elcio rubens mota felix
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Elcio Rubens Mota Felix
A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA
DEI VERBUM DO CONCÍLIO VATICANO II
MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA
SÃO PAULO
2013
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A Relação Palavra-Espírito Santo na Const itu ição Dogmática
Dei Verbum do Concílio Vaticano II
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, comopré-requisito para obtenção do grau de
Mestrado em Teologia Sistemática.
Orientador: Pe. Dr. Kuniharu Iwashita.
SÃO PAULO
2013
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Aos que, de alguma forma, muito ou pouco, fizeram parte deste processo dereflexão e pesquisa. E cada pessoa, a seu modo, esteve presente.
Aos meus queridos, que, pelo dom da vida e pelo exemplo, ensinaram-me a
escutar.
Ao meu orientador, o padre Pedro Iwashita, por suas orientações precisas e
pela paciência.
Aos professores, que, cada um em sua área, com competência, ajudaram-mea elaborar meu trabalho:
a Antônio Manzatto, que, na História dos Dogmas, ajudou-me a olhar alguns
fundamentos da fé dentro de um contexto bem maior, que é o do desenvolvimento
ou evolução da fé cristã;
a Boris Agustin Nef Ulloa, que, com base na Sagrada Escritura, abriu-me
caminhos para o aprofundamento sobre a tradição;
a Maria Freire da Silva, que me despertou com clareza para a importância das
técnicas da escrita no trabalho de dissertação;
a Matthias Grenzer, que me ajudou a compreender a importância das
tradições do Êxodo para a formação das fontes da vida de fé do povo de Israel e
também a nossa, enquanto cristãos;
ao professor Ney de Souza, que me fez aprimorar a leitura e a compreensãosobre o documento da Constituição Dei Verbum, quando do seminário sobre os 50
anos do Concílio Vaticano II.
ao padre Valeriano dos Santos Costa, meus agradecimentos por inspirar-me
e, ao mesmo tempo, instigar os estudos numa futura pesquisa sobre a o Espírito
Santo na Liturgia.
Também não posso me esquecer de agradecer aos meus colegas deMestrado e ao Congresso Continental de Teologia, que notificou incisivamente a
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necessidade de a teologia partir sempre da realidade, e, para isso, a escuta torna-se
primordial.
À Faculdade Vicentina, na qual desenvolvi os estudos de pós-graduação emespiritualidade, com base nos quais me foi suscitado o propósito de um mestrado.
Aos amigos e irmãos de Congregação, que muito me estimularam nesta
pesquisa, e aos meus superiores, que, com os devidos apoios, serviram de alento
nos momentos de atribulação.
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RESUMO
O presente trabalho pretende verificar a relação entre a Palavra e o Espírito naConstituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Para isso, vamos, numprimeiro momento, nos deter na análise dessa Constituição situando-a no contextodo Vaticano II. É ali que a Dei Verbum é elaborada. Em seguida e com base naanálise do texto da Dei Verbum, focaremos nossa pesquisa estritamente nasreferências ao Espírito ali feitas. Neste sentido, nossa investigação, de cunho
predominantemente bibliográfico, procura mostrar que, embora sejam pouconumerosas as referências ao Espírito naquele documento, em sua leitura é possívelcaracterizar ou identificar as formas de relação entre a Palavra e o Espírito. E aindamais se nessa leitura for levado em conta, como é nosso propósito, que a DeiVerbum é essencialmente um documento voltado para expor uma doutrina sobre arevelação da Palavra de Deus. Verificamos também que essa doutrina tem entreseus pressupostos que a relação entre a Palavra e o Espírito provocará a escuta doser humano à Palavra, levando-o a dar, por sua vez, uma resposta, que é a detambém buscar escutá-la. Da genuína escuta da Palavra de Deus que se revela noEspírito, à qual o homem se dispõe, podem depender todas as outras formas derelação em que o ser humano se envolve: a relação consigo mesmo, a relação como(s) outro(s), a relação com o mundo, com a sociedade e até a relação com ascoisas. Da autêntica capacidade do homem de escutar a Palavra de Deus podedepender um novo modo de ser e de viver do homem neste mundo. Algo que opróprio Concílio já aventava, ou melhor, estava pressuposto em suas deliberações.O espírito conciliar propunha essencialmente a atualização da relação com asociedade, com o mundo, com a ciência. E certamente é a escuta que daria oscontornos dessa relação.
Palavras-chave: Dei Verbum, Palavra, Espírito, escuta, homem, mundo.
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ABSTRACT
This assignment aims to verify the relation between the Word and the Spirit in the DeiVerbum Dogmatic Constitution, of Vatican Council II. Therefore, we are going toanalyze, at first, this Constitution, placing it in the Vatican Council II. It is in it that theDei Verbum is elaborated. After, we are going to focus our research based on theanalysis of the text from the Dei Verbum; we are going to strictly focus our researchin the references that are done in it about the Spirit. In this way, our investigation,
which is predominantly bibliographical, tries to show that, although there are fewreferences about the Spirit in that document, when you read it, it is possible tocharacterize or identify the ways of relation between the Word and the Spirit. Andeven more if this reading is taken into account, as it is our purpose, that the DeiVerbum is essentially a document aimed to present a doctrine about God’s Wordrevelation. We also verify that this doctrine has among its presumptions that therelation between the Word and the Spirit will cause the human’s listening to theWord, conducting him to give an answer, which is also to look for listening it. Fromthe genuine listening of God’s Word which is revealed into the Spirit, and the man
offers to do, they may depend on all the other ways of revelation in which the humanbeing involves himself: the relation with himself, the relation with the others, therelation with the world, with the society and even the relation with the things. Fromthe authentic man’s ability of listening God’s Word can depend on a new way ofman’s being and living in this world. Something that the Council has already said,namely it was presupposed in its deliberations. The Council spirit essentiallyproposed the society’s updating relation, with the world and the science. Anddefinitely it is the listening that could give the outlines of this relation.
Key words: Dei Verbum, Word, Spirit, listening, man, and world.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................11
1º CAPÍTULO: A DEI VERBUM........................................................................18
1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM................................................20
1.1. O Concílio Vaticano II.................................................................................20
1.1.1. Os movimentos que influenciaram o Vaticano II......................................21
1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio........23
1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura....................................................25
1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar......................................26
2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM.............................................27
2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum...............................................28
3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM.........................................32
4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM...........................................39
4.1. O tema fundamental da Dei Verbum: a revelação.......................................44
4.1.1. Revelação ............................................................................................. 44
2º CAPÍTULO: A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA DEI VERBUM...........56
1. ESCLARECIMENTOS...................................................................................57
2. A PALAVRA...................................................................................................60
2.1. A Palavra de Deus e o Espírito Santo........................................................64
2.1.1. A Palavra de Deus...................................................................................64
2.1.2. O Espírito Santo.......................................................................................73
3. A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO COM BASE NO TEXTODA DEI
VERBUM............................................................................................................78
3.1. Relação Palavra-Espírito numa perspectiva bíblica....................................79
3.2. Alguns aspectos históricos da relação Palavra-Espírito..............................81
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3.3. A relação Palavra-Espírito com base nas referências ao Espírito Santo no texto
da Dei Verbum............................................................................................................84
A) 1ª Linha de reflexão: Cristo no Espírito, tem-se acesso ao Pai (DV, 2)................84B) 2ª Linha de reflexão: O Espírito e a inspiração: o hagiógrafo e as Escrituras (DV,
7, 9, 11, 20)................................................................................................................85
C) 3ª Linha de reflexão: O Cristo ressuscitado envia o Espírito de verdade (DV, 4, 6,
11, 17,19)...................................................................................................................88
D) 4ª Linha de reflexão: O Espírito assiste a Tradição dada por Cristo (DV, 8, 9, 10,
20, 23)........................................................................................................................90
3º CAPÍTULO: A ESCUTA COMO RESPOSTA À PALAVRA QUE SE
REVELA.....................................................................................................................94
1. OUVIR E ESCUTAR: UMA SUTIL DIFERENÇA....................................................95
2. A ESCUTA E A PALAVRA DE DEUS....................................................................97
3. A ESCUTA NO HORIZONTE DA DEI VERBUM..................................................103
3.1. Ouvindo religiosamente a Palavra de Deus......................................................106
3.2. O contexto conciliar...........................................................................................107
A) A Assembleia Conciliar........................................................................................107
B) O contexto da Assembleia Conciliar....................................................................108
4. BASE BÍBLICA DO “OUVINDO RELIGIOSAMENTE A PALAVRA DE
DEUS”......................................................................................................................108
5. JESUS COMO NOVO MOISÉS E MODELO DE ESCUTA..................................112
6. A ESCUTA COMO RESPOSTA...........................................................................117
CONCLUSÃO..........................................................................................................127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................130
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SIGLAS
AG Ad Gentes. Constituição Pastoral sobre a missão da Igreja no
mundo
Bíblia do Peregrino
CIC Catecismo da Igreja Católica
ComDV L. Alonso Schökel (ed.). Comentários à Constituição Dei Verbum
Dap. Documento de Aparecida
DB Dicionário bíblico, 9ª ed. São Paulo: Paulus, 2005
DCT Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004
DEB Dicionário enciclopédico da Bíblia. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004
Denz. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral
DF Constituição Dogmática Dei Filius sobre a fé católica. Vaticano I
Documento do Vaticano II
DTF Dicionário de teologia fundamental. Petrópolis (RJ):
Vozes/Santuário, 1994, 1094 p.
