores em uma unidade de relação constitui o que se chama Estado. Assim, nesse mesmo nível, a unidade de relação que perfaz a idéia Estado não pode ser caracterizada sem referência aos termos enlaçados.19 Porém, ainda que assim se considere, permanece a questão a respeito do que efetivamente determina aquela unidade de relação ou aquela unidade de sentido expressa pelo termo "Estado".

19 Ver, nesse sentido, Juan Manuel Teran, op. cit., pp. 28-29.

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A questão como foi posta acima induz a uma delicada situação, onde o balanceio dos elementos apontados, segundo este ou aquele enfoque, caracteriza posições filosóficas bem diferenciadas, seja a do idealismo objetivo, seja a do empirismo em suas versões subjetivista ou positivista.

Se a tendência for levada de modo extremo para o lado do predicado, iremos ressaltar os aspectos universais do sujeito Estado, perdendo este a substancialidade existencial e singular que o caracteriza como ser real e concreto. Que é o Estado? Será preciso responder, neste caso: o Estado é ... poder político; o Estado é ... povo; o Es­tado é . .. bem comum; o Estado é . . . território delimitado; o Estado é . . . ordem jurídica, etc. Assim, o Estado passará a ser o resultado da conexão lógica dos termos considerados em sua universalidade e cuja expressão final não pode deixar de ser senão uma "idéia". Aqui, ele será uma hipóstase, um ser abstrato ao qual se confere realidade existencial, uma projeção no mundo dos fatos de uma idéia logicamente construída. Sua efetiva realidade histórica e contingente e sua espessura imediata e concreta como ser de experiência política vivida se estio­lam, se esfumaçam no plano das referências puramente teóricas ou inteligíveis. O Estado ou sociedade política, nessa ordem de concepção, se reduz somente ao que dele se pensa, a uma idéia ou a um sistema lógico de conceitos, com irreparável perda do que dele se experimenta efetivamente na totalidade de nossa própria contingência existencial, ou seja, no plano de nossa prática histórico-social. Portanto, o Estado se resumirá à idéia hipostasiada que temos dele e, por essa mesma linha, o perderemos como realidade substancial singular e imediata, engendrada pelas relações sociais efetivamente existentes, das quais somos fautores e ao mesmo tempo produtos. Em última análise, são as relações (lógicas) que se destacam e se tornam por si mesmas subs­tantivas, em detrimento da especificidade de seus respectivos elemen­tos, os quais se debilitam de forma extrema ou até mesmo passam a existir apenas em função da totalidade das relações do universo.

Por outro lado, numa perspectiva empírico-subjetiva, o termo "Estado" se mostra apenas como uma expressão nominal que não aponta para nenhuma existência substantiva, seja de caráter ideal, seja de caráter material. Sob esta concepção, os predicados estão reunidos em função da experiência empírico-subjetiva, particularizada

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por conexões associativas de ordem psicológica e não por relações propriamente lógica. Isso significa que o Estado é apenas um "nome" que não serve para indicar realidade substancial alguma; refere-se apenas a uma forma de dizer economicamente e por razões operacionais as propriedades ou qualidades pelas quais enunciamos descritivamente determinadas experiências. Já para o empirismo em sua versão posi­tivista , o conhecimento não se fundamenta em meras conexões sub­jetivas, de natureza psíquica, mas também não admite seu embasamen­to num mundo concebido como um depósito de leis absolutas e prede­terminadas. Com essa concepção, o Estado é resultante de um conjunto de fatos; e estes fatos, para entrar no sistema teórico-científico, devem ser controlados experimentalmente. Ao registrar os fatos políticos, o cientista social não ganha a estatura de um "legislador" do universo, mas a de explorador de uma pequena porção do mundo, com vistas a compor relações constantes ou leis gerais, sempre com base na expe­rimentação puntual daqueles fatos .'2° Para o empirismo, portanto, a

substantivação do Estado nada mais é do que a projeção mistificada para fora do sujeito de uma unidade apenas subjetivamente construída

por associação de experiências, a respeito da qual não se pode encontrar nenhuma realidade existencial correspondente. Nessa ordem de idéias, os elementos que representam ou venham a representar subjetivamente o Estado são considerados reciprocamente extrínsecos. Aqui, por der­radeiro, são os termos que se relevam como elementos discretos e

isolados e cujas conexões se dão " por fora", ao sabor de experiências

controladas ou particularizadas e habituais de cada um. 21

Pelo desdobramento que realizamos acima, vê-se claramente a tendência para reduzir o Estado ou a um esquema substancialmente lógico, no âmbito da concepção idealista, perfazendo-o como " idéia" hipostasiada, ou a uma série de referências empíricas, no âmbito da

20 Ver, a respeito, Norberto Bobbio, "Ciencia del Derecho y Análisis del Lenguaje", in Contribución a la Teoría deZ Derecho, org. Alfonso Ruiz Miguel, Valência, Fernando Torres, Editor, 1980, pp . 178-184.

2 1 Ver. G. Bachelard, Epistémologie, 2." ed., Paris, PUF, 1974. Ver também John Hospers, An Introduction to Phi/osophica/ Analysis, Nova Jersey, Prentice­Hall, 1967, pp. 287-348. Consulte-se o excelente trabalho de Leszek Kolakowski, Tratado sobre la Mortalidad de la Razón, Caracas , Monte Avila, 1969, pp . 63-98.

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concepção empirista, configurando-o como experiência de dados asso­ciados em função dessa mesma experiência.

Consideramos que essas concepções escamoteiam a questão essen­cial relativa à substancialidade teórico-prática do Estado. A sociedade política não é nem uma relação de idéias, nem uma série de dados empíricos. Entretanto, não pode existir nem ser compreendida sem idéias e sem os dados da experiência. Esses ~!ementas são também constitutivos de sua realidade; . porém, esta realidade não se reduz àqueles elementos. h preciso ter em conta, portanto, que as relações não subsistem sem os termos que as integram e lhes dão o caráter específico; contudo, os próprios termos conservam sua qualidade nas e pelas relações que os interligam. Assim, não há Estado sem domínio político, sem poder territorialmente delimitado ou sem povo. Mas cada um desses elementos só pode ter existência e sentido em razão da totalidade das relações em que está inserido. Como é possível existir um poder político sem delimitação territorial ou sem uma coletividade sobre a qual ele se exerce? Para que existiria o domínio político se não houvesse contradições que dilacerassem o corpo social? Tal processo se caracteriza por uma liTJha metodológica de aproximação dialética. Assim, este processo se determina, antes de tudo, pelo fato de começar por determinações simples, e as seguintes são cada vez mais ricas e concretas. Em cada grau das ulteriores determinações se levanta todo o conjunto de seu conteúdo precedente e, por seu processo dialético, não só não perde nada nem deixa nada atrás de si, senão que leva consigo tudo o que foi antes adquirido e se enriquece e se faz mais denso em si mesmo.22

Cumpre, entretanto, salientar o aspecto ontológico dessas relações e dos respectivos termos. Consideramos que tais relações e termos, especialmente porque se referem a objetos das ciências sociais, não podem ser captados na sua autenticidade se não forem também pen­sados como envolventes de nossa própria existência aqui e agora, enquanto escrevo ou sou lido. h preciso senti-los ao nível da vida afetiva e ao mesmo tempo experimentá-los no plano da vida prático­volitiva, isso tudo naturalmente além da compreensão lógico-represen-

22 Sobre esse processo, no plano da atividade cognoscitiva, ver G. W. F. Hegel, Enciclopedia de las Ciencias Filosóficas, México, Porrua, 1973, §§ 223 a 244, pp . 110-116.

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lativa, geralmente obtida a partir de uma certa distância em relação ao objeto analísado. Assim, embora não possamos ter experiência plena e direta da totalidade, como ainda veremos, o Estado só pode ser compreendido no âmbito de uma totalidade concreta de que estamqs fazendo parte e a respeito da qual não podemos ter apenas uma persp;c­tiva à distância de caráter lógico-representativo. Nossas relações com a sociedade política são antes de tudo relações práticas e quaisquer idéias que dela fazemos não só refletem tais relações como também são de alguma forma determinantes dessa mesma experiência relaciona/.

h preciso, entretanto, consignar com muita clareza a questão ontológica, visto que ela compreende, segundo nosso entendimento, o mundo em sua realidade ôntica e axiológica. Essa linha de abordagem é de extrema importância para esclarecer as questões relacionadas com o Estado enquanto objeto de determinações históricas, econômicas, sociais, etc., configurado no mundo do ser, e o Estado como expressão do mundo ético, especificamente do mundo jurídico, da dimensão do dever-ser~ Não nos anima o enfrentamento da questão posta sob o ângulo da diferenciação absoluta entre o ser e o dever-ser, visto que, em nossa compreensão, esse ângulo rejeita a orgânica e dialétiCa unidade sujeito-objeto, cuja reflexão mais aprofundÍlda faremos logo a seguir. Por conseqüência, nos parece inválida a proposição que dissocia o Estado como forma jurídica e como forma histórico-social. Mesmo os grandes esforços teóricos para essa · distinção, conservando o realismo sociológico, como é o caso de Jellineck, estão fadados ao malogro, visto que partem da concepção kantiana do dualismo irredutível entre os dois mundos, o do ser e o do dever-ser.23 A nosso ver, é insustentá­vel tanto a redução do Estado ao mundo do ser, entendido de forma unilateral, como algo exterior ao sujeito e subordinado a. determinações causais, gerando o que foi conhecido como economicismo ou sociolo­gismo estatal, quanto sua assimilação total ao mundo do dever-ser, ao campo espiritual, também entendido de modo unilateral, como algo externo à realidade histórico-social e caracterizado essencialmente pelo princípio à liberdade, engendrando o "normativismo estatal" de caráter absolutamente autônomo.

23 Ver, a esse respeito, Georg Jellinek, Teoria General del Estada, Buenos Aires, Albatros, 1970, pp. 19-38, 53-92, 101-135.

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É preciso considerar que o dever-ser na perspectiva ortodoxa se funda no plano axiológico, no plano dos valores: o que vale, exata­mente porque vale, deve ser. Segundo a tradição kantiana, é corrente afirmar-se que do mundo do ser não se passa para o do dever-ser; de um fato verificado como "é" não resulta que ele "deva ser".24 Essa linha recobre também a posição culturalista de Miguel Reale, por exemplo, quando admite o dualismo de modo subjacente ao dizer que "do ser não se pode passar ao dever ser, mas a recíproca não é verdadeira: se os valores jamais se realizassem, pelo menos relativa­mente, nada significariam para o homem" .25 "Há possibilidade de valores porque quem diz homem diz liberdade espiritual, possibilidade de escolha constitutiva de bens, poder nomotético de síntese com liberdade e autoconsciência." 26 "O homem, cujo ser é o seu dever-ser, construiu o mundo da cultura à sua imagem e semelhança, razão pela qual todo bem cultural só é enquanto deve ser, e a "intencionalidade da consciência" se projeta e se revela comq intencionalidade trans­cendental na história das civilizações." 27 Em alguns momentos, entre­tanto, parece haver indicação de uma referência dialética mais acen­tuada, especialmente quando Reale assevera que "os objetos culturais são objetos derivados e complexos, representando uma forma de inte­gração de ser e dever-ser. Isto significa que a cultura não é por nós concebida - continua Reale - à maneira de Windelband, de Rickert, ou de Radbruch, como 'valor': a cultura é antes elemento integrante, inconcebível sem a correlação dialética entre ser e dever-ser. Se ela marca uma referibilidade perene do que é natural ao mundo dos valores, não é menos certo que, sem ela, a natureza não teria signifi­cado e os valores mesmos não seriam possíveis".28

Em nosso entender, tal plano de abordagem encontra suas limi­tações precisamente porque não consegue se desvencilhar dos prejuízos da posição dualista que separa, em última instância, o sujeito do objeto

24 Ver, nesse sentido, Miguel Reale, Filosofia do Direito, 10.• ed., São Paulo, Saraiva, 1983, pp . 195-214. Ver também, do mesmo autor, Experiência e Cultura, São Paulo, Grijalbo EDUSP, 1977, pp. 171-211. 2~ Cf. Miguel Reale, Filosofia do Direito, op. cit., p. 192. 2~ Cf. Miguel Reale, op. cit., p. 212. 27 Cf. Miguel Reale, op. cit., p. 213. 28 Cf. Miguel Reale, op. cit., pp. 188-9.

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de modo irredutível. Essa dicotomia está também presente na concepção formal-normativista do Estado, como ocorre no pensamento de Kelsen, que se fundamenta no "axioma da oposição da natureza ao espírito, segundo o qual a noção de 'realidade', no sentido próprio do termo, se refere à natureza compreendida como necessidade; e a noção de ideal se refere à sociedade entendida como liberdade e como espírito. Reconhecer no Estado o caráter de realidade significa, segundo Kelsen, colocá-lo entre os fenômenos naturais, onde reina o princípio causal. Entretanto, isso é inadmissível, se se parte do axioma de que o Estado é o reino do espírito. Kelsen combate as chamadas teorias 'sociológicas' do Estado, adotando como argumento principal a tese de que, o ser, isto é, a realidade com a qual operam estas teorias, se identifica com

o 'ser natural', e que, portanto, é impossível classificar, dentro da

mesma categoria dos fenômenos sociais, aqueles em que predomina

a consciência e aqueles em que predomina a matéria inconsciente".29

Com efeito, Kelsen não consegue captar o sentido dialético da unidade

sujeito-objeto, porque seu sistema identifica a realidade a uma massa

passiva e amorfa em contraposição ao espírito que se revela como

ativo e criador. Nesse sentido, a atividade humana enquanto prática

social não é tratada como ser consciente. "Sem embargo, se na explica­

ção desta importante questão não se adota semelhante metafísica

como ponto de partida, se se adota a dinâmica das noções dialéticas,

se se toma em seu conjunto a relação da idéia com a realidade, será mais fácil compreender, neste caso, que a sociedade burguesa, com

sua propriedade privada, é o substrato material, o lugar de nascimento

da 'superestrutura política e jurídica', isto é, das formas de consciência

que medram sobre esse solo e que se manifestam como 'ideológicas'.

Neste caso, o Estado e o direito não podem ser explicados ideologi­

camente, como faz Kelsen, enquanto conteúdos particulares a autô-

29 Cf. Ljubomir Tadic, Kelsen y Marx, "Contribución ai Problema de Ia Ideolo­gía en la Teoría Pura dei Derecho y en e! Marxismo", in Marx el Derecho y el Estado, adapt. de Juan-Ramón Capella, Barcelona, Oikos-tau, 1969, pp. 120-121. Ver também Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 3.• ed., Coimbra, Armênio Amado, 1974, pp. 10-162 377-425. No mesmo sentido, H. Kelsen, Teoría Gene­ral de! Derecho y de! Estado, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1969, pp. 192-196, 215-229.

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nomos 'de si mesmos', mas só através das relações históricas concretas com o conjunto em que se manifesta a sociedade burguesa." 13 0

Tal como Kant, Kelsen aceita uma causalidade externa referida ao mundo natural; porém, ainda propugna pela extensão do reino da necessidade causal (determinismo) ao mundo dos homens em suas relações fáticas sociais e econômicas, onde, sob esse aspecto relaciona!, não haveria lugar para o mundo ideológico (no sentido de Kelsen), para o mundo dos fins espirituais, para o plano do dever-ser. Se o mundo inteligível, para usar a linguagem de Kant, pode contrapor-se como reino da liberdade ao mundo sensível (reino da necessidade), isso se deve exatamente porque se desconhece - em Kant - ou se elimina conscientemente por motivos "metodológicos" - em Kelsen - a presença do mundo social experimentado precisamente como prá­xis social.a1

:É evidente que neste mundo sobressaem muito mais fato­res determinantes da vontade do que aqueles que se podem identificar na "natureza". Numa análise mais aguda, pode-se observar, inclusive, que a própria natureza não Se manifesta senão de forma humanizada, dentro de um mundo histórico-social que condiciona seus próprios limites.

As considerações feitas acima, a respeito da posição dualista, mostram o solo onde vicejam as mistificações ideológicas que perfa­zem obstáculos epistemológicos à compreensão integrada da realidade social. :É por isso que, ao tratarmos do Estado, nos encontramos a todo instante com a tendência para considerá-lo como algo isolado e como produto do Espírito, da pura Razão. Nesse sentido, o homem projeta para o Estado e para seus produtos (o Direito, por exemplo) as suas próprias qualidades: a razão e todas as suas potencialidades, além de sua vontade enquanto expressão viva e deliberativa de relações conscientes entre meios e fins. Nessa linha predomina o voluntarismo estatal (e jurídico), vinculado estreitamente ao subjetivismo humanista, traduzindo suas bases idealistas como se fosse possível compreender o Estado (e o Direito) independentemente de outras dimensões do todo social, desvinculado da estrutura global que realiza a formação social capitalista. Com efeito, tal abordagem subjetivista, escamoteando suas

ao Cf. Ljubornir Tadic, op. cit., pp. 123-124.

31 Ver, nesse sentido, Carlos Pereyra, El Sujeto de la Historia, Madri, Alianza Editorial, 1984, pp. 123-134.

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raízes na concepção dualista, propicia o fetichismo do Estado e do Direito como produt,os da Razão e da Vontade, cmde "tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objeto de decisão, de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras, porém invisí­veis" .'3 2

Dessa forma, retornando ao plano mais geral das relações onto­lógicas, o discurso sobre o Estado implica imanência e transcendência ao mesmo tempo. Existimos no interior de uma vivência política, sem distância e freqüentemente sem consciência clara das relações envol­vidas. Entretanto, essas relações, em suas conexões ontológicas, trans­cendem nossa experiência imediata e sua verdade ultrapassa o nível do dado. A percepção de um fato originado da ação do Estado - a repressão policial, a publicação de um ato legislativo, a condução de um condenado pela justiça ao cárcere, por exemplo - não constitui por si só verdadeiro saber a seu respeito. O conhecimento supõe mane­jo de relações e, por conseguinte, a integração da experiência em unidades que excedem seu conteúdo atual e concreto. O autêntico conhecimento sobre o Estado se apóia na experiência imediata, porém, exatamente para superá-la e alcançar aquilo que se mostra incomple­tamente nela.3a Como os fatos sociais e políticos se integram historica­mente, a série temporal desses fatos exprime uma organicidade própria, vinculando dialeticamente fatores necessários e contigentes, e cuja plena compreensão e determinação histórica se realizam mediante a atividade teórico-prática dos agentes sociais. Isso quer dizer que cada fato aponta tanto para o passado, do qual é produto regido por certas leis, quanto para o futuro, a respeito do qual se põe como condição aberta a múltiplas possibilidades.

Entretanto, cumpre-nos salientar que o real como totalidade jamais nos é dado em termos de experiência direta. Esta nos oferece o acesso ao real, mas não o próprio real. O Estado, portanto, como totalidade

32 Cf. Michel Miaille, Une lntroduction Critique au Droit, Paris, François Mas­pero, 1976, p. 107. 33 Ver, nesse sentido, Jorge Millas, /dea de la Filosojía, el Conocimiento, I, Santiago de Chile, Universitaria, 1969, pp. 19-20.

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real não se oferece como presença imediata, e sim através de suas múltiplas e variadas formas históricas de aparecer. Pode-se notar, contudo, que a totalidade das relações estatais não se apresenta senão dentro de um processo histórico em que se desenvolve a essência estrutural objetiva do Estado, figurando uma existência substancial dialética. Mas por que as experiências pontuais a respeito do Estado, fundadas na presença imediata deste, apontam para aquela realidade ontológica substancial sem cuja suposição as experiências mesmas não teriam sustentação no plano existencial? A nosso ver, isso ocorre exatamente porque o Estado não se pode explicar apenas mediante as determinações que realizam o processo histórico de sua objetiva­ção; mas, além disso, coincide com a explicação final dessas deter­minações, de modo que a essência dialética do Estado se encontra de certa forma no princípio e no final daquele processo. Se, de um lado, o real como totalidade plena não pode ser experimentado exatamente nessa condição, de outro lado, seu ponto de apoio não se esgota na simples série das determinações particularizadas que caracterizam o modo de aparecer do Estado na experiência histórica. Evidentemente, para superar o substancialismo aristotélico, de caráter estático e meta­físico, propugnamos por uma linha de pensamento que concebe a so­ciedade política como uma unidade que se vai formando através de múltiplos momentos. cada um dos quais, incluindo o homem como

sujeito ativo da ação política, é parte integrante da unidade essencial objetiva. Assim, não se pode compreender a unidade do Estado disso­

ciada da série dos momentos histórico-empíricos em que ele mesmo se produz. Isso significa que o Estado não representa jamais uma unidade perfeita em si, sobre a qual se sobreponham qualidades ou determinações como entidades distintas ainda que dependentes; o liame entre a unidade substancial do Estado e suas determinações históricas é internamente dialético e ativo, sendo que essas determinações reali­zam aquela unidade e explicam-lhe a estrutura. Entretanto, para esse efeito é preciso considerar o nexo necessário entre a unidade do Estado e as determinações históricas que a realizam, e isso precisamente dentro de bases reais e segundo suas próprias leis internas, a fim de que evitemos confundir tal vinculação com o movimento artificial da " Idéia", como ocorre na dialética abstrata hegeliana. Nesse sentido, a essência real - e não abstrata - do Estado encontra-se de certo

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modo no princípio e no final do processo histórico-social em que ele se realiza, e é exatamente esse fato que confere a tal processo sua unidade e necessidade ontológicas; em outras palavras, não se trata de unidade e necessidade introduzidas tão só pelo pensamento humano, visto que é a própria estrutura da essência real em processo que as exige:H

A realidade do Estado é, pois, um produto teórico-prático que tem seu fundamento na experiência desenrolada historicamente e con­forme determinadas condições objetivas. Essa experiência se perfaz igualmente em função da representação ideal ou do processo teórico pelo qual a pensamos e a construímos: ela nos permite construir a realidade da sociedade política mediante uma práxis social traduzida por sondagens teóricas sucessivas ou imersões descontínuas e contin­gentes ao longo de sua própria história. A experiência do Estado, como ser real, é o sentido prático-objetivo que unifica uma série de experiências, em que cada uma delas é apqnas um ponto de contato com um corpo objetivo extremamente amplo da realidade social não acessível imediatamente, aqui e agora. A direta experiência do político é sempre esta determinada experiência, ou seja, a do instante e do espaço singulares de nossa situação. Entretanto, essa experiência impli­ca uma co-presença ou horizonte do mundo político-social que a mergulha no contínuo de todas as experiências possíveis. Assim, por exemplo, a repressão a uma greve de trabalhadores aponta para o siste­ma social como um todo, subjacente aos fatos e confinado à zona marginal de nossa própria consciência. A repressão à greve leva-nos a considerar a ordem jurídica positivada; as autoridades repressoras; o aparelho administrativo-policial; o sistema econômico-social existente; a política salarial; a estrutura das relações de propriedade dos meios de produção; o estado crítico dos conflitos de classes; a distribuição social das riquezas; a conjuntura política, etc. Mas tudo isso, que é pressuposto ontológico da percepção da violência que agora presencio, não está em contato atual comigo, como uma presença real compre­endida imediatamente em sua totalidade. Desse modo, a visão real como totalidade presente, a experiência imediata de seu conjunto pleno, não a temos em sentido estrito.

M Ver, nesse sentido, Mario Dal Pra, La Dialettica in Marx, Bari (Itália), La­terza, 1965, pp . 98-113.

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A experiência puntual e fragmentada ·do momento, com a exclusão do passado e do possível, não vicejada pelas relações integradoras da práxis social, condena-nos a permanecer na superfície dos fatos, a não penetrar e ultrapassar a opacidade fática das coisas. Assim, a expe­riência imediata do político é apenas um ponto de contato que exige, para a apreensão de sua efetiv11 realidade, a superação da presença atual pela construção de exepriências possíveis orientadas para a trans­formação do real e integradas pela reconstrução de experiências pas­sadas, sempre a nível da ação social contínua e da representação teórico-prática correspondente. Toda experiência sobre questões polí­ticas, exatamente por ser função da realidade do Estado, é também momento de um processo que aponta essencialmente para um hori­zonte de totalidade que lhe confere plenitude de sentido. Isso significa que toda experiência imediata reclama sua integração nesse contexto de experiência passada reconstruÍda - não arbitrariamente, mas se­gundo as leis que lhe são imanentes - e de experiência futura possí­vel, fundada naquela experiência passada, perfazendo, desse modo, a totalidade do real.135

Prosseguindo nessa ordem de idéias, convém frfsar novamente que a totalidade do real político não se consubstancia a partir da idéia abstrata que temos dele. Vertendo nossa atenção para o campo da experiência imediata, não vemós o Estado como tal; isso está claro. Entretanto, podemos nos encontrar, pelo lado oposto, com a posição idealista pela qual o Estado é uma idéia ética a ser realizada, em função da qual o mundo fático dos homens concretos, caracterizados pelas relações sociais, passa a ter realidade efetiva apenas enquanto

. sejam, esses homens, agentes perpetradores daquela idéia astuciosa. Tendo ou não consciência disso, os homens concretos, nessa concepção, realizam, através de suas ações individuais, os objetivos impostos pela totalidade abstrata do Estado. O real concreto, então, fica subordinado ao ideal mistificado, a uma abstração que toma a si a tarefa de compor e realizar o mundo tal como o vemos e experimentamos na sua com­plexidade e singularidade viva. Neste passo, o Estado não aparece como algo subordinado à sociedade, como produto de relações sociais; ele é, ao contrário, uma .finalidade, um horizonte pata onde caminha e

35 Ver Jorge Millas, op. cit .. pp. 30-32.

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deve se encaminhar a sociedade, como algo que a integra e a polariza para constituí-la, a .partir de "fora", como ordem racional de liberdade. A expressão mais viva dessa doutrina formula-se no âmbito do idealis­mo alemão dó início do século XIX, com Hegel à frente; nele, o Estado se destaca como idéia hipostasiada em relação à sociedade onde os interesses estão em conflito. O Estado é proposto, assim, como uma ordem racional na qual os conflitos de interesse encontram sua harmo­nização e síntese, tornando possível a liberdade que transcende de modo dialético a mera necessidade.36 Assim, para Hegel, "o Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe".137 "O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta vontade adquire na consciência particular de si enquanto universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imó­vel; nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que, por serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever."~8

Para escapar dessa linha mistificadora do Estado, cumpre consi­derar o verdadeiro lugar onde se consubstancia o fundamento político da sociedade. Referimo-nos ao homem. Os homens são os verdadeiros fautores da vida política e da História; eles é que fazem a História. Entretanto, se atendermos apenas a essa fórmula, não elidimos o risco de interpretar o processo político como decorrente de manifestação da natureza humana ou da mera vontade dos indivíduos. Se, de um lado, afastamos a idéia de que o processo histórico-político é o resultado da intervenção de alguma entidade transcendente, de caráter supra­humano, de outro, podemos recair numa abstração do indivíduo, con­signando nele a origem absoluta daquele processo. Colocar no lugar do homem individual concreto a idéia ou o espírito objetivo, cuja

36 Ver Torcuato Fernández-Miranda, Estado y Constitución, Madri, Espasa­

Calpe, 1975, pp. 209-232. 37 Cf. G. W. F. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa, Guimarães

Editores, § .257, p. 246. as Cf. G. W. F. Hegel, op. cit., § 258, p. 247. Para uma crítica do idealismo objetivo de Hegel a respeito do Estado, ver K. Marx, Crítica de la Filosojía del Estado de Hegel , 2." ed., Buenos Aires, Claridad, 1973.

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evolução demarca o ~róprio sentido do processo histórico-político, é pressupor de maneira idealista que tal processo se explicaria sem o homem real, isto é, como movimento autônomo da consciência, das idéias, prescindindo de sua base histórica e social. "A concepção de história de Hegel pressupõe um espírito absoluto ou abstrato, a se desenvolver de maneira tal que a humanidade não é mais do que uma massa que lhe serve de suporte mais ou menos conscientemente. Dentro do quadro da história empírica (objetiva), compreensível por todos, Hegel introduz a operação de uma História especulativa, reservada aos iniciados. A história da humanidade passa a ser a história do espírito abstrato da humanidade, um espírito acima e além do homem real." 139

Porém, ao apontar para o indivíduo concreto, dentro de uma perspecti­va humanista, considerando-o como ponto de partida para o exame da realidade do Estado, não indicamos senão outra possível vertente do idealismo que reduza a explicação das iniciativas políticas tão só às intenções, propósitos, espectativas, motivos, objetivos ou idéias de tais indivíduos, como se neles fosse possível encontrar o fundamento último do processo histórico-político. Na realidade, esses fatores sub­jetivos também precisam ser explicados; fazem parte, precisamente, daquilo que deve ser explicado.40

Este ponto merece ainda maior elucidação, especialmente no to­cante ao processo histórico em que se concretiza a sociedade política. Em O 18 Brumário, Karl Marx diz que "os homens fazem sua própria história, porém não a fazem por seu livre arbítrio, sob circunstâncias escolhidas por eles mesmos, senão sob aquelas circunstâncias com que se encontram diretamente, que existem e lhes são legadas pelo passa­do".41 Desse modo, os homens não se propõem em cada situação histórica a um fim indeterminado qualquer; escolhem os objetivos que a própria situação lhes possibilita e condiciona, em razão do contexto econômico-social, político e ideológico em que estão imersos. Entre­tanto, se por um lado não se pode sustentar que as circunstâncias sejam

an Cf. K. Marx e F. Engels, A Sagrada Família, Lisboa, Presença, 1974, p. 128. 4° Ver, nesse sentido, Carlos Pereyra, El Sujeto de la Historia, Madri, Alianza Editorial, 1984, 11-12. Ver também Jean-Paul Sartre, Critique de la Raison Dialectique, I, "Théorie des Ensembles Practiques", Paris, Gallimard, 1960, PP- 81-156. 4! Cf. Karl Marx , O 18 Brumário. op. cit., p . 17.

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o sujeito motor da História, à margem da intervenção ativa dos homens, por outro, não se pode levar a sério que os homens a realizam inde­pendentemente de quais sejam as condições existentes. Nem mesmo é admissível que haja recíproca influência entre circunstâncias dadas e atividade humana; isso seria admitir uma relação de exterioridade entre tais elementos. A grande questão se coloca, portanto, na perspec­tiva dialética pela qual se deve entender que as circunstâncias condi­cionantes da ação histórica não são algo dado "por fora" dos próprios agentes sociais; elas não perfazem coisas ou entidades alheias aos homens; compreendem, por isso mesmo, as formas existentes da cons­ciência social, a organização das forças sociais, a ordem jurídica, as condições técnicas de manipulação dos meios de produção, etc. Isto quer dizer que as condições subjetivas também fazem parte, e necessa­riamente, das circunstâncias histórico-objetivas.42

Neste ponto, cumpre-nos ainda enfatizar o resgate que procura­mos fazer a respeito de como se deve entender, para nossa análise do Estado, o complexo das relações subjacentes às suas manifestações exteriores.43 Já apontamos para os prejuízos da consideração mecani­cista das relações que se interpõem de forma abstrata entre termos pré-existentes. Se atentarmos para a perspectiva do humanismo indi­vidualista, onde, em nome da irredutibilidade da práxis, se entende que vontade, consciência e intenção dos homens não estão inteira­mente determinadas pelas circunstâncias dadas, então o prejuízo antes apontado se faz gravemente presente, visto que passamos a considerar novamente uma relação de exterioridade entre sujeito e objeto, como se estes fossem termos pré-existentes conectados por uma relação que

(

4 2 Ver Carlos Pereyra, op. cit. , p. 14. Sobre a relação entre indivíduo e História, consulte-se a obra organizada por Massimo Canevacci, Dialética do Indivíduo, O Indivíduo na Natureza, História e Cultura, 2.• ed., São Paulo, Brasiliense, 1984. Idem, com relação às questões políticas, C. B. Macpherson, A Teoria Política do Individualismo Possessivo, de Hobbes a Locke, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. No plano filosófico, consulte-se Karl Lowith, De Hegel a Nietzsche, Buenos Aires, Sudamericana, 1974, especialmente pp. 293-325. Idem, Adam Schaff, O Marxismo e o Indivíduo, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1967, pp. 53-112, 153-182. Idem, Henri Lefebvre, La Fin dell'Histoire, Paris, Minuit, 1967. 43 Para o aprofundamento do conceito de práxis histórica, ver o excelente tra­balho de Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, pp. 317-372.

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lhes é estranha e contingente. Por outro lado, ao admitir que a atuação dos homens está inteiramente determinada pelas circunstâncias ante­riores, somos conduzidos a negar sua participação consciente no movi­mento da História segundo fins propostos pela vontade autônoma dos agentes sociais, equivalendo de certo modo a afirmar que estes estão plenamente determinados pelas condições objetivas do processo histó­rico. Neste caso, vemo-nos envolvidos pela perspectiva do determinismo mecanicista, resultante igualmente da linha metodológica que aponta para a exterioridade dos termos considerados com-;> existentes inde­pendentemente das relações que os unem.

Se não há consciência, vontade ou intenção possível à margem das circunstâncias determinantes, o que concorre para bloquear toda tendência a explicar o processo histórico a partir de uma consciência abstrata, uma vontade indeterminada ou uma intenção pura, não há igualmente uma determinação direta daquelas formas subjetivas por parte de fatores "externos" que possam exprimir circunstâncias objeti­vas independentes da ação dos próprios homens. O conteúdo da cons­ciência e a intencionalidade da vontade, por não terem em si mesmos sua razão de ser, apontam para análise das circunstâncias econômicas, políticas e ideológicas determinantes que de certo modo explicam sua origem. Porém, essas circunstâncias implicam necessariamente as con­dições subjetivas que envolvem as formas de consciência; isso quer dizer que tais circunstâncias não se personalizam " por fora" da própria práxis, sob pena de se considerar o processo histórico dirigido por forças estranhas aos agentes sociais.44

Por essa ponderação se pode verificar que o acontecimen_to his­tórico integra-se mediante dois momentos orgânica e dialeticamente interdependentes: o da situação histórico-social e o da intervenção dos que nela atuam. Nem mesmo se pode afirmar que são complementares, visto que isso demandaria compreendê-los ainda na perspectiva do dualismo em que os termos se põem de forma autônoma. Na verdade, esses momentos integram uma realidade unitária, onde cada aspecto mantém sua identidade em razão da oposição mesma, e esta, ao mesmo tempo, se apresenta como tal pela identidade de cada aspecto. A tenta­tiva de compreender esses momentos fora da relação dialética implica

44 Ver, nesse sentido, Adolfo Sánchez Vázquez, op. cit., pp. 185-202. Ver também Carlos Pereyra, op. cit. , pp. 16-17.

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destruir, através de uma aplicação metodológica puramente analítica, de caráter lógico-formal, a própria realidade unitária pela qual tais momentos ganham sua especificidade. Por isso é que os homens fazem parte da situação dada, não por ato de sua consciência e vontade, e, no âmago dessa situação, a transformam continuamente mediante a práxis criadora.4 5 As circunstâncias não existem sem os homens, nem estes existem sem aquelas. Tais circunstâncias são a condição e o pressuposto do agir; entretanto, o agir, por seu turno, confere àquelas circunstâncias um sentido determinado. Karel Kosik exprime essa dialé­tica afirmando que "o homem supera (transcende) originariamente a situação não com a sua consciência, as intenções e os projetos ideais, mas com a práxis. A realidade não é um sistema dos meus significados, nem se transforma em função dos significàdos que atribuo aos meus planos. Mas ·com o seu agir, o homem inscreve significado no mundo e cria a estrutura significativa do próprio mundo". Prosseguindo na linha ~o exemplo, Kosik agrega: "para um servo da gleba a 'situação dada' é imediatamente condição natural de vida; mediatamente, através da sua atividade, na revolta ou na insurreição camponesa, ele lhe atribui o significado de prisão; a situação dada é 'mais' do que uma situação dada e um servo da gleba é 'mais' que mera parte da situação. A situação dada e o homem são os elementos constitutivos da práxis, que é a condição fundamental de qualquer transcendência da situação. Os homens agem dentro da situação dada e na ação prática conferem um significado à situação".46

45 Na caracterização da objetividade como processo, na qual se inclui a práxis transformadora, Gramsci destaca a unidade daquele proces~o, pondo em relevo o momento subjetivo: "Sem o homem, que significaria a realidade do universo? Toda ciência está ligada às necessidades da vida, à atividade do homem. Sem a atividade humana, criadora de todos os valores, e também dos valores cientí­ficos, que significaria a objetividade? Não outra coisa que o caos, o vazio, se assim se pode dizer. Porque, realmente, se se imagina que não existe o homem, não se .pode imaginar a língua e o pensamento. Para a filosofia da práxis, o ser não pode separar-se do pensar; o homem, da natureza; a atividade, da matéria; o sujeito, do objeto; se se faz esta separação, mergulha-se em outras tantas formas de religião ou de abstração sem sentido"; Cf. A. Gramsci, El Materialismo Histórico y la Filosofía de Benedetto Croce, Buenos Aires, Nueva Visión, 1973, p. 63.

46 Cf. Karel Kosik, Dialéctica de lo Concreto, México, Grijalbo, 1967, p. 259.

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Neste ponto acreditamos estar em condições de retomar a questão a respeito de se indivíduos concretos são ou não os elementos fun­dantes da realidade política. É bom recordar que essa questão se coloca apara o efeito imediato de elidir a concepção de caráter idealis­ta, segundo a qual o processo histórico-político deflui de uina idéia hipostasiada, supra-individual, que emprestaria sentido e realidade à ação concreta dos homens~ Para uma correta abordagem desse ponto, é . preciso considerar a maneira pela qual se deve enfocar o conceito de indivíduo enquanto sujeito da ação social. Ao nos afastarmos da idéia metafísica de uma entidade supra-individual como base da rea­lidade política, a tendência é buscar essa base no sujeito individual, sujeito este que se manifesta igualmente ao nível de nossa experiência imediata, Essa concepção parte da idéia de que o único concreto .é o indivíduo, sendo os "conjuntos supra-individuais" meras abstrações. A questão que se coloca, então, é a seguinte: é possível compreender os indivíduos à margem das relações sociais, isto é, fora das relações em razão das quais transcorre sua existência?

Se a organização social não se reduz a uma simples soma de práticas interindividuais, o indivíduo enquanto tal, por paradoxal que pareça, só . pode ser considerado como uma instância abstrata, exata­mente porque sua caracterização não decorre de uma singular "nature­za" que por si só o especifique como indivíduo personalizado e autô­nomo. Assim, não existem sujeitos individuais concretos antes das relações sociais pelas quais ganham sua própria determinação; tais relações, entretanto, se perfazem "em" e "através" dos indivíduos. Novamente se apresenta aqui nossa rejeição ao dualismo metafísico que con'sidera os termos independentemente da existência da relação que os integra e caracteriza. Assim, indivíduos e relações sociais não constituem duas realidades separadas, não podendo aqueles serem abstraídos das relações sociais que lhes dão realidade e significado. Por essa razão não é indiferente, ao indivíduo, a situação histórica e as relações sociais que o configuram; isso induz à consideração de que não existe uma essência da individualidade que permaneça idên­

tica a si mesma, com independência das condições histórico-sociais onde os sujeitos individuais concretamente se conformam. Vale dizer que a caracterização da individualidade, através das manifestações específicas de consciência, vontade, intenções, expectativas e ações,

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não se configura em uma instância meramente subjetiva e singular, alheia e oposta ao conjunto das relações sociais. Daí porque os motivos da ação social, não se inscrevendo em uma pura vontade incondicio­nada, somente se tornam inteligíveis mediante a análise das relações sociais. É preciso, contudo, notar que tal consideração não deve levar à tendência de substituir o indivíduo no plano das práticas sociais.47

Os que agem são os indivíduos concretos, não as relações sociais. Se as ocorrências sociais têm seu início necessariamente nas atividades humanas, seu fundamento, entretanto, não se encontra apenas nestas últimas. Isso porque essas atividades, conquanto sejam humanas e concretas, encarnam, elas próprias, as relações sociais existentes em determinada situação histórica. É preciso muita cautela neste terreno para não resvalar nas falácias quer do objetivismo absoluto das rela­ções sociais, demarcando-lhes forma entificada independente dos agen­

tes sociais, transformando os indivíduos em meros instrumentos de entidades abstratas, quer do subjetivismo do indivíduo concreto pos­suidor de uma vontade incondicionada e transcendente, misteriosa e ininteligível, indutora dos acontecimentos históricos "por fora" das próprias relações sociais. Isso seria novamente produto do dualismo metafísico já denunciado.

Se os indivíduos não podem se reduzir às relações sociais, também não podem deixar de ser uma síntese de múltiplas determinações provenientes delas. A questão se coloca em torno da identificação do ponto de partida em razão do qual se pode buscar uma interpretação inteligível dos fatos histórico-sociais e, por conseqüência, das relações no plano da sociedade política. Parece-nos que, ao nível da explicação do processo histórico-político, o indivíduo abstratamente considerado não se presta como ponto de partida, visto ser inadequado, à explícita-

47 Um posicionamento tendencial para essa substituição podemos encontrar na defesa da teoria do papel, no âmbito da Sociologia funcionalista: ·A sociedade determina não só o que fazemos, como também o que somos. Em outras palavras, a localização social não afeta apenas nossa conduta; ela afeta também nosso ser ( ... ). O significado da teoria do papel poderá ser sint_etizado dizendo­se que, numa perspectiva sociológica, a identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmente e transformada socialmente". Cf. Peter Berger, Perspec­tivas Sociológicas, uma visão humanística, 6." ed., Petrópolis, Vozes, 1983, pp. 107 e 112.

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ção plena desse processo, o equacionamento com base na teoria das motivações e propósitos da ação, exatamente porque tal processo não se funda na mera soma de ações individuais, mas, em conexões sociais econômico-políticas e ideológico-culturais.48 Em outras palavras, a consciência, a vontade, as espectativas e as intenções dos agentes sociais por si sós não explicam, mesmo numa conexão intersubjetiva, a tecitura das relações sociais; estas relações é que dão o fundamento inteligível para a compreensão das iniciativas subjetivas que dinamizam o proces­so histórico-político no interior da práxis social. ~ por essa razão que do indivíduo isolado não cabe extrair uma essência humana; esta não é algo abstrato imanente a cada indivíduo isoladamente considerado; a essência do homem se exprime como conjunto das relações sociais, compreendidas, por conseqüência, não como vínculos externos e con­tingentes relativamente aos sujeitos individuais, mas .. como conexões indispensáveis para a determinação da própria individualidade. Isso significa que é tarefa inútil procurar propriedades humanas à margem do curso do processo histórico e das relações sociais; neste plano não se pode descobrir o indivíduo em geral, em qualquer momento histó­rico, como se fosse um exemplar da essência humana, indiferente às condições e circunstâncias concretas que especificam cada momento ou período histórico. Por essa razão, em cada sociedade encontraremos somente indivíduos determinados, modelados em função das condições singulares da formação econômico-social em que estão integrados, incluindo suas condições de vida, de classe social, de trabalho, de exploração e de Juta. Assim, os indivíduos se caracterizam pelas relações

· sociais concretas que eles mesmos integram com sua práxis social; por isso, eles não são simples entes "naturais"; são seres sociais, cons­tituídos por e ao mesmo tempo constituintes da posição que ocupam no processo histórico-social em que transcorre sua vida real. A distinção entre o indivíduo "natural" e o indivíduo "social" deve ser aqui destacada para se evitar os prejuítos do reducionismo metafísico. Nesse

: sentido, "o homem, além de ser um produto da evolução biológica das espécies, é um produto histórico, um produto de certa forma mutável

48 Ver Carlos Pereyra, op, cit., pp. 28-32. Para maior compreensão da relação indivíduo e sociedade sob o enfoque do fetiche e do culto do indivíduo, ver István Meszáros, Marx: A Teoria da Alienação, Rio de .Janeiro, Zahar, 1981, pp. 229-259.

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nas diversas etapas da evolução da sociedade, conforme pertença a uma ou outra das classes e camadas da mesma sociedade. Um homem, constituído só à. base de propriedades biológicas gerais, e à base de propriedades que cabem a todos os homens - em contraste, por exemplo, com outros mamíferos -, fica reduzido a um 'homem abstrato', um homem 'em geral', em oposição à concepção concreta do homem em sua relação social - como membro de uma determinada sociedade, numa determinada etapa da evolução histórica, como per­tencente a uma determinada classe e com um lugar determinado na divisão social do trabalho, em relação ao grupo social, à cultura etc." .

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Essa concepção, por conseguinte, refoge tanto da perspectiva generalista, pela qual se compreende o homem como um ser incluído em um estatuto indiferenciado, abstrato e universal, igual para todos os tempos, quanto da visão empirista que busca em cada indivíduo, em suas intenções e aspirações, a representação do fundamento último

do processo histórico-social. Finalmente, para completar essa ordem de idéias, convém apontar

para a assimetria entre os fins propostos pelos indivíduos no processo histórico-político e o que realmente ocorre. Há, de certo modo; uma contradição entre a intenção de realizar determinados objetivos por parte dos sujeitos históricos, manifestada por seus esforços e ação prática, e o fato de que no processo se observam resultados não desejados por ninguém. Hegel já havia consignado que mediante as ações dos indivíduos, na história universal, algo diferente daquilo que eles projetaram se produz; realizam seus interesses; entretanto, com isso produzem outra coisa que estava implícita nesses interesses, mas que não estava na consciência nem na intenção daqueles indiví­duos.50 ~ nessa linha que Hegel concebe um "sentido" que se torna racional em virtude de um fim último que transcende a ação dos homens concretos. Esse fim é que permite a ordenação racional e necessária da prática histórica, conferindo sentido ao caos aparente das ações individuais isoladas. Nessa perspectiva, os indivíduos não passam de meros instrumentos de uma razão astuciosa, de um fim

49 Cf. Adam Schaff, op. cit., p. 65. 50 Ver G. W. F. Hegel, Leçons sur la Philosophie de l'Histoire, Paris, Vrin, 1946, p. 55. Ver também Jacques D'Hondt, Hegel , Filósofo de la Historia Viviente, Buenos Aires, Amorrortu, 1971, pp. 150-171.

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último para o qual não contribuíram conscientemente.61 Por certo esta concepção providencialista colide diretamente, e nisto está a sua virtude, com a concepção heróica da História, a qual postula serem a intenção consciente e o fim desejado por certos homens privilegiados as determinantes da direção do processo histórico.

Em ambos os casos há prejuízo para a compreensão do processo real. A nosso ver, a dinâmica que preside o processo é decorrente de seu caráter unitário e dialético, cujos elementos constituintes são mutuamente determinantes e excludentes. Não há História sem a ação dos indivíduos concretos e determinados; mas esta ação se realiza em função do processo e de sua lei interna; o caminho da História não é arbitrário nem caótico; ele guarda um certo sentido, uma certa direção. Entretanto, esse sentido é ele mesmo outorgado pelas ações vivas e reais dos indivíduos; não ações no vazio, mas confluentes no âmbito das relações sociais que elas mesmas integram e concretizam. Isso significa que a ação do sujeito histórico é determinante e, ao mesmo tempo, determinada em relação ao processo. A cada passo, ele precisa tomar iniciativas em razão do peso das iniciativas passadas já cristalizadas pela sua própria ação histórica. Suas intenções e ações sofrem sempre o corretivo das múltiplas formas econômico-políticas e ideológico-culturais, de certo modo regulares, que perfazem o real humano, e das quais ele mesmo é fautor e mantenedor. Nesse sentido, concluímos que o sujeito é formado como tal pela ação que pratica e em razão da qual tenta realizar, num plano histórico-social definido, suas intenções e projetos; ele não é exterior a essa ação e, num só ato, compreende as circunstâncias presentes, passadas e, de certo modo, as futuras; por isso, ele não age senão dentro de um contexto histórico concreto, formado por relações sociais determinadas e dotadas de certa regularidade, para cuja constituição e dinâmica ele mesmo contribui essencialmente com o, próprio ser, isto é, com a própria ação circuns­tanciada.

~ .1 Ver Karel Kosik, op. cit., pp. 249-250. Para maior compreensão da temática, ver Adolfo Sánchez Vázquez, op. cit., pp. 317-372. Ver também Adam Schaff, Histoire et Verité , Paris, Anthropos, 1971.

Segunda parte

Questões substanciais

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Estrutura social e relações intersubjetivas

Para o adequado encaminhamento da questão da realidade do Estado, especialmente no que respeita às relaçõe~ entre a comunidade política e a comunidade civil, cumpre-nos apontar, em seguimento das abordagens até agora realizadas quanto ao problema do sujeito histórico, a diferença no plano sociológico entre a concepção funcio­nalista e a concepção crítico-dialética a respeito da estrutura social, ou seja, dos elementos que constituem a base da existência coletiva.

De conformidade com a perspectiva funcionalista , os fenômenos estruturais da sociedade, isto é, aqueles que compreendem a recíproca movimentação, cooperação, contrastação, oposição e conflitos entre agentes sociais coletivos (classes sociais), são em última instância reduzidos a fenômenos interpessoais ou intersubjetivos, resultando no ocultamento ou na subestimação das classes sociais em favor da ilusória imagem do indivíduo como base última da sociedade.1 Segundo essa

1 Para uma análise aprofundada do funcionalismo sociológico, ver Wilbert E. Moore, "O Funcionalismo" , {n Tom Bottomore e Robert Nisbet (org.), História da Analise Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, pp. 421-474. Na linha do funcionalismo relativo, ver Robert K. Merton, Sociologia, Teoria e Estrutura, São Paulo, Mestre Jou, 1970, pp. 85-152. Para uma análise da relação entre o

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concepção, a sociedade é considerada como um organismo social, cujas unidades celulares são representadas pelos seres humanos individuais (stibstituíveis) e cuja estrutura (estável) corresponde às relações (regu­lares e padronizadas) entre esses indivíduos, as quais se manifestam através do seu comportaqtento, observado diretamente entre eles ou entre eles e seus grupos ou instituições, ou mesmo entre -esses grupo_s ou instituições.2 "Os seres humanos individuais, as unidades essenciais neste caso, estão ligados por um conjunto definido de relações sociais num todo integrado. A continuidade da estrutura social, como a da estrutura orgânica, não é destruída pelas mudanças na unidade. Os indivíduos podem deixar a sociedade por morte ou em outras circi.ms­tâncias; outros podem ingressar nela. A continuidade é mantida pelo processo de vida social que consiste das atividades e interações dos seres humanos individuais e dos grupos organizados em que eles se reúnem. A vida social de uma comunidade é definida aqui como o funcionamento da · estrutura sociaL A função de qualquer atividade repetitiva, como o castigo por um crime ou uma cerimônia fúnebre, é o papel que ela desempenha na vida social como um todo e, portanto, a contribuição que faz para a continuidade estrutural." 3 Assim, o caráter determinado, repetitivo e estável das relações interpessoais

funcionalismo e o conceito de "sistema", ver Alvin W. Gouldner, La Sociologia Actual: renovación y crítica, Madri, Alianza, 1979, pp. 182-213. Ver também Henri Mendras, Princípios de Sociologia, Uma Iniciação à Análise Sociológica , S.* ed., Rio de Janeiro, 1978, pp. 121-139. Para uma distinção entre a análise funcional e . o funcionalismo sociológico, ver Guy Rocher, Sociologia Geral, 3, Lisboa, Presença, pp. 137-166. Um ensaio penetrante e crítico do método de interpretação funckmalista na Sociologia é realizado por Fforestan Fernandes, in Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica , 4.• ed., São Paulo, T. A. Queiroz, 1980, pp. 175-313. Numa linha crítica, vér Margaret A. Coulson e David S. Riddell, Introdução Crítica à Sociologia, 5.* ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 55-79; Alan Swingewood, Marx e a Teoria Social Moderna, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1978, pp. 218-245; John Rex, Problemas Fundaméntales de la Teoría Sociológica, Buenos Aires, Amorrortu, 1968, pp. 81-101; Ralf Dahrendorf1 Sociedad y Sociologia, Madri, Tecnos, 1966, pp. 147-178; Percy S. Cohen, Teo;ia Social Moderna, Rio de Janeiro, Zahar, 1970, pp. 50-84; Alain Touraine, Em Defesa da Sociologia, Rio de Janeiro, Zahàr, 1976, pp. 79-153. 2 Ver, nesse sentido, John Rex, op. cit., pp. 82-85. a Cf. Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society, Chicago, Free Press, 1952, p. 178.

ESTADO E IDEOLOGIA 91

define as funções que se exprimem em papéis, cuja finalidade é asse­gurar, em seu desempenho, a permanência, continuidade e estabilidade daquelas relações sociais, ou seja, da estrutura sociaU

Mesmo as inter-relações de grupos sociais são convertidas, em última análise, a relações interpessoais: os grupos e instituições cons­tam de indivíduos em relações determinadas, regulares e estáveis; esses grupos e instituições se caracterizam exatamente pelo tipo e natureza das relações interpessoais que mantêm em conexão." Em resumo, para a concepção funcionalista, o exame das estruturas so­ciais focaliza substancialmente os papéis individuais e seu sistema no âmbito dos grupos ou instituições que integram a sociedade em seu conjunto. Portanto, a questão fundamental para a identificação e aná-

4 Numa síntese bastante esclarecedora sobre as características do funcionalismo sociológico, Swingewood escreve • (1) As sociedades são todos, são sistemas de partes inter-relacionadas. Cada parte só tem sentido em relação com o todo; a sociedade é um 'sistema' de elementos interdependentes que contribuem para a integração do sistema. A causação social é, por conseguinte, múltipla e recíproca. (2) A integração de todas as partes - ou 'subsistemas' - embora nunca 'perfeita', não obstante produz um estado de equilíbrio. Os ajustamentos são feitos tanto para as influências internas quanto para as externas, e a tendência geral é na direção da estabilidade e inércia. O papel crucial dos mecanismos de controle social é, por conseguinte, óbvio. (3) Desvio, tensão, estafa, existem como elementos disfuncionais que tendem a institucionalizar-se e resolver-se de tal maneira que a integração perfeita, embora permaneça um ideal irrealizável, é não obstante a tendência dominante dentro do sistema social. (4) A mudança social não é revolucionária, mas adaptativa e gradual; se há mudança rápida, ela ocorre na 'superestrutura' da sociedade, deixando assim a estrutura institu­cional básica inalterada. A mudança se origina grandemente dos fatores exter­nos, através da diferenciação estrutural e funcional e através de invenções e inovações pelos indivíduos e grupos. (5) A integração social é conseguida através de consenso de valor, 'orientações cognitivas comuns', isto é, um conjunto de princípios amplamente difundidos que legitimam a estrutura sócio-econômica e política existente". Cf. Alan Swingewood, op. cit., p. 222.

5 "O funcionalismo apenas aparentemente exclui a referência a motivos sub­jetivos; como vimos nos exemplos de 'funções latentes' dados por Merton, o funcionalista, na prática, realmente relaciona as instituições e atividades com os objetivos dos indivíduos e grupos. Por conseguinte, seria muito melhor reconhecer isto e procurar mostrar claramente, através de provas empíricas, quais os objetivos, fins ou propósitos aceitos pelos participantes da situação." Cf. John Rex, op. cit., p. 100.

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lise das funções relacionadas · com as estruturas sociais se prende, em última instância, ao estudo de sistemas de pàpéis normativamente cons­tituídos que organizam e orientam os modos de agir dos indivíduos em suas relações recíprocas.6 Assim, se a estrutura social é um sistema funcional de relações constituído por um complexo de papéis, as ins­tituições são integradas por constelações de papéis, formando d~sse

modo a conexão orgânica entre estrutura e instituições. 7

Vê-se, por essa abordagem, que o marco de referência fundamen­tal da concepção funcionalista são os atores sociais, as situações e as orientações padronizadas nos papéis. O núcleo teórico dessa linha de pensamento sociológico é sempre, em última análise, a dimensão in­dividual, desprezando sistematicamente, clara ou veladamente, o re­ferencial das práticas dos agentes coletivos, representados pelas classes sociais. Por essa via, o conceito de papel social ocupa lugar proemi­nente nas análises de matriz funcionalista (ou estrutural-funcionalista), visto que reduzem a noção de grupo social ao complexo de inter-rela­ções de papéis desempenhados por agentes individuais. Desse modo, estes agentes têm suas atividades pautadas por normas interiorizadas (processo de socialização) e em valores sociais dominantes e que re­presentam meios institucionalizados da ação social.s

Diferentemente do modo de apreensão crítico-dialético da estru­tura social, a tese funcionalista desconhece, desvaloriza ou despreza referências que não contribuam a favor de uma análise da permanên­cia, harmonia e continuidade das formas sociais básicas, {iempre assi­miladas a um sistema complexo de papéis diferenciados, reciproca­mente referidos e integrados. Nesse sentido, fica explícito um "modelo de sociedade como uma unidade funciónal, onde as partes compo-

n Ver, nesse sentido, Hermann Strasser, A Estrutura Normativa da Sociologia, Temas Conservadores e Emancipacionistas no Pensamento Social , Rio de Janei­ro, Zahar, 1978, 167-215. 7 Ver, nesse sentido, Robert Henry Srour, Modos de Produção: Elementos da Problemática, Rio de Janeiro, Graal, 1978, pp. 75-77. " Ver, nesse sentido, Peter Berger, Perspectivas sociológicas, uma visão huma­nística, Petrópolis, Vozes, 1983, pp . 106-136. Para uma relação entre a teoria dos papéis e a teoria das instituições sociais, ver Peter Berger e Brigitt Berger, ··O que é uma instituição social?" , in Marialice Mencarini Forachi e José de Souza Martins (compil.), Sociologia e Sociedade, Rio de Janeiro, LTC-Livros Técnicos e Científicos, 1983, pp. 193-199.

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nentes engrenam-se com um grau de harmonia e consistência para evitar que surja um sério conflito; e que tal conflito possa ser con­siderado como disfuncional para a manutenção do todo. A tendência para reputar a teoria funcionalista como conservadora se origina gran­demente de sua ênfase sobre a integração e ordem social e da analogia da sociedade como um organismo humano no qual a 'saúde' social é identificada com ordem, e 'doença', com conflito".9 Assim, o funcio­

nalismo, pautado na referência de uma integração social relativamente harmônica e com tendência a permanecer, representa um obstáculo epistemológico à real compreensão dos fatores coletivos de caráter antagôQico, como base dos movimentos socil;lis orientados para a trans­lormação da sociedade como um todo .. <:;om efeito, essa corrente so­ciológica não leva em conta o jogo dos interesses vitais das classes compreendidas como agentes coletivos, isto é, enquanto forças sociais e históricas em confronto objetivo para a apropriação e acumulação do sobreproduto de bens e serviços. Preocupado mais com a estabi­lidade e continuidade da ordem social e com os respectivos mecanis­mos de articulação ou recorrência padronizada da ação social, do que com as formas de transformação estrutural, o funcionalismo ques­tiona reiterádamente sobre os elementos ou aspectos que contribuam ou possam contribuir para a sobrevivência, reprodução, persistência e integração da sociedade. Dessa forma, enfocando as conseqüências que consolidam a solidariedade e coesão social, mantendo os limites fundamentais do sistema, o funcionalismo, ao contrário da matriz teórica da perspectiva dialética do conflito, não qualifica a prática social no sentido de apurar efetivamente o beneficiário social da re­

produção material da sociedade e as conseqüências conflitivas decor­rentes das forças sociais em jogo nesse processo. Não questiona a respeito de quem se aproveita de quem; quem produz e quem acumula o excedente; quem domina e explora e quem é subjugado e explo­rado; quem são os detentores dos meios de produção e quem são os fornecedores da força de trabalho.10 E, note-se, não estamos nos refe-

9 Cf. Alan Swingewood, op. cit., p. 220.

1o Ver, nesse sentido, Margaret A. Coulson e David S. Riddell, op. cit., pp. 55-79.

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rindo a questões secundárias ou adjetivas, mas às condições funda­mentais de reprodução e ampliação do patrimônio social produtivo e da vida material de toda a sociedade, bem como de sua essencial ope­ração transformadora da natureza, sem as quais ela mesma, com todos os seus membros integrantes, seguramente não poderá sobreviver. Por não enfrentar diretamente essas questões substantivas, o funcio­nalismo sociológico acaba negligenciando os conflitos e ocultando as contradições da estrutura social, em benefício da entronização da ordem social e da estabilidade institucional.U

Sob a perspectiva crítico-dialética da teoria do conflito e da mu­dança social, há a preocupação central de captar as relações entre as forças sociais em confronto - e não as relações meramente interpes­soais -, cujos efeitos podem resultar em conseqüências desestrutu­radoras da formação social como um todo. Dentro desta visão, as relações sociais de produção da vida material da sociedade, caracte­rizadas num determinado período de desenvolvimento histórico -relações entre patrícios e plebeus, senhores e escravos, nobres feudais e servos da gleba, capitalistas e proletários - e segundo um certo grau de avanço das forças produtivas correspondentes - produção rural primária, artesanal, manufatureira, industrial, automatizada, ci­bernética -, constituem o núcleo estrutural básico do sistema geral de relações sociaisP Com efeito, esse núcleo é concebido como ex­pressão de interesses objetivos, diferenciados ou antagônicos, encar­nados nas relações cooperativas ou conflitivas das classes sociais de uma determinada formação social; tais interesses se determinam, por­tanto, em razão das posições básicas ocupadas pelas classes no pro­cesso coletivo de produção, como detentoras e não-detentoras dos

11 Ver Hermann Strasser, op. cit., pp. 174-180. Ver também T.B. Bottomore, A Sociologia Como Crítica Social, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pp. 49-61. Ver Barry Smart, Sociologia, Fenomenologia e Análise Marxista: Uma Discussão Crítica da Teoria e da Prática de uma Ciência da Sociedade, Rio de Janeiro,

Zahar, 1978, pp. 15-6~.

12 "Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, rt::lações de produç5o que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças pro­dutivas !Jlateriais." Cf. Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, 2.• ed., São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 24.

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meios econômicos. 13 Assim, o todo social, no âmbito da sociedade de classes não se mostra como essencialmente harmonioso ou apenas in­tegrado por ações complementares; ele se apresenta como algo dila­cerado, fraturado, cheio de fissuras, conflitivo e rompido assimetrica­mente entre agentes coletivos dominantes e subalternos. É preciso, entretanto, sublinhar que tais relações de oposição se dão no âmbito de uma unidade, visto que essas partes internas do todo social se supõem e se excluem mutuamente, numa relação dialética que tende ao confronto e à transformação da estrutura social.

É preciso, neste ponto, chamar atenção para uma questão funda­mental. É a da relação entre o interesse privado e o interesse de classe. Os interesses dos atores individualmente considerados não exis­tem senão enquanto atravessados de alguma forma pelos interesses das respectivas classes; o interesse singular daqueles atores já é um

interesse socialmente determinado, visto que só pode ser satisfeito no

âmbito das condições estabelecidas pelas respectivas classes e com os

meios que estas oferecem. 14 É por essa razão que tal satisfação cor­responde também à reprodução daquelas condições e meios sociais. A particularidade do interesse dos agentes individuais é expressa e determinada; entretanto, seu conteúdo, sua forma e os meios de sua realização estão dados pela clivagem das condições sociais das res­pectivas ciasses. Isso quer dizer que o conteúdo da manifestação de um interesse específico, de um determinado indivíduo, é ao mesmo tempo e de certo modo a expressão das condições específicas de seu grupo social, embora quase sempre não tenha consciência disso. É con­veniente notar também, num breve parêntese, para que dúvidas não pairem, que a eventual expressão de um interesse que na sua forma aparente não coincide com a situação objetiva da posição do agente

13 "O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econom1ca da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social." Cf. Karl Marx, op. cit., p. 24.

14 "O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina.o seu ser; é o seu ser que, inversamente, determina a sua cons­ciência." Cf. Karl Mar;x, op. cit., p. 24.

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que o manifesta - por exemplo, o desejo de ascender na escala soCial ou a defesa . de valores não-correspondentes a sua posição social -não significa a eliminação daquela situação objetiva e sim a forma alienada que o indivíduo encontra para ultrapassar, a nível ideológico, sua condição de classe, revelando e ao mesmo tempo ocultando o interesse objetivamente determinado por essa condição.

Nesse desdobramento . percebe-se claramen~e o contra~te com o quadro de referência funcionalista. Enquanto neste os sujeitos sociais (agentes individuais) dividem . entre si funções necessárias e comple­mentares (papéis), tendo por base interesses da mesma natureza cal­cados e!m valores comuns por eles interiorizados, suscitando um sen­timento de solidariedade, na teoria do conflito, os agentes individuais, integrantes de classes sociais diferenciadas ou antagônicas, são quali­ficados e têm seus interesses potenciados pelas posições que ocupam no processo produtivo social, em face dos meios de produção. Segundo a teoria crítico-dialética, as classes disputam continuamente a apro­priação dos produtos econômicos, do poder político e da expressão ideológica, visto que são atravessadas por interesses mutuamente irre­dutíveis, a despeito da imposição hegemônica de valores, crenças e normas da classe dominante. 15 Por essa razão, enquanto na perspec­tiva dos funcionalistas a totalidade so~ial se unifica por homogenei­zação e solidariedade dos elementos constituintes, apontando éomo desfuncional, patológico ou anômico todo momento de crise ou desvio contestador, na matriz da teoria dialética do conflito, o todo se torna coeso pela unidade dos contrários, figurando a crise como elemento constitutivo da estrutura social e determinante de sua própria trans­formação. Naquela, suólinham-se os processos de controle social que assegurem~ mediante práticas recorrentes, socialização e sanções, a conformidade dos atores sociais para a garantia do funcionamento e operacionalidade do sistema, admitindo-se a mudança desde que rea­firme a estrutura; nesta, ao contrário, o destaque é dado aos processos e práticas que exprimem o movimento dos agentes coletivos para a transformação política da estrutura social, atendendo-se menos à re­produção de suas relações do que às ações históricas ou práticas

lõ Ver Henri Lefebvre, "Estrutu-ra Social: a reprodução das relações sociais", in Sociologia e Sociedade, op. cit., pp. 219-252. Ver, também, Dan~el de Souza, Introdução à Sociologia, Lisboa, Horizonte, 1977, pp. 99-151.

. )

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revolucionárias tendentes à modificação qualitativa das formações 5ociais.16

Entretanto, no sentido de melhor caracterizar a natureza da es­trutura social e tirar do paralelo acima traçado o melhor partido para a compreensão do problema, cumpre-nos apontar e Clarificar o núcleo específico diferenciador do conceito "relação social" sob o ângulo estrutural, no âmbito de análise da teoria dialética dos conflitos, sem, contudo, deixar de abordar alguns aspectos da teoria da ação.

Além da perspectiva funcionalista, já examinada, podemos e de­vemos fazer, ainda que sumária, uma consideração a respeito do assunto no quadro de referência da teoria da ação, propugnada por Max WeberP Para este sociólogo, a análise da relação social implica necessariamente o exame do elemento compreensivo da "ação_" e da " interação". O estudo da ação leva-nos a destacar sua característica fundamental que é a significabilidade. Segundo Weber, a ação somen­te se determina como comportamento humano à medida que o ator lhe atribui um significado subjetivo. Portanto, Weber baseia o con­ceito de interação, implícito em todas as relações sociais, em critérios referidos a aspectos subjetivos, ou seja, internos aos atores sociais. A ação se torna social em função da significação subjetiva que os atores sociais lhe atribuem em e pelas suas relações recíprocas. Com efeito, social é a ação que se orienta pelas ações de outros atores, apresentando-se como pólo de uma interação social. Por relação social, Weber entende como "uma conduta plural - de várias pessoas -

16 Ver, nesse sentido, Robert Henry Srour, op: cit., pp . . 80-85. Ver, ainda, sob o ângulo da ideologia e da práxis crítica, Henri Lefebvre, Sociologia de Marx, São Paulo, Forense, 1968, pp. 42-63. t7 Para uma compreensão da teoria da ação de Weber, consulte-se Max Weber, Economía y Sociedad, Esbozo de Sociología Comprensiva, I, México, Fondo de Cultura Económica, 1977, pp. 5-45. Ver, também, Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, São Paulo, Martins Fontes, Brasília, Editora da Uni­versidade de Brasília, 1982, pp. 461-540. Ver, nesse sentido, Jorge Sanchez Azcona, Introducción a la Sociologia de Max Weber, México, Porrua, 1976, pp. 29-85; Humberto Quiroga Lavié, lntroducción a ld Teoría Social de Max Weber, Buenos Aires, Pannedille, 1970; Julien Freund, Sociologie de Max Weber , Paris, PUF, 1966; Anthony Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, Lisboa, Presença, 1976, pp. 203-393; Gabriel Cohn, Crítica e Resignação, Fundamentos da Sociologia de Max Weber, São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.

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que, pelo sentido que ence!ra, se apresente como reciprocamente re­ferida, e se oriente por essa reciprocidade. A relação social consiste, portanto, plena e exclusivamente, na probabilidade de que se atuará socialmente de uma forma (com sentido) indicável".18 Por conseqüên­cia, na relação social é preciso que o sujeito oriente sua conduta (ação) com base nas expectativas que outro ou outros têm a seu respeito, melhor dito, com base na expectativa sobre aquelas expectativas de outro ou outros atores sociais. .Evidentemente, isso só será possível quando todos os atores sociais partilham de um mesmo universo de significações, de modo a possibilitar a compreensão mútua das expec­tativas e a correspondência ativa (ou não-correspondência}.19

É preciso ainda notar que para W eber a orientação e recipro­cidade da referência entre os atores aponta para a regularidade que qualifica a relação social como uma trama de ações sociais recipro­camente referidas e padronizadas. Vê-se por essa forma que, em para­lelo com a postura funcionalista, na teoria da ação o foco é também e principalmente o enquadramento do comportamento de um sujeito da ação, ou seja, da ação de um ator individual ou de uma coletividade de atores. Mesmo na formulação oposta do objetivismo de Durkheim, esse foco se mantém, visto que, para ele, os fatos sociais se expressam como constrangimentos exercidos, de fora, sobre a ação dos atores; esta ação é social na medida em que corresponde ou reproduz as maneiras coletivas de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos e dotados de um poder de coerção sobre eles. Neste caso, as relações sociais refletiriam maneiras institucionalizadas ·e recíprocas de con­duta dos atores sociais.20

Feitas estas considerações, resta-nos destacar o caráter específico da relação social sob o ângulo estrutural, propugnado pela teoria dia­lética do conflito. Já verificamos que, do ponto de vista das outras correntes sociológicas, respeitados os diferentes matizes que a questão comporta, a estrutura social deflui, em última instância, dos padrões de conduta dos atores individuais em suas relações recíprocas, ou -. seja, das relações interindividuais demarcadas por valores internaliza-

1 8 Cf. Max Weber, op. cit., p. 21. 19 Ver, nesse sentido, Guy Rocher, Sociologia Geral, 1, 3." ed., Lisboa, Pre­sença, 1977, pp. 19-67. 20 Ver Robert Henry Srour, op. cit., pp. 114-117.

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dos e por papéis cujo desempenho em contextos mais complexos podem dar origem a instituições sociais. As estruturas sociais, portanto, são pluralizadas e se definem basicamente em função de recorrências cal­cadas em valores e símbolos compartilhados pelos membros de uma comunidade, sem se destacar a importância constitutiva dos meios materiais ou dos objetos específicos por intermédio dos_ quais certas relações sociais podem ou devem se estabelecer. Neste caso, as estru­Luras sociais transparecem ou podem estar referidas diretamente a quaisquer sistemas de relações interpessoais, sejam ou não mediados por "coisas" . Isto quer dizer em última análise que os meios ou os instrumentos de intervenção na natureza ou na própria sociedade, dos quais seus membros obtêm a própria sobrevivência, não são conside­rados como fundamentais para a caracterização da estrutura social.21

Sob o ângulo da teoria dialética do conflito, essa forma de abordar o problema da estrutura social leva à indiferenciação das práticas so­ciais em favor do ocultamento das verdadeiras relações estruturais e do conflito entre os agentes coletivos.

Há, de certo modo, uma explicação para esse grande desvio teó­rico. É que os instrumentos de trabalho, as matérias-primas e os meios de subsistência para a reprodução da força de trabalho são considerados como "coisas externas" ao processo social, como se fos­sem "objetos naturais" existentes em si e por si mesmos; é o fetiche das relações sociais, representado por produtos "externos" e indepen­dentes da ação dos homens; figuram, esses meios e objytos, como algo alheio às próprias relações sociais.2 2 Por isso são tratados de maneira

2 1 Contrapõe-se substancialmente a essa linha o pensamento de Marx: "Os homens podem distinguir-se dos animais pela consciência, pela religião, ou por qualquer coisa que se prefira. Porém, o homem mesmo se diferencia dos animais a partir do momento em que começa a produzir seus meios de subsistência (vida) , passo este que se acha condicionado por sua constituição física. Ao produzir seus meios de subsistência, o homem indiretamente produz de fato a sua vida material ( ... ). Conforme os indivíduos se manifestam na vida, assim é que são. O que eles são, portanto, coincide com a sua produção, tanto com o que produzem quanto com o modo como produzem. O que os indivíduos são, por isso, depende das respectivas condições materiais de produção· . Cf. Karl Marx, La ldeología Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 19-20. 22 Para o exame desse fetiche, sob o ângulo da consciência, consulte-se Georg Lukács, História e Consciência de Classe, Porto, Escorpião, 1974, pp. 97-126.

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secundária pela sociologia ortodoxa. Entretanto, mediante uma análise mais atenta e crítica, verifica-se que tais "coisas", instrumentos e meios de subsistência, são a expressão cristalizada de relações sociais, ou seja, são o próprio trabalho social congelado em produtos que deverão ser apropriados, distribuídos, consumidos e acumulados para o reenvio de novas ações produtivas destinadas a manter e ampliar o processo de reprodução sociaP3 Por esse motivo, as relações que os indivíduos ou grupos de indivíduos guardam entre si, em face desses instrumentos e meios de subsistência social, vão se caracterizar como essenciais para a determinação da estrutura social?-4

Não se trata aqui de sublinhar apenas as relações técnicas de produção, através das quais se exprimem as formas de controle ou domínio que os agentes de produção exercem sobre os meios de tra­balho em particular e sobre o processo de trabalho em geral. Estas relações estão vinculadas às características técnicas do procl!sso de trabalho, tais como a divisão técnica do trabalho, tipo de cooperação, natureza dos meios de trabalho, etc. Sua dinâmica provoca profundas alter~ções ·nas relações entre os homens, como, por exemplo, o fato

23 Ver, nesse sentido, Henri Lefebvre, • A 'práxis': a relação social como processo", in Sociologia e Sociedade, op. cit., pp. 175-190.

24 Ê muito lúcida, a nosso ver, a concepção de estrutura social apresentada por Srour, na qual nos apoiamos para o desenvolvimento dessa temática: ·A estrutura social apreende relações sociais recorrentes (reproduzidas). Mas se reproduzir é repetir, conservar, também é reinventar e renovar. A reprodução é fundamentalmente o conceito da continuidade histórica, mas é a um só tempo a negação da fixidez: pois o processo de produção, que é apropriado cognitiva­mente na sua reiteração, é sempre um processo novo, com a marca da singu­laridade. O conceito de estrutura é inseparável da conceptualização da contra­dição que anima os processos concretos. Enquanto não for resolvida, a contra­dição se reproduz, gira sobre si mesma, mas sua reprodução é também um amadurecimento, uma ampliação e agudização, aponta para a necessidad~

interna da dinâmica (exemplos das "formas de capitalismo" concorrencial, mo­nopolista, monopolista de Estado) e da superação (exemplo de uma mudança de modo de produção) ( ... ). A concepção dialética de estrutura social faz justiça aos aspectos de regularidade e reprodução da vida social, sem negligen­ciar o fluxo dos eventos que resultam dos embates entre agentes coletivos que, ao inesmo tempo, sustentam e recriam, produzem e rompem a configur~ção tran­sitória das relações sociais que os articula". Cf. Robert Henry Srour, op. cit., pp. 100-102.

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de a introdução de meios tecnológicos sofisticados no trabalho agrí­cola (tratores, segadeiras, eletrificação, etc.) conduzir o deslocamento da força de trabalho para outros setores econômicos e, se incorporados de modo inorgânico, poder levar ao desempenho milhares de trabalha­dores, provocando tensões sociais regionais ou até mesmo nacionais. Nessa esfera das relações técnicas de produção ainda se pode apontar as grandes transformações que o caráter cooperativo no processo . de trabalho, decorrente de certo modo de produzir as coisas (com a in­trodução da máquina industrial), pode imprimir nas relações entre os sujeitos sociais. Com efeito, o processo baseado na cooperação com­plexa em grande escala implica a perda, por parte do trabalhador individual, do controle ou domínio do processo de trabalho, dando margem ao aparecimento do "trabalhador coletivo", que exige a fun­ção de um grupo de trabalhadores (indiretos) para cumprir as ope­rações de direção e controle do processo de produção?15 Esse fato demarca a origem e necessidade da hierarquia e burocracia no pro­cesso produtivo de caráter capitalista?il

Há necessidade t_ambém de se colocar em relevo, e de forma especial, as relações sociais de produção, visto que o processo técnico de produção não existe nunca à margem das condições sociais que o -tornam possível. Uma vez que toda produção social é historicamente determinada e ao nosso propósito interessa a abordagem do problema no âmbito do modo capitalista de produção, consideramos especial­mente as relações sociais neste contexto, onde objetivamente se cons­tata a existência de indivíduos que são proprietários ou controladores dos meios de produção e da atividade econômica em geral e indivíduos que devem ou precisam trabalhar para aqueles, mediante o recebi-

25 Ver, nes.se sentido, Marta Har.necker, Los Conceptos Elementales dei Mate­rialismo ,Histórico, Buenos Aires, Siglo XXI, 1974, pp. 26-30. Ver, também, Jean Lojkine, Le Marxisme, l'P.tat et la Puestion Urbaine, Paris, PUF, 1977, pp. 121-146. 2·6 Ver Fernando C. Prestes Motta e Luiz C. Bresser Pereira, Introdução à Organização Burocrática, 2.• ed., São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 9-55. Ver, também, Manuel Garcia-Pelayo, Burocracia y Tecnocracia, Madri, Alianza Uni­versidad, 1974, 15-32. Ver Fernando C. Prestes Motta, O que é Burocracia, São Paulo, Brasiliense, 1981. Para um exame mais aprofundado do pensamento burocrático, especialmente relacionado com a burocracia estatal, consulte-se Alejandro Nieto Garcia, La Burocracia, Madri, Instituto de Estudios Adminis­tr§tivos·, 1976.

