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  • 8/18/2019 Elcio Rubens Mota Felix

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    Elcio Rubens Mota Felix

     A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA

    DEI VERBUM DO CONCÍLIO VATICANO II

    MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA

    SÃO PAULO

    2013

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    Elcio Rubens Mota Felix

     A Relação Palavra-Espírito Santo na Const itu ição Dogmática

    Dei Verbum do Concílio Vaticano II

    Dissertação apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação Stricto Sensu  da Pontifícia

    Universidade Católica de São Paulo, comopré-requisito para obtenção do grau de

    Mestrado em Teologia Sistemática.

    Orientador: Pe. Dr. Kuniharu Iwashita.

    SÃO PAULO

    2013

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    Banca Examinadora

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     AGRADECIMENTOS

     Aos que, de alguma forma, muito ou pouco, fizeram parte deste processo dereflexão e pesquisa. E cada pessoa, a seu modo, esteve presente.

     Aos meus queridos, que, pelo dom da vida e pelo exemplo, ensinaram-me a

    escutar.

     Ao meu orientador, o padre Pedro Iwashita, por suas orientações precisas e

    pela paciência.

     Aos professores, que, cada um em sua área, com competência, ajudaram-mea elaborar meu trabalho:

    a Antônio Manzatto, que, na História dos Dogmas, ajudou-me a olhar alguns

    fundamentos da fé dentro de um contexto bem maior, que é o do desenvolvimento

    ou evolução da fé cristã;

    a Boris Agustin Nef Ulloa, que, com base na Sagrada Escritura, abriu-me

    caminhos para o aprofundamento sobre a tradição;

    a Maria Freire da Silva, que me despertou com clareza para a importância das

    técnicas da escrita no trabalho de dissertação;

    a Matthias Grenzer, que me ajudou a compreender a importância das

    tradições do Êxodo para a formação das fontes da vida de fé do povo de Israel e

    também a nossa, enquanto cristãos;

    ao professor Ney de Souza, que me fez aprimorar a leitura e a compreensãosobre o documento da Constituição Dei Verbum, quando do seminário sobre os 50

    anos do Concílio Vaticano II.

    ao padre Valeriano dos Santos Costa, meus agradecimentos por inspirar-me

    e, ao mesmo tempo, instigar os estudos numa futura pesquisa sobre a o Espírito

    Santo na Liturgia.

    Também não posso me esquecer de agradecer aos meus colegas deMestrado e ao Congresso Continental de Teologia, que notificou incisivamente a

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    necessidade de a teologia partir sempre da realidade, e, para isso, a escuta torna-se

    primordial.

     À Faculdade Vicentina, na qual desenvolvi os estudos de pós-graduação emespiritualidade, com base nos quais me foi suscitado o propósito de um mestrado.

     Aos amigos e irmãos de Congregação, que muito me estimularam nesta

    pesquisa, e aos meus superiores, que, com os devidos apoios, serviram de alento

    nos momentos de atribulação.

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    RESUMO

    O presente trabalho pretende verificar a relação entre a Palavra e o Espírito naConstituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Para isso, vamos, numprimeiro momento, nos deter na análise dessa Constituição situando-a no contextodo Vaticano II. É ali que a Dei Verbum é elaborada. Em seguida e com base naanálise do texto da Dei Verbum,  focaremos nossa pesquisa estritamente nasreferências ao Espírito ali feitas. Neste sentido, nossa investigação, de cunho