DM Dicionário de mariologia. São Paulo: Paulus, 1986
DV Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a revelação divina
EDAS Encíclica Divino Afflante Spiritu
EPD Encíclica Providentissimus Deus
ESP Encíclica Spiritus Paraclitus
NDT Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009
OT Optatam Totius. Declaração sobre a formação presbiteral
RDV PIAZZA, W. A revelação cristã: na Constituição Dogmática DeiVerbum
TEB Bíblia Tradução Ecumênica TEB. São Paulo: Loyola, 1996
VD Verbum Domini
VTB Vocabulário de teologia bíblica. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005
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INTRODUÇÃO
Desde o Concílio Vaticano II (1965), tem-se observado a busca de elaboração
sistemática (pneumatologia) da ação do Espírito Santo na Igreja, no mundo e na
vida do ser humano. Ao mesmo tempo, no próprio Concílio, ouviram-se “vozes:
observadores ortodoxos, protestantes anglicanos que afirmaram que o Concílio
esqueceu-se do Espírito, devido à precariedade de referência ao Espírito Santo nos
textos dos documentos conciliares”.1
Diante da precariedade de referências ao Espírito Santo nos documentos do
Concílio, o tema da relação entre Palavra e Espírito reveste-se de certa dificuldade,
especialmente quando procuramos identificar uma pneumatologia elaborada na Dei
Verbum, por causa da revelação de Deus. Evidentemente com este cenário,
indagamos: que implicações surgem dessa relação entre Palavra e Espírito na Dei
Verbum? Ou que consequências a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à
Igreja e aos homens e mulheres de nosso tempo? Essas indagações são pertinentes
e se põem como desafiadoras ao nosso trabalho. Ousamos dizer que vamos buscar
abordá-las.
Nos dezesseis documentos elaborados pelo Concílio Vaticano II, ocorre 260
vezes a referência ao Espírito Santo. Na Dei Verbum, porém, somente 25 vezes é
citado o Espírito Santo. É preciso admitir que há pouca referência ao Espírito na Dei
Verbum, se a comparamos aos demais documentos conciliares, como, por exemplo,
a Lumem Gentium (Constituição sobre a Igreja). Este documento é aquele do qualmais constam referências ao Espírito Santo. Esta escassa menção ao Espírito,
1 CODINA, Vitor. Creio no Espírito Santo: pneumatologia narrativa. São Paulo: Paulinas, p. 55. Aobservação e a crítica mais contundentes quanto ao esquecimento do Espírito no Vaticano II, masformuladas de modo mais amplo, deram-se de forma mais incisiva pelas considerações do teólogoortodoxo Paul Evdokimov, que diz: “a ausência da economia do Espírito Santo na teologia dos últimosséculos como também seu cristomonismo determinaram que a liberdade profética, a divinização dahumanidade, a dignidade adulta e régia do laicato e o nascimento da nova criatura fiquemsubstituídos pela instituição hierárquica da Igreja posta em termos de obediência e submissão” ( OEspírito Santo na tradição ortodoxa. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 32). Há outras obras que
abordam a mesma questão da “precariedade da referência ao Espírito” do Vaticano II: CONGAR,Yves. Creio no Espírito Santo. Vol. 1: Revelação e experiência do Espírito. São Paulo: Paulinas,2005, p. 217; SILANES, Nereo. O dom de Deus: a Trindade em nossa vida. São Paulo: Paulinas,2006, p. 205-7.
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entretanto, nem por isso significa desprezo ou pouco-caso à terceira Pessoa
Trinitária. Tanto isso é verdade, que, terminado o Concílio, anos mais tarde
(6/6/1973), o papa Paulo VI, numa audiência geral, reconhece: “à Cristologia e
especialmente à eclesiologia do Concílio deve suceder um estudo novo e um culto
novo sobre o Espírito Santo, precisamente como um complemento que não deve
faltar ao ensino do Concílio”.2
Este trabalho de alguma forma apoia-se nesse pensamento do papa Paulo VI,
como a motivação e o propósito de pesquisa. E, dessa mesma afirmação no
Sagrado Concílio até hoje, passou-se quase meio século, tendo já ocorrido nos
tempos atuais enormes transformações no mundo e na Igreja. Aliás, o próprio
Concílio foi e ainda é instrumento de transformação. É o Concílio que nos
recomenda uma sistematização mais elaborada, um estudo mais apurado sobre o
Espírito Santo, ou seja, uma pneumatologia. Por isso, são indispensáveis o estudo e
a compreensão da interação entre Palavra e Espírito. Se o Concílio já apontava para
a renovação da Igreja, são imprescindíveis o estudo e o conhecimento da relação
entre Palavra e Espírito. Porque é o Espírito que dinamiza a Palavra. Também, a
Igreja não vive sem a Palavra, e a Palavra não age sem o Espírito. Portanto, o
estudo da relação entre Palavra e Espírito será relevante para a compreensão deste
trabalho. Compreender essa relação, e seu reflexo para nós e para nossa vida, é
determinante. Com efeito, serão consideradas as implicações da relação Palavra-
Espírito em nosso contexto de fé, ou em nossa vida cristã.
Em outras palavras, o que pretendemos3 é verificar a relação Palavra-Espírito
na Constituição Dogmática Dei Verbum, porque este é o documento que trata sobre
a revelação, em busca da elaboração de uma doutrina da revelação divina ou darevelação da Palavra de Deus.4
2 Audiência geral de Paulo VI de 6 de junho de 1973. Insegnamenti di Paolo VI, v. XI, 1973, p. 477(citado em JOÃO PAULO II. Encíclica “Dominum et Vivificantem” sobre o Espírito Santo na vida daIgreja e do mundo. São Paulo: Loyola, 1986, p. 274).3 Quando digo “pretendemos”, quero significar “quanto ao objetivo deste trabalho”.4 É necessário dizer com clareza que entendemos como Palavra de Deus o que a Igreja entende, istoé, ela a vê de forma ampla, tendo um sentido mais abrangente que aquele restrito somente à
Sagrada Escritura. Aqui também a Palavra de Deus não se restringe à Sagrada Escritura, eigualmente a Tradição deve ser considerada como Palavra de Deus. Encontramos na Dei Verbum: a sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus,confiado à Igreja (DV, 10).
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No primeiro capítulo, vamos analisar a Constituição Dei Verbum, situando-a
em seu contexto eclesial e histórico. Abordar o seu contexto é verificar o lugar, as
forças e os envolvidos em sua redação e o itinerário em que é elaborada. É neste
contexto que será produzido o documento que trate de uma “doutrina” sobre a
revelação divina e é só por ela que pensaremos a relação Palavra-Espírito. Para
tanto, será conveniente pinçar para análise, por exemplo, as grandes influências
sobre a redação da Dei Verbum, que não se podem esquecer. Houve várias delas
sobre essa Constituição,5 como o espírito conciliar, alguns documentos do
Magistério da Igreja, a caminhada da Igreja que se fazia até então e,
particularmente, o “clima” de assembleia conciliar,6 em que todos estavam
envolvidos.
Sendo feita essa análise do documento em seu contexto histórico e eclesial,
entraremos no coração de nosso trabalho. Trataremos no segundo capítulo da
relação entre Palavra e Espírito. Era preciso vasculhar o texto da Dei Verbum para
assim nos lançarmos num empreendimento posterior. Com isso, recorreremos às 25
referências ao Espírito Santo no texto do documento da Dei Verbum. E é somente
com base nestas 25 referências que será possível desenvolvermos o respectivo
estudo sobre a relação entre a Palavra e o Espírito. Não é sem sentido a intenção
dos padres conciliares em dispor no texto a sutil harmonia entre Palavra e Espírito,
como a lemos na Dei Verbum, e que podemos ver em algumas partes do texto,
como, por exemplo, “A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita
por inspiração do Espírito Santo” (DV, 9).
E ainda mais numa outra parte do texto, em que encontramos a afirmação de
que a Sagrada Tradição só progride se assistida pelo Espírito. Está assim elaboradano texto da Constituição: “Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a
assistência do Espírito Santo” (DV, 8).
5 As pesquisas apontam para o fato de que a Dei Verbum não foi elaborada, por assim dizer, daestaca zero, nem foi redigida em papel absolutamente em branco. Há algumas influências sobre estedocumento, que, a nosso ver, são o espírito conciliar, os movimentos e alguns documentos da Igreja.Noutra linha, consideraremos dois grandes contextos em que este documento surge: seus contextos
eclesial e histórico.6 Quanto às figuras significativas no processo redacional da Dei Verbum, indico ao menos quatro: opapa João XXIII, Alfredo Ottaviani, Agostinho Bea e o bispo de Bruges, Emilio De Smedt. Sobre esteúltimo, cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II, v. 1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1963.
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E as demais citações estão em perfeita harmonia entre si. Como são 25 as
referências ao Espírito Santo, abordaremos todas elas buscando fazer uma reflexão
teológica e tendo como base a Tradição da Igreja.
É com apoio nisso que será desenvolvido o estudo desse capítulo.
Procurando elaborar o significado e a contribuição teológica dessa Constituição para
a Igreja e para nossa fé. Portanto, não são sem sentido as referências ao Espírito
Santo ao longo do documento, porque o Espírito está sempre em estreita ligação
com a Palavra, e a Palavra sempre age no Espírito.
Ora, por que há essas constantes referências ao Espírito Santo num texto de
Constituição dedicada à revelação divina, a Palavra de Deus? Cogitamos que aIgreja quis deixar bem clara a insofismável interação entre o Espírito Santo e a
Palavra que se revela. É tendo em mente essa observação que pesquisaremos o
conjunto das 25 referências no contexto dessa Constituição Dogmática.
Com o estudo do documento da Dei Verbum e a reflexão teológica da relação
entre Palavra e Espírito, focaremos nosso propósito nos desdobramentos ou nas
consequências desta relação. Num outro aspecto, queremos apresentar algo bem
concreto, que possa contribuir para nossa vida cristã. Propondo um caminho que
seja o ponto de chegada em que deságua a relação entre a Palavra e o Espírito. No
último e terceiro capítulo trataremos da ressonância da interação entre Palavra e
Espírito na vida e na fé cristã. Ousamos propor a escuta como este momento
privilegiado e insubstituível, de onde ressoa ou reflete a relação entre a Palavra e o
Espírito. A escuta é uma resposta do “homem à revelação da Palavra”.7 Por isso, é
na escuta que se faz ecoar misteriosamente a revelação da Palavra, porque é o
Espírito quem a dinamiza. Mais ainda: porque é a uma Pessoa que escutamos,
Jesus Cristo! A Palavra de Deus “deve, antes de tudo, ser ouvida”8 (numa escuta). A
escuta de um interlocutor, tal como na ordem shemá, Israel (Dt 6,4).