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mento de salários contratualmente estabelecidos. Assim, como os meios de produção - que não deixam de ser relações sociais cristalizadas e encarnadas em certos objetos - perfazem as condições materiais imprescindíveis a todo processo social de produção, visto não ser pos­sível produzir sem esses meios, os homens que não os possuem acabam por serem obrigados a vender sua força de trabalho para aqueles que os detém e os controlam?7 Instaura-se aqui um tipo fundamental de relação social entre os agentes coletivos: uma relação que pode ser considerada estrutural, visto que, sendo de caráter coletivo, é mediada por instrumentos e meios indispensáveis à existência da sociedade. B preciso consignar, portanto, que as relações técnicas de produção - ou relações dos homens com a natureza - e as relações sociais de p~odução - relações dos homens entre si através dos meios de produção - tornam-se uma unidade complexa de ação coletiva, onde se destaca a importância da mediação das coisas para a formação de uma estrutura social. Por essa linha, observamos que, no intercâmbio permanente da sociedade com a natureza, as condições materiais do processo produtivo (homem-meios de produção-natureza) se entrela­çam numa unidade dialética com as condições sociais desse ·mesmo processo, onde agora comparecem os vínculos sociais (propriedade, controle) com os meios de produção (homem-meios de produção­homem)/(Natureza). "Esta precisão é capital, já que as relações so­ciais de produção não podem ser, sob nenhum conceito, redutíveis a simples relações entre os homens, a relações que poriam em discussão só aos homens e que, por conseguinte, apenas tomariam em conta as variações de uma matriz universal, a intersubjetividade (reconheci­mento, prestígio, luta, dominação e servidão, etc.)." 28 As relações de produção são relações sociais não enquanto consideram apenas

n A despeito das restrições que se pode opor à perspectiva do marxismo estru­turalista, muito também se pode aproveitar da leitura de ~tie,nne Balibar, "Sobre los conceptos fundamentales dei materialismo histórico, I: De la periodización a los modos de producción; I!: Los elementos de la estructura y su historia", in Para leer • El Capital", México, Siglo XXI, 1978, pp. 228-276. No mesmo sentido, ver Eduardo ·· Fioravante, "Modo de Produção, Formação Social e Processo de Trabalho", in Philomena Gebran (coord.), Conceito de Modo de Produção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 31-45. 2 8 Cf. Louis Althusser, • El objeto de 'El Capital' ", in Para leer El Capital, México, Siglo XXT, 1978, p. 188.

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aos homens nas suas conexões intersubjetivas, mas exatamente porque relevam, em determinadas combinações, a unidade entre os agentes do processo produtivo e as condições materiais desse mesmo processo. Tais combinações dizem respeito à distribuição dos produtos, dos meios de produção e dos agentes sociais, segundo os diferentes tipos de produção. A respeito da distribuição, Marx esclarece que "na sua concepção mais banal, ela se apresenta como distribuição dos produ­tos, e assim como que afastada da produção e a bem dizer indepen­dente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é, primeiro, distribuição dos instrumentos de produção e, segundo, o que é outra determinação da mesma relação, distribuição dos mem­bros da sociedade pelos diferentes tipos de produção (subordinação dos indivíduos a relações de produção determinadas). A distribuição dos produtos é manifestamente o resultado desta distribuição que, incluída no próprio processo de produção, lhe determina a estrutura. Considerar · a produção sem ter em conta esta distribuição, nela in­cluída, é sem dúvida uma abstração vazia de sentido, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição, que cons­titui na origem um momento (fator) da produção ( ... ). A produção tem necessariamente seu ponto de partida em uma certa distribuição dos instrumentos de produção".29 B assim que se pode compreender que "nas relações de produção estão implicadas necessariamente as relações entre os homens e as coisas, de tal forma que as relações entre os homens estão ali definidas por relações precisas existentes entre os homens e os elementos materiais do processo de produção".30

Na exposição acima torna-se evidente que as relações sociais de produção não se reduzem - embora possam implicá-las - às rela­ções intersubjetivas dos agentes, uma vez que estes dependem subs­tancialmente das funções e posições objetivas ocupadas no processo de produção. Essas relações se configuram comO estruturas, segundo nosso enfoque, porque não são, de modo algum, relações entre atores sociais apenas (homem-homem), ou entre homens e coisas, mas rela­ções entre homens que possam necessariamente pela mediação das

29 Cf. Karl Marx, Introdução à Crítica da Economia Política, in Contribuição à Crítica da Economia Política, 2.• ed., op. cit. , p. 214-215 (grifo nosso). ao Cf. Louis Althusser, op. cit., p. 189. Ver. nesse sentido. Etienne Balibar, op. cit., p. 240.

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coisas, dos meios e recursos produtivos da sociedade.~n B por isso que a forma de relação dos agentes coletivos com os meios e recursos produtivos determina o tipo de relação cooperativa ou conflitiva dos agentes sociais entre si.32 Com efeito, essas relações, nci plano econô­mico, se estruturam entre agentes da produção, entre homens que têm funções bem-determinadas e objetivas na produção dos bens materiais (mercadorias), funções essas que dependem da forma como se relacio­nam com os meios de produção, isto é, se são ou não detentores ou controladores desses meios. Tais relações entre os homens são estru­turais exatamente porque dão existência a classes sociais e as vinculam com base em formas historicamente determinadas de propriedade e controle dos recursos e atividade econômicas. Essas relações se esta­belecem independentemente da vontade singular dos homens e, por serem sociais, configuram o modo de ser dos indivíduos nelas impli­cados. Assim, ser escravo, senhor, nobre, vassalo, capitalista ou pro­letário são características sociais, visto que decorrem das relações entre os homens mediadas pelos meios de produção, em determinados perío­dos históricos.3'3 Nenhum ser humano como tal é escravo ou senhor, nobre ou vassalo, capitalista ou proletário; eles se caracterizam desta ou daquela forma na sociedade historicamente determinada e através dela.34 ·

Deve-se ter em mente, portanto, que a realidade social, em sua corrente subterrânea, não se estrutura mediante relações interpessoais singulares, as quais aparecem particularizadas somente ao nível da superfície. No âmago da estrutura social descobrem-se práticas cole­tivas instrumentadas e mediadas pelos meios é recursos de produção.

3 1 Ver, nesse sentido, Robert Henry Srour, op. cit. , p . . 118. 3 2 Ver Marta Harnecker, op. cit. , pp. 33-37. ·33 Ver Ralph Miliband, Marxismo e Política, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 22-23. ~H "A sociedade não é um mero agregado de indivíduos: é a soma das relações em que esses indivíduos se colocam uns perante os outros. É como se alguém viesse a dizer que, do ponto de vista da sociedade, não existem cidadãos e escravos; todos são homens. Na verdade, isso é o que eles são fora da sociedade. Ser escravo ou cidadão consiste numa relação, socialmente determinada, entre um indivíduo 'A' e um indivíduo 'B'. O indivíduo 'A', como tal, não é um escravo: só é escravo na sociedade e através dela." Cf. K. Marx, Grundrisse, Londres, Pelican, 1973, pp. 265-266.

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B preciso, entretanto, deixar bem claro que a posição crítico-dialética não exclui, nem pode excluir de suas análises, as relações de caráter interindividual em que prevalecem os elementos subjetivos e que até certo ponto prescindem ou ·podem prescindir da mediação daqueles meios materiais. As . relações de companheirismo, de amizade, de so­lidariedade, as relações amorosas, pedagógicas, religiosas, familiares, etc. são a prova cabal da necessidade de: ~e incluir no universo das cogitações sociológicas o indispensável tratamento das relações inter­pessoais. Contudo, também se deve pôr em evidência que o mero exame das relações não-coletivas, entre agentes individuais, com ou sem a interposição dos meios de produção, ou de quaisquer outros meios, não pode, por si só, oferecer os critérios para desvendar os aspectos essenciais e estruturadores das formações sociais. Isto quer dizer que se deve considerar a subjetividade dos agentes como elemen­to necessário ·da composição social, com a ressalva, entretanto, de não se reduzir a realidade s~cial à subjetividade dos agentes~

Essa posição teórica considera que as relações intersubjetivas são sempre atravessadas e determinadas em maior ou menor grau pelas relações estruturais. As relações amorosas ou familiares, por exemplo, têm suas feições e características essenciais não raro profundamente afetadas pelas relações estruturais de classe; os membros de uma fa­mílià burguesa não têm os mesmos padrões de comportamento, valo­res e crenças que os de uma família proletária, ou camponesa ou pe­queno-burguesa; estas também se diferenciam enormemente entre si.35

No curso destas questões, é preciso não confundir as relações interpessoais mediadas por "coisas" com as relações estruturais que, fundadas na mediação material, ocorrem somente entre agentes cole­tivos (classes sociais). B o caso, por exemplo, da relação singular e interpessoal entre o detentor do capital financeiro e o empresário industrial para uma operação de crédito; se não houver o objeto ma­terial da relação (dinheiro), a própria relação . desaparece; contudo, esta relação ainda não se configura como estrutural para alicerçar uma formação social, embora dela faça parte, exatamente por não vincular agentes coletivos segundo a lógica específica da totalidade.

t:5 Ver Marilena Chaui, O que é Ideologia, São P~ulo, Brasiliense, 1980, pp. 86-90.

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Ser capitalista, por exemplo, "é ter na produção um status social e não apenas meramente pessoal. O capital é um produto coletivo, e só pela ação coesa de muitas parcelas da sociedade ou, em última aná­lise, só pelos esforços conjugados de todos os membros da sociedade, pode existir e ser movimentado. O capital é uma força social, por­tanto, e não pessoa1".36 Por outro lado, há ainda certas relações entre grupos que, embora não sejatn de ordem especificamente econômica e não sejam mediadas materialmente, são em maior ou menor grau afetadas pelas relações estruturais de base. Por isso os conflitos reli­giosos, raciais, nacionais, etc. não se reduzem, nem podem se reduzir, aos conflitos de classes, mas destes também não podem ser dissocia­dos sob pena de se perderem os critérios de compreensão estrutural dos movimentos coletivos e da formação social em que estão inseridos.

É importante notar, assim, que os elementos básicos enunciados, caracterizadores da estruturalidade de uma relação, ou seja, os (a)

agrupamentos sociais (involuntários) que se formam com fundamento na (b) mediação de recursos materiais devem estar sempre conjugados, sendo que a ausência de qualquer deles dilui a referida estrutura­lidade. Com efeito, numa relação autenticamente estrutural, a elimi­nação da mediação material faz desaparecer a relação mesma; a relação mediada por coisas, da qual não resulte a formação de classes sociais, não pode ser qualificada como estrutural por ser insuficiente à constituição da organização básica da sociedade. Por essa razão é que também os regimes de exploração do homem pelo homem não podem ser suprimidos apenas mediante o exercício de funções inter­subjetivas, calcadas apenas em movimentos solidaristas, ou de caráter ético, sem a transformação efetiva das relações estruturais que com­põem as bases sociais.37 Isso porque a sociedade não é composta por indivíduos discretos e isoláveis pela abstração, mas exprime o con­junto das relações e condições materiais nas quais se encontram esses indivíduos, uns em relação aos outros e em função das situações es­pecíficas e objetivas em que es acham perante os meios de produção

a6 Cf. K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, 3: ed., São Paulo, Global, 1983, p. 30. 37 Para um exame a respeito da práxis revolucionária, ver Karl Korsch, "~1

Punto de Vista de la Concepción Materialista de la Historia", in Marxismo y Filosofía, Barcelona, Ariel, 1978, pp. 145-171.

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e reprodução da v\da social. Aí está, portanto, a necessidade de se distinguir analiticamente as relações sociais de estrutura, fundadas na mediação de bens materiais (meios e recursos de produção), das rela­ções intersubjetivas recorrentes, regidas por padrões normativos in­ternalizados e resultantes da ação direta e recíproca do homem sobre o homem.38

Continuando nossas considerações, devemos aportar a uma ques­tão de importância extremamente significativa para a compreensão das relações entre a sociedade civil e o Estado, buscando delinear as bases da realidade deste em face de sua manifestação aparente, isto é, enquanto objetivação explícita de suas conexões estruturais subja­centes à sociedade capitalista da qual é expressão e garantia. Quere­mos nos referir não apenas ao processo produtivo das condições materiais da sociedade, mas também e principalmente ao processo reprodutivo das condições sociais dentro das quais a produção é pos­~ível. Já salientamos que no âmbito do modo capitalista de produção as relações sociais estruturadoras figuram no marco de um sistema de contradições, onde os processos conflitivos ou antagônicos resultam de permanentes relações assimétricas no que respeita à posição ocupa­da pelos agentes coletivos em face dos meios de produção. Essas re­lações são essencialmente assimétricas e contraditórias, visto que deri­vam da inequação entre possuidores e não-possuidores dos meios de produção. Isso gera, com efeito, privilégios para um dos pólos da relação, por possibilitar um processo de apropriação e acumulação crescente do excedente econômico em detrimento do outro pólo, que se vê obrigado a fornecer a energia de trabalho, destinada à consoli­dação e ampliação daqueles meios. Por isso, tais relações revelam inequivocamente um caráter de dominação, exigindo, portanto, instru­mentos, mecanismos e expedientes indispensáveis ao prosseguimento do processo de reprodução dessas mesmas relações. Vemo-nos de fren­te a um processo de produção marcado por relações sociais não­cooperativas. Desse modo, a continuidade da produção material da sociedade e prosseguimento da exploração apontada dependem da re­produção das condições sociais dentro das quais opera o processo de

38 Ver, nesse sentido, Oskar Lange, Moderna Economia Política, Problemas Gerais, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1963, pp. 20, 34, 3,5 e 41.

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produção capitalista. Nesse sentido, ao mesmo tempo que este processo produz mercadorias, reproduz as relações capitalil tas de produção, ou seja, reproduz o capital e sua valorização cre~cente (acumulação) e a força de trabalho indispensável a essa reprodução e valorização. Entretanto, se esta reprodução, sob o · ângulo do desenvolvimento capitalista, está sujeita a leis internas e específicas da estrutura eco­nômica - extração de mais valia, acumulação, concentração e cen­tralização do capital, reprodução ampliada, desenvolvimento desigual, queda tendencial da taxa de lucro, crises periódicas, etc. -, a condi­ção social dessa reprodução não pode de modo algum prescindir de elementos extra-econômicos para garantir sua continuidade e amplia­ção, mormente por se tratar de uma relação assimétrica e contraditória. Isto quer dizer que se este processo se dá dentro de relações sociais historicamente determinadas, a constituição dessas relações compreen­de também elementos ou fatores não especificamente econômicos, visto que elas não poderiam se manter sem o consentimento, explícito ou implícito, dos membros da formação social, no âmbito das práti­cas ideológicas, e n.a ausência de suas específicas instituições, no âmbito das práticas jurídico-políticas.39 Obviamente, esses elementos e fatores intervenientes naquele processo são na sua essência apenas distinguíveis analiticamente; são possuidores de uma autonomia rela­

tiva e só se apresentam aparentemente separados quando examinados na sua expressão objetivada e fenomênica, no contexto de uma razão meramente instrumental. Por exemplo, são indispensáveis à reprodu­

ção do .sistema capitalista os fatores .e elementos relacionados com a nação, a cidadania, a ordem social, as formas jurídicas da proprie­dade, as liberdades garantidas, o contrato de trabalho, a presença das Forças Armadas, os tribunais, os partidos políticos, etc.40 Esses ele­mentos e fatores, que à primeira vista parecem atomizados na sua expressão singular e manifesta, passam a ter profunda unidade de conexão significativa no interior de uma totalidade estrutural. Eles

a!J Para uma análise da dimensão política, ver Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1977, pp. 35-54. Para uma análise da dimensão ideológica, na mesma linha de abordagem, ver, do mesmo autor, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1980, pp. 13-54. 40 Ver Marta Harnecker, op. cit., 143-148.

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traduzem relações de poder que serão analisadas com maior atenção mais adiante. \

Aqui, entretanto,1.abre-se uma questão importante para a com­preensão do assunto em pauta. Quando identificamos as relações es­truturais com aquelas constituintes de agrupamentos sociais e media­das por objetos materiais, destacamos de modo especial as que se abrigam no âmbito da vida econômica, uma vez que elas são consig­nadas como práticas sociais produtivas transformadoras do mundo natural, mediante as quais este mundo transparece plasmado na vida social e se tonstitui como condição fundamental da existência cole­tiva. Entretanto, em razão do fato de · que essas relações de produção são necessariamente atravessadas pelas condições sociais que dessa forma as tornam possíveis e reproduzíveis - especialmente porque são forjadas continuamente no âmago de uma dinâmica contraditória e conflitiva · -, é preciso ressaltar a existência de relações estruturais e ordem extra-econômica que, a par das relações de produção, das quais são analiticamente distinguíveis, também exercem um papel . es­truturador para a manutenção, garantia e ampliação do sistema capi­talista. Essas relações, que, ; ·na linguagem marxista assumem caráter superestrutura!, não ·são relações sociais iritersubjetivas, ou seja, di­retas e recíprocas entre indivíduos e não-mediadas por objetos mate­riais. Para expressar seu caráter estrutural, tais relações devem ser intermediadas por elementos não apenas subjetivos ou simbólicos (sen­tido da ação), mas também expressos por formas específicas de sustentação material, seja no plano político, seja no plano ideológico. Isso significa que as próprias relações estruturais econômicas têm, como condição de sua existência, o amparo de relações jurídico-polí­ticas e cultural-ideológicas relativamente autônomas, cuja abordagem mais profunda e ampla realizaremos depois . Estas relações não são interpessoais e as práticas correspondentes exigem condições materiais específicas para serem exercidas; eis porque são estruturais.41

41 A esse respeito, é esclarecedor o pensamento de Ansart quando afirma que "o papel, ou influência, de uma mensagem numa situação histórica não pode ser repensado isoladamente, abstração feita dos agentes que o expressam, dos meios simbólicos e técnicos que o utilizam, da freqüência das emissões, da organização da propaganda, do contexto cultural, social e econômico, das atitudes e da receptividade dos ouvintes. O erro intelectualista, que consiste

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Assim, a questão fundamental é posta no sep'tido de não assina­lar o caráter de mera inters. ubjetividade nas relaj ões entre os agentes coletivos empenhados no processo produtivo; rpelhor dizendo, as re­lações entre classe dominante e classes subalternas não são simples reações recíprocas entre indivíduos, recorrentes e guiadas por padrões normativos previamente internalizados. 42 Elas pressupõem estrutura­l idade a nível econômico e extra-econômico, a um só tempo, compreen­dida no interior da processualidade histórica. Isso significa que, a par da mediação dos meios de produção (máquinas, fábricas, matérias­primas, instrumentos, aparelhos, veículos, edifícios, terras, produtos energéticos, força de trabalho, divisão técnica e social do trabalho, procedimentos, rotinas, etc.), as relações sociais de caráter estrutural são igualmente fundadas na mediação dos aparatos de violência legi­timada, caracterizados pelos instrumentos e instituições especializados para o exercício legal da coação (material bélico, fortificações e ins­talações militares, aviões e vasos de guerra, naves e instrumentos

aqui em isolar a linguagem de todas as suas condições de produção e de recepção, surpreenderia ainda mais se fosse cometido em outras ciências: seria o erro do economista que buscasse teorizar a atividade econômica limitando-se a considerar as mercadorias produzidas sem levar em conta as condições de produção, os meios de circulação, ou o consumo e, em caso algum, a unidade de todo esse processo" . C f . Pierre Ansart, Ideologias, Conflitos e Poder, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 15. Essa mesma crítica feita por Ansart pode-se aplicar ao campo do Direito, em relação ao intelectualismo de Kelsen, o qual não considera como fazendo parte do âmbito das preocupações do jurista enquanto tal as condições reais da produção e aplicação das normas jurídicas. 42 Nesse sentido e relevando o caráter histórico dos movimentos de classes sociais, sem olvidar as clivagens dos planos organizacionais e institucionais da sociedade, se pronuncia Touraine: "As condutas de classe são aquelas que, atravessando os níveis de organização social e das instituições, colocam os problemas da historicidade. As condutas de classe são os movimentos sociais; a formação de um movimento social impõe uma análise em termos de classes ( . .. ). Um movimento social é uma disposição a uma ação coletiva orientada para o controle ou transformação do sistema de ação histórica. Domina a historicidade. Não compromete o lugar de um indivíduo ou de uma categoria na organização social, nem mesmo sua influência na elaboração das decisões que o afetam; ataca diretamente o modelo de desenvolvimento da sociedade e do poder". Cf. Alain Touraine, "As Classes Sociais" , in Raúl Benítez Zenteno (coord.), As Classes Sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 27.

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espactats para fins militares, forças policiais, Forças Armadas, siste­mas de informação e contra-informação, burocracia militar, sistemas de segurança, etc.), e na mediação dos aparelhos de inculcação, di­fusão e domínio ideológico (meios materiais e procedimentais de comunicação de massa, tais como televisão, rádio, cinemas, teatros; propaganda e publicações, como livros, revistas, jornais, cartazes; centros de socialização e formação cultural e científica, como as es­colas, bibliotecas, museus, galerias de arte, centros de instrução pro­fissional, universidades, laboratórios, centros de pesquisas; aparatos para lazer e diversão pública, como clubes, associações recreativas, estádios, áreas livres de lazer, etc.). Essas relações também são media­das, a nível jurídico, por meios procedimentais específicos e instru­mentos eficazes representados por aparelhos de criação normativa básica (Assembléias e Câmaras Legislativas), de fiscalização, controle e segurança da ação legal (Ministério Público, cartórios, registros pú­blicos, etc.), de interpretação, aplicação e execução oficial do Direito (aparelhos do Judiciário e organizações auxiliares, como tribunais , delegacias, cárceres, Força Pública, etc.), e de suporte dos símbolos e significações jurídicas (códigos, diários oficiais, aparatos solenes, emblemas, publicações jurisprudenciais, peças processuais, placas pú­blicas, anúncios oficiais, etc.).43

B preciso igualmente consignar um tipo de relação estrutural que vem assumindo um significado cada vez mais destacado na me­dida em que fortalece, diversifica e amplia a intervenção institucio­nalizada do Estado na esfera da economia e da sociedade em geral. As relações desse tipo constituem o condicionamento do contexto social e econômico global da vida coletiva, propiciando as bases ge­rais que permitem a reprodução do sistema de classes, a apropriação e acumulação do excedente econômico e o encaminhamento e solução

43 Nesse s.entido esclarece Srour, a nosso ver com propriedade, as relações sociais definidas como estruturais: " . . . podemos pensar num dispositivo que não se resume às relações econômicas, mas abrange também as relações políticas e as relações culturais, todas mediadas por meios materiais precisos, e fazendo parte de processos autônomos e específicos. Este dispositivo, além do mais, pode perfeitamente dar conta das relações que definimos como interindividuais, entendendo-as como subordinadas e formando uma combinação peculiar na unidade complexa, ou sistema articulado de relações, que é uma formação social concreta." Cf. Robert H . Srour, op. cit., p . 120-121.

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de certas necessidades gerais da sociedade (eduéação, saúde, sanea­mento básico, habitação, transporte, comunicação, defesa ambiental, preservação dos recursos naturais, etc.). Essas relações estruturais têm por fundamento a mf!diação administrativa do Estado, através de ór­gãos, entidades, organizações burocráticas, instituições, instrumentos e. obras específicas (estrutura e procedimentos burocráticos, reparti­ções públicas, empresas governamentais, fundações, edifícios para ação institucional, equipamentos e instalações, postos de saúde, ma­niCômios, hospitais, parques públicos, obras viárias, ferrovias, portos, aeroportos, fazendas e estações experimentais, obras de infra-estrutura física de saneamento básico, telefonia, represas, barragens, aparatos para a produção energética, etc.).44 Assim, a administração do Estado adquire um-a relativa autonomia funcional. Sua missão "não é tanto executar a lei, como desempenhar um determinado papel no seio da coletividade organizada; que é o de garantir a ordem pública e pres­tar determinados serviços públicos. É aqui que se encontra a justifi­cação última, institucional, de sua existência e de seus poderes. A administração pública se autolegitima na medida em que, 'por força das coisas', converte-se ern um elemento ·necessário à sociedade atual, sem o qual esta não poderia subsistir".45 Nesse sentido, a adminis­tração estatal é uma organização complexa, uma estrutura vivente no seio de uma sociedade com a qual se relaciona organicamente. Atual­mente, "à medida que aumenta sua relevância social, o volume e a pluralidade qualitativa de suas atividades, sua magnitude organizativa, ela alcança, por conseqüência, um maior grau de autonomia estru­tural" .4il Essa relativa autonomia estrutural presta-se a gerar a ilusão de que a administração se constitui como organização independente, separada da vida política, orientada à perseguição de fins institucio­nais de caráter universal, e dotada de um corpo burocrático apolítico em si mesmo, caracterizado por uma racionalidade neutra. Na verdade, o interesse geral, abstrato e puro, que a administração realiza como uma organização compacta, é uma ficção jurídica, servindo como base para limitar o alcance do modo de mediação democrático-partidista,

44 Ver, nesse sentido, Jean Lojkine, op. cit., pp. 122-152. 45 Cf. Miguel Sánchez Morón, La Participación del Ciudadano en la Adminis­tración Pública, Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1980, p. 28.

46 Idem, ibidem, p. 31.

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exatamente no sentido de potenciar, por sua vez, o modo burocrático da ação administrativa, que, por paradoxal que pareça, é realmente menos imparcial e mais oculto.47

Por todo esse complexo estrutural sumariamente enunciado aci­ma, verifica-se claramente que as relações básicas entre os agentes coletivos no âmbito da produção e reprodução da vida material, da sociedade, não se conformam dentro de um simples contexto inter- · subjetivo (embora possam e devam compreender relações interpes­soais); tais relações, enquanto se qualificam como estruturais, não prescindem das relações jurídico-políticas, ideológico-culturais e pú­blico-administrativas, todas mediadas por recursos materiais precisos e processos específicos dotados de relativa autonomia. Isso nos leva a sintetizar a questão, apontando para alguns pontos básicos. O pri­meiro é a rejeição da explicação reducionista do complexo pelo sim­ples, do coletivo pelo individual; isso quer dizer que a totalidade complexa tem uma lógica própria e uma especificidade regida por condições que não podem resultar da simples somatória ou agregação dos elementos; por isso, não é possível explicar os movimentos cole­tivos das classes sociais em confronto por relações e conflitos inter­pessoais. O segundo ponto para o rigor de nossa abordagem refere-se à ocorrência necessária da mobilização de agentes coletivos nos pro­cessos estruturais; vale dizer, as práticas sociais constituintes das re­lações estruturais supõem a indispensável articulação de instrumentos de produção, de aparatos de violência institucionalizada, de aparelhos da adminis.tração pública e de meios de criação e difusão ideológico­cultural, desde que sejam sempre referidos a coletividades compreen­didás como fenômenos sociais globais e não a simples reações interin­dividuais. Outra precisão a ser feita é a que se vincula à destinação dos produtos derivados das relações estruturais: eles estão sempre voltados para a coletividade. Assim, no plano econômico, aplicam-se os instrumentos sobre matérias-primas pará gerarem mercadorias (pro­dutos finais); no plano político, os aparatos são utilizados sobre as forças sociais em jogo para engendrarem efeitos compulsivos (sobre

41 Idem, Ibidem, pas. ampl., pp. 31-32. Para um exame mais aprofundado do papel da administração pública na sociedade burguesa, ver Ornar Guerrero, La Administración Ptíblica del Estado Capitalista, Barcelona, Fontamara, 1981, pp. 35-112.

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as classes subalternas); no plano administrativo, as entidades e órgãos públicos partem das necessidades sociais e das apropriações fiscais para criarem serviços e bens de uso social; no plano cultural-ideoló­gico, os meios de criação e difusão são manipulados sobre as formas ideativas (dados e representações) para produzirem bens simbólicos de consumo coletivo.48 Finalmente, o último ponto a ser sublinhado corresponde ao problema do acesso ao controle dos instrumentos e recursos que fundamentam as relações estruturais. Fica claro, neste caso, que o pólo coletivo que assegurar para si o acesso ao e controle sobre tais meios deterá inequivocamente a dominância na relação. Esse processo gera, a par de uma assimetria nas práticas correspon­dentes, as quais poderão variar desde uma oposição velada ou dis­creta até as formas mais violentas de antagonismo social, uma "com­pensação ideológica" para o simultâneo ocultamento daquela mesma assimetria, perfazendo a relação de hegemonia pela qual o pólo domi­nante se esforça para manter as relações de exploração nos limites do consentimento legitimador do pólo dominado. Essa dinâmica ex­prime uma dialética interna às relações estruturais da sociedade, cuja análise de poder e de suas simplicações ideológicas faremos mais adiante.

48 Ver, nesse sentido, Robert H. Srour, op. cit., p. 146.

O indivíduo e a prática social

Dentro do quadro traçado, convém avançar e ponderar a respeito da relação entre a prática individual e a_ prática social ou coletiva. A questão é pertinente, pois na superfície fenomênica verificamos que os agentes sociais são indivíduos, ou se;a, não "vemos" diretamente a ação de um agente coletivo como tal, de uma classe social, só apreen­demos a ação de cada indivíduo.1 Como é possível, então, fazermos afirmações a respeito de uma "realidade" não observada diretamente? Aqui somos obrigados a invocar o sentido dialético a respeito da re­lação entre fenômeno e essência, já abordado no início de nosso tra­balho. Com efeito, a realidade não se prende apenas à descrição do fenômeno tal como se apresenta à nossa observação direta; já dissemos que é preciso, para capturar a realidade, ultrapassar a visão do fenô­meno dado na sua contingência espaço-temporal imediata, não de

1 Para uma melhor compreensão a respeito das questões epistemológicas originadas da relação entre a observação e a construção cognitiva, ver Marx W. Wartofsky, lntroducción a la Filosofía de la Ciencia, Madri, Alianza, 1973, vol. 1, pp. 133-163. Ver, também, John Hospers, Introducción al Análisis Filo­sófico, Madri, Alianza, 1976, pp. 287-348. Ver, no mesmo sentido, Abraham Kaplan, A Conduta na Pesquisa, Metodologia para as Ciências do Comporta · mento, São Paulo, EPU/EDUSP, 1975, pp. 57-66.

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forma meramente generalizante, porém de modo construtivo, precisa­mente para surpreender suas relações essenciais ocultas, negadoras do fenômeno ma~, no mesmo instante, expressão da própria possibilidade deste fenômeno. O fenômeno, ao mesmo tempo que escamoteia a essência, a revela, visto que dela é a expressão existencial.2 Se ficar-' mos, entretanto, apenas no plano empírico, teremos a descrição deta­lhada da aparência fenomênica, mas dela perderemos a própria rea­lidade. Assim, no contexto de nossa apreensão dos movimentos sociais e instituições básicas da sociedade capitalista, onde nos deparamos com a necessidade de identificar as respectivas estruturas, verificamos que estas não são possíveis senão como confronto dos agentes coleti­vos (classes sociais), mediados pelos objetos e recursos materiais pro­dutivos resultantes da cristalização e acumulação das práticas sociais passadas.3 Isso quer dizer que existe uma prática (práxis) social ou coletiva que não se confunde com a prática (práxis) individual das relações intetsubjetivas. Mas a confusão que precisa ser evitada não significa que devamos separar a prática individual da prática social, pondo uma ao lado da outra; apenas podemos distingui-las analitica­mente, visto que a prática social somente se realiza em e através da prática individual. 4 A relação dialética entre a práxis comum e práxis individual é destacada com muita clareza pelo pensador mexicano Sánchez Vázquez quando escreve que "a sociedade não existe à mar­gem dos indivíduos concretos, mas tampouco estes existem à margem da sociedade e, portanto, de suas relações sociais. Quem age prática, real ou materialmente são os indivíduos concretos, não passando as relações sociais das formas necessárias sob as quais se desenvolve sua

2 Ver W. G. F. Hegel, Ciencia de la Lógica, 11, Buenos Aires, Hachette, 1956, pp. 17-21. a Na mesma linha, Costa Pinto conceitua a estrutura social como "uma socie­dade encarada do ângulo das . relações dos homens entre si e dos homens com as coisas materiais que os cercam; relações interdependentes e geradas histo­ricamente na atividade social de produzir e reproduzir as condições essenciais de sobrevivência do grupo". Cf. L. A. Costa Pinto, Sociologia e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1963, pp. 86-87. 4 As discriminações analíticas permitem-nos identificar feições ou aspectos abstraídos intelectualmenete (por exemplo, a forma de uma letra), mas que não são passíveis de desagregação real ou imaginária a partir de um conjunto con­creto (por exemplo, as janelas de uma casa).

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atividade.' Exatamente por se desenvolverem sob essas formas, as práxis individuais integram-se numa práxis comum cujos . resultados transcendem os fins e produtos da ação individual".6 Aprofundando, aquele pensador ainda esclarece que "a práxis intencional do indiví­duo funde-se com as de outros numa práxis inintencional- que cada um deles isoladamente não buscou nem desejou - para produzir resultados que também não foram buscados ou deséjados. Resulta daí que os indivíduos, enquanto seres sociais, dotados de consciência e vontade, produzem resultados dos quais não são conscientes; ou seja, que não correspondem aos objetivos que guiavam seus atos indivi­duais nem tampouco a um propósito ou projeto comum. E, não obstan­te, tais resultados não podem ser senão o fruto de sua atividade. Sua práxis tem, portanto, uma dupla face: é intencional na medida em que o indivíduo persegue com ela determinado objetivo; e ininten­cional na medida em que sua atividade como ser consciente adota uma forma social e se integra numa práxis coletiva - a produção como atividade social - que leva a resultados globais - produção e conservação de determinadas relações sociais - que escapam· a sua consciênda e a sua vontade".~ E preciso, entretanto, consignar com muita clareza que as relações sociais, que encarnam as práticas inin­tencionais, são precisamente regidas por certas leis tendenciais corres­pondentes a determinado nível de desenvolvimento histórico da socie­dade. Assim, o fato de só podermos observar diretamente as práticas individuais não significa á inexistência de vínculos sociais específicos, de certo modo subjacentes e reguladores daquelas práticas. Tais vín­culos são reguladores não porque possam pressupor um sujeito mani­pulador consciente que esteja acima das ações individuais, numa fun­ção teleológica e mística, mas sim porque obedecem a uma lógica ou racionalidade intrínseca não-intencional, que forma, em última análise, a lei interna daquelas ações - lei que não existe independentemente das próprias ações -, tornando-as, em conjunto ou isoladamente, compreensíveis a nossa razão.

5 Cf. Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, p. 332. 6 Idem, ibidem, p. 333.

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Exemplo modelar desse tipo de abordagem é o fenômeno con­creto da fala expressiva, como ocorrência singular e contingente (fala­se aqui e depois se cala, outra vez setorna a falar e assim por diante); em contraposição às regras da língua (gramática), que são subjacentes ao fato de falar. o falar é sempre um ato individual, e mesmo que muitos possam falar ao mesmo tempo, é cada um que fala. Contudo, esse ato contingente não é possível sem a regulação interna subjacente que o torna socialmente compreensível, isto é, que lhe outorga uma estrutura de sentido a qual não depende apenas da ação individual de cada locutor. "A enunciação individual (a parole), contrariamente à teoria do objetivismo abstrato, não é de maneira alguma um fato individual que, pela sua singularidade, não se presta à análise socio­lógica. Com efeito, se assim fosse, nem a soma desses atos individuais, nem as características abstratas comuns a todos esses atos individuais (as 'formas normativamente idênticas') poderiam gerar um produto social." 7 "Este produto social é uin sistema de signos, um sistema gramatical, que existe virtualmente em cada cérebro, ou, mais exa­tamente, nos cérebros de um conjunto de indivíduos, pois a língua não -está completamente em nenhum, não existe perfeitamente senão no conjunto. Diferentemente da língua, a fala (parole) está constituída pelo conjunto das atuações lingüísticas individuais nas quais se atua­lizam essas convenções (regras) que constituem a própria língua." 8

Tais regras, portanto, perfazem a estrutura de sentido da língua e essa estrutura de sentido é lei que não somente existe através do fenô­meno da fala, mas também o regula, tornando-o possível.

Assim, é preciso notar que a racionalidade intrínseca não foi definida por "ninguém", embora se possa dela tomar consciência me­diante a reflexão do lingüista ou especialistas do campo.9 A fala, portanto, é a expressão fenomênica de algo oculto que a delimita e orienta regulativamente. Enquanto falamos, no plano da contingência

7 Cf. Mikhail Bakhtin (V. N. Volochinov), Marxismo e Filosofia da Linguagem, Problemas Fundamentais do Método Sociológico na Ciênci" da Linguagem, São Paulo, Hucitel, 1979, p. 107.

s Cf. José Hierro S. Pescador, Principias de Filosofía del Lengua;e, I, Teoría de los Signos, Tegría de la Dramática, Epistemología del Lenguaie, Madri, Alianza, 1984, p. 52. o "A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou ·pelo contexto

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oportuna, não temos consciência das regras, nem podemos tê-la, posto que, se construíssemos cada frase em atendimento simultâneo e cons­ciente a cada regra gramatical ou semântica, deixaríamos de falar. 10

Aliás, o bom corredor continuará a sê-lo perfeitamenté, ainda que desconheça as leis da fisiol0gia humana. Por outro lado, é preciso notar a profunda vinculação . dialética da racionalidade interna e não­intencional de um determinado fenômeno com a sua expressão exis­tencial e contingente. Isso quer. dizer, para ficarmos em nosso exemplo modelar, que se uma ou outra fala pode deixar de ocorrer sem pre­juízo da existência da estrutura interna de uma língua, todas as falas possíveis não podem deixar de ser sem se destruir igualmente a pró­pria estrutura regulativa da língua correspondente. Não há fala espe­cífica e contingente sem as regras de sua racionalidade interna, mas também não há essa racionalidade interna (essência) sem que sua expressão fenomênica seja efetivamente manifestada em algum mo­mento e em algum lugar.

Guardadas suas limitações, esta expressão material de modelo poderá lançar algumas luzes sobre nossa questão. Inicialmente pode­mos afastar certos pr~juízos que o liberalismo ortodoxo nos impinge, através dos conceitos "mobilidade social" e "igualdade de oportuni­dades", fundados' na manipulação ideológica das formas contingentes da realidade social imediata. Não é porque um certo fato tem sua possibjlidade assegurada ao nfvel da contingência e da singularidade existencial que ele se torna universalizável, independentemente da limitação estrutural que rege, em última instância, sua manifestação. Assim, a mobilidade social, entendida como fenômeno da passagem de indivíduos de uma categoria social à outra, existe efetivamente no plano dos fatos da ação individual - sempre podemos citar aquele caso de um filho de operário que se tornou grande industrial ou

mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística". Cf. Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 107 . lO Numa perspectiva estruturalista, ver Noel Mouloud, Linguagem e Estruturas, Coimbra, Almedina, 1974, pp. 19-82. Ver, sobre o tema, Chaim Samuel Katz et alii, Dicionário Básico de Comunicação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, verbete "Língua e Fala"; no mesmo sentido, consulte-se Oswald Ducrot, Tzvetan Todorov, Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage, Paris, Seuil. 1972.

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aquele outro caso do filho da empregada doméstica que se tornou médico ou ministro de Estado -, porém, não se pode compreender o conjunto dos fenômenos de distribuição dos "indivíduos" na estru­tura social apenas com base nesse conceito; exatamente porque, em nossa sociedade (hierarquizada), a ação é diretamente limitada pela estrutura social em vários aspectos. Muitos, senã~ a maioria, ficarão desapontados, uma vez que, por mais capazes que sejam os indivíduos, somente uma pequena porção deles é que pode galgar posições no topo social.U Vê-se, portanto, que a oportunidade de ascensão social

pode ser válida para cada um isoladamente, mas 'não para a totalidade dos indivíduos. Desse modo, quando refletimos sob o ângulo do con­junto social da sociedade capitalista, deparamo-nos com a estrutura de classe que sempre demarca as posições, níveis e lugares dos seres humanos nessa sociedadeP Por conseguinte, a compreensão dos fato­res estruturais que não estão presentes imediatamente na observação direta dos fatos e que atuam através da socialização e da cultura -conforme a posição do indivíduo na estrutura social - permite-nos explicar até certo ponto por que ele se comporta de um modo e não de outroY

11 A concentração de riqueza e as forças sociais tendentes a mantê-lá e agravá­la, dentro das relações de produção capitalista, propiciam de forma inevitável · a ausência de oportunidades reais para a efetiva movimentação de todos em direção ao • topó" social. Nesse sentido, Giddens retrata a ·existência perma­nente de desigualdades muito acentuadas na distribuição da riqueza, nas socie­dades capitalistas. Embora haja certas variações entre diferentes países, em todos eles uma pequena minoria da população possui uma quantidade despro­porcional da riqueza total (. .. ). Ainda que haja mobilidade nos níveis mais baixo~ do sistema de classes, as chances daqueles que pertencem às classes mais baixas alcançarem um status mais elevado são realmente pequenas". Cf. Anthony Giddens, Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1984, pp. 51-52. 12 A cristalização relativa da estrutura de classe é caracterizada por Bertaux, mediante a crítica ao conceito de mobilidade social: "O primeiro passo, por­tanto, é substituir o conceito estreito de 'mobilidade social' pelo de 'distribuição': distribuição dos indivíduos, ou melhor, dos seres humanos, nos níveis e lugares definidos pela estrutura de classe". Cf. Daniel Bertaux, Destinos Pes­soais e Estrutura de Classe, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 49-50. lo3 Ver, nesse sentido, Margaret A. Coulson e David S. Riddell, Introdução Crítica à Sociologia, 5.' ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp. 66-67.

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Neste ponto, situamo-nos no centro da questão do relacionamen­to do indivíduo com a estrutura social. Já verificamos ser inócua a noção de indivíduo isolado para efeito da análise estrutural, não só porque não nos dá a chave da explicação das transformações sociais e de suas manifestações institucionais de base (o Estado, por exemplo), como também porque nos induz perigosamente à tendência de consi­derar os homens em sentido abstrato, fora do seu elo social específico e histórico. Partimos, então, dos indivíduos reais, no co~texto de suas atividades e condições materiais em que vivem, mesmo porque, para fazer História, eles devem estar em condição de satisfazer suas neces­sidades naturais e culturais. Na satisfação dessas necessidades, os in­divíduos se encontram em relações definidàs de produção, indispen­sáveis e independentes de sua vontade, caracterizando uma ligação material entre eles. Porém, é preciso frisar que estas relações não subsistem independentemente dos indivíduos na sua totalidade, en­quanto coletividade, mas permanecem de forma autônoma em relação a cada indivíduo singularmente considerado. Por conseqüência, cada indivíduo pode, em sua particularidade, ser substituído do ponto de vista da estrutura social, sem que esta se altere na substância. Entre­tanto, não há indivíduo a não ser dentro de relações sociais determi­nadas; os indivíduos não se relacionam entre si como indivíduos "puros", eles estão sempre basicamente qualificados pelas suas posi­ções de classe: como trabalhador frente ao capitalista ou como cam­ponês frente ao proprietário de terras.

O necessário e originário relacionamento dos indivíduos dentro de um contexto de convivência exclui o conceito do indivíduo como expressão da unidade social fundamental, visto que o homem se põe como um dos semelhantes numa relação com os outros antes mesmo de se referir explicitamente ao "eu", como indivíduo autodeterminado. O relacionamento entre os indivíduos é sempre determinado em fun­ção do lugar que ocupam na estrutura social de classe. Er_n razão desse fato, o intercâmbio entre os indivíduos se realiza segundo o desem­penho de determinados papéis que eles personalizam. Neste particular, a clareza do texto organizado por Horkheimer e Adorno (Escola de Frankfurt) não pode deixar de ser apresentada com toda a sua força meridiana: "A definição do homem como pessoa implica que, no âmbito das condições sociais em que vive e antes de ter consciência

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de si, o homem deve sempre representar determinados papéis como semelhante de outros. Em conseqüência desses papéis e em relação com os seus semelhantes, ele é o que é: filho de uma mãe, aluno de um professor, membro de uma tribo, praticante de uma profissão. Assim, essas _relações não são, para ele, algo extrínseco, mas relações que se determinam, a seu próprio respeito, como filho, aluno ou o que for. Quem quisesse prescindir desse caráter funcional da pessoa, para procurar em cada um o seu significado único e absoluto, não conse­guiria chegar ao indivíduo puro, em SUfl singularidade indefinível, mas apenas a um ponto de referência sumamente abstrato que, por seu turno, adquiriria significado em relação ao contexto social, enten­dido como princípio abstrato da unidade da sociedade (o cidadão). Inclusivamente, a pessoa é, como entidade biográfica, uma categoria social. Ela só se define em sua correlação vital com outras pessoas, o que constitui, precisamente, o seu caráter social. A sua vida só adquire sentido nessa correlação, em condições sociais específicas; e só em relação ao contexto é que a máscara social do personagem também é um indivíduo".14 Nesse sentido, os papéis que os indivíduos representam, inclusive como "indivíduos livres e iguais", não são algo que possa ser abstraído com o objetivo de se obter uma autêntica realidade (residual) representada pela unidade singular indizível do indivíduo "puro". Aliás, essa unidade seria tão abstrata que a singu~ laridade individual se tornaria absolutamente universal, perdendo, por conseguinte, o caráter de personalidade que exatamente particulariza e concretiza cada indivíduo como pessoa. Por outro lado, da mesma form~ que o indivíduo, enquanto ser social, não pode deixar de ser pessoa, também não pode deixar de transparecer sua específica con­dição de ser membro de uma classe social.

Como já salientamos, o capitalista ou o operário não nascem "naturalmente" sob essa condição; eles estão nessa condição em razão das relações sociais emergidas e ao mesmo tempo determinantes da respectiva situação de classe. Por isso, tais qualificações (determina­ções) só existem através da própria relação social; a çleterminação do indivíduo como capitalista ou proletário se destaca ao nível das rela­ções de produção, as quais são relações objetivas não-excludentes da

14 Cf. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Temas Básicos da Sociologia, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 48 .

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subjetividade específica dos agentes individuais envolvidos. Entretan­to , é preciso notar que, sob o ângulo rigorosamente estrutural e em razão das atividades que lhe correspondem, as particularidades dos indivíduos engajados nessa relação de confronto são reciprocamente indiferentes.15 Eis porque a condição específica de cada sujeito en­volvido nas relações estruturais pode ser até certo ponto desconside­rada para efeito de análise da conformação social básica, num deter­minado período histórico. Com efeito, nesse nível de análise podemos trabalhar e conceituar sobre relações e não sobre os sujeitos singula­res presentes nestas relações; mais uma vez se determina como falsa a concepção que apresenta o indivíduo humano como anterior à so­ciedade ou como seu ponto de partida. Obviamente, tal consideração não nos autoriza, sob pena de personalizarmos falsamente as relações sociais como existentes em si e por si, a considerar o ser humano como " ponto de chegada" , mas precisamente como qualificação que se vai construindo progressivamente na e pela processualidade das relações sociais das quais faz parte integrante. Queremos apenas pôr em relevo que, a p·artir do elemento natural representado pelo indivíduo consi­derado na sua singularidade biológica, não se pode deduzir caracte­rísticas sociais que necessariamente o sobredeterminam enquanto ele­mento integrante de relações sociais determinadas historicamente. Não sendo determinações naturais dos indivíduos, as '~características so­ciais" resultantes das relações de estrutura só podem ser destacadas na análise da realidade social, ou seja, de uma realidade não composta de indivíduos "puros", mas na qual eles se situam de forma determi­nada em face das condições de produção material da· vida sociaJ.l6

Por conseqüência, o exercício, por parte de um indivíduo, de uma função definida no processo de produção, como capitalista ou como trabalhador, não é uma determinação interna de sua condição como indivíduo e sim uma decorrência da personificação assumida e cons-

Ji; Ver, nesse sentido, Victor Molina, "Notas sobre Marx e o Problema da Individualidade" , · in Da Ideologia, org. pelo Centre for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, pp. 296-302.

16 Para uma análise mais aprofundada da questão indivíduo-sociedade, consulte­se Adam Schaff, "O Marxismo e a Filosofia do Homem", in Erich Fromm (org.); Humanismo Socialista , Lisboa, Edições 70, s.d., pp. 151-162.

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tituída pelas relações estruturais das quais faz parte.17 Assim, o ser humano como tal não é trabalhador nem capitalista; ele é um ou outro na sociedade e -através dela.

Essas questões ·nos permitem realizar o retorno para a concre­tização dialética do conceito a respeito da vinculação entre a ação do indivíduo e a prática social resultante das relações básicas das formações econômico-sociais capitalistas. Numa primeira ordem de reflexão, surge a aparente exterioridade das relações de produção no que diz respeito aos indivíduos. Sob o ponto de vista do indivíduo, enquanto personifica existencialmente categorias econômicas - indus­trial, banqueiro, comerciante, proletário urbano, latifundiário, campo­nês, bóia-fria, etc. -, a relação se apresenta como contingente . ou acidental, podendo o indivíduo perder circunstancialmente essa qua­lidade (de ser um capitalista ou um trabalhador a~salariado). Nesse sentido, por exemplo, o capital é realmente separável de um indivíduo capitalista, podendo este ser substituído na ·relação por1 diversos mo­tivos. " Isto implica indubitavelmente que a determinação de 'capita" lista', por exemplo, é atribuída a um indivíduo apenas quando ele está representando uma função definida nos processos de produção. Ser um capitalista não é uma definição de um indivíduo como tal, não é uma determinação 'interna' carregada pelo indivíduo, mas uma categoria que corresponde a uma função que ele está desempenhando, apenas isso. O fato de a sua individualidade ser afetada por isso é outro problema." 18 Entretanto, e este é o aspecto nuclear da questão, sob o ponto de vista da sociedade capitalista como um todo, não há possibilidade de se manter uma relação estrutural regida pela lógica do capital sem que certos indivíduos efetivamente suportem a perso­nificação de capitalista (assim como outros, a de trabalhador assa-

17 Essa personificação é deduzida com muita clareza pór Marx: "Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econô­micas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas". Cf. Karl Marx, O Capital, I, Prefácio, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 13. 18 Cf. Victor Molina, op. cit., p. 304.

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lariado). Com efeito, o capital pode ser separado de um determinado indivíduo, mas não pode subsistir separado de todo e qualquer indi­víduo de uma formação econômico-social, sob pena de se eliminar essa formação como estrutura capit~lista de produção.

Em função de sua possível desconexão com um determinado indivíduo, o capital é habitualmente confundido, no mundo fenomê­niço do senso comum, com as coisas que perfazem a materialidade da relação; esta visão "coisificada" ou condensada do capital é decursiva de uma perspectiva alienada e originada do ponto de vista do indiví­duo na sua expressão singular e contingente. Entretanto, sob o ângulo do conjunto social e de suas classes, o capital já não aparece como algo material que se possa perder; ele não pode manter-se como "coisa" indiferente, separado das condições sociais que precisamente lhe emprestam sentido e realidade; o capital, sob tal ângulo, apresenta­se exatamente como o que realmente é; ou seja, como relação social mediada por coisas produtivas: os meios de produção. Essa relação social é cara~terizada com muita propriedade por Marx, quando afir­ma que "um negro é um negro; apenas dentro l:!e determinadas condi­ções ele se torna um escravo. Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão; ela se transforma em capital apenas em condições determinadas. Fora dessas condições, a máquina tampouco é capital quanto o ouro é, por si próprio, moeda, ou o açúcar é o preço do açúcar. Na produção, os homens não agem apenas sobre a natureza, mas também uns sobre os outros. Eles somente produzem colaborando de uma determinada forma e trocando entre si suas ati­vidades. Para produzirem, contraem determinados vínculos e relações mútuas, e somente dentro dos limites desses vínculos e relações sociais é que se opera sua ação · sobre a natureza, isto é, se realiza a produ­ção".19 Na forma burguesa de produção, essas relações sociais tradu­zem determinados vínculos de oposição e desigualdade entre os homens, entre os produtores e os detentores dos meios de produção. Os meios de produção, portanto, embora indispensáveis, não são suficientes para a definição do capital, visto que a· especificidade essencial de~te encontra-se no tipo de relação social assimétrica em face daqueles

19 Cf. Karl Marx, Trabalho Assalariado e Capital, 2: ed., Rio de -Janeiro, Editorial Vitória, 1963, p. 32.

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meios de produção - com vistas a sua manutenção e acumulação ampliada - e que, por conseqüência, envolve· necessariamente relações de poder. Como resultado, verificamos que o capitalista existe em oposição ao trabalhador assalariado, numa relação objetiva e determi­nada, sendo acidental, para essa relação, todo e qualquer indivíduo específico; assim a individualidade singular, enquanto individualidade particularizada e contingente, é irrelevante para a relação estrutural básica, embora não seja possível, sqb o ângulo da totalidade, o movi­mento social capitalista sem "qualquer" individualidade singular. Esta conclusão é de extrema significação para a caracterização do Estado em suas relações com os atores individuais representantes das classes ou frações de classe dominantes. Mais adiante a retomaremos para os desdobramentos conseqüentes.

Numa segunda ordem de ponderação, a concretização dialética do relacionamento da prática individual com a prática social depende a reflexão sobre a relação sujeito-objeto, já iniciada neste trabalho. A práxis que define essa relação compreende uma unidade dialética entre consciência e realidade; não há identidade entre esses aspectos, visto que os vínculos internos não cancelam as diferenças; mas também não há separação, uma vez que não são "coisas" ou fenômenos mutua­mente externos que viessem a entrar em contato recíproco nuina rela­ção mecânica. Por essa razão, as modificações operadas ao nível da prática teórica repercutem necessariamente no mundo do ser; sem embargo, o pensamento não é algo autônomo com respeito à realidade. Assim, as idéias não podem ser consideradas como algo não-real em face da realidade, como algo externo ou alheio a respeito do mundo do qual são a representação e, ao mesmo tempo, a constituição como práxis teórica e social. Elas são parte da realidade e é por isso que uma transformação no plano da consciência é, por conseguinte, uma trans­formação da realidade social, do mundo da práxis humana.20 Já disse­mos que, nesse mundo, o objeto não se mantém indiferente diante da transformação da consciência a seu respeito. Nesse sentido, a ação do sujeito com a consciência que lhe é inerente realiza simultaneamente,

20 Ver Carlos Pereyra, El Sujeto de la Historia, Madri, Alianza Editorial, 1984, pp. 72-74. Ver, também, Auguste Cornu, "A Idéia de Práxis e a Elaboração da Concepção Materialista do Mundo" , in Praxis , A Categoria Materialista da Prática Social , vol. J, Lisboa. Horizonte, 1980, pp . 41-84.

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de uma · forma ou de outra, o mundo da objetividade social regido por uma racionalidade própria, com suas leis específicas determinadas em função das forças sociais em confronto e do grau de desenvolvi­mento histórico do potencial humano para modificação da natureza.

f preciso reter de modo destacado esse aspecto da relação sujeito­objeto, especialmente tendo em vista a importância da estruturação ideológica do Estado para configurar sua própria existência. Por esse encaminhamento geral, verifica-se a necessidade da rejeição do suposto ontológico de que existe um "mundo exterior" subsistente em si e por si mesmo, constituído à margem da intervenção da atividade prática subjetiva. Disso decorre também a rejeição de um outro su­posto, agora de caráter epistemológico, de que as idéias são cópias ou reflexo dos objetos.21 Na realidade, não se pode considerar o mundo objetivo por um lado e o pensamento subjetivo por outro. O pensamento encontra-se na própria objetividade, fazendo parte de sua contextura material; ele não é apenas "reflexão", é também um modo constitutivo da práxis social. Portanto, a objetividade não pode ser entendida como "exterioridade", como algo exterior à atividade do homem, como algo que deve ser contemplado de fora.

Desse modo, existe uma materialidade na práxis subjetiva huma­na, que oferece resistência objetiva e que, portanto, exige não ser considerada como meros fenômenos psíquicos, visto que. também não pode prescindir de múltiplos e complexos instrumentos extramentais - produtos da práxis histórico-social - para sua reprodução e amplia­ção. As formas espirituais são, por conseguinte, parte substancial da sociedade, são formas de consciência constitutivas da própria estrutura social. Os processos ideais, ao se integrarem como parcela efetiva da realidade social, não podem deixar de influir nas condições de sua manutenção ou transformação. As idéias se projetam e ganham corpo e materialidade através da práxis coletiva, assumindo o tamanho da realidade social que inspiram; formam a estrutura espiritual da socie­dade, não. como mera aparência reflexa do mundo social, mas exata­mente como um de seus elementos constitutivos e essenciais.22 f por

21 Ver Carlos Pereyra, op. cit., pp. 75-78. 2:2 Ver, nesse sentido, Antonio Gramsci, El Materialismo Histórico y la Filosofía de Benedetto Croce, Buenos Aires, Nueva Visión, 1973, pp. 32-42.

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essa razão que os produ!g_s..--idéológicos resultantes da prática teórica, dei trabalho conceitual científico, até as formas mais simples do senso conium, da opinião pública ou do folclore, são tão reais como os derivados de outras formas da prática coletiva. Por-esse efeito, com­preende-se porque a ideologia é parte 'integrante do processo social caracterizado por relações de dominação, dando-lhe substância legiti" madora e viabilidade.

Finalmente, numa · terceira ordem de reflexão a respeito da cone­xão orgânica da prática social com a individual, cumpre-nos abordar . o problema da relação entre a vontade pessoal exercida intencional­mente e a racionalidade objetiva não-intencional dos processos estru­turais da sociedade. A questão toma particular relevo na medida em que se verifica· que os agentes da História são homens reais e vivos, manifestando-se individualmente, não podendo ser observada nenhuma entidade coletiva, existente em si e por si, independentemente da ação particular de cada sujeito. Neste ponto, não se pode deixar de conside­rar, por estarem intimamente ligadas, as ponderações já feitas a respeito da aparência de exte.rioridade atinente às relações estruturais da socie­dade e a respeito da unidade dialética sujeito"Übjeto.23 As ações individuais são concretas e conscientes; entretanto, elas perfazem também, e de modo inconsciente, o curso simultâneo da práxis (coleti­va) não-intencional, mas dotada de racionalidade ~ não~teleológica -, que se exprime na lei de reprodução de um determinado sistema econômico-soCial. Essa racionalidade estrutural objetíva não depende direta"!ente da consciência nem da vontade dos homens, mas também não é manifestação de nenhuma força espiritual supra-individual dota­da de direção finalística. Z-4 De~se QlOdo, não se pode apontar as trans-

23 Ver Michael Lowy, Método Dialético e. Teoria Política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, pp. 50-63. 24 Para uma crí.tica ao atomismo individualista e à abstração. da sociedade hipostasi~. ver, respectivamente, K. Marx e F. Engels, A Sagrada Família, Crítica da Crítica, Lisboa, Editorial Presença, 1974, pp; 178-187; La Ideologia A/emana, 4.' ed., ·Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 28-55. Nesse mesmo sentido, Marx lança uma crítica ao sr. Proudhon, visto que a juízo deste último são as abstrações; as categorias, e nãá os . homens, que fazem a História. "A abstração, a categoria, considerada como tal - isto é, separada dos homens e de sua ação material -, é, naturalmente, imortal, inalterável, impassível; não é mais que uma modalidade da razão pura, o que vale dizer, simplesmente,

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formações econômico-sociais no curso da História como produtos diretos da intenção ou projeto de nenhum sujeito individual ou supra­individual.

Fica-nos, contudo, o problema· de equacionar a relação entre a prática individual e as leis da estrutura social, especialmente quando se tem em vista que a "História" não utiliza o homem para trabalhar por seus objetivos - o que seria cometer o erro de personificar a História de maneira mística - e sim que ela não passa das atividades dos homens que perseguem seus objetivos, realizando-se a si mesmos nesse processo.25 Com efeito, quem realiza a práxis a nível da ·expe­riência imediata são os indivíduos reais, c<;mscientes de seus fins específicos; essa práxis, entretanto, constitui e corporifica, simulta­neamente, a práxis comum ou coletiva cujos resultados, como já foi dito, superam· os motivos e os fins das atividades singulares. Como os agentes particulares integram as relações estruturais da sociedade, transcendendo o âmbito puramente interpessoal, suas ações individuais constituem, inevitavelmente e ao mesmo tempo, essas relações de caráter objetivo, independente de como eles as vivam ou conheçam.

A práxis individual, portanto, assume uma forma social que lhe impõe a estrutura e se integra e materializa numa práxis coletiva que resulta, em última análise, na reprodução e ampliação de. determinadas • relações sociais, as quais, submetidas às leis qtie presidem seu fun· cionamento, escapam à imediata manipulação da vontade síngular.26

Por exemplo, quando o campo,nês, nª tentativa de buscar um melhor nível de vida para si e sua família, abandona as terras que vinha cultivando em regime de quase servidão, à procura de trabalho como operário assalariado no meio urbano, certamente não se propõe a contribuir para a reprodução do sistema capitalista de produção, em­bora, em última instância, sua prática individual conduza, sem que disso tenha consciência, à manutenção das condições bás~cas dessa formação e~onômico-social. Da mesma forma, o trabalhador assa~ariado

que a abstração, considerada como tal, é abstrata; admirável tautologia!" Cf. Karl Marx, Miséria da Filosofia, Rio de Janeiro, Leitura, 1965, p.' 179. :.!1\ Ver, nesse sentido, K. Marx e F. Engels, A Sagrada Família, op. cit., pp. 117-130. 26 Ver Emilio Lamo de Espinosa, La Teoría de la Cosificación: De Marx a la Escuela de Frçuicfort , Madri , Alianza, 1981 , pp. 50-59.

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não tem, ao entrar na relação de produção,. a intenção de gerar mais­valia para o seu empregador capitalista; no entanto, sua prática indi­vidual contribui para esse efeito. Por seu turno, o capitalista pode crer estar pagando sob a forma de salário, não a força de trabalho, mas sim o· trabalho mesmo, ou seja, seu valor de uso no processo produtivo; entrementes, sua crença não elimina o fato real de remu­nerar apenas a força de trabalho, ao nível de seu valor de troca no mercado. Mesmo que o capitalista por motivos éticos ou religiosos, tomando consciência da penúria por que passam seus empregados assalariados, quisesse assumir atitudes benevolentes e remunerar ge­nerosamente o trabalho sem atender aos limites do mercado, não poderia fazê-lo, sob pena de se autodestruir como empresário capita­lista dentro do sistema. ~ dessa forma que os sujeitos econômicos agem de conformidade com a lei fundamental da produção capitalista, no que respeita à criação e acumulação da mais-valia; e que atua objetivamente no plano da estrutura básica dessa formação social. Essa lei econômica, que exprime um aspecto da racionalidade objetiva regente da estrutura social burguesa, só pode ter existência através da concreta singularidade dos atos e condutas dos agentes individuais. É nesse sentido, e de modo geral, que o comportamento dos sujeitos particulares deve corresponder às exigências de uma determinada es­trutura social; vale dizer, deve estar determinado socialmente. Desse modo, eles produzem, com a práxis individual, algo que não estava em suas consciências, visto que ultrapassa o âmbito de suas próprias intenções, e, com isso, tal práxis assume inevitavelmente a forma social, correspondendo às leis fundamentais do sistema.n

A prática comum dos agentes coletivos, das classes sociais, não pode derivar, portanto, da mera soma das práxis individuais, pois ela

27 No discurso de Hegel, entretanto, é a razão que rege a História universal; a razão, com "astúcia", faz as paixões trabalharem para ela. "Os homens -diz Hegel --; satisfa~em seu interesse; _mas ao fazê-lo, produz~m .algo mais, algo que esta no qué fazem, mas que nao estava em sua consctencta nem em sua intenção." Cf. W. G. F. Hegel, "Lecciones sobre la Filosofía de la Historia", Madri, Revista de Occidente, 1974, p. 59. Em nosso contexto, o discurso tem outra direção e outro sentido, visto que para nós não é a ·História" que utiliza o homem como meio para atingir seus fins; quem faz a História é o homem real e vivo.

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não se assenta apenas na vontade dos sujeitos singulares, mas na conjugação dialeticamente estruturada de suas ações conforme deter­minadas leis do sistema e cujo funcionamento lhes impõe limites obje­tivos. A relação sujeito-objeto nesse processo, já notamos, deve ser en­tendida não como identidade dos respectivos termos, nem como sua separação em fatores reciprocamente externos, mas como unidade dia­lética dos opostos, de tal sorte que jamais pode haver absoluta objeti­vação do sujeito, nem absoluta subjetivação do objeto. Isso significa, no âmbito de nosso tema, que a racionalidade objetiva reguladora da estrutura social capitalista não deixará nunca, enquanto perdurar o sistema, de ser objetiva em algum aspecto e de algum modo, a des­peito da necessária ação subjetiva ,que constitui essa estrutura e da possível tomada de consciência das leis de seu funcionamento pelos agentes individuais que a integram. Note-se que a objetividade social não tem sentido sem a ação subjetiva dos indivíduos, e isso nos leva a não poder imaginar essa objetividade com independência da vontade e consciência desses indivíduos; entretanto, não a podemos imaginar totalmente identificada com a vontade e consciência deles, sob pena de perdê-la como lei interna. do processo social. Assim, as leis que regem a estrutura social não passam a ser objetivás só pelo fato de se tornarem racionalmente conhecidas pelos suje~tos implicados, o que as faria depender plenamente da consciência e vontade de tais sujeitos; a racionalidade objetiva ou lógica interna do sistema não pode ser confundida com seu conhecimento.28 Essa limitação ocorre porque os agentes sociais se encontram historicamente determinados por certas condições das quais não podem fugir, por mais que delas tomem consciência; tais condições objetivas não são independentes da práxis humana; elas são determinadas historicamente. ~ o caso das forças produtivas cuja natureza, dimensão e sofistificação tecno­lógica se perfazem igualmente em função das realizações das formações sociais anteriores à dos indivíduos de um determinado período histó­rico, isto é, como produto de gerações passadas . Esta concepção "mos­tra que a História não termina por ser resolvida em 'autoconsciência', como 'espírito do espírito', mas que se encontra, em cada .. estágio,

2 8 Ver, nesse sentido, a lúcida exposição de Adolfo Sánchez Vázquez, op cit., pp. 366-370.

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um resultado jilaterial, uma soma 9e forças produtivas, uma relação dos indivíduos entre si e para com a natureza, criados · historicamente e transmitidos a cada geração pelas que a precederam; mostra um conjunto de forças produtivas, de capitais e circunstâncias que são, por um lado, modificados pela nova geração, mas que, por outro, lhe prescrevem suas . próprias condições de existência e lhe imprimem um desenvolvimento determinado, um caráter especial. Isso demonstra, por conseqüência, que as circunstâncias fazem os homens na mesma proporção em que os homens fazem as circunstâncias" .29 · Imaginaria­mente, por mais agudamente inteligentes e operosos que pudessem ser os agentes sociais da antigüidade, supondo que tomassem plena consciência das leis históricas da ~armação social escravista, jamais poderiam conduzir à superação daquele tipo de sociedade, inaugurando, por exemplo, um modo capitalista de produção. No curso da História, cada formaÇão econômico-social tem suas leis de estrutura específicas, não podendo ser tal formação ultrapassada enquanto não se reunirem as condições objetivas que lhe permitam a transformação básica.

Por outro lado, é preciso que se destaque um aspecto de extrema importância para a perfeita compreensão dessa racionalidade. Esta confere aos processos históricos uma linha de tendência · que não implica nenhum fatalismo, já que isso compreenderia transformar os homens reais em joguetes de forças· ocultas que teriam a mística incum­bência de orientar a história. Isso significa que se houver condições objetivas dentro de uma determinada formação econômico-social, para sua transformação básica, esta transformação não ocorrerá automati­camente tão-só por força da lei social inerente a tal formação.'3° Deverá sempre haver o concurso da práxis política nesse processo, a qual não se tem caracterizado por uma ação harmoniosa em direção aos objetivos de transformação, mas sim por atividades extremamente conflitivas em razão do confronto das classes sociais em jogo. Assim, a trans­formação social só pode ocorrer, mas não é necessário que ocorra, se

29 Cf. K. Marx e F. Engels, La Ideologia Alemana, op. cit., pp. 40-41. ao Ver Helmut Fleischer, Concepção Marxista da História, Lisboa, Edições 70, 1978, pp. 139-165. Ver, também, Henri Lefebvre, O Fim da História, Lisboa, Dom Quixote, 1971; Jürgen Habermas, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 111-162; Adam Schaff, História e . Verdade, São Paulo, Martins Fontes, 1978.

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houver condições estruturais para isso e se · envolver a práxis social ou coletiva indispensável a esse processo.

Vê-se, por essas considerações, que o determinismo social é total­mente diferente do determinismo natural, já que este exprime, no interior do contexto da práxis social - visto não haver "mundo exter­no" a essa práxis -, uma linha de necessidades cujos vínculos são apercebidos ou exptyrimentados como independentes da consciência e do comportamento dos sujeitos a eles submetidos, Por conseguinte, a "lei natural", assim entendida, não precisa do sujeito social para existir; da mesma forma, essa lei não pode ser "violada". O ser huma­no, para cumprir seus desígnios no plano do mundo natural, terá que observá-la inequivocamente. Isso não ocorre na ordem do determinis­mo social, visto que as leis sociais, as leis que regem a estrutura social, embora não possam ser violadas pelos sujeitos isolados, não podem também ser compreendidas ou experimentadas como existentes à mar­gem da própria sociedade; nesse sentido, elas dependem, para existir, da ação dos agentes sociais.31 O sujeito individual jamais pode violá-las solitariamente, e quando é possível fazê-lo em conjunto com outros indivíduos, numa ação coletiva de caráter político, só terá que ser dentro de condições objetivas que propiciem a transformação social. Aliás, neste caso, a ação política para essa transformação passa, com toda sua carga subjetivo-intencional, a fazer parte integrante das· próprias condições objetivas do processo. Assim, criar condições obje­tivas para a transformação da estrutura' social abrange também a progressiva conscientização de sua necessidade, acompanhada da prá~is política correspondente.

Ademais, e para finalizar esta ordem de análise, não se pode confundir também o determinismo social com a normatividade social, já que neste caso é requisito imprescindível a possibilidade de compor-

. tar-se de outro modo. Nesse sentido, a norma social (os costumes, as regras de trato social, as normas jurídicas) pode, ao contrário da lei social, ser violada por ação dos indivíduos isolados. Portanto, dep~m­de da ação humana para existir e só se caracteriza como tal desde que . seja contrastável por uma possível ação individual que a não observe.

aJ Ver, nesse sentido, Emílio Lamo de Espinosa, op. cit., pp. 53-59.

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I I

As classes sociais

Pelo avanço que realizamos nas questões relativas à estrutura social e sua repercussão no planos das relações intersubjetivas e da prática social, estamos em condições de abordar, ainda que sintetica­mente, o tema referente às classes sociais, não só porque decorre da linha de abordagem dos problemas sociais que encetamos, como tam­bém porque o equacionamento explicativo da sociedade política -representada pelo Estado - se torna, a nosso ver, impossível sem essa consideração de base. Examinar os fundamentos da existência e justificação do Estado, sem relevar a questão das classes sociais e de seus conflitos e antagonismos, é incorrer na mera descrição formal externa de sua manifestação aparente, sem outro resultado senão o de apagar ou escamotear os verdadeiros delineamentos da origem do poder estatal e a natureza da respectiva função no seio do modo capitalista de produção. Por outro lado, "o estudo das classes é, por excelência, o estudo da dinâmica social. Conhecer o sistema de classes de uma sociedade é conhecer não somente como ela é, mas, também, como ela se transforma'?

1 Cf. L. A. Costa Pinto, Sociologia e Desenvolvimento, Rio de faneiro, Civ . Brasileira, 1963, p. 170.

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Partindo de nossa análise referente à estrutura da sociedade, consideramos que as relações estruturais, para se caracterizarem como tal, não prescindem das relações coletivas entre agentes sociais me­diadas pelos meios de produção da vida material e espiritual da sociedade. Os agentes sociais coletivos, configurados no que se denomi­na classes sociais - obviamente não se pode desconhecer a existência e importância de outros grupos que permeiam as classes sociais, bem como seus valores e relevância na sobredeterminação cultural-ideológica das manifestações características das classes sociais concretas, no âmbito de cada povo, cultura ou civilização -, se definem diferen­ciadamente em razão de suas respectivas posições (objetivas) em face dos meios de produção, num sistema '-11:istorii:amente determi~do de organização econômica, estabelecendo, por essa relação com as condi­ções básicas da vida material da sociedade, formas definidas de orga­nização social do trabalho e distribuição da riqueza entre seus membros integrantes. Por essa razão, "as classes sociais são grupos de agentes sociais, homens, definidos principalmente, embora não exclusivamente, por seu lugar no processo de produção, isto é, na esfera econômica".2

Com grande precisão, Costa Pinto considera que "as classes sociais são grandes grupos ou . camadas de indivíduos que se- diferenciam, basicamente, pela posição orgânica e objetiva que ocupam na organi­zação social da produção. Essas classes se relacionam e se superpõem formando um sistema de classes que é parte integrante da estrutura social e que, historicamente, se transforma com a transformação da sociedade. A posição das diferentes classes na estrutura social é fun­damentalmente determinada por suas relações com os meios de produ­ção e com o mercado. Elas se identificam pelo papel que têm na organização do trabalho, e daí, pelo volume, pelo modo de ganhar e pelo modo de empregar a porção da riqueza de que dispõem" .3 Esse

2 . Cf. Nicos Poulantzas, ·As Classes Sociais"; in As Classes Sociais na América Lati~ã. comp. Raúl Benítez Zenteno, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 91. 3 Cf. L. A. Costa Pinto, op. cit., p. 176 (grifo nosso) . O conceito apresentado segue, em seu fundamento, a perspectiva marxista; isto porque, a nosso ver, e fazendo nossas as palavras de Costa Pinto, "sem apelo à bibliografia de Marx, parece-nos impossível desenvolver qualquer estudo sobre as classes sociais. Ela há que ser utilizada, por sua vez, não como bíblia nem com a costumeira des­lealdade. Há que se selecionar, também, as edições e depurar as traduções. O

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processo,- no modo capitalista de produção, por exemplo, determina objetivamente as condições de _apropriação privada de grande parte do excedente econômico (bens econômicos) com vistas à reprodução ampliada do capital e configura, ao mesmo tempo, a articulação ou o conflito dos interesses das classes ou frações de classes desse sistema social. Em sentido mais amplo, a quantidade de bens susceptíveis de distribuir-se entre os membros de uma sociedade sempre é limitada; em outras palavras, os bens não bastam para todos os que teriam necessidade deles. Por esta razão, os bens são, sobretudo, um conflito de interesses. Se há um conflito de interesses entre grupos sociais, estes devem ter necessidade dos mesmos bens, que são, entretanto, insuficientes para satisfazê-la. Assim, "a satisfação plena das necessi­dades de um grupo diminui as probabilidades de satisfação de outro grupo, ou vice-versa. Por conseguinte, assim como o próprio interesse, o conflito de interesses também é na sociedade, um fenômeno objetivo, independente da consciência dos homens".4 Quando as rel~ções recí­procas entre os grupos são tais que, quanto mais plena é a satisfação das necessidades de um grupo, tanto mais sofrem as necessidades do outro, ou seja, quando um grupo satisfaz sistematicamente suas neces­sidades a expensas das de outro, os conflitos de interesses podem dominar-se conflitos de estrutura, visto serem resultado da estrutura social e durarem enquanto não se transforma a própria estrutura. "Essa

próprio Marx não deixou o conceito de classe social fixado explicitamente. No último capítulo de O Capital, começava ele a tratar do assunto quarido o manuscrito se interrompe; isso não significa, porém, que não tenha usado um conceito de classe social, ou melhor, um esquema çonceitual que ele forneceu como ponto de partida para sobre ele fundar-se hoje uma conceituação cientí­fia do problema. Ao dizer isso, desejamos enfaticamente destacar que uma citação de Marx, para nós, não constitui um meio de encerrar a discussão, nem de considerar como inútil ou impossível qualquer complementação ou revisão de suas teorias. Pelo contrário, partindo da clara noção de que a estrutura social estudada por Marx sofreu profundas transformações não-~Z_revistas -por ele, é possível aproveitar, tanto dos seus acertos quanto das suas insuficiências, para alcançarmos uma sociologia mais científica, oportunidade totalmente ina­proveitada pelos sectários do marxismo e do antimarxismo". Idem, ·ibidem, p. 172. 4 Cf. Zygmunt Bauman, Fundamentos de Sociología Marxista, Madri, Alberto Corazón, Comunicación 27, série A, 1975, p. 41 (grifo nosso).