    predominantemente bibliográfico, procura mostrar que, embora sejam pouconumerosas as referências ao Espírito naquele documento, em sua leitura é possívelcaracterizar ou identificar as formas de relação entre a Palavra e o Espírito. E aindamais se nessa leitura for levado em conta, como é nosso propósito, que a DeiVerbum é essencialmente um documento voltado para expor uma doutrina sobre arevelação da Palavra de Deus. Verificamos também que essa doutrina tem entreseus pressupostos que a relação entre a Palavra e o Espírito provocará a escuta doser humano à Palavra, levando-o a dar, por sua vez, uma resposta, que é a detambém buscar escutá-la. Da genuína escuta da Palavra de Deus que se revela noEspírito, à qual o homem se dispõe, podem depender todas as outras formas derelação em que o ser humano se envolve: a relação consigo mesmo, a relação como(s) outro(s), a relação com o mundo, com a sociedade e até a relação com ascoisas. Da autêntica capacidade do homem de escutar a Palavra de Deus podedepender um novo modo de ser e de viver do homem neste mundo. Algo que opróprio Concílio já aventava, ou melhor, estava pressuposto em suas deliberações.O espírito conciliar propunha essencialmente a atualização da relação com asociedade, com o mundo, com a ciência. E certamente é a escuta que daria oscontornos dessa relação.

    Palavras-chave:  Dei Verbum, Palavra, Espírito, escuta, homem, mundo.

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     ABSTRACT

    This assignment aims to verify the relation between the Word and the Spirit in the DeiVerbum  Dogmatic Constitution, of Vatican Council II. Therefore, we are going toanalyze, at first, this Constitution, placing it in the Vatican Council II. It is in it that theDei Verbum is elaborated. After, we are going to focus our research based on theanalysis of the text from the Dei Verbum; we are going to strictly focus our researchin the references that are done in it about the Spirit. In this way, our investigation,

    which is predominantly bibliographical, tries to show that, although there are fewreferences about the Spirit in that document, when you read it, it is possible tocharacterize or identify the ways of relation between the Word and the Spirit. Andeven more if this reading is taken into account, as it is our purpose, that the DeiVerbum is essentially a document aimed to present a doctrine about God’s Wordrevelation. We also verify that this doctrine has among its presumptions that therelation between the Word and the Spirit will cause the human’s listening to theWord, conducting him to give an answer, which is also to look for listening it. Fromthe genuine listening of God’s Word which is revealed into the Spirit, and the man

    offers to do, they may depend on all the other ways of revelation in which the humanbeing involves himself: the relation with himself, the relation with the others, therelation with the world, with the society and even the relation with the things. Fromthe authentic man’s ability of listening God’s Word can depend on a new way ofman’s being and living in this world. Something that the Council has already said,namely it was presupposed in its deliberations. The Council spirit essentiallyproposed the society’s updating relation, with the world and the science. Anddefinitely it is the listening that could give the outlines of this relation.

    Key words: Dei Verbum, Word, Spirit, listening, man, and world.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO...................................................................................................11

    1º CAPÍTULO: A DEI VERBUM........................................................................18

    1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM................................................20

    1.1. O Concílio Vaticano II.................................................................................20

    1.1.1. Os movimentos que influenciaram o Vaticano II......................................21

    1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio........23

    1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura....................................................25

    1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar......................................26

    2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM.............................................27

    2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum...............................................28

    3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM.........................................32

    4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM...........................................39

    4.1. O tema fundamental da Dei Verbum: a revelação.......................................44

    4.1.1. Revelação ............................................................................................. 44

    2º CAPÍTULO: A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO NA DEI VERBUM...........56

    1. ESCLARECIMENTOS...................................................................................57

    2. A PALAVRA...................................................................................................60

    2.1. A Palavra de Deus e o Espírito Santo........................................................64

    2.1.1. A Palavra de Deus...................................................................................64

    2.1.2. O Espírito Santo.......................................................................................73

    3. A RELAÇÃO PALAVRA-ESPÍRITO COM BASE NO TEXTODA DEI

    VERBUM............................................................................................................78

    3.1. Relação Palavra-Espírito numa perspectiva bíblica....................................79

    3.2. Alguns aspectos históricos da relação Palavra-Espírito..............................81

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    3.3. A relação Palavra-Espírito com base nas referências ao Espírito Santo no texto

    da Dei Verbum............................................................................................................84

     A) 1ª Linha de reflexão: Cristo no Espírito, tem-se acesso ao Pai (DV, 2)................84B) 2ª Linha de reflexão: O Espírito e a inspiração: o hagiógrafo e as Escrituras (DV,