O tema da escuta permitirá abrir horizontes para um novo modus operandi,9
porque possibilita a relação com a Palavra, que, por sua vez, é dinamizada pelo
Espírito. A escuta acaba por tornar-se o grande sinal do que já nos indicava o
7 MANNUCCI, Valério. Bíblia palavra de Deus. São Paulo: Paulus, 2008, p. 37.8 Id., ibid.9 No latim seu significado remete a um modo de operar, um modo de agir. É o modo ou o jeito peloqual cada um age em sua vida, em seu dia a dia.
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Concílio Vaticano II: aquela abertura do diálogo. Sem a escuta, não se pode chegar
ao diálogo.
Adquirimos certa convicção de que o encontro com as pessoas, a inserção nasociedade, em nosso mundo, e quiçá a relação conosco mesmos, depende
fundamentalmente e, sobretudo, de nossa capacidade de escutar. Sem a escuta, é
impossível o diálogo tal qual nos propunha o Concílio. Consequentemente, a escuta
pode materializar as implicações que a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à
nossa vida de fé ou à nossa vida cristã. Dessa atitude de escuta, pode sobrevir uma
nova forma de posicionar-se na vida. Disso podem depender novas relações, se a
escuta é, sobretudo, uma relação com a revelação divina, sua Palavra e seu
Espírito. É verdade também que a escuta pode instaurar uma nova maneira de
relacionamento com os seres humanos que somos nós. Pode transformar nossa
maneira de nos relacionarmos conosco mesmos,10 com os outros e até nossa
relação com as “coisas”.11
Definidas essas “pretensões”,12 não esquecemos que tudo isso é um grande
desafio. E não devemos perder de vista os grandes desafios existentes no mundo
em que vivemos. Numa sociedade como a nossa, constatamos, especialmente nasáreas urbanas, a “cultura do barulho”.13 Numa cultura como a nossa deparamos com
sons ensurdecedores, que nos agridem continuamente. Nas ruas, o ronco de
motores de veículos e buzinas; em casa, a televisão, o rádio; e em toda parte
palavrões dos mais variados. Mesmo em nossas comunidades cristãs, observava
Adélia Prado: “não faltam caixas de som cada vez mais potentes de sons
10 Enfatizo essas palavras para referir-me especialmente à maneira pela qual nós nos escutamos.
Quando digo que a escuta pode mudar nossa maneira de escutar a nós mesmos, quero apontar parauma perspectiva nova de as pessoas relacionarem-se consigo mesmas.11 A escuta também pode ajudar na formação de um novo modo de relacionar-se com as coisas.Quero dizer, especialmente, com a matéria, com o universo dos objetos. Não é grande apreocupação do mundo atual com o consumismo? Preocupação que nos leva a ser dominados ounos deixarmos dominar pelas coisas, pelo apego às coisas?12 Tais pretensões são exatamente os objetivos específicos deste trabalho.13 ALVES, Ephraim Ferreira. A arte de meditar: princípios fundamentais e sugestões práticas. GrandeSinal, fasc. 3, n. 01-03, mai.-jun. 2001, Petrópolis (RJ), p. 293-295. Conferir também reportagem narevista do jornal Folha de S.Paulo, relatando alguns estudos sobre a medição dos decibéis na cidadede São Paulo: vivemos com níveis de ruído muito acima do recomendado. Com o excesso debarulho, os médicos alertam para os danos à saúde, e o mercado de janelas antirruído comemora – aprocura, dizem, nunca foi tal alta! (RIBEIRO, Bruno. Silêncio, por favor. Revista de Domingo. Folha de
S.Paulo, 28/08/2011, p. 38-44). Conferir também recente exortação do papa Bento XVI aos jovens naJornada Mundial da Juventude (JMJ) em Madri. O papa estimula a juventude a escutarverdadeiramente as palavras do Senhor (Semanário da Arquidiocese de São Paulo, ano 56, n. 2864,23 a 29 de agosto de 2011, p. A3).
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altíssimos”.14 Não é exagero nenhum afirmar que são inúmeras as pessoas
queixosas de não terem sido capazes de escutar e serem escutadas. A
impossibilidade de escutar e ser escutado(a) leva a uma das maiores angústias que
nos assolam na realidade em que vivemos. Ao mesmo tempo em que não
praticamos a escuta, também não a vemos ser praticada.
Numa realidade pastoral, é possível notar essa dificuldade de escutar. Mesmo
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por suas “orientações
pastorais”,15 reconhece, pela experiência pastoral, a dimensão do problema
existente. Problema particularmente presente na vida dos jovens: “O desafio para o
jovem – assim como para todos os que aceitam Jesus como caminho, verdade e
vida – é escutar a voz de Cristo em meio a tantas outras vozes”.16 O problema está
entre nós e os desafios presentes.
É nesse contexto que vivemos a nossa fé em Cristo. É nessa realidade que
vivemos nossa vida. E, em se tratando de vivência da fé, por estes tempos, temos
deparado com um grande número de pessoas que não escutam mais a Palavra de
Deus, a Sagrada Escritura especialmente – isso sem falar da escuta do Espírito. Os
“sinais dos tempos”, evocados por João XXIII no Concílio Vaticano II, tornaram-sesimplesmente um mistério, porque desaprendemos a escutar.
Diante dessa cultura do barulho, torna-se difícil escutar a Palavra de Deus, e
mais ainda seu Espírito – na hipótese de que seja possível escutar a Palavra sem o
Espírito, pois é o Espírito que dinamiza a Palavra de Deus na vida e no coração do
fiel. Por conta disso, não tomamos consciência de que o encontro com a Palavra de
Deus tornou-se precário, diminuído, substituível. O encontro com a Palavra de Deus
é continuamente substituído pelo contato com outros objetos ou realidades que
comovem ou atraem mais incisivamente homens e mulheres do nosso tempo, como,
por exemplo, a TV, a Internet e os celulares de alta tecnologia. Estes últimos são a
febre do momento, e até as crianças os utilizam. O uso desses recursos eletrônicos
14 PRADO, Adélia. Missa é como poema, não suporta enfeite nenhum. Vida Pastoral, n. 267, jul.-ago.2009, São Paulo, p. 3-4.15 São também chamadas de Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE).Essa problemática, que é de cunho social, reflete-se no âmbito pastoral da Igreja. Há tempos já vem
sendo detectada nos últimos documentos pastorais da Igreja (Evangelização da juventude, n. 60,2007, p. 32 [Publicações da CNBB, n. 3]). Está presente também no documento mais atual, fruto da Assembleia da CNBB deste ano (DGAE, n. 94, 2011-2015, p. 53).16 Evangelização..., op. cit., p. 32.
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provoca experiências mais imediatas de prazer e satisfação, não compromete, não
nos exige, basta consumir. Diferente é o encontro com a Palavra de Deus.
Ora, o que pode ser mais fundamental para nossa fé, se não o que estásendo deixado de lado, isto é, o encontro com a Palavra de Deus e seu Espírito?
Logo, a escuta17 da Palavra de Deus no dinamismo do Espírito torna-se questão
central. Saber identificar a ação da Palavra de Deus em nossa vida, ou o que a
Palavra de Deus quer dizer no concreto de nossa existência, mostra-se como uma
obrigação. No que a Palavra de Deus pode nos orientar? O que ela significa para
nossa vida? Ou, com base em suas indicações, que referência dela podemos obter
para nossa opção de vida ou nossas decisões, e também nossos princípios e
valores? Tudo isso se torna fundamental para nós quando nos damos conta de que
a Palavra de Deus não age sem o Espírito, nunca está dissociada do pneuma (VD,
n. 16, p. 36).18 O Espírito sempre acompanha, dinamiza e dá vigor, revitalizando a
Palavra. Além disso, não é demais lembrarmos o profeta Isaías, que nos fala sobre a
Palavra de Deus: “Buscai o Senhor enquanto se deixa encontrar, invocai-o enquanto
está perto” (Is 55,6).
A Palavra de Deus19
está presente em nós e entre nós. Nunca se negou aagir na vida da Igreja e na vida do cristão. A Palavra de Deus e seu dinamismo
provocado pelo Espírito em nós, em nosso coração e na vida de homens e mulheres
que vivem neste mundo,20 tornam-se uma necessidade absoluta. Deveríamos por
ora (re)despertar para essa dimensão. Depurar-nos do que nos impede de valorizar
essa dimensão da escuta da Palavra de Deus e do dinamismo do Espírito.
17 Lembrar que ao povo de Israel pediu que o escutasse (Dt 6,4). Sobre este tema da escutaespecificamente (LORENZIN, Tiziano. “Ouve, Israel” A escuta na Bíblia. Grande Sinal, v. 61, n. 64, jul.-ago. 2007, Petrópolis, RJ, p. 512-520; PEYRON, Francisco. Rezar é escutar. Grande Sinal, v. 63,n. 5, set.-out. 2009, p. 471-477).18 Diz a mesma exortação apostólica sobre a Palavra de Deus que “não podemos chegar acompreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a inspirou”.19 É preciso deixar claro que, quando dizemos “Palavra de Deus”, a entendemos tal qual a Igreja: deforma ampla, não restrita exclusivamente à Sagrada Escritura.20 Existe a afirmação de que só haverá “um modo dignamente humano de falar sobre Deus, se se
consistir em primeiro lugar e sobretudo se tentarmos escutá-lo” (FAUS, José I. González; VIVES,Josep. Crer, só se pode em Deus. Em Deus só se pode crer. Ensaio sobre as imagens de Deus nomundo de hoje. São Paulo: Loyola, 1988, p. 16).