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particular relação social que provoca o conflito de estrutura é a relação de propriedade ou, mais precisamente, a relação de propriedade dos meios de produção. Isso se verifica quando uma parte da população possui os instrumentos e matérias indispensáveis à produção de bens, e a outra, pelo contrário, está deles privada. Para sobreviver, para satisfazer ao menos suas necessidades elementares, esta parte da popu­lação deve oferecer o único bem que possui, sua mão-de-obra, e pô-la à disposição da outra parte para receber em troca certa quantidade de bens de consumo. Aproveitando essa situação, o primeiro grupo se apropria de todo o produto do trabalho obtido com a mão-de-obra do outro e, depois, retém para si o sobreproduto, aquela parte do produto global que resta depois de haver distribuído a fração necessária para satisfazer as necessidades elementares dos proprietários da mão-de­obra." 5 Evidentemente, tal forma de apropriação do sobreproduto social vai rebater no plano do poder político para viabilizá-la e, assim, vai determinar formas específicas de organização política que não podem prescindir da análise das relações entre as classes sociais básicas do modo de produção correspondente. Assim, o Estado, como forma de organização política específica do sistema capitalista, tem sua carac­terização própria exatamente calcada na maneira como os homens, divididos em classes sociais diferenciadas e antagônicas, produzem, dis­tribuem e consomem seus produtos econômicos, no âmbito de relações ideológicas, jurídicas e de poder, definidas historicamente.6

Por que os homens se diferenciam no plano social? Qual ou quais os fatores objetivos e subjetivos que determinam essa diferenciação? Sendo poucos os privilegiados e muitos os despossuídos, de que modo é possível essa diferenciação? As respostas a estas questões têm sido inumeráveis, variando desde as que promovem a mistificadora oculta­ção das reais determinantes das desigualdades sociais, naturalmente em favor das classes privilegiadas, até as que explicitam claramente as formas de exploração do homem pelo homem, revelando as concretas condições em que se realizam a apropriação e acumulação do excedente

ií Ibidem, p. 42, (grifo nosso). 6 Ver, nesse sentido, Javier Pérez Royo, Introducción a la Teoría del Estado, 13<trcelona, Blume, 1980, pp. 35-38.

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econômico gerado em circunstân~ias sociais e políticas determinadas.7

Na linha do mascaramento ideológico das relações estruturais, encon­tramos, por exemplo, aquelas concepções ingênuas e naturalistas que fundamentam as diferenças sociais no plano das qualificações subje­tivas, tais como inteligência, habilidade, inic'iativa, destemor, etc., destacando a originalidade e a força de vontade do indivíduo como fatores básicos das inequações sociais.8 Num plano mais avançado, encontramos as concepções gradualistas e funcionalistas que projetam explicações aparentes a partir de abordagens externas e descritivas dos processos sociais, sem penetrar no âmago das diferenciações estru­turais. Assim, por exemplo, na concepção gradualista, as relações entre as classes "alta", "média'' e "baixa"; diferenciadas segundo o critério de rendimento econômico, são de simples ordenação escalonada e não de dependência e oposição. No modelo estrutural-funcionalista, a desigualdade social é explicada em razão da divisão do trabalho, res­ponsável pela diferenciação e integração dos grupos funcionais no interior da sociedade; esses grupos encontram-se numa relação fun­cional e complementar, formando uma grande pluralidade de classes caracterizadas pela interdependência e cooperação mútua. Neste caso, distinguem-se as "classes" dos operadores industriais, dos burocratas, dos executivos, dos trabalhadores de escritório, dos agricultores, dos operários especializados, dos não-especializados, dos políticos, dos intelectuais, etc.9

Numa análise sistemática a respeito desse tema, Max Weber, em seu estudo "Classe, Status e Partido", apresenta-nos uma versão mais

7 Para uma análise aprofundada do problema da legitimação política no âmbito da sociedade capitalista avançada, ver Claus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, pp. 262-289. s Ver, nesse sentido, Georg.es Gurvitch, As Classes Sociais, São Paulo, Global, 1982, pp. 92-115. Ver, também, Vilfredo Pareto, As Elites e o Uso da Força na Sociedade, in Sociologia Política, comp. Amaury de Souza, Rio de Janeiro, Zahar, 1966, pp. 70-88. 9 Ver Georges Gurvitch, op. cit., pp. 117-167. Ver, também, Theotonio dos Santos, Conceito de Classes Sociais, Petrópolis, Vozes, 1982, pp. 10-14. Ver, também, Pitirim A. Sorokin, "O que é uma Classe Social?", in Estrutura de Classes e Estratificação Social, comp. A. Roberto Bertelli et alii, Rio de Janeiro, Zahar, 1966, pp. 77-84. Idem, na mesma coletânea, Georges Gurvitch, "Defi­nição do Conceito de Classes Sociais", pp. 85-100.

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crítica, embora ainda não consiga se desprender da perspec!iva des­critiva que enlaça uma visão conservadora do mundo social e de suas diferenças.10 Não concebendo as classes sociais, como o faz · Marx, a partir do critério da propriedade ou não-propri~dade dos meios de produção, com a inevitável repercussão quanto à oposição entre explo­radores e expl9rados, Weber encara esse conceito como expressão de "grupos de renda" que se configuram pela sua situação no mercado de bens e serviços, caracterizados por uma pluralidade de interesses comuns, o que enseja admitir também e por conseqüência a pluralidade de classes sociais.11 Partindo de uma referência dicotômica --'- que não se confunde com aquela entre classes dominantes e classes domi­nadas da análise marxista- na qual distingue "classes proprietárias", diferenciadas pelo tipo de propriedade de que extraem suas respectivas rendas - afuguel, renda fundiária, lucro empresarial, renda comercial, juro, etc. -, e " classes de aquisição", diferenciadas pelo tipo de . serviÇos dfertados no mercado pelos seus membros integrantes -serviços profissionais diversos-, Weber concebe as diferenças sociais no âmbito de um pluralismo acentuadamente complexo, uma vez que tanto as classes proprietárias como as de aquisição se dividem num grande número de agrupamentos coin interesses extremamente dife­renciados em função da natureza econômica dos bens apropriados e dos serviços prestadosP Weber não escapa também à ordenação escalonada das classes na medida que entende haver entre as classes

. " positivamente privilegiadas", como as classes proprietárias, e as "ne­gativamente privilegiadas", como as que só podem oferecer serviços não-especializados, vários agrupamentos intermediários consignados sob a quàlificação de "classe média".13

Entretanto, as questões relativas a identificação, qualificação e dimensionamento das classes . sociais em Weber não esgotam a análise

10 Ver Max We!;J.er, "Classe, Estamento e Partido", in Hans Gerth e C. Wright Mills (compil.), Ensaios de Sociologia, 2.• ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1971, pp. 211-228. 11 "De acordo com nossa terminologia - diz Weber -, o fator que· cria uma 'classe' é, inequivocamente, o interesse econômico, e, na verdade, apenas aque­les interesses ligados à existência do mercado •. Idem, ibidem, p . . 214. 12 Idem, ibidem, pp. 213-14. 13 Ver Max Weber, Economía y Sociedad, I, 2." ed., Bogotá, Fondo de Culttira Económica, 1977, pp. 242-246.

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por ele procedida em relação à estratificação social, pela qual os indi­víduos, as famílias e os grupos sociais estão hierarquizados, uns nos escalões superiotes e outros nos inferiores. Para Max Weber, as classes sociais estão apenas referenciadas à dimensão da ordem econô­mica - não ao nível específico da produção, mas ao nível do mercado, da distribuição da renda e da circulação e troca de bens e serviços-, restando outras dimensões da sociedade - a ordem social e ·a ordem política - que perfazem o . quadro geral da estratificação social por ele analisada. Nesse sentido, comenta Rodolfo Stavenhagen, num pre­cioso estudo sobre classes sociais e estratificação social, "Max Weber fez a já famosa distinção entre as três dimensões da sociedade: a ord~m econômica, representada pela classe; a ordem social, reprt!sen­tada pelo status ou estamento (stand); e a ordem política, representada pelo partido. Cada uma destas dimensões tem uma estratificação pró­pria: a econômica, representada pelos rendimentos e pelos bens e serviços de que dispõe o indivíduo; a social, representada pelo prestígio e pela honra que desfruta; e a política, representada pelo poder que ostenta. A classe, portanto, baseada na ordem econômica, não seria mais que um aspecto da estrutura social, aspecto que •. segundo T. H . Marshall, está perdendo sua importânCia na sociedade moderna, diante da importância do status como elemento primordial da estratificação social" .14

Na ordem social, Weber distingue claramente a classe do status, visto que traduzem agrupamentos de natureza diversa, identificáveis por critérios diferentes. "Em contraste com as classes, diz Weber, os grupos de status constituem normalmente comunidades. Com fre­qüência, porém, são do tipo amorfo. Em contraste com a 'situação de classe' determinada · apenas por motivos econômicos, desejamos desig­nar como 'situação de status' todo componente típico do destino dos homens, determinaqo por uma estimativa social específica, positiva ou negativa, da honraria . . Essa honraria pode estar relacionada com qualquer qualidade compartilhada por uma pluralidade de indivíduos e, decerto, . pode estar relacionada com uma situação de classe: as distinções de classe estão ligadas, das formas mais variadas, com as

14 Cf. Rodolfo Sfavenhagen, ·Classes Sociais e Estratificação Social ", in Ma­rialice M. Foracchi e J. de Souza Martins (orgs.), Sociologia e Sociedade, Rio de J aneiro, LTC, 1983, p. 284.

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distinções de status. A propriedade como tal nem sempre é reconhecida como qualificação estamental, mas a longo prazo o é, e com extraordi­nária regularidade."15 Desse modo, como já apontamos, as classes se definem por interesses comuns resultantes dos tipos de renda e serviços que os diversos grupos percebem ou oferecem no mercado. Os grupos de status, entretanto, se configuram pelos modos e estilos de vida em função dos hábitos de consumo e dos valores que os presidem, podendo os indivíduos da mesma classe pertencer a grupos de status diferentes e vice-versa. Assim, por exemplo, no âmbito do status importa mais como o indivíduo gasta seus recursos do que como os ganha, tendo sempre em vista a expressão exterior de sua maneira de ser para a captação d~ simpatia, admiração, respeito, etc. Está claro, como foi dito, que existe uma certa correlação entre a situação de classe e o status, visto que normalmente a posição que o indivíduo desfruta no plano econômico reflete-se também na forma e possibilidade de parti­cipar de um determinado estilo de vida.

Na ordem política, Weber destaca o partido como uma outra forma específica de distribuição do poder. Com efeito, classe e status para ele são, como no caso dos partidos políticos, formas de distribuição de poder na sociedade. A ação do partido, num concepção mais ampla, é orientada para a aquisição e manutenção de "poder" social, com o objetivo de influenciar uma

1

comunidade, que, em princípio, pode ser um clube social tanto quanto um Estado. Tais ações comunais de partido "sempre se dirigem para um objetivo pelo qual se luta de uma forma planejada ( ... ) . Em qualquer caso isolado, os partidos podem representar interesses determinados através de uma situação de classe ou de uma situação de status e podem recrutar seus adeptos de uma ou de outra ( ... ). Na maioria dos casos, são, em parte, partidos de classe e, em parte, partidos de status, mas às vezes não são nem uma coisa nem outra".16 Vê-se, por essas linhas de Weber, que o partido, característico do Estado racional moderno, deve ser considera­do uma dimensão da hierarquia social tão importante quanto a classe ou o grupo de status, e a distribuição do poder, por conseqüência, não deve estar necessariamente ligada à dominação econômica.

1 i\ Cf. Max Weber, Classe, Estamento e Partido, op. cit., pp. 218·219. 16 Jçlem, ibidem, passim, melh., p. 227.

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Neste plano, podemos assinalar as dificuldades para a consecução de uma verdadeira explicação da dinâmica estrutural da sociedade, apenas com fundamento nos esquemas de estratificação que mostram estamentos ou classes "superiores", "médias" e "baixas", ou seja, sem levar em conta outros fatores subjacentes às manifestações empíricas das desigualdades sociais. É curioso notar que a análise do processo dinâmico relacionado com a estratificação geralmente se prende ao estudo do grau de mobilidade dos indivíduos entre os estratos sociais; por essa linha sói afirmar-se que o antagonismo de classe na sociedade ir.dustrial moderna tem sua realidade esmaecida, chegando até mesmo ao desaparecimento em razão do alto grau de mobilidade alcançado.17

Esse argumento encontra objeções muito sérias em relação às limitações estruturais já por nós analisadas. Por outro lado, ao deixar de lado as reais condições sociais e econômicas do fenômeno da mobilidade, grande parte dos estudos sobre esse tema tende a enfocá-lo sob o prisma estritamente psicológico, com ênfase nos fatores subjetivos, tais como as aspirações pessoais, as motivações, o desejo de poder e de prestígio, as atitudes de aparência e ostentação, etc. Nesse sentido, esses estudos têm pouco contribuído para o esclarecimento e real explicação das estruturas sociais e de sua dinâmica.18 Com efeito, os estudos da estratificação social geralmente não ultrapassam o nível da experiência imediata, com tendência a · permanecerem no âmbito de simples descrições estáticas que não conduzem à compreensão das estruturas. Esses estudos, portanto, requerem uma análise sob a pers­pectiva histórica (não historicista) dos fatores de processo e de mu­dança social, com a finalidade de revelar o aspecto dinâmico e estru­tural dÓ fenômeno da estratificação; essa abordagem liga-se necessa­riamente, a nosso ver, à análise da estrutura de classes sociais.

Dentro de um modelo abstrato, porém significativo para a compreensão das relações de classes, podemos assinalar a estruturação dicotômica cujo eixo são as relações de propriedade e controle dos meios de produção, segundo as quais grupos de indivíduos estão divi­didos em uma minoria de "não-produtores", controladora desses meios,

17 Ver, nessa linha, a análise de . Alan Swingewood, Marx e a Teoria Social Moderna, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1978, pp. 141-152. 18 Ver, nesse sentido, Rodolfo Stavenhagen, op. cit, pp. 284-286. Ver, também, L. A. Costa Pinto, op. cit., pp. 177-199.

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e uma matona de "produtores" (diretos e 'indiretos), da qual 'se excluem o manejo e acumulação do produto social excedente.19 Vemos que essa relação estrutural pressupõe não apenas o caráter reiterativo de sua vigência, cuja recorrência permite a reprodução do sistema, como também a existência de agentes coletivos (grupos sociais) qua­lificados como dominantes e dominados, exploradores e explorados, · em função da posição que guardam em face do controle dos meios de produção, e de cuja dinâmica resulta a acumulação (ampliada ou não) do excedente econômico por parte da minoria privilegiada em detrimento da maioria produtora. As classes são, assim, grupos de conflito que se integram num sistema de reciprocidade social de tal _ modo que "nenhuma classe pode livrar-se da relação sem, com isso, perder a sua identidade como cla~se distinta".20 Por isso, as classes são produto da totalidade das relações sociais, e principalmente de um modo dominante de produção e do conflito social nele contido. Assim, uma classe só se diferencia e se mantém como tal enquanto permanece em oposição e conflito objetivo com outra classe; falar de classe, portanto, só tem sentido quando se considera a classe como parte integrante do sistema de classes no interior de uma determinada for­mação econômico-sociai.21 O sistema de classes compõe-se de confor­midade com uma dinâmica processual, onde as classes se constituem · reciprocamente no seio de relações .9_.ue englobam organicamente as vinculações dos homens com a natureza e entre si mediante os · instru­mentos e meios de produção.22 Nesse processo, verifica-se, por um lado, a necessidade de haver excedente econômico, visto que sua inexistência implicaria um estágio econômico de nível extremamente baixo, cuja produtividade não levaria senão à subsistência do próprio produtor, não justificando a apropriação dos meios de produção por parte de um segmento social, exatamente por não haver e~cedente para acumular. Então, a ocorrência de excedente econômico é condição necessária, embora não suficiente, para a existência de classes sociais. Por outro lado, o desenvolvimento histórico da produção e .da produtividade do

19 Ver, nesse sentido, Anthony Giddens, A Estrutura de Classes das Sociedades Avançadas, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, pp. 28-36. 20 Cf. Anthony Giddens, op. cit., p. 32. 21 Ver, nesse sentido, Zygmunt Bauman, op. cit., pp. 62-69·. 22 Ver Nicos Poulantzas, As Classes Sociais, op. cit., PP-. 91-99.

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trabalho, do qual decorre o crescente sobreproduto social, está inequi­vocamente ligado à divisão do trabalho (técnica e social), permitindo a especialização, a dependência recíproca _dos produtores, o aperfei­çoamento dos meios de produção, a maior produtividade do esforço humano e, finalmente, a instituição da propriedade familiar e particular dos instrumentos e recursos produtivos, com o conseqüente apareci­mento de classes sociais antagônicas.

No plano dessa concepção dicotômica, consignada ao nível de uma análise teórica, entreabre-se a oportunidade de ver que as classes sociais não se identificam com grupos de renda, de vez que seus

·modos de consumo, suas aspirações, consciência política e estilo de vida estão determinados, ·em última instância, pelas relações de pro­dução e não apenas pelas relações de distribuição. Isso significa, por exemplo, que dois indivíduos podem ter rendas iguais, mas, ainda assim, pertencerem a classes diferentes, como ilustra o caso de dois eletricistas, um com o seu próprio estabelecimento de serviço e o outro empregado em uma grande corporação industriaP3

Neste ponto é preciso apontar para uma importante distinção no que respeita ao direito de propriedade: a propriedade jurídico-formal, a propriedade real ou econômica e a posse efetiva dos instrumentos de produção. Essa distinção servirá para caracterizar com maior pre­cisão a questão da propriedade, da posse material e do efetivo con­trole desses instrumentos. Sob o ângulo jurídico-formal, o direito de propriedade se configura como o daquele que detém um bem com a faculdade (direito subjetivo) de usar, gozar e dele dispor. Entrêtanto, no que diz respeito aos bens de p_rodução e sob o ângulo econômico­social; esse direito de propriedade só se torna propriedade real· ou econômica quando seu detentor possui um poder efetivo de colocá-los em ação, em termos de organização do processo produtivo ou de manipulação desses bens, ou seja, quando pode combinar um deter­minado tipo de posse com um determinado tipo de domínio ou con- · trole organizacional do processo produtivo. Exist~ posse efetiva (ma­terial) - que não se confunde com a posse jurídica - quando há apenas a relação (técnica) dos produtores diretos - os trabalhadores - com o objeto e com os meios de trabalho, sem o poder de dispor

2'3 Ver, nesse sentido, Anthony Giddens, op. cit., p. 31.

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do produto derivado da produção, ou seja, sem o controle ou o poder de organizaÇão do processo produtivo . e de apropriação direta de seus resultada,s. ,Assim, a propriedade real ou econômica, "o controle real dos meios .de produção, distingue-se da propriedade jurídica - tal como está consagrada pelo Direito -, que é uma superestrutura. O Direito, em geral, diz Poulantzas, confirma a propriedade econô­mica; mas as formàs de propriedade jurídica podem não coincidir com a propriedade econômica real. Nesse caso, é esta última que con­tinua sendo determinante para a definição das classes sociais" .2 4 Essas distinções são importantes porque explicam, por exemplo, certas re­lações em que o "proprietário", isto é, o titular jurídico dos bens de produção, não é simultaneamente o "controlador técnico" desses mes­mos bens, como no caso das relações feudais de produção, onde o senhor tem a propriedade jurídica da terra, mas cabe ao produtor servil a posse efetiva dela, já que a faz produzir com seus próprios meios de trabalho. Neste caso, o direito do senhor de dispor dos pro­dutos resultantes do trabalho só se torna um efetivo poder de dispor quando respaldado pela intervenção de fatores extra-econômicos po­líticos ou ideológicos, acarretando a subtração, pelo senhor, do exce­dente da produção, mediante o rigor das relações políticas de domi­nação, que obrigam o servo a entregá-lo, sob a forma de serviços pessoais (corvéia) ou de produtos (foro em espécie) ou ainda de pecunia (censo).25 Neste caso, distinguindo-se radicalmente do modo capitalista de produção, as relações entre os indivíduos são jurídica e faticamente diferenciadas no âmbito de uma hierarquia social aris­tocrática, tutelada sob formas ideológicas determinadas, encimada pela realeza, seguindo-se o clero, a alta nobreza (duques, marqueses, con­des), a pequena nobreza (viscondes, barões, cavaleiros), uma inexptes­siva burguesia e, enfim, a massa constituída pelos servos da gleba (presos à terra) e os vilões (livres). De forma oposta, no sistema capitalista, como mais adiante veremos, o pressuposto da ~'liberdade"

e "igualdade" formais dos indivíduos produtores e da necessidade a

24 Cf. Nicos Poulantzas, ibidem, p. 92. 25 Ver, nesse sentido, Rubin Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco e Oscar Guilherme Pahl Campos Lopes, História das Sociedades: Das Comunidades Primitivas ~s Sociedades Medievais, Rio de Janéiro, Ao .Livro Técnico, 1980, pp. 388-394,

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que estão sujeitos no sentido de venderem sua força de trabalho no mercado, aos detentores dos meios de produção, demarca com grande significação e destaque a identidade entre a propriedade jurídic~ e a propriedade real ou econômica de tais meios por parte destes últi­mos. Neste modo de produção, extremamente dinâmico, torna-se curiosa a relação de controle representada pela sociedade por ações, onde existe uma multidão de proprietários no sentido jurídico-formal do termo, porém apenas um grupo reduzido deles é que tem a pro­priedade econômica real dos meios de produção e o poder de induzir à acumulação ampliada do capital. Esse marco de consideração a respeito da propriedade e do controle dos bens produtivos é expres­sivo e relevante para afastar a concepção ingênua a respeito da "so­cialização" da propriedade desses bens, dentro das condições de pro­dução onde a lógica do capital é imperante. Algo distinto, porém no mesmo sentido, se pode encontrar no que respeita à divisão das classes sociais no campo, quanto ao caso dos grandes arrendatários. Estes " pertencem ao campesinato rico, não tendo a propriedade jurídica formal da terra, que pertence ao capitalista rentista. Embora esses grandes arrendatários pertençam ao campesinato rico, isso não quer dizer que tenham altos rendimentos, mas que têm o controle real da terra e dos meios de trabalho, isto é, que são seus proprietários eco­nômicos ' efetivos'?6 O direito positivo t~m normalmente uma forma para recobrir parcialmente essa situação de controle econômico dos bens de produção, que é o instituto da posse jurídica; entretanto, essa forma não exprime a totalidade das relações implicadas na proprie­dade real ou econômica, como é o caso já mencionado da sociedade por ações. Nessa mesma linha de considerações, não é possível e.lvidar o exemplo, muito discutido, concernente à URSS e aos países do socialismo real. "A propriedade jurídica formal dos meios de produ­ção, diz Poulantzas, pertence ao Estado, considerado como o Estado do "povo". Mas- dado o debilitamento dos sovietes e dos conselhos operários - o controle real, a propriedade econômica, certamente não pertence aos próprios trabalhadores, mas aos "diretores de em­presa" e aos membros do aparelho estatal. Assim, é legítimo perguntar se, sob a forma de propriedade jurídica coletiva, não se oculta uma nova forma de propriedade econômica privada e, desse modo, se não se deveria falar de uma nova burguesia na URSS. De fato , abolição

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da "propriedade privada" como base de classe não quer dizer mera abolição da "propriedade jurídica privada", mas abolição da proprie­dade econômica -real: isto é, controle dos meios de produção pelos próprios trabalhadores. Só a "auto gestão" operária pode modificar fundamentalmente a propriedade econômica e, assim, levar a uma abolição das classes".26 Naturalmente, esta posição coloca o acento não apenas na expropriação do -excedente econômico de uma classe por outra - caso em que sempre haverá o controle da organização produtiva e distribuição de seus resultados por parte das classes pro­prietárias -, mas também na forma como a organização e o controle da produção se realiza, isto é, se com ou sem a participação dos pro­dutores diretos. Segundo essa postura, a acumulação social não é su­ficiente para caracterizar uma sociedade sem classes. Esta é uma questão aberta; entretanto, pode-se considerar seguramente que nesse tipo de sociedade o problema das classes sociais - se é que é possível considerar a estratificação social nesse tipo de sociedade segundo o enfoque de classes _~ certamente assume características fundamental­mente diferenciadas, exigindo tratamento teórico diverso daquele rea­lizado em razão das sociedades onde prevalece o modo de produção mercantil.

A abordagem que encetamos, conforme se depreende das linhas anteriores, pressupõe uma teoria de classes onde o conceito de classe adquire valor analítico no sentido. de ultrapassar a perspectiva sim­plesmente descritiva e estática, alcançando uma instância explicativa das forças dinâmicas reais da sociedade. Sendo categorias históricas, as classes sociais ganham características estruturais e significações

diferenciadas nos diversos estágios de desenvolvimento da sociedade. Daí porque não e pode, como fazem as escolas sociológicas que tra­balham com o conceito de estratificação, identificar a sedimentação das classes altas, médias e baixas em todas as sociedades e em todos os tempos. As classes têm sua formação, desenvolvimento, modifica­ção e extinção determinado no seio da dinâmica histórica das trans­formações sociais, e segundo as contradições específicas cujas parti­cularidades e movimento dialético só podem ser destacados em função

26 Cf. Nicos Poulantzas, ibidem, p. 93 (grifo nosso).

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de pesquisas empíricas.27 Na verdade, a sociedade não tem sido algo que contém classes sociais; ela mesma tem se revelado através das próprias classes em conflito permanente, potencial ou explícito, e que representam as forças motrizes de sua transformação estrutural. Pcr isso, pode-se considerar, pelo menos até o presente histórico, que as classes, surgidas de determinadas condições estruturais da sociedade, constituem também seu núcleo estrutural e, ao mesmo tempo, fator de sua dinâmica interna. Essa dinâmica abrange o reconhecimento de que uma "sociedade não se define, unicamente, pelo que é, mas sim pela superação que a leva para além de si mesma e que, portanto, a opõe a si mesma. Esta tensão fundamentalmente não é senão a opo­sição da criação do trabalho e sua reprodução. Esta não-coincidência da ·sociedade consigo mesma implica, necessariamente, uma cisão entre os membros da sociedade".28

Vê-se, por esse enfoque, que a forma de superar o subjetivismo na escolha do critério para definir as classes sociais reside justamente na análise da integração estrutural objetiva da sociedade, ou seja, no exame da relação de grupos sociais com os meios de produção. A análise estrutural da sociedade revela que as classes sociais ocorrem no interior de um sistema sócio-econômico determinado, no qual as classes estão ligadas dialeticamente, onde as relações implicadas são de oposição e conflito e de complementaridade e dependência. 29 Desen­volvendo melhor esse conceito, podemos destacar inicialmente um aspecto funcional a par da face estrutural já apontada com respeito à relação de propriedade e de não-propriedade que os agentes coletivos estabelecem com os meios de produção. Esse aspecto funcional (que não se identifica com o princípie do funcionalismo sociológico) se caracteriza pela divisão de gr1,1pos sociais em relação à propriedade da mesma massa de bens de produção, em uma determinada sociedade e num certo momento histórico. Com efeito, se não houver divisão

2 7 Para uma investigação empírica aprofundada sobr.e as estruturas SOCiaiS e as conseqüências colocadas pelo imperialismo e pelos conflitos de classes nos países do terceiro mundo; ver James Petras, Imperialismo e Classes Sociais no Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, Zahar, 1980. 2 8 Cf. Alain Touraine, "As Classes Sociais •, in As Classes Sociais na América Latina, op. cit., p. 11. 29 Ver, nesse sentido, Anthony Giddens, op. cit., p. 32-33.

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social a respeito da propriedade desses bens, diremos que eles "per­tencem" a todos; nesta hipótese, as relações entre os homens se equa­lizam economicamente. Caso contrário, estarão tais bens vinculados a um grupo que não podendo sozinho manipulá-los produtivamente, em sua plenitude, deverá "contar" com o esforço de outro grupo social "disposto" a fazê-lo sob pena de não sobreviver, quer porque a negação de cada indivíduo ou do grupo social subalterno na pres­tação ,de seu esforço suscitaria o revide político direto da outra parte pela violência (na sociedade escravista ou feudal), quer porque os indivíduos dele integrantes não poderiam, isoladamente, subsistir sem ofertar sua força de trabalho no mercado (na sociedade capitalista). Esse aspecto funcional leva-nos à conclusão de que não existem classes isoladas; não há classes entificadas, existentes em si e por si, para depois entrarem em relações recíprocas e externas. Elas só existem numa relação dialética de dependência mútua, sendo distinguíveis exa­tamente pelas relações específicas que se estabelecem entre elas; só existem em relação uma com a outra, uma em função da outra.30

Dentre as múltiplas e possíveis relações entre as diferentes classes, algumas se destacam por serem estruturais e determinantes de inte­resses objetivos, decorrentes das respectivas posições específicas em face dos meios de produção, no processo econômico.31 Esses interesses não somente se distinguem pela posição diferenciada etp relação aos bens e recursos produtivos, mas também são contrários e opostos por­que mutuamente excludentes, visto que a acumulação de riqueza em um dos pólos só pode ser realizada em detrimento de sua distribuição em outro. Contudo, é preciso levar em conta que se as classes anta­gônicas, "além de terem interesses contrastantes, têm também interesses que podem ser satisfeitos ao mesmo tempo mediante uma idêntica aplicação de meios, isso não anula a existência de seus conflitos; só demonstra- que os conflitos adquirem o aspecto de uma relação muito mais complexa".32 Na verdade, as situações de conflito entre classes e frações de classes podem variar desde os processos mais profundos de transformação radical da formação econômico-social da sociedade,

ao Nessa linha, ver Rodolfo Stavenhagen, op. cit., p. 289. at Ver, nesse sentido, Ralf Dahrendorf, As Classes e Seus Co11/litos na Socie­dade Industrial, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1982, pp. 24-46. a2 Çf. Zygmunt Bauman, op. cit., p. 56.

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especialmente quando só se pode conseguir a realização dos objetivos de uma classe mediante a anulação da possibilidade de realização dos objetivos de outra classe - por exemplo, o conflito entre a burguesia e os senhores feudais - até os processos conflitivos concernentes à distribuição dos bens nos limites do próprio sistema produtivo exis­tente, quando a satisfação dos interesses de uma classe ou de suas fràções diminui as possibilidades de satisfação dos interesses de outra, ou de suas frações, como ocorre nos conflitos de interesse entre fra­ções da mesma ·classe ou nos conflitos "econômicos" entre classes antagônicas levados a efeito através das lutas sindicais.313 Observa-se, portanto, que as situações de conflito entre classes sociais - e que, é bom que se diga, não são as únicas em uma sociedade complexa, mas são de caráter estrutural - definem-se objetivamente em razão do controle dos meios de produção, por uma parte da sociedade, pelas classes dominantes, e o conseqüente controle da distribuição dos bens socialmente produzidos, em detrimento da satisfação dos interesses da outra parte, das classes subalternas ou dominadas. E não se diga que a maior produtividade do trabalho, pela introdução de meios de pro­dução mais aperfeiçoados, elimina essa lei da oposição e contradição dos interesses das classes antagônicas, já que essa iniciativa, promo­vida em razão da própria luta de classes., dá-se exatamente para incre­mentar a produção no sentido de possibilitar o aumento e a aceleração da acumulação em favor da classe dominante.

As relações que se estabelecem entre as classes sociais perfazem, portanto, uma unidade de contrários; são relações especificadas his­toricamente em função de um deterwinado modo de realizar o pro­duto social. Se este produto, por exemplo, demanda vínculos especí­ficos com a terra, para seu cultivo, dentro de condições tecnológicas definidas em termos de qualidade e nível de desenvolvimento dos instrumentos de produção, poderemos ter, conforme o grau desse pro­cesso, um relacionamento feudal ou capitalista entre os homens. Evi­dentemente as relações feudais, hierarquizadas por laços de depen­dência pessoais e demarcadas por autarquias econômicas territoriais, com baixa produtividade e esmaecidas relações de troca, jamais se

33 Ver, idem, ibidem, p. 57. Ver também, nesse sentido, Ralf Dahrendorf, op. cit., pp. 199-213.

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compatibilizariam ou poderiam ser mantidas com ou num modo de produção cujo processo econômico no campo se efetuasse ·mediante a mecanização, a eletrificação, o uso de defensivos agrícolas, o crédito, a ampliação dos meios de transporte, etc. Vê-se por aí que, numa análise estrutural, as classes sociais e os vínculos específicos que elas guardam entre si, caracterizam-se também pelo tipo ou modo de re­lação mediadora e dialética que os homens mantêm com a natureza para a preservação e ampliação do seu domínio sobre ela."4

O sistema de classes, por conseguinte, não pode ser concebido senão no interior de uma unidade dialética de oposição, contradição e dependência, historicamente determinada, onde suas relações não vinculam elementos coisificados a elas preexistentes, como se fossem reciprocamente externos um ao outro. As classes, portanto, ganham realidade no processo de seu próprio relacionamento dinâmico e con­traditório, contribuindo essencialmente para a transformação das es­truturas sociais. E mais, elas não se podem igualar materialmente entre si nesse processo, caso em que haveria identidade entre as clas­ses , cujos membros integrantes passariam todos por não-possuidores dos meios de produção ou por possuidores coletivos dos mesmos, vale dizer, haveria a cabal extinção delas. Isso significa que as classes so­ciais recipr-ocamente dependentes, opostas e contraditórias não se po­dem homogeneizar entre si sob pena de desaparecerem como Classes. Por iss~ , a desigualdade das classes reciprocamente referenciadas, como dominantes e dominadas, exploradoras e exploradas, é essencial à própria configuração das mesmas. Com efeito, as relações de opo­sição de classes são fundamentalmente assimétricas, induzindo, por conseqüência, aos inevitáveis conflitos de interesses, visto que elas nunca se enfrentam em plano de igualdade material. Eis porque "as

H Aqui é preciso muita cautela para evitar-se o "desvio· economicista que propugna pela idéia de que o desenvolvimento das forças produtivas, na sua "automaticidade inexorável" , é o fator responsável da evolução e transforma­ção históricas, atribuindo-se às relações de produção apenas o papel de estra­tificador do sistema social. A propósito, Granou afirma com certo exagero que "as forças produtivas não ditam a sua ·finalidade do exterior através das rela­ções de produção, entraves de que a 'revolução' as haveria de libertar, mas são o produto imediato do desenvolvimento das relações de produção capita­lista que preexistem às mesmas". Cf. Andre Granou, Capitalisme et Mode de Vie, Paris , Lcs Eqitions du Cerf, 1972, p. 28.

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posições diferenciais que as classes ocupam na estrutura sócio-econô­mica permitem que umas tenham maior riqueza, maior poder. econô­mico, maior domínio político que outras, e este poder e este domínio são exercidos em detrimento dos interesses das classes que deles care­cem".35 Essa relação de oposição, contradição e dependência será, portanto, qualificada como relação de "dominação-subordinação". Dessa relação surgem as contradições e antagonismos gerados funda­mentalmente pela concorrência no processo produtivo, em virtude de a propriedade real dos meios de produção permitir que a mais-valia produzida por uma classe seja apropriada pela outra.

Obviamente, esse processo objetivo reflete-se, quanto aos inte­resses em conflito, no plano dos vários graus de consciência que os membros das classes sociais podem ter de si mesmos no que respeita a sua posição ou situação de classe, exatamente em relação ao con­fronto social apontado, em diferentes níveis de intensidade, que per­mite ao mesmo tempo a identidade e a diferenciação das respectivas classes ou frações de classe entre si. Por isso, "a percepção da unidade de classe está ligada ao reconhecimento da oposição de interesses com outra classe ououtras classes".3 6 Nesse sentido, a agudização das con­tradições entre as classes sociais e de seus interesses em função da própria lógica da acumulação ampliada do capital e de seus momentos de crise cria as condições objetivas que possibilitam o despertar e o aprofundamento da consciência de classe. Esta será tanto mais expres­siva e revolucionária - tendente à transformação das relações sociais de produção - quanto menos potente for a ação das classes domi­nantes e das elites dirigentes para a absorção dos conflitos nos quadros da ideologia hegemônica, com vistas a manter e assegurar o processo de reprodução das relações sociais de que são beneficiárias.

É preciso, porém, considerar que a situação objetiva de classe e o antagonismo entre as classes não são suficientes por si sós para con­figurarem uma plena consciência de classe por parte de seus membros, embora· constituam condições que possibilitam, quanto às classes su­balternas, o despertar da consciência reflexiva de seus elementos inte-

35 Cf. Rodolfo Stavenhagen, op. cit., p. 289. 3·6 Cf. Anthony Giddens, op. cit., p. 135 (grifo nosso). Para uma análise mais aprofundada, ver Georg Lukács, História e Consciência de Classe, Porto, Publi­cações Escorpião, 1974, pp. 59-96.

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grantes, sob a ação mais ou menos organizada da práxis política tendente a transformar as relações sociais dominantes. Assim, a cons­ciência transformadora surge na luta de classes, mas não dela. A classe dominante, na sociedade mercantil, já tem sua expressão hegemônica em razão do fundamento objetivo que se traduz nas próprias relações sociais assimétricas existentes sob o regime capitalista, onde as con­tradições e os conflitos sociais são escamoteados exatamente para fa­vorecer a continuidade da reprodução daquelas relações desiguais. Dentro desse processo, os agrupamentos dominantes se "esforçam" por manter a " consciência espontânea" para si e para as classes su­balternas, com vistas a propiciar a prevalência da ideologia dominante e, assim, garantir aquela reprodução. Tal "esforço" já é a expressão mesma do conteúdo da própria ideologia dominante, esposada, de modo geral de forma inconsciente, por todos os segmentos sociais, grupos e classes. Eis porque essa ideologia também é uma tradução da consciência espontânea que, no interior de seu próprio jogo, se envolve na ilusão de que possui ~'toda verdade" do mundo social. f: por essa razão que " se o desenvolvimento espontâneo do movimen­to operário não leva a uma consciência de classe nem à práxis revo­lucionária, todo fortalecimento da espontaneidade só serve para debi­litar essa práxis. O peso do espontâneo se traduz precisamente na inexistência da consciência de classe por parte dos agrupamentos do­minados";37 mas essa inexistência não representa propriamente um vazio ideológico: ele é ocupado pela ideologia dominante, pela ideo­logia burguesa. Por isso, na expressão de Lenin, "o desenvolvimento espontâneo do movimento operário caminha exatamente em direção a sua subordinação à ideologia burguesa";.a8 ou seja, "uma práxis es­pontânea do proletariado acaba por entrar em contradição com seu ' ser' de classe, em virtude de sua sujeição à consciência burguesa" . .a 9

3 7 Cf. Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, ampl. e melh. p. 296 (grifo nosso). Para um exame da consciência de classe nos quadros matriciais da consciência real e da consciência possível, ver Lucien Goldmann, Lisboa, Presença, 1972, pp. 99-110.

38 Cf. V. I. Lenin, "Que hacer?", in Obras Completas, Buenos Aires, Cartago, 1959, p. 382.

39 Cf. Adolfo Sánchez Vázquez, op. cit., p . 296. Ver, também, Alan Swingewood, op. cit., pp. 152-162.

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·Estas questões estão estreitamente relacionadas com o poder hegemô­nico, cuja análise mais detalhada faremos no capítulo seguinte.

Como a unidade do sistema de classes, no modelo teórico dico­tômico examinado, é de caráter dialético, os pólos relacionados são a um só tempo contraditórios, excludentes entre si, e dependentes, ou melhor, interdependentes. Essa interdependência das classes leva-nos a considerar que, mesmo havendo uma assimetria em suas relações específicas, origem de seus conflitos permanentes, latentes ou mani­festos , ou mesmo explosivos, elas "se necessitam" mutuamente, isto é, não há uma classe dominante senão em função de uma classe domi­nada e vice-versa. Isso quer dizer, por exemplo, que no sistema capi­talista de produção, o detentor do capital, de um lado, necessita con­tratar a mão-de-obra indispensável para acionar os meios de produção e, de outro, o detentor da força de trabalho precisa ofertá-la e vendê-la ao capitalista, para poder sobreviver. Sob o ângulo interno do sistema, portanto, existe também uma interseção de interess9, onde a vontade de contratar deve ser mantida e garantida no âmbito de relações for­malmente "iguais" e "livres" entre indivíduos social e economicamente desiguais e não-livres do ponto de vista da totalidade do referido sis­tema e do determinismo . social a que ele está sujeito. Essa questão alcança grande relevância quando se tem em conta a necessária rejei­ção do caráter puramente instrumental do Estado, como meio "utili­zado" pelas classes dominantes para perpetuar a dominação. Veremos isso na ocasião oportuna. Neste momento, interessa-nos apenas subli­nhar o aspecto de ambigüidade que os interesses de classe assumem, no ·processo dialético de seu relacionamento contraditório e interde­pendente.

O caráter ambíguo que os interesses de ~lasse muitas vezes tomam reflete a contradição interna na unidade do sistema . de classes, espe­cialmente no modo de produção capitalistà. Com efeito, se os interes­ses de classe fossem apenas repulsivos entre si, não havendo nenhuma conexão ou parcial identidade entre eles, o sistema econômico não sobreviveria para além de um momento, não sendo possível,sua repro­dução por largos períodos históricos. Nessa ambigüidade apontada, porém, entreabre-se uma certa linha funcional que permite ao sistema dominante pôr em maior destaque o caráter "cooperativo" das classes sociais, como se elas fossem entre si puramente complementares. Neste

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jogo ideológico, o conflito e as contradições são tidos como episódicos, insuflados "de fora", revelando uma certa anomia ou mesmo "pato­logia" do processo social. Esse fato enseja, portanto, considerar que o processo dialético do relacionamento entre as classes, implicando uma unidade de contrários, propicia pôr em relevo também, pelas for­ças dominantes e conservadoras do statu quo, o aspecto parcial da possível compatibilização aparente - sempre transitória - dos inte­resses de .classes .opostas, com a conseqüente depressão ou ocultação, nas abordagens prático-teóricas desse tema, de seus antagonismos. Por que isso ocorre? Não basta fazer referência, em abstrato, à questão dialética envolvida no processo dinâmico das relações entre as classes; é preciso buscar o fundamento desse movimento interno. I! o que veremos a seguir.

A ambigüidade dos interesses de classes, baseada na realidade do processo produtivo, é que permite estabelecer os obstáculos ao pro­cesso de tomada de consciência crítica ou reflexiva por parte dos indivíduos a respeito de sua real situação de classe na dinâmica social. Essa ambigüidade, manifestada por interesses contraditórios e ao mes­mo tempo .não-excludentes entre si, ou seja, interdependentes, repousa na realidade de suas feições sociais ' dialeticamente vinculadas: a que se refere ao (a) processo de produção que já se encontra profunda­mente socializado e, por conseqüência, ao aspecto da comunhão dos interesses sociais em face da preservação e ampliação da mesma massa de bens de · produção, de cujo funcionamento e acumulação depende a sobrevivência de todos os membros da sociedade, sem distinção de classes; e a que se refere ao (b) processo da apropriação do produto social que ainda se mantém em caráter privado, com a particularização ou fragmentação dos interesses sociais, diferenciados assimetricamente em razão da posição, pelos membros da sociedade, como proprietários o~ não (propriedade real) daqueles mesmos bens de produção, permi­tindo sua acumulação ampliada apenas por parte e no interesse de um pólo da relação, isto é, da classe dominante. Para melhor com7 preensão, consideramos que a progressiva soci::tlização do processo produtivo ocorre exatamen}e . em razão do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista, incrementando e sendo incremen­tadas, tais forças, pela divisão da produção social em diferentes ramos, esferas ou setores da economia, intermediados pelo mercado, e ain~a

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pela divisão técnica do trabalho dentro de um mesmo processo de produção.40 Isso significa que, na sociedade onde predomina o modo de produção capitalista, há uma progressiva e cada vez mais profunda interdependência de todas . as atividades econômicas, de tal sorte que não há produto mercantil algum que possa alcançar o mercado sem que antes não se tenha comprometido a quase totalidade das forças produtivas da humanidade na sua produção.

Vemos, por conseguinte, que a primeira feição é de certo modo responsável pela forma "universal" com que se apresentam aparen­temente os interesses dos membros das classes sociais antagônicas. O aspecto da "identidade" aparente dos interesses em conflito, neste caso, tem seu fundamento ·no caráter ~ocializado da produção e refere­se ao marco da sobrevivência de toda a sociedade em seu conjunto. Interessa a todos os seus membros, independentemente desta ou da­quela classe, a preservação do caráter socializado do processo produ­tivo e a conseqüente ampliação dinâmica dos bens de produção e demais recursos produtivos. Esta feição social, portanto, é a condição do modo indiferente como de certa maneira aparecem as classes sociais entre si. Isso quer dizer que o aspecto da comunhão dos interesses, sob o ângulo ideológico, aparece como não sendo diretamente respon­sável pela manutenção da desigualdade social e, por conseqüência, pela existência das classes sociais diferenciadas e antagônicas. No entanto, é uma feição que, na sociedade capitalista, está necessaria­mente presente nas relações entre as classes inconciliáveis e transpa­rece com toda sua força - que não deixa de expressar o esforço do homem para transformar a natureza em seu proveito - mediante a referência a uma "identidade" de propósitos de todos os membros da sociedade para, no âmbito da "solidariedad~ humana", enfrentarem os percalços comuns da sobrevivência social, como um. todo. Tal soli­dariedade, entretanto, é ideologicamente formulada, como ainda vere­mos, exatamente pàra o exercício do poder hegemônico da classe au fração de classe dominante. Essa feição; geralmente identificada como

40 Ver, nesse sentido, Marta Harnecker, Los Conceptos Elementales del Mate­rialismo Histórico, Buenos Aires, Siglo XXI, 1974, pp. 26-30. Ver, também, K. Marx e F. Engels, La Ideología A/emana, Buenos Aires,. Pueblos Unidos, 1973, pp. 32-38.

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o "bem comum", é a responsável pelo aspecto da dinâmica funcional entre as classes opostas e antagônicas e pelas formulações ideológicas que permitem a continuidade histórica e a reprodução do sistema eco­nômico com relativo êxito operacional. A indiferença e generalidade do "bem comum" servem precisamente para dissimular o que não pode claramente aparecer: as diferenças sociais que dilaceram profun­damente o corpo da sociedade dividida em classes.

e. aliás graças a este momento do relacionamento classista que observàmos os "cuidados" destinados a preservar as condições mate­riais e espirituais -pgra manter a continuidade da . relação assimétrica de exploração e domínio. 41 Assim, a tomada das providências desti­nadas a impe.dir que haja exagero na exploração da mais-valia, bem como destinadas a incrementar as condições de contexto social para a persistência e continuidade da reprodução .do sistema (saúde, edu­cação pública, saneamento básico, previdência social, etc.), soa como proteção à coletividade trabalhadora, como de fato é, identificando-se, . por conseqüência, e apenas neste ponto, com os interesses sociais glo­bais. Se, por um lado, ao capitalista interessa, em termos de pura mediação para emprestar dinamismo, eficiência e segurança ao pro­cesso de acumulação ampliada, que se garantam os meios e condições sociais à reprodução da força de trabalho,., de que necessita para pôr em movimento os recursos produtivos, por outro lado, ao produtor, direto ou indireto, interessa ter melhores condições materiais de vida, de aperfeiçoamento pessoal e cultural, para si e sua família, com vis­tas a viver com dignidade e libertar-se da insegurança e das necessi­dades prementes de caráter primário.42 É em razão desse processo que as classes dominantes conseguem tornar hegemônica a expressão "de­vemos todos trabalhar parei o desenvolvimento nacional", a despeito de a acumulação do excedente econômico somente se realizar em seu nome e interesse. Como a massa de bens de produção é basicamente uma só, sob a forma de capital, sua destruição ou não-ampliação não prejudica apenas ao capitalista, mas também ao produtor explorado.

41 Ver, nessa linha, Yves Leclerq, Teorias do Estado, Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 18-23.

42 Ver Jürgen Habermas, A Crise de LegitimaçãÔ no Capitalismo Tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp . 47-56.

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Essa feição social, entretanto, está permeada pela fragmentação social decorrente da posição diferenciada dos agentes sociais coletivos em face dos meios de produção. Aqui é preciso sublinhar o necessário cuidado para não considerar como separa~as as duas feições mencio­nadas, visto que somente se pode distingui-las analiticamente, o gue veicula, por isso mesmo, aquele caráter ambíguo já assinalado em relação aos interesses de classe. Segundo a afeição referente aos inte­resses sociais diferenciados, a oposição antagônica resulta objetiva­mente das diferentes posições dos grupos sociais frente aos bens de produção, demarcando aquela desigualdade, já apontàda, indispensá­vel à caracterização de um sistema de classes. Isso significa que a oposição contraditória dos interesses decorre do quadro estrutural es­pecífico da sociedade, ou seja, do modo como fundamentalmente está ela organizada, num determinado período histórico. Portanto, sob o ângulo da feição social das diferenciações assimétricas e contraditórias, podemos identificar os elementos mais importantes e decisivos para a definição e caracterização da sociedade de classes e de seu dinamismo interno dialético. Por esse processo, torna-se essencial a apreciação dos movimentos e transformações sociais e a partir da consideração das classes em conflito. Ela se integra com a primeira feição social para formar um todo simultaneamente solidário e contraditório, uma uni­dade de contrários.

Em razão desse processo da dialética social, não se pode deixar de destacar com grande relevo a caracterização específica e real dos grupos sociais diferenciados de forma oposta ou antagônica. e. bem real a existência, por uma lado, de trabalhadores industriais, campo­neses, bóias-frias, assalariados do setor terciário, de grandes parcelas sociais de baixa renda e, por outro, de empresários, comerciantes, latifundiários, banqueiros, etc. Isso quer dizer que, se sob a primeira feição, a da comunhão de)nteresses, todos são considerados "homens" de modo geral, com necessidades iguais de, sobrevivência, sob a se­gunda, a da particularidade das posições em face dos meios de pro­dução, todos são diferentes, com aspirações, finalidades, objetivos, interesses distintos, opostos e essencialmente inconciliáveis. Nem é preciso dizer que esta última feição, numa sociedade de classes, é a determinante primordial, visto que os homens se enfrentam, no plano diJ.,s relações econômicas, não como entes gerais e abstratamente indi-

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ferentes, mas como seres reais específicos na qualidade de trabalhador ou de detentor do capital. 4'3 Entretanto, o discurso deste último é realizado sempre no sentido de empanar as condições emergentes da exploração econômica e da dominação política para fazer sobressair e prevalecer, a nível ideológico, o caráter universal subjacente nas re­lações de classe quanto à expressão da comun~ão geral dos interesses, em razão da sobrevivência da sociedade em seu conjunto. Vê-se, neste caso, que a feição relacionada com as aspirações gerais ligadas à pre­servação e ampliação dos instrumentos e demais recursos produtivos tem, numa sociedade capitalista, um fundamento objetivo, condicio­nando, no plano ideológico, a dominância da idéia da comunhão uni­versal e abstrata dos homens exatamente para ocultar as contradições reais originadas da apropriação privada do produto social. É o que ocorre, conservadas as proporções analógicas, na relação dialética entre o valor de uso e o valor de troca no processo produtivo capita­lista . . Ao capital, na sua lógica interna de reprodução e acumulação, interessa a produção do valor de troca, da mercadoria, sem atender direta e especificamente à natureza daquilo que se produz, isto é, ao valor de uso, ao aspecto do produto enquanto possa satisfazer neces­sidades humanas. Entn,'anto, apesar de esse aspecto (valor de uso) não ser o objetivo imediato do capital, este não pode prescindir de maneira alguma desse suporte natural para realizar o valor de troca, visto que só se pode realizar e incrementar o capital mediante a pro­dução e venda de mercadorias que satisfaçam as necessidades huma­nas. Assim, ao capitalista pouco importa produzir sapatos, bicicletas, ventiladores ou refrigerantes, o que importa é produzir mercadorias que possam realizar e ampliar seu capital. Seu objetivo primordial não é a satisfação das necessidades humanas , mas a acumulação am­pliada do capital, coisa, aliás, que só pode fazer com base na produção de utilidades.44 Pois bem, o valor de uso, tal como a feição da comu-

. nhão dos interesses, é objetivo mas não dominante no processo capi-

.ta Ver Victor Molina, "Notas sobre Marx e o Problema da Individualidade", in Da Ideologia, org. pelo Centre for Contemporary Cultural Studies, da Uni­versidade de Birmingham, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, pp. 296-302. Ver, tam­bém, K. Marx, Miséria da Filosofia, Rio de Janeiro, Leitura, 1965, pp. 99-137. 44 Ver, nesse sentido, K. Marx, O Capital, I, São Paulo, Abril Cultural, 1983, seção I, cap. I, pp. 45-49, seção 111, cap. V, 1 e 2, pp. 149-163.

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talista de produção, como exatamente ocorre (ser dominante) com o valor de troca e com a feição dos interesses diferenciados e antagô­nicos. É preciso desde já notar que esse aspecto é de extrema impor­tância para configurar a natureza do Estado frente à sociedade civil, como faremos mais adiante.

Como exemplo expressivo dessa dialética das feições dos interes­ses de classe, ainda no âmbito da referência teórica dicotômica, pode­mos consignar aquele relacionado com a apropriação ·e acumulação ampliada do excedente econômico produzido pelo trabalho social, no interior do modo capitalista de produção. Neste modo social de pro­dução, há inequívoco interesse de todos no processo de produção do excedente econômico, de sua acumulação e ampliação, com vistas a criar melhores condições materiais e espirituais para o desenvolvimen­to social e libertação das necessidades prementes da vida humana. Mas há também, e aqui está o fato dominante, o interesse concomi­tante e transfundido naquele de se realizar a referida acumulação do excedente não em função da sociedade em seu conjunto, mas em fun­ção daquela parcela social que detém historicamente os meios de produção sob a forma de capital. Com efeito, a acumulação e amplia­ção econômica é de fato realizada, porém não em nome e interesse da coletividade, mas em nome e no interesse de grupos particulares ( clas­ses) que para isso detêm a hegemonia econômico-social, política e ideológica da sociedade. Não há dúvida que a coletividade também é de certo modo beneficiada, mesmo que de forma indireta; entretanto, ao preço e um imenso desperdício de recursos produtivos e extravio irracional de finalidades realmente sociais e autenticamente humanas, gerando as profundas desigualdades que impedem uma real libertação do homem com respeito as suas necessidades vitais e espirituais.4 5

Com essa análise a respeito da ambigüidade dos interesses das classes inconciliáveis não pretendemos caracterizar nenhuma neutra­lidade das suas instituições expressivas, tais como o Estado, o Direito, o movimento sindical, etc., visto que a existência mesma das classes pressupõe, como já foi dito, a dominância da assimetria e, também, da oposição e de conflito. Nesse sentido, a consciência de classe, como

45 Ver Shlomo Avineri, El Pensamiento Social y Político de Carlos Marx, Madri, Centro de Estudios Constitucionales , 1983, pp . 228-242.

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auto-conhecimento dos agentes sociais a respeito de sua posição dife­renciada e objetiva frente aos meios de produção e da conseqüente consciência relativa à apropriação privada do excedente econômico produzido socialmente, só se torna possível no âmbito e processo das relações antagônicas, dos conflitos políticos e ideológicos decorrentes

exatamente da disparidade e desigualdade das situações de classe. Isso quer dizer, em última instância, que, enquanto a consciênCÍa da classe dominante consiste em sobrelevar hegemonicamente o fator re­cessivo dos interesses comuns da sociedade, tentando identificar com eles os próprios interesses para ilidir as contradições inerentes ao sis­tema de classes, a consciência da classe subalterna, em seu movimento crítico-reflexivo, consiste em desnudar essas contradições reveladoras da divisão social e da exploração econômica dela resultante, com vistas -a superar tal situação com o predomínio de seus interesses (nas lutas econômicas) ou com a supressão dos fatores estruturais da desi­gualdade (nas lutas políticas). Vale assinalar, portanto, que a cons­ciência de classe está necessariamente referida não diretamente à feição social da comunhão dos interesses, embora · esta feição fundamente a "consciência espontânea" no processo de alienação ideológica, mas à dos interesses antagônicos, com objetivo quer de manter a reprodução do sistema e preservação dos privilégios, quer de fazer prevalecer novos valores emergentes de classes em ascensão, quer ainda de eli­minar os fatores estruturais determinantes da assimetria com a trans­formação radical do sistema de classes. Assim, a situação de classe define-se conforme um fato objetivo onde pode ter lugar, em circuns­tâncias históricas específicas, o posicionamento subjetivo consciente dessa situação, com a intenção de mantê-la ou de superá-la. Por esse motivo, as classes sociais tendem a organizar-se para a· ação política e prática ideológica com o objetivo de, superando interesses espontâ­

neos imediatos, manter ou conquistar o poder do Estado. "A cons­ciência de classe é o elo que permite a passagem da classe 'em si', agrupamento com interesses objetivos 'latentes', à . classe 'para si', grupo de poder qtie tende a organizar-se para o conflito ou a luta política, e cujos interesses tornaram-se, portanto, 'manifestos'. Mas a consciência de classe não surge automaticamente da 'situação de classe', nem todo agrupamento organizado para o conflito político tem por base a classe social. As relações específicas entre a posição de

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uma classe num regime determinado de economia social e sua ação política consciente, cujo propósito pode ser a transformação radical das estruturas sociais ou a manutenção das estruturas existentes, va­riam segundo as circunstâncias históricas particulares e têm que ser, em cada caso, o objeto de investigações empíricas concretas." 46

Finalmente, é indispensável considerar que a análise teórica do modelo dicotômico a respeito àas classes sociais, efetuada dentro de um elevado nível de abstração, tem por fim chegar a categorias bási­cas explicativas da realidade social e política, sem a pretensão de ca­racterizá-las como estruturas meramente formais, uma vez que não representam relações possíveis aplicáveis universalmente fora de qua~­quer contexto historicamente determinado. Isso significa que tal forma de exploração abstrata rtão pode esgotar o plano da realidade histórico­social, visto que esta é infinitamente mais rica do que qualquer for­mulação teórica que a respeito dela se possa fazer. Assim, um mo­mento histórico determinado de uma sociedade concreta não pode corresponder de forma direta a categorias abstratas; estas não podem ser utilizadas de maneira formal, permanecendo abstratamente imó­veis e enrijecidas diante do processo social. Elaborados os conceitos abstratos, estes devem ser negados ao receber os insumos da realidade histórica que pretendem explicar, com o fim de pôr à mostra as limi­tações desse nível do conceito, buscando planos mais concretos de abstração para a efetiva apreensão do real. Isso significa que não po­demos reduzir a realidade histórico-social, tal como se apresenta, ao tamanho da teoria explicativa, posto que também desta teoria aquela realidade não pode ser cabalmente deduzida. Por essa razão, a apli­cação do modelo dicotômico enseja múltiplas aproximações do real, num processo dialético de enriquecimento progressivo das categorias básicas, com o que se pode alcançar explicações extremamente signi­ficativas para a práxis transformadora da sociedade.47

46 Cf. Rodolfo Stavenhagen, op. cit., p. 289. 47 Não deve haver, portanto, uma mera superposição de enfoques diferentes do fenômeno de classes, "mas um sistema ~elacionado de planos de abstração (modo de produção, estrutura social, formação econômico-social, situação so· cial, conjuntura, etc.), que vão desde o mais concreto ao mais abstrato e desde o mais abstrato ao mais concreto". Quanto mais nos aproximamos do concreto, mais as leis gerais se vão redefinindo em relações cada vez mais complexas. A

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Quando ultrapassamos a análise abstrata de um modo de produ­ção determinado, para trabalhar sobre um universo social histórica e geograficamente situado, enfrentamos a expressão de uma formação social específica dominante, com um certo nível de desenvolvimento e entrelaçada com os traços de outras formações sociais passadas ou ainda em gestação no seio dessa formação prevalecente. Nessa linha de análise, torna-se imprescindível operar com dados empíricos de caráter histórico, político, demográfico, econômico, sociológico, etc., com vistas a caracterizar e explicar a situação histórica de uma deter­minada coletividade, seu quadro concreto de relações estruturais e de sua dinâmica específica.4 8 Por esse processo de aproximação do real, as relações gerais, como por exemplo as relações dicotômicas entre classes opostas, antagônicas e interdependentes, vão se redefinindo e se desenvolvendo em relações cada vez mais complexas, desde o nível de análise do modo de produção, perpassando pelos níveis de exame das estruturas sociais, da formação sócio-econômica, da situação his­tórica e social específica de uma determinada sociedade, até o estudo de suas relações conjunturais. 49 Nesse sentido, por exemplo, se pode destacar as grandes modificações da formação social capitalista, ao passar do século XIX para o século XX, do capitalismo liberal para a forma imperialista e, posteriormente, para integração mundial do sistema, fazendo desaparecer em grande medida as barreiras nacionais. O aparecimento da produção em massa, a divisão internacional do trabalho, a mecanização generalizada, a automação em alto grau de desenvolvimento, a informática, a concentração do processo produtivo, etc. condicionam o fortalecimento dos sindicatos, o surgimento e

ciência começa quando a descrição se torna determinação, se torna • concreto­determinado" ou , ao contrário, "universal-concreto·. Certas conjunturas deter­minadas tendem a ace.ntuar as contradições entre a aparência dos fenômenos e seus modos de ser, isto é, sua "essência"; outras conjunturas, contudo, par­ticularmente as revolucionárias, fazem "aparecer" os aspectos essenciais da realidade na experiência imediata. A ciência total empirista absolutiza o ime­diato, pois .não pode mostrar suas relações com os modos de ser ou as condi­ções que o determinam e, portanto, não é ·ciência". Cf. Theotonio dos Santos, Conceito de Classes Sociais, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 29. 4!! Ver Nicos Poulantzas, As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje, 2.' ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp. 23-26. 4!1 Ver, nesse sentido, Theotonio dos Santos, op. cit., pp. 15-29.

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ampliação da "aristocracia operária", das "novas classes médias", com a conseqüente alteração no regime de distribuição da mais-valia e das formas de sua realização. As relações entre cidade e campo, especialmente com a concentração da classe trabalhadora nas áreas urbanas e a criação de unidades produtivas de grande escala e de sofisticados meios de comunicação, possibilitam novas formas de cons­ciência e de união e organização política capazes de fomentar ou de amortecer as reivindicações econômicas e revolucionárias das classes trabalhadoras.

Esse processo, no plano da análise histórico-concreta e na medida .em que esta se aprofunda com relação a formações sociais determi­nadas, enriquece sobremaneira a abordagem do nível teórico mais abstrato que, no entanto, ao ser superado na sua expressão abstrata, mantém-se como eixo fundamental para a explicação da totalidade do dinamismo social. Contudo, à medida que avançamos para o concreto, os conceitos categoriais apontam para uma complexidade onde o plu­ralismo das classes começa a se manifestar, colocando em risco a perspectiva essencial explicativa da unidade estrutural da sociedade. Com efeito, não se adotando a forma dialética de abordar e pensar a realidade social, a tendência é recair no procedimento pseudo-expli­cativo de índole empirista, através do qual se pretende dar valor abso­luto ao imediato descrito, a partir dos fatos coletados. Entretanto, se a análise não se perder na linha desse empirismo de caráter positivista e se houver a vigilância metodológica onde se resguarde permanen­temente a unidade dos contrários, a referida pluralidade poderá ser pensada e explorada sem se perder o caráter explicativo que dá uni­dade de sentido aos processos dinâmicos da transformação social.

Assim, partindo do complexo social mais simples e abstrato, con­tudo fundamental, caracterizado pelo contexto das relações de "domi­nação-subordinação", podemos identificar, em razão da expansão e da intensificação da divisão técnica e social do trabalho, produto da sociedade capitalista industrial, o aparecimento, ampliação e diversi­ficação da chamada classe média, interposta organicamente entre as classes fundamentais. Mesmo estas classes fundamentais não são homo­gêneas no que diz respeito às relações sociais a que dão origem, havendo diferenciação no seu interior, configurando-se em setores, subdivisões ou frações de classe, como os industriais, comerciantes,

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banqueiros, latifundiários, burguesia rural, trabalhadores da indústria, do campo; do comércio, funcionários burocratas, etc. A classe ~édia consiste em grupos diversificados, tais como pequenos produtores in­dependentes, consignados como pequena-burguesia (artesãos, campo­neses arrendatários, pequenos comerciantes, lojistas, especuladores, etc.); trabalhadores indiretos que organizam e coordenam o processo produtivo em nome do capital (capatazes, gerentes, assistentes, super­visores, funcionários de escritório, etc.) ; os grupos profissionais rela­tivamente autônomos, com funções de produção e reprodução ideoló­gicas (professores, artistas, juristas, jornalistas, clero, etc.); os grupos da burocracia estatal (funcionários públicos da administração civil, militares, juízes, técnicos, etc.).50 Entretanto, apesar dessa diversidade, não se pode perder a visão de conjunto propiciada por uma teoria das classes sociais. No modo de produção capitalista, a classe dominante exerce hegemonia sobre a formação social, fazendo prevalecer seus interesses sobre os das demais classes. Se ao nível abstrato da análise do modo de produção podemos identificar seus interesses básicos, estes, contudo, sofrem novas determinações ao nível mais concreto da análise de uma certa formação social. Neste nível, por exemplo, as classes ou frações de classes dominantes, para assegurarem e perpe­tuarem sua dominação, deverão manter relações de exploração, de colaboração, de luta política, fazer coalizões e realizar certas alianças, transigir, etc., não só com o proletariado e suas frações, mas também com as demais classes da formação social.51 Vê-se, por essa conside­ração, que as bases categoriais do procedimento de análise estrutural se mantêm; contudo, são ao mesmo tempo alteradas (superadas) pela apropriação de elementos trazidos por um nível de análise menos abstrato, sem perder, entretanto, seu alto poder explicativo e doador de unidade de sentido para a compreensão efetiva do processo social e político.

50 Ver ' Alan Swingewood, op. cit., p. 138. Ver, também, Bottomore, As Classes na Sociedade Moderna, 2.• ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp. 13-32.

51.Ver Marta Harnecker, op. cit., pp. 175-182.

Terceira parte

Questões nucleares

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Poder, ideologia e legitimidade

Uma determinada formação histórico-social caracterizada por rela­ções estruturais conflitivas, isto é, onde não haja igualdade nas relações distributivas dos bens produzidos socialmente. exige uma referência unificadora cuja energia impede, por um lado, a mortal desagregação do todo social e, por outro, a perda das condições de reprodução básica do próprio sistema. Essa referência unificadora social, que a um só tempo compreende a diversidade dos interesses contrários e antagôni­cos e a unidade da correlação entre eles, é uma força que impõe como poder ou domínio em sentido lato, isto é, enquanto pressupõe tam­bém a possível referência às formas de sua própria legitimação. E mais, na medida em que se trata de relações estruturais, compreendendo as classes sociais, e não de relações interpessoais, o problema dos confli­tos está vinculado especialmente ao poder p'olítico e não apenas ao poder entendido de modo geral. A questão do poder é complexa e exige uma análise configurada no contexto de um sistema social onde se possam destacar com clareza as bases de sua realidade e justificação.1

1 Para uma visão oposta a nossa abordagem sobre o poder, ver Bertrand de Jouvenel, El Poder, 2.• ed., Madri, Nacional, 1974, especialmente o livro IJI, caps. 6, 7 e 8, pp . 121-192.

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A simples indicação das classes sociais em conflito não é suficiente para explicar esse fenômeno complexo. f: preciso avançar no plano das questões que possam identificar os reais fatores determinantes da instância do poder ou domínio político. A questão substancial não é, a nosso ver, a referência a sua legitimidade ou não, embora essa seja uma questão extremamente importante do ponto de vista do "quanto somos governados". A questão básica suscita as perguntas: poder para quê? Que faz o detentor do . poder com o seu poder? Como governam os governantes e para onde dirigem os governados?2 Estas perguntas não apontam apenas para o estudo das possíveis qualifica­ções do poder político, ou seja, se este é mais ou menos democrático ou consensual, se está em mãos de muitos ou de . poucos, se está carac­terizado no plano do pluralismo ou do elitismo, etc; 3 tais perguntas estão consignadas à idéia operacional básica que se expressa na seguin­te questão: para que serve o poder político? Entretanto, a fim de não gerar possível confusão em torno das premissas das quais partimos, cumpre ressaltar que a questão colocada não tem outra significação senão a de orientar metodologicamente a investigação preliminar acer­ca do poder político, não devendo induzir a uma postura teleológica ou à caracterização instrumentalista ou mesmo funcionalista a seu respeito.

O poder político, enquanto fenômeno social, funda-se na relação de conflito derivada da distribuição desigual dos bens sociais realiza­da com base na forma estrutural assumida por determinado modo de produção. Os bens são assinalados como bens econômiCos conforme aparecem como resultado do esforço humano e se encontram de forma limitada. Com a provisão restringida desses bens surge o conflito e, por conseqüência, aparece o problema do poder. Com efeito, sendo

1 Ver, nesse sentido, Goran Therborn, Cómo Domina la Classe Dominante? Aparatvs de Estado y Poder Estatal en el Feudalismo, el Capitalismo y el Socialismo, 2: ed., México, Siglo XXI, 1982, pp. 151-163. Ver, também, do mesmo autor, Ciencia, Clase y Sociedad: Sobre la Formación de la Sociología y dei Materialismo Histórico, Madri, Siglo XXI, 1980. Ver José Eduardo Faria, Sociologia Jurídica, Crise do Direito e Práxis Política, Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 45-55. ' ~ Para uma análise mais aprofundada sob esse ângulo (o de quem exerce o poder), ver Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 2.• ed., Barcelona, Ariel, 1976, pp. 23-145 .

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\ escassa a quantidade dos bens a distribuir entre os agentes sociais em face de suas necessidades, torna-se indispensável, à ordem e manuten­ção da convivência humana, a submissão das partes a determinadas regras de distribuição, mesmo contra suas vontades, visto que podem não corresponder plenamente àquelas necessidades. Entretanto, em razão da própria escassez de bens e da divisão do trabalho, é comum criar-se um contexto social em que uma das partes assegura, de um modo ou de outro, uma participação privilegiada na distribuição desses bens, gerando situações compreensíveis de antagonismo e conflito. Esse fato concretiza a necessidade de institucionalizar a forma de decidir a respeito da distribuição dos bens, entre partes desiguais, caracterizando o poder social sob a forma de organização política. Por isso, numa situação de conflito estruturalmente delineada, o poder funciona, só por sua existência, como revelador desse conflito e, ao mesmo tempo, como forma de seu ocultamento, Condicionando um mecanismo de esta­bilidade do sistema social para garantir sua reprodução dentro de determinados parâmetros. 4 Isso significa que, até certo ponto, a esta­bilidade da rede de relações sociais é assegurada pelo poder que garan­te a continuidade da distribuiçiio desigual dos bens produzidos social­mente, dentro de uma forma hegemônica onde uma classe predomina sobre a outra. 5

No sentido de aprofundarmos essa abordagem do poder, convém desenvolver uma análise, ainda que não extensa, das principais cate­·gorias que perfazem esse fenômeno da vida social. Para a real com­preensão do processo pelo qual o poder se manifesta, é preciso ter em primeira linha de consideração a situação de conflito de classes em razão do modo pelo qual a sociedade está estruturada para a produção e reprodução da sua vida material e espiritual. Numa sociedade de classes, a estrutura social se manifesta, como já vimos, pela posição que os indivíduos ocupam em face dos meios de produção, formando agru­pamentos expressivos com interesses adversos entre si, a despeito de esses interesses também traduzirem paradoxalmente uma certa comu­nhão fundamentada na exigência de ordem e manutenção da vida

4 Ver Marilena Chaui, Cultura e Democracia, O Discurso Competente e Outras Falas, São Paulo, Moderna, 1981, pp. 111-116. ·• 5 Ver, nesse sentido, Zygmunt Bauman, Fundamentos de Sociología Marxista, Madri, Alberto Corazón Editor, 1975, Comunicación 27, pp. 69-70.

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social como um todo, com base na socialização do processo produtivo . A dominância continuada das relações conflitivas, ao nível do proces­so econômico, conduz à indispensável produção e conservação de uma força contrária - o poder político - que tem por fim reacender, ao nível da produção e reprodução ideológicas e mediante formas e estru­turas jurídico-políticas e outros expedientes, o aspecto da universali­dade e solidariedade das relações humano.s, neste plano, porém, de modo abstrato e formal , buscando uma ordem e uma paz social a despeito dos processos reais conflitivos subjacentes no plano estrutu~al ,

e chegando, se preciso for , para a mantença dessa ordem, a lançar mão de meios de violência viva ou aberta (coação física ou moral). Por isso se pode chegar à conclusão de que a desigualdade estrutural, no plano das relações econômicas, não pode subsistir como tal e repro­duzir-se, sem o respaldo imprescindível das formas de induçao subje­tivas e objetivas originadas nos níveis ideológico e jurídico-político. 6

Áliás, para ser coerente dentro de uma perspectiva dialética na colo­cação dessa questã<;>, é preciso que se assinale a importância dos fatores ideológicos na formação e reprodução das relações produtivas, espe­cialmente daqueles de caráter antagônico vinculadas às relações de classes . Nessa questão, a ideologia torna-se um componente interno das próprias relações de produção. 7 Isso significa que tais relações não existem objetivamente "antes" das formas pelas quais as representa­mos subjetivamente, como se aquelas relações pudessem nascer ou ter continuidade sem essas representações. Por essa razão, e também para não se perder o caráter objetivo da determinação histórico-social, se pode considerar que as relações sociais produtivas sã'o sempre geradas

« "As classes dominantes e o Estado político, estruturados em classes hegemô­nicas e em Estado hegemônico, devem elaborar um conjunto ideológico político particular que tem uma função objetiva específica ( . .. ) : a de "resolver" pre­cisamente a contradição fundamental entre dois níveis de realidade, entre a relação real dos homens com suas condições de existência no Estado e sua re­lação real com suas condições de existência na sociedade civil". C f. Nicos Poulantzas, Hegemonía y Dominación en el Estado Moderno, 2.• ed., Córdoba, Cuadernos de Pasado y Presente, 1973, p. 71. Ver, nesse mesmo sentido, Zygmunt Bauman, op. cit. , pp. 193-201. 7 Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, " Infra-Estrutura e História" , in Antro­pologia: Godelier, org. Edgard de Assis Carvalho, coord . Florestan Fernandes, São Paulo , Ática , 1981 , pp. 174-184.

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fora do pensamento e, ao mesmo tempo, através dele, passando esse pensamento a estar sempre numa relação de co-nascimento com o real social. 8 Essa linha de trabalho teórico vai nos dar o caminho para a compreensão do fenômeno da legitimidade do poder e de suas cone­xões com as formas de exploração econômica pautadas nas relações assimétricas e conflitivas do modo capitalista de produção.

As relações de produção, na sociedade dominada pelo capital, pressupõem a trama ideológica não como mero momento imaginário que pudesse aparecer após sua instauração, mas com'O elemento cons­titutivo de sua própria estrutura objetiva. Por outro lado, essa estru­tura condiciona também a maneira de pensá-la e de operá-la, a ela mesma, no âmbito da práxis cotidiana, a ponto de tornar o engano a respeito de suas aparências funcionais não como produto imaginário do sujeito apenas, mas exatamente como resultado da ação objetiva dessa forma de organização social.9 Assim, exemplificando, por não se poder ver direta e imediatamente a extração da mais-valia no pro­cesso produtivo, o lucro do capitalista não aparece como uma parte do valor não-pago gerado pelo uso da força de trabalho, mas como produto efetivo do capital, contrastando, em contrapartida e igual­mente, pela aparência de que mediante os salários se paga "realmente" todo o trabalho do produtor. Neste caso, observa-se que a relação real ou o núcleo essencial da questão se torna invisível pela ação ideoló­gica que mostra o oposto dessa relação, mas ação essa que faz parte da própria relação objetiva e que toma corpo e concreção nas diversas formas das relações jurídicas que regulam o processo.1

Q B por essa razão que os modos de rendimento econômico, no plano de sua expres­são aparente, tomam as formas de salário, lucro, juro, aluguel, etc. , com grande valor pragmático nas relações visíveis dos negócios coti-

s Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, ·A Parte Ideal do Real", in Antropo­

logia, op. cit., p. 203. n Ver Norman Geras, "Marx e a Crítica da Economia Política", in Robin Blackburn (org.), Ideologia na Ciência Social, Ensaios Críticos sobre a Teoria Social, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, pp. 262-274. H ) Idem, ibidem, p. 274-277. "O imaginário dos produtores e o sistema dos signos não refletem uma atividade material; participam dessa atividade como parte constituinte e a definem como prática, isto é, como ação significante para os sujeitos" . Cf. Pierre Ansart, Ideologias, Conflitos e Poder, Rio de Ja­neiro, Zahar, 1978, p. 56.

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dianos, mas de pouca valia científica para a explicação do real processo interno do qual se originam os valores econômicos.U Vê-se, po~tanto, que as desigualdades, os privilégios e as contradições inerentes a esse modo de produção são necessariamente escamoteados, para possibilitar sua reprodução contínua e ampliada, mediante formas e estruturas jurídico-políticas e ideológicas apropriadas e específicas desse mesmo modo historicamente determinado. Assim, a inequação, as contradições e os conflitos emergentes da instância econômica da sociedade capita­lista são, de certo modo, compensados e "neutralizados" pelos quadros de representação ideológica e pela dimensão coativa quando essa se faz necessária, constituindo parte indispensável do processo reprodu­tivo dessa sociedade. Não há, portanto, uma simples auto-ilusão do sujeito social a respeito de sua situação e das reiações cotidianas que enceta; a realidade social é determinante de seu engano, visto que ela abrange também e necessariamente as formas aparentes que, ao indica­rem a estrutura conflitiva do sistema, ao mesmo tempo a ocultam de sorte a torná-lo operacional ao nível da vida pragmática cotidiana. O plano da aparência, portanto, não pode ser eliminado senão com a destruição da própria estrutura interna e objetiva do sistema, a respeito da qual aquela aparência é aparência. Isso significa, em última análi­se, que a simples compreensão crítica ou científica da essência estrutu­ral do modo capitalista de produção não pode eliminar seu fundamento ideológico, nem elidir a respectiva consciência espontânea originada da práxis cotidiana, embora possa exercer um papel significativo em relação aos seus efeitos. Por conseqüência, para que haja eliminação da instância ideológica naquele sentido, torna-se imprescindível a ação da práxis social transformadora, de caráter nitidamente políticoY

O fenômeno do poder político pressupõe o conflito de interesses no eixo das relações ·estruturais, onde os agentes coletivos se defrontam em função de suas respectivas posições em face dos recursos e meios produtivos da vida material e espiritual da sociedade. Esse fenômeno não prescinde, como já foi dito, das instâncias ideológicas e jurídico­políticas para manter e dar continuidade ao quadro das relações eco-

11 Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, "Estrutura e Contradição no Capital", in Ideologia na Ciência Social, op. cit., pp. 309-310.

