elizabeth roudinesco entrevista

Upload: rodrigo-flavia-egabriel

Post on 07-Aug-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    1/27

    Elizabeth Roudinesco31/5/1999 Historiadora da psicanálise, a professora francesa aponta para o perigoiminente da destruição do saber psiquiátrico tradicional pelo cientificismoexacerbado que tende a tratar os pacientes de forma generalizada

    Paulo Markun: Boa noite. Ela é a historiadora da psicanálise e a biógrafa de um dos

    expoentes dessa polêmica ciência do século 20, Jacques Lacan. No centro do Roda

    Viva esta noite, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco. Para

    entrevistar a professora Elisabeth, nós convidamos: a jornalista Mônica Teixeira, da TV

    Cultura de São Paulo; o professor Arthur Nestrovski, da Universidade Católica e

    articulista do jornal Folha de S. Paulo; o historiador Carlos Guilherme Mota, da

    Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie; a socióloga e

    psicanalista Caterina Koltai, da Universidade Católica de São Paulo; o psicanalista

    Renato Mezan, do Instituto Sedes Sapientiae e da Universidade Católica de São

    Paulo; o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo da Costa Pereira, da Universidade de

    Campinas, e o psicanalista Luiz Tenório de Oliveira Lima, membro efetivo da

    Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Bem, você não poderá fazer

    perguntas, porque como a professora Roudinesco só fala francês este programa foi

    gravado e assim você tem a oportunidade de conhecer melhor o pensamento dela

    com a ajuda de legendas, o que é sempre muito bom. Boa noite.

    Elisabeth Roudinesco: Boa noite. 

    Paulo Markun: E minha primeira pergunta é a seguinte: há uma frase que, se eu não

    estou enganado, é de Lacan que diz que a história humana é a história dos desejos

    desejados. É mesmo de Lacan esta frase? 

    Elisabeth Roudinesco: Uma frase de Lacan? Sim. 

    Paulo Markun: Muito bem. Então, a pergunta é a seguinte: na opinião da senhora,

    qual é o desejo desejado da humanidade neste final de século? 

    Elisabeth Roudinesco: É uma pergunta difícil. 

    Paulo Markun: É para começar, um bom começo. 

    Elisabeth Roudinesco: Sinto um pouco que, neste fim de século, na sociedadeocidental, há um grande desejo de normalização que é um pouco preocupante.

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    2/27

    Vivemos uma época em que o ideal revolucionário desapareceu com a derrota do

    comunismo, que era um grande ideal. Fica a impressão de que se está procurando

    outra coisa e, claro, há certa depressão. Sinto isso na França. Aqui, não sei, mas acho

    que vivemos numa sociedade depressiva. A prova é a quantidade de medicamentos

    usados nos tratamentos psíquicos. 

    Paulo Markun: Agora, esse desejo de normalização, para quem aposta na psicanálise

    como um caminho de melhoria das pessoas, não é uma contradição? Quer dizer,

     justamente a psicanálise não discute quais são os limites da normalidade? 

    Elisabeth Roudinesco: Não. A psicanálise é uma teoria do desejo. Ela tenta

    compreender o desejo das pessoas. Mas, é certo que quando há perturbações

    patológicas mais graves, visa-se automaticamente a normalização. Depende do quechamamos normalização. Em todo caso, a idéia não é essa. Mas, sim, de realização

    do desejo profundo do indivíduo. Quando disse que havia um desejo de normalização,

    pensava antes que este fim de século possui um único modelo econômico, social, que

    é o sucesso individual com a perda do ideal, da revolta, seguida, por sua vez, de

    grande violência. Isso não impede a violência. Mas a psicanálise está ligada ao

    indivíduo, não à normalização. Ao seu desejo profundo. 

    Carlos Guilherme Mota: O nome de Elisabeth Roudinesco ficou muito associado, noBrasil, à Lacan. Eu queria ampliar um pouco isso porque para nós, historiadores, a

    senhora é uma historiadora de importância por ter trabalhado e trabalhar temas como

    a Revolução Francesa, aliás, com a interlocução do nosso saudoso amigo Albert

    Soboul [historiador francês, publicou, na década de 70, uma obra que se tornou

    referência na área, intitulada A Revolução Francesa]. Então eu gostaria de saber de

    alguma maneira como foi, qual é a importância da Revolução Francesa para a

    psicanálise, para seus estudos? E também gostaria de saber uma segunda questão:

    se há uma diferença entre a escuta do historiador e a escuta do psicanalista? Naescuta do psicanalista, sabemos que é possível haver alta, durante o trabalho

    psicanalítico. No caso do historiador, como fica? 

    Elisabeth Roudinesco: Antes, um esclarecimento: não trabalhei com Albert Soboul,

    não fui sua aluna. Apenas li sua obra. Tenho formação literária. Só depois é que cursei

    história. Estudei a Revolução Francesa, como todo estudante. Foi um paradigma

    fundamental em todo meu trabalho. Primeiro, porque na França, houve o Maio de 68, 

    um momento revolucionário; e eu estive muito mais próxima de  Althusser  que deSoboul. Fui membro do Partido Comunista depois de 68. Logo, a revolução estava

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    3/27

    presente. Mas, foi como se a tivéssemos perdido. Muito cedo tivemos consciência da

    derrota do comunismo. Em política, logo me tornei social-democrata. Mas, em

    seguida, senti um grande desejo de estudar a Revolução Francesa que continuava

    sendo fundamental. Escrevi um livro sobre uma pioneira da Revolução, Théroigne de

    Méricourt [uma mulher melancólica durante a Revolução, relato histórico sobre

    Théroigne de Méricourt, que militou no lado marginal da Revolução Francesa, junto a

    mulheres mal casadas, cortesãs e outras renegadas pela sociedade da época], mas

    só depois de escrever a história da psicanálise. E, se voltei para a Revolução, foi

    porque, escrevendo a história da psicanálise, descobri que havia algo de muito

    particular, na França, para a implantação da psicanálise. Era a idéia de que os

    intelectuais se muniam de idéias novas para transformá-las em algo subversivo.

     Apliquei isso à Revolução Francesa e ao Caso Dreyfus, eventos com um século de

    intervalo. Há algo de específico aos intelectuais franceses, sempre com um ideal

    revolucionário, enquanto que Freud, mesmo tendo consciência de que trazia ao

    mundo uma idéia nova com a psicanálise, não pensava que ela fosse algo

    revolucionário. Ele não queria mudar o homem, mas compreender. Mudar, claro, mas

    por seu conhecimento. Os surrealistas que se interessaram logo pela psicanálise

    acrescentaram essa dimensão, tomada, aliás, de [Jean-Nicolas-Arthur] Rimbaud

    [(1854-1891), francês, é um dos nomes mais influentes na história da poesia ocidental,

    considerado um mestre do simbolismo e precursor do surrealismo]: “Eu é um outro”,

    isto é, o ego é outra pessoa. Isso é revolucionário e está presente em meu trabalho. 

    Renato Mezan: Eu gostaria de tomar carona nessas questões que foram levantadas.

    Em relação primeiro à depressão do final do século, que a senhora diz ser a doença

    predominante, talvez um pouco como a histeria era no final do século passado. Eu me

    pergunto e gostaria de saber sua opinião se essa situação não conduz a uma espécie

    de ilusão de ótica em relação às figuras proeminentes do passado. Especificamente,

    em relação à questão da revolução e do alcance subversivo do pensamento

    psicanalítico. Um dos críticos mais agudos, mais ácidos talvez, do seu livro sobre a

    história da psicanálise, foi Michael Chandler [professor e pesquisador do

    Departamento de Psicologia da University of British Columbia, no Canadá], que

    escreveu no [...] uma crítica bastante crítica, se é que posso dizer assim. E ele

    observa que talvez o pensamento de Lacan não tenha sido assim tão subversivo

    quanto - agora sou eu dizendo - poderia parecer a nós nessa luz mais cinzenta, se eu

    posso dizer assim, do final do século. A pergunta que eu gostaria de fazer é a

    seguinte: quão subversivo finalmente é esse pensamento, levando em conta, por um

    lado o que a senhora escreve em sua história da psicanálise? Lacan se identificava

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    4/27

    com a psicanálise, não é? E talvez seja um viés não tanto da biografia de Lacan que a

    senhora escreveu, mas do segundo volume da sua História da psicanálise, passa algo

    um pouco assim, essa é a minha impressão. Em suma, então, a pergunta é: quão

    subversivo é esse pensamento, na sua opinião, em relação a ele mesmo, e quão

    subversivo ele pode nos parecer diante da monotonia, da grisaille [referência a um tipo

    de pintura que utiliza sombras de cinza], a gente diria, desse final de século? Não

    existe aí uma ilusão de ótica? E o pensamento e a obra de Lacan não seria talvez

    menos subversiva do que a propaganda que ele fazia - e outros fazem também -

    deixaria supor? 