    7, 9, 11, 20)................................................................................................................85

    C) 3ª Linha de reflexão: O Cristo ressuscitado envia o Espírito de verdade (DV, 4, 6,

    11, 17,19)...................................................................................................................88

    D) 4ª Linha de reflexão: O Espírito assiste a Tradição dada por Cristo (DV, 8, 9, 10,

    20, 23)........................................................................................................................90

    3º CAPÍTULO: A ESCUTA COMO RESPOSTA À PALAVRA QUE SE

    REVELA.....................................................................................................................94

    1. OUVIR E ESCUTAR: UMA SUTIL DIFERENÇA....................................................95

    2. A ESCUTA E A PALAVRA DE DEUS....................................................................97

    3. A ESCUTA NO HORIZONTE DA DEI VERBUM..................................................103

    3.1. Ouvindo religiosamente a Palavra de Deus......................................................106

    3.2. O contexto conciliar...........................................................................................107

     A) A Assembleia Conciliar........................................................................................107

    B) O contexto da Assembleia Conciliar....................................................................108

    4. BASE BÍBLICA DO “OUVINDO RELIGIOSAMENTE A PALAVRA DE

    DEUS”......................................................................................................................108

    5. JESUS COMO NOVO MOISÉS E MODELO DE ESCUTA..................................112

    6. A ESCUTA COMO RESPOSTA...........................................................................117

    CONCLUSÃO..........................................................................................................127

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................130

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    SIGLAS

     AG  Ad Gentes. Constituição Pastoral sobre a missão da Igreja no

    mundo

    Bíblia do Peregrino

    CIC Catecismo da Igreja Católica

    ComDV L. Alonso Schökel (ed.). Comentários à Constituição Dei Verbum 

    Dap. Documento de Aparecida 

    DB Dicionário bíblico, 9ª ed. São Paulo: Paulus, 2005

    DCT Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004

    DEB Dicionário enciclopédico da Bíblia. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004

    Denz. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral 

    DF Constituição Dogmática Dei Filius sobre a fé católica. Vaticano I

    Documento do Vaticano II

    DTF Dicionário de teologia fundamental. Petrópolis (RJ):

    Vozes/Santuário, 1994, 1094 p.

    DM Dicionário de mariologia. São Paulo: Paulus, 1986

    DV Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a revelação divina

    EDAS Encíclica Divino Afflante Spiritu 

    EPD Encíclica Providentissimus Deus 

    ESP Encíclica Spiritus Paraclitus 

    NDT Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009

    OT Optatam Totius. Declaração sobre a formação presbiteral

    RDV PIAZZA, W. A revelação cristã: na Constituição Dogmática DeiVerbum

    TEB Bíblia Tradução Ecumênica TEB. São Paulo: Loyola, 1996

    VD Verbum Domini

    VTB Vocabulário de teologia bíblica. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005

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    INTRODUÇÃO

    Desde o Concílio Vaticano II (1965), tem-se observado a busca de elaboração

    sistemática (pneumatologia) da ação do Espírito Santo na Igreja, no mundo e na

    vida do ser humano. Ao mesmo tempo, no próprio Concílio, ouviram-se “vozes:

    observadores ortodoxos, protestantes anglicanos  que afirmaram que o Concílio

    esqueceu-se do Espírito, devido à precariedade de referência ao Espírito Santo nos

    textos dos documentos conciliares”.1 

    Diante da precariedade de referências ao Espírito Santo nos documentos do

    Concílio, o tema da relação entre Palavra e Espírito reveste-se de certa dificuldade,

    especialmente quando procuramos identificar uma pneumatologia elaborada na Dei

    Verbum,  por causa da revelação de Deus. Evidentemente com este cenário,

    indagamos: que implicações surgem dessa relação entre Palavra e Espírito na Dei

    Verbum? Ou que consequências a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à

    Igreja e aos homens e mulheres de nosso tempo? Essas indagações são pertinentes

    e se põem como desafiadoras ao nosso trabalho. Ousamos dizer que vamos buscar

    abordá-las.