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1º CAPÍTULO: A DEI VERBUM
A Dei Verbum seguiu os mesmos passos das sessões do Concílio Vaticano
II.21 Começou quando se abria o Concílio, em sua primeira sessão, e quase quando
se encerrava a última sessão do mesmo Concílio, poucos dias antes, esta
Constituição era enfim aprovada e promulgada. A Dei Verbum22 foi um dos mais
importantes documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), assim consideram
importantes estudiosos
23
do tema. Alguns padres do Concílio expressam comclareza os avanços da Dei Verbum. Levando em consideração as tensões no
processo redacional,24 vários padres do Concílio tiveram a firme atitude de expor seu
ponto de vista. O exegeta e cardeal Florit assim se manifestava sobre o projeto da
Dei Verbum:
“é uma das mais breves entre as promulgadas pelo Concílio, mas ao
mesmo tempo uma das mais ricas em doutrina e ainda a coloca no coraçãodo mistério da Igreja e no centro do ecumenismo”.25
Outro exegeta, o S. E. Mons. Weber, arcebispo de Estrasburgo, diz “que a Dei
Verbum foi o prefácio da Constituição Lumem Gentium e, ao mesmo tempo, é
prefácio de todos os documentos conciliares”.26
21 Cf. JIMÉNEZ, G. Humberto. Dei Verbum. Historia de su redacción. Cuestiones Teológicas yFilosóficas, v. 32, n. 78, 2005, Medellín (Col), p. 209-224. Esse autor fez seus estudos em Teologia
antes do Vaticano II. Trata-se de um biblista. Foi também aluno de Sebastian Tromp, que mais tardeacabaria sendo o secretário da comissão teológica no Concílio Vaticano II. Ver também o excelenteartigo sobre a Dei Verbum, escrito de forma sintética e concisa, em DTF, p. 194-198.22 Fala-se também da celebração dos 40 anos da Dei Verbum (cf. LLAGUNO, Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada? Proyección, v. 52, n. 219, ed. 219, out.-dez.2005, Granada, Esp, p. 349-370).23 Alguns estudiosos referem-se à Dei Verbum como um documento de “grande relevância” emrelação aos demais documentos do Concílio Vaticano II: Piazza, por exemplo, considera que a DeiVerbum ocupa no Concílio uma posição-chave (RDV, p. 15). Gregorio Ruiz destaca esse documentopor sua importância, vital à revelação. O documento merece louvor porque o tema da revelação é quecria, constitui e mantém a Igreja (ComDV, p. 4); para Latourelle, a Dei Verbum é um documento quepode ser visto como o primeiro entre os grandes documentos do Vaticano II (cf. LATOURELLE, René.Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 369).24 Em DTF (p. 190) há uma observação interessante sobre a redação dessa Constituição, referidacomo uma “odisseia”. Aí também se afirma que “não é arriscado dizer que a Constituição DogmáticaDei Verbum seja o documento mais qualificado do Concílio Vaticano II”.25 LYONNET, Stanislas. A Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum. São Paulo: Paulinas, 1971, p. 9.
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Ao longo da elaboração da Dei Verbum, ocorreram embates memoráveis.
Não há dúvida de que essas tensões foram fruto das mentalidades divergentes27
presentes no Concílio. Os conflitos que emergiram durante o Concílio já estavam
presentes antes mesmo do início. Até a promulgação da Dei Verbum (18/11/1965),
três longos anos se passaram. Em relação aos demais documentos do Concílio, a
Dei Verbum foi o que mais tempo tomou para sua aprovação final.
Antes de analisar a Dei Verbum, é conveniente tomarmos conhecimento de
seu contexto, do lugar em que foi redigida. Contextualizá-la será importante, pois
sua elaboração não se deu no vazio, nem sem nexo com outras realidades
circundantes. A Dei Verbum foi um documento elaborado a várias mãos,28 e está
situada em dois contextos: o eclesial e o histórico. A Dei Verbum insere-se
primariamente nesse grande contexto de Igreja, um marco eclesial, que é, sem
dúvida, o Concílio Ecumênico Vaticano II. Deste evento, projeta-se todo seu
itinerário de redação, e seus debates. Era previsível que, em sua elaboração,
estivessem presentes as diferentes visões de Igreja e de mundo. De outro lado, com
uma proposta contrária à dos padres da Cúria, estavam, em maior número, os
padres que esperavam grandes mudanças na Igreja. Esperavam sinceramente as
mudanças necessárias, pelas quais já se gritava havia décadas. E várias delas já se
encontravam em vias de concretização no nível dos movimentos.
26 LYONNET, S. A Bíblia na Igreja..., op. cit., p. 10.27 Eram alguns grupos de padres conciliares que divergiam em suas posições. Com obras publicadasna Coleção Biblioteca de Autores Cristãos (BAC), havia grupos que tinham mentalidade“antiprotestante”, os quais conflitavam durante todas as sessões com outro grupo que estava mais
ligado ao movimento ecumênico (cf. ComDV, p. 129; KLOPPENBURG, B., Concílio Vaticano II, op.cit., p. 78).28 Refiro-me aos demais conciliares responsáveis pela sua elaboração: a comissão antepreparatória,a comissão preparatória, a comissão teológica, as subcomissões e, é claro, os peritos.
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1.1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM
1.1.1. O Concílio Vaticano II
Para melhor compreensão da Dei Verbum, é preciso rever 29 o Concílio
Vaticano II.30
Este Concílio, o vigésimo primeiro31
da história da Igreja, foi o evento-marco em que a Dei Verbum foi elaborada. É nessa assembleia conciliar que
teremos de situar nosso documento temático.
Muitos consideram o Vaticano II um dos maiores eventos eclesiais de todos
os tempos.32 E havia mesmo alguns que, nos bastidores, apontavam-no como um
Concílio francês. O Vaticano II não foi, entretanto, um evento “isolado” no mundo,
nem se pode entendê-lo como um acontecimento gerado somente na “segunda
metade do século XX”.33 Faz-se necessário identificar algumas forças que o
“influenciaram”,34 como, por exemplo, os movimentos bíblico-litúrgicos. Ademais, o
Concílio foi, por assim dizer, uma resposta-reflexo às mudanças em
desenvolvimento no mundo daquele tempo, e já era propósito do papa João XXIII,
ao abrir o Concílio, buscar abertura e diálogo com o mundo. Entre os padres do
29 É a proposta de Dom Demétrio Valentin, bispo de Jales (SP), em sua obra Revisitar o Concílio
Vaticano II, São Paulo, Paulinas, 2011, 61 p.30 Nos 40 anos do Concílio Vaticano II, por este tempo, foram publicados diversos artigos emcelebração a este evento. Indicamos alguns artigos que podem iluminar seu significado para a Igreja(cf. GOPEGUI, Juan A. Ruiz. Concílio Vaticano II. Quarenta anos depois. Perspectiva Teológica, anoXXXVII, n. 101, jan.-abr. 2005, Belo Horizonte, p. 11-30; CODINA, Victor. El Vaticano II, un Concilioen proceso de recepción. Selecciones de Teología, v. 177, n. 45, jan.-mar. 2006, Barcelona, Esp, p.5-18; ZULUAGA, Mario Alberto Ramírez. A los cuarenta años de la inauguración del Concilio VaticanoII. Cuestiones Teológicas, 84/02, jun. 2003, Medellín, Col, p. 29-55; DTF, p. 1040-1049).31 Sua santidade, o papa João XXIII, proferiu o discurso na abertura solene do Sagrado Concílio, em11 de outubro de 1962.32 ARIAS, Gonzalo Tejerina (coord.). Vaticano II. Acontecimiento y recepción. Estudios sobre elVaticano II a los cuarenta años de su clausura. Salamanca (Esp): Universidad Pontificia deSalamanca, 2006, p. 9.33 COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. In: TAVARES, Sinvaldo S.(org.). Memória e profecia. A Igreja no Vaticano II. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005, p. 97.34 Quando digo influências, refiro-me aos movimentos que influenciaram os conciliares, influenciandoassim o próprio Concílio.
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Concílio, havia os que faziam parte de alguns daqueles movimentos, que, por sua
vez, estavam impactados com as mudanças antes do Concílio, como a nova
teologia. Na “nova teologia em gestação, surgia uma nova geração de teólogos que
se destacariam no próprio Concílio, como Congar e Rahner”.35 E os que estudam o
Concílio reconhecem a Dei Verbum como um documento “ecumênico, de
atualização e pastoral”.36 Por isso a linguagem do Concílio é acessível, de fácil
compreensão.
1.1.1. Os movimentos que inf luenciaram o Vaticano II
O Concílio Vaticano II é reflexo de um longo período de caminhada da Igreja,
e houve vários fatores que o influenciaram. Uns mais, outros menos, como os
movimentos, por exemplo, entre os quais abordaremos aqueles que mais marcaramo processo de elaboração da Dei Verbum, os movimentos bíblico, litúrgico,
ecumênico e teológico.
O primeiro é o movimento bíblico, porque tem como eixo a Bíblia. Uma
renovação estava se desenvolvendo no interior da Igreja e em vários países.37 Este
movimento é o que lançaria mais luzes na elaboração da redação do futuro
35 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 38.36 É utilizado usualmente o termo “aggiornamento” para referir-se ao movimento de autênticarenovação ou atualização que marcou o Concílio. Não é só João Batista Libanio que enfatiza essas“características” do Concílio, mas é consenso entre todos os vários estudiosos (LIBANIO, J. B.Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005, p. 67).37 Desde o século XIX, na França, Bélgica e Alemanha já havia uma forte ação de retorno à Bíblia.Dali se fomentaram cada vez mais o uso e o estudo desta, reconhecendo que talvez a Bíblia tivessesido “esquecida” pelos católicos até então e também levando em conta a traumática experiência daera pós-tridentina, que sucedeu a reforma protestante (com sua insistência na exclusividade daBíblia) e que gerou um certo “abalo” na relação com a Bíblia. Eis alguns aspectos que fizeram partedo movimento bíblico: a) a aceitação do estudo da Bíblia com base no método histórico-crítico (1930);
b) a criação da Escola Bíblica de Jerusalém (1938); c) a publicação da Encíclica Divino AfflanteSpiritu (1943), de Pio XII, carta magna dos exegetas; d) a descoberta dos manuscritos de Qumram,que deram novo impulso aos estudos bíblicos (1947); e) começa a se pensar numa teologia bíblica etambém na espiritualidade bíblica (COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 104-105).