    Elisabeth Roudinesco: Primeiro, vou falar sobre a questão da depressão. Eu disse

    várias vezes que a doença psíquica dominante no fim do século passado era a

    histeria. E a histeria exprimia um conflito que passava pelo corpo da mulher. Era uma

    contestação à sociedade, ao menos simbolicamente, enquanto que a depressão é o

    contrário. Mas, embora a histeria não tenha desaparecido, todos os distúrbios

    histéricos são tratados como depressão. Isso vem do fato de vivermos a era da

    psicofarmacologia; e como esses medicamentos são ineficazes para a histeria, trata-

    se tudo como se fosse depressão. Isso pode ser meio banal, mas é sintomático de

    nossas sociedades. E, respondendo sobre o Lacan, Lacan é um paradoxo. Seu

    pensamento ainda é subversivo porque ele é o último dos grandes intérpretes do

    freudismo. Talvez haja outros. Ele deu ao pensamento freudiano algo totalmente novo,

    a meu ver, que é sua ligação com a filosofia, a filosofia do indivíduo. E isso foi muito

    importante. Ele reintelectualizou, ele reuniu todo o pensamento freudiano num debate

    filosófico sobre o ser, sobre a morte, sobre o indivíduo, tal como havia pensado a

    filosofia alemã. E, nesse sentido, ele é o continuador da filosofia. Não há isso em

    Melanie Klein, não se vê isso em outros grandes pensadores do freudismo. Mas, como

    homem, ele era conservador. Esse é o paradoxo. Foi isso que me interessou tanto na

    biografia de Lacan: o paradoxo. Ele, no fundo, estava mais perto de Tocqueville [Alexis

    Henri Charles Clérel, visconde de Tocqueville (1805-1859), pensador político,

    historiador e escritor francês, célebre por suas análises da Revolução Francesa, da

    democracia americana e da evolução das democracias ocidentais em geral. É

    atribuída a ele a criação do termo social-democracia] do que da Revolução Francesa. 

    Tinha uma desilusão permanente. Não acreditava naqueles ideais. Neste sentido, ele

    foi subversivo: o pensador do pós-revolução, aquele a quem se perguntava porque as

    coisas não davam certo. Mas, ao mesmo tempo, como fora surrealista, ele

    acompanhou todo o movimento revolucionário. Esse é outro paradoxo francês:

    comparei muito Sartre e Lacan. Porque os dois, como observou Foucault, foram dois

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    5/27

    filósofos bem presentes no movimento revolucionário de 68. Sartre podia ser como um

    irmão dos contestadores, e Lacan queria ser como um pai que não acreditava e nem

    está lá quando aquilo acaba. E, ao mesmo tempo, acho que há em seu personagem,

    algo muito transgressivo, mais que subversivo. Lacan é um libertino do século 18.

    Quando, depois, pesquisei o século 18, isso ficou claro. Suas referências pessoais não

    são as do século 19. Sua família era uma família burguesa do século 19, e ele reagiu

    contra ela, tornando-se esse personagem libertino que parece, ao mesmo tempo,

    Salvador Dali [(1904-1989), importante pintor catalão, conhecido mundialmente por

    seu trabalho surrealista, que chama a atenção pela incrível combinação de imagens

    bizarras, oníricas, com excelente qualidade plástica], Tocqueville, ou um grande

    filósofo. Então, respondendo, eu diria: sim. Mas tudo depende de como se lê Lacan.

    Se for para fazer apenas a repetição mimética do dogma ou catecismo, não há

    interesse algum. Mas os grandes movimentos sempre produzem dogmas, é inevitável.

     À medida que avançarmos, a leitura de Lacan será mais serena. 

    Arthur Nestrovski: Nós começamos este programa com a pergunta sobre depressão,

    pensando um pouco sobre a situação da psicanálise hoje. As perguntas seguintes nos

    levaram a pensar na tradição psicanalítica. Eu queria jogar essas indagações agora

    um pouco para frente, pensar um pouco sobre o futuro da psicanálise. No final da sua

    biografia de Lacan, há uma passagem muito bonita, onde a senhora comenta [Arthur

    começa a ler o trecho] “praticantes do inconsciente que jamais escrevem livros e que

    recusam tanto o jargão quanto o alinhamento ou a burocracia. E a emergência, na

    França, de uma espécie de culturalismo que consiste em interrogar-se tanto sobre a

    história da psicanálise quanto interrogar outras técnicas de escuta”. E a senhora

    comenta ainda que “estes novos pr aticantes trabalham em instituições hoje de

    atendimento com imigrados, loucos, marginais, crianças, doentes de aids, assim como

    em seus consultórios, com o comum da neurose e da depressão”. Eu queria também

    citar uma entrevista sua à revista Lire, por ocasião do lançamento do Dicionário de

    Psicanálise, onde a senhora comentava a criação de outro asilo destinado a pensar

    outras técnicas não puramente farmacológicas de tratamento das doenças mentais.

    Nesta passagem do final da biografia, a senhora comenta que essas outras formas de

    tratamento, esses novos praticantes da psicanálise seriam o futuro da psicanálise, a

    sua honra e a sua paixão. Então, minha pergunta seria justamente para senhora

    comentar sobre o futuro dessa honra, dessa paixão e se isso hoje já são tendências

    teoricamente reconhecíveis? 

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    6/27

    Elisabeth Roudinesco: Sim, e não só no fim do livro. No filme que fiz sobre Freud, eu

    também homenageei todos esses profissionais anônimos, pois vivemos um período

    em que não há mais mestres, e não apenas na psicanálise. Toda essa nova geração

    teve que esquecer a figura do mestre para não se arriscar a ter mestres menores ou

    até mesmo charlatães. É preciso ver a psicanálise de hoje como algo coletivo. Os

    psicanalistas de hoje são, de fato, mais anônimos; são, com certeza, bons clínicos que

    se defrontam com todo tipo de dificuldade. Ao mesmo tempo, não há mais mestres,

    mas a psicanálise está em toda parte. Observei que, na França, e em outros países,

    como os EUA, há criticas constantes à psicanálise, como no início do século. Nos

    EUA, onde se adorava a psicanálise, hoje ela parece rejeitada, não há um dia sem que

    se façam criticas. Antes, era por causa da sexualidade; hoje dizem que ela é ineficaz,

    que os medicamentos são melhores e que se pode encontrar diretamente as causas

    cerebrais dos psiquismos. É com isso que se defrontam todos esses novos

    profissionais. E, quanto a isso, não tenho posição dogmática ou opinião radical. Se há

    algo que será abandonado na psicanálise é provavelmente certa atitude rígida.

    Constato, sem ter prós ou contras, que hoje não se pratica mais a psicanálise como há

    vinte anos, ou como eu praticava em meu início, nem como quando fui analisada. Os

    tratamentos usam menos o divã e mais o face-a-face; há mais maleabilidade com a

    colaboração de outras psicoterapias. Alguns acham isso perigoso, mas eu acho que

    não temos escolha. É uma abertura. O risco é os psicanalistas serem menos cultos

    que outrora, é não haver mais aquela figura do intelectual e, cada vez, as questões

    são mais clínicas e pragmáticas. Por isso, penso que no futuro deverá haver

    psicanalistas na universidade que representa o ensino do saber psicanalítico, e que

    ela não fique apenas puramente clínica. Sempre há dois perigos para a psicanálise.

    Se ela se torna apenas intelectual, transmitida como conhecimento acadêmico, há

    uma perda. Se torna-se apenas clínica, há uma perda também. Vê-se isso com mais

    freqüência nos EUA pois, como se sabe, lá há departamentos inteiros na universidade,

    onde a psicanálise é ensinada por pessoas que não são psicanalistas e nunca serão,mas que fazem trabalhos interessantes. De outro lado, há muitos psicanalistas que

    nunca lêem trabalhos intelectuais sobre o tema. É uma tendência, e é uma pena. Mas

    para o futuro..., sim a análise tem um futuro porque sempre haverá pacientes que não

    se satisfarão com outros métodos que não levem mais longe a exploração de si

    mesmo. Em sociedades muito normalizadas, com perda de ideais, se terá, cada vez

    mais, necessidade de um conhecimento de si mesmo realmente verdadeiro. 

    Luiz Tenório de Oliveira Lima: Eu vou retomar uma questão que foi colocada pelo

    Mezan. Na sua resposta, a senhora se refere à questão da desilusão, quer dizer, o

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    7/27

    pensamento psicanalítico como levando à desilusão. Portanto há um tipo de realismo

    melancólico, segundo o meu ponto de vista. Há uma entrevista sua em que a da

    senhora menciona explicitamente essa questão em relação ao pensamento de Lacan,

    como um pensamento sistemático em que o sujeito é sobredeterminado e

    descentrado. E [quanto] à questão da liberdade, a senhora menciona Sartre, nessa

    entrevista. Eu estava me lembrando, há muitos anos atrás, no final dos anos 60, eu li

    uma entrevista do Michel Foucault em que, ao ser perguntado sobre Sartre, como ele

    via uma questão em que Sartre, aparentemente, parecia em declínio, no ocaso, ele

    respondeu que Sartre e a geração dele tinham a paixão da liberdade, e que Foucault e

    a geração dele, os estruturalistas, tinham paixão pelo sistema. Penso que essa

    questão do sistema e da liberdade é um paradoxo. E me chamou muito a atenção

    duas passagens, em duas entrevistas suas, diferentes, [o fato de] a senhora, de certo

    modo, detectar esse ponto e não encontrar uma solução. Isso me pareceu muito

    simpático, muito importante como analista, a questão de manter o conflito, essa

    questão da liberdade e do sistema. Eu estou um pouco talvez expandindo a questão

    que, de certo modo, o Renato Mezan colocou, e a senhora já expandiu um pouco. E

    eu gostaria de ouvi-la mais sobre essa questão, porque eu a acho central, para nós,

    psicanalistas, não é? A questão dessa tensão entre o que é sobre-determinado e o

    que é escolha livre. Portanto o que é desilusão e engajamento, de um outro ponto de

    vista? Era essa a questão. 