    Nos dezesseis documentos elaborados pelo Concílio Vaticano II, ocorre 260

    vezes a referência ao Espírito Santo. Na Dei Verbum, porém, somente 25 vezes é

    citado o Espírito Santo. É preciso admitir que há pouca referência ao Espírito na Dei

    Verbum, se a comparamos aos demais documentos conciliares, como, por exemplo,

    a Lumem Gentium (Constituição sobre a Igreja). Este documento é aquele do qualmais constam referências ao Espírito Santo. Esta escassa menção ao Espírito,

    1  CODINA, Vitor. Creio no Espírito Santo: pneumatologia narrativa.  São Paulo: Paulinas, p. 55. Aobservação e a crítica mais contundentes quanto ao esquecimento do Espírito no Vaticano II, masformuladas de modo mais amplo, deram-se de forma mais incisiva pelas considerações do teólogoortodoxo Paul Evdokimov, que diz: “a ausência da economia do Espírito Santo na teologia dos últimosséculos como também seu cristomonismo determinaram que a liberdade profética, a divinização dahumanidade, a dignidade adulta e régia do laicato e o nascimento da nova criatura fiquemsubstituídos pela instituição hierárquica da Igreja posta em termos de obediência e submissão” ( OEspírito Santo na tradição ortodoxa.  São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 32). Há outras obras que

    abordam a mesma questão da “precariedade da referência ao Espírito” do Vaticano II: CONGAR,Yves. Creio no Espírito Santo.  Vol. 1: Revelação e experiência do Espírito. São Paulo: Paulinas,2005, p. 217; SILANES, Nereo. O dom de Deus: a Trindade em nossa vida.  São Paulo: Paulinas,2006, p. 205-7.

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    entretanto, nem por isso significa desprezo ou pouco-caso à terceira Pessoa

    Trinitária. Tanto isso é verdade, que, terminado o Concílio, anos mais tarde

    (6/6/1973), o papa Paulo VI, numa audiência geral, reconhece: “à Cristologia e

    especialmente à eclesiologia do Concílio deve suceder um estudo novo e um culto

    novo sobre o Espírito Santo, precisamente como um complemento que não deve

    faltar ao ensino do Concílio”.2 

    Este trabalho de alguma forma apoia-se nesse pensamento do papa Paulo VI,

    como a motivação e o propósito de pesquisa. E, dessa mesma afirmação no

    Sagrado Concílio até hoje, passou-se quase meio século, tendo já ocorrido nos

    tempos atuais enormes transformações no mundo e na Igreja. Aliás, o próprio

    Concílio foi e ainda é instrumento de transformação. É o Concílio que nos

    recomenda uma sistematização mais elaborada, um estudo mais apurado sobre o

    Espírito Santo, ou seja, uma pneumatologia. Por isso, são indispensáveis o estudo e

    a compreensão da interação entre Palavra e Espírito. Se o Concílio já apontava para

    a renovação da Igreja, são imprescindíveis o estudo e o conhecimento da relação

    entre Palavra e Espírito. Porque é o Espírito que dinamiza a Palavra. Também, a

    Igreja não vive sem a Palavra, e a Palavra não age sem o Espírito. Portanto, o

    estudo da relação entre Palavra e Espírito será relevante para a compreensão deste

    trabalho. Compreender essa relação, e seu reflexo para nós e para nossa vida, é

    determinante. Com efeito, serão consideradas as implicações da relação Palavra-

    Espírito em nosso contexto de fé, ou em nossa vida cristã.