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documento Dei Verbum. O estudioso J. B. Libanio, entre outros que se
aprofundaram nessa temática, afirma:
“por este movimento a Igreja experimentou os anseios de renovaçãopropostos pela Modernidade. A modernidade entrou no mundo bíblico deforma que o contato com a Ciência e com novos métodos como o histórico-crítico possibilitou uma nova maneira de ‘manusear’ a Bíblia. Dessa formaocorreu um interesse pessoal do fiel na leitura e no estudo da Escritura”.38
As características desse novo impulso dos estudos bíblicos dão sentido à
influência exercida sobre a Dei Verbum. Com essa nova experiência de retomada da
centralidade da Palavra de Deus, era necessário um documento que pudesseesclarecer de forma segura e sólida alguns princípios para o uso da Bíblia, e este
veio a ser a Dei Verbum.39
O segundo movimento é o litúrgico, que estava em andamento com diversas
iniciativas em torno da liturgia e da participação ativa dos fiéis batizados, até mesmo
e especialmente os leigos.40 No mesmo espírito de renovação, ocorriam várias
ações ecumênicas. Estas, por sua vez, buscavam maior proximidade entre as
denominações religiosas. Mais tarde, às vésperas do Concílio, a Igreja Católica
acabaria aderindo a essas ações.41
Por último, mas não menos importante, o movimento teológico ou da nova
teologia. Este movimento desenvolvia-se havia décadas em torno da reflexão sobre
a volta às fontes, o retorno à patrística e o contato mais próximo com a Sagrada
38 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 25.
39 A Dei Verbum não foi só um documento iluminador no tocante à Palavra de Deus, mas sobretudo
suscitou outros estudos e documentos após sua promulgação. Um deles e muito importante é odocumento publicado pela Pontifícia Comissão Bíblica em 1993, sobre a interpretação da Bíblia. Omais recente nessa linhagem de estudos é o “Verbum Domini: exortação apostólica sobre a Palavrade Deus na vida e na missão da Igreja”, de 2008.40 Esse movimento teve sua origem nas primeiras décadas do século XX (1909), no interior de algunsmosteiros belgas. Dom Lambert, no mosteiro beneditino de Monte-César, divulgava milhares deexemplares de texto de missa de cada domingo, traduzido e comentado. Levando os católicos àdevida participação na liturgia, especialmente os leigos. Tal atitude propagou-se para além daBélgica, espalhando-se por diversos países, originando uma profunda “renovação” na liturgia (cf.COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 101-102).41 Id., ibid., p. 102-104. No tempo da Segunda Grande Guerra, nos países onde incidiu maiscruelmente o terror, católicos e protestantes acabaram tendo certa aproximação. Atividades comunsamenizariam o sofrimento de muitos soldados de um lado e de outro, tanto quanto de importantes
setores das populações. Até o Vaticano II, diversos passos já haviam sido dados na direção doecumenismo, mesmo sem a presença de parte dos padres da Igreja Católica, estes da Cúria romana,por exemplo. Já durante o Concílio, porém, tornara-se irreversível o envolvimento da Igreja com oecumenismo.
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Escritura. Este movimento retomava de forma revigorada o retorno à teologia dos
santos padres e igualmente à centralidade da Palavra de Deus (Sagrada Escritura)
na vida cristã. Grandes expoentes dessa “nova teologia” contribuíram para o
surgimento de diversas publicações42 e também se destacariam no Concílio.
1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio
Às vésperas do Concílio, o mundo alcançara enormes mudanças, que neste
trabalho não seria possível identificar. Numa esfera mundial do pós-Segunda
Guerra, a guerra fria marcava as relações entre os países,43 e o surgimento de um
“Terceiro Mundo” já se avistava, no qual, assim como na Europa, a Igreja teria que
ser repensada.44 O êxodo rural crescia, provocando o aumento das cidades e o
surgimento de grandes metrópoles como São Paulo e Cidade do México, porexemplo. A explosão, naquele período e nos anos seguintes, em larga escala da
“miséria em diversos países do Terceiro Mundo principalmente era perceptível e
fazia pouco tempo que o ser humano chegara à Lua; na esfera política ocorria o
recrudescimento da relação capitalismo-socialismo-comunismo”;45 a popularização
dos meios de comunicação crescia ano após ano desde o advento da televisão, e o
mundo iniciava seu processo de globalização. Tudo isso era mais, muito mais que
um mundo em mudança.
Numa dimensão menor, mas preocupante, a Igreja internamente passava por
tempos difíceis, antes e depois da Segunda Grande Guerra (de 1939 a 1945). Além
42 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 106-108. Especificamente no âmbito da teologiacatólica, ocorreu também uma profunda renovação. O movimento teológico configurava-se como umanova teologia, marcada pela renovação da volta às fontes patrísticas e bíblicas. Tal renovação vinhaoriginalmente da Bélgica, França e Alemanha, especialmente de jesuítas e dominicanos. Podemosdestacar alguns nomes presentes nesses inícios que mais tarde tiveram grande atuação no futuroVaticano II: J. Danielou, K. Rahner, Y. Congar, M. D. Chenu, H. de Lubac. Surgiam tambémperiódicos notáveis como o Étude e o Recherches de Science Religieuse, assim como as revistas
Angelicum, L’Année, e outras que renovaram a teologia da época.43 Id., ibid., p. 95.44 Id., ibid., p. 96.45 Id., ibid.
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das grandes mudanças no mundo, também houve profundas transformações dentro
da Igreja. Leão XIII faz a transição do século XIX para o século do Vaticano. 46 Antes
do Vaticano II, a Igreja conhece a era dos papas “Pios: Pio X (1903-1914), Pio XI
(1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Tempo de centralismo e firme defesa da fé
católica e também irredutível na abertura ao mundo moderno que já se iniciara no
século XIX”. A Igreja, mesmo diante das mudanças no mundo, encontrava-se
paralisada, estagnada. O que impera é o continuísmo, o imobilismo doutrinário e o
fortalecimento da hierarquia.47 Posturas que a Igreja, especialmente a hierarquia,
haveria de rever no novo Concílio.
Apesar do anacronismo, há sinais de renovação na Igreja, com avanços e
retrocessos. Além dos movimentos (cf. o item 1.1.1.), há a busca de respostas aos
questionamentos de um mundo em mudança: no diálogo com outras religiões, por
exemplo. Isso também expõe “indícios de insatisfação com as posições da Igreja,
especialmente da hierarquia”.48
O papa Pio XII (1939-1958) chegava ao fim de seu pontificado. Angelo
Roncali sucede-o em meio a grandes dúvidas e preocupações sobre a sucessão.
Angelo então é eleito papa em outubro de 1958. Não foram poucos os que até entãopensavam que o novo papa seria um “papa de transição, por sua idade avançada.
Na época de sua eleição, João XXIII estava com 77 anos”.49 Na escolha de seu
nome, “João, o novo papa inovava. Pois, escolhendo ser chamado de João, levava
em conta sua origem familiar”.50
46 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 98.47 Id., ibid. 48 Id., ibid., p. 100.49 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59.50 Id., ibid., p. 61.
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1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura
A expectativa de que o novo papa fosse apenas de transição foi rapidamente
desmentida. Três meses depois de sua eleição, João XXIII anuncia importantes
eventos.51 Na celebração da conversão de São Paulo, “o papa anuncia aos cardeais
presentes sua vontade que imediatamente produziu grande surpresa a todos, que
em breve o mundo tomaria conhecimento”.52 As reações da parte dos cardeais
foram distintas: alguns a acolheram bem, mas outros receberam-na com resistências
e desaprovação. Já estava posto sobre a história da Igreja este grande projeto, que
o papa considerava como “obra do Espírito Santo”.53 Kloppenburg diz que o anúncio
do Concílio levou “surpresa ao mundo e à esfera eclesiástica”.54 Até o próprio papa
se surpreenderia em seguida com o desenvolvimento do projeto. Lembramos a
finalidade do Concílio, que em sua primeira encíclica, a Ad Petri Cathedram,
manifestava: “a finalidade deste Concílio é: 1) incremento da fé, 2) renovação dos
costumes e 3) adaptação da disciplina eclesiástica às necessidades do tempo
atual”.55
Noutro momento, João XXIII dizia: “o principal escopo do Concílio é
apresentar ao mundo a Igreja de Deus em seu perene vigor de vida e de verdade”. 56
Precisamos realçar os objetivos do Concílio para mostrar tudo quanto iluminou o
processo de elaboração da Dei Verbum. E tais finalidades foram iluminadoras para
sua redação tanto quanto para a superação das tensões quando estas surgiram.
Após o anúncio do Concílio, a sua preparação deu-se gradualmente. Alguns
autores afirmam que o Concílio já estava sendo preparado desde os primeiros sinais
de surgimento dos grandes movimentos de renovação: o bíblico-patrístico, o
51 No dia 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII anuncia o sínodo romano, a revisão do Código deDireito Canônico e o Concílio (LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59).52 Id., ibid., p. 60-61.53 Id., ibid., p. 59. Conferir também KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 7. Háalguns teólogos que identificam o Vaticano II como Concílio do Espírito (cf. BALTHASAR, H. U. Von .
El Concilio del Espíritu Santo. In: Puntos centrales de la fe. Madri: BAC, 1985, p. 85-104).54 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 11. 55 Id., ibid., p. 15.56 Id., ibid., p. 16.