12 Idem, ibidem, pp. 315-21.

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nômicas dominantes. Por essa linha se pode analisar o caráter de certo modo funcional que a sociedade assume na aparência . de suas manifes­tações, permitindo o processo de exploração do homem pelo homem,

. numa relação assimétrica em que uma das partes, a minoritária, possui privilégios materiais assegurados em detrimento da outra parte, a majoritária.13 Como é possível que a minoria privilegiada domine a maioria despossuída e tire dessa relação as condições de continuidade desse privilégio, mediante a apropriação da mais-valia e a conseqüente acumulação ampliada de bens produtivos? Como é possível fazê-lo de forma "legítima"? A resposta a estas indagações só pode ser encon­trada na análise do fenômeno do poder e de sua íntima conexão com os processos econômicos e ideológicos emergentes de uma situação estrutural determinada.14 Como primeira aproximação do problema, é preciso sublinhar que a própria exploração ou a situação de restrição econômica ou a miséria devem ser acolhidas pelos explorados de modo natural, isto é, como não sendo um produto de relações sociais deter­minadas e a respeito das quais os homens têm ação muito limitada o'u não têm qualquer laço de responsabilidade. Obviamente, essa questão não comporta uma calibragem absoluta, visto que existem inúmeras circunstâncias em que os explorados conseguem, de uma maneira ou de outra, levantar o véu de oculta:mento das relações estruturais assi-

1>3 De forma divergente, partindo do pressuposto de que o poder político vem para corrigir as desigualdades naturais, e não para manter exatamente as desi­gualdades sociais sob o manto da igualdade aparente, J. Blanco Ande considera que ·o poder político é, antes que poder social, poder estatal deferido ao go­vernante para garantir a paz da sociedade e impor uma ordem. O poder social respeita as desigualdades que a natureza gera; o mais forte se impõe sobre o mais débil, o pai se impõe sobre seus filhos, etc. O poder político - justo ~ respeita essas .diferenças, porém tende a igualar os indivíduos, trata de cor­rigir as desigualdades com o fim de obter-se a máxima harmonização de inte­resses particulares". Cf. J. Blanco Ande, Teoría del Poder, Madri, Pirami.de,

1977, p. 177. 14 10. preciso não olvidar a questão relacionada com a viabilidade da produção ideológica, mediante a estruturação institucional adequada, visto que • a limi­tação da análise às classes .e às ideologias de classe faz renascer a ilusão de um diálogo direto entre a classe, a consciência de classe e sua expressão ideo­lógica, como se uma entidade real, a classe espontânea, encontrasse na lingua­gem de seus representantes uma simples emanação de si própria". Cf. Pierre Ansart, op. cit., p. 89.

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métricas e contraditórias. De qualquer forma, a condição para a repro­dução do sistema de classes compreende a posição acrítica das coleti­vidades opostas em face da inequação econômica. Com efeito, a práxis do cotidiano não pode aparecer como uma forma de claro acoberta­mento da exploração; vale dizer que quanto mais a consciência espon­tânea e ingênua aparece C'omo a verdadeira e única consciência possí­vel, mais contribui para fazer os explorados aceitarem a exploração. Por isso, as idéias dominantes devem ser consideradas, pela maioria dos agentes sociais, como fundamentalmente "verdadeiras". Contudo, resta-nos saber de que maneira a grande maioria dominada pode acei­tá-las como "verdadeiras", se contradizem objetivamente seus inte­resses.15_ Isso nos leva à análise exploratória mais aprofundada para discriminar os elementos constitutivos das relações do poder político, pondo a descoberto a dialética da hegemonia e da opressão inerente ao processo de seu exercício pelos setores dominantes da sociedade.

No processo de aproximação da realidade do poder, cumpre-nos destacar a curiosa hipostasia desse fenômeno, como se ele existisse em forma de uma única realidade, com um estatuto ontológico próprio, valendo independentemente de suas manifestações no seio das relações sociais conflitivas das quais se originam e, ao mesmo tempo, são a expressão. Assim, por não ser uma entidade metafísica, o poder mani­festa uma relação e não uma "coisa" que se possa tomar ou perder. Por isso, não existe propriamente um único poder, a não ser no plano da idéia ou da ideologia. São múltiplas as relações reais de poder e, em que pese a análise possível do conceito correspondente, não nos é autorizado confundir o produto dessa análise, enquanto ela for crítica, com a própria realidade, ou melhor, não nos é lícito projetar no plano ontológico a estrutura e significação lógica que o conceito nos oferece. Esta observação é importante, de vez que no plano ideológico tal projeção é levada a efeito não só para eliminar a possibilidade de realce dos processos . reais de dominação e violência que ocorrem no seio da sociedade, mas também para tornar viáveis e operacionais, no âmbito jurídico-político, os esquemas de aparelhagem institucional destinados à articulação contr'Olada do poder. Isso significa que, em determinadas condições econômico-sociais, éomo as do sistema mer-

15 Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, A Parte Ideal do Real, op. cit., p. 192.

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cantil de produção, o poder político se destaca sob a forma de uma aparência que revela e ao mesmo tempo oculta o conteúdo estrutural antagônico da sociedade . Evidentemente, essa aparência não é uma mera ficção e sim uma forma enigmática que acoberta o elemento estrutural dissimulado. "Os motivos pelos quais as relações sociais devem assumir essas formas, e não outras, não são evidentes. B neces­rio um trabalho de análise para descobri-los, para revelar o segredo e, com isso, revelar o conteúdo dessas formas e a essência dessas aparências. Ao mesmo tempo, o conteúdo explica as formas , e a essência explica a aparência, que deixam então de ser enigmáticas. Porém, não se trata de uma caminhada da ilusão para a realidade. B um processo de elucidação de uma realidade, revelando a sua fun­damentação em sua determinação, por outra realidade." 16 Assim, por exemplo, a análise crítica da passagem do sistema feudal de produção para o sistema capitalista, e da evolução deste último, revela a pro­gressiva tendência para a centralização do comando político da socie­dade em níveis cada vez mais elevados e abstratos, caracterizando instituições políticas universalizantes e formalizadas, que a um só tempo tornam funcional o exercício do poder e resguardam a aparên­cia de uma relativa harmonia e uniformidade contra o destaque dos antagonismos e das contradições estruturais subjacentes. Historicamen­te, a projeção lógica do poder no plano da realidade se manifestou já com bastante nitidez no processo da concentração e monopolização

do mesmo na pessoa do monarca absoluto, após a derrocada do siste­ma feudal. Entretanto, dada a comp!é'xidade cada vez mais crescente da sociedade mercantil, e depois industrial, torna-se igualmente indis­pensável o progressivo avanço da idéia do poder para níveis mais abstratos, atingindo graus de despersonalização extremamente refinados. Com efeito, os ideólogos da burguesia contraem a idéia mais abstrata do poder soberano da Nação, fazendo parecer que o sujeito-suporte do poder é toda a população, comparecendo esta como uma comunidade t'otal substancializada, imaginária e sem consideração alguma a respeito das profundas diferenças econômicas e sociais de seus membros reais e de seus distintos graus de efetiva participação política. Contudo, é preciso não esquecer que essa ascendência histórica não elimina o

16 CL Norman Geras, op. cit., p. 271.

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tratamento sincrônico da nação como sólido fator referencial do poder político nos dias de hoje, visando a sustentação legitimada do próprio Estado, o qual, em sua abstração formalizada, não encontra em si mesmo o fundamento e a referência para sua continuidade. Nesse sen­tido, em um precioso ensaio, Gullermo O'Donnell indaga "a que inte­resses, de que grau de generalidade, abrangente da população do terri­tório que delimita, aparecem servindo as instituições estatais?" Aos · da nação - responde O'Donnell -, "o Estado demarca uma nação frente a outras no cenário internacional. Esta demarcação tende a engendrar um 'nós', definido por contraposição e diferença em relação aos 'eles' de tal cenário. Em outras palavras, o Estado tende a ser co-extensivo com uma nação. Este é, normalmente, um fator de coesão baseado no reconhecimento deste "nós" com pretensão aceitável de vigência real. Por sua parte - continua aquele autor -, o Estado, refeito . em suas instituições, aparece como um Estado-para-a-nação. E isso tem um significado duplo. Primeiro, como delimitação da nação frente a outros Estados nacionais. Segundo, para o interior do terri­tório, como pretensão, respaldada em última análise por sua supre­macia coercitiva de ser o agente privilegiado de custódia, interpreta­ção e conqu;_,<>ta dos interesses gerais da nação. O referencial - fina­liza O'Donnell com feliz clareza - das instituições estatais, a coleti­vidade a cujos interesses serviriam, não é a sociedade mas a nação. A invocação dos interesses desta última é o que justifica impor deci­sões contra a vontade dos sujeitos, inclusive contra segmentos das classes dominantes, em benefício da preservação do significado honto­geneizador da nação. Portanto, a imposição do Estado à frente e acima da sociedade completa-se quando se transpõe ao plano da nação." 17

1 7 Cf. Guillermo O'Dónnell, "Anotações Para Uma Teoria do Estado (li)",

in Revista de Cultura e Política, n.0 4, Rio de Janeiro, ·Paz e Terra, 1981, pp. 75-76 (grifamos). Para o exame de uma concepção substancialista de nação, ver Georges Burdeau, O Estado, Lisboa, Publicações Europa-América, 1970, pp . 39-44. Dentro de uma perspectiva clássica, e no âmbito das relações entre

• nação e povo, tendo em vista a representação política, ver Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O Poder Constituinte, 2.• ed., São Paulo,. Saraiva, 1985, pp. 19-29. Ver, também, Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, São Paulo, Saraiva, 1976, pp. 84-89 e 115-120.

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O processo de abstração se exacerba mais ainda pela maior con­centração do poder e o pleno deslocamento de seu monopólio para o Estado - forma singular de organização política do sistema capitalista - especialmente em face da necessidade de formalização dos c•oman­dos legais e da exigência, mediante a função legislativa, de mutação acelerada, artificial e consciente das decisões normativas, que não podem mais ficar à deriva dos usos e costumes lentos e difusos.

18

Assim, o termo "Estado" que não evoca diretamente a individualidade de seus agentes, passa a substituir o termo "nação" - embora a ela continue e precise referir-se -, que é mais concreto visto ainda suge­rir um certo e determinado conjunto populacional. Nesse sentido, o poder se despersonaliza e se institucionaliza, tornando-se, na medida de sua maior abstração, mais operacional e eficaz, presente em "toda parte" e, por isso mesmo, no interior do próprio espírito. com maior força de coerção psíquica sobre todos os membros da coletividade.

19

O nível mais elevado de formalização e abstração é alcançado no Estado contemporâneo, onde as relações sociais chegaram a um grau de universalidade formal tão amplo, que nenhum homem, no plano social, deve se sentir obrigado ou mandado pela pura e simples vonta­de singular de outro a não ser que este a isto esteja autorizado pela lei. Não há, pois, governantes nem governados senão sob tJ poder ou o império da lei, devendo o próprio Estado formar-se como Estado de direito. Aqui o poder se identifica com a lei, ou melhor, com a ordem jurídica, cuja formalização abstrata tem hoje inequívoca expressão.

20

18 Para uma análise desse fenômeno e de seu reflexo sobre a evolução da dogmática jurídica, ver Tércio Sampaio Ferraz Jr., Função Social da Dogmá­tica Jurídica , São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, pp. 59, 62-75, 83-84,

87-88, 95-99 e 195-202. 19 Uma interessante abordagem do poder político na sua evolução do chefe à instituição, sob o ângulo do idealismo, é realizada por Georges Burdeau, op. cit.,

pp. 28-35. 20 Nenhum autor expressou com tanta propriedade essa concepção como Kelsen: "A idenitdade do Estado e ordem jurídica resulta patente pelo fato de que inclusive os sociólogos caracterizam o Estado como sociedade 'politi­camente organizada'. Como a sociedade - enquanto unidade - está consti­tuída por uma organização, é mais correto definir o Estado como 'organização política'. Toda organização é uma ordem. Porém, onde reside o caráter 'polí­tico' dessa ordem? No fato de que é uma ordem coercitiva. O Estado é uma

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Com essa abstração e despersonalização, as relações sociais reais anta­gônicas e conflitivas se esfumaçam na esfera formal das aparências insti­

tucionais, ocultando a verdadeira estrutura social e ~ conjunto dos poderes reais dos agrupamentos dominantes . É, portanto, através dos conceitos progressivamente mais abstratos do Monarca Absoluto, da Nação, do Estado e do Direito, que poderes muito concretos se tomam

efetivos e dinâmicos em ordem, a manter e reproduzir o sistema social de classes .21

Vê-se pelas considerações feitas que a tolerância ou consenso ativo legitimador, dos dominados, no sistema capitalista, aparecem exata­

mente porque as verdadeiras relações assimétricas, e contrapostas de modo antagônico, estão toldadas por formas ideológicas e jurídico-po­líticas que não se acrescem àquelas relações, por fora, mas fazem parte interna de sua própria natureza. Por exemplo, as .relações abstratas da

esfera jurídica são efeitos e ao mesmo tempo condicionantes da liber­dade e igualdade formais das partes contratantes no jogo das relações entre o trabalho e o capital, sem o que as próprias relações de pro­dução nesse sistema seriam impossíveis. Esse processo, em sua versão

liberal, leva a considerar que "a concepção da harmonia dos interes­ses particulares e do equilíbrio social (através do mercado, do cálculo

econômico de cada agente e de cada unidade econômica) representa a mais completa antítese de toda a lógica da contradição e da lut~ de

classes. As diferenças de função e de classe longe de surgirem aí como antagônicas , antes se harmonizam. São componentes diferenciadas de

um sistema equilibrado sobre o qual vela o Estado. A diferença não

constitui uma contradição porque está situada num sistema de troca

(mercado) onde estão ausentes as relações econômicas de exploração. O capital não é uma relação social de sujeição, mas um simples fator

organização política, porque é uma ordem que regula, monopolizando-o, o uso da força . Este é, segundo temos visto, um dos caracteres essenciais do direito. O Estado é uma sociedade politicamente organizada, porque é uma comuni­dade constituída por uma ordem coercitiva, e esta ordem é o direito". Cf. Hans Kelsen, Teoría General de/ Derecho y del Estada, 3." ed., México, Textos Universitários, 1969, p. 226. 21 Ver, nesse sentido, J. A. González Casanova, Teoría del Estado y Derecho Constitucional , Barcelona, Editorial Vicens-Vives , 1980, pp. 17-18.

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de produção".22 Nesse sentido, o poder político assegura sua legitimi­dade pela integração social que promove mediante as garantias nas relações mercantis formalmente igualitárias, a respeito da parcialidade de sua função geral na medida em que., por esse mesmo mecanismo, avaliza as relações de produção estruturalmente desiguais . Mais uma vez é possível afirmar que o àomínio hegemônico, como poder politico assumido de modo justificado, não deve deixar de apa'recer como forma unificada abstrata e racional, como manifestação de toda a sociedade considerada homogeneamente, sem referência direta aos processos estruturais conflitivos .

Nessa mesma linha de progressiva abstração e racionalidade instrumental dos procedimentos ideológicos destinados à dissimulação das contradições emergentes da estrutura social e à consecução da legitimidade do domínio político, ganha relevo expressivo, no capi­talismo avançado, a ideologia tecnocrática decorrente do estádio em que o movimento do capital passou de sua forma "capital · privado" para a de "capital social" (sociedade por ações), em razão do que a produção privada tende a fugir ao controle da propriedade imediata e exige a intervenção cada vez mais acentuada do Estado no processo produtivo. "A ideologia tecnocrática concentra pois os seus ataques (eventuais) nos capitalistas proprietários e não no capital enquanto relação social. O trabalho produtivo do simples trabalhador e a pro­priedade privada imediata aparecem como uma base estreita de cria­ção de riqueza em face do desenv~lvimento da ciência e da tecnologia no capital concentrado. Nasce daí a ilusão da ultrapassagem da 'anti­ga' contradição capital-trabalho, de um pagamento da exploração e, pelo simples jogo do movimento econômico, de uma ;;aida pacífica do capitalismo (clássico)." 23 Extamente porque o pensamento tecnocrá­tico desloca sua atenção para o lado das forças produtivas e do seu progresso, como base do desenvolvimento econômico e social, ocultan­do os antagonismos emergentes das relações sociais de produção, a racionalização na sociedade industrial avançada ultrapassa os limites da lei abstrata do Estado neutro e impessoal para se apoiar também

22 Cf. Yves Leclercq, Teorias do Estado, Lisboa , Edições 70, 1981, p. 56-57 (grifo nosso).

2" Idem, ibidem, p. 59 (grifo nosso).

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nos procedimentos tecnológicos e científicos que. permitem o progresso acelerado daquelas forças produtivas; esse progresso racionalizado passa a ser um importante fator na legitimação do poder. A ciência e a tecnologia, nos dias de hoje, tornam-se forças ideológicas e produ­tivas por excelência.24 "A. ciência é ideológica no sentido de que, com a aparência de neutra, porque objetiva e destituída de valor (tendo vida própria, coisa dada), produz-se a partir de um projeto universa­lizado que pressupõe uma sociedade dada, com a conseqüente domi­nação que lhe é imanente, visto que a lógica da ciência não é a lógica revolucionária ... 25 Tal racionalização tecnocrática repercute direta­mente no modo de construir a legitimação do poder estatal no caminho da redução funcional de todos os elementos e forças sociais no senti­do do "progresso econômico" e da satisfação de todas as necessidades dos homens indistintamente (sociedade de consumo). Assim, "os com­ponentes da atividade econômica, ou seja, os trabalhadores, os meios de produzir, a ciência e a técnica, ou o 'fator organizacional', deixam de ser simultaneamente forças e relações de produção, tendendo a

reduzir-se simplesmente às forças produtivas que será necessárlo oti­

mizar no quadro de uma organização racional. B o próprio Estado a . desligar-se (aparentemente) das relações sociais de produção e de classes, deixando de ter que preocupar-se com mais do que as forças produtivas e sua qinâmica".26

Continuando nossa preocupação nuclear e penetrando mais pro­fundamente na questão do poder sob o ângulo conceitual, verifica~se

que este, em sentido lato, se revela como capacidade de converter pos­

sibilidades em realidad.es, mediante a aplicação de energia, vencendo inclusive resistências. Assim, se por um lado o poder não pode render resultados maiores do que possa o objeto do mesmo dar, por outro, ~ssa energia pode assumir múltiplas formas, incluindo a ação física

24 Ver, nesse sentido; Jürgen Habermas, Técnica e Ciência Enquanto "Ideo­logia", São Paulo, Abril Cultural, 1975, pp. 303-309.

25 Cf. Cl.emerson Merlin Cleve, O Direita em Relação, Curitiba, ed. pessoal, 1983, p. 35. Ver, também, Herhert Marcuse, Ideologia da Sociedade Industrial, Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp. 142-162. Ver Marilena Chaui, op. cit., pp. 30-35.

26 Cf. Yves Leclercq, op. cit., pp. 60-61 (grifo nosso).

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sobre coisas naturais.2 7 Sob o ângulo que nos interessa, o social, o poder deve ser considerado de modo mais restrito, firmando-se nas relações entre os homens. Entretanto, essa consideração mais restrita não é apenas uma atualização concreta daquela noção mais abrangente. O poder social, exatamente porque tem por objeto a discrepânciá de vontades e interesses humanos, compreende elementos novos que não permitem identificá-lo com a mera especificação do conceito geral. Assim, o poder social não pode ser uma simples capacidade de se obter resultados possíveis, por meio de processo decisório acrescido de energia ou força disponível - o poder não é só força, pois com­preende também a decisão consciente para aplicação dessa força 2 8

- ,

mas deve conter além disso elementos que permitam o consentimento, a obediência espontânea ou quase esP'ontânea, daqueles a ele subme­tidos. Além da força ou coerção que plasma a relação segundo a forma desejada, com ou sem a rebeldia do objeto submetido a essa energia - e neste caso o objeto pode ser indiferentemente coisas ou pessoas -, o poder social contém nele co-implicado dialeticamente o consenso, que será maior ou menor conforme a conjuntura da relação de c'onflito e os meios ideológicos abrangidos - e neste caso o objeto só pode ser sujeitos humanos .

Sob o ângulo estrutural, enquanto se leva em conta agrupamentos diferenciados e antagônicos em função da posição de propriedade e de controle dos recursos de reprodução material da sociedade, o poder assume a configuração política e se coQcentra, no modo de produção capitalista, no Estado? 9 Esse poder político compõe-se de dois mo­mentos indissoluvelmente vinculados e dinâmicos entre si: a violência,

2 7 Ver, ne.sse sentido, Manuel Garcia Pelayo, Idea de la Política y Otros Escri­tos, Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 183-184. 28 "A força bruta é incapaz por si só de forçar alguém a fazer algo com sentido e direção." Cf. J. A. González Casanova, op. cit., p. 12. 29 Nem toda decisão do Estado é política. De modo mais preciso, só será política aquela decisão que diz respeito ao exercício da coerção com vistas à distribuição de bens objeto da luta de classes. Assim, por exemplo, não tem caráter de classe o código de trânsito, ou as normas que fixam exigências téc­nicas mínimas para a fabricação de determinados produtos, ou as que limitam a venda de bebidas alcoólicas, etc. Entretanto, a razão da existência do Estado encontra-se exatamente nas decisões políticas, porque de outro modo não pas­sará de ser mera administração geral dos assuntos públicos,

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como momento não-justificado, e o consenso, como m'Omento de legi­timidade.(i0"Cada um de nós tem um certo poder sobre os demais para mandá-los, ou seja, para que façam o que nós queremos ou lhe dita­mos. Porém, também temos um certo poder para conduzi-los ou guiá­los. No primeiro caso, mandar significa exercitar um poder impera­tivo e coercitivo, dominador e dominante. Sua expressão extrema seria o tirano, o ditador ou o tecnocrata que impõe o oráculo inexorável da necessidade técnica ou científica. No segundo caso, conduzir ou guiar (hegemonia) significa levar outros a alguma parte, orientá-los para alguma meta ou fim que, em princípio, lhes interessa.'"31 Este último é alimentado por fatores de justificação ideológica que tornam o poder político legitimado, obedecido e passível de ser operacional por longos períodos históricos. Com efeito, a força do poder político é tanto mais robusta e estável quanto menos a violência viva dos dominadores se manifesta. Isso significa que a fortaleza do poder encontra-se muito mais no consentimento daqueles a ele submetidos do que na violência expressa dos opressores; importa menos a repressão coativa dos domi­nadores que a adesão da vontade dos dominados no sentido da obediên­cia espontânea e da aceitação do domínio assimétrico e da cooperação no processo produtivo.'32 Assim, afora os "consentimentos forçados" que são formas ainda instáveis entre desiguais, há os compromissos espontâneos calcados em crenças compartilhadas e valores comuns (dominantes) que permitem desde a adesão passiva até a aceitação ativa, embora nunca absoluta e sem reservas, dos membros das classes subalternas.

Entretanto, devemos assinalar, com muito empenho, que a rela­ção entre esses dois momentos é de caráter dialético, sendo distintos mas não mutuamente excludentes. O poder político,_ mesmo quando

ao Na perspectiva de Weber, o que especifica o poder político é a violência , a coação física . Isso, naturalmente, se configura em última instância. Weber afirma: "Só se pode, por isso, definir o caráter político de uma associação pelo meio - elevado em certas circunstâncias a fim em si - que, sem lhe ser exclusivo, é certamente específico e indispensável para sua essência: a coação física ." Cf. Max Weber, Economía y Sociedad, 11, 2.• ed., Bogotá, Pondo de Cultura Económica, 1977, p. 1056. 31 Cf. T- A. González Casanova, op. cit., p. 21. "''' 32 Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, "A Parte Ideal do Real", in Antro­.,ologia, op. cit., p. 192-194.

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surgido da força bruta, da guerra , não prescinde, para sua permanên­cia , dessa condição dialética do movimento contraditório de seus momentos internos. f um erro considerar aqueles momentos como elementos indepedentes, isoláveis , que viessem a entrar em conexão a partir de impulsos externos.31 Não há uma " pura" violência ou um " puro" consentimento, externos entre si, que se entrelaçam, numa com­binação mista, com pred'ominância deste ou daquele elemento, con­forme a conjuntura histórica. Na realidade, numa sociedade de classes, mesmo havendo adesão ativa, convicção ou crença na legitimidade do poder dominante, a violência está presente, e isto se faz precisamente através do próprio consentimento; e tanto mais a violência é perversa e mais eficaz, quanto mais se faz transparecer como não-violência, como adesão ativa dos dominados aos comandos do dominad'Or. Esse paradoxo não pode ser verificado senão no contexto de relações estru­turais determinadas e objetiva.>, uma vez que o consenso aparece exatamente para ocultar ou mascarar a distribuição desigual dos resul­tados da produção social. A violência não está no plano do consenti­mento em si mesmo, na esfera imediata das aparências, mas sim na função real desse consentimento que é precisamente a de tornar 'opaca ou dissimular a relação desigual subjacente e objetiva, em virtude da qual os bens materiais e espirituais produzidos socialmente são efeti­vamente distribuídos de modo desproporcionado. Quando, por qual­quer motivo, o consenso sob formas ideológicas determinadas deixa de exercer aquela função, desnudando o caráter assimétrico e conflitivo da relação estrutural e permitindo, por conseqüência, o aparecimento de resistências mais ou menos conscientes, a violência implícita, ou melhor, oculta sob a máscara da própria ideologia, deixa de ser amea­ça virtual para ser atual e viva no sentido de neutralizar ou eliminar, diretamente pelo exercício da coação física ou psíquica, a recusa de obediência dos membros das classes subalternas . Por isso, não se pode

H Nesta linha se pode aclarar a dialética que envolve o termo "hegemonia", segundo o desnvolvimento desse conceito no pensamento político de Gramsci. Perry Anderson afirma que em certos textos "Gramsci fala de hegemonia não como de um pólo de 'consentimento' em contraposição a outro de 'coerção', senão como uma síntese em si mesma de consentimento e coerção". Cf. Perry Anderson, Las Antinomias de Antonio Gramsci, Barcelona, Fontamara, 1978, p. 42.

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conceber um real poder político senão com fundamento na unidade dialética desses dois momentos contrários, variáveis historicamente em proporções diversas de mútua transparência, já que, como observamos, não há pura violência nem consentimento absoluto. A violência, por­tanto, não é a mera alternativa do consenso, pois ela se manifesta até mesmo com maior eficácia através e por meio dele. Por isso, a obediên­cia civil, embora possa ser um indicador operacional do "exercício legítimo" do poder, não significa necessariamente a vigência da pleni­tude das condições de justiça social em sentido concreto. Por esse exercício não se tem, na verdade, o questionamento radical do próprio poder, isto é, de sua origem e função; pelo contrário, a legitimidade do exercício do poder acaba exatamente por oferecer ·obstáculos à

compreensão de sua própria realidade, favorecendo aús que dele se utilizam enquanto meio para assegurar a reprodução das relações de produção dominantes.

Neste ponto, é preciso chamar atenção para os chamados confli­tos funcionais, que exercem uma forma mais estabilizadora que desa­gregadora. · Esses conflitos se manifestam pelo disenso perfeitamente controlável dentro dos limites do sistema, sem atingir as instâncias estruturais econômicas, ideológicas ou jurídico-políticas. Eles existem como "problemas" que precisam ser "resolvidos" e cuja resolução não limina as bases determinantes de sua existência, apenas põe fim ao conflito mediante decisão cujos parâmetros estão previstos dogma-' ticamente pelo sistema, tendo em vista justamente a sua conservação e reprodução:34 O dissenso refere-se, portanto, a uma situação de conflito que não vai muito fundo e cuja gestão se dá pelo exercício da conciliação racional nos quadros de possibilidade do sistema . .a 5 Isso

34 Nesse sentido reconhece Eduardo Faria que "se o direito positivo traduz um poder de classe(s), no seu funcionamento acaba incorporando as próprias contradições do sistema social por ele tutelado". Cf. José Eduardo Campos de Oliveira Faria, Retórica Política e Ideologia Democrática: A legitimação do discurso jurídico liberal, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 50. Ver, também, na mesma obra, pp. 160-172; ibidem, pp. 259-267.

35 Ver Ralph Miliband, Marxismo e Política, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 22. "Eis a razão pela qual, através do sentido comum teórico dos juristas, consegue-se uma aparente conciliação das tensões e dos conflitos, uma vez que

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significa que a vida política, nesse nível, se realiza por um processo constante de barganha e acomodação entre agentes sociais, com base em relações intersubjetivas ou de agrupamentos dentro de funções não-estruturais. O controle dessa forma de conflito é manifestamente assegurado pelo ordenamento jurídico que deduz esquemas normativos destinados a garantir sua solução de modo pragmático e pacífico, sem rupturas substanciais ou intervenções radicais no sistema dominante.136

Observa-se, portanto, que o fenômeno do poder analisado pela ótica consagrada neste trabalho não deixa de abranger essa forma conflitiva e também a gestão social através do· dissenso controlado; entretanto por não atingir os fundamentos da vida social, política e econômica da coletividade, o conflito funcional não pode ser objeto específico de nossa atenção no curso dessas considerações sobre os antagonismos sociais de caráter estrutural e do poder político correspondente.

Retomando a perspectiva dialética dos momentos que compõem a unidade do poder político, cumpre-nos discriminá-los com maior precisão, especialmente fazendo a distinção entre o elemento de coer­ção e o elemento de consenso, representado este último pela~oções de auctoritas e influência. Como forma de direção da conduta alheia em um determinado sentido, o poder enquanto domínio político abarca a coerção na medida em que seu detentor consegue a conduta que deseja mediante um comqndo dirigido a alguém, independentemente da vontade deste. Esse poder implica a heteronomia, sendo exercido mesmo contra a resistência da vontade daquele a quem se dirige . .a7

eles são· projetados numa harmoniosa dimensão de relações e esquemas ideais práticos •. Cf. J. Eduardo Campos de Oliveira Faria, op. cit., p. 264.

a6 Num plano analítico, Tércio Sampaio Ferraz Jr. aborda a questão da deci­dibilidade nos limites do sistema, esclarecendo que a norma jurídica "não termina o conflito através de uma solução, mas o soluciona, pondo-lhe um fim. Pôr-lhe um fim não quer dizer eliminar o dubium primitivo que ocorre na situação diádica, mas trazê-lo para a situação triádica, onde eles se tornam 'decidíveis'". Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Direito, Retórica e Comunicação, São Paulo1 :sílraiva, 1973, p. 70. Consulte-se, na mesma obra, pp. 43-51 e 66-77.

37 Weber '· ,{~: uma distinção entre poder (gênero) e domin~ção (espécie): "poder significa a probabilidade .de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, ainda que contra qualquer resistência, e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade. Por dominação deve-se entender a probabi-

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A auc,toritas, de forma diferente, ocorre quando se segue a uma pes­soa ou instituição pelo crédito que aquela ou esta oferece em virtude de ser depositária de qualidades excepcionais de ordem espiritual, mo­ral, técnica ou intelectual. Neste caso, o reconhecimento dessas quali­dades pelo dirigido determina sua livre adesão à diretiva estabelecida pela autoridade, não havendo o concurso da coerção ou qualquer forma de pressão sobre a vontade. Não eliminando a liberdade daque­le a quem se dirige, o poder da auctoritas respeita a autonomia da vontade.38

No primeiro sentido, o da coerção ou domínio, mandar significa exercitar um poder imperativo ou dominante, no segundo, o dà aucto­ritas, não há senão uma orientação, realizada pelo condutor a quem se dá crédito, para que alguém se dirija a um fim que é, em princípio, de seu próprio interesse. A auctoritas aumenta as bases do poder, jazendo-se-lhe acrescentar a liberdade implícita no consenso. Ela con­diciona as adesões dos dirigidos, proporcionando a diminuição da necessidade do uso da força coativa, com economia de energia e desgaste em razão da ampliação da esfera da liberdade.89 Entretanto, enquanto a auctoritas refere-se ao crédito moral ou intelectual dado a alguém, outra forma distinta de controle da conduta alheia, a influência, refere-se ao plano de persuasão, ao manipular de modo explícito ou latente razões e processos afetivos, com vistas a justificar determinada conduta como a mais natural ou conveniente, justa ou ajustada, legítima ou autêntica. A influência exerce uma certa pressão sem contudo utilizar a coerção que anula a vontade contrária, como no caso do domínio, e sem deixar a vontade em completa liberdade de seguimento, como ocorre com a auctoritas. Desse modo, tanto a aucto-

lidade de encontrar "obediência a um mandato de determinadas pessoas". C f. Max Weber, op. cit., I, 2.• ed., p. 43 .

as Ver J. A. González Casanova, op. cit., pp. 21-22. Ver, também, no mesmo sentido, o excelente estudo de Manuel Garcia Pelayo, op. cit., pp. 137-180. Ver Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, São Paulo, Perspectiva, 1972, pp. 162-171.

39 Ver Manuel Garcia Pelayo, op. cit., pp. 150-152. Ver, também, Celso Lafer, Hannah Arendt, Pensamento, Persuasão e Poder, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, pp. 74-76. Ver Tércio Sampaio Ferraz Jr., Função Social da Dogmática Jurídica, op. cit., pp. 28-31.

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ri tas como a influência, aquela mais ligada à personalidade e esta aos argumentos e razões de quem exerce o poder, são formas de controle da conduta alheia que induzem à legitimidade desse mesmo exercício, vale dizer, são formas que não substituem a vontade alheia pela do exercente do poder, com o emprego atual ou potencial da coerção. Convém ainda notar, no caso do domínio político, que os meios coer­citivos não consistem apenas na ameaça ou emprego efetivo de violên­cia física, mas também na possibilidade do controle da concessão ou privação de bens materiais ou espirituais que possam, por alguma razão, inibir a resistência do domínio.40

Com essa breve caracterização analítica dos momentos do poder político, ao identificar por um lado o aspecto da violência, da coerção, do domínio, e por outro, o do consenso, da influência, da auctoritas, estamos em condições de continuar a proceder ao exame de sua dinâ­mica interna. Tais momentos normalmente aparecem 'integrados diale­ticamente nos atos de poder político, devendo a análise empírica deter­minar o grau ou 'o peso específico de cada um deles na composição de certos atos de hegemonia. Se nessa composição há o predomínio dos fatores de consenso, o poder será consignado como legítimo, em caso contrário, como opressor ou não-justificado. Na verdade, a legi­timidade é dada pela capacidade, no exercício político, de mobilizar fatores consensuais de tal sorte a fazer acreditar, por parte daqueles a quem são endereçados os atos de comando, que os detentores do poder têm efetivo direito a exercê-lo. Ao se engendrar nos dominados a crença de que os dominadores têm direito a dominar, cria-se tam­bém a idéia correlata do dever de obediência, um dever quase moral, não-sentido como uma obrigação heterogênea. A força, em princípio, é quase nula, porque os submetidos ao poder não se sentem forçados a obedecer, visto estarem de acordo em seguir o dirigente; parece que o condutor e os conduzidos querem o mesmo objetivo, havendo, portan­to, interesses compartilhadosY Esse aspecto, note-se, é de extrema

411 Ver, nesse sentido, Manuel Garcia Pelayo, op. cit., pp. 184-187. ll A base desse processo ideológico não se constitui pelo interesse direto ou imediato das classes dominantes, mas pela razão ger~l que emerge da estrutura mesma do sistema de produção considerado. Nesse sentido, Poulantzas consi­dera que ·o Estado político moderno não traduz, ao nível político, os 'inte­resses' das classe~ dominantes, mas a relação desses interesses com os das

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importância para a compreensão dos mecanismos ideológicos que ope­ram nas relações de poder numa socied~de de classes; examinaremos isso mais adiante.

O poder legítimo, segundo o enfoque dialético por nós adotado, não pode ser descolado da possibilidade de se fazer efetivo, em algum momento, mediante o emprego manifesto de meios de violência; isso equivale à· existência de um potencial coercitivo, pronto a ser atuali­zado no momento oportuno, como resposta à eveiitual contestação. Por outro lado, pode haver virtual domínio e violência no próprio exercício do poder legítimo, o que nos leva a considerar a perversa ambigüidade desse poder, mesmo quando se revela na aparência ime­diata como pl(maf[zente consensual. ·Essa dialética da ausência e pre­sença simultaneamente da violência do espaço do poder político legi­timado se pode ilustrar analogicamente, como o faz Perry Anderson, com um sistema' monetário onde haja correspondência entre o papel­moeda e o ouro que lhe serve de lastrú. "Só o papel, não o ouro, está em circulação; porém, o papel está, em última instância, determinado pelo ouro, sem o qual deixaria de ser moeda corrente. Em condições de crise, desencadeiam necessariamente uma reversão repentina de todo o sistema para o metal que se encontra de forma invisível atrás dele: um colapso no crédito produz infalivelmente a corrida para o ouro. No sistema político · também prevalece Uma relação estrutural similar (não-aditiva e não-transitiva) . entre ideologia e repressão, con­senso e coerção~ As condições normais de subordinação ideológica das massas - as rotinas .diárias da democracia parlamentar - estão consti­tuídas por uma força silenciosa e ausente que lhes çonfere seu valor corrente: o monopólio do Estado sobre a violência legítima. Desprovido deste, o sistéma de controle cultural . se tomaria frágil instantanea­mente, posto que os limites das possíveis ações contra tal sistema desapareceriam. Com aquele monopólio, esse sistema é imensamente poderoso; tão poderoso que pode, paradoxalmente, 'passar sem ele': com efeito, a violência raramente aparece deritro dos limites desse

classes dominadas". Cf. Nicos Poularttzas, Hegemonía y Dominaci6n en el Estado Moderno, Córdoba, Cuadernos de Pasado y Presente, 48, 1973, p. 50 (grifo nosso). Ver Celso Lafer, O Sistema Político Brasileiro, São Paulo, Pers­pectiva, 1975, pp. 32-44.

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sistema." 42 Assim, a adesão espontânea ao poder se funda na crença de que este é exercido na forma em que se crê deva exercer-se e segundo os fins compartilhados por todos os membros da sociedade, sem referênCia imediata ao sistema subjacente de violência legítima, de tal modo que eles normalmente não se sentem forçados a obedecer e estão de acordo em seguir · a quem os conduz. Certamente ainda pode ocorrer que a credibilidade não passe de uma credulidade, onde a crença nas razões dos tiranos permite que os crédulos os suportem ou mesmo os aclamem. Podemos admitir que todo poder não está livre dessa ambigüidade, visto que não há poderes puramente consen­suais, como também não os há exclusivamente coercitivos .. De certo modo, essa ambigüidade reflete aquela já examinada rto que respeita aos interesses das classes antagônicas, caracterizados como dominante­mente conflitivos e, ao mesmo tempo, relacionados com uma paradoxal identidade ou comunhão expressa nas formas ideológicas de suas mani­festações aparentes. A comunhão aparente dos interesses de agrupa­mentos sociais economiCamente opostos e antagônicos não é meramen­te imaginária, pois tem fundamento na realidade das exigências comuns de sobrevivência da sociedade global e na socialização da produção; entretanto, ela se manifesta de forma alienada, em virtude da apro­priação privada do produto social, e de certo modo objetiva acobertar ou mascarar justamente . as contradições estruturais e os privilégios das classes econômica e politicamente dominantes. Por esse motivo, na esfera das relações de poder, o maior ou menor consentimento só é possível se o esquema de dominação imperativa aparece mais ou menos vinculado ou submetido a outro propósito superior, projetado ao nível ideológico, a respeito do qual todos os membros da sociedade, sejam . dt:Jminantes ou dominados, dirigentes oa dirigidos, aparecem como vitalinente interessados. 43 Com efeito, grande parte dos coman­dos normativos da ordem jurídica, positivada na sociedade capitalis­ta, normalmente encontra sua justificativa ou legitimidade na idéia expressa ou virtual do bem eomum a ser realizado; a despeito do que venha efetivamente encaminhar e concretizar interesses exclusivamente parciais . dessa sociedade. Por essa razão, a ideologia não se reduz a

42 Cf. Perry Anderson, op. cit., pp. 72-73 (grifo nosso) .

43 Ver, nesse sentido, J. A. González Casanova, op. cit., p. 23-24.

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uma simples aparência ou ficção imaginária e enganadora; ela repre­senta um expediente da práxis comum e cotidiana que permite o exercício efetivo do poder político déstinado a manter e reproduzir a organização social capitalista, onde se fundem dialeticamente o poder de dominação e o poder de direção. O poder de dominação realizado

e expresso sob a forma predominante de poder de direção da socie­

dade é o que, no discurso de Gramsci , se denomina "hegemonia"; assim, o poder hegemônico é exatamente o poder dominador capaz de manifestar-se e legitimar-se como poder consensual ou de direção. 44

Dentro desse quadro e no plano da análise dialética da estrutura /

social, observamos que, ao nível das relações econômicas do sistema

capitalista, a distribuição desigual do produto cole,tivo entre grupa­

mentos sociais diferenciados decorre da aproximação privada dos meios

de produção e do produto do trabalho. Essa distribuição desigual trans­

corre em contradição com a socialização do processo produtivo resul­

tante do alto desenvolvimento das forças econômicas no interior da

sociedade capitalista. Entretanto, o momento econômico nesse sistema de produção não pode prescindir, para garantir o privilégio da acumu­lação ampliada por parte dos segmentos sociais proprietários ou con­troladores dos bens produtivos - classe minoritária e economicamente dominante - do momento político relativamente destacado e repre­sentado pela concentração e monopólio dos meios de coerção no âmbito

de um terceiro sujeito, o Estado, cuja ação também não prescinde do

44 Gramsci sabe muito bem que na ditadura do proletariado há o elemento da dominação e do consenso, o da coerção e o da persuasão. Mas por que a chama de hegemonia? Gramsci chama a ditadura do proletariado de hegemonia porque quer salientar a função dirigente, a conquista do consenso, a ação de tipo cultural e ideal que a hegemonia deve desempenhar. Cf. Luciano Gruppi, Tudo Começou com Maquiavel, 4." ed., Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 78. Ver, também, Hugues Portelli, Gramsci e o Bloco Histórico, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 61-81. Ver Mario Innocentini, O Conceito de Hegemonia em Grainsci, São Paulo, Tecnos, 1979; Luciano Gruppi, O Conceito de Hegemonia em Gramsci, 2.• ed., Rio de Janeiro, Graal, 1980; Maria-Antonietta Macciocchi, A .Favor de Gramsci, 2." ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp .. 146-85, Perry Anderson, Las Antinomias de Antonio Gramsci, Bárcelona, Fontamara , 1978; Christine Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado, Rio de Janeiro, Paz e Terr-a, 1980, pp. 157-254.

ESTADO E IDEOLÓGIA 193

cobrimento ideológico destinado a ocultar sua origem e função. 4 5 Mais adiante, veremos isso com detalhes . O que importa agora é registrar que a classe dominante no sistema capitalista não exerce diretamente a violência coercitiva no processo de apropriação da mais-valia, pare­cendo que a função política é adicionada "por fora", intet~viii.do apenas na falha do sistema, especialmente no que respeita aos aspectos ideo­

lógicos da hegemonia. Essa linha de reflexão leva-nos a abordar de modo mais analítico

a questão do momento ideológico que permite o exercício da hegemo­nia econômica e política, ou seja, que permite a prática da violência pela apropriação privada do sobreproduto social (exploração do homem pelo homem) e pela virtual utilização da força impositiva do Estado (dominação do homem sobre o homem), mediante a expressão ~pa­

rente, porém real, do consenso ou da direção consentida que empresta caráter de legitimidade ao exercício do poder. Volta-nos a questão de como os oprimidos podem aceitar como "verdadeiras" as idéias domi­nantes que ocultam as contradições sociais e impedem ou dificultam a plena consciência de seus reais interesses. Em outras palavras: como é possível que eles consintam espontaneamente na própria dominação? Nesta questão desponta a relação dialética entre a aparência e a essên­cia. A aparência do consenso não é aparência de si mesma; é na verda­de aparência que revela o seu contrário, a essência da dominação, nessa manifestação, a realidade mesma do poder hegemônico se des­taca com clareza. A dominação, que exprime a desigualdade injustifi­cada (a violência), se expressa e se divulga pelo seu contrário, pela aparente simetria de interesses em jogo.

Para melhor compreensão desse fenômeno, o da relação contra­ditória entre violência e consentimento da unidade do poder hegemô­nico, cumpre-nos ressaltar a relação entre a diversidade específica das múltiplas atividades do homem, decorrentes da divisão social do traba­lho, e a ·unidade de suas recíprocas exigências de complementação para atender às necessidades humanas. A divisão do trabalho funda-

,1, 5 Para uma análise mais aprofundada da integração desses momentos, exami­nar a singular visão de Nicos Poulantzas, Hegemonía y Dominación en el Estado Moderno, op. cit., pp. 43-66. Ver, do mesmo autor, "As Transformações Atuais · do Estado , a Crise Política e a Crise do Estado, in N. Poulantzas (org.) , O Es­tado em Crise, Rio de Janeiro, Graal, 1977, pp. 14-21.

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menta, de modo geral e na medida em que se estende e se diversifica, a especialização das atividades humanas, de sorte que, a partir de um determinado nível de desenvolvimento histórico-social, cada homem ou grupo de homens não pode num dado mómento realizar isolada­mente todas as tarefas cujos prfdutos possam a um só tempo satisfazer a todas as suas respectivas tfecessidades. Aliás, em tempo algum ao homem foi possível realizar-se como tal de forma solitária, visto que mesmo antes do aparecimento da divisão do trabalho já havia uma conjugação social dos esforços dos membros das comunidades primi­tivas, no período da coleta ou apropriação direta dos frutos naturais, com vistas exatamente a superar a baixa produtividade de cada indi­víduo isoladamente considerado, e que era inferior aos níveis de sua subsistência: o indivíduo não sobreviveria se confiasse apenas em suas próprias forças. Com a divisão social do trabalho, entretanto, a sociabilidade se p_erfaz segundo outras exigências, vinculadas não só à conjugação dos esforços dos homens, mas também, e ao mesmo tempo, à necessidade de seu relacionamento recíproco e integrado para a complementação mútua das atividades que cada membro do grupo ou o grupo todo desenvolve de forma especializada: enquanto uns guar­davam o rebanho, outros cultivavam a terra; enquanto uns defendiam o grupo, outros fiavam ou teciam; enquanto uns caçavam ou pesca­vam, outros praticavam ritos religiosos; enquanto uns se entregavam às tarefas domésticas, outros fabricavam utensílios, etc. Assim, a maior produtividade, gerando o excedente econômico, decorre exatamente dessa divisão do trabalho, da especialização das atividades e da con­seqüente necessidade de haver trocas recíprocas entre os homens ou grupos sociais para a satisfação de suas necessidades engendradas num determinado nível do desenvolvimento histórico-sociaJ.46 Esse pro­cesso leva à exigência de uma certa reciprocidade econômica e social entre 'OS homens e os grupos humanos, caracterizando, de um modo ou de outro, uma relação dinâmica de compensações mútuas ou dívi-

46 Ver K. Marx e F. Engels, La ldeología Alemana, 4.• ed., Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 28-70. G. Plekhanov, Os Princípios Fundamentais do Marxismo, São Paulo, HUCITEC, 1978, pp. 31-55. F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro, Vitória, 1960, pp. 149-168. Ver, também, Modos de Produção na Antiguidade, org. Jaime Pinsky, São Paulo, Global, 1982.

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das recíprocas. Assim, os homens sempre esperam ou almejam resul­tados iguais ou maiores que os esforços dispendidos no processo de produção de sua vida material e espiritual. O dispêndio de maior energia para um menor produto ou resultado sempre soa como um desequilíbrio, um desperdício, como uma "injustiça". A divisão social do trabalho induz à necessária troca de esforços, entre os homens, mediante o intercâmbio de diferentes produtos; pois bem, em prin­cípio, a "reciprocidade real" deveria presidir essa relação de troca, visto que normalmente não se dá mais do que se recebe. Entretanto, ·a realidade histórica diz mais do que o princípio, de vez que, por circunstâncias múltiplas, exatamente em razão da divisão do traba­lho, se criaram condições para o aparecimento das desigualdades sociais de caráter estrutural e dos antagoni~mos de classes. Esse fato enseja o aparecimento da "reciprocidade ilusória ou imaginária", conforme mais adiante abordaremos, mediante a manipulação de processos ideo­lógicos. De qualquer modo, há entre os homens uma exigência de reciprocidade e de compensação em suas relações de troca, tanto a nível econômico quanto a nível social: o intercâmbio das tarefas, a troca de bens e serviços, deve expressar uma recipr'Ocidade de certo modo simétrica ou equivalente _quanto os esforços exigidos para sua respectiva prestação ou produção e segundo a natureza e o grau de especialização envolvidos.

Nesse sentido, no que respeita à questão do poder, a dominação, para se apresentar como legítima, precisa aparecer como um serviço prestado necessariamente pelos dominadores aos dominados, deverzdo estes devolver àqueles, de igual forma e de modo espontâneo, esforço equivalente. 47 No processo do exercício do poder consentido, este se

H Em formulação mais recente, Peter Blau concebeu a relação de poder como uma troca. De acordo com essa formulação, o poder é exercido quando um indivíduo ou grupo social exige alguma coisa de outro indivíduo ou grupo social, mas não tem nada equivalente para oferecer em troca: as mercadorias ou serviços exigidos só podem então ser obtidos por meio da submissão do indivíduo ou grupo social ao poder daqueles que controlam tais mercadorias e serviços. Apud David Berry, Idéias Centrais em Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pp. 137-138. Em que pese a similitude dessa posição com a nossa, a colocação de Peter Blau não fundamenta a nosso ver o essencial da relação de poder: a reciprocidade calcada no processo ideológico, exatamente para ocultar a desigualdade real que justamente exige aquela relação de domínio.

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manifesta como uma constelação de interesses sociais reciprocamente pactuados.48 O poder legítimo, na sociedade de classes, se funda na crença de que os dirigidos devem servir aos dirigentes, exatamente pelo serviço de direção que estes prestam, e pelo qual dissimulam a dominação oculta. Os dominados, tendo o dever de servir àqueles que os servem, precisam manter, com os dominadores, representações ideo­lógicas partilhadas que permitam o reconhecimento dos "benefícios" mútuos e, conseqüentemente, o da legitimidade do poder. Há, de certo modo, uma divisão do trabalho social de direção, configurada no mo­nopólio de tarefas que devem ser necessariamente tt'ocadas entre domi­nantes e dominados, transparecendo, na reciprocidade do intercâmbio, o traço do consenso legitimador do poder hegemônico . Existe entre eles, portanto, uma referência mútua de obrigações e direitos. O direito à obediência atribuído aos dirigentes decorre de sua obrigação de prover as bases materiais e espirituais destinadas à reprodução da vida

social, assegurando a justiça e a paz, pela manipulação das condições somente por eles monop'olizadas. Essas condições, entretanto, e aqui está o núcleo da questão, não se referem apenas às bases materiais disponíveis nas mãos dos dominadores, mas principalmente aos qua­dros ideológicos que criam ilusões a respeito do potencial que estes têm para a solução dos problemas da reprodução da vida social. O acesso privilegiado do Inca ou do Faraó, por exemplo, às forças sagra­das do sobrenatural, aos ancestrais e às divindades, determina a eficá-

Ver, também, Percy S. Cohen, Teoria Social Moderna, Rio de Janeiro, Zahar, 1970, pp . 139-143. Peter M. Blau, Exchange and Power in Social Lífe, Nova Iorque, Wiley, 1964. Henri Mendras, Princípios de Sociologia, s.• ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp . 182-194. William Skidmore, Pensamento Teórico em Sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pp . 107-171.

48 Max Weber trabalha com dois conceitos (tipos) opostos de dominação e , dentre estes, faz referência à constelação de interesses. Distingue , "por um lado, a dominação mediante uma constelação de interesses (especialmente me­diante situações de monopólio); por outro lado, mediante a autoridade (poder de mando e dever de obediência). O tipo mais puro da primeira forma é o domínio monopolizador de um mercado. O tipo mais puro da última forma é o poder exercido pelo pai de família, pelo funcionário ou pelo príncipe ( . .. ). Cada um dos dois tipos pode facilmente converter-se em seu contrário". Max Weber, Economía y Sociedad; Il, 2." ed., Bogotá, Fondo de Cultura Económica, 1977, p. 696.

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cia da obediência social em função do imaginário compartilhado pelos membros ·das respectivas sociedades, especialmente quando se torna possível- a ligaçãó de certos fenômenos naturais, adversos ou favoráveis ao processo social produtivo. aos desígnios dos deuses somente evocá· veis por aqueles pen:onagens do pode;. A proteção dos deuses para uma boa colheita se obtém através de cerimônias e serviços religiosos monopolizados por uma minoria privilegiada, não por imposição coer­citiva, mas por reconhecimento, no plano ideblógico, no lugar "natu­ral" que ocupa para essa missão, e isto como crença compartilhada por todos os membros da sociedade, inclusive pelos próprios dominadores.

Em contrapartida, a obrigação de prestar serviços por parte da classe dominada é geradora do direito desta à proteção vital econô­mica, social e militar, caracterizada pelo "controle natural" que as classes dominantes mantêm sobre as condições de realização dessa proteção. Nas sociedades pré-capitalistas, por exemplo, o trabalho real das grandes populações subalternas, na construção de diques, estradas, templos, cidades, obras de irrigação, celeiros coletivos, etc., correspondia à função recíproca dos serviços de proteção e segurança prestados pelos dominadores, embora grande parte desses serviços fosse de ordem imaginária ou ideológica. Nesse sentido, para a mantença do domínio e da exploração, dentro de um quadro hegemônico onde os dirigidos dão seu consentimento legitimador, ativo ou passivo, é necessário que a dominação se apresente como uma troca de serviços, ainda que tais serviços sejam de naturezas diversas: de um lado, a prestação dos serviços de proteção e de caráter ideológico, manipula­dos pelos dirigentes em comunhão de crenças com os dirigidos;

49 de

4!• Aqui é indispensável pôr em relevo o caráter dinâmico e dialético da con­formação ideológica, quanto ao seu conteúdo variável, em razão do estado das forças sociais em jogo num determinado momento histórico. Assim, Miriam Limoeiro Cardoso, considera, com muita propriedade, que "uma determinada ideologia dominante não se define em função da classe dominante, mas nas relações entre as classes. A ideologia dominante é uma expressão da relação das classes. ( ... ) Nas ('roposições da ideologia pela qual o Estado é controlado podemos encontrar, portanto, o projeto de classe da fração dominante - não um projeto 'puro' ou 'ideal', mas o seu projeto possível num determinado mo­mento, considerando o estado das relações de classes". C f. Miriam Limoeiro Cardoso, Ideologia do Desenvolvimento, Brasil: JK, JQ, Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1978, p. 89 .

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outro, a prestação de serviços reais destes últimos, de obrigações efeti­vas realizadas no âmbito das relações econômicas. É preciso registrar que esse intercâmbio entre dominantes e dominados corresponde a tarefas imprescindíveis à reprodução, segurança e desenvolvimento da vida material de toda sociedade. e necessário, entretanto, sublinhar com muita ênfase que essa relativa correlação de interesses, que à primeira vista parece apenas de caráter funcional , é precisamente a expressão dialética da unidade de forças coletivas essencialmente anta­gônicas, que não podem normalmente transparecer ao vivo exatamente como são, sob pena da desagregação da sociedade como um todo, no confronto das classes sociais .

Esse fenômeno, portanto, diz respeito à própria existência dos membros da sociedade, ensejando as idéias de contraposição de inte­resses vitais e de dívida fundamental a ser paga conscientemente (embora seu fundamentos e sua origem não sejam conscientes). Daí surge Ó consenso e este é tanto mais forte e legítimo quanto mais as classes subalternas se sintam reconhecidas em face dos serviços pres­tados através da manipulação de forças "invisíveis" pelos dominado­res e creiam que os serviços que podem prestar a estes - e que são reais e bem visíveis - são menos importantes ou significativos que aqueles. 5Q e natural que as representações ideológicas devam ter um certo respaldo no mundb dos fatos, sob pena de se tornarem frágeis e perderem sua eficácia para a garantia do poder hegemônico. Como' essas representações são de caráter simbólico, o compromisso dos do­minadores para manterem suas promessas pode fundar-se na possibi­lidade de se "provar" o êxito de seus serviços pela conexão igualmente simbólica de certos fatos. e assim, por exemplo, que o Faraó "fazia retornar", periodicamente, as águas férteis do Nilo, mediante a prá­tica de ritos sagrados. É também o caso do escravo que consente e coopera para sua própria opressão na contínua esperança do cumpri­mento, pelo senhor, da promessa de proteção e de libertação; se a proteção e a alforria nunca ocorressem, a promessa perderia sentido e o escravo não poderia jamais identificar seu interesse com o de seu senhor.51

50 Ver, nesse sentido, Maurice Godelier, "A Parte Ideal do Real". in Antropo­logia, op. cit., pp. 199-200. 51 Idem, ibidem, pp. 202·3.

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Essa práxis do poder, pprtanto, leva-nos a considerar que o mo­mento ideológico é fator intrínseco e orgânico de seu exercício durável e legítimo. A reprodução da dominação sob a forma de hegemonia política, indispensável à reprodução da vida material numa sociedade de classes, consagra-se como prática de um compromisso mútuo entre dominadores e dominados, numa espécie de pacto organizador do poder legítimo, onde a violência e o consenso se manifestam numa uni­dade de contrários, contribuindo para manter o confronto dentro de certos limites e formas, em proporções compatíveis com a reprodução segura e permanente do domínio das classes privilegiadas.

Na S'ociedade capitalista, a questão do poder legítimo se coloca num plano mais complexo, exigindo uma forma de organização polí­tica singular que é o Estado, caracterizado em última instância pela centralização e monopólio da violência legal, numa esfera personali­zada de forma abstrata e geral, condicionada e condicionante da ordem jurídica que consagra os princípios da liberdade e igualdade formais. Assim, o Estado apresenta-se como "a esfera do universal e do geral, onde se liberam os indivíduos, enquanio pessoas políticas, das 'hierar­quias naturais' que impedem sua integração em uma comunidade 'universal', e isto na medida em que tem como função objetiva esta­belecer uma ordem de unificação na sociedade mercantil moleculari­zada. A dissociação atomística da sociedade civil constitui precisamen­te sua condição de possibilidade: separa-se da sociedade civil já que, fundado sobre esta molecularização, só pode ascender à esfera do universal mediante uma abstração e formalidade que permite captar politicamente aos governados, enquanto indivíduos políticos (pessoas), separados de suas determinações econômico-sociais concretas". 52 O Estado, portanto, sobressairá como uma terceira força impessoal e abstrata, cujo modo de aparecer recobre e oculta ideologicamente seu real fundamento, representado pela contradição entre o geral e o par­ticular, entre a produção socializada e a apropriação privada dos recursos produtivos e do excedente econômico. Ao contrário do que ocorreu nas sociedades pré-capitalistas, onde as relações de poder se identificavam diretamente com as relações econômicas, onde o sobre-

~2 Cf. Nicos Poulantzas, Hegemonía y Dominaci6n en el Estado Moderno, op. cit. , p . 59 .

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produto do trabalho escravo ou servil era perfeitamente identificável no tempo e no espaço e ápropriado de modo direto pelos senhores, decorrendo daí a necessidade de mascarar a desigualdade manifesta. por formas ideológicas imaginárias, na sociedade capitalista ocorre a clara distinção entre o poder político e as relações econômicas, fican­do aquele poder adscrito, entretanto, nos planos ideológicos e jurídico­político, aos limites da formulação abstrata da lei geral, que permite a todos sem discriminações, igual oportunidade de acesso à riqueza social.5 3 Se este é um anseio que não pode ser concretizado por todos os membros da sociedade, fica contudo a forma ideológica que permite legitimar a dominação econômica oculta no processo produtivo, tanto mais que vez por outra ocorre a efetiva e excepcional realização desse anseio. Essa legitimação, no âmbito do Estado intervencionista ou do Estado social do bem-estar, se torna mais efetiva e mais concreta na medida em que a hegemonia encontra respaldo nos grandes investi­mentos da administração pública para prover, de modo amplo e cres­cente, as necessidades das massas populares e, ao mesmo tempo, con­dicionar o contexto social para a reprodução do capital privado.114

A hegemonia política na sociedade capitalista não está referida diretamente à instância econômica, motivo pelo qual não se percebe claramente as relações do momento político com as bases da dominação no processo produtivo. A extração e apropriação privada do sobrepro­duto do trabalho explorado são encobertas pelos mecanismos da pro­dução e do mercado capitalista, com o afastamento da ingerência política ou coativa direta e manifesta para dar lugar a formas de rela­cionamento contratual entre dominadores e dominados, nas quais está pressuposta a garantia jurídica de liberdade e igualdade abstrata e formal das partes. Nesse processo, não fica claramente exposta ou

53 Para um aprofundamento do tema, ver Paul M. Sweezy e outros, Do Feu­dalismo ao Capitalismo, São Paulo, Martins Fontes, 1977; Giuliano Conte, Da Crise do Feudalismo ao Nascimento do Capitalismo, 2: ed., Lisboa, Presença, 1984; Hunt e Sherman, História do Pensamento Econômico, 4." ed., Petrópolis, Vozes, 1985. 54 Ver a esse respeito, Jürgen Habermas, Técnica e Ciência Enquanto "Ideo­logia", São Paulo, Abril Cultural, 1975, pp. 317-320. Idem, A Crise de Legiti­mação no Capitalismo Tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980. Yves Leclercq, Teorias do Estado, op. cit., pp. 59-80. Claus Offe, Problemas Estru­turais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, pp . 262-289.

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explícita a assimetria de exploração econômica dos trabalhadores, per­mitindo ao sistema a construção ideológica legitimadora a partir das aparências, com a ocultação da dominação efetiva sob o manto da descrição das fontes autônomas de rendimento, onde capital, trabalho e natureza têm, cada um por si, indeprmdência, valor próprio e igual­dade de condições. Por isso, ao nível da relação de mercado, o traba­lhador se vê em "pé de igualdade" com o capitalista, pactuando à luz da ordem jurídica a venda de sua força de trabalho, nas "mesmas" condições estabelecidas para o capital , o qual fica obrigado a dar remuneração justa através do salário e a oferecer condições de segu­rança no processo produtivo.5r; Não se percebe, portanto, que o incre­mento ou valorização do capital se dá exatamente às custas do trabalho não-pago, cujo resultado é apropriado pelo capitalista a partir dtJ processo produtivo, não sendo o capital mais que trabalho social cris­talizado e acumulado reprodutivamente ao longo do período histórico em que esse sistema passou a ter predominância. A determinante da relação de desigualdade na repartição do produto social, originada da exploração do homem pelo homem, não aparece explicitamente porque ela é objetivamente mascarada em razão da simetria dominante no âmbito da circulação mercantil, onde os resultados do trabalho social tomam a j'orma de mercadorias cujos valores de troca são equivalentes, incluindo a própria força de trabalho. Vê-se, por esse mecanismo, que a dinâmica do próprio sistema capitalista oferece as condições objetivas para a construção ilusória das representações ideológicas essenciais ao seu funcionamento. Esse processo não dispensa - ao contrário, o exige -, no âmbito da organização jurídico-política, a consagração de instituições , formas e procedimentos asseguradores da legitimidade do poder, configurados de modo destacado, impessoal e burocrático na

expressa presença do Estado.56

A hegemonia política no sistema capitalista, enquanto assinala a dialética da violência e do consenso, só pode alcançar legitimidade na medida em que a adesão dos dominados se funda na convicção do

õ5 Ver Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeiro,

Graal, 1981, pp. 70-78. i\6 Para uma análise aprofundada da essência, suposto e desenvolvimento da dominação burocrática , ver Max Weber, Economía y Sociedad, 11, op. cit.,

pp . 716-752.

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autogoverno pela qual todos os cidadãos individuais se sentem parti­cipantes da direção social mediante as formas de representação demo­crática. Isso significa que o processo democrático da sociedade bur­guesa engendra nas pessoas a crença de que exercem efetivamente a autodeterminação política e que, por conseqüência, controlam os resul­tados obtidos nesse âmbito, independentemente de relações injustifi­cadas de dominação e violência. Se estas existem, são admitidas como esporádicas, presentes em algumas poucas áreas onde a vigilância está ausente, ou como resultantes de procedimentos arbitrários ou autori­tários em que vez por outra mergulha determinada sociedade. Neste caso, não há reconhecimento de que existem, no plano econômico, dominadores e dominados, exploradores e explorados; nem se trata do reconhecimento de uma classe dominante "legítima"; o que existe é a crença de que não há classe dominante, ou melhor, de que não existem classes sociais. Assim, a indicação dos interesses gerais da sociedade é remetida diretamente ao Estado, o qual representa politi­camente todos os cidadãos, individual e coletivamente considerados, na medida em que admite a participação formal e uniforme deles no estabelecimento das políticas govemamentais.57

Esse processo reflete-se na concepção do Estado, não só no âmbito da práxis cotidiana, onde impera o senso comum, como também nos meios acadêmicos reprodutores ideológicos do sistema, especialmente quando seus esforços analíticos não ultrapassam os limites da mera descrição positivista da realidade estatal. Com efeito, o Estado nesta concepção é figurado, no plano da representação comum ou teórica, como a instituição voltada inequivocamente para o bem comum, pro­motor e guardião da dignidade humana. Ele se apresenta de forma perfeitamente justificada e, portanto, legítima, na medida em que é a expressão da unidade superior da sociedade, representando o interesse social inafastável da ordem e segurança, que devem ser preservadas a todo custo, inclusive, se necessário pela força. Por isso, a ordem, a segurança e, para garanti-las, a força utilizada pelo Estado são. legiti­madas em nome do bem comum existente acima dos interesses parti­culares, com validade própria superior e destacada dos processos sociais

57 Ver, nesse sentido, John Urry, Anatomia das Sociedades Capitalistas: A eco· nomia, a sociedade civil e o Estado, Rio de Janeiro, Zahar, 1982, pp . 29-31.

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ligados ao jogo das forças econômicas em conflito. Nesse sentido, pode-se observar que se remarcam com clareza ou explicitamente o conteúdo específico e a particular direção efetiva da ordem e da segurança ptotegidas e garantidas pelo Estado, induzindo a uma con­sideração meramente formal, abstrata e geral com respeito a esses conceitos, fundando, por conseqüência, as bases ideológicas indispen­sáveis à ocultação da real dominação existente. O Estado, ao realizar a idéia do bem comum, põe-se acima da sociedade como se exprimisse, na linguagem hegeliana, a concretização da marcha racional da história, na consecução do Espírito Objetivo em que a Idéia ou Razão se encar­naram progressivamnete. 58 Por essa linha, hoje dominante, o Estado se distingue da sociedade civil, embora dela seja um momento supe­rior, na qual imperam os indivíduos com seus interesses privados em conflito, expressão das necessidades e carências humanas cuja satis­fação relativa depende do trabalho e da inter-relação permanente entre os homens, dificultando ou impedindo, nesse nível, a plena rea­lização da liberdade. Ao ser o Estado, nessa concepção, o instrumento da racionalidade social, nele se reconciliam, em termos de moralidade objetiva, os interesses privados e os da coletividade, perfazendo esque­mas de ação onde o universal racional se sobrepõe aos anseios parti­culares dos cidadãos e, ao mesmo tempo e de certo modo, os inclui de forma a compatibilizá-los de alguma maneira. O Estado, portanto, se manifesta através do ordenamento .jurídico e de suas instituições e procedimentos racionais figurados na legalidade geral e abstrata, no serviço público, no interesse geral, na força pública, na busca da paz social, etc. A ideologia dominante, neste caso, esforça-se para resguar­dar a idéia de superioridade e neutralidade do Estado e do Direito em face das contradições emergentes da vida social, ao propugnar pela dissociação e simultânea harmonização das esferas pública e privada, com o objetivo de apagar os verdadeiros vínculos da sociedade política com a sociedade civil. 59 Essa forma de empreender a representação

:; x Ver Renato Cirell Czerna, O Direito e o Estado no Idealismo Germânico: Posições de Schelling e Hegel, tese apresentada no concurso para o cargo de professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FADUSP, São Paulo, 1981, pp. 128-146. i">H ~ A cisão da sociedade e Estado cria a divisão entre vida privada e vida pública. A sociedade contém o indivíduo egoísta, o indivíduo privado; o Estado

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ideológica do poder serve para escamotear as bases reais do edifício jurídico-político do Estado, calcado nas estruturas assimétricas e con­traditórias do sistema econômico capitalista, no set:ztido de eliminar, ú'o nível da imagem, da noção comum ou do conceito teórico, as con­tradições que não podem ser efetivamente elididas no campo da práxis real. É por essa razão que não é possível explicar o Estado, sua origem, estrutura e funções, apenas no âmbito das normas e conceitos jurídicos, visto que ele não é simples resultado de ordenação constitucional ou de técnicas administrativas; na verdade, o Estado figura sempre como manifestação concreta da organização política de uma determinada formação social, cuja ordem e estrutura não podem ser explicadas somente a partir da produçã'o normativa que, em função dos interesses nela prevalentes, prescreve tão só as ações possíveis dentro do siste­ma, com o inevitável sacrifício daquelas que possam contestar ou pôr em perigo o sistema como um todo. 60

No contexto econômico-social da sociedade capitalista, o Estado não pode ser realmente compreendido como um poder imposto de fora, nem como uma expressão racional da idéia do bem comum; seu aparente destaque em relação à sociedade civil, encarnando ao nível de sua manifestação fenomênica o interesse geral dessa sociedade, é produto de inversão ideológica indispensável destinada a compor uma imagem de harmonia, cooperação e liberdade entre os agentes sociais, com aparente indiferença às condições reais de exploração econômica das classes subalternas. O circuito ideológico destinado a construir o instável equilíbrio das forças sociais em jogo, realizando a troca de serviços equivalentes entre dominadores e dominados, transparece por mediação do próprio Estado, que se manifesta através de um ordena­mento jurídico igual para todos, através de um Direito geral e impes­soal, organizador racional de instituições neutras que servem indife­rentemente a tod'Os os membros da sociedade. Essa representação é essencial, embora não suficiente, para a legitimação do poder no siste­ma capitalista, cuja organização política não pode justificar-se senão

supõe o ser coletivo, o cidadão, porém como ser abstrato e formal". Cf. Ornar Guerrero, Administración Pública del Estàdo Capitalista, Barcelona, Fonta­mara, 1981 , p. 108. 60 Ver, nesse sentido, Michel Miaille, Une Introduction Critique au Droit, Paris, François Maspero, 1976, pp. 139-149.

ESTADO E IDEOLOGIA 205

instrumento da racionalidade formal. Isso significa que o Estado tvireito caracterizam formas de manipulação técnica, cujos esque­

mas podem encerrar conteúdos diferentes; consagra-se, portanto, a separação entre a forma indiferente, racional e abstrata e o conteúdo variável, específico e concreto. 61 Verifica-se, então, o predomínio da forma manipulável sobre o conteúdo por vezes rebelde, tornando-se o Estado a expressão ideológica de uma pura idéia, abstrata e indife­rente aos agentes reais que o controlam. Não se identificando direta­mente com os detentores do poder, o Estado não pode em princípio pender par11. esta ou aquela classe social; elo contrário, parece situar-se acima de interesses parciais, como se todos os indivíduos tivessem ou pudessem ter igual oportunidade de exercer o efetivo controle político da sociedade.62 Esse fenômeno leva à crença de que a democracia na sociedade burguesa permite o real antagonismo dos cidadãos, que se sentem participantes por · si ou por seus representantes no processo de decisão política diretora dos rumos da coletividade. Neste caso, o mecanismo do intercâmbio de serviços entre dominadores e domina­dos, destinado a conferir a necessária legitimidade para a manutenção e reprodução das relações econômicas assimétricas e antagônicas, tor­na-se, em comparação com os das sociedades pré-capitalistas, bem mais complexo, pela necessária introdução da figura do Estado, carac­terizado como uma forma hegemônica de organização política, aparen­temente destacada das condições reais da dominação econômica e mascaradora da efetiva exploração e apropriação privada do produto s'ocial excedente.

É preciso, entretanto, pôr em grande destaque a estruturação relativamente autônoma e objetiva dessa organização enquanto serve também como fundamento do desenvolvimento social e econômico, visto que por essa face estatal intervencionista ou dirigente não só se atenta ao preparo e realização das condições indispensáveis à repro­dução das relações econômicas dominantes, perpetuando a exploração e apropriação privada da mais-valia, como também se oferecem as bases materiais para incrementar a força de legitimidade do poder

HJ Ver Franz Neumann, Estado Democrático e Estado Autoritário, org. Her­bert Marcuse, Rio de Janeiro, Zahar, 1969, pp. 37-52. G2 Ver Michel Miaille, op. cit., pp. 149-154.

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político, exatamente no sentido de ocultar de modo ainda mais perPer­so aquela exploração e violência. Esse processo se torna expressivo na medida em que as relações entre o Estado e a sociedade civil são profundamente alteradas - embora ainda nos limites do modo de produção capitalista - em razão do movimento geral do capital em seu processo de acumulação ampliada, através da progressiva concen­tração e centralização dos capitais individuais privados, com a forma­ção de monopólios nacionais e internacionais, até a fase do capitalismo monopolista de Estado que se manifesta claramente a partir da Pri­meira Grande Guerra e se acentua após a última conflagração mundial. "A socialização da produção conduz a formas inéditas de organização do Estado e a uma modificação radical do caráter da atividade do Estado em geral na medida em que os capitais individuais privados acham-se, cada vez mais pronunciadamente, numa situação tal que a mais-valia por eles amealhada (de forma segregada) não é mais sufi­ciente para realizar a reorganização das condições tecnológicas de produção, necessária à manutenção do processo de acumulação."6~

O que é preciso ressaltar com muita ênfase, entretanto, é que a cen­tralização do capital, levando ao maior controle da propriedade real (econômica) pelo EstadQ, não é, corrto à primeira vista pode parecer, uma exigência deste último imposta ao capital, "mas justamente ao contrário; é o capital que, precisamente para poder levar adiante sua estratégia de centralização, coloca para o Estado a necessidade de assumir, em graus variados, determinados poderes vinculados à rela­ção de apropriação real".64 No entanto, enquanto não se analisa as bases reais do sistema político, aquela configuração aparente de que é exclusivamente o Estado o pólo ativo do controle social suscita a inevitável impressão de sua exterioridade e neutralidade em face do processo de acumulação capitalista, engendrando a ilusão de sua rela­tiva independência, mascaradora da exploração econômica de classe

63 Cf. J. Hirsch, "Elementos para uma Teoria Materialista do Estado", in J. Vincent (ed.), O Estado Contemporâneo e o Marxismo, Paris, Maspero, 1975, p. 79. Ver, também, a questão do Estado do Bem-Estar e sua crítica abordadas por Dalmo de Abreu Dallari, em O Futuro do Estado, São Paulo, ed. do autor, 1972, pp. 175-191.

64 Cf. Carlos Estevam Martins, Capitalismo de Estado e Modelo Político no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1977, p. 34.

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por 'fle mesmo avalizada. Por essa razão, a formação econômica capi­talista não prescinde da organização política estatal, pois esta vincula profundamente as condições de existência dessa formação, permitin­do afirmar que o Estado não é exatamente um instrumento a serviço desse sistema social, mas é esse mesmo sistema em sua mais alta expressão jurídico-política.

Cumpre ressaltar, neste momento, para que não se tenha uma compreensão distorcida a respeito, a necessidade da distinção entre poder e governo, entre quem detém a hegemonia política da sociedade e quem toma as decisões políticas do Estado, ou, na linguagem de Gramsci, quem predomina no bloco histórico (as classes dominantes) e quem caracteriza o bloco no poder (elite do poder). "Desta dife­renciação resulta que a classe dominante e a elite do poder não têm iguais esferas de influência: uma detém o poder e a outra governa. Em qualquer caso, certos membros da classe dominante não tiveram nunca em sua vida a ocasião de tomar decisões de alcance estatal e, ao contrário, muitos membros da elite que governa não têm título algum de propriedade para formar parte (objetiva) da classe domi­nante."05 Essa distinção é fundamental para se compreender a disso­ciação entre o Estado e a sociedade civil e se destaca com maior precisão e propriedade quando observamos exatamente o oposto no período pré-capitalista, em que a classe dominante e a elite do poder eram idênticas em sua esfera de influência: os senhores feudais forma­vam em conjunto a classe dominante e cada um, em seu domínio próprio, constituía o centro efetivo de onde emanavam as decisões políticas concretas, respaldadas por forças armadas próprias, com as quais resguardava o poder supremo em sua região. Porém, com o advento do capitalismo e a conseqüente ampliação extraordinária das condições de produção econômica, com o desenvolvimento da econo­mia monetária e expansão insólita dos mercados, com o avanço da divisão social do trabalho e o alto índice de concentração de capitais e das populações nos centros urbanos, e, mais tarde, com o apareci-

6i5 Cf. Zygmunt Bauman, op. cit., p. 209. Ver Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1977, pp. 227-247, 293-300. Para uma análise da questão no contexto de uma formação econômico-social deter­minada, ver Karl Marx, O 18 Brumário, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp . 7-143.