    Em outras palavras, o que pretendemos3 é verificar a relação Palavra-Espírito

    na Constituição Dogmática Dei Verbum, porque este é o documento que trata sobre

    a revelação, em busca da elaboração de uma doutrina da revelação divina ou darevelação da Palavra de Deus.4 

    2 Audiência geral de Paulo VI de 6 de junho de 1973. Insegnamenti di Paolo VI, v. XI, 1973, p. 477(citado em JOÃO PAULO  II. Encíclica “Dominum et Vivificantem” sobre o Espírito Santo na vida daIgreja e do mundo. São Paulo: Loyola, 1986, p. 274).3 Quando digo “pretendemos”, quero significar “quanto ao objetivo deste trabalho”.4 É necessário dizer com clareza que entendemos como Palavra de Deus o que a Igreja entende, istoé, ela a vê de forma ampla, tendo um sentido mais abrangente que aquele restrito somente à

    Sagrada Escritura. Aqui também a Palavra de Deus não se restringe à Sagrada Escritura, eigualmente a Tradição deve ser considerada como Palavra de Deus. Encontramos na Dei Verbum: a sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus,confiado à Igreja (DV, 10).

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    No primeiro capítulo, vamos analisar a Constituição Dei Verbum,  situando-a

    em seu contexto eclesial e histórico. Abordar o seu contexto é verificar o lugar, as

    forças e os envolvidos em sua redação e o itinerário em que é elaborada. É neste

    contexto que será produzido o documento que trate de uma “doutrina” sobre a

    revelação divina e é só por ela que pensaremos a relação Palavra-Espírito. Para

    tanto, será conveniente pinçar para análise, por exemplo, as grandes influências

    sobre a redação da Dei Verbum, que não se podem esquecer. Houve várias delas

    sobre essa Constituição,5  como o espírito conciliar, alguns documentos do

    Magistério da Igreja, a caminhada da Igreja que se fazia até então e,

    particularmente, o “clima” de assembleia conciliar,6  em que todos estavam

    envolvidos.

    Sendo feita essa análise do documento em seu contexto histórico e eclesial,

    entraremos no coração de nosso trabalho. Trataremos no segundo capítulo da

    relação entre Palavra e Espírito. Era preciso vasculhar o texto da Dei Verbum para

    assim nos lançarmos num empreendimento posterior. Com isso, recorreremos às 25

    referências ao Espírito Santo no texto do documento da Dei Verbum. E é somente

    com base nestas 25 referências que será possível desenvolvermos o respectivo

    estudo sobre a relação entre a Palavra e o Espírito. Não é sem sentido a intenção

    dos padres conciliares em dispor no texto a sutil harmonia entre Palavra e Espírito,

    como a lemos na Dei Verbum, e que podemos ver em algumas partes do texto,

    como, por exemplo, “A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita

    por inspiração do Espírito Santo” (DV, 9).

    E ainda mais numa outra parte do texto, em que encontramos a afirmação de

    que a Sagrada Tradição só progride se assistida pelo Espírito. Está assim elaboradano texto da Constituição: “Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a

    assistência do Espírito Santo” (DV, 8).

    5  As pesquisas apontam para o fato de que a Dei Verbum não foi elaborada, por assim dizer, daestaca zero, nem foi redigida em papel absolutamente em branco. Há algumas influências sobre estedocumento, que, a nosso ver, são o espírito conciliar, os movimentos e alguns documentos da Igreja.Noutra linha, consideraremos dois grandes contextos em que este documento surge: seus contextos

    eclesial e histórico.6 Quanto às figuras significativas no processo redacional da Dei Verbum,  indico ao menos quatro: opapa João XXIII, Alfredo Ottaviani, Agostinho Bea e o bispo de Bruges, Emilio De Smedt. Sobre esteúltimo, cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II, v. 1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1963.

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    E as demais citações estão em perfeita harmonia entre si. Como são 25 as

    referências ao Espírito Santo, abordaremos todas elas buscando fazer uma reflexão

    teológica e tendo como base a Tradição da Igreja.

    É com apoio nisso que será desenvolvido o estudo desse capítulo.

    Procurando elaborar o significado e a contribuição teológica dessa Constituição para

    a Igreja e para nossa fé. Portanto, não são sem sentido as referências ao Espírito

    Santo ao longo do documento, porque o Espírito está sempre em estreita ligação

    com a Palavra, e a Palavra sempre age no Espírito. 