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teológico e o litúrgico.57 E também com as luzes lançadas pela publicação das
animadoras encíclicas de Leão XIII, entre elas, a Providentissimus Deus, e a mais
próxima do Concílio, a Divino Afflante Spiritu, de Pio XII. Mais adiante (em
17/5/1959), João XXIII nomearia a comissão antepreparatória, para dar início à
preparação do futuro Concílio. Esta comissão foi presidida pelo cardeal Domenico
Tardini. Fica então estabelecido que esta comissão enviaria cartas às mais diversas
instâncias católicas do mundo inteiro, pedindo sugestões para assuntos ou temas a
serem tratados no Concílio.58 O retorno das respostas foi alentador, sendo de mais
de 70%. Completada aquela fase, na solenidade de Pentecostes (5/6/1960), inicia-
se a “fase preparatória”, isto é, a criação das comissões,59 mais a Comissão
Central,60 presidida pelo papa. Cabe lembrar que a Comissão Teológica ficara“encarregada de examinar as questões a respeito da Sagrada Escritura, a Sagrada
Tradição, a fé e os costumes”. A esta comissão reservou-se a tarefa de elaborar a
redação da futura Dei Verbum. A Comissão Teológica foi presidida pelo cardeal
Ottaviani.61 Daí até a abertura do Concílio, o papa ainda se reúne algumas vezes
com as diversas comissões, especialmente com a Comissão Central, preparando
gradualmente o Concílio.
1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar
Em 11/10/1962, o papa João XXIII abre o vigésimo primeiro Concílio
Ecumênico da história da Igreja. Recorda alguns concílios anteriores, esclarece a
57 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 25-27. Outros autores, entre os quaisJoão Batista Libanio, propõem a mesma linha de raciocínio.58 Id., ibid., p. 49. Cf., também, RDV, p. 18.59 Foram dez as comissões nomeadas pelo papa João XXIII, para que preparassem o Concílio (cf.KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 54; e também RDV, p. 18).60 Esta comissão era constituída pelos presidentes das respectivas comissões, e sua tarefa era seguire coordenar, se necessário, os trabalhos de cada comissão (cf. KLOPPENBURG, B. ConcílioVaticano II, op. cit., v. 1, p. 56).61 Id., ibid.
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origem e causa do atual Concílio e ainda reafirma a finalidade deste.62 Na abertura
do Concílio havia cerca de 2.650 pessoas presentes. Da abertura até seu
encerramento passaram-se quatro anos. De outubro de 1962 até 18 de dezembro de
1965, ocorreram quatro grandes sessões.63 A Dei Verbum, nosso documento de
estudo, foi redigida precisamente em sessões que corresponderam exatamente às
quatro sessões realizadas no Concílio.
2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM
Quanto ao contexto histórico da Dei Verbum, ele é permeado de tensões. A
história de sua redação é polêmica em todo o seu percurso. Desde as primeiras
consultas conciliares até sua promulgação definitiva em 1965, seis anos
transcorreram, sem contar os cem anos precedentes, que gestaram os conteúdos dodocumento. Quatro esquemas precederam o texto definitivo.64 O contexto histórico
da Dei Verbum pretende remontar seu itinerário de redação a seus respectivos
esquemas, aos personagens mais significativos para sua redação, a sua estrutura e
a seu tema mais importante.
62 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 3ª ed. São Paulo:Paulus, 2004, 733 p.63 Ver as sessões do Concílio de forma resumida, em trabalho de Claude Bressolette, DCT, p. 1821-1823. A primeira sessão realizou-se de 11/10 a 08/12 de 1962; a segunda sessão, de 29/09 a 04/12
de 1963; a terceira sessão, de 14/09 a 21/11 de 1964; e a quarta e última sessão, de 14/09 a 08/12de 1965.64 SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar a Palavra – as grandes intuições da Dei Verbum. Estudos daCNBB, n. 91, p. 59.
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2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum
Podemos dizer que várias influências foram exercidas sobre a Dei Verbum.
Destacamos três grandes influências: o espírito conciliar, os movimentos de
renovação e alguns documentos do Magistério da Igreja.
a) A primeira influência
Ela vem do espírito conciliar.65 Este espírito envolveu os grandes
protagonistas da redação da Dei Verbum. E por isso pôde matizar o estilo redacional
desta Constituição. Este espírito conciliar promovido inicialmente por João XXIII foi
sustentado e firmemente experimentado pela maioria dos padres conciliares, e de
forma incisiva refletiu-se, sobretudo, na Dei Verbum. Ele traduziu-se no espírito de
renovação, de caráter pastoral, ecumênico, e no diálogo com as demais religiões,
tanto quanto com a sociedade e as ciências.
b) A segunda influência
A segunda influência veio dos movimentos da Igreja, formadores, certamente,
dos “ventos” que soprariam sobre todos os conciliares. Entre eles, recebendo
destaque especial os que protagonizaram sua elaboração. E dos quais os mais
importantes foram os movimentos bíblico-litúrgicos, o movimento ecumênico e omovimento da nova teologia, acolhendo, sobretudo, os grandes avanços que a
ciência bíblica até então havia alcançado. Também a experiência ecumênica de
vários padres conciliares em diversos países contribuiu para influenciar essa
Constituição.
65 Com espírito, quero dizer o que moveu o Concílio e as finalidades que João XXIII via no Concílio,como diálogo, os avanços ecumênico e pastoral, o aggiornamento.
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c) A terceira influência
a) a Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,66 do Vaticano I.
A Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,67 do Vaticano I, foi, de todos os
documentos magisteriais, o mais citado. Abaixo, elencamos em que momentos na
Dei Verbum a Dei Filius é citada.68 Esta Constituição merece certo destaque, por
causa das cerca de 10 citações de trechos seus que aparecem na Dei Verbum.
Destacamos alguns de seus traços relevantes. A Dei Filius sobre a Fé Católica do
Vaticano I é um documento gerado num Concílio que ocorre numa Igreja em “busca
de certezas”.69 A Igreja é confrontada internamente para responder aos ataques, e,
sobretudo, é confrontada externamente em seu fundamento: a revelação.
Questionava-se a “possibilidade da revelação de Deus pessoal, criador e redentor”.70
Desde a “Revolução Francesa causava impactos à Igreja o rompimento de uma
ordem patriarcal e hierárquica”71 junto à qual a Igreja de certa forma se estruturava.
Na época do Concílio Vaticano I, o racionalismo já impunha à Igreja sérias questões.
É neste contexto de modernidade que situamos o Concílio Vaticano I (de 8/12/1869
a 18/12/1870) e, portanto, também a Dei Filius. Nesta Constituição está presente a
preocupação da Igreja em responder de modo claro e firme às questões lançadas
pela modernidade, condenadas pelo papa Pio IX, especialmente na Encíclica
Quanta Cura (8/12/1864),72 lançada poucos anos antes do Concílio. E antes Pio IX
havia lançado outra encíclica, a Qui Pluribus (9/11/1846),73 que já mencionava em
seu texto alguns temas que seriam reafirmados na Dei Filius. Nesta encíclica tocava-
se em pontos como:
66 Denz. 3000.67 Id., ibid.68 No tema da revelação acolhida com fé (DV, 5); no tema das verdades reveladas é citada duasvezes (DV, 6); no tema da transmissão da revelação divina, os apóstolos e seus sucessores, arautosdo Evangelho (DV, 7); no tema da Sagrada Escritura (DV, 8); na relação da Tradição e da SagradaEscritura com toda a Igreja e com o Magistério (DV, 10); no tema da Inspiração divina e ainterpretação da Sagrada Escritura, Inspiração e verdade na Sagrada Escritura (DV, 11); e nainterpretação da Sagrada Escritura (DV, 12).69 DTF, p. 1036.70 Id., ibid.71 Id., ibid.72 Denz. 2890.73 Id., ibid., 2775.
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“a. que a nossa religião foi gratuitamente revelada por Deus à humanidadee recebe toda a sua força da autoridade do próprio Deus que fala; b. dodever da inteligência de inquirir sobre o fato da revelação para obter acerteza de que Deus falou; e, por último, c. de que é necessário prestar fétotal a Deus que fala”.74
Algumas afirmações da Dei Filius, na Constituição sobre a Fé Católica, são
inseridas mais tarde na Dei Verbum. A Dei Verbum vai retomar a declaração de que
a revelação de Deus deve ser recebida com obséquio pleno da vontade e
inteligência à fé (cf. DV, 5; Dei Filius, cap. 3).75 A Dei Verbum vai reafirmar, como já
fora feito na Dei Filius, que é o Espírito Santo quem move e converte a Deus os
corações, abre os olhos da alma e dá a todos a suavidade e o assentimento naadesão à verdade (DV, 5; Dei Filius, cap. 3).76
A Dei Verbum de certa forma toma como referência a Dei Filius, com
assuntos que já haviam sido abordados nas encíclicas de Pio IX. Em síntese, há
alguns temas mais preponderantes, como as fontes da revelação, a necessidade de
uma revelação sobrenatural, os motivos de credibilidade da revelação, a liberdade
do assentimento e as virtudes sobrenaturais da fé e sua necessidade, mistérios da
fé revelada, a relação entre ciência humana e fé divina, a imutabilidade dos dogmas.
Por sua vez, a Dei Filius, sem dúvida, condicionará a seguir os tratados sobre os
temas ligados à revelação, pois tem o “grande mérito de compor num documento
doutrinal o conceito de revelação que é exposto”.77
Em suma, a Dei Filius enfatiza:
Que a revelação sobrenatural é dada no Antigo e no Novo Testamento;
Que desta revelação Deus é o autor e a causa; A iniciativa da revelação é de Deus;
O objeto natural da revelação é o próprio Deus;
Todo o gênero humano é beneficiário da revelação.78
74 LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 301.75 Cf. Dei Filius. In: Denz. 3008.76 Id., ibid., 3010.77 DTF, p. 1038.78 LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 303.