    Elisabeth Roudinesco: Sim, classifico o freudismo entre as filosofias da liberdade.

    Sem problema algum. É uma filosofia da liberdade. Há uma frase de Lacan que me

    marcou, há muito tempo, quando ele falava dos países totalitários. Ele dizia: “Não se

    pode associar livremente quando não se tem liberdade de expressão”. E eu trabalhei,

    tentando mostrar que a psicanálise não foi implantada e foi perseguida em países

    onde não existia estado de direito ou democracia, o que indica que é preciso liberdade

    para que a psicanálise possa existir. Este é o primeiro ponto. E por que ela seria uma

    filosofia da liberdade? Bem, é pelo paradoxo em relação a todas as outras teorias do

    psiquismo. Afinal, a contribuição de Freud é dizer que o paciente sabe que possui um

    inconsciente. E para saber que se tem inconsciente é preciso ter consciência. É nisso

    que ela é uma filosofia da consciência. E é uma filosofia da liberdade, já que,

    explorando o inconsciente, tenta liberar-se de suas determinações ou ao menos

    compreendê-las. É nesse sentido que eu ligo o sistema com o estruturalismo. Aliás,

    Foucault  já o havia associado, sem dúvida. E também à filosofia da liberdade. Em

    outros termos, se se tomar todas as outras técnicas e teorias, notadamente a hipnose,

    elas consideram que o paciente está preso na subconsciência, sendo, na verdade, um

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    8/27

    escravo de suas determinações. Mas na psicanálise não é assim. Ele não é escravo e,

    sim, tem consciência da existência do inconsciente. É por esse lado que a coloco entre

    as filosofias da liberdade das quais ela seria a conclusão, pois ela é a consciência de

    que não se é livre, de algum modo. E que há algo que age, não por você, mas apesar

    de você, a contragosto. Isso é fascinante na análise. 

    Mário Eduardo Costa: Doutora Roudinesco, gostaria de retomar o problema que a

    senhora descreve como inquietante no início deste programa, que é desse esforço

    contemporâneo de normalização de nossas sociedades. Eu gostaria, então, de discutir

    algo dessas relações atuais entre psicanálise e psiquiatria. Eu tenho em mãos aqui um

    artigo recentemente publicado na revista Science, assinado por Nancy Andreasen, que

    é uma das psiquiatras norte-americanas mais respeitadas tanto nos Estados Unidos

    como internacionalmente, ocupa papéis importantes nas instituições psiquiátricas. E

    esse artigo se chama “Um projeto para uma psicopatologia científica”. Em um

    momento, ela diz a seguinte frase [fazendo a leitura do trecho]: “que dados

    convergentes, utilizando-se técnicas múltiplas de neurociências, indicam que os

    mecanismos neuronais das doenças mentais podem ser compreendidos como

    disfunções em circuitos neuronais específicos e que as suas funções e disfunções

    podem ser influenciadas ou alteradas por uma variedade de fatores cognitivos ou

    psicofarmacológicos”. O que é interessante, neste texto, também na estrutura retórica

    do texto, é que ela diz assim: na verdade, com o avanço das técnicas contemporâneas

    nas neurociências, nós estamos realizando o projeto de Freud de poder traduzir em

    uma linguagem neurocientífica os fatos mentais. Eu lhe perguntaria duas coisas: em

    primeiro lugar, neste contexto atual, o que nós podemos fazer? Primeiro, para a

    psicanálise poder ser uma interlocutora importante novamente no campo da

    psicopatologia, uma vez que é a disciplina que vai tratar das paixões. Em segundo

    lugar, como é possível e que visões a senhora tem, contemporâneas, que nos ajudem

    a sair desse embate termo a termo, que me parece que acaba impedindo qualquer

    progresso verdadeiro de interlocução da psicanálise com as neurociências? 

    Elisabeth Roudinesco: Escrevi um livro sobre isso para responder aos argumentos

    dos cientistas. Primeiro, queria observar que muitos neurobiologistas, como Gerald

    [Maurice] Edelman [(1929-), recebeu o Nobel em 1972, por suas pesquisas sobre a

    estrutura e natureza química dos anticorpos], Alain Prochiantz [diretor do Laboratório

    de Desenvolvimento e Evolução do Sistema Nervoso (CNRS) da École Normale

    Supérieure (França). É autor de Stratégies de l’embryon e de Claude Bernard, la

    révolution phsysiologique], Jean-Marie Vincent [sociólogo francês marxista e estudioso

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    9/27

    de Max Weber] e outros, ergueram-se contra as reduções que outros biólogos fizeram

    do cérebro ao pensamento, do neurônio ao inconsciente, etc. Vivemos numa época

    que parece um pouco o final do século passado, e tenta-se, de novo, incluir todos os

    psiquismos dentro dos mecanismos cerebrais, físico-químicos, etc. Isso vem de um

    progresso real da biologia e da genética. Sempre que há um progresso nas ciências,

    ele é acompanhado pelo cientificismo. Vivemos uma época científica, na qual a

    verdadeira ciência progride, mas também produz mitos. E esses mitos conduziram,

    infelizmente, à destruição da nosografia psiquiátrica tradicional, isto é, a destruição do

    saber psiquiátrico, com o que é chamado de últimos avanços do manual de

    diagnóstico estatístico de classificação de todas as doenças, no qual os pacientes no

    mundo todo são classificados de acordo com o comportamento e não mais segundo

    um sentido. Isso me parece muito grave. Isso se chama redução; deve-se dar nome

    aos bois. Isso significa reduzir o pensamento a neurônios, ou seja, reduzir o paciente a

    um mecanismo físico-químico. Sou profundamente ligada à racionalidade, à ciência e,

    de forma alguma, à magia. Logo, não se deve ver em minha crítica nada que seja

    contrário à ciência. Mas critico todas essas abordagens ditas científicas, por serem, de

    fato, mitologias cerebrais. Não se deve esquecer que essas teses foram criticadas

    também por outros cientistas que defenderam as posições de Freud. Lembro ainda

    que Freud procurou, a vida toda, dar um status de ciência natural à psicanálise, pois

    também achava que se encontraria na biologia uma explicação para os psiquismos.

    Ele pensou assim a vida inteira, já que, num dos últimos escritos póstumos de 1940,

    ele repete isso. Mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, ele fez ao contrário. Já em

    seu primeiro manuscrito, Esboço de psicologia científica, ele deixou esse terreno,

    dizendo que, mesmo seguindo aquele caminho, não teria encontrado nada. Em outras

    palavras, há uma autonomia do psíquico. E, se vivemos um período em que se quer

    reduzir tudo a neurônios, acho que é porque a psicofarmacologia produziu efeitos

    extremamente positivos. As teorias são falsas, a meu ver, mas a verdade é que a

    eficácia de todos os medicamentos psicotrópicos deu a ilusão de que se ia encontraruma explicação neuronal para todos os mecanismos do psiquismo. Esta é a ilusão:

    não é porque há efeitos reais que se deve incluir tudo nessa questão. As funções

    simbólicas são necessárias. Um paciente não é explicável unicamente de um jeito, a

    função simbólica é capital. Temos um sentido, de onde viemos, somos filhos de quem,

    qual é o sentido de nossa vida, todas essas questões são abolidas pelo cientificismo.

    E quero concluir dizendo que esse cientificismo sempre tem o risco de produzir

    terapias mágicas. É nos EUA onde mais se desenvolveram as neurociências, que há

    também um recrudescimento das terapias mágicas: bruxaria, radiestesia,

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    10/27

    magnetizadores, astrólogos. Porque os pacientes vão buscar na magia o que não

    encontram mais numa ciência que é científica demais e muito totalitária, além disso. 

    Paulo Markun: Eu vou começar com uma piada que é uma brincadeira do Luis

    Fernando Veríssimo, escritor brasileiro que todo mundo conhece, uma pessoa que fazuma caricatura muito grande do analista de Bagé [personagem do livro de mesmo

    nome, representação caricatural de um psicanalista de formação freudiana ortodoxa,

    com sotaque, trejeitos e os costumes típicos do gaúcho da fronteira do Rio Grande do

    Sul com o Uruguai e a Argentina], um psicanalista machista, que diz que diante dos

    seus clientes, só tem duas soluções. A primeira, ele manda o cliente pagar seus

    carnês. E se ele voltar com os carnês pagos - isso já resolve 90% dos problemas - e

    continuar com alguma coisa, o analista conclui que aquilo é pura frescura, dá um

     joelhaço no sujeito e manda ele para casa tratar. E essa piada, professora, é mais

    para perguntar para a senhora qual é o papel, o que a psicanálise pode fazer nos dias

    de hoje? Houve um certo período em que a psicanálise foi vista por uma elite como a

    grande solução dos problemas individuais das pessoas e, hoje em dia, há muita gente

    que, se não concorda com essa piada, pelo menos acha que ela tem um fundo de

    verdade. 

    Elisabeth Roudinesco: Sempre houve piadas sobre a psicanálise, e isso é normal, é

    o humor, está ligado ao humor judeu, originário de Freud, que até escreveu um livrosobre o humor. Então, é normal. Quando há humor, é prova de que há algo vivo. Mas,

    respondendo, existe uma imagem deturpada da psicanálise. É o famoso psicanalista

    nova-iorquino que só trata pessoas que têm problemas sofisticados, sempre se

    inquirindo, etc. Mas há uma dimensão social da psicanálise. O psicanalista ou o

    psicólogo clínico, que tem uma formação psicanalítica, nos países onde se trabalha a

    psicanálise, nos serviços de tratamento paliativo, eles tratam, por exemplo, dos

    aidéticos e de todos que têm problemas psicológicos ligados a doenças e aos quais

    um médico não pode escutar. E é normal, pois se a medicina científica quiser

    continuar sendo científica, ela não pode escutar muito os pacientes, pois se arriscará a

    não praticar um tratamento correto. 