    Ora, por que há essas constantes referências ao Espírito Santo num texto de

    Constituição dedicada à revelação divina, a Palavra de Deus? Cogitamos que aIgreja quis deixar bem clara a insofismável interação entre o Espírito Santo e a

    Palavra que se revela. É tendo em mente essa observação que pesquisaremos o

    conjunto das 25 referências no contexto dessa Constituição Dogmática.

    Com o estudo do documento da Dei Verbum e a reflexão teológica da relação

    entre Palavra e Espírito, focaremos nosso propósito nos desdobramentos ou nas

    consequências desta relação. Num outro aspecto, queremos apresentar algo bem

    concreto, que possa contribuir para nossa vida cristã. Propondo um caminho que

    seja o ponto de chegada em que deságua a relação entre a Palavra e o Espírito. No

    último e terceiro capítulo trataremos da ressonância da interação entre Palavra e

    Espírito na vida e na fé cristã. Ousamos propor a escuta como este momento

    privilegiado e insubstituível, de onde ressoa ou reflete a relação entre a Palavra e o

    Espírito. A escuta é uma resposta do “homem à revelação da Palavra”.7 Por isso, é

    na escuta que se faz ecoar misteriosamente a revelação da Palavra, porque é o

    Espírito quem a dinamiza. Mais ainda: porque é a uma Pessoa que escutamos,

    Jesus Cristo! A Palavra de Deus “deve, antes de tudo, ser ouvida”8 (numa escuta). A

    escuta de um interlocutor, tal como na ordem shemá, Israel (Dt 6,4).

    O tema da escuta permitirá abrir horizontes para um novo modus operandi,9 

    porque possibilita a relação com a Palavra, que, por sua vez, é dinamizada pelo

    Espírito. A escuta acaba por tornar-se o grande sinal do que já nos indicava o

    7 MANNUCCI, Valério. Bíblia palavra de Deus. São Paulo: Paulus, 2008, p. 37.8 Id., ibid.9 No latim seu significado remete a um modo de operar, um modo de agir. É o modo ou o jeito peloqual cada um age em sua vida, em seu dia a dia.

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    Concílio Vaticano II: aquela abertura do diálogo. Sem a escuta, não se pode chegar

    ao diálogo.

     Adquirimos certa convicção de que o encontro com as pessoas, a inserção nasociedade, em nosso mundo, e quiçá a relação conosco mesmos, depende

    fundamentalmente e, sobretudo, de nossa capacidade de escutar. Sem a escuta, é

    impossível o diálogo tal qual nos propunha o Concílio. Consequentemente, a escuta

    pode materializar as implicações que a relação entre Palavra e Espírito pode trazer à

    nossa vida de fé ou à nossa vida cristã. Dessa atitude de escuta, pode sobrevir uma

    nova forma de posicionar-se na vida. Disso podem depender novas relações, se a

    escuta é, sobretudo, uma relação com a revelação divina, sua Palavra e seu

    Espírito. É verdade também que a escuta pode instaurar uma nova maneira de

    relacionamento com os seres humanos que somos nós. Pode transformar nossa

    maneira de nos relacionarmos conosco mesmos,10  com os outros e até nossa

    relação com as “coisas”.11 

    Definidas essas “pretensões”,12 não esquecemos que tudo isso é um grande

    desafio. E não devemos perder de vista os grandes desafios existentes no mundo

    em que vivemos. Numa sociedade como a nossa, constatamos, especialmente nasáreas urbanas, a “cultura do barulho”.13 Numa cultura como a nossa deparamos com