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mento dos sindicatos e dos partidos políticos de massa, com as gran­des reivindicações populares e as resultantes demandas sociais a serem atendidas pelos aparelhos governamentais, a estrutura da organizaçã•o política da sociedade sofre profundas alterações, sendo a principal de,las a separação entre o Estado e a sociedade civil. Com esse proces­so, as funções políticas e administrativas estatais são incrementadas e se especializam, exigindo experts na arte de governar e administrar: surgem os políticos de profissão e o pessoal da burocracia estatal; forma-se a elite do poder, o bloco no poder. Diante dessa diversidade, a questão é saber como o interesse da classe dominante na reprodução das relações burguesas de produção pode ser traduzido mediante as decisões concretas tomadas pelo bloco no poder. "Se o Estado se vê confrontado com uma multidão de articulações de interesses e de exi­gências, tanto por parte de capitais individuais e de grupos de capitais quanto das classes dominadas, como estas exigências podem ser sinte­tizadas, filtradas, canalizadas, suprimidas e desviadas de modo tal que, no fim das contas, o interesse de classe (a longo prazo) da bur­guesia se torne efetivo?".66 A resposta a essa questão funda-se, a nosso ver, naquilo que Claus Offe e Guillermo O'Donnell denominam de "cumplicidade estrutural". Este conceito revela a unidade dialética entre o Estado e a sociedade, sendo as contradições existentes no seio desta última a condição de possibilidade da organização estatal, de tal modo articulada que esta organização se integra também C'omo forma política sem a qual as relações capitalistas de priJdução seriam igualmente impossíveis. Isso significa que o Estado é uma organização política própria do sistema capitalista, como ainda veremos, de tal sorte que ele não depende, para ser Estado capitalista, da decisão ou vontade de seus agentes políticos. Assim, o Estado, como forma polí­tica da sociedade capitalista, se reproduz dentro da "normalidade" desse sistema, "primeiro, como Direito, enquanto cristalização codi­ficada da igualdade formal e da propriedade privada; segundo, como presença tácita de recursos de poder, prontos para entrar em ação

66 Cf. J oachim Hirsch, "Observações Teóricas sobre o Estado Burguês e sua Crise, in Nicos Poulantzas (org.), O Estado em Crise, Rio de Janeiro, Graal, 1977, pp. 99-100. Para uma perspectiva abrangente a respeito dessa questão, ver AntO·· nio Gramsci, Maquiavel, A Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1980.

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caso a relação de dominação que suportam 'falhe' por alguma razão; terceiro, como um dos ancoradouros para a ideologia da sociedade capitalista, que se apaga da consciência comum enquanto dominação e exploração; e,_ quarto, como cisão veross~ do Estado enquanto instituição face à sociedade capitalista, com o mascaramento da refe­rida cumplicidade estrutur·al, ocultando-se a si mesmo como domina­ção" .67 Nesse sentido, as crises dentro desse sistema configuram-se por referência a sua própria "ordem", a qual representa, de certó modo, a neutralidade da sociedade enquanto capitalista, cuja normalidade é restaurada dinamicamente me~iante a· "solução" de cada problema.

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Pelas razões expandidas, verifica-se que o enfoque dialético da hegemonia política leva a não compreender o Estado cbmo um mero instrumento para servir aos privilégios de classe em detrimento dos fracos, como um simples meio utilizado pelos dominadores com o objetivo de manter a exploração econômica capitalista. Como já analisamos, a configuração estrutural da sociedade capitalista com­preende a profunda dissonância dos interesses sociais, cuja base é a divisão da sociedade em classes antagônicas, revelando uma assime­tria conflitiva na distribuição dos bens produzidos. Entretanto, a vio­lência da exploração ao nível das relações de . produção, que espelha vivamente as contradições sociais, encontra sua ocultação e "solução" a nível jurídico-político_ (que não exclui o ideológico) na figura da estrutura política estatal, cuja função essencial nesse nível é garantir a reprodução daquelas relações e harmonizar os interesses sociais, através da promoção da concórdia coletiva, da reconciliaÇão dos con­flitos individuais e do bem-estar social, mesmo que para isso utilize possível coerção. Por essa razão, o Estado se apresenta como a instân­cia onde os homens aparecem como indivíduos iguais entre si, não na sua qualificação concreta econômica ou social, pelas quais são profundamente desiguais, mas na sua forma política, como cidadãos; nesse sentido, o · Estado é fator de coesão social e engendra a repre­sentação da sociedade como uma organização unificada, firmando-se

67 C f. Guillermo O'Donnell, "Anotações para uma Teoria do Estado", I, in Revista de Cultura e Política, n.0 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 86. Ver, também, Claus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, op. cit., pp. 140-177; Joachim Hirsch, op. cit., pp. 100-109. 68 Ver, nesse sentido, Guillermo O'Donnell; op. cit. pp. 87-91.

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a si mesmo como idéia de uma forma social que concretiza o ·bem­comum, a unidade e solidariedade entre os homens. Essa idéia não cria o Estado, mas é condição para a própria existência e o funcio­namento das instituições estatais; sem ela, sem a crença que a reveste de realidade universal para cada um de nós, não seria possível a práxis do "interesse geral", dos "direitos dos cidadãos", da "legali­dade democrática", da "vontade legítima" da administração pública, etc. Sem estas e outras formas da prática e do discurso jurídiCo-polí­tico, dificilmente as instituições estatais sobrevivem.~9 Isso quer dizer que a par das condições objetivas nas quais se enraíza o Estado, além das contradições estruturais da sociedade que exigem os laços de uma forte organização polltica para promover a coesão social, existe a indispensável dimensão ideológica, que desempenha um papel essen­cial da constituição e reprodução dessa organização. Assim, é· possível assinalar, mais uma vez, o mecanismo da gênese e manutenção das representações ideológicas como fundamento das relações de poder legítimo, onde o equilíbrio consensual das partes antagônicas é alcan­çado pelo complexo jogo entre o real e o imaginário.

69 . Ver, nesse sentido, Michel Miaille, op. cit., pp. 52-56.

Sociedade civil e Estado

Com base nas questões substanciais e nas relações de poder abor. dadas anteriormente, pretendemos tocar nos pontos essenciais que, segundo nossa tese, constituem a estrutura da organização político­estatal da sociedade capitalista, sem perder de vista que se trata de identificar categorias de referência teórica para instrumentar a real compreensão do fenômeno do Estado, ocorrente apenas nas formações econômico-sociais desse tipo de sociedade.1 A nosso ver, o Estado é apenas uma forma de organização política e não pode, por conse­qüência, ser identificado com toda organização política possível. A organização política do sistema de produção escravista dà soCiedade romana antiga · não se configura como Estado, bem como, do mesmo modo, o sistema_ feudal não se organiza politicamente sob a forma de Estado.2 Isso quer dizer que o Estado não é um fenômeno universal

1 O termo "Estado" foi utilizado, pela primeira vez, em seu sentido moderno e contemporâneo, por Maquiavel, rias primeiras linhas de O Príncipe, ao dis­tinguir os Estados entre repúblicas e monarquias. Ver Niccolõ Machiavelli, O Príncipe, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1979, p. 47. Ver Salvador Gi­ner, Historia dei Pensamiento Social, 3.• ed., Barcelona, Ariel, 1982, pp. 198-209. 2 Heller é dessa opinião: "As origens propriamente ditas do Estado moderno e das idéias que a ele correspondem devem procurar-se, não obstante, nas

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e, se fosse, nada explicaria, pela sua generalidade, a respeito de como os homens, em cada período histórico e segundo cada sistema econô­mico, se governam e se organizam como estrutura de poder. O Estado, portanto, tem características peculiar:es que só cabem ser consideradas no âmbito de um modo específico de realização material da vida social, ou seja, do modo capitalista de produção. Por esse motivo, a ciência política que objetiva o estudo das relações políticas corres­pondentes a esse modo de produção é exatamente a teoria do Estado.3

Não há, portanto, uma teoria do Estado como ciência universal de todas as organizações possíveis de poder, incluindo todas as formas de estruturação política dos homens, sem levar em conta as condições históricas específicas de cada época e de cada modo ou sistema de produção social. O conceito de Estado só pode ser referido à instân­cia política do modo de produção capitalista e, por isso, seu trata­mento teórico tem de levar em conta não esquemas formais de poder válidos para todas as épocas, mas características inconfundíveis e identificáveis precisamente em razão do singular funcionamento do

cidades-Repúblicas da Itália setentrional na época da Renascença". " . . . inte­ressa ao nosso objetivo a consciência histórica de que o Estado, como nome e como realidade, é algo, do ponto de vista histórico, absolutamente peculiar e que, nesta sua moderna individualidade, não pode ser trasladado aos tempos passados;,. " . . . o Estado da Idade Moderna tem tão pouco que ver com o medi>eval - se é que se pode falar de um Estado na Idade Média - tanto no concernente à· sua estrutura como à sua f'!nção, que. neste caso, só se pode falar de mudança e não de evolução. O mesmo se pode dizer a respeito das relações entre a estrutura do Estado antigo e a do medieval" . Cf. Hermann Heller, Teoria do Estado, São Paulo, Mestre Jou, 1968, respectivamente pp. 161, 157 e 47. Dessa corrente não participa Jellinek, que se empenhou em estender o termo "Estado" à polis grega e à civitas romana; ver Georg Jellinek, Teoría General del Estado, Buenos Aires, Albatros, 1970, pp. 95-99. Idem, ibidem, pp. 22-30. No mesmo sentido, ver Dalmo de Abreu Dallari, Elementos da Teo­ria Geral do Estado, São Paulo, Saraiva, 1972, pp. 45-47. Na _mesma linha, Reinhold Zippelíus, Teoria Geral do Estado, Lisboa, Fundação Calouste Gul­benkian, 1971; Darcy Azambuja, Teoria Geral do Estado, Porto Alegre, Globo, s.d., 137-150. Numa posição crítica a essa linha ver Mario de la Cueva, La Idea del Estado, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1980, pp. 10-44. Ver, também, Javier Pérez Royo, Tntroducción a la Teoría del Estado, Barcelona, Blume, 1980. 3 Ver. nesse sentido. Javier Pére7 Ooyo. op.· cit., p. 13.

ESTADO E IDEOLOGIA 213

sistema econômico de mercado, cuja predominância se deu a partir do século XV.

Se não houver uma abordagem dialética da questão do Estado, certamente incidiremos ou nas operações intelectivas generalizantes que tudo pretendem explicar sob a forma de conceitos gerais e abstra­tos, válidos para todos os períodos históricos, ensejando a ocultação do que é específico e das reais contradições sociais, ou incorreremos na singularidade dos fatos apreendidos empiricamente como dados válidos por si mesmos, sem uma referência teórica verdadeiramente explicativa da realidade política de cada povo e de cada época.4 Ultrapassando a unilateral perspectiva dessas concepções, o enfoque que propomos induz a considerar o Estado como um conceito histórico, ao fazê-lo corresponder exclusivamente a uma forma concreta de organização política.5 Esse modo de analisá-lo dissolve a pretensão de subsumi-lo a categorias a-históricas, abstratas e universalmente válidas para todos os tempos e todos os lugares. A ciência política, para não cair na vala da ilusão ideológica, carece de manter solerte a atenção sobre o método de análise dessa realidade; deve elidir, a nosso ver, qualquer tentativa de explicar totalidades em função de categorias universais , abstratas e formais, pois, a pretexto de tudo explicarem, na realidade nada explicam. Por essa razão, se nos afigura falsa a tentativa de compreender, sob o signo de um único conceito, a realidade política dos tempos do Faraó, da organização incaica, da Macedônia de Ale­xandre, das tribos africanas, do Condado Portucalense ou das atuais estruturas políticas européias.6 Assim, a utilidade do conceito de

4 Ver Pietro Rossi, "La Dialéctica Hegeliana ", in La Evolución de la Dialéctica, Barcelona, Martinez Roca, 1971, pp. 197-252. Ver, na mesma coletânea, Nor­berto Bobbio, La Dialéctica en Marx, pp. 253-275. Henri Lefebvre, Lógica For­mal e Lógica Dialética, Rio de Janeiro, Civ. Brasil.eira, 1975, pp. 103-130. ~ Por isso, afirma Pallieri, "o Estado nada tem de mítico ou ... de racional: é um conceito histórico, e nada mais que um conceito histórico". Cf. Giorgio Balladore Pallieri, A Doutrina do Estado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 14. ~ "A palavra 'Estado' pode ser entendida num sentido vago e genérico, de modo a compreender qualquer forma de convivência política dos homens, desde as hordas barbáricas à polis grega, ao império romano e às atuais co­munidades estatais. Mas em tal hipótese perde-se toda a determinação do con­ceito: cai-se no abstrato e no impreciso; cobrem-se com a mesma denominação

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Estado se caracteriza exatamente pelo poder de explicar, de forma exclusiva, a específica organizaçã'O política do modo capitalista de produção. Por outro lado, é preciso cautela no exame analítico dessa categoria, com vistas a não reduzi-la a uma estrutura puramente formal, isto é, a uma forma jurídico-política desprovida de conteúdo social e econômico. 7 Desse modo, a verdadeira organização política estatal não pode ser extraída tão só do texto constitucional, sob pena de perdermos o principal: suas reais vinculações com a comunidade enquanto expressão de relações estruturais políticas, sociais e eco­nômicas.

Com o objetivo de lançar alguma luz sobre essa questão, não podemos prescindir de uma análise comparativa, ainda que sumária, entre as organizações políticas do feudalismo europeu e das socieda­des onde há o predomínio hegemônico da burguesia.8 Em síntese, a sociedade feudal era essencialmente agrária e aristocrática; nela pre­dominavam os laços de dependência pessoal em função dos privilégios e direitos sobre o feudo. A terra representava a base da produção feudal e os direitos sobre ela determinavam a posição do indivíduo na hierarquia social. O senhor feudal, eclesiástico ou leigo, tinha seu poder e autoridade política dimensionados em razão da · quantidade de terras qfle podia distribuir, sob a forma de benefício, a outros indivíduos - os vassalos - , que, ao recebê-lo (investidura), se com-

. prometiam a lhe prestar serviços (militares, econômicos, utilitários,

formas de convivência tão diferentes, orientadas por princípios tão diversos e às vezes até antitéticos, com finalidades e com meios para atingir os seus esco­pos tão diferentes, que se tornaria totalmente impossível qualquer profícua investigação científica a tal respeito." C f. G. Balladore Pallieri. op, cit., pp. 13-14.

7 Para um exame aprofundado da unidade do Estado e direito, do Estado como ordem jurídica, com exclusão de seu conteúdo sócio-econômico, histórico e po­lítico, ver Hans Kelsen, Teoría General dei Estado, México, Nacional, 1973, pp. 3-27. Para uma visão oposta, ver Hermann Heller, op. cit., 51-90. Ver, também, nesse sentido, Georg Jellinek, op. cit., pp. 3-17, 53-92.

s Ver H. Heller, op. cit., pp. 139-172. Ver, também, Max Weber, Economia y Sociedad, Il , 2.• ed., Bogotá, Fondo de Cultura Económica, 1977, pp. 810-847. Com grande profundidade o t·ema é tratado por Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, Porto, Afrontamento, 1982, pp. 163-234; idem, Linhagens do Estado Absolutista, Porto, Afrontamento, 1984 (ed. bras .: São Paulo. Brasiliense. 1985).

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etc.) e a lhe render juramento de fidelidade num vínculo pessoal recí­proco de honra e proteção.9 Esse laço era de caráter relativo, visto que o senhor ou suserano podia ser vassalo de outro senhor ou suserano situado mais acima na escala hierárquica feudal, até o último senhor: o rei. Quanto mais terras possuía o senhor, mais vassalos lhe presta­riam serviços e honrasY' É preciso, entretanto, notar qtie o vínculo de dependência era pessoal, não podendo os suseranos de hierarquia superior exercer diretamente poder sobre vassalos não-vinculados ime­ditamente a ele; vale dizer, o senhor feudal ficava de certo modo na dependência dos suseranos (vassalos) intermediários, que detinham, por isso, parcela do poder assim fragmentado.U N base da pirâmide feudal encontravam-se os servos da gleba, presos à terra, e os vilões que podiam trocar de feudo . Portanto, essa estrutura social hierárquica e de caráter estamental fundava-se na opressão política e econômica exercida pelos senhores feudais sobre os camponeses ou trabalhadores diretos, dominados sob laços de servidão que os ligavam àqueles se­nhores e entremeados da convicção de que era a única forma possível de sobrevivência. Em razão do baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão social do trabalho, a economia feudal se caracterizava pela baixa produtividade e procedimentos econômi­cos, que se revelavam pela concentração da produção na senhoria l'ural, onde se procurava a auto-suficiência agrícola e pastoril, muitas vezes combinada com uma incipiente manufatura doméstica e com um comércio local em que era bastante restrita a circulação monetáriaP Essa unidade econômica auto-controlada caracterizava também o feudo

H Ver Giuliano Conte, Da Crise do Feudalismo ao Nascimento do Capitalismç , 2.' ed. , Lisboa , Presença, 1984, pp . 7-40. 1" Ver Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de A. Franco e Oscar G. P Campos Lopes, História das Sociedades, Das Comunidades Primitivas às Socie­dades Medievais, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1980, pp. 385-394. I 1 Assim se manifesta Heller: "Como a organização feudal consistia em uma hierarquia de privilégios, com numerosos graus, e o senhor feudal só podia mandar sobre os vassalos e subordinados de classe inferior através do feuda­tário imediato, veio assim a depender aquele da lealdade deste, lealdade que, com bastante freqüência lhe faltava". Cf. H. Heller, op. cit., p. 163. 12 Para uma visão mais analítica dessa fase histórica e de sua transição para o mercantilismo, consulte-se o trabalho de E. K. Hunt e Howard J. Sherman, 4." ed. , História do Pensamento Econômico, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 9-40.

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como uma unidade territorial e jurídico-política, onde o senhor se apropriava do parco excedente econômico produzido pelos servos que, conforme o costume do feudo, pagavam-lhe tributos em espécie ou em dinheiro; em C'ontrapartida, e também de conformidade com aque­le costume, o senhor os protegia, supervisionava seu trabalho e admi­nistrava a justiça. 13 Como a base econômica do poder senhorial con­sistia na propriedade feudal da terra, e esta ligou-se a formas de des­centralização política, pois tal propriedade incluía os poderes militar, judicial, tributário, fiscal, monetário e outros, o senhor feudal, pela concentração desses poderes em suas mãos, exercia uma dominação econômica e política em razão da qual o servo era explorado ao máximo, a despeito das obrigações recíprocas que, pelos costumes, mantinham entre si.14

Nessa organização social hierarquizada, em que os homens se diferenciavam em razão de privilégios que constituíam seu status na pirâmide social, nã'O podia ser compreensível a distinção entre a socie­dade civil ou burguesa e a sociedade política ou Estado. Somente com o aparecimento da sociedade mercantil, já de índole burguesa, com o incremento das artes e das técnicas produtivas, da ciência, do comér­cio e das formas ideológicas correspondentes do nominalismo, do Renascimento e da Reforma, é que se abrem as vias do pensamento

13 Ver, com mais amplitude, Edward Mcnall Burns, História da Civilização Ocidental, Porto Alegre, Globo, 1948, pp. 334-345. 14 "Além de criar o produto necessário à própria subsistência e à de suas famílias, os camponeses eram obrigados a tarefas suplementares para o senhor: assim como a concessão de terras entre nobres criava a vassalagem - ou seja, a obrigação de serviços militares e outros mais -, a concessão de terras aos camponeses implicava a obrigação de prestar serviços e de dar ao senhor parte da produção. No primeiro caso, verificava-se a 'corvéia': o camponês traba­lhava três dias por semana para o senhor, seja lavrando, colhendo ou semeando as terras do senhor; seja pescando ou caçando; seja construindo uma estrada ou reparando uma ponte; seja trabalhando como ferreiro, carpinteiro ou ven­dedor para o senhor. No segundo caso, o produto excedente era tomado pelo senhor sob a forma de renda do solo (renda em espécie e renda em dinheiro): ao camponês cabia pagar determinada importância em dinheiro (o censo) pela utilização da terra (prática difundida a partir das Cruzadas), ou entregar regu­larmente uma parte da produção (foro pago em produtos: eram as 'banali­dades'; taxas pagas pelo uso obrigatório do forno, do moinho e do lagar do senhor)". Cf. Rubim Santos Leão de Aquino et alii, op. cit., p .. 390.

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ocidental para o aprofundamento teórico e para a prática do liberalismo e do individualismo. Essa nova realidade condiciona uma forma dife­rente de organizaçã'o do poder político, o que suscita o aparecimento de um conceito, o do Estado, para dar conta dessa nova expressão de poderY' Tal conc~ito representa um modo de organização política em que, ao contrário das formações políticas pré-estatais, o poder político - possibilidade de exercer de maneira incondicional a coação física legítima - se caracteriza por estar segregado da instância econômica e, ainda, monopolizado e concentrado na unidade do Estado, onde não há divisão desse poder, a despeito da existência de múltiplos órgãos dele integrantes, desempenhando funções diferentes. Essa con­centração e monopolização das relações políticas - separando-se da instância econômica - é que constituem a diferença específica da sociedade estatai.l6 Isso significa que o centro de imputação política absolve as diferentes esferas públicas antes fragmentadas pelas múlti­plas unidades feudais que caracterizavam a sociedade medieval, redu­zindo ou suprimindo as instâncias do poder político dos senhores feudais, especialmente as relacionadas com o controle econômico, com

L> Ver Harold f. Laski, O Liberalismo Europeu, São Paulo, Mestre Jou , 1973, pp. 9-62. Gianfranco Poggi, A Evolução do Estado Moderno, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 71-95. A. D. Lindsay, O Estado Democrático Moderno, Rio de faneiro, Zahar, 1964, pp. 40-58. Sob o ângulo teórico, ver Gérard Lebrun, O Que é Poder, São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 28-73. Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, Rio de Janeiro, Forens.e, 1980, pp. 1-33. C. B. Macpherson, A Teoria Política do Individualismo Possessivo, de Hobbes a Locke, Rio de fan eiro, Paz e Terra, 1979. 1 r. A organização política do período escravista, apesar de à primeira vista se caracterizar, em muitos casos, mediante unidades de comando altamente cen­tralizadas, não pode ser identificada com o Estado, visto que ela se configurava basicamente como uma empresa militar com objetivos econômicos imediatos, isto é, com a finalidade de agregar extensos domínios territoriais e de captar mão-de-obra escrava, além de não apresentar características institucionais que permitissem diferenciar de forma abstrata e impessoal os centros de poder em relação à sociedade. Por outro lado, no âmbito da produção, o trabalhador direto, não sendo livre, estava vinculado segundo uma relação escravo-senhor dentro da qual só se podia obter o trabalho excedente mediante uma coação extra-econômica (política) , qualquer q1,1e fosse sua forma . Daí porque, mesmo com a aparência, em alguns casos, de uma grande concentração de poder, tais sociedades experimentaram sempre uma real e efetiva descentralização política traduzida nos incontáveis centros de produção escrava.

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a atividade judicial e, principalmente, com o monopólio da força coer­citiva. Esse processo não decorre apenas de uma nova forma concei­tual de "ver" o mundo, mas também e principalmente da grande expansão do intercâmbio econômico entre os homens, emergente de procedimentos produtivos inovadores, originados de uma mais intensa e orgânica divisão técnica e social do trabalho, com a introdução pro­gressiva de novos métodos e técnicas de produção. Isso levou a bur­guesia ascendente, ao retratar nesse processo seus interesses comer­ciais e produtivos, a entrar em conflito aberto com as formas tradi­cionais de organizações econômica e política medieval, especialmente quanto às esferas da gênese normativa reguladora da sociedade, da ação política e da gestão econômica a nível supralocal e nacional. A socialização e ampliação do proces~·o produtivo e o alargamento extremamente significativo do intercâmbio comercial, para muito além das fronteiras senhoriais, rompem com os quadros rígidos das autono­mias feudais, abolindo-se também a faculdade regulamentar das asso­ciações e corporações medievais, com a absorção das tradições e costu­mes jurídico-normativos independentes ou autônomos no seio do corpo jurídico-legal nacionalP No plano ideológico, esse movimento é acom­panhado de representações correspondentes, relacionadas especialmente com os direitos naturais, a separação dos poderes, o racionalismo, o analfabetismo, o liberalismo e individualismo burguês, o estatismo e o nacionalismo.18

' O aparecimento das condições objetivas que determinaram a organização de um novo processo produtivo e de formas correspon­dentes de intercâmbio entre os homens, fundadas numa específica dinâmica com leis próprias que delinearam a estrutura do modo capitalista de produção, levou, ao mesmo tempo, à profunda reorga­nização jurídico-política das relações de poder, como o destaque da soberania estatal como único centro absoluto de poder político nacio-

17 Ver Michael E. Tigar e Madeleine R. Levy, O Direito e a Ascensão do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp. 197-210. 18 Ver John Henry Merryman, La Tradición Jurídica Romano-Canónica, Mé­xico, Fondo de Cultura Económica, 1971, pp. 35-42. Ver Enrique Ricardo Lewandowski, Proteção aos Direitos Humanos na Ordem Interna e Interna- . cional, Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 13-52. Ver, também, E. K. Hunt e H. J. Sherman , op. cit., pp. 23-69.

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nal, não se tolerando, por conseqüência, a existência de outro poder junto a ele.19 Com efeito, as condições estruturais do sistema capita­lista exigem relações sociais nas quais os indivíduos intervêm apenas como "pessoas" livres e iguais, com vistas a viabilizar os contratos entre o capital e a força de trabalho, visto que os agentes dominantes desse sistema não "forçam" jamais a entrega da mais-valia produzida pelo trabalhador - que dela não tem clara consciência em virtude dos mecanismos de ocultação do próprio sistema. Por conseguinte, essas relações não admitem vínculos primordiais çle dependência pes­soal entre os indivíduos, isto é, laços de dependência anteriores a quais­qder manifestações de vontade dos sujeitos econômicos, caracteriza­dores de relações políticas de um contexto econômico-social de privi­légios, onde os indivíduos, tomo nas sociedades escravistas e feudal, já se encontram previamente em pé de desigualdade por virtude mesmo de sua condição social e dos estatutos jurídicos que os regem.20 Neste caso das sociedades pré-estatais, o modo de produção capitalista seria

Jll De'ntre as doze razões para justificar a soberania absoluta, Hobbes en~ia a terceira assim: "Se a maioria, por voto de consentimento, escolher um sobe­rano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos restantes". C f. Thomas Hobbes, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil; São Paulo, Abril Cultural, 1974, pp. 112-113. Nesse sentido, o poder soberano, para Hobbes. ou é absoluto ou simplesmente não é; ele não expressa propria­mente a supremacia de um poder sobre outro: a soberania estatal constitui um poder que exclui, por princípio, a existência simultânea de outros centros de

poder. 2 0 Sob esse aspecto Marx considera que "a ordem econômica capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal. A dissolução de uma produziu os elementos constitutivos da outra. Quanto ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor de sua própria pessoa, era-lhe preciso, primeiramente, deixar de continuar ligado à gleba ou enfeudado a outra pessoa; ele jamais poderia tornar-se um livre . vendedor de sua força de trabalho, levando sua mercadoria a toda parte onde ela pudesse ser comprada, sem ter antes escapado ao regime das corporações,. com seus mestres, seus jurados, suas leis de aprendizagem, etc. O movimento hisl.Úrico que converteu os produtores em assalariados se apre­senta, pois, como sua libertação da servidão e da hierarquia industrial" . C f. Karl Marx, A Origem do Capital, A Acumulação Primitiva, São Paulo, Ed. Fulgar, 1964, p. 15. Ver, também, Maurice Dobb, A Evolução do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar, 1965, pp. 49-108.

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impossível, assim como a existência do próprio Estado, visto que se um indivíduo dependesse politicamente de outro, nos termos acima expostos, sua relação com o Estado estaria mediada e condicionada por sua relação de dependência com aquele outro indivíduo, impe­dindo ao Estado concentrar em si todas as relações poÚticas. Neste quadro, a organização política, ao regular as relações · contratuais, que exigem liberdade e igualdade formais das partes, essenciais para a acumulação e reprodução capitalista, encontraria obstáculos insuperá­veis nas relações políticas não-estatais, as quais impediriam a realiza­ção_ das condições indispensáveis à reprodução do próprio sistema; isso seria uma contradição intolerável e, na verdade, dissolveria a própria noçii'o de Estado. Eis porque os princípios básicos da teoria do Estado, em contraposição às teorias políticas anteriores, são os princípios da liberdade e da igualdade, com denúncia aberta contra a desigualdade dos homens por natureza. 2 1 Assim, não pode haver, no sistema de produção mercantil, nenhuma instância de poder político entre o Estado e os indivíduos livres e iguais, devendo esse poder estar concentrado e monopolizado por aquela forma de organização política.

Levando essa análise a um grau mais avançado, podemos consi­derar que nos modos de produção pré-capitalistas a dominação polí­tica é em si mesma uma relação de produção , ou seja, essa domina­ção é um pressuposto para o desenvolvimento das condições produ­tivas onde o agente direto da produção não comparece como um indivíduo livre pronto a ofertar sua força de trabalho, mas sim como indivíduo que se encontra desde o início uma particular situação de dependência pessoal, em razão da qual é obrigado a entregar ao senhor

2 1 Hobbes exprime, com sua habitual elegância, que "a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em con­junto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele". Cf. Thomas Hobbes, op. cit., p. 78 . De forma radical, assim se expressa Locke: "Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes , ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento". Cf. J ohn Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 77.

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parte expressiva do produto de seu trabalho?2 Além da desigualdade jurídica a par da desconcentração das relações políticas, distribuídas por todos os núcleos do processo produtivo como formas de garantir a extração e a apropriação do excedente econômico. Entretanto, nas sociedades onde predomina o modo de produção capitalista, a domina­ção política não se identifica com a relação de produção, havendo, por c•onseqüência, uma distinção clara entre a sociedade civil e a sociedade política. A organização política, sob a forma de Estado, se destaca do processo produtivo.23 No plano da aparência imediata, este processo se localiza, portanto, "fora" da esfera política, sendo resultado de relações econômicas em que os indivíduos, através do mercado, se encontram como pessoas iguais, sem vínculos de subor­dinação, com a mesma situação jurídica, contraindo relações consen­suais na troca de mercadorias. B óbvio, entretanto, que no âmbito da realidade econômica está implícita sob certa forma a relação política, e portanto o próprio Estado, só que de modo dissimulado, como mais adiante veremos. Tanto é assim que o intercâmbio entre p~soas, nesse sistema, pressupõe a garantia jurídico-política (estatal) da liberdade

~2 A respeito dessa implicação direta, nos modos de produção pré-capitalistas, entre o político e o econômico, entre a coerção legítima e as relações produ­tivas, escreve Poulantzas: "o exercício da violência legítima está organicamente implícito nas relações de produção para que haja extorsão do excesso de tra­balho aos produtores-detentores da posse do objeto e dos meios de trabalho". Cf. Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1980, p. 22 . "O summun da identidade de Hegel era, como ele próprio o declara, a Idade Média. Nela, as classes da sociedade civil em geral e as classes consideradas de um ponto de vista político eram idênticas. ( ... ) A identidade das classes civis e políticas era a expressão da identidade da sociedade política". Cf Karl Marx, Crítica de la Fi/osofía de/ Derecho de Hegel, Buenos Aires, Claridad, 1973, p. 129. 2H O modo de produção capitalista apresenta então, no que diz respeito às r.e]ações do Estado e da economia, uma especificidade característica com re­lação aos modos de produção pré-capitalistas: a de uma separação relativa entre o Estado e a economia no sentido capitalista destes dois termos, ligada, enfim, à especificidade das relações de produção capitalista, a saber à desapropriação (à separação na relação de posse) dos trabalhadores diretos de seus objetos e meios de trabalho, e ligada, assim, à 'especificidade da constituição das classes, e da luta de classes, sob o capitalismo". Cf. Nicos Poulantzas, "As transfor­mações atuais do Estado, a crise política e a crise do Estado", in N. Poulantzas (org.) , O Estado em Crise, Rio de Janeiro, Graal, 1977, p. 16.

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e igualdade sem a qual não se poderia contratar e, ainda, da proprie­dade de mercadorias, sem o que não haveria nada para transacionar. Sob a forma da igualdade e da liberdade juridicamente garantidas, ocultam-se as relações desiguais de dominação econômica, somente possível pelo exercício do poder hegemônico. Por essa razão, a socie­dade capitalista tem por condição de sua existência a necessária dis­solução de todas as relações de prévia dependência pessoal, não podendo haver entre os sujeitos que realizam o processo produtivo nenhum laço de supra ou subordinação política, ficando adscritos ao Estado, " fora" dessa relação específica de produção, a organização e o monopólio do poder político concentrado, exatamente para asse­gurar as condições de igualdade e liberdade formais que o sistema requer para sua reprodução ampliada.24 Contudo, é preciso sublinhar com ênfase que o ângulo especificamente político sob o qual enfoca­mos esta temática não exclui o aspecto essencial da orgânica e indis­pensável cooperação entre o capital e o Estado, no plano das medidas e ações econômico-sociais, que se realizam exatamente para suprir as condições contextuais objetivas no sentido de propiciar a aut•odesva­lorização do capital.25 O vínculo de aparente exterioridade que aqui se manifesta é expressão da universalidade das condições sociais e econômicas exigidas pelo próprio capital, em seu momento de auto­reprodução, o qual não dispensa, nem pode dispensar, a orgânica relação com o seu centro de referência política, o Estado, não só para a efetiva garantia das relações sociais de produção correspondentes, como também para propiciar as bases contextuais requeridas pelo processo de extração e reinvestimento da mais-valia. Nesse sentido, também no plano econômico existem, a par daqueles vínculos de exte­rioridade aparente, relações de inferioridade entre o capital e o Estado, e essas relações tanto mais serão explícitas quanto mais caminhamos historicamente do Estado liberal do capitalismo competitivo para o Estado intervencionista ou condutor, para o capitalismo monopolista de Estado, não por demanda direta da esfera política, mas principal­mente por exigência, como já dissemos antes, do próprio capital em

2 4 Ver Javier Pérez Royo, op. cit., pp. 31-34.

25 Ver, nesse sentido, Carlos Estevam Martins, Capitalismo de Estado e Mo­delo Político no Brasil, Rio de Janeiro, Graal , 1977, pp . 11-17.

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seu permanente movimento para superar a irresistível lei tendencial de queda da taxa de lucro.

Por esse enfoque, já se pode perceber a distinção, que vai tornar­se evidente a partir do século XVI, entre Estado e sociedade civil; o Estado se apresenta como algo distinto da sociedade civil, em que pese ser, ao mesmo tempo, a exata expressão 'desta. Como forma estru­tural de organização política de um modo específico de produção, o da sociedade onde predomina o sistema de mercado, a referência ao conteúdo pol_ítico dessa forma de poder não pode ser outra senão a relação entre capital e trabalho assalariado. Isso significa que o Estado, cujo conteúdo de poder não se determina arbitrária e caprichosamente, seja por sua expressão institucional ou por seu brdenamento jurídico, não se justifica por si mesmo, visto que tem seu fundamento no modo como os indivíduos se relacionam na produção de suas condições materiais de existência. A verdade do Estado não está nele mesnto, é preciso buscá-la nas · relações socklis que lhe dão o fundamento , especialmente nas relações estruturais, onde o conflito das classes antagônicas emerge da distribuição desigual do produto social. Assim, o conteúdo do poder estatal está determinado pela contradição básica da sociedade capitalista, contradição entre o capital e o, trabalho assa­lariado . Entretanto, o Estado não aparece diretamente como expressão dessa qontradição, mas, ao contrário, aparece como forma política promotora da coesão social, como forma que busca o interesse cole­tivo, a harmonia e a ordem, conceitos estes expressos nb singular gra­matical cujo objetivo é disfarçar ideologicamente, sob o manto do abstrato indiferente ou da neutralidade universal, exatamente uma determinada harmonia, uma específica ordem, a ordem capitalista de produção. 26

Nas relações sociais pré-capitalistas, o poder político transparece em cada momento do processo produtivo; a violência da expropriação se manifesta de forma descentralizada ao nível do próprio fenômen'o produtivo, não havendo outro disfarce senão o de referência ideoló­gica destinada a fazer suportar a exploração em termos de troca de

21l Ver W. G. F. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa Guimarães Editores, s.d., §§ 260 a 271. Ver também a crítica a esses parágrafos realizada por K. Marx em Crítica de la Filosofía del Derecho de Hegel, op. cit., pp. 53-68.

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&erviços, como já analisamos. Assim, o poder político, pressuposto indispensável ao desenvolvimento do processo produtivo e diretamen­te colado a ele, se apresenta como realidade evidente que se impõe por si mesma, inquestionável, não-passível de dúvidas quanto à neces­sidade de sua existências só objeto de exame descritivo das formas de seu exercício. Neste caso, tem-se como base a tese da natural sociabilidade do homem, visto que necessariamente vive no grupo social, sendo a comunidade algo evidente que se explica por si mesma. Por conseqüência, a teoria [J'Olítica pré-estatal não coloca o problema do "porquê" do poder político, e sim do "como" se organiza esse poder, ou seja, de suas formas e recíprocas transições. Em nenhum momento se questiona o caráter evidente e natural da comunidade política. Já na sociedade de mercado, onde predomina o modo de produção capitalista, o poder polípco niío é identificado com as rela­ções de produção e delas aparece descolado, niío se apresentando ime­diatamente, no plano da aparência, como necessário ao desenvolvi­mento dessas relações. Por esse lado, tal poder se manifesta não como pressuposto do processo produtivo, mas exatamente como um resulta­do das relações que o encarnam, sendo passível de questionamentos e caracterizado como uma realidade problemática, cuja existência não é de evidente necessidade. Entretanto, alerta-nos Poulantzas, "esta separação não nos deve levar a crer em real exterioridade do Estado e da economia, como se o Estado só do exterior interviesse na econo­mia. Esta separação é forma precisa que encobre, sob o capitalismo, a presença constitutiva do político nas relações de produção e, dessa maneira, em sua reprodução".27

Verticalizando um pouco inais essa análise, observamos que, em todos os modos de produção anteriores ao da sociedade capitalista, a relaçiio entre o trabalhador direto e os meios de produção se realiza segundo um vínculo solidário, em que se associam de modo orgânico a destreza, a habilidade e a força desse trabalhador e os instrumentos e condições objetivas de seu Jrabalho. Nesse sentido, se o trabalhador direto não tem a propriedade real ou econômica desses recursos, é contudo deles possuidor ou detentor, na medida em que se faz neces­sária tal vinculação para a produção de seus próprios meios de subsis-

27 Cf. Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, op. cit., p. 23.

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tência. Em outras palavras, como esse trabalhador escravo ou servil não recebe "salário" para a consecução, no mercado, dos produtos necessários a sua subsistência, os instrumentos e meios de produção permanecem em suas mãos para utilizá-los com o objetivo de obter o seu sustento e de sua família e, assim, manter-se vivo para conti­nuar a produzir, além dos produtos indispensáveis a sua vida, os que formám o excedente apropriado pelo senhor.2 8 Nessa 1 condição, o trabalho realizado para o próprio sustento e o realizado para a pro­dução do excedente aptopriado pelos senhores proprietários se tornam visivelmente separados no tempo e no espaço, ficando de certo modo transparentes o trabalho não-pago e a relação de senhorio e servidão. Por conseqüência, revela-se a necessidade de se obter trabalho exce­dente mediante uma coação extra-econômica, segundo formas de impo­sição as mais variadas. No que respeita ao modo de produção feudal, por exemplo, as relações econômicas "se estruturam com base na existência das seguintes condições: a) um tipo particular de proprie­dade fundiária que permite à classe dominante dos senhores feudais manter os produtores diretos em Estado de subordinação estabelecida político-juridicamente; h) um tipo particular de produtores diretos -os servos da gleba - juridicamente carentes de liberdade, que têm a posse efetiva (material) dos meios de produção e que, para poderem reproduzir a sua força de trabalho, devem transferir o produto exce­dente ao senhor feudal respectivo, segundo uma das formas conven­cionais. Posto que a família camponesa tem a posse efetiva dos meios de produção, o produtor direto não tem necessidade de alienar a sua força de trabalho para poder viver; isso significa que os serJJos devem entregar o produto excedente coagidos por meios extra-econômicos"?-9

Por isso, o poder político apareceria, nas sociedades pré-capitalistas, como instrumento identificado com as próprias relações de produção,

28 Ver Max Weber, Economía y Sociedad, I, 2.• ed., Bogotá, Fondo de Cul­tura Económiéa, 1977, pp. 204-213. Ver também K. Marx, Formações Econô­micas Pré-capitalistas, 3.• ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 65-112. Idem, La ldeología Alemana, 4: ed., Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, pp. 23-27.

29 Cf. Otto Alcides Ohlweiler, Materialismo Hist6rico e Crise Contemporânea, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, pp. 94-95 (grifo nosso). Ver, também, Karl Marx, Salário, Preço e Lucro, São Paulo, Abril Cultural, 1974, pp. 89-90.

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pressupondo a dominação direta e a desigualdade "natural" e jurídica dos indivíduos, assim como sua descentralização pelos inúmeros núcleos onde se desenrolava o processo produtivo.

Com o desenvolvimento dos recursos produtivos e o aparecimento de novas forças sociais em conflito, o processo econômico-social se transfigura profundamente, rebatendo com grande vigor no plano polí­tico. -As marcantes inovações tecnológicas, a reformulação dos métodos produtivos, o desenvolvimento das ciências, a secularização e popula­rização da cultura, a ampliação dos mercados, etc. são ocorrências históricas profundatp.ente vinculadas com movimentos sociais e polí­ticos extremamente significativos e que marcam a transição do siste­ma feudal para o sistema capitalista de produção. Nesse processo, desaparece a associação imediata do trabalhador direto com as condi­ções . objetivas de seu trabalho; o desenlace se dá exatamente pelo fato de que a organização da produção é alterada pela introdução de novas formas operacionais e ampliação da divisão técnica e social do trabalho, com grande repercussão na produtividade, acompanhadas do aperfeiçoamento e sofisticação dos instrumentos de produção, os quais, por isso mesmo, não mais podem ser "possuídos" pelo traba­lhador direto.3() Há, portanto, uma nítida separação entre o trabalhador e os meios de ptodução, ficando aquele apenas com a possibilidade, para poder subsistir, de vender sua força de trabalho ao detentor do capital, mediante recebimento de salário que expressa, num determi­nado nível de produtividade econômico-social, o "justo" valor de re­produção dessa mesma força. Isso significa que o excedente econômico resultante do sobretrabalho não é apropriado pelo capitalista mediante a entrega, pelo trabalhador, do produto de seu trabalho, depois de este ter sido realizado. Na verdade, esse produto é obtido durante o processo produtivo, no recesso da unidade fabril , sem que sobre ele

so "A essência do sistema capitalista está, pois, na separação radical entre o produtor e os meios de produção. Esta separação torna-se cada vez mais acen­tuada e numa escala progressiva, desde que o sistema capitalista se estabele­ceu; mas, como esta séparação constituía a sua base, ele não se poderia esta­belecer sem ela.· Cf. K. Marx, A Origem do Capital, op. cit., p. 14. Ver, tam­bém, K. Marx, Conseqüências Sociais do Avanço Tecnológico, São Paulo, Edições Populares, 1980, pp. 34-63.

ESTADO E IDEOLOGIA 227

o trabalhador exerça qualquer controle.81 A mais-valia é extraída sem que disso o trabalhador tenha clara consciência, visto que está de cert•o modo convicto de que seu trabalho é remunerado pelo salário, não lhe cabendo a renda "produzida" pelo capital. Só em momentos de crise maior na relação entre capital e trabalho é que a contradição se mani­festa com toda sua força, permitindo a emergência de fatores que induzem à tomada de consciência a respeito do real mecanismo desse processo produtivo e das leis de acumulação correspondentes. Assim, desaparecem as relações básicas de dependência pessoal, não mais havendo, ao nível das relações econômicas, vinculação de supra e subor­dinação política, enfrentando-se os sujeitos desse processo como indi­víduos com o mesmo status jurídico formal, livres para transacionar e contratar dentro dos limites do potencial de troca que cada agente econômico é profundamente diferenciado, dependendo de suas respec­tivas forças econômicas. Tal aspecto é, como veremos mais adiante, responsável pelo clima difuso em que predomina a coerção econômica q'tle engendra as condições de poss~bilidade de dominação econômica de uma classe sobre outra.

Nesse sistema de produção, que se caracteriza por um novo modo de homens se relacionarem entre si e com a natureza, o traba­lho necessário à subsistência do trabalhador e o trabalho gerador do sobreproduto apropriado pelo detentor do capital não aparecem dife­renciados espacial e temporalmente, como ocorria nos modos de produção anteriores. Não se vê claramente como trabaJho não-pago e, por conseqüência, não há necessidade de nenhum vínculo prévio de coerção jurídica sobre o trabalhador, que aparece como indivíduo livre e proprietário de sua força de trabalho, com a qual negocia no mer­cado em troca de salário. Nesse sentido, é perfeitamente dispensável a coação extra-econômica para se •obter a mais-valia, não se exigindo de modo direto a ação do poder político para tal objetivo. "Numa forma­ção social capitalista, afirma Hirsch, é preciso que a exploração ·e a reprodução das classes não se efetuem, e não possam se efetuar, dire­tamente pela utilização física da violência, mas através da ·própria reprodução das relações de produção, regida pela lei do valor. A troca entre proprietários de mercadorias (inclusive da 'mercadoria' força_de

a1 Ver Karl Marx, Salário, Preço e Lucro, op. cit., pp. 79-90 .

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trabalho) formalmente iguais e livres, produzindo uma aparência de equivalência, mediatiza a exploração do trabalho vivo pelo capital. A lei do valor, regendo a reprodução social, se opera pela ocorrência entre os proprietários de mercadorias. Ora'; a livre circulação das mer­cadorias e a concorrência pressupõem a igúaldade formal dos proprie­tários de mercadorias e a ausência de relações de violência física entre eles." 32 Assim, o excedente econômico é· apropriado à margem do Estado, através do "livre jogo" das forças do mercado, onde traba­lhadores e capitalistas se encontram tomo sujeitos jurídicos para o exercício contratual, em que as vontades se qualificam como livres e iguais. O capitalismo se caracteriza pelo fato de que a violência coercitiva, concentrada nos meios de repressão física, "tem, necessa­riamente, em função do modo social de exploração e de reprodução de classe, uma institucionalização separada dos burgueses individuais. Ela toma uma 'forma' que a separa formalmente da classe dominante: esta separação do aparelho de coerção física com relação ao proleta­riado e à burguesia é o elemento fundamental da forma de dominação de classe burguesa".33 Aqui já se observa a origem da separação entre a sociedade civil, palco dos conflitos de interesses econômicos, sociais e ideológico-culturais, e o Estado ou sociedade política, responsável pela coesão social e monopolizador da violência legítima. Como essa dissociação entre o civil e o político, entre o privado e. o públicô, ocorre dentro de uma perspectiva · de "exterioridade" e de forma relativamente não-difusa (distinção e separação entre as instituições estatais e as privadas), não se percebe bem porque se torna necessário o poder político, não ficando evidente a relação estatal como condição ou com'O resultado do processo produtivo, exigindo-se, portanto, uma justificação paraa existência do Estado. Como se pode ver, todo esse enfoque vai se rebater inevitavelmente nas metodologias de pesquisa e de análise e nas concepções teóricas a respeito das organizações polÍticas das sociedades, diferenciando-se os modelos de ciência polí­tica exatamente a partir do aparecimento das formas estatais. Com efeito, antes de enfrentar diretamente a questão do Estado, a ciência

a2 Cf. Joachim Hirsch, "Observações Teóricas Sobre o Estado Burguês e Sua Crise" , in O Estado em Crise, op. cit., p. 88.

33 Idem, ibidem, p. 88.

EST.ADO E IDEOLOGIA 229

política, a partir de Hobbes, incide sobre as condições de sua justi­ficativa-; figurando o Estado não como mero dado a ser descrito em suas formas de manifestações e exercício, mas como termo final da investigação. Isso é precisamente o que ocorre nas obras subseqüentes dos grande sautores. que trataram de matéria política, tais como Locke, Rousseau, Kant, Hegel e Marx.34

Esse enfoque nos pennite compreender a razão da separação e autonomização relativa das relações sociais de produção e das relações políticas, da comunidade civil e da comunidade est~!~l. Entretanto, essa questão merece maior aprofundamento. No sistema de produção burguesa, como já vimos, o Estado aparece como uma forma política não imediatamente idêntica ao poder econômico, isto é, as relações políticas não coincidem, como ocorre nas sociedades pré-estatais, com as relações de produção. Estas relações sociais de produção são rela­ções essencialmente antagônicas e, por conseqüência, exigem de alguma forma a determinação de um poder político para conformá-las dentro de uma eerta ordem, evitando-se com isso o exacerbamento do conflito entre as classes sociais que possa comprometer a reprodução desse sistema social. Contudo, tal poder político não é, nesse modo de pro­dução, o resultado direto da reprodução das relações econômicas, ou seja, o desenvolvimento do processo produtivo, em razão da lei · do valor, não leva consigo direta e imediatamente à reprodução das rela­ções polítiCas. Esse ponto nos leva a uma questão extremamente sig­nificativa para a teoria política do Estado; é a questão da represen­tatividade, que o caracteriza essencialmente. Aliás, essa questão foi em parte abordada no capítulo anterior quando tratamos da elite gover­nante, do bloco no poder. Não coincidindo com a sociedade civil, o Estado, entretanto, representa alguns interesses sociais, embora não se identifique com eles. O Estado se apresenta exatamente como o que ele não é, como uma forma política "neutra"; e essa forma de aparecer é essencial para sua existência como poder político, para que se repro­duza e se perpetue. Com efeito, se no modo de produção capitalista o poder econômico não supõe um poder político imediato e prévio de sujeição direta e pessoal do trabalhador ao detentor do capital -embora o poder econômico capitalista, como ·veremos mais adiante,

34 Ver Javier Pérez Royo, op. cit., pp. 44-45.

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tenha como pressuposto contextual o poder político, que com aquele mantém uma relação dialética de exterioridade e interioridade, tal como a "figura" que se destaca do "fundo" de um quadro e que, sem este, não teria condição de existir -, as vinculações políticas apare­cem como algo externo ao processo produtivo, caracterizando-se pela ausência aparente de poder e pelo confronto, na esfera da circulação econômica, de indivíduos livres e formalmente iguais. Ora, se o Esta­do não coincide diretamente com essas relações sociais de produção, antagônicas pela lei interna de seu funcionamento e desenvolvimento, mas é a forma política indispensável para mantê-las, em razão de certos interesses dominantes que devem ser impostos como interesses gerais, ele é a real expressão representativa daqueles interesses, sem se identificar, contudo, de forma imediata com eles. B preciso não olvi­dar por outro lado, que os interesses dominantes, exatamente porque são dominantes e pretendem manter-se como tais, não excluem, nem podem excluir, a satisfação dos interesses subalternos, nos limites e nas condições do próprio sistema. O Estado, portanto, se separa da sociedaQ.e civil ao mesmo tempo que nela tem seu fundamento e razão de ser. Por causa dessa relativa autonomia do poder político, existe sempre a possibilidade de que se produza, em razão de múltiplos fato­res e principalmente em razão da luta de classes, uma discordância entre a comunidade política e a comunidade civil, ou seja, a não-fiel repre~entação do poder econômico das classes ou frações de classes dominantes pela elite gOvernante, pelo bloco no poder, ensejando crises de articulação entre ambas as esferas e permitindo até mesmo a existência de vazio de poder.35 ,

Melhor compreensão da relação entre a sociedade civil e o Estado será obtida através da análise da estrutura funcional das relações sociais econômicas, que abrange, no modo capitalista, a produção, como esfera onde se extrai a mais-valia, e a circulação, como esfera da distribuição, da troca e do consumo, onde a mais-valia é realizada ao nível do mercado. Cumpte considerar que a base do mercado, da troca do excedente econômico, é a divisão técnica e social do trabalho que na sociedade burguesa atingiu uma amplitude e diversificação nunca antes alcançadas. Esse processo induz a uma extensa generali-

35 Idem, ibidem, pp. 183-188.

ESTAOO E IDEOLOGIA 231

zação das relações de troca entre produtores privados, de tal modo dominante, que quanto mais o valor de troca se põe como base da coesão social, pela exigência de solidariedade orgânica resultante do intenso intercâmbio das atividades humanas e da divisão do trabalho, tanto mais se torna impossível instaurar a coesão da sociedade através de formas de relação de dependência pessoal, elidindo-se, portanto, as formas de servidão e de sujeição direta que não se conformam C'om as leis da produção industrial e do mercado capitalista.36 Tal generali­zação da mercadoria se torna expressão de um modo de produção dominantemente capitalista, quando a mercantilizaçã•o se estende à força de trabalho, tornando-a objeto de negociação contratual entre o trabalhador e o empresário capitalista.37 Ao ultrapassar o modo de produção autárquico e paroquial das formas pré-capitalistas, os pro­dutores se separam uns dos outros, como produtores, e de si mesmos, como consumidores.38 Assim, a divisão do trabalho sob o comando econômico da burguesia, com intensidade sem paralelo na História, determinou o aparecimento de um circuito básico de produção e de circulação extraordinariamente desenvolvido, exigindo organizaç:ões institucionais correspondentes para garantir a reprodução do sistema como um todo, não só a nível nacional, mas também a nível interna­cional. Com esse processo, o mercado passa a ser um mecanismo extre­mamente complexo e relativamente autônomo, através do qual se opera o circuito da reprodução social, ao abranger essenciais aspectos

.ao Nesse sentido afirma Weber que "de todos os modos não se pode falar de uma competição do mercado realmente livre no sentido atual do termo, quando as organizações estamentais estão tão difundidas em uma comunidade como ocorria em todas as comunidades políticas da Antiguidade e da Idade Média". Cf. Max Weber, op. cit., li, p. 692.

37 Esse fenômeno permite considerar a força de trabalho de forma abstrata e geral, possibilitando o cálculo econômico imprescindível à instauração e expan­são do sistema de produção capitalista. Por isso Marx constata que "aí o tra­balho tornou-se não só no plano das categorias, mas na própria realidade, um meio de criar a riqueza em geral e deixou, enquanto determinação, de cons­tituir um todo com os indivíduos, em qualquer aspecto particular". Karl Marx, "Introdução à Crítica da Economia Política", in Contribuição à Crítica de Eco­nomia Política, São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 222.

38 Ver, nesse sentido, Geoffrey Kay, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Uma Análise Marxista, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1977, pp. 29-34,

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da vida econômica e comunitária e ao formar a ruidosa esfera da circulação onde as formas tradicionais de troca são definitivamente eliminadas. 39

O capitalismo, como um sistema de troca generalizada de mer­cadorias, supõe a existência destacada da esfera da circulação, a qual se pode considerar como função mediadora entre a instância da pro­dução e as relações sociais da comunidade civil, fazendo parte inte­grante de ambas e tendo, ao mesmo tempo, caráter relativamente autôttomo.40 Se uma teoria de classe baseada apenas nas relações de mercado, como concebe Weber, não pode ser correta, visto que expri­

. me somente as formas fenomenológicas das reais relações subjacentes da produção capitalista, várias questões substanciais, entretanto, rela­cionadas com a existência e autonomia da sociedade civil, com a luta de classes e com a separação aparente do poder político em relação ao processo produtivo, não podem ser adequadamente explicadas sem apontar para a esfera da circulação mercantil, onde ocorrem a distri­buição, a troca e o consumo da riqueza social (bens e serviços) . Nessa esfera, os grupos ou setores proletários, capitalistas ou . de classe média entram em confronto para a manutenção ou expansào de seus respec­tivos interesses, utilizando todas as formas e condições permitidas pelos mecanismos do mercado, inclusive a pressão, negociai ou de força, consentida nos limites do sistema, a partir de bases associativas ou sindicais, com vistas a obterem vantagens setoriais, melhores salários ou maiores lucros. Na esfera da circulação inclui-se também a face da sociedade civil que exprime, para além do mundo das necessidades individuais, o conjunto de práticas sociais estruturadas e instituciona­lizadas, reveladas pelas relações não imediatamente redutíveis às f'orças de produção dominante ou às forças políticas, relações que se mani-

39 Ver, nesse sentido, Gilberto Mathias e Pierre Salama, O Estado Superde­senvolvido, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 19-23. 40 Para uma compreensão aprofundada das relações dialéticas entre as esferas da produção e da circulação, compreendendo, esta última, o consumo, a dis­tribuição e a troca, ver Karl Marx, "Introdução à Crítica da Economia Polí­tica", op. cit., pp. 201-217. A concepção pela qual se coloca a esfera da cir­culação como base da relativa autonomia tanto da sociedade civil quanto do Estado, refugindo ao esquema da ortodoxia marxista, é desenvolvida por John Urry, in Anatomia das Sociedades Capitalistas, Rio de Janeiro, Zahar, 1982, na qual nos fundamentamos em grande parte nos argumentos a seguir.

ESTADO E IDEOLOGIA 233

{estam através de intercâmbios culturais e ideológicos dos grupos raciais, religiosos, culturais, etários, familiares, regionais, nacionais, etc. Vê-se, por esta linha, em nosso entender, que não se pode consi­derar pura e simplesmente a dicotomia entre Estado e sociedade civil, compreendendo-se esta como um bloco uniforme, sem a necessária discriminação entre a esfera da produção, representativa de núcleo estrutural econômico, e a esfera da circulação, em que se realiza a maior parte das relações sociais de caráter coletivo, comunitário ou intersubjetivo e que vincula organicamente as esferas da produção e

do poder político. 4 1

4 1 Nesse sentido, o conceito de sociedade civil, a nosso ver, não compreende a totalidade do momento econômico, embora faça conexão dialética com esse momento mediante a incorporação da esfera da circulação. A sociedade civil, porém, ultrapassa as determinações econômicas no que respeita às relações de troca, distribuição e consumo, para abranger outras determinações que também não se identificam com as relações de produção ou com as relações políticas. Aqui observamos a relativa autonomia da sociedade civil em face do econô­mico e do político. Nessa formulação, cumpre notar a distinção entre essa concepção e a de Marx para o qual a sociedade civil abarca o conjunto das relações materiais dos indivíduos no interior de um determinadÕ estádio de desenvolvimento das forças produtivas, encerrando o conjunto da vida comer­cial e industrial existente numa dada fase e transcendendo, por isso mesmo, o Estado e a nação, embora, por outro lado, tenha novamente de se afirmar em relação ao exterior como nacionalidade e de se organizar em relação ao inte­rior como Estado (La Ideologia A/emana, op. cit., p. 70). Assim, a sociedade civil, ·para Marx , se identifica com a estrutura, excluindo as expressões ideo­lógicas superestruturais. A anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política, ou seja, no conjunto .das relações de produção (Contribuição à Crítica da Economia Política, Prefácio, op. ci., p. 24). A concepção que ado­tamos se aproxima da de Gramsci. no sentido em que a sociedade civil abrange o momento superestrutura!, com a ampliação de seu significado incluindo as relações ideológico-culturais, mas não perde seus vínculos com o momento es­trutural através da esfera da circulação, parte em que se aproxima da de Marx. De qualquer forma, vale aqui a mesma observação feita por Bobbio, · ao comentar a relação entre Marx e Gramsci, de que não cabe ao Estado re­presentar o momento ativo e positivo do desenvolvimento histórico - como em Hegel -, mas dela nos distanciamos na medida em que consignamos a dinâmica histórica a partir de uma relação de "interioridade" entre estrutura e superestrutura, entre sujeito e objeto. Para uma análise da questão, ver o texto de Norberto Bobbio, O Conceito de Sociedade Civil, Rio de Janeiro, Graal, 1982. Ver, também, N. Bobbio e M. Bovero, Società e Stato Nella Filosofia

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Na sociedade de produção industrial, o produto do trabalho ex­cedente assume a forma de mercadoria, de valor de troca fundado na relação de igualdade formal entre os sujeitos proprietários - do capital ou da força de trabalho - , que deverá ser concretizada no âmbito da circulação econômicà, onde se realiza a mais-valia. O campo da circulação, nesse sistema, d_eve ser separado do da produção, e isto é um carolário da exclusão do produtor direto da posse ou éontrole dos instrumentos e outros meios de produção. Sem a esfera da circula­ção, o detentor do capital não pode realizar o produto do trabalho

· excedente sob a forma de valor. Eis porque, em sentido amplo, a estrutura das relações sociais compreende a produção e a circulação, cujos processos se perfazem numa unidade de contrários, onde os elementos se implicam e se excluem mutuamente. Assim, na sociedade capitalista, as relações de produção não podem subsistir e se repro­duzir . sem uma esfera separada de troca, relativamente autônoma, onde se compra a força de trabalho e se realiza a mais-valia mediante o intercâmbio do produto excedente.

A nosso ver, a relativa autonomia da esfera da circulação con­diciona também ·a relativa autonomia da sociedade civil e da comu­nidade política estatal. O Estado atua na esfera da circulação - não deixando também de fazê-lo na esfera da produção - num movimento dialético, para manter as C'Ondições gerais da reprodução e acumulação ampliada do capital, garantindo a proporção adequada das relações de distribuição, de troca e de consumo nos termos e limites da produção capitalista, com intervenções moderadoras, restritivas, estimuladoras ou reformadoras. Entretanto, não se pode reduzir essas relações ao conjunto de práticas sociais que formam a comunidade civil, visto que tais práticas abrangem muitos outros valores, instituições e pro­cedimentos sociai:s, além de se distinguirem das relações e forças de produção (estrutura) e da sociedade política (superestrutura), a des­peito do transpasse existente entre elas. Por esse enfoque se pode concluir que a produção e o Estado, ou seja, o processo econômico produtivo e as relações políticas, não podem ser reduzidos, como o faz a Sociologia acadêmica, a simples elementos da sociedade civil,

Política Moderna, Mode/lo Giusnaturalistico e Modello Hegel-Marxiano, Miião, 11 Saggiatore, 1979.

ESTADO E IDEOLOGIA 235

da mesma forma que não é aceitável a redução das inúmeras práticas das formações sociais às relações de produção e cto Estado. Fora das relações produtivas e das relações políticas, há também o espaço aberto aos processos nos quais os indivíduos se constituem como sujeitos configurados em razão dos apelos do sexo, da religião, da faixa etária, dos costumes, do grupo étnico, da comuna, da nacionalidade, etc. Esse espaço forma a sociedade civil, permeada pela esfera da circulação, vinculada esta, por sua vez, de modo dialético, ao processo produtivo.

A análise· da dinâmica social capitalista nos leva a considerar a importância da circulação na formação da sociedade civil e de sua relativa autonomia em face da sociedade política estatal. O exame da criação do excedente econômico e de sua realização sob a forma de valor nos ajudará na compreensão desse processo. A mais-valia não pode ser gerada na esfera da circulação; é apenas realizada através dela e na qual encontra também as formas indispensáveis ao seu ocul­tamento. Assim, ao mesmo tempo que torna a exploração invisível, a

circulação é necessária à reprodução do capital, visto que a mais-valia não se pode realizar separadamente dela. O paradoxo do incremento do. capital através da troca de equivalentes no mercado resolve-se pela análise da circulação, onde se descobre uma mercadoria singular -a força de trabalho-, que, ao ser utilizada no processo produtivo, gera valor. Com efeito, apesar de a compra e a venda de mercadorias, inclusive da força de trabalho, serem feitas de acordo com seu valor, colhe-se mais valor da circulação do que o que se colocou no início do processo. Isso ocorre exatamente porque o trabalh'O cria excedente, ou seja, produz mais do que consume; é fonte de val0r.42 Porém, o que o proprietário do dinheiro compra, na esfera da circulação, não é o trabalho em si mesmo, na sua forma específica, concreta e viva, só manipulável hierarquicamente no âmbito da produção; ele compra apenas a força de trabalho cuja disposição no mercado se . faz sob determinadas condições fundamentais: a primeira é que o trabalhador deve ser um livre proprietário de sua força de trabalho, podendo dispor

42 Isso ocorre exatament.e porque ·o valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para sua conservação, ou reprodução, mas o uso desta força só é limitado pela energia vital e pela força física do operário" . Cf. K. Marx, Salário, Preço e Lucro, op. cit., p. 88.

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dela, ao menos aparentemente, como quiser, quando e onde achar conveniente e sob condições de igualdade perante a léi, mediante contrato livremente pactuado; a segunda é que esse trabalhador não deve possTJir meios de produção que lhe permitam produzir e trocar suas próprias mercadorias; essa separação entre o trabalhador e os meios de produção obriga-o; para poder subsistir, a vender ao proprie­tário do dinheiro sua única mercadoria: a força de trabalho. 43 Nesse quadro, pode-se observar, a par do éOnstrangimento econômico real, a existência da "liberdade econômica" juridicamente protegida na medida em que vendedores _e compradores possuem, como sujeitos formalmente iguais, a capacidade de vender e comprar livremente, sem que para isso sejam politicamente constrangidos a entrar num mer­cado determinado, para vender ou comprar determinadas mercadorias. As relações de intercâmbio estabelecidas entre esses sujeitos econô­micos são também simétricas, visto que a troca se realiza entre merca­dorias equivalentes; de um lado, a força de trabalho e, de outro, o salário, que é -a expressão do equivalente em dinheiro do valor das mercadorias necessárias a sua permanente reposição. -

Neste plano e avançando também para o lado da sociedade política, verificamos que os agentes sociais se enfrentam numa relação formal de liberdade e igualdade,. onde a individualidade é de funda­mental significação, tanto para configurar os sujeitos jurídicos da relação contratual e da relação política, com seus papéis definidos, como para concretizar a atomização social indispensável para fazer sobressair o caráter voluntário da conduta de cada homem nesse pro­cesso. Desse modo, "embora haja dentro do nível econômico uma concentração do capital e a socialização do processo produtivo, no nível jurídico-político-ideológico (sociedade civil e sociedade política), os agentes de produção são constituídos como 'indivíduos-sujeitos' políticos (cidadãos) e jurídicos (pessoas naturais de direito), destituí- _ dos de sua determinação econômica e de sua condição de membros de uma classe. Em conseqüência, as_ relações de classe, neste_ nível, não são vividas como tal, mas como lutas fragmentadas e atomizadas entre os indivíduos. Como efeito do nível jurídico-político-ideológicó sobre o econômico, as relações que de fato são 'relações sócio-econô-

43 Idem, ibidem, p. 86-7.

ESTADO E IDEOLOGIA 237

micas' são vividas como competição individual entre trabalhadores e capitalistas".44 Surge, então, o interesse privado de cada um contra­posto ao interesse público de todos. No plano das relações mercantis, cada pessoa, definida em sua singularidade e tendo o mesmo status jurídico de todas as demais, se coloca como proprietária que vende o que possui (força de trabalho ou outras mercadorias), agindo em seu interesse próprio, ou seja, no interesse privado que cada uma tem para, na troca, obter o que outra pessoa possui. Assim, n~ mercado, cada indivíduo dá importância ao outro pelo que este tem para trocar, objetivando a satisfação de seu próprio interesse; em última instân­cia, serve ao outro somente para servir-se a si mesmo. Vê-se, por esse procedimento generalizado, que as práticas mercantis acabam por se difundir e passam a condicionar os fundamentos materiais da igual­dade e da liberdade individuais. Isso significa que através das transa­ções voluntárias na e"sfera da circulação, cada indivíduo separadamente procura realizar seus próprios interesses, sem que para isso seja constrangido politicamente - o que não exclui o constrangimento econômico difuso -, apenas contando com a proteção da lei que assegura sua liberdade e igualdade como sujeito jurídico para pactuar nas trocas e exigir, mediante procedimentos judiciais adequados, o equilíbrio formal eventualmente rompido por abuso ou coerção ilegal. Cada indivíduo, portanto, é considerado como um sujeito pleno e completamente responsável por sua conduta, devendo ser punido se violar a lei. A norma legal constrói o sujeito plenamente responsável, como uma totalidade autônoma, existente por si mesmo, projetando-o imaginariamente como autor absoluto de suas próprias ações. Por esse modo, o ordenamento jurídico regula a forma das intenções entre os indivíduos e entre estes e outros sujeitos legalmente constituídos. O poder, sob o império da lei despersonalizada, aparece igualmente des­personalizado, induzindo os indivíduos à -crença de que são cidadãos isolados, submetidos a formas racionais e simbólicas mais do que a indivíduos concretos, grupos ou classes. Isso significa que um dos efeitos do ordenamento jurídico positivado é exatamente o de frag­mentar, ao nível da aparência fenomênica, as relações de classe, ao constituir e reconhecer somente sujeitos jurídicos individuais ou grupos

H Cf. John Urry, op. cit., ampl. e melh., p. 23 (grifo nosso) .

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associativos cujos membros integrantes sejam perfeitamente identifica­dos individualmente. Desse modo, as instituições da sociedade burgue­sa passam a se organizar em torno dos princípios da liberdade e da igualdade dos "indivíduos" ou "pessoas políticas" (cidadãos). A legi­timidade da organização política dessa sociedade, na forma do Estado, funda-se na garantia da troca de atividades ou bens, com a aparente reciprocidade equilibrada ou . proporcional entre os indivíduos. Ela é obtida mediante o funcionamento das instituições básicas do sistema, as quais na verdade preservam a forma jurídica das relações entre os indivíduos em sua expressão singular e abstrata, assegurando, ao mesmo tempo e por conseqüência, a real liberdade geradora das- desi­gualdades substantivas, ou seja, das relações concretas estabelecidas "voluntariamente" entre eles, segundo, é óbvio, as forças econômicas de que efetivamente disponham. A legitimidade do Estado, portanto, está baseada, conforme aduz Poulantzas, "no conjunto dos indivíduos­cidadãos formalmente livres e iguais, na soberania popular e na res­ponsabilidade laica (ação pública) do Estado para com o povo. O próprio povo é erigido em princípio de determinação do Estado, não enquanto composto por agentes da produção distribuídos em classes sociais, mas enquanto massa de indivíduos-cidadãos, cujo modo de participação em uma comunidade política nacional se manifesta no sufrágio universal, expressão da "vontade geral". O sistema jurídico moderno, continua o referido autor, distinto da regulamentação feudal baseada nos privilégios, reveste um caráter "normativo', expresso em um conjunto de leis sistematizadas a partir dos princípios de liberdade e igualdade: é o reino da "lei". A igualdade e a liberdade dos indiví­duos-cidadãos residem na sua relação com as leis abstratas e formais, as quais são tidas como enunciando essa vontade geral no interior de um "Estado de direito".45

45 Cf. Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1977, p. 119 (grifo nosso). O Estado, especialmente na fase atual do capitalismo tardio, fundamenta sua legitimação nos postulados da participação universal no prooesso de formação da vontade política e na neutralidade social das intervenções regulativas e das chances de utilizaç~o dos resultados de sua ação. Cf. Claus Offe, "Dominação Política e Estruturas de Classes: Contribuição à Análise dos Sistemas Sociais do Capitalismo Tardio", in Estado e Capitalismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, p. 115.

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Nesse sentido, o âmbito da atomização individualista, caracte­rizado pela igualdade e liberdade formais dos sujeitos no plano da circulação, pela reprodução da força de trabalho, pela livre associação, pelos agrupamentos voluntariamente institucionalizados, pelo jogo dos grupos sociais em conflito, pelo comércio de produtos e serviços entre os homens, pelo pluralismo e diversidade das formas culturais, etc., demarca precisamente o lugar onde as relações interpessoais têm pre­dominância e conforma a sociedade civil revelada na riqueza e varie­dade de suas manifestações.46 Entretanto, ao transpassarmos essa es­fera, ao nos introduzirmos nos subterrâneos da produção, deixamos as relações formalmente livres e iguais da troca individual para o re­encontro das relações estruturais, •onde o consumo da força de trabalho se realiza sob 'condições de controle e domínio do capital. Estando a esfera da circulação, com seus momentos de distribuição, troca e consumo, vinculada à esfera da produção num circuito dialético em que a unidade se perfaz numa dinâmica contraditória dessas esferas e momentos, observamos que há uma reação recíproca entre eles, de tal sorte que a· expansão de um momento ou esfera determina a alteração quantitativa e qualitativa dos outros e vice-versa.47 Esse

4n Consulte, a respeito das relações interpessoais, o capítulo 3 deste trabalho.

47 A dialética desse processo é analisada por Marx, que chega à seguinte con­clusão: "O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, o intercâmbio e o consumo são idênticos, mas que todos eles são elementos de uma totalidade, diferenciações no interior de uma unidade. A produção ultra­passa também o seu próprio quadro na determinação antitética de si mesma, tal como os outros momentos. O processp começa sempre de novo a partir dela. Que a troca e o consumo não possam ser o elemento predominante, com­preende-se por si mesmo. O mesmo acontece com a distribuição enquanto distribuição dos produtos. Porém, enquanto distribuição dos agentes de produ­ção, ela constitui um momento da produção. Uma forma determinada da pro­dução determina, pois, formas determinadas do consumo, da distribuição, da troca, assim como relações determinadas destes diferentes fatores entre si. A produção, sem dúvida, em sua forma unilateral, é também determinada por outros momentos; por exemplo, quando o mercado, isto é, a esfera da troca, se estende, a produção ganha em extensão e volume, operando-se nela uma divisão mais profunda. Se a distribuição sofre uma modificação, modifica-se também a produção; com a concentração do capital, ocorre uma distribuição diferente da população na cidade e no campo, etc. Enfim, as necessidades ine­r•entes ao consumo determinam a produção. Uma reciprocidade de ação ocorre

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processo não pode, portanto, deixar de influir na configuração da totalidade social, ficando a sociedade civil caracterizada como um momento dessa totalidade, especialmente localizado na esfera da cir­culação onde os vínculos inter-subjetivos, entre indivíduos atomizados, se realizam nos quadros jurídico-políticos garantidores da igualdade e liberdade formais da sociedade burguesa.

Pela abordagem efetuada acima, pode-se observar que a socie­dade civil não deve ser especificada e diversificada apenas ao nível do momento da troca, embora esta possa predominar em certas épocas e em certos lugares. No plano da circulação, encontramos também os momentos da distribuição e do consumo, momentos estes particu­larmente importantes quando se tem em conta especialmente a pro­dução e reprodução da mercadoria força de trabalho, que apresenta uma curiosa especificidade: a de ser reproduzida no âmbito da socie­dade civil, fora das relações de produção capitalista. Esse fato é singu­lar; visto que parte da ação estatal está consignada a garantir a repro­dução da força de trabalho, neutralizando de certo modo a tend~cia de explorá-la até a exaustão, por parte de cada capitalista singular.48

Nesse sentido, o Estado passa a representar a "moderação" destinada a manter as condições permanentes de reprodução ampliada do capi­tal, não porque tenha que atender funcionalmente aos requisitos de desenvolvimento de uma economia mais complexa, numa espécie de auto-limitação orgânica, nem porque tenha de exercer, dentro de uma perspectiva instrumentalista, controle mais eficiente sobre a classe dos trabalhadores, mas exatamente porque se vê obrigado a dar respostas às exigências dessa classe, cuja amplitude e conteúdo (dessas respostas) depende do grau de resistência organizada alcançado na luta por melhores condições de distribuição e de consumo. Por esse processo, obseÍva-se que o Estado é essencialmente a expressão das contradições inerentes ao movimento interno do modo capitalista de produção, visto que, sob a pressão organizada da classe operária, contrapõe-se ou é

entre os diferentes momentos. Este é o caso para qualquer totalidade orgânica·. Cf. Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, op. cit., p. 217. Ver, no mesmo sentido, John Urry, op. cit., pp. 42-43. 48 Ver, nesse sentido, um interessante estudo relacionado com o tema, visto sob o ângulo aplicado, vinculado à política social no Brasil, da autoria de Alberto Cignolli, Estado e Força de trabalho, São Paulo, Btasiliense, 1985:

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obrigado a contrapor-se às pretensões espoliadoras do capitalista sin­gular em seu movimento imediatista de usurpação egoística e sem limites. Nesse sentido, o Estado fixa e toma medidas de controle de mercado, de condicionamento, fiscalização e segurança do trabalho, de higiene e saúde, de previdência, educação e assistência social, de proteção ambiental, habitação e saneamento básico, de garantias do abastecimento e de eficiência dos transportes, etc. E isso ocorre não exatamente para atender de forma desinteressada e neutra a uma de­manda social - como é sua forma costumeira de aparecer ao senso comum -, mas fundamentalmente para salvaguardar os interesses gerais (e não singulares) do capital coletivamente considerado.

O que se pode observar, no âmbito de nossa tese, é que o Estado é uma forma de organização política não direta e imediatamente origi­nada do processo produtivo, mas que com ele mantém relações internas essencialmente vinculantes na medida em que promove, no marco de sua própria natureza, as condições apropriadas para a reprodução ampliada da acumulação capitalista. Para garantir essa acumulação, o Estado legisla, organiza e interfere nas esferas da produção e da cir­culação, empenhando-se também, e por conseqüência, no seio das rela­ções heterogêneas da sociedade civil. Entretanto/ é preciso sublinhar com ênfase que ele não é uma realidade independente, absolutamente autônoma, fora das relações econômicas e sociais e a elas sobreposta, mas é precisamente a expressão das contradições inerentes a essas relações, figurando como uma estrutura ao mesmo tempo indutora e induzida, sempre, porém, dentto dos quadros de hegemonia da classe dominante, que lhé emprestam, em última instância, o caráter de orga­nização política para garantir a acumulação capitalista, a valorização do capital.49 Essa acumulação se realiza no plano econômico, pela injunção dialética entre as esferas da produção e da . circulação. Nesta última, onde se realiz'! com maior intensidade a jnterface entre as

49 O ponto de referência a respeito do qual se interpreta a autonomia relativa do Estado é o âmbito dos conflitos de classes. Nesta linha, Poulantzas também entende por autonomia relativa do Estado moderno "não diretamente a relação das suas estruturas com as relações de produção, mas a relação do Estado com o campo da luta de classes, em particular a sua autonomia relativa em relação às classes ou frações de bloco no poder e, por extensão, aos seus aliados ou suportes". Cf. Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, op. cit., p. 252.