    Paulo Markun: Cada caso é um caso! 

    Elisabeth Roudinesco: Como? 

    Paulo Markun: E nessa situação, para a medicina, cada caso é um caso e ela não

    consegue avançar. 

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    11/27

    Elisabeth Roudinesco: É isso. E ao mesmo tempo, sobretudo na medicina

    especializada, moderna, científica, ele é obrigado a se fixar em um só órgão. Então,

    em todos os hospitais, e locais ligados a doenças onde haja sofrimento, existem

    psicólogos que só se ocupam em escutar os doentes. E o modelo dominante para isso

    é a psicanálise, mesmo que para isso não usem um divã. Depois, há todo o setor

    escolar e infantil. Em todos os países onde haja problema escolar, haverá

    psicanalistas. Na França, há muitos psicólogos clínicos, psicanalistas trabalhando na

    periferia com os imigrantes, com os delinqüentes. Essa é a prática quotidiana da

    psicanálise. E esses psicanalistas não usam terno e gravata. Usam jeans, tênis, vivem

    o dia-a-dia, não ganham muito, não são ricos e não têm pacientes em divãs o tempo

    todo. É essa a imagem moderna da psicanálise. E foi a eles que quis prestar

    homenagem em meu livro. Mas é verdade que o sofrimento psíquico existe também

    em todas as outras classes sociais: os ricos e também os muito pobres que nem têm

    tempo de pensar nisso. Mas a psicanálise pode estar em toda a parte: nos hospitais,

    escolas e em todos os problemas da sociedade, como violência social, etc. Vemos

    hoje que sempre que há um acidente, há sempre psicólogos presentes. De certa

    forma, a psicanálise participa de todos os problemas da sociedade. Assim eu vejo. É

    esse o seu futuro. 

    Mônica Teixeira: Mas, professora, é verdade que, enfim, não vou discutir tudo isso

    que a senhora está dizendo, mas eu quero voltar a uma questão que a gente falou no

    outro bloco. A senhora disse que a ciência é uma grande mitologia, que a ciência

    constrói mitologias. E eu acho até que ela constrói. E toda a idéia do psicofármaco,

    toda a idéia do remédio, da solução com o Prozac e da idéia de que o sofrimento

    psíquico não é psíquico, é uma idéia trazida e alardeada pelos cientistas, talvez menos

    que pela ciência. E isso isola não só a psicanálise, mas isola a idéia de que as

    pessoas tenham uma subjetividade e que essa subjetividade não está contida, nem

    em seu gens, nem em seu cérebro especialmente. De qualquer forma, essas idéias

    estão tendo um grande avanço no final do século e são dominantes, são idéias às

    quais a maior parte das pessoas se apega, concorda e apóia. Por que a senhora acha

    que está acontecendo isso? O que há no mundo que torna essas idéias, que vêm do

    progresso da ciência aparentemente, tão preponderantes, tão dominantes na

    sociedade? 

    Elisabeth Roudinesco: Isso vem daquilo que disse no início. Há um duplo fator. Há

    progressos reais da ciência todos os dias. E a ciência se tornou a ideologia de todos.

     A ciência, ou a religião, ou a magia. São as três vertentes. As grandes igrejas estão

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    12/27

    em declínio, em benefício dos movimentos carismáticos, mais mágicos, onde se

    procura um ideal. Depois há a ciência. Nunca associo a ciência à mitologia, mas ela

    sempre corre o risco de acabar produzindo-a. E o fato, hoje, é que, com o poder da

    mídia, com o progresso real no setor da saúde, da ciência, todos esperam soluções

    vindas daí. E são soluções verdadeiras. Por isso, é complicado. É graças à medicina

    que se envelhece menos. Vê-se muito bem a diferença entre os que têm acesso à

    medicina atual e os que não têm. E é justamente por isso que todos acham que, pela

    farmacologia, se vai achar soluções para todos os problemas. Mas isso é verdadeiro e

    falso. É real. Hoje não se pode viver sem os medicamentos, sejam psíquicos ou

    orgânicos. Pode-se imaginar que, dentro de 20 anos, vá se viver com muito mais

    medicamentos. Mas o que quero dizer é que nada nunca é total. Sempre haverá uma

    parte de subjetividade. E essa subjetividade deve ser canalizada. Nesse sentido, é

    verdade que a psicanálise continua sendo um meio de escuta da subjetividade. Mas

    ela não deve se aproximar da magia, pois seria um desastre. Acho que ela deve

    dialogar com a ciência e a racionalidade. É a única solução para esse problema e para

    seu futuro. Por isso, não concordei com os psicanalistas que rejeitavam

    sistematicamente todos os medicamentos. Eles são cada vez em menor número, mas

    é esse o debate do futuro. Essa é a crença. Todos esperam milagres da ciência. Isso

    acaba produzindo efeitos negativos, mas é normal. Foi assim no final do século 19,

    com a grande expansão da ciência. Mas cuidado com a revanche! Houve também a

    produção mágica que acompanha automaticamente os grandes progressos da

    ciência. 

    Caterina Koltai: Você falou agora alguma coisa a respeito, rapidamente, eu queria

    que você falasse um pouquinho sobre as relações da psicanálise com a religião.

    Porque nós estamos vivendo, de um lado, um ataque à psicanálise pela indústria

    medicamentosa, e de outro, um recrudescimento da religiosidade. Especificamente no

    Brasil, que é um país muito religioso, considerado o maior país católico do mundo, é

    um país de um sincretismo religioso muito grande, queria que você falasse um pouco

    do lugar da religião e suas relações com a psicanálise. E por que será que nós

    estamos vivendo o recrudescimento da religião? E eu diria em suas formas mais

    fundamentalistas no mundo inteiro. 

    Elisabeth Roudinesco: Creio que hoje não há mais conflito entre a psicanálise e as

    grandes religiões instituídas. No início, e entre as duas guerras, a Igreja Católica foi

    inimiga da psicanálise. Basta ver as críticas à teoria da sexualidade. Mas acabou, e

    hoje, as religiões instituídas também são ameaçadas justamente pelos movimentos

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    13/27

    carismáticos de religiosidade. Hoje existe um tipo de aliança, não há quase mais

    conflito entre os analisados e as religiões. Muitos padres foram analisados. E hoje,

    ainda que Freud se horrorizasse, há em comum com as grandes religiões a idéia de

    humanismo. Em revanche, todo o fenômeno de irrupção de religiosidade, sobretudo no

    Brasil, é uma psicoterapia. E as igrejas instituídas estão muito embaraçadas com isso,

    pois elas não mais propõem soluções aos problemas de neurose dos fiéis. Quando

    alguém apresenta um problema assim, elas o enviam ao psicanalista ou ao médico.

    Ela não tem mais o status da psicoterapia. E essa irrupção é problemática para todos.

    Posso contar uma história. Participei de um programa na TV francesa com um padre e

    um pastor protestante que era analista. O padre também fora analisado. E outra

    participante contestava radicalmente a psicanálise em nome da religião. E foram o

    padre e o pastor que tomaram o partido da psicanálise. Isso era impossível nos anos

    30. Mas, foi assim, porque a mulher tinha problemas ligados, não à religião, mas ao

    psiquismo. Organizei também um colóquio com exorcistas. Na França, também há um

    recrudescimento da demanda desses rituais por possessos e maníacos. E constatei

    que muitos desses exorcistas passaram pela psiquiatria e pela análise. E, é claro, eles

    também se colocam esse tipo de questão. Logo, quando um fiel vai para a análise,

    não se questiona mais se a psicanálise destrói a fé como nos anos 50. Isso me parece

    ultrapassado. Em troca, o problema é realmente a religiosidade e seus efeitos que

    ultrapassam as igrejas e não mais a religião ou a fé. Na França, por exemplo, é o

    budismo que está em pauta. Há um número crescente de budistas, não em busca de

    uma religião, mas, em geral, em busca de tratamento pela religião. 

    Arthur Nestrovski: Eu queria voltar à questão da depressão, já que estamos

    pensando sobre as relações da psicanálise com o mundo social no momento atual. No

    verbete sobre melancolia do seu Dicionário da Psicanálise, a senhora menciona a

    depressão como “uma espécie de equivalente da histeria do século 19. Uma

    verdadeira doença de época”, eu estou citando. E a senhora disse que “isso se deve

    ao fracasso do paradigma da revolta, ao mundo desprovido de ideais e dominado,

    hoje, pela tecnologia farmacológica”. Eu não sei se é um pouco hiperbólico demais, ou

    militante demais, a gente pensar num mundo desprovido de ideais hoje. Mas

    acreditando que isso seja a descrição realista dos fatos, a minha pergunta seria a

    seguinte: da escuta da histeria, foi escutando as histéricas, que Freud, de fato, criou a

    psicanálise. Foi tentar escutar o que estava sendo dito no discurso de mulheres que

    tinham um deslocamento tão grande em relação ao seu sofrimento, que Freud acaba

    inventando a psicanálise. Será que nós teríamos, de fato, alguma coisa da mesma

    monta a aprender com a depressão? E a psicanálise está, de fato, hoje,

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    14/27

    acompanhando ou sendo capaz de escutar essa demanda dos deprimidos e

    aprendendo alguma coisa com ela? 