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Próxima do Concílio veio a público a Encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio
XII. Esta encíclica foi publicada nas comemorações dos 50 anos da
Providentissimus Deus. Foi o reconhecimento de que a caminhada da Igreja nos
estudos da exegese estava no rumo certo. Eis algumas características da Divino
Afflante Spiritu:
“abre caminhos para a exegese católica; Deu frutos como a Bíblia deJerusalém e o Comentário Católico de toda a Sagrada Escritura; Valoriza astraduções que partem da língua original; Fala pela primeira vez dos‘gêneros literários’; Convida a se fazer a leitura crítica e histórica da Bíblia ea se utilizar dos muitos resultados das ciências, da arqueologia e daliteratura; Busca uma harmonia entre a exegese e as ciências”.81
Na Dei Verbum, as contribuições dessa encíclica estão dispostas:
* No tema da Inspiração divina e a interpretação da Sagrada Escritura: Inspiração e
verdade na Sagrada Escritura (DV, 11);
* No dever apostólico dos estudiosos (DV, 23);
* Quando recomenda a leitura da Sagrada Escritura (DV, 25).
3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM
Anunciado o Concílio, coube à comissão antepreparatória82
(17/5/1959)contatar os bispos e instâncias católicas do mundo inteiro para se informarem sobre
os assuntos pertinentes ao futuro Concílio. Após esta fase, foi nomeada pelo papa a
81 Estudos CNBB, n. 91, p. 24-25.82 Tinha como função contatar todas as instâncias católicas do mundo inteiro. São membros dessaComissão: o cardeal Alfredo Tardini, presidente, e Felici, secretário (RUIZ, Gregorio. Historia de laConstitución Dei Verbum. In: SCHÖKEL, Luis Alonso, ed. Comentarios a la Constitución Dei Verbum.Madri: BAC, p. 40; abreviada como ComDV).
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Comissão Central83 (5/6/1960). E nesta mesma data se nomeava a Comissão
Teológica.84
Na preparação do Concílio foram criadas outras comissões. Em 27/10/1960,uma subcomissão,85 e, já nas vésperas do Concílio, criava-se a Comissão Doutrinal
(6/9), que seria a sucessora da Comissão Teológica.86 Durante o Concílio outras
comissões seriam criadas: a Comissão Mista e o Secretariado para a União dos
Cristãos.87 Além destas comissões, foram criadas a Comissão Cardinalícia
Coordenadora; a Subcomissão interna da Comissão Doutrinal e a Comissão
Teológica, também da Comissão Doutrinal.88
Entregue pelo papa à Comissão Teológica o encargo de preparar o textosobre fé, Sagrada Escritura, Sagrada Tradição e Costumes, assim começa uma
longa jornada de elaboração do texto sobre a revelação divina. Posto em discussão
na primeira sessão do Concílio, foi um dos primeiros documentos a serem discutidos
(14/11/1962) e um dos últimos a serem aprovados (18/11/1965). Relembramos
ainda as sugestões dos bispos, quando dos trabalhos da comissão antepreparatória
– até sua promulgação foram longos seis anos. Consta que, em grande parte das
respostas dos bispos e instituições consultadas, os pedidos eram frequentementepara que se tratasse sobre o tema da revelação. Com efeito, já pela longa duração
de sua redação e o tempo transcorrido até sua promulgação, a Dei Verbum tornou-
se emblemática. Assim ela foi reconhecida como um documento que “teve a história
83 RUIZ, Gregorio. Historia de la Constitución..., op. cit., p. 40 (ComDV). Esta comissão, agorapreparatória, tinha como função supervisionar e coordenar o trabalho das 10 comissões. Seupresidente era o papa João XXIII, sendo Felici o secretário.84 Recebeu a atribuição de preparar os nove esquemas e, entre eles, o “De fontibus”. Seu presidente
era Ottaviani e o secretário, Tromp.85 Tinha a função de desenvolver o “esquema compendiosum De fontibus”. Era presidida porGarofalo.86 Id., ibid. Essa Comissão teria a função de reelaborar esquemas de acordo com as observações dospadres conciliares. Seu presidente era Ottaviani; os vice-presidentes, Browne e Charue; ossecretários, Tromp e Philipps.87 Id., ibid. p. 41. Foram criadas em 24/11/1962. Tinham a função de preparar o segundo esquema.Seu presidente era Ottaviani, para a Comissão Doutrinária, com Browne e Liénart como vices, Tromp,como secretário, e Bea, no Secretariado para a União dos Cristãos, tendo Willenbrands comosecretário.88 Id., ibid., p. 42. A Comissão Cardinalícia Coordenadora foi criada em 18/12/1962. Tinha comofunção coordenar os trabalhos do Concílio, seu presidente era o cardeal Cicognani, auxiliado porvários secretários. Já a Subcomissão interna da Comissão Doutrinal foi criada em 7/3/1964. Sua
função era refundir o segundo esquema de acordo com as observações dos padres. Quem a presideé Charue, e seu secretário é Betti. E a última comissão é a Teológica, criada em 22/9/1965, com afunção de classificar “os modi” dos padres, e presidida por Charue. Não há a informação sobre quemera o seu secretário.
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mais agitada de todos os documentos conciliares”.89 Quanto ao itinerário da redação
da Dei Verbum, é importante uma síntese global das votações de seu texto. Consta
de forma reduzida, nos Documentos da Igreja (2004), uma visão mais ampla das
votações.90
A) O 1º esquema sobre a revelação divina
Na primeira sessão do Concílio (11/10 a 08/12 de 1962), o 1º esquema sobre
a revelação divina foi apresentado aos padres conciliares pela primeira vez. E a
discussão do 1º esquema foi feita na aula conciliar da décima quinta à vigésimaquarta Congregação Geral, de 14 a 21 de novembro de 1962, após a discussão
sobre “Liturgia. Em seguida, foi posto em discussão o texto sobre a revelação
divina”.91 No ato de apresentação desta Constituição, havia cerca de 2.220
conciliares, e ao cardeal Alfredo Ottaviani, presidente da comissão teológica, coube
apresentar o novo projeto sobre a revelação. Foram sete dias de debates,
permeados de tensões, até 21 do mesmo mês.92 O projeto apresentado por Alfredo
Ottaviani não foi aceito. Apesar de, mesmo antes do Concílio, ter sido aprovado pelopapa e depois enviado aos padres antes da aula conciliar,93 este 1º esquema foi
rejeitado por grande número dos padres do Concílio.94 Este projeto foi alvo de
severas críticas e, como vemos, recebeu inúmeras emendas de alterações. Este
esquema inicial teve então que ser revisto em diversos pontos:
“ele não define a natureza e o objeto da revelação; não fala de Cristo, sumarevelação do Pai; dá demasiada importância à parte polêmica e poucaimportância à parte positiva; dá pouca importância à Tradição; além disso,
89 SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar..., op. cit., p. 26.90 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus,2004, p. 347.91 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., p. 161.92 Id., ibid., p. 162.93 A aula conciliar era a reunião dos padres conciliares para tratar sobre os temas. Esta “aula”chamava-se Congregação, por congregar os conciliares no estudo dos demais assuntos.94 Título: Constituição Dogmática sobre as fontes da revelação; Primeiro Capítulo: das duas fontes da
revelação; Segundo Capítulo: da inspiração, inerrância e composição das Escrituras; TerceiroCapítulo: do Antigo Testamento; Quarto Capítulo: do Novo Testamento; Quinto Capítulo: da Escriturana Igreja (RDV, 1986, p. 19). Conferir também o excelente artigo “Historia de la constitución DeiVerbum” (p. 3-43), de Gregorio Ruiz (ComDV).
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afirmando que a revelação está contida em ‘duas fontes’, opõe a Tradição àEscritura, o que nunca foi ensinado pelo magistério da ‘Igreja’”.95
As reações foram fortes, apontando o problema criado por esse esquemaquando se refere a duas fontes da revelação. Ao longo de sete dias de debate,
vários participantes reagem, proferindo discursos tensos. Vale lembrar o notável
discurso de Emilio De Smedt (bispo de Bruges, da Bélgica), que fala em nome do
Secretariado para a União dos Cristãos. Foi graças a este discurso que os padres
conciliares despertaram para a inadequação do primeiro projeto sobre a revelação
divina.96
Após as reações dos apoiadores e dos críticos ao 1º esquema, encerra-se o
momento inicial de trabalho sobre o texto da revelação divina, sem contudo avançar.
O 1º esquema é então rejeitado e recebe uma votação interessante.97 Não havendo
consenso, o papa João XXIII intervém: nomeia uma Comissão Especial, chamada
também de comissão mista, que incluía o cardeal Bea.98 Nessa mesma ocasião
(21/11/1962), o papa comunica em plenário a elaboração de um novo texto,
recebendo então outro título, agora denominado “De Divina Revelatione”.99 A
intervenção do papa era necessária para amenizar uma possível radicalização dasposições contrárias.
B) O 2º esquema sobre a revelação divina
Na segunda sessão do Concílio não foi possível a discussão do texto sobre a
revelação devido às dificuldades da primeira sessão. Encerrada a 1ª sessão do
Concílio (8/12/1962), e não havendo grandes progressos na elaboração do texto, o
95 RDV, p. 19.96 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. II, p. 179-182. 97 O número de votantes era de 2.209, com as seguintes proporções na votação: “Placet”, com 822apoiadores, e “Non placet”, com 1.368. Com apenas 115 votos a mais de diferença, completar-se-iamos dois terços exigidos pelo regulamento para uma posição (cf. RDV, p. 10).98 O cardeal Agostinho Bea, padre jesuíta, exegeta, presidira até pouco antes do Concílio a PontifíciaComissão Bíblica. No tempo do papa Pio XII, era seu confessor e no Concílio foi designado para
presidir o Secretariado para a União dos Cristãos.99 Há uma ligeira mudança do título anterior para o de agora, Sobre a Revelação Divina. O anteriorera De fontibus Revelatione (Sobre as fontes da revelação divina) (cf. KLOPPENBURG, B. ConcílioVaticano II, op. cit., v. IV, p. 94).