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bases econômicas, a sociedade civil e a sociedade política, encontramos o momento da troca, em que se enquadram as práticas mercantis realizadoras (mas não produtoras) da mais-valia, e os momentos da distribuição e do consumo externo à própria produção direta - isso porque em sentido estrito existe o consumo produtivo -, que estão referidos respectivamente à proporção dos ingressos (salários, lucros, juros, etc.) de cada classe ou fração de classe e às condições gerais e específicas de · reprodução da força de trabalho e do contexto físico­estrutural do sistema. Conforme o predomínio das relações de troca ou de reprodução , da força de trabalho, calibrado em função da luta de classes, teremos implicações diferenciadas nas determinações políti­cas e programáticas do Estado. Se há a preponderância das relações de troca - predominantes na fase do capitalismo concorrencial -, as lutas dos diferentes grupos sociais objetivam o estabelecimento de ·condições formais de igualdade e liberdade nas trocas (liberalismo econômico); as relações de intercâmbio predominam sobre as relações de distribuição e consumo. Evidentemente tais relações de troca jamais poderão ser elididas, visto que a transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro é essencial para a reprodução e acumulação capi­talista. Porém, sob esse ângulo, o reforço à política de intercâmbio se realiza através da manipulação e fortalecimento pelo Estado de meca­nismos destinados a assegurar a forma de "pagamento" em dinheiro, e em termos de favorecimento mercantil, de todos os benefícios vin­culados às relações (predominantemente voluntárias) entre indivíduos e gtuPPS e entre estes e o próprio Estado - sob a forma de tarifas, seguros-desemprego, benefícios de saúde, auxílio-educação, empréstimos ofiicais, crédito-assistência, serviços públicos sob contratos de conces­são, subsídios regionais, locais, setoriais, etc.5{) A tendência é, por­tanto, robustecer tod'os os meios e instrumentos orientados para a linha do liberalismo econômico, consignando a predominância do valor de troca, com fracas restrições ou reduzido controle sobre os procedi­mentos mercantis de qualquer espécie e, particularmente, com escassa intervenção no âmbito da reprodução da força de trabalho. Aqui , portanto, há prevalência das políticas estatais vinculadas à mercadoria, ao valor de troca.

nO Ver, nesse sentido, John Urry, op. cit., p. 132-133.

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Exa'tamente porque a força de trabalho tem características pró­prias, inconfundíveis com as das demais mercadorias, . é que podemos assinalar a singularidade de sua reprodução, visto que as condições desta reprodução não se identificam com as de outras mercadorias, e se dão em grande parte na esfera da sociedade civil. Como o vende­dor da força de trabalho é ele próprio portador natural da mesma, não podendo dela se desprender, seu específico interesse na relação de troca que a envolva não é o mesmo do vendedor das outras merca­dorias. Seu preço está condicionado por circunstâncias diversas e específicas relacionadas com a produtividade, com a mão-de-obra de reserva, com o nível cultural e de instrução das classes trabalhadoras, com a escala dos programas sociais do governo, com o grau de de­senvolvimento ecoaômico da formação social, com as relações de dependência dessa formação em face de outras sociedades estatais capitalistas e, especialmente, com o grau de organização política da classe obreira e •o estado da luta de classes correspondente. · Por outro lado, como a força de trabalho possui a peculiaridade . de produzir mais-valia, seu comprador singular tentará adquiri-la pelo preço mí­nimo, embora não possa, enquanto membro da classe burguesa) des­truí~Ia, sob pena de eliminar a real base da acumulação capitalista.51

Essa vigilância, entretanto, é feita através dó Estado, sob a pressão mais ·ou menos organizada da classe operária. Com efeito, os trabalhadores têm de lutar para manter as condições de reprodução da sua força de trabalho em níveis compatíveis com as possibilidades oferecidas pelo sistema e pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas. Vê-se, assim, que tanto a esfera do capital quanto a do trabalho têm inte­resse na reprodução da força de trabalho, numa relação dialética onde o antagonismo entre o trabalhador e o capitalista dá ao mesrrto tempo ensejo, em um movimento de unidade dos contrários, à identidade de interesses na manutenção e reprodução daquela força; um, com vistas à sobrevivência digna; o outro, com o objetivo de garantir a acumulação ampliada do capital.

A luta em prol da valorização da força de trabalho pode fazer deslocar o eixo da política do Estado no sentido de comprimir a in­fluência da relação entre vendedores e compradores, em que há pre-

;;1 Idem, ibidem, p. 119-120.

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dominância da relação formal de igualdade e liberdade no âmbito do mercado, em favor da maior ênfase colocada na distribuição dos salá­rios e da mais-valia e no consumo seletivo de bens e serviços. Natu­ralmente, esse processo deve se dar nos limites da lei interna do sis­tema, que, em estágios mais avançados do capitalismo, a tendência à queda da taxa de lucro surge no bojo de uma série de crises de realização da maiscvalia, determinando um progressivo e orgânico en­volvimento estatal nas esferas da produção e da circulação mercantil e propiciando maior ênfase na distribuição so,,ial das rendas e na manutenção e aumento seletivo do cons1.'11l0. NJ.· medida em que o capital se socializa, com o auménto de sua concentração e centraliza­ção, com a monepolização crescente, as unidades individuais de capi­tal não são suficientes para assegurar a reprodução do sistema apenas através de processos de intercâmbio. Nesse momento, o Estado é indu­zido ao controle cada vez mais amplo e intenso sobre a vida econô­mica, propiciando as condiçõ~s para o aparecimento do capitalismu monopolista de Estado, que é o indício claro da Impotência do capital para, só com · suas próprias forças, cuidar da autovalorização. Assim sendo, esclarece Estevam Martins, "dizer que o processo de monopoli­zação p'rogressiva, ao incluir a intervenção motora e direcionadora do Estado, deixa de ser uma obra exclusivamente realizada pela luta entre os capitais individuais em concorrência, é o mesmo que dizer que, no capitalismo de Estado, ó capital não se basta para se repor a si mesmo. E isso na exata medida em que co-divide com o Estado

a funçãp de recriar as condições monopolistas, particulares .e internas do prosseguimento da acumulação capitalista".52 Todo o sistema passa a exigir, desse modo, a mobilização permanente de fatores externos

que n_ão se enquadram especificamente na lógica do capital singular.

Assim, o contexto econômico-social se amplia de forma tão significa­tiva que, para manter o processo de reprodução e acumulação capita­lista, tornam-se indispensáveis a intervenção, a direção, o controle e a participação econômica do Estado, cujas diretrizes e políticas se movimentam e se especificam também e principalmente em função das formas coletivas de luta,. através de sindicatos, partidos políticos

52 Cf. Carlos Estevam Margins, op. cit., p. 36.

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e grupos de pressão de toda sorte.53 Esse quadro leva a mudanças nas formas de ação e nas políticas do Estado, especialmente dirigidas ao maior· controle sobre o que é produzido e sobre a distribuição e consumo da riqueza social. Isso significa que não há mais o predo­mínio das relações de troca, havendo em paralelo o estabelecimento de políticas que implicam o suprimento, pelo Estado, de valores de uso coletivo, com vistas a manutenção, em última instância, do sistema de reprodução e acumulação ampliada do capitaJ.54 Essa é a explica­ção das diversas formas de ação econômica ·e política estatais, . no que respeita à manipulação do sistema financeiro para favorecer áreas especiais da produção; à adoção seletiva de políticas tributárias e parafiscais; ao controle das condições de trabalho e do sistema pre­videnciário; à criação de mecanismos especiais de crédito, de estí­mulos às inovações tecnológicas e de subsídios para múltiplas funções econômicas e sociais; à intervenção direta em determinadas áreas econômicas estratégicas para garantir a continuidade da acumulação do capital, além de outras políticas ligadas à ação social do Estado, não só no âmbito da infra-estrutura urbana - ordenamento do solo, equipamentos urbanos, habitação, saneamento básico, etc. -.como também no âmbito dos serviços e atividades públicas e de utilidade pública, tais como saúde, higiene, educação, instrução técnica, assis­tência social, abastecimento, transportes e segurança pública.55

Por tudo o que foi exposto, é possível assinalar que as relações capitalistas de dependência, alienação e antagonismo somente podem ser preservadas e reproduzidas em razão da hegemonia que as classes ou frações de classes dominantes exercem através do aparelho estatal e da sociedade civil. Isso não quer dizer, entretanto, que o Estado esteja impedido de exprimir, além dos interesses predominantes da

c.a Para uma análise sobre as técnicas de atuação do Estado no e sobre o domínio econômico, ver Eros Roberto Grau, "Elementos de Direito Econômi­co", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, pp. 58·81. Ver, também, Alberto v .enâncio Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1968, pp. 5-19. ?\4 Ver John Urry, op. cit., pp. 129-132 .. Ver, também, Jean Lojkine, O Estado Capitalista e a Questão Urbana, São Paulo, Martins Fontes, 1981, pp. 124-136.

nn Ver Jürgen Habermas, A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio, ·Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 47-52.

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burguesia, alguns interesses de outras classes; ao contrário, isso ocorre exatamente porque os interesses refletem um processo dialético num quadro de relativa ambigüidade, de sorte que a luta por e a satisfação de certos interesses das classes subordinadas não deixam de repre­sentar simultaneamente e de. certo modo a satisfação de interesses da classe hegemônica. Se uma classe não pode ganhar sem prejuízo de outra, não pode também pretender ganhar tudo sob pena de tudo perder, com à possível aniquilação da classe usurpada e, por conse­qüência, com a destruição de si mesma. No plano empírico, esses interesses de classe refletem-se nas diversas formas sob as quais a estrutura estatal se manifesta, mediante regimes políticos diferencia­dos. Aqui é preciso ter o cuidado de não se interpretar a existência do Estado como uma região formal destacada do mundo fenomênico através do qual ele se manifestaria. Não existe um Estado em si, como um universal abstrato, sempre igual a si mesmo, para depois vir a lume no plano dos embates políticos e da luta de classes na sociedade civil. A ordem lógica contém uma dimensão ontológica, visto que é objetivamente produzida e continuamente reproduzida, negada e trans­formada pelas relações entre os homens. Nesse sentido, o Estado deve ser compreendido como um universal concreto, onde as determinações de sua existência e de sua forma política, através dos regimes políticos que assume, são parte inerente de sua própria compreensão como categoria histórica mais aprofundada e mais expressiva do real con­creto.00 O regime político, como forma pela qual o Estado existe, faz parte de sua dinâmica interna, como resultado das lutas sociais indu­toras da divisão da sociedade em classes antagônicas. Por essa razão, a natureza de classe do Estado inclui, de modo inevitável, a expressão que o;; segmentos sociais antagônicos tomam no processo de suas próprias lutas na sociedade civil, configurando a diversidade de regi­mes políticos emergentes de conjunturas históricas diferenciadas. Há, naturalmente, no interior desse processo uma tensão dialética entre o

n6 Para uma compreensão mais aprofundada desse modo dialético de aborda­gem, ver o conhecido texto de Marx, sob o título "O Método da Economia Política", in Introdução à Crítica da Economia Política, op. cit., pp. 218-226. Ver, também, a crítica ao althusserianismo, a propósito do conceito de classes em Poulantzas, feita por Fernando Henrique Cardoso, O Modelo Político Bra­sileiro, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972, pp . 104-122.

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Estado enquanto permanente garantidor da reprodução das relações capitalistas de produção e a contínua emergência de um regime polí­tico, que, pela ação das classes sociais em conflito, pode aproximar-se, identificar-se ou afastar-se das condições mais apropriadas à repro­dução das relações de exploração num determinado período histórico e dentro de uma certa conjuntura econômica ( empiricamente verificável) e,. ainda, segundo a lógica interna do sistema. Assim, observa-se uma contradição entre as formas mais democráticas que assume o Estado, em razão da luta de classes no interior da sociedade civil, e a necessi­dade de reproduzir o capital nas melhores condições possíveis, com o objetivo da autovalorização máxima. Por isso se compreende que "a emergência de um regime político do tipo 'Frente Popular', 'Unidade Popular', etc. possa tornar difícil a reprodução da relação de explo­ração, caso se desenvolva um movimento de massa de grande ampli­tude. Constata-se aqui a contradição entre a necessidade objetiva de reprodução do capital e da relação social subjacente, por um lado, e, por outro, a dificuldade concreta de materializá-la. Essa contradição é, assim, o produto das formas que a luta de classes assume e de sua intensidade".57 Desse modo, o regime político, exprimindo a forma fenomênica pela qual o Estado transparece, varia de conformidade com a situação histórica e o caráter e intensidade da luta de classes, segundo a conjuntura das forças econômicas e políticas em jogo em um certo período histórico de determinada formação social. Em razão dessa conjuntura, a burguesia, apoiada ou não pelo bloco no poder, se vê em muitas ocasiões, por suas frações e setores, obrigada a transi­gir exatamente para persistir e dar continuidade ao processo de acumu­lação capitalista. Dentro de circunstâncias específicas, ao fazer con­cessões ao proletariado, ao trabt.llhador rural ou à classe média, a burguesia demonstra precisamente, ao sabor de uma aparente debili­dade, o poder hegemônico que exerce sobre toda a sociedade. Natural­mente, isso não acontece de forma harmônica ou tranqüila, assumindo muitas vezes o caráter de "crise' do sistema político, com descom­passos acentuados entre as forças políticas das diferentes frações e setore~ da burguesia e das demais classes ou frações de classes, repercutindo · nas relações entre os diversos grupos e segmentos da

ã7 Cf. Gilberto M~tthias e Pierre Salama, op. cit., passim, p. 16.

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sociedade civil, entre a cidade e o campo e, inclusive, nas relações internacionais.

Para que esse fenômeno se dê com relativa autonomia, -é indis­pensável que o Estado não se apresente como algo externo ao capital, ao mesmo tempo que a ele não pode ser reduzido. Isso significa que o Estado, exatamente para representar o garante da continuidade das relações de produção capitalista, não pode se confundir com nenhum capital individual, ou seja, ele deve garantir, sob pressão também das classes subalternas, que não haja uma sujeição total dos trabalhadores aos capitalistas individuais, sob pena de se eliminarem as relações de mercado que são a condição de possibilidade da reprodução do próprio sistema. O Estado assegura, nesse sentido, a tensão contradi­tória entre as condições gerais de sobrevivência qualificada e liberdade formal do trabalhador, com b objetivo de mantê-lo vivo, preparado e "livre" para vender sua força de trabalho na esfera da circulação, mediante troca de equivalentes, e a sua não-liberdade real, que, por efeito do constrangimento econômico difuso, obriga-o a sujeitar-se à

esfera hierárquica da produçãb, onde ocorre a "t~oca desigual" em virtude da apropriação da mais-valia pelo capital. 58 A dominação política e a apropriação econômica formam uma unidade dialética cujo processo hegemônico revela a exigência de preservação e exploração

, continuada da força de trabalho e não, é óbvio, de sua extinção. Nesse processo funcionam tanto a estrutura estatal que mantém, como sua função primordial e em nome do capital em geral, a dominação polí-

58 Margareth Wirth aponta com muita propriedade essa relação: "A contra­dição entre liberdade formal do trabalhador enquanto proprietário da merca­doria e sua não-liberdade real enquanto produtor de mais-valia em benefício do capital tende a se resolver por si mesma: a) seja enquanto expropriação dos expropriadores, na supressão da relação capitalista, mediante a eliminação da separação .entre produtores e meios de produção; b) seja, ao contrário, mediante a sujeição· totiil do trabalhador, ou seja, do não-proprietário dos meios de produção (livre e assalariado), ao possuidor de dinheiro. Se os capitalistas in­dividuais podem sujeitar totalmente uma parte dos trabalhadores, o mercado tende a desaparecer, mas - com isso - também a condição de reprodução do capital como tal'". O Estado · obstaculiza o desenvolvimento desse duplo pro­cesso. É o garante da perenidade das relações de produção." Cf. M. Wirth, apud Gilberto Mathias e Pierre Salama, op. cit~, pp. 25-26.

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tica e ideológica para viabilizar a exploração econômica, reproduzida em níveis de tolerância ou aceitação espontânea pelo proletariado, quanto a luta deste último, na sociedade civil ou no interior do próprio aparelho estatal, para a preservação e ·valorização da força de trabalho em razão de seus interesses vitais. Desse modo, como reflexo da própria hegemonia burguesa e como condição de sua sobrevivência, o Estado aparece destacado da sociedade civil e exprime a parcial e apa­rente conciliação dos interesses das classes antagônicas, como fautor da "coesão" social. É precisamente por essa prática de conciliação -realizada de forma ativa e tensa em virtude da luta de classes -que os interesses das classes subalternas são subjugados aos da bur­guesia, permitindo a reprodução ampli'ada do capital ao mesmo tempo que evita o aguçamento das contradições para além dos limites supor­táveis pelo sistema.

As questões que foram postas em relevo apontam para a contra­dição cada vez mais profunda entre a exigência da sociabilidade es­sencial decursiva do processo produtivo, onde os homens não são "operacionais" senão enquanto estejam organicamente associados em

suas ações geradoras das condições materiais da vida social (no capi­talismo é progressiva e intensa a socii:llização das forças produtivas) , e a atomização individualista de seus interesses na esfera da circula­ção, da sociedade civil, onde. os homens não são "operacionais" senão

enquanto fragmentam suas ações em unidades voluntárias e subjetivas para possibilitar o intercâmbio aberto entre o capital e o trabalho, em termos de liberdade e igualdade formais (com a prevalência do instituto do contrato). Entretanto, o individualismo (a liberdade pes­soal) na esfera da sociedade civil não pode ser tão desagregador, com o aprofundamento dos interesses egoísticos, a ponto de comprometer á indispensável sociabilidade exigida na esfera da produção, tendo ern vista não só a manutenção das condições de reprodução da vida material da sociedade, como também a preservação das relações específicas que permitem a exploração do trabalhador e a acumulação privada do produto. social. Isso implica a organização da esfera polí­tica de forma aparentemente destacada para resgatar com legitimidade, no plano ~a ordem pública, com expedientes jurídicos e ideológicos apropriados, a unidade perdida em favor do intercâmbio social indi-

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vidualista, no âmbito da sociedade civit.69 Porém, nesse nível político, o resgate da socialidade não se dá de forma real, tal como ela ocorre, de certo modo, no âmbito material da produção, visto que deve absorver a individualidade na forma da cidadania voluntariamente exercitada (através do voto popular), qualificada ainda como massa de indivíduos atomizados e abstratamente considerados, ou seja, inde­pendentemente das respectivas condições econômicas e da conseqüente situação de classe. Com esse processo, o Estado passa a ter, como fundamento de sua própria legitimidade, um caráter de representação social aparentemente dissociado dos antagonismos de classe, refletindo, de forma ideológica, o lugar público ideal que orienta e limita a ação dos indivíduos para permitir a conciliação entre os interesses coletivos, necessários à continuidade da produção material da vida social, e os interesses particulares de caráter estrutural, indispensáveis à perma­nência das relações de exploração do homem pelo homem. Entretanto, como o Estado não pode revelar com clareza a sociabilidade real existente no plano da produção ou das forças produtivas, sob pena de revelar igualmente as contradições emergentes das relações de produção inerentes àquelas mesmas forças produtivas, e como também não pode, o Estado, proteger plenamente a socialidade com exclusão dos fatores que a negam estruturalmente, sob pena de destruir as bases da sociedade burguesa e também a si próprio, ele se apresenta exatamente com'O uma instância que resgata o público ao nível do imaginário. Por isso, no giro das práticas· sociais, permanecem a sociedade civil e o contexto produtivo, que de certo modo ela também resguarda e mascara, como o verdadeiro mundo onde os homens se relacionam de forma mais imediata, atendendo aos seus autênticos intere·sses individuais. O · Estado é uma instância política que resulta da prática dos indivíduos-cidadãos, os quais por sua parte não podem igualmente deixar de ser, ao mesmo tempo, indivíduos produtores e vendedores no plano das relações de produção e das relações mer­cantis. Orientados segundo os reais interesses egoísticos que prevale­cem n~ esfera civil, observa-se, então, nas práticas sociais e políticas, uma verdadeira cisão do homem consigo mesmo, uma ruptura dele,

59 Ver Marilena Chaui , Cultura e Democracia, O Discurso Competente e Ou­tras Falas, São Paulo, Moderna, 1980, pp. 20-21 , 111-116.

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de um lado, como membro imaginário de uma irreal universalidade, como cidadão ou homem público do mundo do "dever ser", e, de outro lado, como ser integrante das relações da vida civil, da vida privada como verdadeira vida que aparece impulsionando seus reais interesses e que lhe permite viver como homem particular no mundo

do "ser". O homem da vida privada é o homem egoísta, objeto de certeza

imediata, que se vê a si mesmo como objeto natural. Assim, ele "se conduz, em relação à sociedade burguesa, ao mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses particulares, do direito privado, como se estivesse frente à base de sua existência, diante de uma premissa que já não é possível fundamentar e, portanto, como frente à sua base natural. O homem, enquanto membro da sociedade burguesa (sociedade civil), é considerado como o verdadeiro homem, distinto do cidadão, por se tratar do homem em sua existência sensível e individual ime­diata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem 'verdadeito', somente ~ob a forma de cidadão abstrato".~() Por isso, a sociedade civil e o Estado, ao se dissociarem, desdobram o homem como ser social e como ser político, divorciando, no seio da mesma pessoa, a vida individual, porém empírica e mundana, e a vida universal, genérica, porém ideal e abstrata. A sociedade burguesa transformou os homens, enquant'O liga­dos à produção material e à vida civil, em indivíduos egoístas, atomi­zados e articulados entre si de modo. externo, porém enquanto entes vinculados à vida pública comt> cidadãos, em seres universais e abstra­tos, relacionados numa comunidade interna de valores compartilhados. Desse modo, no âmbito estatal, no plano da sociedade política, o homem se caracteriza como um ser abstrato e formal, como um homem imaginário ou ideal; no âmbito das necessidades vitais, da práxis cotidiana, isto é, no plano da sociedade civil, em contraste, o homem aparece como um ente real, porém com uma existência egoísta e fragmentada. Nessa linha se pode, então, compreender a ruptur.a do homem consigo mesmo de tal sorte que, no capitalismo, o interesse comum representado nas funções públicas aparece também ·

uu CL Karl Marx, A. Questão Judaica, São P~ulo, Moraes, s.d., pp. 50-51.

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como um poder alheio e hostil que se impõe aos indivíduos e os submete de modo heterônomo, em vez de ser produto de suas vontades associadas e submetido a eles no plano de suas práticas sociais autô­nomas. Isso significa, enfim, que o Estado aparece, frente à sociedade civil, como uma comunidade distinta e opressiva, originada das rela­ções do modo capitalista de produção e da realidade dos interesses comuns das classes e frações tf.e classes dominantes, configurando um poder material alheio, estranho · e divorciado não só do interesse singular de cada indivíduo, como também do próprio interesse comum real, convertido, então, em uma ilusão.61

. 61 ·Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstra­to e se converte, como homem individual, em ser ' genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas próprias forças como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, so­mente então se processa a emancipação humana.· Cf. Karl Marx, ibidem, p. 52.

Coercibilidade jurídica e constrangimento econômico difuso

Ao examinar as questões relacionadas com o poder, verificamos a complexidade desta categoria, especialmente quando toma a forma explícita de um domínio legitimado pelo consenso ideologicamente estruturado.1 O poder, antes de mais nada, significa a· possibilidade de decidir e de levar a decisão a seu termo, mediante o emprego de energia. No plano social, esta energia é a força que pode referir-se tanto ao reconhecimento espontâneo, pelo sujeito dominado, da auto­ridade do sujeito dominador, pela qual o comando transparece legiti­mado, quanto à submissão heterônoma daquele sujeito dominado por decisões ou comandos do dominador, mediante o emprego efetivo ou ameaça, virtual ou explícita, de emprego da coerção física ou de qualquer .outro meio de violência. Nesse sentido, o poder dentro de uma relação social corresponde à capacidade, atual e potencial, de impor regularmente a própria vontade sobre a de outros, com ou sem o reconhecimento espontâneo destes, isto é, até mesmo contra as pos­síveis resistências daqueles aos quais essa vontade armada com su­premacia se dirige.2 Entretanto, coino já o ·dissemos, se o poder

1 Ver, a esse respeito, a análise desenvolvida no capítulo VI deste trabalho.

2 Ver Max Weber, Economía y Sociedad, I, 2.• ed., Bogotá, Fondo de Cultura

.. . . . .

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enquanto hegemonia não prescinde, para sua legitimação, da autonomia da vontade dos sujeitos aos quais é endereçado, enquanto dominação, também não pode desprezar a possibilidade do exercício dos meios de violência, em especial quando explicitamente trata de retificar, dentro dos parâmetros exiológicos dominantes, os desvios das vontades rebeldes e, por isso mesmo, consideradas ilegítimas (e não apenas ilegais) e até "pecaminosas" .3 Dizemos "explicitamente" porque essa dimensão de violência do poder legítimo é perfeitamente aceitável pelos agentes sociais e até justificada; contudo, já tivemos ocasião de de­monstrar, a perversão não se revela nesse poder fundado no consenso enquanto respaldado pela violência legitimada, operando paralela­mente, mas sim enquanto se considera analiticamente o próprio con­sentimento como uma forma disfarçada de dominação, mediante a operação ideológica indispensável ao engendramento da ilusão de reciprocidade de serviços equivalentes entre dominadores e dominados, no plano da direção sociaU De qualquer forma, porém, o poder, legitimado ou não, se caracteriza pela imposição da vontade sobre um sujeito ou grupo social, inclusive contra a sua resistência, mas não necessariamente.

Enquanto retrata dominação e direção a um só tempo, o poder se qualifica como hegemônico. Porém, o que singularmente caracteriza

Económica, · 1977, pp. 43-44. Ver Gérard Lebrun, O Que é Poder, São Paulo, Brasiliense, 1981 , pp. 10-27. 3 Numa concepção ampliada de Estado, Gramsci diz que "na noção geral de Estado entram elementos que também são comuns ·à noção de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção)". Cf. Antonio Gramsci, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1980, p. 149. Ver, também, Perry Anderson, Las Antinomias de Antonio Gramsci, Barcelona, Fontamara, 1978, pp. 39-44. 4 Considerando uma dramática experiência histórica, Bodei afirma que começa um período histórico em que o Estado, para funcionar, tem cada vez mais necessidade da colaboração ativa ou passiva dos cidadãos, de obter ou extor­quir deles o consenso. Sob este aspecto, tal tendência culmina no fascismo e no nazismo, na militarização completa da sociedade civil, na extorsão do con­senso mediante a força, no cancelamento, ao limite extremo, da diferença entre ditadura e hegemonia. Cf. Remo Bodei, "Gramsci, Vontade, Hege~onia, Racio­nalização", in Política e História em Gramsci, vol. I, Instituto Gramsci, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1978, p. 89.

ESTADO E . IDEOLOGIA 255

o fenômeno da dominação legítima sob o ângulo político, que é uma especificação do fenômeno mais abrangente da dominação, é o mono­pólio concentrado do controle dos meios de coerção física sobre os membros de uma sociedade assentada em um território específico, excludente de qualquer outro poder com pretensão de supremacia. 5

Assim, o elemento específico gue caracteriza o polític~, tal como aqui o estamos enfocando, é a primazia no controle dos meios de violência em um território delimitado de forma excludente, sem eliminar a per­manente possibilidade do exercício da direção social modelada pela adesão espontânea dos dirigidos. Isto significa que, numa sociedade de classes, mesmo a hegemonia política caracterizada por uma forma legitimada de poder, conforme já demonstramos, não pode pr,escindir, em nenhuma hipótese, da possibilidade do exercício monopolizado da violência num determinado espaço territorial, para conter os conflitos estruturais ou não nos limites permitidos pelo sistema. Pelo exposto, devemos configurar duas situações que convém extremar analiticamente. A primeira consigna uma relação de dominação que não se caracteriza como política, por faltar o suporte específico da territorialidade; isto quer dizer que a supremacia coercitiva não é por si só suficiente para qualificar a relação de dominação como política; por isso a dominação de um malfeitor, de um pai de família ou de um dirigente privado, exercida coativamente sobre pessoas sujeitas ao seu âmbito de influ­ência, não se pode configurar como política precisamente pela ausência do elemento de soberania territorial, que rejeita de modo absoluto a possibilidade de interferência de qualquer outro poder nos limites de um espaço territorial delimitado. 6 A segunda situação refere-se ao

" -Ver, nesse sentido, Guillermo O'Donnell, "Anotações para uma teoria · do Estado", I, in Revista de Cultura e Política, n.• 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 71-73. n Nesse sentido Jellinek ensina que "a terra sobre a qual se levanta a comu­nidade Estado, considerada sob o aspecto jurídico, significa o espaço em que o poder do Estado pode desenvolver sua atividade específica, ou seja, a do poder público. Neste sentido jurídico, a terra se denomina "território". A sig­nificação jurídica deste se exterioriza de uma dupla maneira: negativa uma, na medida em que se proíbe a qualquer outro poder não submetido ao do Estado exercer funções de autoridade no território sem autorização expressa por parte do mesmo; positiva a outra, relativa às pessoas que se acham no território e ficam submetidas ao poder do Estado. ( ... f Este poder falta àque-

... . .

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fenômeno ,da legitimidade do poder. Para que este exista e se configure como político, não é preciso que se qualifique como plenamente autên­tico em sua legitimidade, visto que não prescinde nunca da possível manipulação concentrada da violência, ainda que sob o pretexto de viabilizar a defesa de sua pretensa legitimidade. IssÕ significa apenas que o poder político tem a sua especificidade calcada tanto na supre­macia da coação como na delimitação territorial excludente, não deven­do este poder, entretanto, ser reduzido tão somente a estes componentes que apenas lhe são a especificidade e não a totalidade de sua mani­festação fenomênica.7

Nessa linha, o Estado aparece como dominação equivalente ao plano do especificamente político, ho sentido acima examinado, sem que isso de modo algum implique limitá-lo, em sua existência real, à pura determinação do exercício da violência num território sobera­namente delimitado. A coatividade e a territorialidade são apenas seus componentes específicos, sem qualquer dos quais não haverá a orga­nização política estatal, embora no plano fenomênico tal organização

· não se revele senão de forma muito mais complexa e diversificada. Vale dizer, em última instância pode faltar o consenso da maioria, a "legitimidade do poder, a despeito de isso provavelmente não ser pos­sível por longos períodos históricos, m~s não poderá desaparecer, sob pena de não mais existir o próprio Estado, a capacidade do controle monopolizado dos meios de coação física sobre a população de um determinado territário. 8 Naturalmente, essa consideração é de referênc;a

las associações (ou pessoas) que de um modo excepcional têm autoridade sobre terceiros, porém sempre com um caráte.r independente de todo fundamento territorial". Cf. Georg Jellinek, Teoría General del Estado, Buenos Aires, Alba­tros, · 1970, pp. 295-296. Ver Hermann Heller, Teoria do Estado, São Paulo, Mestre Jbu, 1968, 173-182. Ver Hans Kelsen, Teoría General del Estado, Mé­xico, Nacional, 1973, pp. 180-194. 7 Weber, a respeito, se manifesta dizendo que "uma associação de dominação deve chamar-se associação política quando e na medida em que· sua existência e a validez de suas ordenaÇões, dentro de um âmbito geográfico (territorial)• determinado, estejam garantidos de um niodo contínuo pela ameaça e aplicação da força física por parte de seu quadro administrativo·. Cf. Max Weber, op. cit., p. 43. . s Ver Georg Jellinek, op. cit., pp. 295-325; Alexandre Groppali, Doutrina do Estado, São Paulo, Sara,iva, 1968, pp. 109-146; Reinhold Zippelius, Teoria Geral

ESTADO E IDEOLOGIA 257

apenas teórica para o fim de caracterizar o conteúdo do conceito de Estado, não eliminando as dificuldades oferecidas no plano histórico, a respeito da identificação das realidades correspondentes, especial­mente quando ocorrem situações onde o embate revolucionário de forças políticas antagônicas não nos permite muitas vezes discernir com clareza os titulares do poder estatal, isto quimdo, em situação extrema, não há ausência do próprio Estado por falta de sobetania territorial · das forças políticas concorrentes.

Se a relação de dominação geral vincula assimetricamente sujeitos sociais, certamente a desigualdade decorre do controle discriminado dos meios políticos, econômicos, sociais e ideológicos, que permite obter a subordinação da vontade . dos dominados à dos dominantes. No plano estrutural das relações sociais do modo capitalista de pro­dução, a dominação não se circunscreve apenas ao âmbito político, ao Estado, visto que o contexto eco.nômico-social perfaz· uma complexa totalidade dialética onde a realidade política, que não se move em função de si mesma, é apenas um momento da necessidade de preservar as condições básicas de reprodução desse sistema de exploração eco­nômica. Isso significa que a dominação estrutural implica, 1;1lém da relação política em sentido estrito, isto é, além da supremacia coativa territorialmente delimitada, o controle diferenciado dos recursos econô­micos, sociais e ideológicos, mediante os quais as relações assimétricas do domínio se transformam em hegemonia de uma classe. Para captar plenamente essa dominação estrutural que possui um caráter relacio­n:al básico e global, torna-se irresistível a exibição . de um texto de Poulantzas nos seguintes termos: "<2_ poder referido às classes sociais é um conceito que designa o campo de sua luta, o das relações de forças e das relações de uma classe com uma outra: os interesses de ;classe designam o horizonte de ação de cada classe em relação às outras. A capacidade de uma classe de realizar seus interesses está em

do Estado, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, 37-70; Giorgio Balladore Pallieri, A Doutrina do Estado, II, Coimbra, Coimbra Editora, 1969, pp. 67-109; Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, São Paulo, Saraiva, 1972, pp. 62-104; Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, 11.• ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1980, pp. 39-43; Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, Il, Doutrina e Crítica, Coimbra, Coimbra Editora, 1966, p~ . 168-86 .

..

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opos1çao à capacidade (e interesses) de outras classes: o campo do poder é portanto estritamente relaciona!. O poder de uma classe (da classe dominante por exemplo) não significa uma substância que ela tenha em mãos: o poder não é uma grandeza quantificável que as diversas classes partilhariam ou trocariam entre si segundo a velha concepção de poder-soma-zero. O poder de uma classe significa de início seu lugar objetivo nas relações econômicas, políticas e ideoló­gicas, lugar que recobre as práticas das classes em luta, ou seja, as relações desiguais de dominação-subordinação das classes estabelecidas na divisão social do trabalho, e que consiste desde então em relações de poder. O lugar de cada classe, portanto seu poder, é delimitado, ou seja, ao mesmo tempo designado e delimitado, pelo lugar das outras classes. O poder não é, desse modo, qualidade imanente a uma classe em si no sentido de uma rew;zião de agentes, mas depende e provém de um sistema relaciona! de lugares materiais ocupados por tais ou qu~is agentes".9 O texto exposto é longo, mas esclarecedor no que respeita às relações de dominação estrutural com as dimensões ideológicas, econômicas e sociais de uma comunidade dividida em classes. Percebe-se, portanto, que as referências da dominação geral, numa sociedade de classes, não podem ficar consignadas apenas às relações políticas, visto que compreendem a totalidade de suas deter­minações existenciais, precisamente porque são o produto histórico da luta de classes, implicando não só a presença e dinâmica do aparelho estatal, mas também de todas as demais instâncias organizacionais e institucionais emergentes da sociedade civil e do processo econômico da produção. Está claro, entretanto, que se o Estado aparece de modo imediato como base imparcial da coesão social, isso não ocorre como um fator de ação externa ou ética sobre os conflitos estruturais, mas é precisamente a maneira de recobrir de forma "neutra" ou "impessoal" a dominação existente, onde a hegemonia tem um papel singular na conformação das sanções oficiais (coação) como violência aparente­mente exercida em razão do bem de todos. Mais uma vez se vê aqui que o Estado não é senão o produto de relações de classes e forças sociais em conflito, devendo rejeitar-se qualquer idéia que o identifique

9 Cf. Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeiro, Graal,

1981 , pp. 168-9.

ESTADO E IDEOLOGIA 259

com uma coisa ou uma entidade com essência instrumental intrínseca que deteria, por si só, um poder "natural" e imanente. Por isso só é possível caracterizar o poder estatal como o poder político hegemônico de algumas classes ou frações de classes dominantes, isto é, como o "lugar" e posição estratégica dessas classe ou frações de classes na relação de dominação em face de outras classes (dominadas). Nesse sentido, "o Estado não é nem o depositário instrumental (objeto) de um poder-essência que a classe dominante deteria, nem um sujeito que possua tanta quantidade de poder que, num confronto face a face, o tomaria das classes: o Estado é lugar de organização estratégica da classe dominante em sua relação com as classes dominadas. É um " lugar" e um "centro" de exercício do poder, mas que não possui poder próprio". 10 A posição ou o lugar estratégico do Estado com­preende, assim, não só o exercício do poder hegemônico, recoberto ideologicamente para a manutenção e reprodução continuada das rela­ções de dominação estrutural, mas também a possibilidade de se exer­cer, em última instância e de modo formalmente legítimo, . a ação coercitiva aberta e viva indispensável à rejeição de rupturas do sistema. Essa hegemonia compreende, portanto, o momento ideológico que induz os sujeitos sociais à convicção do caráter justo e natural da desigualdade social, representando nesse sentido um bloqueio à com­preensão e ao questionamento da dominação como violência. Entre­tanto, o momento ideológico, de grande efeito para obter o consenti­mento do dominado na relação de domínio, pode falhar no seu papel de disfarce da inequação social, dando lugar, em razão da luta de classes e da práxis crítica, ao desvelamento explícito da violência estrutw:al; isso torna inevitável a utilização, pelos dominadores, dos recursos políticos de coerção física, que representam, em última instân­cia, o es~encial suporte fático e eficaz da dominação de classe num determinado espaço territorial. 1 1

10 Idem, ibidem, p . 169. . ll "Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida". Cf. F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro, Editorial Vitória , 1960, p. 161 .

...

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Desse modo, é preciso sublinhar que as relações de dominação na sociedade burguesa perfazem uma totalidade integral, onde analiti­camente se pode distinguir várias dimensões a ela inerentes-, de tal sorte que uma dimensão só encontra sentido em" razão de sua oonexão dialética com as demais. A apropriação econômica da mais-valia só é pacificamente possível, e não há outra maneira de sê-lo, . se houver o elemento constitutivo da dimensão ideológica integrado na relação produtiva que permita o mascaramento mistificador da exploração ma­terial, encobrindo desse modo a assimetria contraditória da relação econômica. Em outras palavras, o momento ideológico constitui origi- . nariamente as relações sociais de dominação, como sua· dimensão inte­gradora e não como elemento eventualmente adicionado que vem de fora para reforçá-las. 12 De qualquer forma, a desigualdade é escamo- ­teada exatamente para manter as condições de sua poss!bilidade, res­tando a questão do controle dos recursos de dominação. Esse controle ou o acesso desigual aos meios de dominação caracteriza exatamente a condição de possibilidade de se reproduzir o sistema assimétrico de produ~ão social, o qual, por sua vez, num circuito de natureza dialética, torna-se base daquele controle ou acesso diferenciado. A estrutura social tem sua dimensão· objetiva própria, porém dela também fazem parte integrante os fatores subjetivos de sua conformação ideológica. As classes sociais são de certo modo o produto dinâmico do sistema como um todo, mas também são, num retorno de caráter dialético, determinantes desse mesmo sistema na medida em que elas representam por si e pelos seus efeitos o principal diferenciador no acesso desigual aos recursos de dominação. Naturalmente, esse processo não é apenas realizado voluntariamente, pois pertence também e simultane~nte a uma dinâmica estrutural regida por leis próprias, onde as relações ideológicas representam um componente imprescindível à concretização objetiva da dominação, incluindo igualmente, e de forma também originária, as relações jurfdico-políticas. Mais uina vez é colocada a quéstão da constituição pluridimensional da relação social de domina­ção, visto que esta não pode ser entendida antes e fora das próprias determinações econômicas, sociais, ideológicas e políticás que a com-

12 Ver, nesse sentido, as. análises desenvolvidas nos capítulos I, li e VI deste

trabalho.

ESTAOO E IDEOLOGIA 261

põem necessariamente. Isso quer dizer que, dentre outras dimensões, também o Estado é elemento interno e o garante constitutivo essencial dessa relação social, ainda que assim não apareça imediatamente como um relação caracterizada pelo direito público.13

Existem relações cujo teor público desvela diretamente o caráter impositivo de seu conteúdo, como ocorre, por exemplo, nas medidas de fiscalização administrativa da ação privada, nas disposições que regulam o serviço militar ou nas ordens judiciárias em cumprimento das decisões dos tribunais, onde a primazia da coerção em âmbito territorial determinado é ostensivamente manifesta. Porém, há relações cujo caráter "privado" vincula sujeitos sociais, no plano da sociedade civil, a partir da iniciativa voluntária de cada um e dentro de um quadro de igualdade formal. Para esse efeito, é necessário que, ao menos aparentemente, tais relações privadas, de caráter contratual, não sejam assumidas diretamente pela organização política estatal. Isso faz parte da dinâmica essencial do ·mercado capitalista, confi­gurado na esfera da circulação, especialmente em seu momento de intercâmbio de mercadorias, incluindo a força de trabalho. f: claro que tal intercâmbio pressupõe necessariamente a garantia jurídico­política da propriedade privada dos bens e recursos produtivos. Neste caso, em razão da práxis do capital e da hegemonia ideológica corres­ponde, inclui-se dentre aqueles bens e recursos produtivos a própria força de trabalho, que, tida como uma "mercadoria", pode ser "livre­mente vendida" pelo trabalhador direto, mediante pacto com o deten­tor dos bens de produção (generalização das relações mercantis), Com efeito, para consagrar a relação contratual privada e o indispensável individualismo correlato, transforma-se também, de acordo com a lógica do sistema, o trabalhador em "proprietário privado" exatamente para poder participar do escambo mercantil generalizado. Entretanto, aquela relação contratual é privada somente na aparência, de vez que sua vigência regular não pode jamais prescindir, sob pena de se descaracterizar como relação jurídica, da permanente possibilidade de invocação do Estado para garanti-la contra eventual descumprimento. Esse possível descumprimento da relação jurídica releva-se especial­mente em razão da tensão contraditória entre a esfera da circulação,

13 Ver, nesse sentido, Guillermo O'Donnell, op. cit., I, pp. 73-74 .

..

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onde as relações mercantis definem um quadro de igualdade e liber­dade entre os indivíduos separados, singularizados, no mundo dos acordos e conflitos individuais (não estruturais), como proprietários vendedores e compradores (inclusive da força de trabalho), e a esfera da produção, onde imperam, a um só tempo, a relação de predomínio hierárquico do capital sobre o trabalho, com o fim de extrair a mais­valia, e a relação de cooperação desse mesmo trabalho indispensável à produção do excedente econ6mico.14 Na esfera da circulação (socie­dade civil) os conflitos não são de caráter estrutural, enquanto se enquadrem precisamente no âmbito da estrita relação de igualdade dos direitos, como sói acontecer nos períodos de "normalidade";

1n entre­

tanto, tais conflitos podem assumir características estruturais, como freqüentemente ocorre, quando a .luta social transcende o nível da igualdade meramente iurídica, fazendo pender as forças sociais para este ou aquele lado, especialmente sob os embates mais profundos da luta sindical ou partidária.16 Está claro que esses conflitos estruturais no plano da sociedade civil, e que na maioria das vezes são absorvidos de uma forma ou de outra pelas decisões políticas e mediante o ordena­mento jurídico e sua "flexibilização" através da dogmática jurídica, têm suas raízes deitadas exatamente no âmbito da produção, fora do

14 "O consumo da força de trabalho, da mesma forma que o de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercadó ou da esfera de circulação" . ( . .. ) no "local oculto da produção em cujo limiar se pode ler: .. '.No admittance except on business' ". Cf. K. Marx, O Capital, vol. I , tomo 1, seção li, cap. IV, n. 3,

São Paulo, Abril Cultural, p. 144. 15 "A esféra da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determi­nados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridica­mente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo." Cf. K. Marx, ibidem, P- 145. 16 "Ocorre aqui, portanto, uma antinomia: direito contra direito, ambos apoiados na lei do intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais, decide a força." Cf. K. Marx, op. cit., ibidem, seção III, cap . VIII, n. 1, p . 190.

ESTADO E IDEOLOGIA 263

mercado e onde se realiza o valor de uso da força de trabalho, pois é ali que surge a identidade social da classe dos produtores onde a igualdade entre seus membros nasce precisamente da exigência do trabalho organizado sob a forma de "cooperação" do trabalhador coletivo. 11 Como nesses múltiplos conflitos o direito não pode fundar­se apenas em seu conteúdo ético, ele não dispensa, para sua validade e realização efetiva, o poder subjacente às relações jurídicas, que assim se qualificam exatamente por agasalharem a possibilidade de se exigir de forma legitimada o cumprimento das obrigações corres­pondentes mediante o exercício, se necessário for , da coação invocada ao Estado. Portanto, a garantia da eficácia das relações contratuais privadas assenta-se na virtualidade dessa invocação, a despeito de esta ser poucas vezes atualizada,, se considerarmos a totalidade dos "negó­cios jurídicos" emergentes num determinado período de tempo. Como a coerção oficial é a força legitimada pelo próprio Direito destinada a dobrar a possível resistência da vontade rebelde ao cumprimento do pactuado, seu monopólio concentrado em mãos do Estado define um complexo cautelar que permite destacar com segurança e certeza esse agente político afiançador do sistema social como um todo. Nesse sentido, a relação contratual privada encontra sua condição de possi­bilidade não apenas no acordo ético de vontades livres e na igualdade formal das partes, mas também, e principalmente, na garantia implícita

17 "Uma cada vez mais perfeita divisão do trabalho reduz objetivamente a posiçãp do trabalhador na fábrica a movimentos de detalhe cada vez mais ' analíticos', de man~ira que foge ao indivíduo a complexidade da obra comum .. . ( . • . ) ao mesmo tempo que o trabalho concertado e bem ordenado dá uma maior produtividade 'social' e que o conjunto da mão-de-obra de uma fábrica se deve conceber como um 'trabalhador coletivo', são os pressupostos do movi­mento de fábrica que tendem a fazer tornar 'subjetivo' o que é dado objetiva­mente." Depois, o que é que quer dizer neste caso objetivo? Para cada traba­lhador "objetivo" é que as exigências do desenvolvimento técnico estão de acordo com os interesses da classe dominante. Mas este encontro, esta unidade entre desenvolvimento técnico e os interesses da classe dominante é apenas um~ fase histórica do desenvolvimento industrial, deve ser concebido como transitório. O nexo pode desligar-se: a existência técnica pode ser pensada concretamente não só separada dos interesses da classe dominante, mas também unida com os interesses da classe ainda subalterna." Cf. Antonio Gramsci, "O Trabalhador Coletivo", in Obras Escolhidas, São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 256-257.

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264 ALAOR CAFF~ll ALVES

pela capacidade de invocação do Estado p~ra, no caso de inadimple­mento, determinar sua efetivação forçada, especialmente quando, no caso da contratação da força de trabalho pelo capital, se trata de relação social materialmente desigual e conflitiva. Assim, a coatividade ou possibilidade de exercer a coação, mediante a mobilização de recur­sos estatais, torna-se· essencial à configuração da relação contratual.18

O contrato entre partes iguais e livres (formalmente) pressupõe a necessária, permanente e implícita possibilidade de. evocação do Estado, o que result.a na sua presença submersa e constante para assegurar a vigência e execução da relação contratuaP9 A presença tácita e subiacente do Estado é, nessa relação, componente essencial da própria relação, visto que sem esse elemento constitutivo, a relação não seria dotada de recursos de poder territorialmente excludente para sustentá-la, se preciso for, sob a ameaça de sanções. Essa virtualidade pública do pacto aparentemente privado é elemento interno da relação que aparece desde o seu início e marca objetivamente os limites do pactuado pelas partes, isto é; do que podem decidir ou descumprir, orientando seus objetivos e expectativas com relação à validade,· eficácia e formas de exécução do contrato. Nesse sentido, a patente garantia

18 Dentro de uma perspectiva liberal, Goffredo Telles Junior esclarece que "a coatividade, ou seja, a possibilidade de coagir, não pertence à norma. Pertence ao lesado. E tanto pertence ao lesado que, se este não se quiser utilizar de sua faculdade de coagir, dela não se utilizará, e não haverá coação. ( ... ) todo ser humano tem a faculdade dç exercer coação sobre outro ser humano. Essa faculdade é inerente no homem, e não depende de norma jurídica. Mas o uso dessa faculdade pode ser lícito (jurídico) ou ilícito (injurídico). Tal uso só será lícito se o agente estiver autorizado, por norma jurídica, a usá-la. A coatividade pertence ao ser humano. Mas a autorização, para o uso lícito da coatividade, pertence à norma jurídica". Cf. Goffredo Telles Junior, O Direito Quântico, Ensaio sobre o Fundamento da Ó~dem Jurídica, São Paulo, Max Lirnonad, s.d., p. 270. Mas ... quem permite? Quem autoriza? Obviamen­te, o poder (da comunidade como um todo? da classe social hegemônica?) que,. ao permitir urna ação lícita, proíbe (não autoriza) outra, a ilícita: isso não será urna forma da coação ou uma possibilidade de a exercer? Para salvar a plena e substancial eticidade do jurídico, Goffredo Telles Junior esvazia o conteúdo de ,poder inerente ao próprio direito. 19 "A esta igualdade costuma-se dizer "formal", porque não obsta que a relação real que vincula os sujeitos chegue a ser extremamente desigual." Cf. Guillerrno O'Donnell, op. cit., I, p. 75.

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do Estado, com subliminar presença nas relações contratuais privadas, especialmente no que se refere à fiança da articulação contraditória das relações de produção no marco dos limites toleráveis do sistema capitalista, não é acrescentada de fora, posteriormente ou de modo circunstancial, àquelas relações, visto que, como iá foi dito, faz parte intrínseca, originária e constitutiva delas mesmas.20

Se no plano das relações jurídico-privadas a invocação efetiva do Estado, atrav~s de suas instituições, é circunstancial e até po.uco freqüente, a possibilidade dessa invocação, entretanto, é constante e essencial pàra a vigência daquelas relações.21 A possibilidade de invocação do Estado, exatamente porque é "possibilidade", consigna-se ao nível da compreensão lógica, não podendo como tal ser verificada direta e empiricamente. Ela, contudo, é tão real quanto a efetividade da invocação verificável no mundo dos fatos.22 Precisamente por esse aspecto é que se tem a impressão, na práxis cotidiana, de que o Estado comparece na sociedade civil como algo passageiro ou acidental, como se a sua intervenção viesse somente a dar-se por fora e posteriormente ao estabelecimento das relações sociais, apenas quando nelas fosse constatado que algo não deu certo. :f: também por esse ponto que passa a questão da distinção entre Estado e sociedade civil, especial­mente porque, no plano do senso comum, ele é confundido e identi­ficado inteiramente com as instituições concretas que o encarnam no mundo dos fatos empíricos, dificultando ou bloqueando exatamente a captação dos nexos indicadores de sua permanente presença subja-

~o Idem, ibidem, p. 75. ~ 1 "O mais comum, o normal, é a eficácia pacífica do direito, sem necessidade do recurso à intimidação ou à violência, para obrigar os homens a se sujeitarem às normas jurídicas". Cf. Goffredo Telles Junior, op. cit., pp. 266-267. 22 "O domínio da ciência não pode limitar-se ao campo da existência real ou histórica. Nl! realidade, a existência determinada sem nenhuma referência à possibilidade careceria de sentido, mesmo nos assuntos mundanos. A . ciência estuda o caráter ou determina as propriedades das coisas, sejam elas reais ou possíveis. Nesse sentido, a ciência, corno a arte e a atividade prática, nos libera da prisão do real e nos permite penetrar até a região do possível." Cf. Morris R. Cohen, Jntroducción a la Lógica, México, Pondo de Cultura Econó­mica, 1957, p. 32. Ver D. P. Gorski e P. V. Tavants, Lógica, México, Grijalbo, 1968, pp. 118-121.

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cente e virtual, invisíveis à verificação empírica imediata. 23 Vê-se por aí que o isolamento da sociedade política em relação às esferas civil e da produção econômica é mais aparente do que real. A circunstancial efetividade da coerção, eventual e singular, desprende-se de sua matriz essencial de potencialidade permanente, fragmentando ilusoriamente o todo social. A separação fenomênica entre a vida econômica e a vida política, entre a produção e a coerção, torna-se indispensável para manter e reproduzir, paradoxalmente, a unidade social e para orientar o foco da dominação em direção ao plano da hegemonia política e econômica, que disfarça ideologicamente as forças antagônicas emer­gentes da sociedade capitalista. Por um lado, a coerção física (ou extra­econômica) não é exercida pelo capitalista no processo de reprodução da vida material da sociedade burguesa; e isso é fundamental para que haja uma esfera de circulação mercantil de bens, serviços e utili­dades pautada pelos critérios básicos da liberdade e igualdade.24 Por outro, o constrangimento econômico (coerção econômica), indetermi­

nado e difuso por toda a sociedade, não exercido especificamente pelos

agentes capitalistas individuais ou pelo Estado, passa a ser a "força"

social decorrente do funcionamento da própria estrutura capitalista,

capaz de impor a necessidade de o trabalhador assalariado vender sua

23 "De certo modo a cotidianidade desvenda a verdade da realidade, pois a realidade à margem da vida de cada dia seria uma irrealidade transcendente, isto é, uma configuração sem poder nem eficácia; do mesmo modo, porém, também a esconde: a realidade não está contida na cotidianidade imediatamente , e na sua totalidade; está contida por certos aspectos determinados e imediata­mente." Cf. Karel Kosik, Dialéctica de lo Concreto, México, Grijalbo, 1967, p. 96. 24 Nesse sentido é clara a síntese de Hirsch quando acentua também a origem do destaque e relativa autonomia do poder político estatal em face da concor­rência e conflito dos capitais individuais: "Também o capitalismo se caracteriza pelo fato de que a violência coercitiva da burguesia, concentrada nos meios de repressão física, tem necessariamente, em função do modo social de exploração e de reprodução de classe, uma institucionalização separada dos burgueses indi­viduais. Ela toma uma 'forma' que a separa formalmente da classe dominante: esta separação do aparelho de coerção física com relação ao proletariado e à burguesia é o elemento fundamental da forma de dominação de classe burguesa". Cf.' :Joachim Hirsch, "Observações Teóricas sobre o Estado Burguês e sua Crise" , in Nicos Poulantzas (org.) , Estado em Crise, Rio de Janeiro, Graal , 1977. p . 88 .

ESTADO E IDEOLOGIA 267

força de trabalho, para qualquer que seja o capitalista.25 Isso acontece precisamente porque tal constrangimento econômico difuso decorre de dois fatores fundamentais e intimamente interligados que estruturam e organizam o funcionamento básico do sistema capitalista como um todo: (a) a propriedade econômica dos meios de produção por uma pequena parcela da sociedade, pela chamada classe dominante, e, por via de conseqüência, (b) a total separação daqueles meios de pro­dução em relação aos trabalhadores diretos, que, premidos pelas ne­cessidades vitais, são obrigados a "vender", mediante salários, sua força de trabalho aos proprietários dos recursos produtivos da socie­dade.20 Naturalmente, esse processo é também capaz de induzir, simul­taneamente, à convicção ideológica do fenômeno aparentemente .im­pessoal e natural daquela imposição, não-percebida claramente, e que possibilita ao agente social ter a ilusão de que é livre parà dispor daquela força de trabalho da forma que bem entender.

As questões acima referidas são de grande relevo para a com­preensão da realidade do Estado, ou seja, da relação entre essência e aparência, entre o possível e o concreto expresso empiricamente nas manifestações estatais. O conhecimento do real, já dissemos, supõe a articulação consciente de representações e relações, a integração da experiência em complexos relacionais que · excedem seu conteúdo atual concreto.· O saber real se apóia na experiência, porém exatamente para

~ r; A dominação não se exerce apenas no plano sócio-econômico geral, mas também, de forma mais concentrada, no interior das p·róprias unidades produ­tivas. Mais uma vez Hirsch comparece com sua clareza: "A relação entre 'a economia' e 'a política' na sociedade burguesa adquire então seu caráter particular pelo fato de que, por um lado, o aparelho de coerção física se reveste desta forma específica, e de que, por outro lado, a violência 'muda' se exerce a todo momento na relação direta entre capitalistas e assalariados no seio do processo de produção. Os aparelhos econômicos (empresas, unidades de produção) são também aparelhos de dominação ... " Cf. Joachim Hirsch,

ibidem, p. 88.

~H "A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a proprie­dade das condições da realização do trabalho. ( . . . ) O processo que cria a relação-capital. . . (é) um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados.· Cf. K. Marx, O Capital, op. cit., vol. I, tomo 2,

seção VIl , cap. XXIV, n. 1, p. 262.

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superá-la em direção daquilo que nela se mostra de modo incompleto. 27

O real verdadeiramente compreendido corresponde à captação do universal concreto pelo pensamento e à antecipação de possíveis expe­riências a seu respeito; isso quer dizer que consiste na capacidade para compreender as coisas como objeto de conhecimento precisamente em função das relações que as projetam para além de si mesmas.28

O que "é" só tem sentido pleno em razão do que "pode ser"; a apre­ensão do concreto apenas nos limites de sua própria contingência, de sua face empírica, leva-nos quase inevitavelmente aos vazios preenchí­veís pela ilusão ideológica. Por isso, o Estado compreendido em suas manifestações concretas, através de instituições jurídicas e organiza­cionais, visíveis e objetivadas na experiência cotidiana, só pode ser uma parte da realidade que aponta para além de si mesma, para a totalidade concreta, para as "conexões possíveis" que perfazem a ampli­tude de sua verdade. Se o Estado é tão somente identificado e igualado às suas próprias instituições, ao seu aparelho governamental, já não temos um momento de sua verdade; o que temos é a estratificação do conhecimento ao nível de um descritivismo empírico meramente ins­titucional que fornece a matriz para a elaboração ideológica mistifica­dora. Assim, o modo de apropriação do real pressupõe a necessária conexão dialética entre o fenômeno e a essência, entre o concreto obje­tivado na experiência e a trama das relações possíveis compreendida pela práxis teórica.29

A partir desse apoio teórico fundamental, podemos assinalar com maior clareza os pontos mais sensíveis para a compreensão da relação dialética entre o Estado e a sociedade civil. Em primeiro lugar, convém repisar que o capitalismo se caracteriza, entre outros fatores, pela nítida separação entre os trabalhadores assalariados e as condições

27 Nesse sentido, Kosik afirma que "a faticidade dos fatos não equivale à sua realidade, mas à sua fixada superficialidade, unilateralidade, imobilidade. A realidade dos fatos se opõe à faticidade dos fatos não porque seja uma realidade de outra ordem e, portanto, neste sentido, uma realidade independente dos fatos, mas porque é a relação interior, a dinâmica e o contraste da totalidade dos fatos". Cf. Karel Kosik, op. cit., p. 69.

28 Ver Jorge Millas, Jdea de la Filosofía: El Conocimiento, I, Santiago do Chile, Universitaria, 1969, pp. 19-20.

29 Ver, nesse sentido, Karel Kosik, op. cit., pp. 53-77.

ESTADO E IDEOLOGIA 269

objetivas do processo produtivo, especialmente os meios de produção. O trabalhador não possui, portanto, sob pena de se eliminarem as bases desse modo de produção, o controle dos recursos produtivos. Em segundo lugar, devemos frisar que esse sistema social também l'ressu­põe a ausência do {mediato controle político dos meios de coerção física (ou extra-econômica) por parte dos capitalistas, visto que em tal sistema o processo produtivo implica relações econômicas não­compulsórias, respaldadas pela esfera da circulação, onde predominam os valores da .liberdade e igualdade formais como condiçijo de possi­bilidade dos contratos privados. Esses pontos são de grande importân­cia, como vemos, para a captação da realidade da comunidade política e de suas relações orgâni<:as com a sociedade civil.

quanto à separação entre os capitalistas e os meios de coação física, cumpre considerar que a normalidade cetidiana das relações sociais no plano da sociedade civil conduz à ·idéia de uma total des­vinculação entre esta sociedade e o Estado, devendo este apenas operar casualmente, na eventualidade de algo falhar. Como já foi visto, essa idéia é ilusória, posto que a coatividade não está ausente das · relações q!le vinculam juridicamente capitalistas e trabalhadores. ~ preciso, ..; claro, não olvidar que as relações contratuais livres entre os diversos agentes sociais, no sistema capitalista onde o intercâmbio mercantil se tornou generalizado, pressupõem fundamentalmente a propriedade e controle privado dos bens objeto dos ajustes pactuados, bem como a contínua garantia de sua permanência nas mãos dos respectivos proprietários. Observe-se também que os bens que traduzem as mer­cadorias a serem trocadas no mercado diferem basicamente por sua natureza, especialmente os bens de capital, que podem ser concreta­mente dissociados de seu proprietário individual, e a força de tra­balho, que não pode ser divorciada do sujeito que a suporta, a não ser pela abstração operacional mercantil com o objetivo de possibilitar sua venda. Isso quer dizer que o uso dos bens de produção pode ser feito sem a presença direta de seu proprietário controlador; tal fato já não ocorre com a utilização da força de trabalho, que exige inapela­velmente a imediata presença pessoal do trabalhador vivo e concreto nas atividades produtivas. Nesse sentido, a relação contratual que vincula . o capital ao trabalho vivo não pode ser entendida da mesma forma de um lado e de outro. Encontramos, de um lado, um sujeito

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que dispõe livremente de seus bens e quer a garantia de que eles não lhe serão expropriados (garantia da propriedade) e, de outro, a exis­tência de um sueito, o produtor direto, que não dispõe da força de trabalho senão com a disposição de seu próprio corpo, de sua carne e de seu espírito, e quer a garantia de que não será aviltado e exaurido em suas próprias forças vitais: instaura-se, aqui, uma profunda contra­dição entre os homens, entre os poucos que possuem bens materiais perdíveis e os demais, que não possuem outro bem senão o próprio sangue, a própria vida.3° Como as relações contratuais, nesses termos, compreendem interesses radicalmente diferentes -----: visto que a força de trabalho, sendo 'mercadoria' que pensa e tem vontade, organiza-se e resiste ao capital 31

-, está claro que a possibilidade da ação coerci­tiva estatal deve estar sempre presente para o caso de as estruturas hegemônicas da sociedade não serem suficientes na contenção dos anta­gonismos sociais aflorados pelo movimento contraditório entre o capital e o trabalho. Assim, a possibilidade de se exercer a coação legítima, através das instituições estatais, está sempre presente, mesmo nas relações privadas, como condição de sua garantia e vigência no âmbito de um território determinado.

Entretanto, e para finalizar, convém aprofundarmos aqui uma distinção para evitar equívoco. Nas sociedades pré-capitalistas, como já vimos, o produtor direto, servo ou escravo, encontra-se originaria­mente dentro de relações assimétricas de dominação política e de exploração econômica, das quais não pode fugir, cujos vínculos são caracterizados pela situação de privilégios e deveres estratificados numa hierarquia social onde cada um tem sua posição marcada desde o

ao A esse respeito é significativa a abordagem crítica de Gilly, apontando uma contradição imanente à produção capitalista: ·a de que o vendedor da força de trabalho é, por definição, um homem livre (se não, não poderia vendê-la); e que o comprador dessa mercadoria, para dispor de seu valor de uso - o trabalho - deve dispor da vontade do homem livre como sua • coisa" durante o tempo em que lhe foi vendida essa força de trabalho. Sendo homem livre indivisível, entra na produção como não-proprietário de sua força de trabalho (que acaba de vender), mas também como homem livre que pensa, sem cujo pensamento sua força de trabalho não pode converter-se em trabalho, isto é, em valor de uso para o capitalista que a adquiriu" . Cf. Adolfo Gilly, Sacerdotes e Burocratas, Introdução ao Socialismo Real, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 34 . 31 Idem, ibidem, p. 35.

ESTADO E IDEOLOGIA 271

nascimento e com limitadíssimas chances de superar. Isso quer dizer · que as relações de produção já estão marcadas, desde o início, por relações de dominação política; o escravo ou o servo são levados direta e compulsoriamente a produzir e entregar o excedente econô­mico ao senhor. Tal processo não ocorre no modo de produção burgue­sa. Nesse modo de produção, o trabalhador é originariamente livre para vender sua força de trabalho; ele não é conduzido de forma coercitiva, sob o látego da violência física visível, seja pelo capitalista, seja pelo Estado, a estabelecer o vínculo contratual de trabalho. Por que, então , o trabalhador assalariado se move a vender sua força de trabalho ao capitalista? Exatamente porque não mais controla as condições objetivas da produção, ·visto que, como já foi por nós ana­lisado, ele se encontra separado dos meios de produção e demais recursos produtivos. Carente desses meios, e para poder sobreviver, o trabalhador não tem outra forma de agir economicamente senão a de "ofertar" sua força de trabalho a quem pode comprá-la e utilizá-la, ou seja, ao capitalista. Assim, ele vende sua força de trabalho não porque para isso seja compelido violenta e coercitivamente, por este ou aquele sujeito social concreto, mas porque há um forte constrangimento econômico disseminado de forma difusa por toda a sociedade capitalista, decorrente precisamente da separação entre o trabalhador e os meios de produção, que o "obriga" a tornar-se um assalariado. Vê-se, por­tanto, que a compulsão para o produtor assalariado entrar na relação contratual não aparece imposta por ninguém, levando à ilusão de que ele o faz por livre e espontânea vontade, especialmente quando se toma em conta a relação social contingente entre sujeitos individuais concretos. Isso quer dizer que o trabalhador assalariado, sob o ângulo da classe social a que pertence, não é livre para não dispor de sua força de trabalho, posto que, se assim o fizer, não sobrevive, mas é

livre para dispô-la, enquanto sujeito individual concreto, a favor deste ou daquele capitalista singularmente considerado. Nesse sentido, a lei da estrutura social burguesa sobrepõe-se às relações concretas, singu­lares e contingentes; entretanto, se levarmos em conta apenas essa contingência, fora do determinismo social dialético (não natural), fatal­mente cairemos no plano das ilusões ideológicas mistificadoras da realidade. Isso nos permite considerar que a ausência de coação direta do capitalista singular e de compulsão política estatal, para obrigar à

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venda da força de trabalho, é precisamente a condição indispensável à formação da paradoxal e objetiva aparência de igualdade e liberdade nas relações contratuais privadas. Aqui, portanto, já se percebe com maior clareza a razão da dissociação entre a coerção física (extra­econômica) e a coerção econômica, entre a violência coativa oficial e o constrangimento material difuso, entre o poder político e o pro-

-cesso econômico, enfim, entre o Estado e a sociedade civil.

Estado ~ relação estrutural capitalista

Se o constrangimento econômico, ·de caráter indeterminado e difuso, presente no contexto social burguês,é condição de possibilidade para levar o trabalhador assalariado a vender sua força de trabalho, com fundamento na separação entre ele e os meios de produção, a

coercibilidade extra-econômica, de caráter jurídico-político, comparece na vigência do contrato de trabalho e nas demais relações com o capital (paralizações coletivas, por exemplo), como condição de pos­sibilidade desse pacto e dessas relações, enquanto exprime a caução permanente de sua validade e eficácia dentro do sistema. Esse aspecto é extremamente importante p~ra configurar o Estado como instância r~lativamente autônoma e dotada de uma realidade específica que se '!lanifesta, através de suas instituições e aparelhos, como entidade ~f!stacada e dissociada da comunidade civil, na forma de um agente s~cial que não se confunde com os demais sujeitos sociais específicos. 1

1 Essa entidade, é claro, se . caracteriza como uma forma mistificada das relações desiguais do sistema. Nesse sentido, Poulantzas considera que, em suas relações com as estruturas objetivas do Estado, os interesse econômico-sociais das classes ou frações de classe dominantes ·não estão transpostos sob sua forma 'imediata'

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Com efeito, se o capitalista não exerce o controle direto da coação extra-econômica, embora dela tenha necessidade para a garantia de seus vínculos com o trabalhador assalariado, outra forma não há senão a de aparecer um terceiro agente social, sob a figura concreta do Estado, capaz de concentrar e exercer a supremacia coercitiva sobre um território excludentemente .delimitado. Entretanto, é bom frisar, o controle monopolizado da coerção pelo Estado está potencialmente presente nas relações sociais reais que vinculam assimetricamente os agentes sociais, pronto para ser por eles acionado na hipótese de alguma falha; nesse sentido, o Estado representa a garantia constitutiva daquelas mesmas relações, na exata forma como efetivamente se dão. Isso significa que ao Estado cumpre precisamente afiançar, como razão de si mesmo, e sob a forma da igualdade abstrata, a relação social produtiva burguesa, a relação estrutural capitalista, que de modo essencial compreende o vínculo assimétrico e contraditório entre capi­talistas e trabalhadores assalariados.2 Por isso, o Estado não protege diretamente este ou aquele sujeito social concreto, seja capitalista, seja produtor assalariado, como indivíduo ou como classe social, em detri­mento de outro, a não ser justamente para manter e reproduzir a relaçãá social em função da qual aqueles sujeitos sociais mesmos se constituem. 3 Portanto, o Estado considerado de modo essencial não

de interesses privados senão que devem revestir uma forma mediatizada 'verda· deiramente política' e apresentar-se como encarnando o interesse geral de toda a sociedade". Cf. Nicos Poulantzas, Sobre el Estado Capitalista, Barcelona, Laia, 1974, p. 83. Ver, também, Gianfranco Poggi, A Evolução do Estado Moderno, Rio de Janeiro, Zahar, 1981 , pp. 125-129. 2 Ver N. Poulantzas, ibidem, pp. 82-89. Gruppi trabalha uma imagem a respeito dessa relação complexa: "Esses cidadãos, todos iguais diante da lei, são, na verdade, uma abstração: você, operário, como cidadão é igual ao seu patrão; mas, quando você entra na fábrica, não é mais igual ao patrão, antes pelo contrário, você deixa de ser um cidadão. ( ... ) Essa igualdade é forjada criando uma figura formal jurídica, abstrata (a do cidadão), que cinde a unidade do homem, a unidade entre o homem no trabalho e o mesmo homem diante da lei. O cidadão é uma hipótese jurídica, uma forma jurídica". Cf. Luciano Gruppi, Tudo Começou com Maquiavel, 4." ed., Porto Alegre, L & PM, 1983, p. 34. 3 "A liberdade e a igualdade formais, necessárias à reprodução do capital, devem ser protegidas por um poder organizado exteriormente aos capitais, tanto contra os que querem fazer disto uma liberdade e uma igualdade reais, isto é, abolir a relação capitalista, como contra os que querem destruir a igualdade

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garante propriamente o capitalista como indivíduo ou como classe, nem ampara o trabalhador da mesma forma; o que faz, fundamentalmente, é assegurar a permanente reprodução e ampliação das relações estru­turais burguesas que exatamente constituem os sujeitos sociais na qua­lidade de capitalistas e de trabalhadores assalariados. 4 B preciso su­blinhar, entretanto, que ourocessos pelos quais o Estado assegura e~ relações estruturais são múltiplos e extremamente diferenciados (elaboração, interpretação e aplicação das leis, conciliação e pacificação, pactos sociais, intervenções, atividades e funções públicas, racionali­zação e organização econômica, etc.), incluindo principalmente a dimensão ideológica; mas não se pode perder de vista, jamais, a última instância da ação estatal, sempre representada pela supremacia no controle legítimo dos meios de coerção física ou de violência aberta -coerção extra-econômica de caráter jurídico-político - numa sociedade territorialmente delimitada.11

Nesse contexto, é preciso pôr em relevo o fato paradoxal de o Estado ser um aspecto distinto e, ao mesmo tempo, inerente à própria relação de produção capitalista, em razão do caráter antagônico espe­cífico dessa relação. Isso significa que a relação social básica burguesa não existe primeiro como tal para depois exigir a presença da comu­nidade política." Com efeito, a condição de possibilidade da relação

e a liberdade mesmo formais, o que implicaria também abolir a relação capitalista. O Estado deve assim permitir a reprodução da relação de produção capitalista, e para fazê-lo deve se opo~ aos trabalhadores, mas também aos capitalistas individuais." Cf. Pierre Salama, ·Estado e Capital: O Estado Capita­lista como Abstração Real", in Trabalho e Dominação, Estudos CEBRAP, São Paulo, Editora Brasileira de Ciência, 1980, p. 128. 4 Ver, nesse sentido, Guillermo O'Donnell, ·Anotações para uma Teoria do Estado", I, in Revista de Cultura e Política n.• 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 77. ~ Ver Max Weber, Economía y Sociedad, I, 2.' ed., Bogotá, Fondo de Cultur& Económica, 1977, p. 43-44. u A base desse paradoxo é assinalado por Marx da seguinte maneira: "A vida material dos indivíduos, que de maneira alguma depende de sua simples 'vontade', seu modo de produção e a forma de intercâmbio, que se condicionam mutuamente, constituem a base real do Estado, e se mantêm como tais em todas as fases em que continuam sendo necessárias a divisão do trabalho e a propriedade privada, com absoluta independência da vontade dos indivíduos. E estas relações reais, longe de serem criadas pelo Estado, são, pelo contrário,

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social de produção mercantil é representada pela organização política estatal, que a um só tempo manifesta a garantia de reprodução daquela relação antagônica por essência, sob a forma de capital, e a dissimula sob a forma de "interesse geral", destacado dos interesses específicos e concretos dos sujeitos sociais por ela mesma constituídos. Por esse modo, o Estado aparece como 'um terceiro sújeito, por força mesma do caráter antagônico das relações sociais básicas da sociedade mercantil­industrial, qualificado como forma essencial e inafastável da organiza­ção política desta sociedade, sem que isso signifique que seja um instrumento utilizado intencionalmente para favorecer esta ou aquela classe social. 7 O Estado já tem sua característica de Estado capitalista tão só pelo fato de ser Estado, ou seja, uma forma de organização política que apenas pode existir e ter sua razão de ser em função da concentração e monopolização do poder político dissociado da instância civil e econômica. Ele aparece como fundamento e garantidor dà unidade social, organizada e polarizada a partir exatamente de uma sociedade estruturada através de elementos contraditórios antagônicos. Para o efeito de manter e perpetuar as relações capitalistas de explo­ração econômica e de sujeição, a organização estatal promove a indis­pensável unidade perdida a nível da sociêdade civil, aparecendo como condição mesma de possibilidade de reprodução daquelas relações assimétricas e antagônicas, sob as formas mistificadas e mistificadoras da "ordem" e do "interesse geral". 8 Nesse sentido, apesar de se ali­mentar substancialmente das contradições e antagonis~ós que agitam a sociedade civil e a esfera da produção - expressão da complexidade das relações econômicas estruturais e da luta de classes -, o Estado representa o momento da unidade social aparente, expressa em apare­lhos e instituições relativamente autônomos e objetivados não só em relação à classe dominante como também em face da contradição capital-trabalho. Por isso e para que possa apresentar-se como uma

o poder criador dele". Cf. K. Marx e F. Engels, La ' Jdeología Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, p. 386. 7 Ver, nesse sentido, o ensaio de Ralph Miliband, "Marx e o Estado", in Tom Bottomore (org.), Karl Marx, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 127-147. 8 Ver, nesse sentido, Yves Leclercq, Teorias do Estado, Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 53-56. Ver Pierre Salama e Jacques Valier, Uma Introdução à Economia Política, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1975, pp. 175-178.

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força social "neutra", de earáter público, o Estado aparece e opera como um gestor não-capitalista que assegura a unidade das relações de produção burguesa, ou melhor dito, que sustenta e afiança o capital como relação social, · e não os capitalistas individuais proprietários das

unidades discretas de capitaJ.9 A proteção do Estado com respeito às relações de produção capi­

talista, razão de sua existência, pressupõe igualmente o amparo de todos os agentes sociais constituídos como classes exatamente em vir­tude daquelas relações, sejam eles capitalistas ou produtores assalaria­dos. Isso significa que o Estado não é um poder instrumental, utilizado funcionalmente para manter a sujeição dos dominados aos desígnios da classe hegemônica.10 Se assim fosse considerado, o Estado passaria a ser um aparelho externo às relações sociais, vindo '~de fora" para exercer o controle intencional sobre a sociedade civil e o processo produtivo que lhe seriam, por isso mesmo e em última análise, intei­ramente · estranhos. Desse modo, o Estado é o garante da burguesia enquanto classe, a par de sê-lo também, e da mesma· forma, do trabalhador assalariado. Ambos fazem parte da mesma relação social de_produÇão, a relação capitalista, de tal sorte que, como já vimos antes, a eliminação de um determinaria o inevitável desaparecimento da outra, destruindo-se a própria relação constituída por essa unidade

11 Essa· afirmação do Estado como um gestor não-capitalista, submetido apa­rentemente a uma lógica não-mercantil, destaca apenas o seu papel como con­dição política para a manutenção do sistema como um todo. Nesse sentido, ele se caracteriza como um poder ·organizado e independente, face aos capitalistas individuais, que tem em vista a reprodução das relações de produção capita­lista no seu conjunto, e a existência do capital enquanto relação social, para além das ambições individuais de 'um' capitalista, que poderia tender a extor­quir, até os últimos limites físicos, a força de trabalho operária.". Cf. Helena Hirata, ·O Estado como Abstração Real", in Trabalho e Dominação, op. cit., p. ·163. "O Estado não defende todos os interesses capitalistas empiricamente constatáveis; ele age muito mais como um 'capitalista coletivo ideal' (Engels) ... • Cf. Jean-Marie Vincent, "O Estado em Crise", in Nicos Poulantzas (org.), O Estado em Crise, Rio de Janeiro, Graal, 1977, p. 78. J o "Fqrma de existência social do capital, o Estado capitalista não é nem instrumento das classes dominantes, nem Estado-sujeito: seu grau de autonomia encontra fundamento no fato de exprimir os interesses do capital 'total', podendo mesmo ir contra os interesses dos capitalistas individuais." Cf. Helena H ir ata,

op. cit., p. 163 .