    Elisabeth Roudinesco: Sim, mas o problema hoje - por isso usei a palavra

    depressão e não melancolia - é que todos são tratados como depressivos. E repitoisso porque os antidepressivos são muito eficazes. Então, propõe-se o mesmo

    medicamento para todos, histéricos ou não. E há diferenças. Aqui, não sei, mas na

    França, se alguém tiver qualquer problema, receita-se Prozac, sem diferença entre

    alguém com depressão crônica sem causa e alguém que acabe de sofrer uma perda,

    um acidente, qualquer coisa. Há até uma piada meio macabra que diz: “Puxa, você

    perdeu o marido, o trabalho, o filho, está na rua, então tome Prozac”. São problemas

    que não estão ligados ao medicamento. 

    Paulo Markun: Professora, eu só queria fazer uma observação exatamente neste

    ponto, que há um grande negócio por trás disso. Não se trata apenas de uma moda,

    existe uma máquina de fazer dinheiro que faz com que essa solução seja a melhor. 

    Elisabeth Roudinesco: Sim, os laboratórios farmacêuticos. E a constatação a isso,

    na França, partiu dos psiquiatras, não dos psicanalistas. E sendo o país onde se

    consome mais psicotrópicos no mundo - pelo governo, claro - os próprios psiquiatras

    explicaram que eram consumidos mesmo sem recomendação especializada. Issoporque muitos clínicos gerais respondem com um medicamento a qualquer problema.

    Então, não são prescritos pelo psiquiatra, são prescritos por todos os clínicos gerais,

    indiferentemente dos tipos de problemas. Para qualquer tipo de sintoma se dá a

    mesma droga. Quero insistir nisso. E não é por acaso que seja um antidepressivo. Nos

    EUA, os excitantes são mais consumidos. Mas dá no mesmo; é sempre a idéia de que

    há depressão e, assim, vai se sair da depressão. É um paradigma no sentido

    filosófico, pois estamos em sociedades depressivas, sociedades ocidentais. Por outro

    lado, pensa-se tratar a todos da mesma forma quando a indicação não é forçosamentea mesma. Você tem razão, há um problema de dinheiro por trás e também é mais

    rápido, a resposta é mais rápida. Mas se esquece de que, depois, essas pessoas não

    seguem um tratamento. Isso funciona por um tempo, mas quando se tratam perdas e

    outros estados psíquicos apenas com medicamentos, não se obtêm resultados tão

    bons, a longo prazo. 

    Mônica Teixeira: Professora, como a senhora acha que pode ser? A senhora disse lá

    na primeira pergunta que vê o sucesso individual como uma marca do final do século,o desejo do sucesso individual. Quais são as relações que a senhora acha que

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    15/27

    existem entre esse anseio, que é reconhecido socialmente - é legítimo, é considerado

    legítimo do ponto de vista social - e esse quadro de depressão, do qual a senhora

    estava tratando? É isso que a senhora chama de uma sociedade depressiva e que

    busca sair da depressão, de qualquer depressão, por meio de um remédio?  

    Elisabeth Roudinesco: Acho que quando se tem como único modelo o sucesso, no

    sentido mais material do termo, isso provoca estados depressivos. Porque caso o

    sucesso seja a única meta, se o indivíduo não conseguir chegar a ele, vai

    automaticamente entrar em depressão. E acho ainda que vivemos em sociedades em

    que não se quer ver a violência, a morte. Vejam, como a guerra: não se quer ver os

    mortos, tudo deve ser limpo. No trabalho, não se suporta mais que alguém chore,

    sofra, tudo deve ser clean. Não se quer ver a realidade. Essa é uma grande tendência

    dessas sociedades normativas. Sabe-se que tudo isso existe. É assim com o uso dos

    medicamentos. Como alguém que dissesse: “Sei que tenho um inconsciente, mas não

    quero saber de nada”. Toma o remédio e pronto. Não quero parecer um velho juiz

    conservador, mas na verdade é essa a tendência hoje: resolver tudo depressa e

    esconder a dor. E ela existe. 

    Renato Mezan: Talvez aqui caiba introduzir alguma diferença quando a senhora fala

    “as nossas sociedades”. [Ao dizer] As nossas sociedades, eu imagino que a senhora

    pense nas sociedades daquilo que no Brasil se chama de maneira um pouco...  

    Paulo Markun: Invejosa. 

    Renato Mezan: Redutiva e invejosa, o Primeiro Mundo. E aqui é o Terceiro Mundo,

     junto com o Primeiro. Alguém disse uma vez que o Brasil era [a junção de] dois

    países, a "Belíndia". Tinha uma Bélgica e uma Índia. E a Índia cada vez mais toma

    proporções importantes. 

    Paulo Markun: Cada vez mais incomoda a Bélgica. 

    Renato Mezan: Cada vez mais incomoda a Bélgica e pode engolir a Bélgica. Bem, eu

    digo que é importante talvez introduzir essas diferenças pensando no rumo que nossa

    discussão está tomando, que focaliza basicamente a relação da psicanálise com as

    doenças, com as preocupações, com as questões do mundo contemporâneo, e menos

    os trabalhos propriamente eruditos que a senhora fez sobre a história da psicanálise, a

    biografia de um grande psicanalista. Eu acho isso muito importante, já que é um

    programa dirigido ao grande público. E eu gostaria de, então, introduzir uma questão

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    16/27

    sobre o lugar da psicanálise nessas sociedades, tomando um pouco o que já foi

    dito. Existe uma diferença - eu não sou sociólogo profissional e se eu estiver falando

    bobagem, os cientistas sociais presentes, por favor, me corrijam - mas eu tenho a

    impressão de que há uma diferença de vivência entre um país como o Brasil e um país

    como a França, que é o papel da euforia. Quando eu coloquei a primeira pergunta

    sobre o lugar da psicanálise nesse contexto, a senhora tinha acabado de falar de Maio

    de 68, esse momento em que tudo parecia possível e que marcou toda uma geração,

    que é a sua, com determinados ideais e determinadas exigências intelectuais e éticas.

    No Brasil, o ano de 68 foi marcado pelo Ato Institucional número 5 [ AI 5] e pelo

    recrudescimento da ditadura militar. Sem entrar em grandes análises, o que eu penso

    é que há uma oscilação muito maior naquilo que se chama, grosseiramente, o caráter

    nacional brasileiro, do que no mundo europeu. Passa-se facilmente de um entusiasmo

    arrebatador pela novidade, por um grande líder, por uma causa, etc, para uma

    vivência depressiva. Um grande "psicanalista" brasileiro chamado Nelson Rodrigues

    [1912-1980), importante e polêmico dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro, cuja

    obra provoca reações apaixonadas e divide opiniões pela abordagem de paixões

    exacerbadas, gestos exagerados, obsessões, taras, incestos e conflitos] disse que o

    brasileiro é, antes de mais nada, um ciclotímico [denominação dada ao indivíduo que

    alterna comportamentos de excitação extrema e depressão acentuada]. Então, nesse

    contexto, o que se fala sobre a sociedade depressiva talvez devesse ser nuançado,

    matizado. E minha questão se dirige, então, para o papel da psicanálise dita

    tradicional, ou essa que a senhora caracterizou de forma um pouco irônica, como um

    psicanalista de gravata e paletó, frente ao psicanalista de jeans que trabalha na

    periferia, está envolvido com as questões sociais. Eu gostaria de colocar a pergunta

    nos seguintes termos e ouvir sua opinião a respeito: Nós temos uma comparação feita

    por  Freud, que é um pouco elitista, no sentido de que a psicanálise seria o ouro puro e

    as diferentes aplicações dela seriam misturas mais ou menos nobres. É claro que

    Freud estava preocupado também com isso, se interessou pelo ensino da psicanálise,se interessou pelo problema do custo da análise. Freud não era nenhum indivíduo fora

    do seu tempo. Mas talvez se possa dizer que a situação analítica, clássica, tradicional,

    aquela onde tem alguém deitado em um divã, que vem várias vezes por semana, e é

    ouvido individualmente por um psicanalista. Psicanálise no sentido mais tradicional da

    sua forma. Ela é como se fosse o laboratório, o foco, onde se originam descobertas,

    idéias, hipóteses, que em seguida, tem um alcance muito maior e que podem ser

    utilizadas perfeitamente em trabalhos de toda natureza, com outros tipos de situação

    que não a situação clássica. Eu digo isso porque faz parte dos ataques à psicanálise,neste país, neste momento, a idéia de que tudo isso é muito ultrapassado, que aquilo

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    17/27

    que você chama de terapias mágicas, de uma maneira ou de outra, deveriam

    prevalecer. E que o bom, velho, tradicional método psicanalítico já rendeu o que tinha

    que render e agora, então, vamos aplicar esse conhecimento. Na minha maneira de

    pensar, isso é obscurantismo puro e simples, há espaço para todos embaixo do Sol. E,

    certamente, as aplicações da psicanálise, dos conhecimentos psicanalíticos podem

    ser feitos das mais variadas maneiras. Nisso eu concordo inteiramente com a sua

    posição. Mas eu gostaria de ouvi-la brevemente sobre essa questão da fecundidade

    do método analítico ainda hoje.