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Concílio declarou o recesso dos trabalhos, e somente em março do ano seguinte
(1963) o esquema recebeu algumas modificações:
“mudança do título para ‘De divina revelatione’ (sobre a divina revelação);acréscimo de um proêmio para falar da natureza e do objeto da revelação;‘fórmula de compromisso’, não separar a Escritura da Tradição e nãoafirmar que a Tradição contém mais do que está na Escritura; maiordesenvolvimento dado à parte referente à Tradição”.100
Surge o 2º esquema. Ainda no recesso do Concílio, o 2º esquema é enviado
aos padres conciliares para avaliação. O clima tenso não fora superado, mesmo
durante o recesso.101 A tensão é tamanha, que o cardeal Florit, na segunda sessão
do Concílio, sugere que não se retome mais no Concílio o tema da revelação.102
C) O 3º esquema sobre a revelação divina
Como na segunda sessão do Concílio não fora discutido o texto sobre a
revelação, em julho de 1964, após as sugestões dos padres conciliares e das
correções das Comissões (Central e Teológica), é elaborado o 3º esquema. Antes
de iniciar a terceira sessão do Concílio, em março de 1964, criou-se umasubcomissão na Comissão Teológica que ficou constituída de sete padres
conciliares e 19 peritos.103 Esta subcomissão estudaria o então 2º esquema e
apresentaria um novo. A subcomissão reelabora então o esquema anterior e
apresenta outro.104
Em julho de 1964 o 3º esquema é enviado aos padres conciliares durante o
recesso. Fito isso, a Comissão Teológica altera alguns pequenos detalhes, e o novo
100 Cf. RDV, p. 19-20.101 É bom salientar que durante o recesso, houve as conversações, o encaminhamento de questõesespinhosas. O texto sobre as fontes da revelação não deixou de ser focado. O recesso (fora daassembleia) fora um momento de amadurecimento sobre o tema. Este recesso foi do fim da primeirasessão (dezembro de 1962) até o início da segunda sessão (setembro de 1963).102 Cf. Id., ibid., p. 20. Ermenegildo Florit era o cardeal de Florença.103 Nessa subcomissão estavam presentes grandes teólogos, como Rahner, Ratzinger, Congar,Moehler e outros (id., ibid.). 104 Proêmio: maior desenvolvimento da noção de revelação (não só palavras, mas fatos...); maiorrelevo à encarnação (revelação em Cristo). Capítulo 1º: no título, aparece a palavra “transmissão”.Maior relevo à Tradição. Capítulo 2º: formulação mais ampla da noção de “inspiração”. Declaração de
que o trabalho exegético deve estender-se a toda a Escritura (também no Novo Testamento).Capítulo 3º: ênfase dada à história da salvação. Capítulo 4º: ênfase dada à índole própria de cadaevangelho (contra um conceito demasiado estreito de historização). Capítulo 5º: paralelismo entreEscritura e Tradição; encorajamento dos estudos bíblicos e pastorais.
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papa, Paulo VI,105 poderia abrir a terceira sessão. Agora com as questões mais
difíceis já refletidas durante o recesso, pôde-se nesta terceira sessão continuar o
debate sobre o tema da revelação divina. As dificuldades encontradas anteriormente
tiveram de ser enfrentadas nessa terceira sessão. É claro que o tempo de recesso
favoreceu de certa forma para que os pontos mais espinhosos fossem abordados,
sem que, contudo, o texto fosse posto em votação. A discussão desse 3º esquema
foi feita da nonagésima primeira para a nonagésima quinta Congregação Geral, de
30 de setembro a 6 de outubro do mesmo ano. Assim, retomava-se o projeto
centrado na revelação divina logo após a discussão do projeto “De Eclesia”.106 No
primeiro dia se debateu sobre o primeiro e o segundo capítulo do projeto sobre a
revelação. Este projeto basicamente foi o foco dos maiores conflitos entre as “duasmentalidades” discordantes, apesar de menos intensos que na primeira sessão.
Para termos uma ideia das reações, citamos.107
Nos demais capítulos, poderíamos apontar pendências no texto sobre a
inerrância, vista como um tema a ser evitado, por ter conotação negativa. É preciso
esclarecer mais e melhor o tema da inspiração, levando em conta as sugestões. O
texto retornou para a subcomissão, sendo então novamente reelaborado. Em 11/11
de 1964 chega à Comissão Teológica e em seguida é aprovado por ela sem maiores
dificuldades.108 No dia 20/11 surge o 4º esquema, que é distribuído aos padres
conciliares.
D) O 4º esquema sobre a revelação divina
O 4º esquema chega aos padres ainda na terceira sessão, mas as alteraçõessugeridas serão debatidas somente na seguinte, isto é, na quarta e última sessão do
Concílio (14/9 a 8/12/1965). O 4º esquema sobre a revelação é debatido e votado
nas aulas conciliares (da 131ª à 133ª), do dia 20/9 ao dia 18/11/1965. Sobre este 4º
105 Após a morte do papa João XXIII, Paulo VI é eleito o novo papa, e este continua a obra doConcílio, iniciada pelo antecessor.106 Projeto sobre o mistério da Igreja. Conduzirá à futura constituição dogmática que será denominadaLumem Gentium (LG).107 No cap. 1º, deve-se acentuar a preparação evangélica do Antigo Testamento; ensinar que Cristo é
a plenitude da revelação, não só em sua pessoa divina como em sua pessoa humana; no cap. 2º,distinguir claramente entre tradição apostólica (doutrinária) e tradições eclesiásticas (institucionais);afirmar o progresso da revelação.108 RDV, p. 22.
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esquema da Dei Verbum, vamos levar em consideração os apontamentos utilizados
pela BAC, que são esclarecedores.109
Ainda quanto à redação, algumas figuras tiveram grande importância noprocesso redacional. Em destaque estão o papa João XXIII, o cardeal Alfredo
Ottaviani, o cardeal Agostinho Bea e o bispo Emilio De Smedt. Cada um contribuiu,
a seu modo, para a elaboração do texto da Dei Verbum. João XXIII, quando
ressaltou a finalidade do Concílio, deu um caráter pastoral, de diálogo e ecumênico.
Acabou determinando as grandes linhas da Dei Verbum. O cardeal Ottaviani,
presidente da Comissão Teológica, daria ao primeiro projeto falando da revelação
divina um teor estritamente conservador, quando insistia numa redação com o título
de “duas fontes da revelação”, reflexo de certa teologia ainda tridentina. O cardeal
Bea foi incisivo em todas as suas intervenções, tanto a pedido do papa João XXIII,
com quem num primeiro momento aceitara prontamente colaborar na resolução do
impasse, mas também ao longo do Concílio com sua pertinente atuação. Seu
empenho para preservar no texto da Dei Verbum o caráter ecumênico e pastoral,
pedido desde o início pelo papa, foi fundamental. O cardeal Bea era exegeta e
também presidente da Secretaria para a União dos Cristãos. A experiência que
adquiriu no campo do ecumenismo fortaleceu sua posição por ocasião dos vários
atritos com aquele grupo de mentalidade contrastante. Ademais, Agostinho Bea foi
“fiel” às finalidades pastoral e ecumênica, definidas desde o início no Concílio por
João XXIII.
Por último, lembramo-nos do bispo Emilio Josef De Smedt, de Bruges, na
Bélgica. De Smedt fez um discurso notável.110 Seguramente, foi graças a esta fala
que os padres conciliares tomaram consciência das fragilidades do 1º esquema darevelação divina, com o teor “das fontes da revelação” apresentada por Ottaviani.
109 Dos dias 20 a 22 de setembro houve as votações dos padres sobre o 4º esquema (da 131ª à 133ªCongregação Geral). Logo após, a Comissão Técnica classifica e estuda as “sugestões” dos padres.Depois a Comissão Teológica examina e ratifica os trabalhos da Comissão Técnica, e o papa pede àComissão Teológica para reexaminar três pontos. Depois há a distribuição do fascículo com assugestões e suas respostas. Ocorre em seguida a votação sobre as emendas e a aprovação do texto(155ª Congregação Geral). Em seguida, novo texto da Constituição é distribuído aos padresconciliares, e o secretário geral notifica a qualificação teológica da Constituição. Por fim, vem apromulgação da Constituição Dei Verbum (na oitava sessão pública) (ComDV, p. 39).110 Vale a pena percorrer na íntegra o discurso de De Smedt. Pela lucidez e pela problemática da
linguagem lançada no Concílio. Não se havia atentado sobre a questão da linguagem. E nos pareceque foi o que o papa João XXIII havia inicialmente apontado. A questão da Igreja não é tanto alterar oconteúdo, mas o uso de uma nova linguagem para o mundo (KLOPPENBURG, B. Concílio VaticanoII, op. cit., v. II. Primeira Sessão, set.-dez. 1962, p. 179-182).
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Dali em diante as reações conclusivas foram de rejeição daquelas propostas, por
parte da maioria da assembleia conciliar.
4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM
A Dei Verbum é um dos 16 documentos elaborados pelo Concílio Ecumênico
Vaticano II.111 É uma das quatro “Constituições”,112 todas definidas como
dogmáticas, exceto a Gaudium et Spes (GS), que é pastoral. A Dei Verbum assume
a condição de Constituição Dogmática.113 É Constituição, porque é “reservada para
textos que expõem e discutem verdades doutrinárias, e é Dogmática, porque a eleva
ao de máxima importância como doutrina que tem valor normativo para a fé da
Igreja”.114 A Dei Verbum contém seis capítulos e 26 parágrafos. É Dei Verbum por
tratar da revelação divina. A revelação é seu tema central, e os outros temas
gravitam em torno dela.
O objetivo da Dei Verbum vem exposto em seu próprio texto. Ali é dito que,
seguindo Trento e Vaticano I, vem propor a genuína doutrina sobre a revelação
divina e a sua transmissão (DV, 1). O documento está assim estruturado:
111 Constituição Dogmática Sacrossanctum Concilium: Sobre a Sagrada Liturgia (SC); ConstituiçãoDogmática Lumem Gentium