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dialética da formação social capitalista, com a conseqüente extinção da organização política estatal garantidora dessa mesma relação.U Por isso se pode observar que as decisões interferentes dos órgãos do poder estatal se ampliam ou se reduzem conforme o grau de violência do con­flito entre as classes sociais, ou seja, conforme a situação de equilíbrio instável ou dinâmico que as forças políticas do conflito guardam entre si.12 A ausência do Estado, como um terceiro sujeito suficientemente articulado e decidido, como órgão que traduz a hegemonia e as relações dinâmicas de poder das classes sociais, levaria a tensão conflitiva a um inevitável ponto de confronto crítico em que todo o sistema de relações sociais dentro dos quadros de vigência capitalista seria destruído. Por outro lado, é preciso também assinalar que, mesmo na presença do Estado, se a disparidade de forças entre as classes sociais em conflito for além de um certo nível, pode acarretar, pelo seu desenrolar espon­tâneo, a destruição de todo aquele sistema de relações sociais. Nesse sentido, o poder estatal interferente, ao assegurar a condição de exis­tência ou de sobrevivência da classe menos favorecida, está, em certo sentido e de modo perverso, protegendo ao mais forte precisamente contra as funestas conseqüências de sua própria força . Isso ocorre, por exemplo, com a legislação de proteção ao trabalhador assalariado nos Estados capitalistas, a qual exprime a ambigüidade daquele processo, visto que não só é o resultado da pressão do movimento obreiro, como também é a condição para limitar e resguardar os capitalistas dos exageros de sua própria força econômica, comprometedores das relações sociais que os constituem como classe orgânica e vitalmente vinculada à dos trabalhadoresY

Entretanto, o que precisa ficar claro é que a proteção ao produ­tor assalariado, feita pelo Estado, dentro de condições e circunstâncias determinadas, realiza-se no marco da própria relação assimétrica ca­pitalista, fundamento da expropriação da mais-valia, exatamente para

11 As análises sobre o caráter constitutivo das relações em face de seus termos e da expressão deste princípio dialético em face das relações sociais de classe foram feitas nos capítulos 2 e 5 deste trabalho. 12 Ver, nesse sentido, Joachim Hirsch, "Observações Teóricas sobre o Estado Burguês e sua Crise" , in O Estado em Crise, op. cit., pp. 89-91. 13 Ver Zygmunt Bauman, Fundamentos de Sociología Marxista, Comunicación 27, Madri, Alberto Corazón Editor, 1975, pp. 79-81.

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mantê-lo e recriá-lo como classe subordinada para continuar a vender sua força de trabalho e, assim, reproduzir aquela relação garantida pelo Estado. Destarte, o Estado não assegura as condições de repro­dução da força de trabalho, mediante normas restritivas impostas ao capital, assistência social, cultural e técnica, promoção de bens de consumo coletivo, proteção à saúde, previdência, etc., senão precisa­mente para garantir a recriação permanente e ampliação das relações ,sociais de produção burguesa das quais é ele a condição de possibi­lidade e, ao mesmo tempo, produto.14 Ao fazê-lo, o Estado também se reproduz. Nesse processo, ele toma a si a tarefa de promover o consUmo social de bens, distribuídos coletivamente em função de seu valor de uso, além de exercer, como sua última razão, o controle cen­tralizado dos meios de coerção num certo âmbito territorial, o que o torna um não-capitalista aparentemente descomprometido com o jogo das forças sociais, sem outro objetivo a não ser o de garantir a p_er­manente reposição dos ager!Jes çSJletivos enquanto classes sociais. Ao s~ colocar como expressão de um interesse mais abrangente que o das classes sociais de cuja relação contraditória se -origina, o Estado apa­r'!E!. mistificado ~ gma torça nez1_tra ou igualitária, pairando sobre ~ciedade ci}!_il para o resguardo do bem-comurrJ. 15 O Estado apa­rece, ·então, sob a forma de um terceiro sujeito articulador das classes, como mediãÇãüindisEensável para manter as tensões sociaíSê'õi. tiro nível de resistência comP._att:~ C9.,1Jl ~. conservação e_guilibrada de todo ~s~~oci~ capitalista. Desse modo, além de ser um sujeito que monopoliza a coerção oficial, o Estado aparece como uma mediação articuladora e consensual de sujeitos sociais, levada a efeito através k_!nsti.tuiç.õe;_~bjeti~adas--e-.pelas _~estLQ.._p_oder _he~~ô­ni_co da ~lasse dominante.16 Em última análise, o Estado emerge como

14 Ver Octavio lanni, Dialética e Capitalismo, Petrópolis, Vozes, 1982, pp. 59-71 . Ver também Alberto Cignolli , Estado e Força de Trabalho, Introdução à Política Social no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1985. Ver Gilberto Mathias e Pierre S~lama, O Estado Superdesenvolvido (Ensaios sobre a Intervenção Estatal e sobre as Formas de Dominação no Capitalismo Contemporâneo), São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 50-88. 1 " Ver Ç!_aus Offe, "Dominação Política e Estruturas de Classe: Contribuição à Análise dos Sistemas Sociais do Capitalismo Tardio", in Estado e Capitalismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 107-139. lfi Ver, nesse sentido, G_~IÍ!!ermo O'Donnell, op. cit. , p . 78 .

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um sujeito concreto não-capitalista, representado de forma imediata pelo aparelho estatal, uno, indiviso, localizado e visível, revestido de atribuições coatoras e promotoras do interesse geral, figurando como agente externo às partes diretas da relação social da qual ele mesmo é também produto. Exatamente porque aparece como o que não é, como unidade da vida social, como . um representante homogêneo da sociedade no seu todo - visto que todos os cidadãos estão nele repre­sentados -, o .Estado legitima politicamente o uso da coerção ou da violência consentida, que deverá inexoravelmente incidir sobre as manifestações conflitivas ou críticas do seio social, normalmente tidas como "patológicas" ou desviantes dos legítimos valores da comuni­dade:17 Sob esse signo, portanto, a sociedade estatal opera o disfarce indispensável à reprodução das relações assimétricas e antagônicas constitutivas do sistema social capitalista, ocultando hegemonicamen­te, de um lado, a divisão social em classes e, de outro, o predomínio econômico e político de uma classe sobre outra.

A visibilidade ostensiva do Estado, mediante a operação e fun­cionamento de suas instituições e aparelhos, é precisamente . o que impede ao senso comum a compreensão da exata dimensão de suas relações subjacentes com a sociedade civil. Sua projeção concreta no mundo dos fatos cotidianos não permite mostrá-lo em toda a sua transparência, motivo pelo qual ele aparece não como um conjunto de relações de do1f!inação, enraizado por toda a sociedade, mas como um fato singular sobreposto às relações sociais, como um "fetiche" com poder próprio e transcendente. 18 Na medida em que o Estado é .

17 "A idéia de que o Estado representa toda a sociedade e de que todos os cidadãos estão representados nele é uma das grandes forças para legitimar a dominação dos dominantes". Cf. Marilena Chaui, Cultura e Democracia, o Discurso Competente e Outras Falas , São Paulo, Moderna, 1980, p. 28. 1 8 A hipóstase mistificada do Estado, sob a forma de um fetiche, com vida própria e "coisificada" na feição de suas instituições e aparelhos, tem sua analogia_ no caráter fetichista da mercadoria. Sob este último aspecto, Marx considera que "a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo

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confundido com apenas uma parte de sua manifestação, ele é "coisi­ficado" na materialidade imediata de sua organização burocrática vi7

sível, ao mesmo tempo que dissimula as relações subliminares de que é originário. Desse fenômeno resultam, como conseqüência, de um lado, a ilusão de que as relações privadas emergentes da comunidade civil são apenas de caráter econômico ou sócio-cultural, e, de outro, a aparência de que a ação estatal incide sempre a ·partir do exterior, com esporádica intervenção no âmago daquelas relações. O Estado e a sociedade, o público e o privado, aparecem cindidos, como se fos­sem estranhos um ao outro; esse corte torna o Estado opaco e recria, na permanência de sua ilusao, o obstáculo destinado a ocultar as co­nexões reais da exploração econômica e da sujeição política. B preciso notar, entretanto, que o fetiche estatal, exatamente como o da mer­cadoria no âmbito das relações mercantis, não se consuma apenas no plano da subjetividade coletiva, visto que tem fundamento objetivo e histórico para esse efeito.19 Tal fundamento está, por um lado, con­signado em razão de o Estado ultrapassar sua especificidade coativa e representar uma fronteira limitativa do conflito de classes, apare­cendo como termo negativo desse processo, na medida em que não

da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas·, que mantêm relações entre si e com os homens". Cf. K. Marx, O Capital , São Paulo, Abril Cultural, i983, vol. I, 1, t.•, t. 1, seção I, cap: I, n. 4, p. 71.

19 Godelier exprime no plano do mundo mercantil, o conteúdo "alienado" e objetivo dessa relação: "não é o homem que se engana sobre a realidade, é a realidade que o logra, aparecendo necessariamente sob uma forma que a encobre e a apresenta ao contrário à consciência espontânea dos indivíduos que vivem no seio do mundo mercantil. ( . . . ) O caráter de fetiche das mercadorias não é, pois, resultado da alienação das consciências, mas resultado nas consciências e para elas da dissimulação das relações sociais em e sob suas aparências. O fetichismo da mercadoria não é o produto singular, subjetivo de uma história individual, mas o produto geral e objetivo de uma história coletiva, a história da sociedade. Já que seu fundamento existe fora da consciência, na realidade objetiva de relações sociais históricas determinadas, este fetichismo só pode desaparecer com o de~parecimento destas relações sociais". Cf. Maurice Gode­Iier, "Economia Mercantil1 Fetichismo, Magia e Ciência", in Antropologia: Godelier, São Paulo, Atica (Grandes Cientistas Sociais), 1981, pp. 67-68. Ver, também, Jean Lojkine, O Estado Capitalista e a Questão Urbana, São Paulo, Martins Fontes, 1981, pp. 84-91.

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permite que se transponha o marco da elasticidade possível do sis­tema capitalista. Esse limite negativo não se estabelece a priori; ele não é fixado senão em função da própria dinâmica da luta de classes e das frações de classes. Por essa razão, "a natureza e o caráter do Estado na sociedade capitalista, assim como as funções que em decor­rência são desempenhadas pelo aparelho do Estado, não constituem um dado absoluto. Q Estadq_não satisfaz os requisitos colocados pela cQntinuidade e pela renovação da dominação burguesa porque, sendo o que é, tem que satisfazê-los; ao contrário de ser o que é, antes de m!!is nada, ele se torna o que é por intermédio do processo diuturno de ser feito e refeito nisso ou naquilo, vale dizer, por intermédio do processo político que, confirmando ou alterando a correlação geral de fo!ças entre as classes, frações e camadas de classe, objetiva-se num ~stado".20 Por outro lado, aquele fundamento objetivo do fetiche es­tatal também é assinalado em razão de o Estado ser o sujeito constru­tor do universo público-estrutural da coletividade, enquanto prepara­dor e implementador das medidas públicas de condicionamento do meio sócio-econômico geral para viabilizar o movimento de reprodução dos capitais privados. f: através desses aspectos que o Estado, além de sua função específica de controle dos meios de coerção, exerce a função de organizador e articulador da sociedade como um todo. 21

Numa primeira linha, o Estado, sob a tensão da luta de classes, acautela os interesses gerais dos segmentos dominantes, "protegen­do-os" das tendências socialmente destrutivas de seu processo repro­dutivo, as quais, se deixadas ao livre jogo rla competição entre os capitalistas individuais, ficariam claramente explícitas em sua violên­cia originária e neutralizariam a eficácia da ideologia dominante, com inevitável decadência e destruição do poder hegemônico do capital. Essa é a função restritiva ou limitativa de sua ação que, por demanda conflitiva das classes dos trabalhadores no marco da auto-preservação, impede o poder da classe hegemônica de apagar-se afogado em sua

20 Cf. CJ!rlos Estevam Martins, Capitalismo de Estado e Modelo Político no Brasil, Rio de J aneinJ, Graal, 1977, p. 46 (grifamos). Ver, também, Didier Motchane, Claves dei Socialismo, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1978, pp. 69-76. 21 Ver, nesse sentido, Çuillermo O'Donnell, op. cit., p. 80 .. Ver, também, no plano das questões urbanas, Manuel Castells, "Crise do Estado, Consumo Coletivo e Contradições Urbanas" , in O Estado em Crise, op. cit., 159-188.

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própria força; o Estado, neste caso, representa o limite negativo dos possíveis "exageros" dos membros singulares das classes ou frações de classes dominantes, limite este configurado pela permanente oposição das forças sociais subalternas.22 Numa segunda linha, o Estado tam­bém assume as tarefas complementares e suplementares do condicio­namento público-estrutural, mediante a organização e racionalização da ecÓnomia e a realização dos investimentos sociais indispensáveis à reprodução do sistema capitalista. Neste sentido, o Estado emerge como único sujeito positivo ocupado com os problemas "gerais" da coletividade, propiciando o condicionamento do contexto físico-terri­torial e social para viabilizar a recriação continuada da força de tra­balho e a acumulação ampliada dos capitais privados. Por essas linhas de enfoque, o Estado se projeta aparentemente como algo externo às relações privadas, como um não-capitalista, submerso numa lógica específica que não é aquela que se orienta para a extração imediata da mais-valia. Como limite negativo ou como realizador do contexto social, o Estado oferece concretamente a aparência de um sujeito neutro, superior às demandas específicas das classes sociais, podendo ser experimentado até mesmo pelos indivíduos pertencentes aos seg­mentos dominantes como algo externo e adverso. Contudo, é bom que se observe, os limites negativos não são impostos a partir de uma força misteriosa, de caráter funcional, destinada à auto-proteção dos capitalistas individuais contra sua própria ambição; eles são o resul­tado da pressão e da luta das classse subalternas, as quais fazem parte constitutiva das relações capitalistas de · produção e têm interesses coincidentes e ao mesmo tempo opostos e contraditórios no interior dessas mesmas relações.23

22 "A aparência de neutralidade do Estado acima das classes, ponto central da integração ideológica, não reside entretanto apenas nesta determinação de forma geral; ela supõe também que o Estado leve em conta, em certa medida, os interesses materiais das classes dominadas e exploradas. ( .. . ) A possibilidade de impor tais 'sacrifícios' como interesse da classe dominante em seu conjunto contra os interesses limitados dos capitalistas individuais repousa, ela mesma, na existência do Estado formalmente separado desta classe." Cf. Joachim Hirsch, op. cit., p. 92. Idem, ibidem, pp. 92-99. Ver, também, Pierre Salama, op. cit., 126-135. 2•3 Ver, nesse sentido, Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Martins Fontes, 1977, pp. 119-133 .

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Vê-se, portanto, que a experiência comum dos mecanismos es­truturais visíveis pelos quais o Estado providencia a concretização de

. suas funções coibitivas, promocionais e coercitivas, dando-lhe relativa autonomia, é a responsável pela convicção de sua· aparente exteriori­dade na práxis cotidiana. ~ por isso que, ao levar a termo suas atri­buições de garantidor das relações capitalistas de produção, o Estado toma a aparência de um sujeito hipostasiado, encarnando uma racio­nalidade universal que não se pode conter nos limites das perspec~ivas desta ou daquela classe social particular.24 !_sso ~nifica Q.ue_Q_ Estado não é experimentado senão como uma forma de organização política destinada a cobrir uma lógica mais abrangente do que a dos capita­l!stas individuais, isto é, deve aparecer como um não-capitalista, do­tado de uma racionalidade específica exterior que compreende também qs interesses qas classes subalternas. 25

~ preciso ainda levar em conta que o controle e a organização da sociedade pelo Estado pressupõem também a manipulação cons­ciente dos procedimentos criadores de normas de conduta típica, de

· forma positivada, com a estratificação de instituições jurídicas abstra­tas que prescindem até :::erto ponto, para sua aplicação, das condições reais dos sujeitos vinculados. Na relação contratual, por exemplo, entre o capitalista e o trabalhador assalariado, as partes se comportam como sujeitos de direito, segundo papéis previamente definidos e in­dependentemente das posições de classe, e sé enfrentam nos limites de suas respectivas forças, ou seja, em função da quantidade de mer­cadorias que possam reciprocamente se ofertarem (força de trabalho e dinheiro sob a forma de salário). Isso induz à igualdade formal e abstrata dos sujeitos sociais na relação contratual estabelecida livre­mente e afiançadtt pelo Estado. Naturalmente, em razão dessa "igual­dade" formal que caracteriza a relação jurídica entre as partes, entre capitalista e trabalhador assalariado, a retribuição sob a forma de salário conduz à falsa aparência de que mesmo o mais-trabalho ou

24 Ver Ralph Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista, Rio de Janeiro, Zahar, 1972, pp. 147-178; Jürgen Habermas, A Crise de Legitimação no Capi­talismo Tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 81-89; Claus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, pp. 216-233. 25 Ver, nesse sentido, <?uillermo O'D_Q!IDell, op. cit., p. 81.

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trabalho não pago aparece como trabalho efetivamente pago. Por isso, Marx considera que "sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a verdadeira relação e mostra justamente o contrário dela, repousam todas as concepções jurídicas tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as pequenas mentiras apo­logéticas da Economia vulgar" .26 Já observamos neste trabalho que a liberdade contratual é apenas aparente, ao nível da expressão feno­mênica, visto que se perfaz tão só em relação à escolha que o pro­dutor assalariado pode fazer, dentro de um certo tempo, quanto à venda de sua força de trabalho para este ou aquele capitalista indi­vidual, mas não em dar-lhe a opção de não ofertá-la por longo período de tempo no mercado de trabalho; assim, o trabalhador não tem liber­dade de não contratar para além daquele parco período de tempo para o qual possui meios próprios de subsistência. De qualquer modo, aque­le fenômeno da positivação normativa, condicionando um direito for­mal-racional, um ordenamento jurídico impessoal, contribui sobrema­neira para a configuração do Estado como um fator de neutralidade externa, não confundido com os capitalistas, nem com os trabalha­dores. O direito passa a ser o elemento de intermediação abstrata e formal entre sujeitos sociais descarnados; "iguala" nesse nível de ra­cionalidade decantada os economicamente desiguais, ao mesmo tempo que disfarça e oculta as relações contraditórias subjacentes na so­ciedade.27

Nesse mesmo sentido, fragrnentam-se as relações sociais nas es­feras d_9 público e do priva~o. entre as instituições: estatais reguladas pelo direito público e os agentes sociais particulares ocupados nos processos econômicos e culturais da comunidade civil, regida pelo direito privado. A ordem pública se contrapõe à ordem privada. No âmbito da comunidade privada, não condicionada por fatores de vio­lência ou coerção viva e direta, a articulação entre os sujeitos indivi-

26 Cf. K. Marx, O Capital, op. cit., v. I, I. t.•, t. 2, seção VII, cap. XVII, p. 130 .'(grifo nosso).

27 Para uma profunda análise do caráter formal e abstrato do Direito e de suas propriedades operacionais no âmbito da sociedade capitalista, v~ Weber, op. cit., pp. 512-588 e 648-660; Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeir&, Graal, 1981, pp. 85-105 .

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duais parece limitada à racionalidade econômica do mercado e da produção, aparentemente isenta de sujeição política. 28 Do lado públi­co, os sistemas e órgãos da burocracia estatal formam o aparato me­diador das relações privadas, constituindo-se como esfera superior de poder, destacada institucionalmente sob a forma impessoal de uma organização política fetichizada. O corte entre o público e o privado fundamenta, em última análise, a possibilidade das relações capitalis­tas, precisamente porque permite a mobilidade contratual na esfera da circulação, o que pressupõe a existência destacada de sujeitos ju­rídicos livres e iguais, tutelados pelo apoio da coerção oficial sobre­vinda c'omo algo eventual e não-inerente às relações sociais de produ­ção. Vê-se, portanto, que as objetivações pelas quais o Estado trans­parece como organizador e articulador do mundo social e econômico, incluindo a positivação do Direito, favorecem a convicção ideológica de que o Estado é precisamente um terceiro frente aos sujeitos sociais, como algo aparentemente externo às relações que os constituem e cuja atuação está sujeita a uma lógica diferente da que motiva a ação desses mesmos sujeitos.29

Como a real dominação ou violência não podem transparecer ao vivo e sistematicamente no seio da comunidade civil e no âmbito do próprio Estado, sob pena de se comprometerem a hegemonia do poder e a obediência consentida dos não-beneficiários do sistema, seu ocul­tamento se dá mediante a reprodução ideológica, cujo efeito é pro­mover o desvio da crítica social, exatamente para reforçar a aparência ilusória dos fatos imediatos da vida cotidiana.30 Já constatamos, num outro momento deste trabalho, que a aparência não é expressão ima­ginária de um puro engano subjetivo; ela tem um fundamento obje­tivo e remarca a forma de aparência precisamente em função de sua abordagem empírica ou meramente descritiva dos fatos; por isso, ela se presta ao trabalho ideológico. "Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o fenômeno) social é considerado como o próprio ser (a realidade do social). O aparecer social é constituído pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros, imagens consi-

28 Ver G.J!illermo O'Donnell, op. cit., p. 83. 29 Idem, ibidçm, pp. 85 e 91. 30 Uma análise mais aprofundada do poder hegemônico foi realizada no capítulo 6 deste trabalho .

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deradas como a reaildade concreta do social e do político. O campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido de irrealidade ou de fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e .sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser social. Esse aparecer não é uma 'aparência' no sentido de que· seria falso, mas é uma aparência no sentido de que é a maneira pela qual o processo oculto, que produz e ·conserva a sociedade, se manifesta para os homens." 13 1 Desse modo, se o Estado, de forma contrária, aparecesse exatamente como é em sua essência, como garantidor das relações assimétricas de exploração econômica em proveito de uma parcela minoritária da sociedade, fatalmente haveria, por conseqüên­cia, o desnudamento da violência inerente a tais relações, com a ine­vitável contestação crítica e destruição do consenso em forno delas. Na realidade, porém, essas mesmas condições fornecem, na práxis cotidiana, uma expressão aparente de tal modo articulada que permite sua exploração efetiva para ocultar exatamente a violência que integrrr seu conteúdo essencial. Já analisamos esses efeitos ao nível das rela­ções sociais, quando abordamos o encobrimento ou mascaramento da exploração econômica pela ação real dos movimentos mercantis na esfera da circulação e a ausência expressa, mas com presença implí­cita e potencial, da coerção material no processo produtivo capitalista. Com efeito, o movimento dialético que daí decorre, induzindo o corte entre o público e o privado e o esfumaçamento da violência viva nó âmbito da sociedade civil e do Estado, em razão da dinâmica do sis­tema, permite ocultar a dominação, mediante a exploração efetiva das próprias aparências, secundada pelo bloqueio à sua penetração crítica em função de esquemas ideológicos extremamente eficazes.

Nas formações sociais capitalistas, o Estado tem que se mani­festar com a aparência de algo externo e "coisificado" em face da sociedade civil. Mas, tanto aquele como esta não poderiam se ocultar

como dominação, se tal corte não fosse superado mediante práticas de legitimação que pudessem fundamentar o poder estatal fora das próprias instituições e dos agentes sociais coletivos constituídos como classes.

a 1 Cf. Marilena Chaui, Cultura e Democracia, o Discurso Competente e Outras Falas, São Paulo, Moderna, 1981, p. 19 (grifo nosso).

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Com efeito, já observamos que o Estado sobressai como uma terceira força neutra e impessoal, cujo modo de aparecer disfarça ideologica­mente a violência das contradições entre o geral e o particular, entre a produção socializada e a apropriação privada da riqueza social. Também foi observado que a dinâmica do sistema capitalista oferece as condições objetivas para a construção ilusória das representações ideológicas essenciais ao seu funcionamento. O Estado, com sua figu­ração empírica destacada, visível, impessoal e burocrática, representa precisamente uma dessas condições objetivas, na medida em que apa­rece como o lugar efetivo dos interesses gerais para a tutela das rela­ções de produção dominantes, sem se confundir com os interesses menos gerais dos sujeitos coletivos constituídos por aquelas mesmas relações. Na práxis cotidiana, o Estado transparece como dominação inocente, vale dizer, como um poder indiferente e imparcial, como uma forma política abstrata que não se suja com as relações particula­rizadas das classes sociais, cujos interesses são relegados ao âmbito do puramente econômico e privado. Desse modo, o Estado não pode encontrar o fundamento de sua legitimidade nas instituições que o encarnam, visto que elas se contrapõem aos interesses reais dos ind( víduos particularmente considerados; também não o pode achar no âmago da sociedade civil, porque esta se apresenta imersa em contra­dições insolúveis nos limites de sna práxis produtiva. Outra forma não existe senão a de embasar a legitimidade de seu poder em algo que lhe é externo.23 Por isso, esse podtr t~m como fundamento a cidadania caracterizada pell\ representação homogênea de cada indi­víduo no Estado, sem distinções de classe. Esse poder tem que se justificar como poder constituído consensualmente por "todos" os membros da sociedade, sem discriminações, como fundamento de sua legitimidade democrática. ~ preciso que os sujeitos sociais tenham a impressão e convicção de que realmente obedecem a um poder for­mado pela vontade de todos eles reunidos, ou legitimamente represen­tados, vontade expressa na lei geral e abstrata votada no parlamento e dirigida a todos os cidadãos indistintamente.33

a2 Ver, nesse sentido, Guillermo O 'Donnell, op. cit., pp. 91-92 . 3·3 Cerroni traduz essa questão com propriedade: "A igualação dos indivíduos à margem de seu nascimento e sua equiparação frente à lei positiva enquanto lei fundamentada no consenso implica o fim de toda hierarquia preestabelecida

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Entretanto, em movimento contrário, no sentido de desmascarar a mistificação, pode-se constatar que o caráter estrutural das relações básicas do modo capitalista de produção, fundado no controle privado dos meios e recursos produtivos, abrange essencialmente processos de dominação de cuja dinâmica contradit6ria os aspectos políticos e ideo­l6gicos não podem de modo algum estar ausentes. Isso significa que a relação social capitalista de base estrutural se constitui de múltiplos aspectos, além do propriamente econômico. Por isso, a relação de pro­dução · burguesa, exatamente por ser uma forma de domináção que implica o controle privado de recursos econômicos, não pode ser ape­nas de natureza econômica; compreende também os aspectos político e ideol6gico como seus elementos constitutivos essenciais. Assim, as relações de produção assimétricas capitalistas, pelas quais as classes sociais se estruturam como classes diferenciadas e desiguais e ao mes­mo tempo como portadoras dessas mesmas relações, pressupõem a necessária vigência da tutela estatal garantidora da condição de sua reprodução ampliada.u Isso significa que as classes sociais não exis­tem primeiro como classes econômicas para depois entrarem numa relação política; o aspecto político já é elemento constitutivo e orgâ­nico desses agrupamentos sociais.135 Isso também torna evidente que

e o reconhecimento de uma só hierarquia racional, laica, determinada pela emulação terrena no livre campo da competição econômica·. Cf. Umberto Cerroni, lntroducción a la Ciencia de la Sociedad, Bárcelona, Crítica, 1978, p. 214. Numa linha mais explícita, Poulantzas considera que "concluir que o poder e o domínio modernos não mais se baseiam na violência física é a ilusão atual. Mesmo que essa violência não transpareça no exercício cotidiano do poder, como no passado, ela é mais do que nunca determinante. Sua monopolização pelo Estado induz as formas de domínio nas quais os múltiplos procedimentos de criação do consentimento desempenham o papel principal". Cf. Nicos Pou­lantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, op. cit., p. 90. H Essa tutela estatal "supera" a divisão de classes sob a precisa condição de garantir que elas se mantenham divididas. Nesse sentido, Cerroni assim se manifesta: "o Estado político unifica somente no pressuposto de que não se unifique a sociedade civil. Se esta última deixasse de ser meramente civil (civilis tantum) e se unificasse realmente, o Estado já não teria razão de ser; haveríamos encontrado uma forma de autodireção interna de nossas relações práticas". Cf. Umberto Cerroni , Problemas de la Transición al Socialismo, Barcelona, Crítica, 1979, p . 121. 35 Ver capítulos 5 e 6 deste trabalho .

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não pode haver uma real oposição entre o "público" e o "privado", posto que o estatal - o político -, embora recôndito, também é parte inerente às relações sociais que formam a textura burguesa da sociedade civil. Por esse motivo, o claro reconhecimento crítico dos aspectos políticos e ideológicos escamoteados nas relações sócio-eco­nômicas é a condição indispensável para superar a perspectiva alie­nada que se tem do Estado como uma imaginária força transcendente aos limites do próprio sistema social capitalista.

Nestas condições, a relação dialética entre o Estado, a sociedade civil e a instância econômica da produção traduz um jogo objetivo de feições aparentes e ilusórias onde se reflete o mascaramento das re­lações reais de dominação econômica e política, o disfarce caracteri­zado fundamentalmente pela distinção do privado frente ao público e pela neutralidade e estrutura impessoal de um poder superior feti­chizado. Por isso, a coação material do Estado aparece legitimada nesse contexto, porque não favorece direta e particularmente a esta ou aquela classe social ou segmentos de classe; a ação coercitiva ofi­cial revela-se como algo vinculado a um interesse geral e abstrato. Por outro lado, a classe dos capitalistas não exerce a violência viva

para . se apropriar do excedente econômico, aparecendo como sujeito social não controlador dos meios de coerção e igualmente submetido à autoridade estatal. Nesse sentido, a dominação e a violência decur- · sivas do processo de reprodução econômica capitalista desaparecem do cenário imediato da ação social e política, tanto da sociedade comO do Estado, mantendo-se submersas e invisíveis, porém com uma força permanente e atuante no contexto da vida social, onde a reprodução econômica ampliada se realiza no quadro de relações assimétricas e antagônicas.

~ preciso considerar, finalmente, ainda que de forma passageira, pois não constitui o objeto específico deste trabalho, a questão do Estado numa sociedade de transição para um sistema em que as rela­ções sociais de produção não mais se caracterizariam dentro dos prin­cípios e das leis de apropriação privada burguesa do excedente eco­nômico resultante do esforço social. A organização coletiva numa so­ciedade sem classes compreende o desaparecimento da dominação

política e, por conseqüência, a eliminação do aparelho repressivo es-

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tatal.'36

Isso significa o desaparecimento do próprio Estado, na medida em que seu elemento específico (não único) é, em última instância, caracterizado exatamente pelo monopólio da violência legítima, tendo em vista a existência de classes irreconciliáveis num âmbito territorial determinado.137 Evidentemente, a ausência de · dominação política não implica a inexistência de uma função social gestora da planificação global da propriedade comum, visto que se aquela planificação exige a propriedade coletiva dos meios de produção, esta, por sua vez, exige a planificação para seu cabal funcionamento. Portanto, não há cole­tivização da economia sem o plano, sem o conseqüente afastamento das leis do mercado.138 Ainda é preciso considerar que a permanente consecução e a diuturna implementação do plano global, para a dire­ção econômica da sociedade como um todo, precisam ser fundadas nos princípios de autogestão e cooperação entre os produtores, que devem participar da elaboração e execução desse plano, em seus diversos níveis e segmentos, através das decisões oriundas dos conselhos, espe­cialmente dos existentes no âmbito do processo produtivo, em todas as unidades e instâncias de produção econômica da sociedade. A des­peito de examinarmos essa questão predominantemente sob o ângulo

an A esse respeito se manifesta Engels em um conhecido trecho: "As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze" . Cf. F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro, Vitória, 1960, p . 163. Para uma análise mais profunda, ver K. Marx e F. Engels, La ldeología A/emana, op. cit. , pp. 55-90. Ver Norberto Bobbio, "Democracia Socialista?" , in Qual Socialismo, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1983, pp . 26-31.

a 7 "O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis · . C f. V. I. Lenin, O Estado e a Revolução, São Paulo, HUCITEC, 1983, p. 9.

aR Ver Charles Bettelheim, Planificação e Crescimento Acelerado, Rio de Janei­ro, Zahar, 1968, pp. 9-20; Oskar Lange, Moderna Economia Política, Rio de janeiro, Fundo de Cultura, 1963, pp. 139-189; John Eaton , Manual de Economia Política, Rio de Janeiro, Zahar, 1965, pp . 274-285 .

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da produção, isso não significa que esses princípios sejam apenas aplicáveis nessa esfera, visto que, em tais sociedades, devem afetar todos os campos da atividade social. Neste caso, a autogestão, como princípio de organização da sociedade, compreende o pleno desenvol­vimento da atividade social, em todas as áreas de ação humana cole­tiva, sem que possa haver divisão dos homens entre grupos que man­dam e grupos que obedecem; refere-se, portanto, a uma organização social que não permite qualquer separação entre governantes e gover­nados, abolindo ta[ · segregação de forma permanente, real e consti­tucional.'lf' Aliás, essa questão marca profundamente a diferença entre a sociedade capi_talista e a sociedade pós-capitalista, no que respeita às bases da soberania e das decisões que orientam tais sociedades. Mesmo nas sociedades pós-capitalistas de transição, o Estado (de tran­sição) deve coibir, mediante o mecanismo da planificação econômica, de forma dialética, as relações de mercado ainda subsistentes - como em toda transição -, promovendo, nos quadros da autogestão ainda imatura, a área das relações não-mercantis, das relações econômicas

cooperativas e de caráter essencialmente solidário.40 Porém, "à medida que o plano eséapa ao controle democrático dos produtores, então é o mercado - e, conseqüentemente, o jogo da lei do valox - que determina tanto a magnitude global do fundo de consumo (e, portan­to, do de acumulação) como sua distribuição entre os dif~<rentes se­tores da sociedade. E os assalariados têm de recorrer aos mecanismos

39 "Unidade de autogestão é aquela unidade para a qual seus membros formam um grupo que se governa a si mesmo ( .. . ) Grupos de pessoas enfrentando uma situação comum são grupos autogovernados, seja no trabalho, na comunidade, ou na nação como um todo. ( ... ) A autogestão só é possível quando o grupo controla os meios e os produtos da produção. ( .. . ) A unidade de autogestão é uma forma de organização tanto política como econômica que tem a capacidade de se estender, formando novos grupos, ou subunidades, em sistemas autônomos que têm as mesmas características. Os membros das unidades de autogestão são simultaneamente governantes e governados. Quanto maior o número de sub­unidades incluídas na unidade original, maior a perspectiva de que exista uma democracia em toda a organização." Cf. Nanei Valadares de Carvalho, Auto­gestão, O Governo pela Autonomia, São Paulo, Brasiliense, 1983, passim , pp. 95-96.

40 Ver, nesse sentido, Adolfo Gilly, Sacerdotes e Burocratas, Introdução ao Socialismo Real, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 22-24.

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do mercado, inclusive à luta sindical, para alterar em favor de cada setor as proporções do fundo de consumo e sua participação indivi­dual nele, dentro de um plano sobre cuja elaboração não têm inter­venção nem controle" .41 Há, portanto, nessas sociedades de transição, luta de ambas as tendências: a do mercado, muito viva e marcante, engendrada e desenvolvida amplamente na velha ordem, ainda subsis­tente pela não-superação da escassez dos bens produzidos socialmente., e a do plano, da cooperação básica em todos os campos da atividade social, e especialmente no âmbito da produção econômica, demarcada, essa cooperação, pdas linhas da nova ordem e destinada, mediante a autogestão, a refazer e reorganizar os fundamentos estruturais da pro­dução e do próprio consumo, em termos de realização plena da per­sonalidade integral do novo •homem e segundo o princípio universal da solidariedade humana. Essas tendências em conflito expressam, em última análise, uma contradição fundamental entre o modo de pro­dução, que, na sociedade de transição, já não é manifestamente capi­talista, e o modo de distribuição, que em parte permanece ainda burguês (interesses diferenciados, prêmios de produção, procura de rendimento salarial mais elevado, desigualdade na repartição dos bens de consumo, discriminações sociais em razão do status, etc.). Essa contradição essencial de toda a sociedade de transição baseia-se no fato de que o respectivo modo de produção inaugura relações sociais de produção - de tendência solidarista - que se mostram mais avan­çadas do que o desenvolvimento das forças produtivas, desenvolvi­mento este que se mantém ainda em grau e escala não-suficientes para abolir as normas de distribuição mercantis.4 2

4 1 Idem, ibidem, p. 40 (grifo nosso). Em continuação, Gilly traça uma impor­tante distinção entre a produção mercantil capitalista e aquela submetida ao plano. Segundo ele, "o plano elimina uma condição que é inerente ao modo de produção capitalista: a concorrência entre diferentes capitais, o fluxo e refluxo de recursos de um ramo a outro da economia, determinados pela taxa de lucro, pela baixa tendencial da taxa de lucro. A existência de muitos cafJitais em concorrência é um traço não acidental, mas consubstanciai ao modo de produção capitalista, sem o qual suas leis de movimento deixam de funcionar ". Idem, ibidem, p. 40. 42 Será de grande valor teórico o aprofundamento da análise desse modo de produção, de caráter transitório, que apresenta caracteres específicos tais que permitem até lançar a hipótese da intercorrência de um novo sistema social

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Apesar dessas tendências, há uma transformação profunda nas relações de poder da sociedade de transição, com o progressivo deslo­camento do eixo político do sistema do sufrágio universal e do Par­lamento, fundados na igualdade e liberdade jurídicas dos cidadãos, cuja relação social básica, no plano da sociedade civil, é a relação mercantil, com sede econômica e política na "cidade" (mercado), para o sistema da autogestão e cooperação do trabalhador coletivo na gran­de indústria, relação social própria da classe operária nas unidades ou centros produtivos e fundamento da igualdade real entre seus membros. Assim, o lugar dessa soberania não é a cidade, mas a fá­brica; seu depositário não é o cidadão, mas o produtor. 43 Os pensa­mentos e as decisões desse produtor se engendram e se organizam, através dos conselhos, de maneira muito diferente da que prevalece nas sociedades mercantis, caracterizando a soberania de modo distinto pela origem, pela forma de escolha das lideranças, pelas estruturas de autogoverno e autogestão social e econômica, pela composição e natureza dos poderes de participação de toda a coletividade no pro­cesso decisório que orienta a sociedade em todas as suas instâncias. Nesses conselhos, os produtores não aparecem indiferenciados como ocorre lio sistema de mercado, onde eles se unem e se inter-relacionam especialmente em razão dá propriedade e não do trabalho produtivo. No âmbito da produção, ein especial, o que importa não é o valor de

não-previsto pelos estudiosos do desenvolvimento histórico-social, sob a matriz marxista ortodoxa. Considere-se, por exemplo, o estudo realizado por Bresser Pereira, a respeito do modo de produção estatal ou tecnoburocrático, onde põe em relevo a emergência de uma nova classe, a tecnoburocracia, que, a partir do Estado e mediante a organização burocrática, detém o controle de todos os meios de produção da sociedade. A "organização burocrática" seria, em última análise, "a propriedade coletivamente assumida pela tecnoburocracia do Estado". Assim, "de mero estamento, a serviço da classe dominante, escravista, feudal ou capitalista, a burocracia vai se transformando em classe social na medida em que, ao mesmo tempo, ganha massa crítica, seu aumento quantitativo impli­cando um salto qualitativo, e que novas relações de produção se definem e tendem a se tornar dominantes no plano da história". Cf. Luis Carlos Bresser Pereira, A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, São Paulo, Brasiliense, 1981, pp . 10-11. Ver, também, sob um ângulo crítico, Paul M. Sweezy, A Sociedade Pós-Revolucionária, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 40-72 e 97-129. 43 Ver, nesse sentido, Adolfo Gilly. op. cit .. p. 25 . Ver, também , Norberto Bobbio, op. cit., pp. 93·111.

ESTADO E IDEOLOGIA 295

troca de sua força de trabalho, mas exatamente aquilo que é mais significativo para o produtor: a decisão sobre o valor de uso de sua força de trabalho. Assim, é "no lugar do comando despótico do ca­pital que o trabalho organizado pode questionar a ditadura desse mesmo capital e organizar sua própria democracia. Nessa transforma­ção consiste a democracia operária. Sendo assim, a defesa das leis do mercado como garantia da democracia, as normas da igua]dade jurídica e política que derivam dessas leis, as instituições parlamen­tares que nelas se fundam não questionam de forma alguma os fun­damentos da ditadura cotidiana do capital no processo produtivo".44

Por isso, eliminar a supremacia do mercado significa superar a demo­cracia necessariamente parcial e incompleta da sociedade fragmentada em classes sociais antagônicas, democracia essa de caráter abstrato e meramente político, em direção às relações dos produtores associados na consecução da efetiva igualdade econômica, não como fim em si mesma, mas como condição da plena e real liberdade dos homens numa comunidade universal de produtores.

Entretanto, é preciso caracterizar como é controlado o Estado de transição, visto que a expropriação das classes ·dominantes, passando a direção econômica para as mãos do Estado, não compreende o desa­parecimento instantâneo deste como organização político-estatal. Se o Estado permanece, é porque a sociedade não se encontrou consigo mesma, ainda permanece dilacerada no seu interior e indica que não é a classe dos trabalhadores como um todo que controla esse poder, mas uma camada ou um estamento burocrático superior de administra­dores dirigentes e de funcionários que governa em nome dela. f: claro que tal fenômeno não se manifesta a partir de uma base meramente voluntarista, pois há uma explicação objetiva para que isso ocorra. Como já analisamos, não se mantém ou se transforma uma formação social apenas com desejos ou com atos heróicos dissociados das bases estruturais sujeitas a uma lógica objetiva, que se expressa mediante as leis internas de seu próprio movimento. Num primeiro momento, é preciso compreender, como parte da situação objetiva, a conexão

H Cf. ·Adolfo Gilly, op. cit., p. 30. Ver, também, nesse sentido, Antonio Grams­ci, "O Movimento de 'Ordine Nuovo' ", in Obras Escolhidas, São Paulo, Mar­tins Fontes, 1978, pp. 239-2~5; idem, "O Movimento Turinês dos Conselhos de Fábrica". in op. cit. , pp. 247-257 .

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dessas leis com um quadro extremamente dinâmico de caráter supra­estatal, onde existem igualmente, de forma cada vez mais atuante, relações interestatais que refletem e ao mesmo tempo induzem os pro­cessos intrínsecos de ação econômica, social, política e ideológica de cada Estado. Embora este não seja o argumento essencial, sob o ângulo da democracia real interna, não se pode deixar de levá-lo em conta, visto que também as relações de interdependência das sociedades no cenário internacional condicionam, em virtude de questões econômi­cas (diversidade dos sistemas), nacionais, militares, estratégicas e das proft.mdas diferenças econômico-regionais, a manutenção dos Estados de transição como estruturas de poder altamente concentradas e po­larizadoras. Portanto, a sociedade de transição é "uma comunidade na qual · a ordem não é mantida pela concentração e monopolização da força nas mãos de uma classe dominante, mas pelo equilíbrio, por sua natureza mais precária, entre centros de poder contrapostos, e onde, portanto, o exercício da força e do poder repressivo é, até hoje, absolutamente indispensável".45 Por conseqüência, "um discurso sobre o destino do Estado como instituição que não leve em conta o fato de que cada Estado não é um todo, mas parte de um sistema mais vasto é um discurso sem nenhum valor histórico ou heurístico".46

Por isso, o problema da extinção do Estado não pode se dissociar da questão mais abrangente da dissolução do sistema de Estados enquan­to "comunidade internacional assim como é até hoie constituída".41

Entretanto, num segundo momento, sob o ângulo estatal interno, isto é, das forças e segmentos sociais em jogo a nível do Estado-nação, na sociedade de transição, a objetividade de fenômenO da persistência da separação entre o político e o social, entre o dirigente e o produ­tor, inscreve-se fundamentalmente no plano da divisão social do tra­balho e das leis que a regem independentemente da vontade dos mem­bros da sociedade.48 Se os novos dirigentes não são capitalistas ou tecnocratas a serviço destes, devem ser parte da classe operária que· assumem as funções do Estado e governam a sociedade em nome dessa

45 Cf. Norberto Bobbio, "Democracia Socialista?", in op. cit., p. 31. 46 Idem, ibidem, passim, p. 31. 47 Idem, ibidem, p. 31-32. 48 Ver Rudolf Bahro, A Alternativa, para uma Crítica do Socialismo Real, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 135-155.

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classe. O controle econômico real passa a ser exercido por essa elite burocrática, em que pese ser do Estado a propriedade jurídica (formal) dos rrieios de produção. Nesse sentido, é até certo ponto legítima a indagação a respeito do caráter de classe dessa elite, ou seja, se ela é de fato uma "burguesia de Estado" ou apenas um estamento privile­giado originado da divisão social do trabalho no interior da própria

classe dos trabalhadores.49

A nosso ver, a classe operária tem um caráter dúplice, derivado de sua situação real no sistema capitalista de produção, no qual ela se realiza através do mercado, como vendedora da mercadoria força de trabalho em regime de competição mercantil, e através do processo produtivo, como produtora direta em regime de cooperação coletiva. 50