    Elisabeth Roudinesco: Vou responder claramente: o ideal é que o psicanalista de

    tênis possa usar gravata e vir escutar pacientes deitados no divã. Sou daqueles que

    pensam que o mais frutuoso é a mistura, nada de guetos. Claro que o ideal é que o

    psicanalista possa estar na periferia, ocupar-se do social e, ao mesmo tempo, manter

    a idéia do tratamento analítico puro, que, de fato, pode favorecer a pesquisa. É

    verdade que é algo formidável escutar pacientes em condições ideais de exploração

    do inconsciente. Mas deve-se ter os dois lados, como já disse: clínica, pesquisa

    fundamental, tudo ao mesmo tempo. Mas é também preciso criticar as instituições

    analíticas. Elas criaram um modelo de análise que ficou insuportável e que foi

    contestado com razão. Acho que estamos saindo dessa fase. Se, de um lado, há

    ataques permanentes à psicanálise, há também ataques justificados. Porque, como

    todo grande movimento de emancipação, a psicanálise produziu toneladas de

    funcionários, instituições esclerosadas e pessoas incapazes de se abrir para a

    modernidade. Mas ela também tem força suficiente para que seja contestada de seu

    interior e não apenas do exterior. Além disso, a explosão dos movimentos de

    psicanálise no mundo mostra que não há mais uma única instância legítima da

    psicanálise. Há uma infinidade de grupos, associações, e isso é muito bom, porque dá

    vida à pesquisa, é benéfico, sem modelos únicos e criticando toda esclerose. Quanto à

    diferença entre a França e o Brasil, creio que ela é menor do que você diz. Diferença

    existe sempre. Há o diferente e há o universal. Mas, muitas vezes, tenho a impressão

    que a França está se assemelhando ao Terceiro Mundo. Na França, não há as

    mesmas favelas que vejo em São Paulo, mas há muita gente que dorme nas ruas,

    uma miséria espantosa que, há 20 anos, absolutamente não existia. Então, a antiga

    dicotomia que dava a impressão de se vir de um país dito civilizado para o Terceiro

    Mundo existe cada vez menos. Vejo, ao contrário, muitas analogias entre a América

    Latina e a Europa. Mais que nos EUA, onde, mesmo assim, houve progressão dos

    modelos comunitaristas. Lá sentimo-nos mais estrangeiros, mesmo estando muito

    mais próximos. Portanto essas diferenças têm diminuído. E vejo que, com a

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    18/27

    globalização, vai haver problemas equivalentes em todos os países do mundo. Eles

    ficam cada vez mais parecidos e, por isso mesmo, as diferenças vão se acentuar

    também. 

    Renato Mezan: Professora, só um instantinho. A senhora falou agora há pouco “voudar um exemplo simples disso”. A senhora falou a respeito dos medicamentos

    psicotrópicos receitados por médicos generalistas à população, e cada vez mais,

    porque eles são reembolsados. Eu tenho certeza de que muito poucas pessoas vendo

    este programa entenderam do que se trata isso, porque a figura tão simples do

    reembolso de um medicamento pelo Estado é inteiramente desconhecida neste país.

    Ou se pega no posto de saúde ou então é o plano de saúde. Ou seja, a vivência

    concreta dessas questões de saúde é muito diferente, mas este não é nosso assunto

    e fica para uma outra discussão. 

    Elisabeth Roudinesco: Sim, mas como a França tem um sistema de saúde que

    reembolsa por medicamentos, somos os maiores consumidores. É importante dizer

    isso. É grátis, então, consome-se mais. 

    Paulo Markun: Nem sempre é o melhor negócio se oferecer tanta facilidade assim

    para se comprar um medicamento. Em uma entrevista, quando a senhora lançou o

    livro da biografia de Lacan, a senhora mencionou o fato de que continua defendendo aidéia de que o intelectual, de que o pensamento tem um caráter subversivo. A senhora

    disse isso, mencionando até a história de que nessa sociedade moderna, com o fim do

    comunismo e com essa história toda, o intelectual saiu de moda. Hoje em dia, o que

    está na moda é economista, o que está na moda são os grandes investidores, etc. E

    ao mesmo tempo, no próprio trecho do Dicionário, no verbete do Dicionário que fala

    sobre o Brasil, a senhora menciona um caso envolvendo um psicanalista no Brasil que

    prestou serviços à repressão e que foi, depois de muito tempo, condenado por isso

    pela sociedade. Então, eu queria juntar as duas coisas nisso. Onde o intelectual hojepode ser subversivo? Porque a sensação que dá para quem olha este mundo, hoje em

    dia, é que a melhor subversão que a gente pode fazer é pegar nossas coisas e ir

    embora para o meio do mato e desistir de tudo, porque não há espaço para que essa

    subversão realize alguma coisa. 

    Elisabeth Roudinesco: Como você é pessimista! [risos] 

    Paulo Markun: Um pouquinho. Eu diria que, como brasileiro, “Freud explica”. Porque

    aqui há este ditado, que tudo Freud explica. Então talvez o meu pessimismo também... 

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    19/27

    Elisabeth Roudinesco: Tudo Freud explica, tudo! Que paixão! [risos] Mas a questão

    central, além da história do psicanalista brasileiro, já bem conhecida, é uma verdadeira

    questão de substituição da figura do intelectual, de mestres, no início, que é válida

    para todos os setores pela figura, não só do economista, mas do expert. É a idéia de

    que não há nada universal em sempre fazer uma perícia, como se o corpo fosse uma

    máquina ou que cada parte está ligada a apenas uma especialidade. Substituiu-se a

    figura universal do intelectual, do qual a França deu os primeiros modelos, por causa

    da Revolução Francesa, por essa posição do expert. Mas, provavelmente, isso não é

    tão real como você diz, pois observo que, quanto mais experts existem, mais jargão se

    ouve e menos se entende. Não se entende o que eles dizem. Lacan e outros foram

    acusados de ter uma linguagem hermética, mais incompreensível. É o que dizem os

    experts de hoje, o tempo todo. Acho, ao contrário, que a figura do intelectual universal

    está voltando. Na França, muitos deles se manifestam na imprensa. Vocês estão me

    entrevistando. Eu sou uma intelectual também. É importante, porque o sentido da vida,

    da morte, do engajamento, o que significa um homem ou uma mulher, hoje, ou o que é

    homossexualidade, não são temas a serem tratados pelos experts, nem pelos comitês

    de ética, que são úteis para certas coisas, mas são limitados. Logo, a figura do

    filósofo, do sábio, a meu ver, vai continuar, talvez na forma de um escritor, ou outra.

    Ele existe porque há interrogações no mundo sobre a liberdade, o sentido da vida, etc.

    Mas os experts podem ser muito úteis, porém não tratam a questão do sentido da

    vida. 

    Luiz Tenório de Oliveira Lima: Professora Elisabeth, como seu trabalho é um

    trabalho que se relaciona com um nível bastante erudito, ficam realmente vários

    planos, não é? E isso estimula muito a cabeça da gente porque é um problema para

    escolher qual plano, e como a gente pode ser útil também para o espectador, que está

    nos vendo, nessas questões. Vou me deter em dois planos e vou procurar ser breve.

    O primeiro deles diz respeito à questão da psiquiatria e da psicanálise, da medicação

    e da cura pela palavra, das formas de psicoterapia e de psicanálise. Essa questão me

    parece, eu procuro pessoalmente refleti-la evitando a polarização: a questão de que a

    indústria farmacológica ataca a psicanálise. Eu sou analista e não me sinto atacado

    por isso; e que também a psicanálise ataca os professores dos departamentos de

    psicofarmacologia. Eu procuraria evitar essa polarização, porque o telespectador, por

    exemplo, que está sofrendo, que tem uma crise depressiva, o que ele faz? Ele procura

    o quê? Uma pessoa que está nos ouvindo, que está na sua casa, etc, que tenha uma

    depressão profunda, que está em um estado profundo de depressão ou que está

    ouvindo vozes, ele está delirando. O que ele faz? Ele vai procurar o quê? Psicanálise,

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    20/27

    psiquiatra, etc? Eu penso que essa questão é central, vista desse nível. E eu penso

    que a polarização e o preconceito dificultam muito. Aliás, a minha experiência

    atualmente, na minha experiência como analista, eu tenho encontrado mais

    preconceito nos meios cultivados - porque eu tenho mais acesso - com a medicação,

    com o uso de psicofármacos do que, por exemplo, com psicanálise. Não há o menor

    preconceito com psicanálise ou com psicoterapia. Mas há grandes preconceitos com o

    uso de antidepressivos. E eu tenho, às vezes, tentado persuadir clientes meus, em

    análise, para que sejam avaliados por um psiquiatra em circunstâncias de limite

    mesmo, para poder, então, ser avaliado a tomar o antidepressivo. Eu acho que há os

    abusos mesmo, acho que esses abusos existem e eles devem ser condenados, mas

    nós devemos também valorizar esses progressos psicofarmacológicos que são

    realmente contribuições importantes, inclusive para o trabalho. Eu sei que isso é

    controverso e polêmico. Eu gostaria de ouvi-la sobre isso. Este é o primeiro ponto que

    é de ordem prática. Mas eu gostaria de fazer uma pergunta mais amena, mais suave,

    relativa ao seu trabalho propriamente, que é a questão da posição da mulher na

    psicanálise. Essa questão tão central. E a senhora menciona em diferentes

    passagens, em inúmeras entrevistas, e também nos verbetes, quando se refere a

    Melanie Klein, por exemplo, como sendo aquela que deu um lugar para a mãe,

    considerando a questão do pai em Lacan. Essa é uma questão mais teórica, mas eu

    gostaria de ouvi-la sobre a posição, não só a situação da mulher do ponto de vista

    teórico, mas da mulher psicanalista. E eu gostaria de acrescentar uma omissão, que

    eu achei, em relação à Karen Horney [(1885-1952), médica psicanalista que enfatizou

    a preeminência de influências sociais e culturais sobre o desenvolvimento

    psicossexual, focalizou sua atenção sobre as psicologias divergentes de homens e

    mulheres e explorou a variabilidade dos relacionamentos conjugais], que, a meu ver,

    foi a primeira mulher, quando ainda era analista, não culturalista. A Karen Horney, em

    Viena, quando ela fez o primeiro artigo questionando a teoria falocêntrica de Freud 

    [teoria que diz, entre outras coisas, que a mulher seria um homem incompleto, já quenasceu sem o órgão reprodutor masculino, e isso seria causa de frustrações]. É um

    artigo clássico, todos conhecem, relativo à questão das sensações vaginais. Depois

    Freud é obrigado, é provocado por isso, e a questão segue aí, eu acho isso de grande

    importância. Então, são essas duas questões que eu gostaria de ouvi-la a respeito. 