    sons ensurdecedores, que nos agridem continuamente. Nas ruas, o ronco de

    motores de veículos e buzinas; em casa, a televisão, o rádio; e em toda parte

    palavrões dos mais variados. Mesmo em nossas comunidades cristãs, observava

     Adélia Prado: “não faltam caixas de som cada vez mais potentes de sons

    10  Enfatizo essas palavras para referir-me especialmente à maneira pela qual nós nos escutamos.

    Quando digo que a escuta pode mudar nossa maneira de escutar a nós mesmos, quero apontar parauma perspectiva nova de as pessoas relacionarem-se consigo mesmas.11  A escuta também pode ajudar na formação de um novo modo de relacionar-se com as coisas.Quero dizer, especialmente, com a matéria, com o universo dos objetos. Não é grande apreocupação do mundo atual com o consumismo? Preocupação que nos leva a ser dominados ounos deixarmos dominar pelas coisas, pelo apego às coisas?12 Tais pretensões são exatamente os objetivos específicos deste trabalho.13 ALVES, Ephraim Ferreira. A arte de meditar: princípios fundamentais e sugestões práticas. GrandeSinal,  fasc. 3, n. 01-03, mai.-jun. 2001, Petrópolis (RJ), p. 293-295. Conferir também reportagem narevista do jornal Folha de S.Paulo, relatando alguns estudos sobre a medição dos decibéis na cidadede São Paulo: vivemos com níveis de ruído muito acima do recomendado. Com o excesso debarulho, os médicos alertam para os danos à saúde, e o mercado de janelas antirruído comemora – aprocura, dizem, nunca foi tal alta! (RIBEIRO, Bruno. Silêncio, por favor. Revista de Domingo. Folha de

    S.Paulo, 28/08/2011, p. 38-44). Conferir também recente exortação do papa Bento XVI aos jovens naJornada Mundial da Juventude (JMJ) em Madri. O papa estimula a juventude a escutarverdadeiramente as palavras do Senhor (Semanário da Arquidiocese de São Paulo, ano 56, n. 2864,23 a 29 de agosto de 2011, p. A3).

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    altíssimos”.14  Não é exagero nenhum afirmar que são inúmeras as pessoas

    queixosas de não terem sido capazes de escutar e serem escutadas. A

    impossibilidade de escutar e ser escutado(a) leva a uma das maiores angústias que

    nos assolam na realidade em que vivemos. Ao mesmo tempo em que não

    praticamos a escuta, também não a vemos ser praticada.

    Numa realidade pastoral, é possível notar essa dificuldade de escutar. Mesmo

    a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por suas “orientações

    pastorais”,15  reconhece, pela experiência pastoral, a dimensão do problema

    existente. Problema particularmente presente na vida dos jovens: “O desafio para o

     jovem – assim como para todos os que aceitam Jesus como caminho, verdade e

    vida – é escutar a voz de Cristo em meio a tantas outras vozes”.16 O problema está

    entre nós e os desafios presentes.

    É nesse contexto que vivemos a nossa fé em Cristo. É nessa realidade que

    vivemos nossa vida. E, em se tratando de vivência da fé, por estes tempos, temos

    deparado com um grande número de pessoas que não escutam mais a Palavra de

    Deus, a Sagrada Escritura especialmente – isso sem falar da escuta do Espírito. Os

    “sinais dos tempos”, evocados por João XXIII no Concílio Vaticano II, tornaram-sesimplesmente um mistério, porque desaprendemos a escutar.

    Diante dessa cultura do barulho, torna-se difícil escutar a Palavra de Deus, e

    mais ainda seu Espírito – na hipótese de que seja possível escutar a Palavra sem o

    Espírito, pois é o Espírito que dinamiza a Palavra de Deus na vida e no coração do

    fiel. Por conta disso, não tomamos consciência de que o encontro com a Palavra de

    Deus tornou-se precário, diminuído, substituível. O encontro com a Palavra de Deus

    é continuamente substituído pelo contato com outros objetos ou realidades que

    comovem ou atraem mais incisivamente homens e mulheres do nosso tempo, como,

    por exemplo, a TV, a Internet e os celulares de alta tecnologia. Estes últimos são a

    febre do momento, e até as crianças os utilizam. O uso desses recursos eletrônicos

    14 PRADO, Adélia. Missa é como poema, não suporta enfeite nenhum. Vida Pastoral, n. 267, jul.-ago.2009, São Paulo, p. 3-4.15 São também chamadas de Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE).Essa problemática, que é de cunho social, reflete-se no âmbito pastoral da Igreja. Há tempos já vem

    sendo detectada nos últimos documentos pastorais da Igreja (Evangelização da juventude,  n. 60,2007, p. 32 [Publicações da CNBB, n. 3]). Está presente também no documento mais atual, fruto da Assembleia da CNBB deste ano (DGAE, n. 94, 2011-2015, p. 53).16 Evangelização..., op. cit., p. 32.