Em conseqüência, a força de trabalho assume também esse caráter dúplice, como valor de troca e como valor de uso, o que se reflete na divisão da própria classe operária, consignando um lado reformista, representado pelo momento da troca e do mercado, pelo ângulo do individualismo e oportunismo, pela propriedade individual e concor­rência mercantil da força de trabalho,51 e um lado revolucionário, representado pelo momento da .produção e transformação, pelo ângulo da criação e cooperação coletiva, pela autogestão, socialização e soli­dariedade integral no processo de trabalho.52 Na sociedade de transi­ção, não há a eliminação imediata do mercado (interno e internacio­nal), nem do caráter mercantil da força de trabalho, permanecendo ainda a competição egoísta no interior da própria classe dos trabalha­dores. Nesse sentido, prevalece até certo ponto a lei do valor, visto que a força de trabalho tende a ser retribuída mediante salários ainda diferenciados - de cada um segundo sua capacidade, a cada um se­gundo seu trabalho - numa escala definida de remunerações, onde o trabalho mais qualificado obtém, com a venda da força, de trabalho

~~~ Ver Luis Carlos Bresser Pereira, op. cit., pp. 124-140, 261-265. Ver, também, E. Germain, A Burocracia nos Estados Operários, Lisboa, Fronteira, 1975,

pp. 111-118. ;;o Ver, nesse sentido, Adolfo Gilly, od. cit., pp. 51-58. lil Para uma análise profunda sob esse ângulo, ver Rudolf Bahro, op. cit.,

pp. 197-224. ií2 Ver, nesse sentido, Cornelius Castoriadis, Socialismo ou Barbárie, São Paulo,

Brasiliense, 1983, pp. 211-226.

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correspondente no mercado, um salário superior, com inevitável pre­dorr.ínio do trabalho intelectual sobre o trabalho manuaJ. 5.a A força de trabalho mais valorizada, que implica trabalho adicional objetivado na própria qualificação do trabalhador especializado, não pode ser eliminada como tal senão com a supressão de seu caráter mercantil, e não com a simples decretação voluntária de uma igualdade abstrata! realizada em nome de uma ética social superior. Assim, "a qualifi­cação profissional é propriedade do trabalhador e não pode deixar de sê-lo enquanto existir salário e extração de trabalho excedente. A eli­minação da propriedade privada dos meios de produção e da terra não elimina a propriedade individual da força de trabalho, o fato de uma ter mais trabalho incorporado e outra menos, o fato de uma ter valorizado - ou desvalorizado - e outra não. Isto é inevitável en­quanto se mantiver o caráter mercantil da força de trabalho, o caráter dual da. classe operária e a unidade e luta entre seus dois aspectos contraditórios: o salário e a cooperação; isto é, em última instância, enquanto a classe operária não se extinguir e, com ela, a divisão da sociedade em classes e castas separadas".54

Nessa linha de idéias, pode-se concluir que a práxis do Estado de transição ainda se caracteriza como práxis de um Estado separado da sociedade civil, visto que a divisão do trabalho, especialmente entre trabalho intelectual - e portanto dirigente - e trabalho manual, não é superada. 55 E isto ocorre na medida em que não há a eliminação imediata das relações mercantis, que por sua vez supõe o desenvol­vimento das forças produtivas e da produtividade do trabalho para a efetiva supressão da escassez de bens e concomitante transformação das estruturas de consumo da sociedade, secundada, é claro, pela indispensável extensão da práxis social revolucionária para esse efeito. .B manifesto, portanto, que a lógica do mercado ainda está presente

53 Ver André Gorz, Crítica da Divisão do Trabalho, São Paulo, Martins Fontes, 1980, pp. 213-248. 54 Cf. Adolfo Gilly, op. cit., pp. 53-54. 55 Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels escreveram que "com a divisã,o do trabalho está dada a possibilidade, ou melhor, a certeza de que a atividade intelectual e a material, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo, caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade de que eles não entrem em conflito reside unicamente na superação da própria divisão do trabalho". Cf. K. Marx e F. Engels, La Ideología Alemana, Buenos Aires, Pueblos Unidos, 1973, p. 33.

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nas sociedades de transição, tanto no âmbito nacional como também, e com mais razão, a nível internacional, visto que não há uma plani­ficação supranacional. Se o mercado existe, ainda que bem mais limi­tado, a propriedade individual também existe, e, no caso, é exatamente a propriedade do elemento mais expressivo para o processo produ­tivo: a força de trabalho. Se esta força de trabalho, obedecendo ao funcionamento das leis do intercâmbio mercantil, se caracteriza segun­do sua qualificação diferenciada, com a propriedade individual da formação especializada correspondente, a tendência é tornarem-se, aqueles que a possuem de forma mais valorizada, por serem ainda indispensáveis à · organização econômica da própria sociedade, uma camada superior estratificada no exercício da supremacia e comando de toda a sociedade, como burocracia estatal, assumindo a direção planificada dos meios de produção e ao mesmo tempo cristalizandq a divisão de funções, entre dirigentes e dirigidos, no interior da pró­pria sociedade dos produtores. ~ 6 Por isso, o Estado ainda persiste na sociedade de transição, como produto da contradição interna à classe dos trabalhadores - já presente no sistema mercantil de produção -, contradição esta entre seu caráter de vendedora da mercadoria força de trabalho, segundo escalas diferenciadas de retribuição salarial, e seu caráter de produtora cooperativa no uso dessa mesma força no processo social produtivo. Portanto, a superação desse momento com­preende, necessariamente, o elevado desenvolvimento das forças pro­dutivas e da produtividade do trabalho coletivo, de forma compatível com uma nova estrutura de consumo social, reorganizada de confor­midade com uma práxis revolucionária e transformadora de toda a sociedade, com o objetivo de eliminar, conscientemente, a divisão so­cial do trabalho, a distinção entre dirigentes "competentes" e dirigi­dos não-participantes das decisões dos planos, entre intelectuais e trabalhadores manuais, entre políticos e produtores, enfim, entre o Estado e a sociedade civil.

i\6 Ver André Gorz, O Socialismo Difícil, Rio de Janeiro, Zahar, 1868, pp. 117-134. Ver, também, Crítica ao Sorex (Socialismo Realmente Existente), Debatendo as Idéias de Rudolf Bahro, textos organizados por Jeanne Brunschwiz et alii, São Paulo, Brasiliense, 1982.

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Formalismo jurídico e mediação ideológica

Como foi analisado, na formação social capitalista o poder polí­tico sobressai como poder separado da sociedade, aparecendo como a encarnação do universal responsável pela coesão que a própria socie­dade não possui. Esse universal estatal, entretanto, não se exprime normalmente como forma particularizada da formação social especí­fica capitalista, pois ele não se revela imediatamente em todas as suas determinações relacionais concretas com a sociedade civil; antes pelo contrário, ele aparece exatamente como um universal abstrato, formal, linear, tradução de uma racionalidade instrumental cujo efeito, além . do mais, é o ocultamento hegemônico das relações internas de domi­nação e de exploração.1 Esse ocultamento, contudo, não tem apenas

1 Horkheimer trabalha este conceito de razão instrumental com propriedade: "Ao abandonar sua autonomia, a razão converteu-se em instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, tal como o destaca o positivismo, se vê acentuada sua falta de relação com um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, tal como o destaca o pragmatismo, se vê acentuada sua capitu­lação ante conteúdos heterônomos. A razão aparece totalmente sujeita ao processo social. Seu valor operativo, o papel que desempenha no domínio sobre os homens e a natureza, tem sido convertido em critério exclusivo •. Cf. Max Horkheimer, Crítica de la Raz6n Instrumental, Buenos Aires, Editorial Sur, 1973, p. 32.

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um sentido subjetivo, visto que também exerce a função de viabilizar a aparência indispensável à reprodução do sistema: Exemplo disso é a atividade do Estado, exercida de forma impessoal e na qualidade de gestora dos conflitos internos à sociedade e organizadora do espaço sócio-econômico, mediante a ordenação jurídica, a prestação de ser­viços públicos e a intervenção estatal sistemática, para tutelar os in­teresses dos proprietários formalmente igualados entre si, ao nível jurídico, e para resguardar suas respectivas rendas: lucro industrial e comercial, renda fundiária, juro e salário.2 Nesse quadro estruturado segundo os critérios de operação do sistema, incluindo uma série de práticas utilitárias e perfeitamente funcionais - práticas contábeis, operações financeiras, registros, assentamentos, sistema tributário, no­ménclatl,lras e classificações diversas para os efeitos mais variados na práxis cotidiana, etc. -, as classes sociais (industriais, comerciantes, rentistas, banqueiros, trabalhadores urbanos e rurais, pequena bur­guesia, etc.) aparecem todas como proprietárias, na expressão de seus respectivos aspectos de universalidade formal aparente, como repre­se~ações distintas e justapostas extremamente úteis para o embasa­mento da articulação essencial do sistema através do mercado, onde as relações devem ser livres e igualitárias, isto é, entre indivíduos abstratos não-diretamente constrangidos a contratar é igualmente pos­

.suidores de mercadorias para negociações e trocas mútuas. Esse quadro se presta à construção de um sistema dinâmico cuja forma de apa­recer exprime uma racionalidade instrumental e impessoal que atra­vessa a práxis cotidiana de modo efetivo e operacional. Isso se mani­festa claramente no fenômeno da burocratização da sociedade.3

~ Segundo Marx, ·a forma e as fontes do rendimento (revenue) exprimem as relações da produção capitalista sob a forma mais fetichista. Sua existência, como surge na superfície, isola-se de suas conexões ocultas e dos elos interme­diários mediadores. Assim a terra se torna fonte de renda fundiária, o capital, a fonte do lucro, e o trabalho, do salário. A forma distorcida em que se expressa a inversão efetiva se encontra naturalmente reproduzida na representação dos agentes desse modo de produção". C f. K. Marx, O Rendimento e suas Fontes, A Economia Vulgar, São Paulo, Abril Cultural, 1982, .p. 189. H ·A práxis se burocratiza onde quer que o formalismo ou o formulismo dominem, ou, mais exatamente, quando o formal se converte em seu próprio conteúdo. Na prática burocrática o conteúdo se sacrifica à forma, o real ao ideal. e o particular concreto ao universal abstrato" . Cf. Adolfo Sánhez Vázquez,

ESTADO E IDEOLOGIA 303

A coordenação exigida pela intensa divisão social e técnica do trabalho, cada vez mais diversificada e complexa, caracteriza a neces­sidade de múltiplas funções diretivas, que se descolam da produção direta e se estrUturam em vastas escalas e graus hierárquicos de con­dutas articuladas mediante normas e pautas de imposição homogênea. 4

A racionalidade dos meios, ocultando a razão dividida da práxis social, consagra sua adoção em todas as esferas da vida social, econômica, política e cultural, e contribui para dissimular a presença do Estado na sociedade civil.5 Esse processo também valoriza, sob a forma de dominação racional-legal, a crença na justiça da lei, visto que esta é criada de conformidade com procedimentos "corretos", prefixados se­gundo um cerimonial reconhecido por todos indistintamente. Nesse sentido, ninguém se sente dirigido senão por uma ratio governativa e administrativa, que se traduz por comandos impessoais dotados de uma lógica imperativa racionalmente incontestável. O poder aparente não é exercido diretamente por pessoa alguma, pois se apresenta como emergente de uma racionalidade intrínseca ao mundo politicamente organizado.6 A legalidade abstrata e o procedimento de sua consti-

Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968, p. 261. Ver Nicos P. Mouzelis, Organización y Burocracia, Barcelona, Península, 1975; Manuel Garcia Pelayo, Burocracia y Tecnocracia, Madri, Alianza, 1974.

4 Numa síntese bastante lúcida, Marilena Chaui escreve que "todos se recordam de que, na tradição sociológica inaugurada por Weber, a burocracia é o 'tipo mais puro do exercício da autoridade · legal', substituindo a dominação pessoal, de tipo carismático, pela racionalidade impessoal da legalidade técnico-científica ou administrativa. Remédio contra a autocracia, a burocracia introduz uma auto­ridade regida pela organização dos cargos (delimitados por normas impessoais) , pela circunscrição de áreas específicas de competência (obrigações no desem­penho de funções definidas, presença de uma autoridade responsável por esse desempenho, definição de instrumentos racionais de coerção e limitação de seu uso a condições determinadas), pela clara separação entre o bureau e o domi­cílio (isto é, entre o público e o privado) e pela clara hierarquia dos cargos e das funções, segundo regras específicas de preenchimento que pressupõem conhecimento e especialização". Cf. Marilena Chaui, "Sábios e Sabidos, uma Discussão Ociosa" . "Folhetim", Folha de S. Paulo, 22.9.1985, p. 9. 5 Ver Alejandro Nieto Garcia, La Burocracia, I. "El Pensamiento Burocrático", Madri, Instituto de Estudios Administrativos, 1976, pp. 366-397.

n Ver, nesse sentido, Marilena Chaui, Cultura e Democracia, O Discurso Com­petente e Outras Falas, São Paulo, Moderna, 1980, pp. 8-11.

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tuição, ou melhor, de sua "autoconstituição" racional e impessoal, são o critério de legitimidade do poder: os sujeitos exercentes do poder asséptico, imaculado e "inocente" só podem impor sua vontade aos subordinados dentro dos limites estabelecidos pelo sistema normativo racional-formal, cujo processo de composição e organização parece se estruturar segundo fórmulas volitivas anônimas, devidamente depura­das pela razão do bem comum e do interesse geral da comunidade, considerada esta de forma homogênea para os devidos efeitos legais.7

Esse trabalho de formalização conduz à ilusão, tão necessária quanto operacional para a sustentação do poder hegemônico, de que o Estado emana de uma racionalidade transcendente, superior à vida social; mas também desnuda e traduz a gênese da razão do Estado como algo proveniente de uma sem-razão, de uma trágica insuficiência da solida­riedade coletiva, das contradições que esgarçam profundamente o tecido social.

A compreensão do mundo jurídico, na sociedade capitalista, não pode estar afastada da especificidade existencial desse modo de pro­dução,_ especialmente porque nele a dissociação relativa entre o Estado e a sociedade civil revela e ao mesmo tempo dissimula as contradições fundamentais dessa sociedade, precisamente através da oposição entre o público e o privado, entre o racional-formal e o singular-individual, entre o ser e o dever ser, entre o universal abstrato e o concreto-irra-

. cional, enfim, entre o caráter social da produção e a apropriação pri­vada da riqueza coletiva. 8 O mundo jurídico, ao sancionar tais dico­tomias, tanto na expressão positivada da experiência social, quanto na reflexão teórico-descritiva dessa mesma experiência, traduz a forma racional de um imaginário discurso neutro, quer como imperativos de

7 Para Weber a dominação legítima de caráter racional funda-se na "legalidade de ordenações estatuídas e dos direitos de mando dos chamados por essas ordenações a exercer a autoridade legal. ( . . . ) os membros a associação, na medida em que obedecem ao soberano, não o fazem por atenção a sua pessoa, e sim que obedecem àquela ordem impessoal; e que só estão obrigados a obediência dentro da competência limitada, racional e objetiva, a ele outorgada pela mencionada ordem". Cf. Max Weber, Economía y Sociedad, Bogotá, Fondo de Cultura Económica, 2.• ed., 1977, pp. 172 e 174. R Ver, nesse sentido, K. Marx, A Questão Judaica, São Paulo, Moraes, s.d., pp. 47-52. Ver Henri Lefebvre, Sociologia de Marx, São Paulo, Forense, 1968, pp . 89-97.

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conduta despersonalizados, quer como proposições de uma ciência universal não-comprometida com as forças sociais. A teoria geral e a ciência dogmática do Direito passam a ser a encarnação de uma razão jurídica imanente ou diretamente colada ao mundo das próprias nor­mas positivadas, existentes estas como conjunto sistemático persistente e válido por si mesmo, operando por força de uma racionalidade que lhe é própria e independente da vontade humana.9 Sob a força das generalidades abstratas das figuras jurídicas básicas, tais como sujeito de direito, sanção jurídica, responsabilidade jurídica, delito, dever jurídico, direito subjetivo, direito objetivo, ato jurídico, etc., e das formas empírico-abstratas dos institutos particularizados, tais como propriedade, contrato, ação judicial, procedimento administrativo, mandato político, direitos humanos, direito de greve, seguro social, etc., o mundo jurídico aparece de modo imediato e direito, dando a im­pressão de não poder dizer mais do que aquilo que exprime nessas mesmas categorias e figuras conceituais, formais e abstratas, e se mos­trando como sendo a tradução da própria realidade jurídica na sua totalidade, enquanto conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar toda a reali­dade concreta do Direito. O aparecer jurídico, através dessas repre­sentações ou imagens, é tomado como todo o universo dentro do qual o Direito se esgota inteiramente.10

Vê-se, portanto, que a aparente dissociação entre o Estado e a sociedade se inscreve, contribuindo exatamente para esse efeito de aparência, em uma razão formal e abstrata que permite a cristalização internamente coerente de elementos e procedimentos objetivados ou

9 Essa imanência da reflexão jurídica com o objeto da experiência normativa imediata é captada por Miaille em sua crítica epistemológica do Direito: "Con­trariamente ao sentido comum, o obje~o não é dado a priori de maneira simples e evidente. Ele é, na verdade, construído pelos pesquisadores e é esta construção que é problemática. Ora, é preciso reconhecer que os juristas estão, neste ponto, consideravelmente atrasados. Retomando o empirismo habitual revestido de todas as virtudes, eles aceitam considerar que o objeto de seu estudo se confunde com as regras do direito positivo". Cf. Michel Miaille, "Reflexão Crítica sobre o Conhecimento. Jurídico: Possibilidades e Limites", in Cailos Alberto Plastino (org.), Crítica do Direito e do Estado, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 40. lO "O aparecer social é tomado como o ser do soc~al". Marilena Chaui, Cultura ~ Democracia, op. cit., p. 19.

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encarnados em organizações burocráticas e em pautas conformadoras e reprodutoras do próprio ordenamento jurídico. A coerência signifi­ca falta de contradição e, por conseqüência, ausência do processo his­tórico no interior do sistema em que se apresenta. Ela só pode se dar ao nível do discurso e se compreende em um corpo não-contraditório de enunciados que permitem o desdobramento estruturado de temas compatíveis e deduções sistemáticas e lógicas de conclusões. B coeren­te o discurso que, a partir de referências iniciais estabelecidas, de­senvolve a argumentação sem entrar em contradição interna com o sistema, ~onforme as regras que regem o procedimento lógico corres­pondente.U Sendo um critério essencialmente formal, a coerência se presta perfeitamente à construção estruturada da ideologia jurídica, visto que, fixado o ponto referencial básico (um valor, um interesse, etc.), tal ideologia pode ser coerentemente desdobrada, sem afetar o conteúdo do que se diz, mas apenas como se diz; afeta o procedimento más não o conteúdo. Como estrutura formal, sua construção em um sistema definido, ao mesmo tempo que se presta à inclusão de quais­quer interesses ou valores, dá por isso mesmo a impressão de vigência supra-histórica, com repercussões ideológicas no modo de encará-la para os efeitos operacionais da vida prática. Enquanto forma, é apenas não-histórica nos limites de sua expressão discursiva e abstrata, mas não como gênese dela própria ou como modo efetivo de apreender o real, seja ele físico-natural ou histórico-social. B o que se dá com as matemáticas, com a lógica formal ou com o modelo da Teoria Pura do Direito de Kelsen. Exatamente porque tem que se conservar como coerência ao nível do procedimento ou dos conceitos meramente abstratos, a abordagem formal da realidade só pode captá-la em parte, precisamente como aparência, como racionalidade instrumental, sem poder fazer incursões aprofundadas nos subterrâneos da realidade, que é extremamente dinâmica e contraditória. 1 2 Se o sistema formal ultra­passar seu ponto-limite de explicação do real, fica inevitavelmente

11 Ver Carlos Nelson Coutinho, O Estruturalismo e a Miséria da Razão, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972, pp. 7-46. 12 Ver Henri Lefebvre, Lógica Formal, Lógica Dialética, Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1975, pp. 80-89; Eli de Gortari, Lógica General, México, Grijalbo, 1965, pp. 33-60; P. V. Kopnin , Lógica Dialéctica, México, Grijalbo, 1966, pp. 55-87 .

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sujeito ao rompimento de sua coerência interna, que pode ser claro indício da própria debilidade epistemológica para explicar, enquanto esquema formal, o mundo natural ou social, induzindo quer à revita­lização crítica da consciência que o sustentara até a crise epistêmica, quer à acomodação funcional de consciência acrítica, através de ex­ceções imaginadas ou de substituição por esquemas formais mais abrangentes. No caso do sistema teórico de Kelsen, por exemplo, a clara ruptura epistêmica se dá, dentre outros momentos, no plano da explicação da última instância de validade do ordenamento jurídico, da norma fundamental pressuposta, sem a qual o sistema por inteiro vem abaixo.13

Nesta passagem, para a melhor compreensão do formalismo ju­rídico dominante na sociedade capitalista, é preciso que fique bem clara a diferença entre a generalidade abstrata ou indeterminada e o universal concreto. Aquela se caracteriza pelo esquema de totalidade formal, vazia de singularidade, como uma unidade abstrata sem dife­renciação interna. O universal concreto, entretanto, é a representação de uma generalidade determinada, expressa na particularidacj~ de algo exatamente como unidade do diverso. 14 O .singular como tal, como absoluta individualidade, é indizível, é mudo, isto é, ausência de qual­quer ge!leralização. Quando, entretanto, a individualidade sensível imediata é falada através de uma abstração, de uma palavra geral, rompendo o silêncio do concreto singular, nega-se a imediaticidade concreta, superando-a na abstração dizível através de termo universal de máxima generalidade. Assim, o singular que é ausência de genera­lização une-se de imediato ao universal abstrato e~presso na palavra,

13 Ver, nesse sentido, Albert Calsamiglia, Kelsen y la Crisis de La Ciencia Jurídica , Barcelona, Ariel , 1977, pp. 196-231; Antonio Anselmo Martino, "En Torno a la Norma Fundamental", in Temas Para Una Filosofía fur'.iica, idem; Eduardo Angel Russo e Luis Alberto Warat, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1974, pp. 37-56; Luis Alberto Warat, La Función Metodológica de la Norma Fundamental Kelseniana, ibidem, pp. 57-61. 14 Para uma profunda análise a respeito das relações entre a generalidade abstrata, enquanto expressão da consciência reificada, e o universal concreto, enquanto manifestação do pensamento dialético, no plano das relações de classe, ver Georg Lukács, História e Consciência de Classe, Porto, Escorpião, 1974, pp. 168-231. Ver, também, Wolfgang Riid, La Filosofía Dialéctica Moderna. Pamplona, Ed. Universidad de Navarra, 1977, pp . 377-455.

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conferindo voz e nome à individualidade.u A individualidade do concreto sensível é posta a falar diretamente através de uma abstra­ção, como algo que nega e supera aquela imediaticidade. Mas essa abstração é apenas formal, generalização indeterminada, dizível ao nível do conceito universal, da palavra, sem a mediação da particula­ridade.16 Assim, por exemplo, os conceitos de Estado, de sociedade ou de direito compreendidos em sua universalidade abstrata supra­histórica, válidos para todas as épocas e lugares, sem mediações das particularidades que os fazem definidos de modo específico precisa­mente para determinados momentos históricos, conduzem à inevitável ocultação do real concreto, dizel\do sempre a mesma e pobre abstra­ção. Esse é o reino da generalidade indeterminada, do discurso formal, onde as contradições são desfiguradas ideologicamente como anoma­lias irracionais.17 O universal, neste caso, liga-se diretamente ao sin­gular, dando-lhe tão somente um nome, sem a rica mediação com o particular que permite a verdadeira apreensão do real concreto e histórico, não como mera singularidade indizível, nem como pura universalidade vazia, mas como um autêntico universal determinado, incluindo, numa unidade de contrários, tanto o singular concreto quan­to o universal abstrato.18 Isto posto, podemos dizer que, sob o ângulo

15 Lukács não desconhece a importância relativa deste momento quando escreve que ·há evidentemente casos nos quais o conhecimento do singular mediante notas isoladas e puramente abstratas é possível e suficiente: porém, neste caso, trata-se geralmente mais de um reconhecimento (no sentido da identifi­cação) do que de um conhecimento". Cf. Georg Lukács, Proleg6menos a Una Estética Marxista, México, Grijalbo, 1965, p. 116. Desconheço outra obra que trate com maior verticalidade o problema das relações dialéticas entre o universal e o singular, mediados pelo particular, especialmente o cap. III, Primeira Parte, ·Sobre la Categoria de la Particularidad ", ibidem, pp. 83-130. Ver, também, Herbert Marcuse, Ontologia de Hegel , Barcelona, Ediciones Mar­tinez Roca, 1970, pp. 126-139. 111 Ver, nesse sentido, J. Chasin, Lukács, "Vivência e Reflexão da Particulari­dade", in Ensaio, ano IV, n.• 9, São Paulo, Ed. e Livraria Escrita, 1982, pp. 62-66. 1 7 Para uma crítica das relações entre o universal indeterminado e a realidade apresentada em sua diversidade concreta, ver K. Marx e F. Engels, A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica, Lisboa, Presença, 1974, pp. 85-90. 1 R Nesse sentido, escreve Marx que ·o concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, a unidade da diversidade. :e por isso que ele é para ~ pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida j

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da práxis cotidiana regulativa da sociedade capitalista, da ordem nor­mativa e do senso comum que lhe é inerente, a universalidade formal e abstrata ainda tem, como veremos, seu lugar funcional plenamente garantido, consignando, ao nível das aparências, formas de ação humana operacionais que permitem estabelecer procedimentos jurídico­políticos indispensáveis ao disfarce imaginário da liberdade e da igual­dade instrumentais, como se estivessem dando conta, no máximo que é possível, de toda a realidade social burguesa.

Tendo essa linha teórica como orientação, observamos que a aparência da dissociação entre o Estado e a sociedade civil, necessária à reprodução do sistema capitalista, só é possível no interior da racio­nalidade instrumental calcada no destaque dos meios sobre os fins, da forma sobre o conteúdo, do universal abstrato sobre o universal concreto. Pode-se ver também que, na formação econômico-social em que predomina o modo de produção capitalista, o mundo jurídico só tem expressiva guarida nesse ambiente racional-formal, na medida em que se revela como um sistema de controle social destinado a dar conta dos conflitos assimiláveis aos esquemas normativos por ele pré­definidos, mediante procedimentos de reformulação dinâmica razoa­velmente manejáveis no interior do próprio sistema.19 O Direito se

apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento" . Cf. Karl Marx, "Introdução à Crítica da Economia Política", in Contribuição à Crítica da Economia Política, 2." ed., São Paulo, Martins Fontes, 1983, pp. 218-219. 19 Essa dinâmica do Direito, exprimindo a relação entre mudança e perma­nência, com predomínio daquela sobre esta, assegurando, contudo, um mínimo de segurança e de certeza, é referida por Tércio Sampaio Ferraz Jr. numa síntese esclarecedora: "Numa sociedade tornada complexa, formas difusas de controle são substituídas por instrumentos de atuação mais rápida e efetiva. O predomínio progressivo do Direito positivo, aquele que era posto por decisão, começa a alastrar-se na medida em que era instrumento ágil, o qual podia ser modificado ao sabor das necessidades e das mudanças, nos valores sociais. Com isto, também há uma inversão na relação mudança-permanência. O Direito positivo institucionaliza a mudança, que passa a ser entendida como superior à permanência, e regulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo restabelecidos, numa processo sem fim" . Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr .,

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exprime como uma forma de racionalidade representativa do modo de aparecer próprio do Estado, na sua figuração abstrata, igualitária, neutra e que desenvolve umdiscurso para o ocultamento ou a redução imaginária' das diferenças, na busca de uma objetividade impessoal e determinante de sua verdade e legitimidade. Na sua erupção formali­zada, o Direito exprime uma· fala abstrata e autônoma, que busca um conteúdo de sentido anônimo, parecendo, na sua essência significativa, não precisar de autor ou produtor. Esse fenômeno se traduz na estrutu­ração burocrática do próprio Estado, conduzindo a uma formalidade tão abstrata de sua ação administrativa e procedimentos normativos que sugere a ilusão de não precisar de suportes humanos para criar ou recriar o real social. O Direito, na superfície de seus enunciados e prescrições formais, parece expressar uma plena racionalidade em si e por si, como se ela, ao nível de sua própria representação, estivesse perfeitamente colada ao real. Na aparência ideológica, o mundo jurídico está completamente e por inteiro posto aí diante de nós, atual e poten­cialmente, como racional em si e por si, construído e construível ple­namente pela práxis social consciente, como um objeto que se pode dominar totalmente ou quase totalmente pela vontade. Ele é concebido objetivamente, através de sua representação racional-formal, exatamente porque assim é possível dominá-lo inteiramente pelas operações práticas e intelectivas. Desse modo, perfazendo uma determinação completa, no plano da concepção racional do jurídico, com a pretensão de dizer tudo o que ele é ou deve ser e com a exclusão de todas as contradições inerentes ao movimento do real, toma-se o mundo do Direito como algo inteira e positivamente determinado em sua essência, cujas pro­priedades são racionalmente desdobradas e se articulam mecânica e funcionalmente. 20

A racionalidade abstrata do Direito pode fazer parecer que há uma

imediaticidade expressiva desse Direito, sob o ângulo da linguagem

que o exprime, como se traduzisse, através das normas jurídicas e da

reflexão ordenadora e categoria! dessas mesmas normas (dogmática

jurídica), a conexão absolutamente verdade.ira e "objetiva" de toda

"Existe um Espaço no Saber Jurídico Atual para uma Teoria Crítica?, in Crítica do Direito e do Estdo, op. cit., p. 69. 211 Ver, nesse sentido, Marilena Chaui, Cultura e Democracia, op. cit., pp. 33-35.

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a sua realidade simbólica manifesta e plenamente presente ao nível da própria representação prática e cognitiva que dessa realidade possamos ter. O direito de propriedade, por exemplo, na sua direta personificação normativa e no seu tratamento teórico pela dogmática jurídica, estaria dizendo tudo o que poderia total e exatamente dizer, através da forma expressiva das normas jurídicas que o instituem positivamente e da significação plena dos conceitos pelos quais juridicamente o compre­endemos, sem fissuras e de modo racional e transparente . O Direito formalmente considerado se apresenta de maneira ideolc?gica como o único Direito existente, pleno e bastante por si mesmo, estabelecido por decisão estatal e sob a forma de coerência sistemática? 1 Porém, sob a ilusória aparência do monismo jurídico, consagrado unicamente pelo Estado, mediante decisões positivadas em regime de monopólio da normogênese, dissimula-se a realidade de um " pluralismo" jurídico recôndito que, na verdade, não é precisamente um mero pluralismo composto de realidades diversas, mas uma pluridimensão dialética imanente e que constitui de modo essencial e dinâmico aquele monismo aparente.22 A racionalidade simplesmente formal do direito atribui-lhe a característica de ser representado, em nosso pensamento, como algo imaginariamente exaurido em todas as suas propriedades lógicas e positivas, com exclusão das determinações contraditórias que lhe são intrínsecas, fazendo crer numa realidade jurídica totalmente manejável e funcionalmente dominada, sem tempo histórico próprio e sem, por conseqüência, um movimento interno que acolha também sua própria destruição .23 Neste caso, o Direito se apresenta completamente deter­minado ou determinável em sua expressão fenomênica imediata, com­parecendo o "não-direito" - intrínseco à natureza dialética do próprio Direito; sua negação interna - como algo externo e perturbador (irra­cional) ou, no máximo, como forma complementar de sua tradução

2 1 Ver Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, pp . 7-38 e 161-65; Miguel Reale, O Direito Como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1968, pp. 135-139.

.22 Ver Boaventura de Souza Santos, O Discurso e o Poder, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, Distribuição: Centelha, Promoção do Livro Apartado , 1980, pp. 64-78; Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado , São Paulo, Martins, 1972, pp. 246-314.

23 Ver Marilena Chaui, op. cit ., pp. 35-7.

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oficial e positiv&da, articulada mecânica, funcional ou estruturalmente, -com vistas a superar as situações de crise conjuntural da sociedade capitalista. Em nossa concepção, entretanto, vemos o direito não-oficial como uma expressão dialética do contra-direito no interior do próprio Direito. Ele colhe em seu seio as necessárias articulações internas de sua negação destinadas a "vergar" o jurídico, permanentemente e de forma estrutural e dinâmica 2 4

• Isso ocorre cexatamente para não " quebrá-lo" no processo de sua vigência e para permitir, com isso, sua manifestação legitimada na mesma medida em que precisamente se mostre capaz dessa flexibilidade operacional para · dar conta dos conflitos que não podem ser solucionados a mera aplicação das normas positivadas em sua expressão puramente externa e formaP6 Isso sig­nifica que,"em nosso entender, não há propriamente um Direito formal e positivado, de um lado, oficial e vinculado à realização da justiça legal, que se contrastaria, de outro lado e "por fora", com um Direito informal e pretensor da justiça social, de caráter inoficiaJ.26 Tal modo de captá-lo compreenderia um pluralismo fragmentado cujo teor de

24 O juiz, diz Poulantzas, ·contribui , através de seu julgamento, para a objeti­vação necessária à existência do direito: o juiz 'nega' o direito enquanto conceito puro ao aplicá-lo a uma situação prática e contribui, assim, para a própria existência do direito, porque constitui um dos motores dialéticos deste: ele o 'nega' por sua .compreensão mesma; como se viu, a objetivação necessária à existência de toda realidade do direito não se impregna de sentido senão a partir da compre~nsão do juiz". Cf. Nicos Poulantzas, ·O Método Dialético na Compreensão do Universo Jurídico", in Claudiq' Souto e Joaquim Falcão (orgs.), Sociologia e Direito, São Paulo, Pioneira, 1980, p. 68.

2 5 Por isso, diz José Eduardo Faria, • a neutralidade do positivismo norma ti vista, ·decorrente da pretensa e)Cclusão dos elementos meta-jurídicos, é apenas aparen­te" . Cf. José Eduardo Campos de · Oliveira Faria, Eficácia Jurídica e Violência

. Simbólica, O Direito como Instrumento de Transformação Social, tese apre­sentada ao concurso p~ra professor-titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo, 1984, p. 156. Ver, também, Roberto Lyra Filho, Para um Direito Sem Dogmas, Porto Alegre, Sérgio Anto~io Fabris Editor, 1980, pp. 28-33. 2

6. A respeito da distinção entre direito oficial e inoficial, entre justiça legal e justiça social, ver, respectivamente, Tércio Sampaio Ferraz Jr., O Oficial e o Inoficial, e Joaquim de Arruda Falcão, ·Justiça Social e Justiça Legal: Cónflitos de Propriedade no Recife", in Conflito de Direito de Propriedade, Invasões l)rbanas, or~. pelo último, Rio de Janeiro, F<;>rynse, 1984, pp. 79-124,

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irracionalidade manifestar-se-ia apenas em momentos de crise social e, por conseqüência, do próprio Direito, momentos estes que seriam mais ou menos absorvidos nas teias da legitimidade conforme as condições de tratamento manipulativo do ordenamento oficial frente às contra­dições sociais emergentes da sociedade burguesa.27 Compreender o oficial e o inoficial como dois segmentos de atividade jurídica segre­gados, ainda que se permitia a opinião de que o ordenamento oficial persista por si mesmo e mantenha ideologicamente toldadas as mani­festações normativas inoficiais contrárias, exatamente para melhor acolhê-las sem se trair como ordenamento completo e legitimado con­forme os valores dominantes que absorve e assume, é ainda consignar o mundo jurídico como tradução de uma fictícia racionalidade hprmô­nica e coerente que vê na crise do Direito, explosiva ou não, a pxpres­são de um momento contingente e passageiro e não a emerg~hcia de situações estruturais antagônicas da sociedade. Na verdade, oi Direito, no sistema capitalista, já é a expressão permanente e continuada da

própria crise e tensão contraditória inerentes a esse sistema, umas vezes mais agudas, outras, menos. A real e viva conexão entre a ordem de relações econômicas e sociais dominantes na sociedade civil burguesa e o sistema formal de Direito vigente disciplinador de tal ordem não se pode revelar, na perspectiva dialética da sociedade, como "exterior" a essa mesma ordem e sistema. Ao possibilitar um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítima do interesse privado, o Direito traduz em si mesmo essa oposição e ao mesmo tempo a unidade em razão das quais o próprio sistema formal e a ordem capitalista existem como condições mútuas e intrínsecas, um do outro. Em última análise, a ordem vital - a sociedade civil e o processo produtivo burguês exprime suas contradições internas através da reconquista permanente do procedimento jurídico formal, cujo monopólio de positivação por. parte do Estado exige a contínua elasticidade funcional desse mesmo

2 7 "A decantada 'crise' jurídica, escreve J. Eduardo Faria, ocorre, assim, no momento em que os mecanismos legais tradicionais de neutralização dos confli­tos e trivialização das tensões já não conseguem mais rechaçar aquelas ameaças, obrigando o aparelho estatal a ampliar o poder discricionário de seus organismos judiciais, legislativos e burocráticos para manter intocado seu padrão de domi­nação". Cf. José Eduardo Faria, op. cit., p. 158.

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procedimento.~x Tal elasticidade é concretizada pela possibilidade de manipulação e intromissão velada ou disfarçada, em tal sistema "neu­tro" e racionalizado - possibilidade constituinte da singular natureza deste -, de novos valores e demandas simbólicas destinados a tornar esse sistema formal dinamicamente adaptável, válido e legítimo, como condição de existência daquela mesma ordem vital, eivada de proces­sos estruturalmente contraditórios e antagônicos, parecendo, entre­tanto, que ele, o sistema jurídico, assim se mantém precisamente em razão de suas próprias forças e virtudes racionais intrínsecas. 29

A formalidade do Direito e dos procedimentos de sua própria cria­ção legítima permite o cálculo, a previsão e, por isso mesmo, a mani­pulação de meios indispensáveis ao controle e instrumentalização do wcial, tanto ao nível teórico do saber jurídico quanto ao da prática normativa. Vê-se, por esse desdobramento, que o universal abstrato é elemento constitutivo essencial da_ presença indiferenciada da coesão social ao nível do Estado, mediante a manipulação "neutra" dos pro­cedimentos jurídicos que permeiam, na sociedade civil, as práticas cotidianas da dominação e da exploração econômica, escamoteadas precisamente por esse manejo formalizado. Como tal sistema jurídico não tem outro fundamento senão o da necessidade de preservar a ordem social sob a justificativa de que fora dela nada mais existe de racional, ele se dogmatiza e se legitima não em função de seu conteúdo ou de critérios materiais específicos, mas pelo fato de que suas pautas nor­mativas são corretamente ditadas pela autoridade estatal ou com base nela ou ainda porque são dotadas de eficácia. Nesse sentido, o fenôme­no da positivação e racionalização do Direito corresponde exatamente ao processo da dissociação do Estado em face da sociedade civil, desta­cando-o (o Estado) como a principal fonte legítima do Direito, através da competente criação legislativa . Quer na linha do positivismo formal ou normativista, quer na do realismo jurídico, a dogmática aparece como forma dominante no pensamento jurídico, no sentido não só de rejeitar qualquer decisão judicial que não se fundamente direta ou indireta­mente na lei positivada, como também pela convicção maior ou menor

~s Sob o ângulo funcionalista, ver Niklas Luhmann, Legitimação pelo Proce­dimento , Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1980, pp. 17-47. ~!

1

Ver José Eduardo Faria, Retórica Política e Ideologia Democrática, Rio de Janeiro. Graal, 1984.

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de que a legislação é dotada de propriedades de coerência, caracteriza­das exatamente pela ausência de imprecisões, lacunas e contradições. Na verdade, é a operação da dogmática jurídica - no plano de sua função social para manter a aparência da separação do Estado como elemento de coesão. social, em face da sociedade civil como sede das contradições estruturais - que reformula o próprio Direito ao precisar­lhe os termos obscuros, completar-lhe as lacunas e conjurar-lhe as incoerências. Essa reconstrução do Direito positivo pela dogmática é realizada mediante a manipulação retórica de aparatos conceituais, de sorte a fazer parecer que as soluções brotam diretamente do Direito positivo, sem modificá-lo, como se ali já estivessem virtualmente.:w Ocorre, portanto, uma inversão ideológica, com vistas a assegurar a universalidade instrumental e abstrata do Direito positivado. Para im­pedir o desvio da orientação dogmática que implicaria o desnudamento crítico dos próprios conceitos, o pensamento jurídico dominante dá por pressuposta a racionalidade do legislador, ao lhe conferir a voz da coerência lógica e da sensibilidade axiológica autêntica plenamente orientada ao bem comum, atribuindo, por conseqüência, ao ordena­mento jurídico por ele criado precisamente as propriedades que aquele não possui, ou seja, a completude, a coerência e a clareza de seus termos.'31 Assim, o ordenamento jurídico é modificado, dentro de certos limites, para atender às exigências da dinâmica social, sem parecer que está sendo alterado, tendo em vista· exatamente compatibilizar a segurança jurídica indispensável ~o cálculo racional e previsão das atividades da sociedade moderna com a adequação da ordem positivada aos reclamos da justiça e da diversidade social. e nesse campo, aliás, que se inscreve a atual crise da dogmática, por não mais dar conta da

30 Essa manipulação retórica se traduz numa inversão ideológica que resulta na representação imaginária pela qual se identificam saber e realidade concreta. Nesse sentido, Warat escreve que "as imagens discursivas são vividas como a realidade concreta da sociedade. A ideologia é um campo do imaginário, onde a imaginação da realidade desejada é tomada como a realidade conhecida, o construído no interior da consciência como conhecimento é vivido como idên­tico ao dado". Cf. Luis Alberto Warat, "El Sentido Común Teórico de los Juristas", in Contradogmática, n.o ·1, Associação Latino-Americana de Metodolo­gia do Ensino do Direito (ALMED), 1981, p. 48. ~ 1 Ver, nesse sentido, Carlos Santiago Nino, lntroducción al Análisis del Dere­cho, Buenos Aires, Astrea. 1980, p. 321-333.

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abundância e da complexidade normativas ocorrentes em nossos dias e que traduzem com veemência a irracionalidade e as profundas contra­dições inerentes ao sistema social. Na verdade, essa crise não decorre tão só da ausência ou não-elaboração de aparatos conceituais apro­priados a assimilar a referida pletora legislativa - como se o Direito pudesse, por si mesmo, resolver os problemas pretensamente criados por ele próprio -, mas sim e principalmente da contradição cada vez mais aguda entre o progressivo caráter social da produção e a apropria­ção privada dos meios e recursos produtivos da sociedade, exigindo mil recursos normativos e medidas administrativas e burocráticas para obviar os inumeráveis focos de antagonismos e conflitos engendrados por aquela contradição estrutural.

Nessa abordagem, verificamos ser essencial ao funcionamento do sistema capitalista a formalidade dogmática e abstrata do direito, ex­pressão estatal à margem da sua referência explícita e mediatizada com as contradições da sociedade civil, e que se revela mediante um sistema axiomatizado, constituído de normas formais, abstratas e gerais, sendo criadas, regulamentadas e aplicadas de modo estrito segundo procedi­mentos previamente estabelecidos e, portanto, racionalmente previsí­veis . .a2 A especificidade desse sistema formalizado e abstrato, que, ao legitimar a monopolização da violência pelo Estado, mascara simul­taneamente a dominação política e a exploração econômica, deita suas raízes tanto na esfera de circulação do capital quanto na· esfera das relações de produção. Como já analisamos anteriormente, é bom frisar, essas esferas guardam uma relação dialética entre si e formam o arcabouço estrutural da sociedade civil.

Na esfera da circulação, as relações de troca, de distribuição e de consumo condicionam, a par das contradições internas que mantêm

-~~ Ver Max Weber, op. cit., pp. 512-531 e 1047-1076; José Eduardo Faria, tese de concurso, op. cit., pp. 131-145; José Maria Gomez, "Surpresas de uma Crítica: a Propósito de Juristas Repensando as Relações entre o Direito e o Estado", in Crítica do Direito e do Estado, op. cit., pp. 103-112'; Tércio Sampaio Ferraz Jr., A Ciência do Direito, São Paulo, Atlas, 1977, pp. 30-39 e 50-67; Norberto Bobbio, El Problema del Positivismo Jurídico, Buenos Aires, Eudeba, 1965; Max Adler, La Concepción del Estado en el Marxismo, México, Siglo XXI, 1982, pp. 129-136; Aloysio Ferraz Pereira, Estado e Direito na Perspec­tiva da Libertação, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980, pp. 155-164.

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entre si e com as relações de produção, conexões funcionais que na superfície dos fenômenos resguardam uma articulação orgânica entre os homens, mediante papéis configurados segundo critérios de uni­versalidade abstrata. Nesse âmbito funcional, a singularidade pessoal e concreta de cada indivíduo e sua condição existencial específica como membro de uma determinada classe social não são particularmente consideradas. O que se leva em conta é o indivíduo como titular de um papel ou de uma função generalizada, como algo tipificado, anô­nimo e genérico. Os padrões de conformação dos papéis se definem em razão da conduta coletiva dos indivíduos abstratamente considera­dos, caracterizando círculos nos quais participam inúmeras pessoas em sua qualificação anônima, exatamente enquanto pertencentes a deter­minados grupos em que aparecem como indivíduos genéricos, inter­cambiáveis ou substituíveis; assim, encontraremos o comprador, o vendedor, o arrendatário, o balconista, o policial, o funcionário, o advogado, o legislador, o juiz, o médico, o paciente, o pai, o empregado, o patrão, o motorista, o professor, o cidadão, etc . .as Do ângulo jurídico, a referência a essas funções genéricas e abstratas é o que importa, isto é, o mundo do Direito considera os modos coletivos impessoais inde­pendentemente das condições específicas que remarcam os indivíduos em sua existência particularizada, como membro desta ou daquela classe social. Neste mundo, os níveis de abstração se tornam ainda mais elevados pela unificação de múltiplas figuras sob a categoria homogê­nea de "sujeito de direito", operadora das relações de liberdade e igualdade formais indispensáveis aos pactos recorrentes da reprodução econômica capitalista. Destaca-se, aqui, a esfera da circulação, espe­cialmente sob o aspecto das relações de troc~ (mercadorias, atividades, produtos ideológicos, etc.), onde os homens no plano da superfície fenomênica se encontram também numa referência funcional recíproca e abstrata, ocultando, sob aparentes conexões volitivas, as reais condi­ções que permitem exprimi-los como produto das relações sociais básicas. Portanto, o sujeito genérico das relações coletivas abstratas, pré-formadas conforme os vários padrões de conduta funcionalmente articulados, não é nem o indivíduo singular inefável, nem o homem

33 Ver Luis Recasens Siches, Jntroducción a! Estudio del Derecho, México, Porrua, 1972, pp. 30-33. Ver Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A Constru­ção Social da Realidade, 4." ed., Petrópolis, Vozes, 1976, pp. 35-53.

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inteiro particularizado segundo o universal concreto, determinado aqui e agora em seu contexto histórico-social. Em virtude dessa categorização formal do sujeito jurídico, que representa precisamente uma liberação dos vínculos de dependência pessoal dos regimes pré-capitalistas, e sob a ficção jurídica da igualdade e liberdade abstratas dos cidadãos, ocul­ta-se a realidade concreta das classes sociais profundamente diferen­ciadas e antagônicas. Por isso, o universal abstrato, representado em cada sujeito genérico isoladamente considerado - tal como o cidadão abstraído de si está radicalmente separado em si do proprietário, do produtor ou do consumidor - , permite realizar com grande êxito o mascaramento ou o disfarce ideológico das contradições estruturais da sociedade capitalista. Aqui se manifesta a perversa dialética do indivi­dualismo jurídico-político que fundamenta tanto a soberania estatal, como a legitimidade para agir no âmbito do Direito, na imaginária essência indivisível de um indivíduo essencialmente dividido, princípio da autonomia e da igualdade formal dos cidadãos perante o Estado e dos sujeitos de direito perante a ordem jurídica.3 4

Resta-nos ainda considerar, nesta passagem, a esfera das relações estruturais econômicas, envolvendo igualmente o processo produtivo e a divisão social do trabalho. Retomamos aqui, em outro nível, o condicionamento econômico-social da formalidade e abstração do siste­ma jurídico enquanto modo específico de sua manifestação no sistema capitalista e determinante da dissociação aparente entre o Estado e a sociedade civil. Preliminarmente, convém lembrar que a violência, como expressão de uma coerção extra-econômica viva e direta, está ausente no processo de produção capitalista. Não obstante, a separação dos trabalhadores diretos de seus meios de trabalho conduz ao inevitá­vel constrangimento econômico difuso que os força a vender sua força de trabalho aos detentores daqueles meios .a" Assim, os trabalhadores

:H Ver, nesse sentido, Didier Motchane, Claves dei Socialismo, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1978, pp. 76·79.

ac. Como já foi visto, a dupla exclusão, a do trabalhador frente aos meios de produção e a do capitalista frente aos meios de violência física, aponta .neces­sariamente para a emergência de um poder aparentemente externo, detentor do monopólio da coerção física, que engendra as condições indispensáveis, de caráter político, normativo e burocrático, para a sustentação do clima de "neu­tralidade" jurídica que permita a legítima perseguição da utilidade privada.

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são levados a estabelecer liames contratuais de trabalho, onde a igual­dade e a liberdade formais apontam para a necessária construção da

individualidade abstrata, tida como o fundamento essencial unitário dos homens e, ao mesmo tempo, o grande diferenciador deles entre si. Com efeito, como poderiam os homens ser iguais senão com a abstração

da singularidade pessoal de cada indivíduo? Da mesma forma, não poderiam ser iguais em razão das determinações de classe que na verdade os separam profundamente no plano social em grandes círculos coletivos antagônicos.3 6 Ao homogeneizar o indivíduo, mediante o prin­cípio de que todos são iguais perante a lei, o Direito destaca a diferença

entre os homens exatamente como indivíduos atômicos e abstratamente considerados, quer indiretamente como singularidade imediata e visível

na pessoa física de cada um (que em certo sentido não deixa de ser uma abstração), quer diretamente como sujeito jurídico, sem outra qualificação senão a de um ponto referencial e impessoal de imputação, com poderes gerais definidos previamente na lei para realizar negócios

jurídicos. 37 Desse modo, a situação social particularizada e concreta desses indivíduos, como membros de classes antagônicas reciproca­mente determinadas, é rejeitada exatamente na medida dessa mesma determinação mútua das classes, visto que se o sistema efetivamente reconhece as diferenças sociais (elas são visíveis), estas, entretanto, não são apanhadas como sendo, a nível das classes, determinantes e ao mesmo tempo determinadas entre si. Em outras palavras, aceita-se a

existência de diferenças sociais, o rico e o pobre, mas precisamente como fatores externos entre si, com base em razões meramente pessoais, corn.o se cada elemento tivesse sua essência determinada em si e por

si, como se pudessem existir independentemente um do outro. B neste plano que surge o fenômeno do paternalismo que não questiona a relação mesma e fundamental pela qual o rico é rico e o pobre é pobre; começa aceitando a situação como de certo modo ~'natural", inafastável

36 Para uma análise sobre as determinantes dessa desigualdade e suas condi­cionantes .no plano da apropriação econômica e da circulação mercantil, ver o maquscrito de K. Marx expresso no fragmento da versão primitiva da "Con­tribuição Para a Crítica da Economia Política", in Contribuição à Crítica da Economia Política, op. cit ., pp. 267-284. 37 Ver Nicos Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo, Rio de Janeiro,

Graal, 1981, pp. 97-99.

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em princípio, propugnando apenas por uma atitude ética no sentido de "minorar" o sofrimento do "pobre" com uma política de melhor distribuição da riqueza social. Assim, a exploração e a dominação se mantêm sob o manto hegemônico do ocultamento ideológico, através de representações universais e abstratas racionalmente articuladas. Outra não é, mutatis mutandis, a situação jurídica quando retrata, ao nível de pautas gerais de conduta e de categorias abstratas e formali­zadas, a posição do trabalhador, seja ele considerado individualmente, seja coletivamente em sua ação institucionalizada, nos sindicatos, nas associações, nas greves, etc. Neste caso, as formas jurídicas, prescritivas ou operacionalmente descritivas, não escondem propriamente as dife­renças perceptíveis sob a máscara de um formalismo universal; antes pelo contrário, as revelam explicitamente para melhor ocultá-las, em suà realidade invisível ou não-patente, com a utilização de generalidades abstratas apenas articuladas "por fora" e funcionalmente, sem as me­diações que possam desnudar as relações estruturais antagônicas da sociedade de classes.38 Exemplo disso é a manipulação das figuras jurídicas do economicamente insuficiente, do relativamente incapaz, do colono, do inquilino, do segurado, do assalariado, da assistência social, do indigente, do flagelado, etc., em articulação com outras figuras representativas e qualidades ou situações positivas, contrárias ou opostas. Vê-se que o Direito, na sua expressão dogmática, institui formas operacionais adequadas para tratar as diferenças emergentes na superfície da sociedade, mas elas não podem ser tomadas por si sós como categorias translúcidas da práxis estrutural humana ou explica­tivas do real, visto que são representações práticas imediatamente cola­das ao ser social aparente.39 Entretanto, elas servem como lastro uni­versal abstrato para "objetivar" o Estado através de seu ordenamento

a~ P~ra um exame das relações entre as principais formas da práxis jurídica, especialmente a propriedade e o contrato, com as relações de troca, objetivando estabelecer as mediações entre vontade jurídica e estrutura social, ver T osé Arthur Giannotti, "Sobre o Direito e o Marxismo", in Crítica do Direito, n.o 1, São Paulo, Ciências Humanas, 1980, pp. 5-14. ;{!I Para uma visão da natureza explicativa ou cliptonormativa da relação entre as formas doutrinárias da dogmática jurídica, enquanto discurso da práxis do Direito, a realidade social e a comunidade lingüística do mundo jurídico, ver Tércio Sampaio Ferraz Jr ., A Ciência do Direito, op. cit., pp. 9-17; idem, Di· reito, Retórica e Comunicação, São Paulo, Saraiva , 1973, pp . 31-58 e 159-189 .

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jurídico e de suas instituições, cujo efeito, dentre outros, é também diferenciá-lo acima das classes sociais.

A ideologia da igualdade e da liberdade, fundamental para en­gendrar o sujeito livre e igual perante o Direito (sujeito de direito), o contrato, a moeda e o cidadão, alimenta a dinâmica reprodutora do capital dentro de uma tensão em que se revela a evidência de profundas desigualdades sociais encimadas por um Estado que funcionam aparen­temente como árbitro e tutor imparcial. Mediante o discurso da igual­dade, o Estado enfrenta, com avanços e recuos de suas instituições múltiplas e diferenciadas, as relações estruturais assimétricas, que são paradoxalmente a sua própria razão de ser. Aquela ideologia, portanto, com seu aparato conceitual expressivo (o sujeito de direito, o cidadão, a nação, o povo, etc.), forma a atmosfera essencial e mediadora entre o Estado e as relações sociais antagônicas que ele garante;a supressão ou falha dessa atmosfera ideológica põe a descoberto o comprometi­mento direto do Estado com as contradições da sociedade civil das quais ele mesmo é também um produto. Na ausência ou falha de sua função organizadora do consenso, sob a forma de hegemonia, o Estado mostra-se desnudado em seu componente específico representado pelo exercício monopolizado da violência coercitiva num território delimita­do, com vistas a assegurar as relações de dominação do capital. 40 Por conseqüência, quando é privado de suas mediações ideológicas, com o malogro das funções de organizador do consenso legitimado e com o destaque da imponência coercitiva, o Estado mostra com paradoxal fragilidade sua autêntica face de fiador das relações assimétricas e antagônicas capitalistas, perdendo até mesmo a qualidade ostensiva de nacional, popular ou democrático.

Como o Direito faz parte essencial desse quadro ideológico para o resguardo da aparência legitimadora, convém esclarecer melhor seu mecanismo geral de articulação formalizada ao mediatizar o Estado com a sociedade civil. Já abordamos num outro lugar deste trabalho que o poder hegemônico exerce uma ingerência no conflito de interesses, recobrindo-o de legitimidade, especialmente na decisão a respeito da

40 Ver Guillermo O'Donnell, "Anotações para uma Teoria do Estado", li , in Revista de Cultura e Política, n .0 4, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp . 81-82.

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repartição dos bens (escassos) produzidos pela sociedade. Para esse efeito, as esferas do público e do privado são distinguidas exatamente em razão da dissociação entre as decisões do "poder centralizado manifesto", onde o Estado transparece ostensivamente com a plenitude de suas instituições visíveis, e as decisões do "Poder centralizado latente" - que devem, portanto, ser distinguidas das decisões econô­micas descentralizadas e manifestas dos capitais individuais -, apa­rentemente tomadas apenas no plano da sociedade civil, no seio da vida privada, mas com o respaldo permanente e monopolizado do Estado na vigilância e no condicionamento geral das relações de pro­dução que tutela.41 Na esfera pública, a organização jurídica do poder estatal e a gestão burocrático-administrativa deste determinam direta­mente, sem a imediata participação dos "sujeitos privados", a forma como o~ bens econômicos devem ser partilhados, ou seja, quem deve recebê-los, de que modo, de que natureza ou espécie e em que quanti­dade. Isso é realizado mediante a fixação de pautas e de políticas implementadas e executadas através da tributação, da manipulação do orçamento público, do controle tarifário, do manejo das linhas de crédito para o setor privado, do controle do comércio interno e externo, da intervenção em áreas econômicas e em áreas sociais, da política de subsídios públicos, dos investimentos em infra-estrutura, do seguro social, do incremento à produção e circulação de bens, do estímulo à ciência e tecnologia, do exercício do poder de polícia, do controle de

preços, da defesa da saúde pública, etc. Na esfera civil, por outro lado, o poder público se abstém de

interferir diretamente nas decisões a respeito da partilha dos bens produzidos, exatamente onde se engendra e se realiza a mais-valia independentemente do exercício da imposição imperativa e da coerção extra-econômica .42 Nesta esfera, os conflitos são solucionados nos limites das forças econômicas privadas, porém ainda com a presença latente ou invisível do Estado, na medida em que este assegura poten-

4 t Sob o ângulo estritamente jurídico e normativista, porém já de grande valia para desmistificar o caráter ideológico do dualismo entre direito público e privado, ver Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Coimbra, Armenio Amado Editor, Sucessor, 1974, pp . 377-383. 42 Ver, nesse sentido, Zygmunt Bauman, Fundamentos de Sociologia Marxista, Madri, Alberto Corazon Editor, Comunicación 27, 1975, pp. 79-80.

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cialmente as características básicas do sistema e de suas relações estru­turais - propriedade privada, iniciativa econômica, equilíbrio de forças, liberdade para contratar, etc. -, restringindo-se a disciplinar o "modo" de solução daqueles conflitos, mediante o estabelecimento "centralizado" de normas de Direito privado. :É nesse sentido que o poder centralizado do Estado persiste no âmago da sociedade civil, só que de forma latente e potencial, porém facilmente identificáv~l pela expressa edição das "metanormas" de Direito privado, indiretamente reguladoras das ações e dos conflitos nessa esfera, na medida em que permitem que os "sujeitos jurídicos privados" participem na criação de normas autovinculantes.43 Essas metanormas privadas não regulam diretamente o conteúdo da vontade nos pactos entre os agentes sociais da esfera civil, não estabelecendo nesse nível a quem e sob que condi­ções específicas os bens devem ser distribuídos. Neste âmbito, o Direito não estabelece "o que" os indivíduos devem fazer em suas relações recíprocas, mas exatamente " como" devem fazê-lo para preve­nir os conflitos e para que suas relações tenham tutela e validez jurídica.4 4 O ordenamento privado não determina quais os bens e para que fim devem ser produzidos, vendidos ou comprados, mas diz como deve ser feito para que esses bens circulem e se tornem propriedade de alguém.

Sob o ângulo do Direito privado, portanto, o poder público está e não está presente na sociedade civil; está presente como garantia, como potência, como editor de metanormas, como permissor da parti­cipação na normogênese privada, como centro controlador à distância , e não está, como poder político explícito, como instituição, como função pública ostensiva, como norma imperativa sobre o conteúdo da vontade, como coator direto , etc. Nesse sentido, a ordem jurídica cumpre perfeitamente seu papel ideológico na medida em que respalda,

43 Em contraposição a essa linha, no entender de Kelsen, o contraste entre direito público e privado de modo absoluto cria "a impressão de que só '6 domínio do direito público, ou seja, sobretudo o direito constitucional e admi· nistrativo , seria o setor de dominação política e que esta estaria excluída no domínio do direito privado. ( ... ) o direito 'privado', criado pela via jurídica negociai do contrato, não é menos palco de atuação da dominação política do que o direito público". C f. Hans Kelsen , op. cit. p. 382.

44 Ver Norberto Bobbio, El Problema de! Positivismo Jurídico, op. cit , p. 19.

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sob o manto da liberdade e da igualdade formais garantidas pelas normas gerais e abstratas, impessoais e neutras, enfim como direito positivado pela autoridade estatal, todos os interesses da sociedade civil, indistintamente. Assim, abre-se, por exigência do próprio sistema, um espaço juridicamente neutro ao movimento legítimo dos interesses privados, deixando-os à vontade para que, nos limites desse sistema conformado e tutelado pela sociedade civil e pelo Estado, possam se articular livremente em razão de suas respectivas forças. Enquanto esse Direito formalizado e abstrato, também refletido na e pela dogmática jurídica, exerce sua função de possibilitar o cálculo e a previsão das condutas e a composição de conflitos, sem estabelecer os fins e objetivos imediatos e concretos dos agentes privados no processo produtivo e na circulação dos bens, as relações sociais por ele mesmo qualificadas se conduzem espontaneamente segundo a dinâmica do núcleo contraditório dessas relações, regidas conforme as leis que perfazem o determinismo social dialético, com relativa independência do processo normativo voluntariamente constituído. 45 N~sse sentido, a par da neutralidade jurídica e da ausência de coerção extra-econômica ou política na esfera da sociedade civil, as ações humanas ficam ao sabor de um clima de liberdade onde os interesses se articulam ao nível das forças econômicas que os membros das diferentes classes sociais manipulam, sem inter­ferência ostensiva do poder estatal senão para garantir esse mesmo

Hi Numa referência crítica à relação hegeliana entre o Estado e a sociedade civil, tendo em vista demarcar o reino da liberdade frente ao da necessidade, Miaille escreve: "A Idéia desenvolve-se naquilo que Hegel chama a sociedade civil, mas ela não pode encarnar-se aí de forma satisfatória. Os indivíduos, na sociedade civil, são 'pessoas que têm como objetivo o seu interesse próprio'. t: o mundo da necessidade e das carências em que o trabalho e a interdepen­dência impedem o homem de ser livre. Esta sociedade civil contém os três elementos seguintes: a mediação da necessidade e a satisfação do indivíduo pelo seu trabalho e pelo dos outros; a defesa da propriedade; enfim, a adminis­tração e a corporação como defesa dos interesses particulares. f. em definitivo o lugar da produção econômica, fonte da divisão da sociedade em classes. Mas precisamente esse lugar da necessidade limita o horizonte dos homens aos seus interesses próprios e, por conseqüência, a realização da Idéia é aí abso­lutamente incompleta: só 'o Estado é a realidade em ato da Idéia moral obje­tiva'. O Estado aparece como a 'realidade em que o indivíduo tem sua liber­dade e goza dela enquanto saber, fé e querer geral'". Cf. Michel Miaille, Une lntroduction Critique au Droit, Paris, François Maspero, 1976, pp. 142-143.

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clima e tutelar as relações daí derivadas. Naturalmente, a desigualdade real, engendrada pela situação econômica concreta dos indivíduos segre­gados em classes sociais antagônicas, é que determina, sob a aparência da igualdade e da liberdade em suas recíprocas relações, asseguradas pelo próprio ordenamento jurídico, a verdadeira condição de existência social desses indivíduos no plano da sociedade civil. Convém realçar, portanto, que o Direito na sua expressão racional-formal, tanto no plano das normas como no das categorias pelas quais estas são refle­tidas, traduz as relações instrumentais e funcionais de complementação recíproca entre os papéis dos agentes sociais e de suas eventuais com­posições, aparentemente à margem dos conflitos estruturais. Tal expres­são de racionalidade formal é, no entanto, essencial para que as con­tradições antagônicas estruturais persistam como tais e, o que é mais

importante, dentro dos limites firmados por aquela mesma função

racionalizadora dos instrumentos e papéis jurídicos. B preciso ter em conta, entretanto, a fim de que não se cometam equívocos em relação a nossa abordagem, que o caráter racional-formal inerente ao direito burguês não exclui a consideração, nele implícita, do aspecto funcional

do Direito, enquanto expressão de uma razão instrumental, onde as conexões entre meios e fins preponderam sobre as de natureza estrutu­ral, especialmente tendo em vista a cada vez mais . acentuada "inter­venção ostensiva" do Estado na sociedade civil: em nosso entender, tanto a concepção funcional quanto a estrutural incluem-se na perspec­

tiva racional-formal do Direito, t~l como aqui abordamos .46 B assim que a expressão racional-formal do Direito, no âmbito da sociedade capitalista, traduz de forma imanente o mecanismo funcional do pró­prio sistema, seja ele considerado como manifestação de uma razão

universal que se pretenderia objetiva e "natural", seja como uma razão

instrumental que, num âmbito operacional de alta reversibilidade, procura a relação adequada entre meios e objetivos para atender aos

46 Ver Norberto Bobbio, "Hacia una Teoría Funcional dei Derecho", in Al­fonso Ruiz Miguel (org.), Contribución a la Tearía del Derecho - Norberto Bobbio, Valencia, Fernando Torres Editor, 1980, pp. 367-390; Manuel Garcia­Pelayo, Las Transformaciones del Estado Contemporáneo, Madri, Alianza, 1977, pp. 61-64; José Eduardo Faria, Sociologia Jurídica: Crise do Direito e Práxis Política, Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 104-140.

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fins hegemônicos da sociedade burguesa.47 Porém, é preciso ficar claro, aquela tradução é feita de tal modo que dá a impressão que exprime diretamente o próprio mundo das relações sociais tal como efetiva­mente se realiza e "deve" se realizar, como se ela refletisse por si mesma e de imediato as relações precisamente coladas ao real.48 Essa expressão ideológica, entretanto, transmite aos fatos da vida social, mediante uma inversão idealista, características que eles exatamente não possuem, como por exemplo a racionalidade, a coerência, a ple­nitude, a transparência, a estruturação voluntária da sociedade, etc. Assim, as contradições e conflitos estruturais e as leis sociais que os regem ficam relegados ao plano do irracional, sobrelevando apenas as categorias formais (normas ou conceitos) que apreendem o que é dado à evidência imediata, na superfície da sociedade, como mera positivi­dade do real-aparente. Essas categorias abstratas, ao rebaixarem as mediações sociais que permitiriam a captação das lutas de classes sub­jacentes, abrem o entendimento e a prática social para os conflitos personalizados e individualizados, de pessoas ou grupos, mas não para a real compreensão da inserção desses conflitos no quadro dos anta­gonismos sociais de base. 49 É bom frisar, entretanto, que essa capaci­dade não é apenas cognitiva, mas principalmente prática e varia de conformidade com o grau das mediações instaurado no sistema social por força de condições históricas específicas . e do nível de organização econômico-social alcançado em determinado Estado. Isso quer dizer que as categorias do ordenamento jurídico e da dogmática que o reflete não são e não podem ser estáticas, alterando~se progressiyamente para

-17 Ver Nicos Poulantzas, Sobre · El Estado Capitalista, Barcelona, Laia, 1974, pp. 45-47; Umberto Cerroni, Introducción a la Ciencia de la Sociedad, Barce­lona, Crítica, 1978, pp. 296-329. 4!1 No que respeita ao caráter ideológico da dogmática jurídica, que reflete parte daquele mundo das relações sociais, Miaille diz que "a ciência jurídica ·,rai tomar como certa a imagem que lhe transmite a sociedade e tomá-la pela própria realidade. ( .. . ) É o mundo subvertido! Toda a representação da vida social produzida pela sociedade 'se explica' desde então por ela própria". Cf. Michel Miaille, op. cit., p. 54. 49 Um excelente trabalho para aprofundar o estudo dessa relação entre o aparente formal e as contradições estruturais, no campo trabalhista, pode ser encontrado no ensaio de Carlos Simões, "Relação de Emprego e Relações de Produção". in Crítica do Direito, op. cit., pp. 27-62.

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dar conta com maior ou menor êxito, conforme as mediações que mobilizem dentro de seus parâmetros de possibilidade, dos conflitos interpessoais ou intergrupais em grande parte emergentes das contra­dições estruturais da sociedade. Esses conflitos, mesmo que ultrapassem os limites das relações interpessoais, em razão da grande heterogenei­dade do sistema social de classes no capitalismo avançado - com a maior amplitude e desenvolvimento da industrialização, urbanização e burocratização - , assumindo a figura de confronto entre grupos ou setores diversos da sociedade, não podem se exorbitar das conexões básicas que caracterizam o sistema como um todo, embora as formas jurídicas de solução desses conflitos sofram alterações em seu perfil de desempenho e no mecanismo de articulação com as bases da de­manda social. É o que ocorre, por exemplo, com a lenta e progressiva transmutação das formas jurídicas de proteção aos interesses indivi­duais, qualificadoras de um sistema onde ainda prevalecem os valores individuais, para as que dão conta dos interesses coletivos ou difusos, com o objetivo de redtiiir o plano das incertezas na solução dos con­flitos entre grupos ou setores sociais e obter maior segurança nas relações privadas que integram essencialmente o sistema social capi­talista.G0 Naturalmente, esse processo, respaldado pelo formalismo jurí­dico, decorre justamente das contradições cada vez mais agudas e emergentes das relações entre as exigências de vínculos sociais pro­gressivamente mais estreitos entre os homens, em função do ingente desenvolvimento das forças produtivas, e as relações sociais de pro­dução que permanecem nos estritos moldes do interesse do capital, isto é, da apropriação privada de grande parte do produto social.

Um dos aspectos mais relevantes desse formalismo apontado e que permite o destaque aparente do Estado em face da sociedade civil é o que diz respeito à noção de liberdade. Esta noção está expressamente consignada à existência do indivíduo como base dinâ­mica do sistema social capitalista. Esse indivíduo não é concebido como produto histórico-social e possui, especialmente na concepção liberal, uma estrutura ontologicamente livre, com um fundamento originário absolutamente autônomo e indeterminado, tal como uma

50 Ver José Eduardo Faria, Sociologia Jurídica, op. cit., p. 78-81; Ada Pellegrini (coord.) et alii, A Tutela dos Interesses Difusos, São Paulo, Max Limonad, 1984.

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mônada social. Ele já não é a tradução de relações sociais, mas suporte primordial delas, de tal sorte que sua vontade, qualificada segundo um "conteúdo de sentido" que ele mesmo arbitrariamente lhe atribui, passa a ser a força que estrutura e dinamiza a sociedade, nela inserindo eventualmente, conforme queira ou não e de acordo com o estado de solidariedade decursiva de seu potencial ético, o conflito ou o antagonismo que atravessa as relações sociais. 51 Nesse sentido ocorre, no plano da hegemonia burguesa, a inevitável dissolução ilusória dos conflitos estruturais de classes, parecendo que as verdadeiras relações se dão apenas ao nível intersubjetivo, demarcado em virtude do mero encontro de "vontades" dos indivíduos atomizados, tal como efetiva­mente acontece no mundo "aparente" das relações mercantis regidas pelas leis da sociedade capitalista. Assim, a racionalização jurídica desempenha um papel importante no processo de dissolução ideológica dos conflitos estruturais de classes, condição para a hegemonia bur­guesa, ao perfazer a noção prática de "sujeito de direito" como funda­mento jurídico da ação livre do indivíduo que prevê a possibilidade de realizar contratos no âmbito das relações sociais.~2 Como já apon­tamos, esse sujeito jurídico é formalmente construído como um sujeito indiferente, base da igualdade formal e pressuposto do exercício da liberdade contratual sem os gravames das relações sociais de depen­dência pessoal e institucionalmente hierarquizadas, que caracterizavam as sociedades pré-capitalistas. Mediante esse formalismo, as figuras jurídicas fazem a abstração das diferenças individuais, sejam originadas da personalidade singular de cada um, sejam das disparidades sociais, funcionando como um fator de redução social, ao nível da racionalidade abstrata , que permite controlar e compor os interesses individuais em conflito, dentro dos limites tolerados pelo sistema e sem fazer referên­cia direta aos antagonismos de classes. 53 Desse modo, o Estado que

õ l Para maior compreensão dessa temática, consultar os capítulos 2 e 4 deste trabalho.

"2 "Com efeito, o sujeito de direito é sujeito de direitos virtuais; perfeitamente

abstratos: animado apenas pela sua vontade, ele tem a possibilidade, a liber­dade de se obrigar, designadamente de vender a sua força de trabalho a um outro sujeito e direito." Cf. Michel Miaille, op. cit., p. 133. ã:t "A mediação jurídica dos conflitos pressupõe a abstração dos homens con­cretos em 'sujeitos jurídicos', fórmula pela qual as diferenças sociais são reto­ricamente diluídas ... " C f. José Eduardo Faria, op. cit., p. 78.

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positiva esse Direito não aparece senão como árbitro racional, indife­rente e neutro que atua entre partes reduzidas a sua manifestação fenomênica aparente, formalmente individualizadas e dentro de relações competitivas pacífica e legalmente disciplinadas. B assim que o mundo do Direito mediatiza os antagonismos estruturais entre as classes, trans­pondo-os, como condição de seu tratamento pela dogmática jurídica, para a esfera das relações conflitivas intersubjetivas, onde sobressaem de modo especial os interesses privados de composição voluntária, que parecem ser misticamente independentes dos interesses socialmente determinados.

No campo das relações estruturais, entretanto, vinculadas ao processo global da produção capitalista, as ações humanas estão condi­cionadas historicamente e são regidas por leis sociais que não se reduzem à vontade dos indivíduos que as concretizam. Essas relações de caráter recorrente vinculam os indivíduos mesmo antes de suas próprias interações voluntárias e conscientes, realizadas ou não através de decisões jurídicas, e condicionam seus interesses privados dentro de um quadro historicamente estruturado. Com efeito, o plano jurídico configura o plano da normatividade social onde as decisões conscientes e voluntárias inequivocamente consagram as pautas positivadas a partir de um centro de poder político; mas, em que pese a miragem da construção voluntária a que esse plano normalmente conduz, não se pode concebê-lo fora das relações sociais básicas regidas por leis conformadoras do determinismo social dialético. Nesta miragem, os indivíduos até mesmo chegam a acreditar que são diretamente os autores voluntários de suas próprias relações estruturais e que vivem sob este ou aquele regime social simplesmente por que "querem".54

A mística do sujeito de direito, que os indivíduos encarnam em suas

5 4 A ilusão ideológica apontada é dominante no senso comum dos juristas. A manifestação volitiva assume caráter demiúrgico, como, aliás, é muito bem registrado por Miaille quando escreve que ·a troca das mercadorias; que ex­prime, na realidade, uma relação social - a relação do proprietário do capital com os proprietários da força de trabalho -, vai ser escondida por 'relações livres e iguais', provindas aparentemente apenas da 'vontade de indivíduos independentes'. O modo de produção capitalista supõe, pois, como condição do seu funcionamento, a 'atomização', quer dizer, a representação ideológica da sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres". C f. Michel Miaille, op. cit., pp. 133-134.

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relações no mercado, para para o nível político da aparente estruturação voluntária da própria sociedade, através da figura tão individualista quanto abstrata do cidadão livre e igual em todas as partes. 55 Cumpre­nos neste ponto, entretanto, caracterizar as bases estruturais e objetivas dessa inversão ilusória. Essa inversão tem como fundamento exata­mente aquela dissociação, já apontada anteriormente neste trabalho, entre o produtor direto e os meios de produção, característica básica do modo de produção capitalista, transformando esse produtor em mero detentor de força de trabalho a ser oferecida no mercado em troca de salário. Tal dissociação gera também outro efeito: o da inutilidade dos instrumentos e recursos produtivos pela sua imobilidade inoperante se não combinados com aquela força de trabalho. Isso significa que os meios de produção não podem ser operacionais e, portanto, transformar-se em capital, sem o concurso da energia do trabalhador direto para valorizar esse capital de forma permanente e ampliada. Ora, considerando que não há possibilid8de, no modo de produção capitalista, de se exercer a coação física direta sobre os produtores paq1 compeli-los ao acionamento dos instrumentos de pro­dução, o vínculo material entre aqueles produtores e esses instrumentos só é possível mediante o ajuste .voluntário ou "negocia!" entre tais produtores e os proprietários dos meios de produção. Esse acordo mútuo pressupõe nece,ssariamente o reconhecimento da liberdade do trabalhador e, por via de conseqüência, da faculdade de plena dispo­sição de suá força de trabalho, que, por isso mesmo, passa a ser con­siderada como sua propriedade. 5 6 Nessa linha, a todos os homens .. é reconhecido um direito de propriedade, um direito sobre si mesmos: se o homem, através do contrato de trabalho, pode dispor de si pró­prio, ele é nessa medida desde logo um proprietário. Vê-se, por esse processo, que a propriedade de certo modo qualifica o homem, no plano jurídico, como sujeito de direito; ela representa o momento me-

55 Essa questão e outras a ela vinculadas, sob o ângulo dos conflitos sociais e da emergência histórica da autonomia individual, é tratada com muita proprie­dade no ensaio de Michel Misse, "Sobre o Conceito de Conflito Social", in Direito e Conflito Social, org. F. A. de Miranda Rosa, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 19-46.

ó6 Ver, nesse sentido, Ana Prata, A Tutela Constitucional da Autonomia Pri­vada, Coimbra, Livraria Almedina, 1982, pp. 7-25.

ESTADO E IDEOLOGIA 331

diador principal para essa determinação jurídica. Com a inversão ideológica, entretanto, tal mediação passa a ser aparentemente secun­dária e dominada pelo sujeito de direito. Esse sujeito se destaca, então, como um elemento individualizado, indiferenciado como proprietário, autônomo e igual a qualquer outro nessa condição. Assim, identificado o produtor direto como detentor individual da força de trabalho, o qual poderá vendê-la no mercado a quem quer que a compre, impõe­se que lhe seja reconhecida a personalidade jurídica e capacidade

negocia!, a fim de que ele possa livremente, como pessoa autônoma, celebrar o contrato pelo qual se torna possível a vinculação criadora entre o trabalho e o capital.57 Nesse sentido, o advento e a consoli­dação do modo de produção capitalista, com o fortalecimento e am­pliação do processo mercantil, determinaram a necessidade de uni­versalizar os conceitos de "sujeito de direito", "contrato", "negócio mercantil", "propriedade", "força de trabalho", "salário", "liberdade e igualdade jurídicas", "mercadoria", etc. Por isso, na medida em que todos os membros da sociedade passam necessariamente a ser proprietários, quer de bens de produção que lhes permitam valorizar o capital com a utilização da força alheia, quer força de trabalho que possam vender em troca de salário para reproduzi-la e fazer subsistir seu suporte na pessoa do produtor direto, todos passam in­distintamente a ser sujeitos de direito, com capacidade negociai que permite assegurar juridicamente as relações recíprocas entre proprie­tários Individuais autônomos.

Desembaraçados dos vínculos de dependência pessoal, ao contrá­rio do que ocorreu nas sociedades pré-capitalistas, os indivíduos auto­nomizados, sob o regime da produção mercantil burguesa, parecem ser os autores e atores incondicionais das relações sociais constituídas

por sua interação livre, prévia e consciente. Forma-se claramente a idéia imaginária de que os homens, unicamente com sua ação volun­tária, são direta e imediatamente responsáveis pela vida social que constroem, rejeitando-se também, após a consolidação da sociedade

57 Para um aprofundamento da análise segundo a qual se podem identificar as mediações entre o processo de produção mercantil capitalista e a autonomia individual burguesa, ver Karl Marx, no texto consignado na nota 36 deste capítulo.

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burguesa, a noção do uma normatividade previamente inscrita na natureza dos fatos sociais, o Direito natural, que estaria apenas à espera de um esforço de descoberta para revelá-la. Abre-se, especial­mente e com maior profundidade a partir do século XVIII, o cami­nho para configurar a distinção entre as esferas pública e privada, entre Estado e sociedade civil, entre Direito público e Direito pri­vado. Essa distinção não poderia ocorrer sem o fenômeno da positi­vação do Direito, isto é, sem que este fosse reconhecido como um instrumento racional-legal, voluntariamente manipulável e regulamen­tador dos interesses individuais, das relações entre os homens inde­pendentemente das normas espontâneas e costumeiras impostas pela tradição. Essa linha de construção voluntária do Direito faz crer que os indivíduos induzem originariamente, a partir de si mesmos, as ações constitutivas da sociedade, tornando-os logicamente anteriores às relações sociais que encetam precisamente como algo deles deri­vado. 58 O conjunto social é explicado, em última instância, por "ele­mentos" discretos, originária e racionalmente dissociados, exatamente como indivíduos irredutíveis e articulados segundo uma lógica de intercâmbio social, na esteira do modelo mercantil, onde as relações sociais são a posteriori e, aparentemente, se encontram inteiramente subordinadas aos fins ou objetivos de cada indivíduo singularmente considerado: é a sobreposição e predomínio da esfera da circulação, da troca e do consumo, da autonomia individual, sobre a esfera da produção, da indústria e da transformação, da cooperação do traba­lhador coletivo. Esse processo ganha corpo ideológico suficientemente denso para consignar ao Direito um papel de tal sorte autônomo que traduz a ficção de ser o ativador essencial, através da produção legis­

lativa, dos processos sociais onde os indivíduos isolados ou em grupos convencionais, com sua vontade e consciência, ocupam o lugar pri­mordial, quer como agentes das iniciativas legais, quer como intér­

pretes, aplicadores ou sujeitos das normas já consagradas pelas deci­sões do poder político. Assim, o processo de decisão jurídica conduz â :ilusão de que a determinação social é essencial ou plenamente con­figurada no âmbito . da validade jurídica, do "dever ser" consciente­mente estabelecido dentro de uma escala hierárquica de sentidos

" ~ Ver. nesse sentido, Michel Misse, op. cit., pp. 31-42.

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normativos, ficando em segundo plano o âmbito da eficácia, que, ainda que seja considerado, descamba normalmente para sua expres­são empírico-positivista, mergulhado no jogo das aparências do sensí­vel imediato.

Como particular realce é preciso destacar a mística da validade jurídica expressa na fórmula do "dever ser" contraposta radicalmente ao "ser".59 A relativa independência do mundo jurídico com respeito à realidade social caracteriza precisamente a função do Direito como expressão histórica _de uma determinada formação social e, ao mesmo tempo, como fator instrumental para a manutenção da ordem social e econômica que tal formação encarna. Se a ênfase é dada ao plano da expressão existencial do Direito, enquanto manifestação de deter­minada realidade econômico-social, no âmbito do "ser", põe-se em relevo a eficácia jurídica, ou seja, o ajuste efetivo das normas aos movimentos da própria estrutura social. Se, por outro lado, a ênfase recobre o caráter instrumental e racional do ordenamento jurídico,

enquanto expressão consciente e voluntária cuja dinâmica se pauta pelos valores dominantes, espiritualmente fundados e identificados, ressalta-se neste caso a validade jurídica, com base nos conteúdos de sentido' idealmente formulados e logicamente encadeados numa refe­rência recíproca de conexões de "dever ser". A forma ideológica do Direito, especialmente na sua vertente explicativa, no plano da dog­mática, suscita a idéia de que a norma jurídica implica uma certa separação entre o que deve ser (a regra) e o que efetivamente ocorre

na experiência cotidiana. Desse modo, a regra jurídica aparece como algo definido e relativamente estável, não podendo variar constante­mente conforme variam as condições sociais, sob pena de se trans­formar num esquema de sentido descritivo da realidade, perdendo sua essencial condição prescritiva. Essa tensão entre o mundo jurídico racional-formal e as mudanças da vida social conduz à crença de que a vontade, fundada não em meros interesses mas em valores dos quais emerge a pura esfera do "dever ser", mantém e assegura a ordem

59 Ver, a esse respeito, o capítulo 2 deste trabalho; Hans Kelsen, op. cit., pp. 37-47 e 109-62; Alaôr Caffé Alves, "A Formalização do Direito ", in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.0 16, São Paulo, jun. 1980, pp. 217-234.

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como tal, até mesmo no que respeita aos aspectos mais profundos da estrutura social. Apreende-se ilusoriamente a ordem jurídica como

algo "externo" àquela estrutura, autônomo e sobreposto a ela e, na

sua expressão positivada pelo Estado, determinante dela como um valor básico a ser preservado universalmente, como um "dever ser"

a-histórico e absoluto (a propriedade, a liberdade, a igualdade formal,

etc.) . O circuito da inversão idealista apontada se completa exatamen­te através do aparato conceitual abstrato e indeterminado pelo qual o ordenamento jurídico é, ele mesmo, refletido e reproduzido na sua

manifestação imediata como produto consciente e voluntário da ati­vidade normativa em geral e legislativa em particular. Assim, as reais

mediações entre a ordem jurídica e as relações estruturais da sociedade são ocultadas precisamente pelo modo formal e abstrato de considerar tal ordem, como se a manifestação intencional desta, essencial à sua

existência e compreensão, fosse de maneira deliberada determinante

da própria estrutura social. 60 A Órdem jurídica nesse sentido funciona , ela mesma, como expressão direta e imediata da organização econô­mico-social básica. Para considerar, portanto, essa ordem como sendo a própria estrutura, posta por decisão estatal positivada com base nos valores do bem comum e do interesse geral, há apenas um passo. Nesse clima ideológico, o mundo do "dever ser" já não tem mais o mundo do "ser" como fundamento; pelo contrário, o que "deve ser", nos termos dos valores dominantes a serem continuamente perseguidos e realizados, é exatamente o que se impõe à consciência de todos e conforma por 'conseqüência a própria realidade do mundo social. É assim que o Estado, através da objetivação e formalidade jurídica, sobressai como produto imaginário da vontade constitucional e como

sujeito ideal destacado da sociedade, figurando como entre político autônomo, racional, neutro, organizador do consenso geral e respon­sável pela coesão social. Observa-se, por esse giro ideológico, levado às últimas conseqüências pelo normativismo jurídico, que o Estado é inteiramente mergulhado no reino do dever ser, perdendo seus últimos

so Ver Nicos Poulantzas, "Hegemonía y Dominación en e! Estado Moderno", Buenos Aires. Cuadernos de Pasado y Prese.nte/48, 1973, pp. 11-41 e 135-161.

ESTADO E IDEOLOGIA 335

vestígios de vinculação genética com as t>$l:ruturas antagônicas do sistetpa social capitalista.61

Finalmente, ainda no campo da estruturação formal do Direito, base para a dissociação hegemônica do Estado com respeito à socie­dade civil, cumpre-nos salientar a relação dialética entre a igualdade jurídico-formal e a desigualdade real. Segundo toda a exposição neste trabalho realizada, constata-se que a igualdade perante a lei, ou igual­dade jurídico-formal, não só é plenamente compatível com a desigual­dade real de natureza econômica, como também é o exato pressu­posto essencial para que a repartição desigual da riqueza social possa ser levada a efeito, de forma hegemonicamente dissimulada. Na me­dida em que as normas jurídicas e os conceitos da respectiva reflexão teórica são vazados mediante representações abstratas - universais abstratos - sem referência a distinções internas particularizadas -universais concretos -, a igualdade jurídico-formal tende a nivelar todas as diferenças sociais ou, simplesmente, a não considerá-las para os efeitos operacionais do sistema. O efeito dialético desse processo é relevante, porque o Estado, exatamente ao regular as situações ju­rídicas de maneira monopolizada e de forma direta, expressa e posi­tivada, regula também de modo tácito e indiretamente as situações reais sobre as quais não incide imediatamente o discurso jurídico­normativo: o Estado diz e se revela precisamente por aquilo que não diz. Não deixa, portanto, de estar presente nessas situações, onde o livre jogo das forças sociais e econômicas recebe precisamente a tutela estatal para impedir eventual e estranha perturbação comprome­tedora de sua "natural espontaneidade". Assim, o Estado, ao subme­ter a regras iguais pessoas economicamente desiguais, não faz outra coisa senão reafirmar as desigualdades reais. A lei que proíbe, tanto ao rico como ao pobre, dormir sob as pontes, mendigar nas ruas e furtar o pão não afeta de igual modo a ricos e pobres. Neste caso, a riqueza privada atua a seu modo e é tutelada pelo Estado, que legisla não exatamente para conjurar as bases estruturais dessas diferenças

61 Ver Hans Kelsen, op. cit., pp. 377-390; idem, Teoría General del Derecho y del Estado, México, Textos Universitários, 1969, pp. 215-229; idem, Teoria General dei Estado, México. Nacional , 1973, pp. 3-34; Michel Miaille. op. cit .. pp. 137-54.

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reais, mas em sentido oposto, para afiançar as relações capitalistas que só podem subsistir ''por essa desigualdade estrutural, ideologica­mente respaldada na igualdade jurídico-formal. Isso é perfeitamente compreensível, como já vimos, na medida em que a desigualdade econômica é ao mesmo tempo suposto e conseqüência da valorização do capital, da acumulação privada capitalista:62

O princípio da igualdade jurídico-formal contraria frontalmente os pressupostos das estruturas sociais pré-capitalistas, na medida em que sanciona a diluição das diferenças funda_das nos privilégios, na nobreza do nascimento, na casta, no status~'1etc. A tendência, por­tanto, é dissolver todas aquelas desigualdades qualitativamente dis­tintas, que exigem disciplina jurídica expressa e fundamento na ideo­logia dos costumes, e deixar à margem do reino jurídico, porém indiretamente tuteladas, as desigualdades quantitativas que não reque­rem essa disciplina, especialmente as assimetrias econômicas. O for­malismo jurídico-racional, sob esse princípio, acaba por confirmar e fortalecer as desigualdades econômicas precisamente ao negá-las ou aq rejeitá-las como estranhas a sua própria regulamentação substan­tiva, sob a justificativa de neutralidade, visto que todos são iguais perante a lei. Ainda que haja, como antes já foi dito, a eventual e aparente consideração abstrata das diferenças reais por parte do orde­namento jurídico positivado, como por exemplo a realizada pela legis­lação trabalhista, o que faz é exatamente manter e ocultar, sob o manto da justiça social e ao nível do sistema capitalista global, a própria desigualdade real. Isso ocorre na medida em que tal conside­ração formal refaz de modo ideológico e operacional aquela linha de indiferença e neutralidade do Estado frente às classes ou frações de classes antagônicas, não para eliminar as desigualdades e as contradi­ções sociais, mas precisamente para discipliná-las dentro das possi­bilidades daquele mesmo sistema. Todos são iguais perante a lei, e como a lei se identifica com o Estado, pois dele é emanada, todos são iguais perante o Estado, ainda que este, ao alimentar esse critério de legitimidade, necessite tratar desigualmente os desiguais, em termos formais e abstratos, precisamente para manter a desigualdade real

s2 Ver, nesse sentido, Rogelio Perez Perdomo, El Formalismo Jurídico y Sus Funciones Sociales, Caracas, Monte Avila, 1978, pp. 24-28,

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como condição de possibilidade da valorização hegemônica do capital. Assim, reserva-se e assegura-se um amplo espaço de livre manobra para indivíduos, grupos e forças sociais privadas, deixados ao jogo de sua própria sorte para explorar de modo autônomo o potencial econômico que legitimamente detenham. O controle social através do instrumental jurídico disponível é feito exatamente para possibilitar o pleno e cabal exercício da ação privada do capital e do trabalho naquele campo de manobra, o qual se torna maior ou menor, com interferência mais ampla ou restrita do Estado, conforme as condições históricas da formação social correspondente. Por essa razão também não se considera Jefensável inculpar diretamente a organização ju­rídica da sodedade pelo.s • êxitos ou fracassos econômicos dos agentes sociais privados, parecendo ficar estes eventos à mercê da sorte, do acaso, das relações estritamente pessoais ou das condições singulares afetas à personalidade de cada um. Nota-se, desse modo, que O Estado, mediante a objetivação jurídica, marca sua presença invisível no seio da sociedade civil, mesmo sob o pretexto de nela não interferir. Por­tanto, a desigualdade real, calcada nas relações estruturais assimétri­cas e antagônicas do sistema capitalista, ao nível da sociedade civil, requer necessariamente a expressão ideológica da igualdade jurídico­formal, ao nível hegemônico do Estado, cujo resultado, além de ins­trumentar e operacionalizar tal sistema, é mascarar no plano das aparências aquelas relações sociais antagônicas, precisamente no sen­tido de mantê-las e reproduzi-las.

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Considerações finais

A apropriação cognitiva da realidade do Estado envolve um encaminhamento do abstrato ao concreto, no sentido dialético do movimento de compreensão científica de um determinado objeto. Numa linha, o universal determinado é compreendido sob a categoria de particularidade dialética pela qual o real é reproduzido como con­creto pensado. Não se apreende o concreto diretamente, por si mesmo; é preciso passar pela abstração. Deve-se buscar o concreto, o verda­deiro, como resultado. Devemos, pois, na práxis teórica, penetrar a aparência fenomênica e captar, em conexão com essa aparência, a essência dos processos.

Nessa ordem básica, a linha metodológica que presidiu nosso trabalho orientou uma conduta de investigação e reflexão que tomou como ponto de partida a análise de elementos mais simples e abstratos, caracterizando progressivamente, no desenvolvimento da pesquisa e da meditação, os respectivos conteúdos em função dos movimentos e implicações recíprocas. O exame das questões básicas que formaram o centro da nossa tese, dentro dessa perspectiva, não permitia tomá-las em consideração de um só vez, ou seja, assumindo a totalidade con­creta enquanto tal como objeto direto de nossa análise preliminar. Assim, por exemplo, ver o Direito como uma expressão ideológica que não tenha somente um conteúdo operacional para a solução dos conflitos intersubjetivos que surgem na superfície do corpo social, tal

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como o concebe a consciência ingênua, compreende e exige um ato de ultrapassagem crítica do momento aparentemente concreto da vida jurídica cotidiana, que só se torna possível, a nosso ver, com a pers­pectiva de uma análise dialética onde os elementos empíricos e teó­ricos sejam explorados de forma a fazer sobressair seu conteúdo laten­te vinculado organicamente às condições estruturais do processo social.

O estudo da ordem jurídica ou de quaisquer outras manifestações institucionais pelas quais o Estado se objetiva não pode, em nosso entender, ser feito tendo como ponto de partida a idéia de que a inteira realidade se expressa ao nível de nossa experiência imediata. No entanto, é exatamente isso que ocorre com o senso comum dos juristas e de outros cientistas sociais quando imaginam conhecer todo o seu objeto de análise na precisa forma e expressão de sua manifes­tação copcreta, aplicando apenas a razão analítica, pela qual conse­guem, não raro com sofisticação, uma sondagem de superfície dos elementos desdobráveis em. puro encadeamento lógico de conceitos, coerentemente dispostos segundo as conexões visíveis oferecidas pela experiência imediata.

Para uma autêntica análise do Estado e do Direito, de sorte a descobrir as fissuras disfarçadas através das quais se pode alcançar o âmago da realidade social, de onde justamente se originam aquelas formas de manifestação institucional, é preciso partir .do conceito de totalidade dialética em razão do qual se pode compreender que o Estado e o Direito não se esgotam em si mesmos. Não é possível, portanto, captar sua mais plena realidade senão através do movimento de análise que permita divisar as reais conexões internas entre as diversas formas puntuais de manifestação fenomênica dessas institui­ções com as bases estruturais da vida social, invisíveis à aproximação acomodada do profissional funcionalista ou com preocupações mera­mente operacionais. Assim, por exemplo, o conceito de contrato para o jurista: este normalmente parte de elementos axiomaticamente admi­tidos, dentre os quais vê-se o sujeito de direito, o qual é confundido com a unidade real emissora da vontade para realizar a negociação que se tem em mira disciplinar juridicamente, permeado, não rara­mente, pela crítica de que esse sujeito é um figura . jurídica criada igualmente pelo ordenamento jurídico. No plano da análise puramente formal, ao consagrarmos a validade dessa dogmática, podemos certa-

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mente compreender e ainda tornar operacionais, segundo a razão instrumental, nossas intenções práticas imediatas, para viabilizar as negociações dentro do sistema · ~. por conseqüência, reproduzir e for­talecer esse mesmo sistema, sem falar dele ter nenhuma consciência crítica ou explicativa. Porém:, com só essa figura dogmatizada, não compreendemos o próprio sistema que ?peramos. Corremos, tal como um corredor, mas não temos, só por isso, consciência dos mecanismos e processos da nossa própria corrida, tal como a tem, de certo modo, um fisiólogo que reflete criticamente sobre tal ação. Podemos obser­var que, na linha de explicação do sistema mediante elementos do próprio sistema, caímos, em última instância, numa , tautologia aporé­tica que evidentemente nada explica. Com efeito, se considerarmos o sujeito de direito como uma figura constituída pelo ordenamento jurídico precisamente para possibilitar o exercício das competências previamente prescritas pela legislação, sendo o sujeito jurídico a expres­são unificada dessas competências formalmente fixadas, a questão que se põe é que as próprias normas jurídicas só terão valor como normas dessa natureza se forem criadas por pessoas autorizadas na exata medida em que são sujeitos de direito. Neste caso, encontramo­nos diante da perplexidade de sentido, onde se instala o paradoxo de ver o ordenamento criador do sujeito de direito sendo ele mesmo criado pela própria criatura, numa circularidade aporética que lembra o "moto perpétuo".

Esse é, portanto, o preço que se paga para se conter nos estritos limites funcionais ou tecnológicos do Direito. A busca do sentido explicativo do sujeito de Direito, tal como tentamos fazer na direção da totalidade dialética, levou-nos para além das premissas formais do Direito, para o encontro das raízes estruturais de onde o Direito e o Estado absorvem a seiva de sua própria existência e autêntico sentido. Da mesma forma o fizemos com os conceitos de "propriedade", "liber­dade", "igualdade", "cidadão", "poder", etc. Nessa linha, descobrimos ainda que todos esses conceitos estão orgânica e dinamicamente vin­culados, perpetrando uma realidade que não pode ser encontrada intei­ramente apenas pela análise singular e formal de cada um deles. O exame puramente analítico do Estado, por exemplo, nos levaria fatalmente a repisar a idéia que dele já temos, como agente promotor da coesão social através da realização do bem comum, e que, como

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procuramos demonstrar, é precisamente indispensável que a tenhamos para que o Estado se mantenha em sua realidade de ocuitamento das relações desiguais de exploração burguesa, relações estas que ele tutela e torna possíveis. Como a ideologia do Estado está suficientemente explorada pela teoria acadêmica, em todos os seus matizes mais expressivos, não nos aventuramos nessa empreitada por julgá-la inú­til e recorrente. Nada de novo se poderia descobrir e explorar se nos mantivéssemos ligados à tecitura tradicional dos conceitos elaborados pelo saber oficial. Era preciso partir desses conceitos e utilizá-los como trampolins que nos permitissem saltos mais ousados do que o simples repular sobre eles mesmos. Esperamos ter caído dentro da piscina, ainda que os saltos, por nossas limitações, não tenham sido ornamentais. A imagem diz bem da nossa intenção: não há trampolim ao lado de uma piscina senão para utilizá-lo em relação a ·ela. Por isso, os conceitos da teoria do Estado acadêmica, bem como os da teoria geral do Direito, tal como é oficialmente ministrada, podem e devem ser utilizados para a verdadeira percepção da realidade social, desde que analisados para além de si mesmos, como condição de sua inteira compreensão. E isso enquanto possam ser interpretados não como expressão de pseudo-ciências coladas à experiência imediata, mas como esquemas operacionais que, além de tornarem o sistema possível, permitem, na medida em que se lhe revelem as funções ideo­lógicas, a transparência das contradições e antagonismos sociais dos quais são tais conceitos o produto e ao mesmo tempo o controle simbólico.

Será, portanto, suspeito o saber científico do Estado que cor­responda às mesmas qualidades do saber cotidiano; sem uma ruptura epistemológica entre o saber comum e o saber científico, não será possível captar a realidade ou a verdade do Estado. Não deve haver, por isso, um mero prolongamento do saber espontâneo no âmbito do conhecimento científico. O Estado, assim, não pode ser entendido em sua verdade apenas através de sua manifestação jurídico-institucional e burocrática, tal como aparece ao senso comum. Desse modo, o Esta­do não se explica por si mesmo: dita suas raízes sobre a sociedade civil da qual deriva e na qual tem sua razão de ser. Entretanto, é bom frisar, a forma pela qual ele aparece faz parte inerente da sua própria realidade, não podendo, portanto, ser de modo algum despre-

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zada. B preciso buscar as conexõ~s orgânicas com a essência subja­cente do Estado em função da qual aquela aparência se manifesta pre­cisamente como aparência; isso quer dizer, repetimos, que não devemos afastar o senso comum como inoperante e indesejável, mas sim supe­rá-lo em sentido crítico-dialético, visto que esse saber cotidiano não pode ser tomado como a única base para a explicação exaustiva do Estado.

Como procuramos demonstrar, não há uma identidade imediata entre essência e existência, entre o fenômeno e sua lógica interna; a crença contrária conduz-nos irremediavelmente à ideologia mistifica" dora. A ideologia, ao ser um empenho teórico-prático mais ou menos consciente ou inconsciente de justificação a respeito de uma realidade social, para efeito de mantê-la ou de transformá-la, caracteriza-se como um conjunto de idéias de cuja validez se duvida em razão das bases sociais sobre as quais se edifica. Assim, a ideologia pode amarrar-se tanto ao puro fenômeno, à conservação da aparência imediata, tor­nando-se mistificadora, quanto às relações efetivas entre o fenômeno e sua essência, buscando precisamente na realidade dessas conexões a força justificadora para transformar o real social. Para elidir a ideo­logia mistificadora (falsa consciência) não basta a mera consciência crítica; sublinhamos mais uma vez que, sem a práxis transformadora do real, ou seja, sem alterar as bases estruturais dos interesses sociais parciais e antagônicos, com a negação crítico-prática da experiência imediata do cotidiano, a mistificação ideológica não desaparece. Essa práxis transformadora, portanto, rejeita a idéia de que o Estado possa revelar sua inteira realidade apenas ao nível da mera aparência de suas manifestações fenomênicas, como se ele fosse, nesse nível, um dado pleno e exaurido. Não custa reafirmar que essa direção parte do princípio de que a adequação dialética entre sujeito e objeto é necessariamente um processo aberto, visto que, não sendo um modelo encerrado ou finalizado, a teoria não é nem pode ser uma mera cópia fotográfica ou descritiva dos fenômenos aparentes. Por isso, não se pode olhar diretamente o Estado real, na sua exata expressão original; dele só podemos ter uma construção teórico-prática que o ilumina progressivamente e sem a qual não nos aproximamos de sua verdade, isto é, da conexão dialética entre a essência e a aparência que perfaz sua autêntica realidade.

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A captação cognitiva do Estado depende do modo e dos objetivos em razão dos quais ele é experimentado. Isso ocorre justamente por­que a própria tecitura conceitual pela qual compreendemos uma dada situação objetiva faz parte inerente dessa mesma situação. Por essa razão, o complexo conceitual, hegemônico ou não, referente ao Estado, deve refletir e, ao mesmo tempo e de certa forma, constituir as próprias relações reais que o encarnam, contribuindo para mal}.tê-lo ou trans­formá-lo. A realidade · do Estado, reiteramos, não se re9tiz aos seus diversos componentes· ideais, mas não pode existir sem eles. Essa rea­lidade tem origem e consistência simultaneamente no pensamento e fora dele. Seu componente ideal, por isso, não é seu mero reflexo a posteriori, mas uma condição necessária ao seu aparecimento. Por­tanto, as experiências . que mantemos com o Estado, e pelas quais ele também é o que é, são antes de tudo traduzidas por relações práticas e objetivas, e quaisquer idéias que dele fazemos não só refletem tais relações, como também lhe são de alguma forma determinantes intrín­secas e originariamente constitutivas.

Na sociedade capitalista, o poder legítimo exige uma forma de organização política singular que é o Estado, caracterizado em última instância pela centrálização e monopólio da violência legal, numa esfe­ra personalizada de forma abstrata e geral, condicionada e condicio­nante da ordem jurídica que consagra os princípios da liberdade e igualdade formais. Estes princípios decorrem do afastamento da inge­rência política ou coativa direta e manifesta do plano das relações econômicas, para dar lugar a formas de relacionamento 'contratual entre dominadores e dominados. Nesse processo, " não fica claramente exposta ou explícita a assimetria da exploração econômica dos traba­lhadores, permitindo ao sistema a construção ideológica legitimadora a partir das aparências, com a ocultação da dominação efetiva sob o manto da igualdade e liberdade formais, especialmente no âmbito da circulação mercantil, onde as mercadorias, incluindo a própria força de trabalho, são reciprocamente equivalentes.

Por outro lado, a consignação dos interesses gerais da sociedade, sob a forma do bem comum, é remetida diretamente ao Estado, o qual representa politicamente todos os indivíduos na qualidade de cidadãos, na precisa medida em que admite a participação formal e uniforme deles no estabelecimento das políticas governamentais, sem

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levar em conta, nessa representação, as respectivas posições de classe e as contradições e antagonismos delas resultantes. Entretanto, no contexto econômico-social da sociedade capitalista, o Estado não pode ser realmente compreendido como um poder imposto de fora, nem como uma expressão racional da idéia do bem comum. Seu aparente destaque em relação à sociedade civil, encarnando ao nível de sua manifestação fenomênica o interesse geral dessa sociedade, é produto de inversão ideológica indispensável destinada a compor uma imagem de harmonia, cooperação e liberdade entre os agentes sociais, com aparente indiferença pelas condições reais de exploração econômica das classes subalternas, formada justamente pa:ra mascarar essas mes­mas condições e os antagonismos estruturais delas emergentes.

Desse modo, o circuito ideológico destinado a construir o instável equilíbrio das forças sociais em jogo, realizando a troca de equivalen­tes dominadores e dominados, transparece por mediação do próprio Estado, que se manifesta através de um ordenamento jurídico igual para todos, através de um Direito geral, impessoal e formalizado, organizador racional de instituições neutras que servem indiferente­mente a todos os membros da sociedade. Por isso, o Estado pode ser caracterizado como uma forma hegemônica de organização política aparentemente destacada das condições reais da dominação econômica e mascaradora da efetiva exploração e apropriação privada do produto social excedente.

Portanto, em obediência aos limites do plano teórico delimitado na introdução deste trabalho, esperamos ter oferecido as razões pelas quais o Estado, organização política específica da formação social capitalista, se mostra, no mundo da práxis operacional cotidiana, pre­cisamente como aquilo que ele não é. Mas esse seu modo imediato e imaginário de aparecer, negando sua origem nos antagonismos das classes emergentes na sociedade burguesa, é justamente a forma apa­rente fundamental e necessária que toma o Estado para que seja o que ele realmente é. Com efeito, mascarando sua essência como o lugar do poder político hegemônico garantidor das relações estrutu­rais capitalistas, ele perfaz sua própria realidade na exata medida em que a oculta, sendo o seu modo disfarçado de aparecer, respaldado pela ideologi·a dominante, essencial para reproduzir sua própria exis­tência como Estado.

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Sobre o autor

Professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde se bacharelou em 1963, e Procura­dor do Estado de São Paulo, partici­pou dos movimentos estudantis an­tes do golpe de 1964 e teve particular militância política em Santo André, junto ao Sindicato dos Metalúrgicos e na Associação dos Universitários de Santo André (AUSA). Eleito ve­reador naquela cidade, pelo Partido

Socialista Brasileiro, em 1963, foi · obrigado a se retirar da vida política após o movimento reacionário de março de 1964, entregando-se a ativida­des docentes em cursos preparatórios para vestibulares. Em 1967, inicou uma nova fase de sua vida profissional, ao integrar a equipe técnica do Grupo Executivo da Grande São Paulo- GEGRAN, órgão vinculado à Secretaria do Planejamento de São Paulo, para desenvolver estudos sobre questões jurídico-institucionais relacionadas com a Região Metropolitana da Grande São Paulo. No início de 1969, em conseqüência do Ato Insti­tucional n? 5 de dezembro de 1968, foi afastado do GEGRAN, voltando às atividades docentes. Ingressando na carreira de Procurador do Estado em 1971, retornou ao GEGRAN em 1973, onde recomeçou suas ativida­des profissionais como estudioso das questões metropolitanas, a respeito das quais escreveu diversos ensaios, artigos e livros. Despertado por essas questões e motivado pela busca do equacionamento democrático dos pro­blemas urbanísticos no âmbito institucional, éspecialmente tendo em vis­ta as condiçõe singulares de nossa-realidade econômico-social, começou a cultivar com maior profundidade o saber jurídico, ingressando, em 1974, nos cursos de pós-graduação da FDt:ISP, onde obteve os graus de mestre (1980) e doutor em direito (1986)~ Exerceu, a partir de 1975, a função de Assessor Jurídico Chefe da Empresa Metropolitana da Grande São Paulo S.A. - EMPLASA, vinculada à Secretaria dos Negócios Metropolitanos de São Paulo, chegando a Vice-Presidente dessa empresa em 1983. No­meado membro do Conselho Nacional do Desenvolvimento Urbano, em 1985, exerce, hoje, a função de Procurador do Estado Assistente junto à Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. Na área acadêmica, lecionou em diversos estabelecimentos de ensino superior, entre os quais a Facul­dade de Administração da FAAP, sendo atualmente Professor Assistente Doutor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FDUSP, onde leciona nos cursos de graduação e presta sua colaboração em seminários e pesquisas nos cursos de pós-graduação.