    Elisabeth Roudinesco: Sobre a farmacologia, fui muito clara no início. Acho que

    devem existir as duas coisas. A prática analítica evolui nesse sentido. Hoje a maioria

    dos analistas receita medicamentos a alguns pacientes. O problema é a indicação do

    medicamento. Os analistas franceses, geralmente, enviam os pacientes ao psiquiatra

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    21/27

    para serem medicados. O que eu critico na farmacologia é a prescrição aleatória. Mas

    é claro que os medicamentos têm grande utilidade, sobretudo nos casos de loucura e

    psicose. A revolução farmacológica, aliás, esvaziou os hospícios; há medicamentos

    que permitem que os psicóticos vivam normalmente, mas percebemos que isso não

    basta. Todos sabem que nunca basta apenas tomar remédios. Quase sempre a

    pessoa começa a tomar o remédio, há um grande alívio, e depois aquilo não basta, ele

    muda de medicação e, em um dado momento, ele precisa da palavra. É o momento da

    palavra intervir, com qualquer remédio. Pode haver, durante a análise, um momento

    em que se prescreve algum medicamento. Hoje todos têm pacientes que tomam algo.

    Não pensem, então, que eu seja contra os medicamentos. Penso mesmo que deveria

    haver maior ligação entre a psiquiatria e a psicanálise. Em todos os países, a

    psicanálise foi implantada quando havia psiquiatria. E é esse laço que se está

    perdendo com as teorias comportamentais. Há até reações de alguns psiquiatras,

    alguns deles também são psicanalistas. Aqui também, a velha rusga de médicos e

    analistas já terminou. Sobre o papel da mulher na psicanálise, não vamos repetir todas

    as teorias da sexualidade. Pode-se dizer, simplesmente, que assim como a

    psicanálise só se implantou em países democráticos, tendo sido um movimento de

    emancipação das mulheres, ela só pode se implantar quando acompanha esse

    movimento de emancipação. Em outros termos, a psicanálise passa também pela

    emancipação das mulheres devido à explosão da família tradicional, patriarcal, que

    dava à mulher o papel único de mãe, de reprodutora. Quanto mais as mulheres

    procuraram a liberdade, a psicanálise acompanhou também esse movimento de forma

    contrária. Houve muita discussão sobre as teorias da sexualidade feminina no interior

    do movimento psicanalítico e entre as mulheres. Mas há ainda esse símbolo de que é

    pela liberação feminina que a psicanálise progride. E eu queria acrescentar que isso

    parece ser assim no mundo todo, o que é um problema. Há cada vez mais mulheres

    nessa profissão, que está quase toda feminilizada, isso é bem evidente no Brasil, mais

    que na França. Há uma tendência à feminização da profissão de psicanalista, e issonão é bom. Digo isso porque sou contra os guetos, não há nada melhor que as

    misturas. Se toda uma profissão se feminizar ou masculinizar, será igualmente

    problemático. Mas isso prova que as mulheres acharam seu lugar na psicanálise. E

    não só na psicanálise infantil, talvez por terem uma escuta espontânea da palavra,

    ocupam um espaço considerável. 

    Caterina Koltai: Eu queria temperar o pessimismo do Markun com o seu otimismo

    bem temperado. Ou seja, você está lançando junto com o Major, agora, "Os Estados

    Gerais da Psicanálise", que vão acontecer em julho do ano 2000. O nome de “estados

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    22/27

    gerais”, uma homenagem à Revolução Francesa, que o Carlos Guilherme levantou

    antes. E nesses Estados Gerais vão se reunir psicanalistas do mundo inteiro onde

    talvez eles possam discutir a questão levantada pelo Mezan. Se existe uma

    psicanálise brasileira, se existe uma psicanálise de Primeiro Mundo e uma outra para

    o Terceiro Mundo? Então o que vocês, que estão lançando esse movimento, esperam

    dessas discussões onde os psicanalistas do mundo inteiro podem dizer como

    trabalham, onde talvez apareça quem é esse paciente do final do século, início do

    século 21? E que talvez possa responder se a psicanálise tem futuro ainda no século

    21. A psicanálise ainda pode responder ao mal-estar da civilização? 

    Elisabeth Roudinesco: Muito bem. "Os Estados Gerais da Psicanálise", que

    acontecerá em julho de 2000, em Paris, na Sorbonne, é uma idéia de René Major,

    psicanalista francês que já veio muito ao Brasil. Ele foi dos primeiros na França a

    organizar encontros franco-brasileiros, nos anos 70. E a idéia é fazer um tipo de

    balanço com a participação, não de associações, mas de psicanalistas do mundo todo

    que, em seus países, levantem as questões que estão sendo postas para o futuro. Os

    "Estados Gerais" será isto: ver pela base quais são as questões que os próprios

    psicanalistas se colocam em seu trabalho no mundo todo. Não é um colóquio

    internacional, nem um movimento, mas a idéia de fazer um balanço e comparar um

    pouco todas as posições. Não sei em que isso vai dar, mas acho que se deveria

    fechar o século com uma idéia assim, tomada de 1789, início da Revolução Francesa, 

    com o que ela tinha de universal, já que as luzes daquela época se difundiram no

    mundo inteiro. A imagem é bonita para a grande reunião que faremos em Paris com a

    participação dos países da América Latina, onde a psicanálise se desenvolveu

    consideravelmente. Hoje a maioria dos psicanalistas, de todas as tendências, está nos

    países latino-americanos, onde seu progresso é constante. E estarão muito presentes

    na reunião. E eu digo: felizmente, a América Latina existe. Nós, europeus, muitas

    vezes nos sentimos bem pequenos.

    Mário Eduardo Costa: Olha, eu gostaria de escutar um pouquinho mais a respeito da

    sua visão sobre certas particularidades do contexto brasileiro, da prática e da inscrição

    social da psicanálise. A senhora falou agora há pouco de ter observado a feminização

    dos práticos, dos clínicos brasileiros. Mas eu lhe pergunto sobre essa especificidade

    brasileira também em função do seu verbete no Dicionário da Psicanálise a respeito

    do Brasil, que é extremamente interessante. Acho que a senhora retoma coisas que

    para nós, brasileiros, são muito pouco discutidas, mas é importante lembrar, como a

    senhora faz, dessa entrada psiquiátrica da psicanálise no Brasil através de Juliano

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    23/27

    Moreira [(1873-1932), um dos pioneiros da psiquiatria brasileira], um psiquiatra negro,

    de formação alemã, que consegue aceitar a visão sexual da teoria freudiana [é

    interrompido por um entrevistador que diz: “Baiano”?] e inscreve a psicanálise dessa

    maneira. Mas me parece que tem dois aspectos que não estão suficientemente

    desenvolvidos, eu gostaria de escutar, do seu verbete e outras passagens do

    Dicionário, mas que me parecem muito marcantes no contexto brasileiro da

    psicanálise. Um deles é justamente esse enorme esforço que foi feito em diversos

    estados no Brasil por uma modificação desse contexto de classe média alta, burguês,

    da clínica psicanalítica, para as experiências propriamente sociais, ou de um grande

    público da psicanálise. A senhora lembra lá no verbete dedicado ao Hélio Pelegrino

    [(1924-1988), psicanalista, escritor e poeta brasileiro], “da clínica social da

    psicanálise”. Talvez valesse um pouco mais a pena discutir que importância isso teve

    no contexto brasileiro e talvez fora do Brasil. Acho que essa é uma particularidade da

    psicanálise no Brasil. E a outra é a particular inscrição universitária da psicanálise aqui

    no Brasil, uma vez que não existe muitos países no mundo, em que a psicanálise

    tenha ocupado um espaço tão importante, tão fecundo, dentro da universidade, como

    no Brasil. Criamos um espaço de interlocução não só com a psiquiatria, mas com as

    artes, com a própria história, com a literatura. Enfim, eu gostaria de escutar um pouco

    a respeito desses dois aspectos. 

    Elisabeth Roudinesco: Bom, para redigir a parte brasileira do Dicionário da

    Psicanálise, eu me inspirei em trabalhos de brasileiros. E também ainda falta

    informação. Mas não é especificidade do Brasil a experiência social da psicanálise. Ela

    existiu em toda a parte, em toda época: em Berlim em 1920, na Áustria, na França,

    nos EUA, com a grande clínica psiquiátrica no Kansas, a Menninger, em Topeka, que

    foi uma experiência extraordinária. Então, a dimensão social não é específica do

    Brasil. Pode haver alguma especificidade, mas essa é uma tendência que existe

    desde o início. A psicanálise não é só o divã e a poltrona. Em outro ponto você tem

    razão. Parece-me que uma das grandes particularidades - e talvez por isso ela seja

    tão viva - está na universidade. No Brasil, houve muito menos resistência da

    universidade à psicanálise. Já na França, é terrível, ela está sempre sob a capa da

    psicologia, ela é ensinada nos departamentos de psicologia; não há uma cadeira de

    psicanálise na École de Hautes Études, nem no Collège de France. Em muitos países,

    há sempre uma suspeição sobre a validade científica dessa disciplina, considerada

    estranha pelos acadêmicos. E, no Brasil, você tem razão, ela é mais importante.

    Talvez porque os psicólogos brasileiros tenham sido muito menos resistentes a ela

    que os franceses. A especificidade da psicanálise brasileira, e é sua qualidade

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    24/27

    também, é o ecletismo. Aqui há todas as escolas, todas as tendências. É como um

    espelho da Europa, como eu quis mostrar. E ainda há particularidade de sua

    implantação na Bahia por esse psiquiatra negro. 

    Arthur Nestrovski: Eu queria voltar a uma pergunta - Tenório já me roubou um poucoessa pergunta - que é a questão das mulheres na psicanálise. Mas eu quero abordar

    essa questão de uma outra perspectiva. A pergunta dele dizia respeito à participação

    das mulheres psicanalistas na prática psicanalítica. Eu quero pensar sobre o conceito

    que a psicanálise faz das mulheres hoje. Freud fez uma pergunta clássica que ficou

    parcialmente sem resposta, “o que era uma mulher”? As respos tas dele não são

    convincentes pelo menos para os nossos padrões de hoje. Ao mesmo tempo, como já

    comentamos aqui, foi exatamente escutando as histéricas do século 19, mulheres que

    desejam coisas que elas mesmas não conseguem reconhecer como desejo, e sofrem

    por isso, foi o escutar as mulheres que desenvolvem, então, os sintomas histéricos por

    conta disso, que ele inventa, cria a psicanálise. A pergunta de Freud, “o que era uma

    mulher”?, se hoje, as nossas mulheres já têm suas demandas reconhecidas de forma

    mais produtiva e mais consistente pela psicanálise? Até que ponto a psicanálise

    mudou para dar conta dessas demandas? 

    Elisabeth Roudinesco: Sim, Freud sabia disso, porque ele dizia, com razão, que

    quando mais mulheres fossem psicanalistas, as questões mudariam, sobretudo as dasexualidade feminina. Ele até mudaria sua teoria em função do que as psicanalistas

    trouxeram. Não sei se é bem essa a sua questão sobre o lugar da mulher. Tendo a

    achar que as mulheres, não só na psicanálise, vão ocupar um lugar muito potente no

    próximo século. Apesar do que se diz e do que acontece em mais da metade do

    mundo, onde a mulher ainda é muito explorada, digamos que em lugares como a

    Europa, os EUA e o Brasil, em algumas camadas sociais, é verdade que o poder da

    mulher será muito grande. O domínio sobre a procriação, tudo vai tender para o lado

    do poder feminino, e acho que os homens é que estarão em dificuldade. Porque não

    se pode, depois de 2000 anos... 

    Paulo Markun: Já estamos, já estamos... [risos]

    Elisabeth Roudinesco: Já estão em uma dificuldade terrível. Por isso eu critiquei as

    feministas. Elas não se preocupam muito com essas questões. Elas mesmas se

    perdem e há muitas mulheres sós, por causa disso. E também por não se dar conta da

    repercussão da emancipação feminina. É preciso se projetar no futuro, pois ainda háque lutar para que os direitos sejam iguais. Mas, segundo a psicanálise, não se pode

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    25/27

    deixar de pensar na questão da falta paterna masculina. Os homens estão sendo

    privados de tudo que tiveram por 2000 anos, de forma rápida e progressiva. Claro que

    tiveram muito tempo para se preparar, [risos] mas mesmo assim, não é fácil. Do ponto

    de vista concreto, hoje vêem-se muitos homens procurando a análise, mais do que há

    20 anos. E, provavelmente, também pelo fato de a psicanálise ter-se dirigido para as

    crianças, em muitos países, isso proliferou muito. Toda a psicanálise foi para o lado do

    laço materno, e o lugar do pai nunca está suprido. Nisso, Lacan foi genial. Ele logo

    entendeu o que era esse lugar. Há uma tendência para pedir que os homens

    desempenhem tarefas de mães, partilhe delas, mas as coisas não vão acontecer

    assim. Será diferente. Mas chamo atenção para isto: qual será a potência feminina no

    futuro? Será que os homens vão se feminizar mais? O que a identidade dos homens

    fará com todas as transformações? 

    Carlos Guilherme Mota: Nós começamos com a Revolução Francesa, ela voltou aqui

    várias vezes. Eu queria me dirigir então à historiadora Elisabeth para o tema da mulher

    novamente, mas um tema também que está na obra de Lacan, nas suas reflexões,

    que é a crítica à família burguesa ou isso que se poderia chamar “declínio da família

    ocidental”. Acho que para além de prozacs, para além de outras coisas, há uma

    questão mais estrutural. E aí voltamos ao exemplo - e não por acaso - de uma mulher,

    Théroigne de Méricourt, que no processo revolucionário, vive a libertação, participa da

    libertação e depois é colocada num hospício no transcorrer do processo. O que se

    passou talvez tenha alguma lição para o nosso presente. Eu gostaria de ouvir, porque

    é um belíssimo livro seu, uma biografia. 

    Elisabeth Roudinesco: O que me interessou no trabalho de Méricourt - uma pioneira

    da Revolução Francesa que mergulhou na melancolia depois, na época do terror -

    que me interessava era mostrar que a melancolia chegava quando o ideal

    revolucionário desmoronava.. Através dela, eu pensava no filósofo  Althusser , outro

    grande melancólico, e até o paradigma da melancolia pós-revolucionária. Ou seja,

    quando já não há ideal, pode haver esse mergulho na loucura, como os grandes

    místicos. Foi isso que me interessou, assim como a ela, em relação ao feminismo.

    Sobre o declínio da família, há um duplo movimento. O que declina é a família

    patriarcal, mas essa é a família que se tornará um modelo cada vez mais normativo.

    Todo mundo quer se casar, notadamente até os homossexuais. Isso mostra que ela é

    um modelo absolutamente universal, como bem dizia [Claude] Levy Strauss [(1908-),

    antropólogo, professor e filósofo belga, é considerado o fundador da antropologia

    estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    26/27

    século XX], não sob a forma do casamento clássico, mas sob formas diversas. Em

    todo caso, acho que a família continuará sendo o núcleo da sociedade. Isso é certo. É

    mais o lugar do pai, é a família patriarcal que vai mudar. E como vai ser? Essa é a

    interrogação, mas inevitável. 

    Paulo Markun: Professora, nosso tempo está acabando efetivamente, mas eu queria

    uma última observação da senhora, se possível sintética, sobre a questão que durante

    muito tempo foi a maior preocupação das pessoas que, de alguma forma, não sabiam

    bem o que tinham dentro da cabeça, a não ser aquela coisa que faz a gente pensar,

    que é a loucura. Nós vivemos em uma época em que a loucura hoje já não está mais -

    se é que algum dia esteve - circunscrita aos hospícios. No dia em que estamos

    gravando este programa, o mundo inteiro ainda está impactado por um episódio que

    aconteceu nos Estados Unidos, onde 25 jovens foram mortos em um episódio que

    nossos avós diriam que era um sintoma de loucura. E a gente hoje tenta explicar isso

    como um resultado da violência da sociedade, como jovens que são marginalizados,

    porque não eram bons alunos ou não eram bons esportistas, etc. Então a pergunta

    que eu faço para a senhora, que é uma otimista, é se a senhora imagina que um dia

    essa loucura tende a acabar?

    Elisabeth Roudinesco: Não. A condição humana não termina nunca. Isso é um

    sonho. A loucura existe desde a noite dos tempos, como a sexualidade, o suicídio ou amorte. Ela faz parte da condição humana. O que muda é a representação que

    fazemos dela. Na Idade Média, o louco não tinha o mesmo lugar que tem hoje. O

    grande movimento se deu quando se considerou, a partir do século 18, que a loucura

    era uma doença mental. Essa é a mudança. Antes, falava-se em possessão do

    demônio, que era a expressão entre os antigos, de uma fúria interna ligada ao

    organismo, etc. Hoje, tudo é considerado do ponto de vista da doença. É a nossa

    época. Pensava-se que seria vencida, pois poderíamos curá-la, como se cura uma

    doença. Mas não. E a prova é que se pensava isso também do suicídio, que os

    remédios venceriam o suicídio. Mas não se pode vencer os grandes dados da

    condição humana. Ela tomará formas diferentes. A humanidade não pode curar-se do

    que ela é. Já imaginaram uma sociedade que eliminasse a morte, o suicídio, a loucura,

    o que mais? Curaríamos a neurose. Mas seríamos o quê, então? O que seria o

    homem livre de suas paixões? Seria um cemitério!  

    Paulo Markun: Muito obrigado por sua entrevista. Obrigado aos nossos

    entrevistadores, a você que está em casa.

  • 8/20/2019 Elizabeth Roudinesco Entrevista

    27/27