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    provoca experiências mais imediatas de prazer e satisfação, não compromete, não

    nos exige, basta consumir. Diferente é o encontro com a Palavra de Deus.

    Ora, o que pode ser mais fundamental para nossa fé, se não o que estásendo deixado de lado, isto é, o encontro com a Palavra de Deus e seu Espírito?

    Logo, a escuta17  da Palavra de Deus no dinamismo do Espírito torna-se questão

    central. Saber identificar a ação da Palavra de Deus em nossa vida, ou o que a

    Palavra de Deus quer dizer no concreto de nossa existência, mostra-se como uma

    obrigação. No que a Palavra de Deus pode nos orientar? O que ela significa para

    nossa vida? Ou, com base em suas indicações, que referência dela podemos obter

    para nossa opção de vida ou nossas decisões, e também nossos princípios e

    valores? Tudo isso se torna fundamental para nós quando nos damos conta de que

    a Palavra de Deus não age sem o Espírito, nunca está dissociada do pneuma (VD,

    n. 16, p. 36).18 O Espírito sempre acompanha, dinamiza e dá vigor, revitalizando a

    Palavra. Além disso, não é demais lembrarmos o profeta Isaías, que nos fala sobre a

    Palavra de Deus: “Buscai o Senhor enquanto se deixa encontrar, invocai-o enquanto

    está perto” (Is 55,6).

     A Palavra de Deus19

     está presente em nós e entre nós. Nunca se negou aagir na vida da Igreja e na vida do cristão. A Palavra de Deus e seu dinamismo

    provocado pelo Espírito em nós, em nosso coração e na vida de homens e mulheres

    que vivem neste mundo,20  tornam-se uma necessidade absoluta. Deveríamos por

    ora (re)despertar para essa dimensão. Depurar-nos do que nos impede de valorizar

    essa dimensão da escuta da Palavra de Deus e do dinamismo do Espírito.

    17  Lembrar que ao povo de Israel pediu que o escutasse (Dt 6,4). Sobre este tema da escutaespecificamente (LORENZIN, Tiziano. “Ouve, Israel” A escuta na Bíblia. Grande Sinal, v. 61, n. 64, jul.-ago. 2007, Petrópolis, RJ, p. 512-520; PEYRON, Francisco. Rezar é escutar. Grande Sinal, v. 63,n. 5, set.-out. 2009, p. 471-477).18  Diz a mesma exortação apostólica sobre a Palavra de Deus que “não podemos chegar acompreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a inspirou”.19 É preciso deixar claro que, quando dizemos “Palavra de Deus”, a entendemos tal qual a Igreja: deforma ampla, não restrita exclusivamente à Sagrada Escritura.20 Existe a afirmação de que só haverá “um modo dignamente humano de falar sobre Deus, se se

    consistir em primeiro lugar e sobretudo se tentarmos escutá-lo” (FAUS, José I. González; VIVES,Josep. Crer, só se pode em Deus. Em Deus só se pode crer. Ensaio sobre as imagens de Deus nomundo de hoje. São Paulo: Loyola, 1988, p. 16).

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    1º CAPÍTULO: A DEI VERBUM

     A Dei Verbum seguiu os mesmos passos das sessões do Concílio Vaticano

    II.21 Começou quando se abria o Concílio, em sua primeira sessão, e quase quando

    se encerrava a última sessão do mesmo Concílio, poucos dias antes, esta

    Constituição era enfim aprovada e promulgada. A Dei Verbum22  foi um dos mais

    importantes documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), assim consideram

    importantes estudiosos

    23

      do tema. Alguns padres do Concílio expressam comclareza os avanços da Dei Verbum. Levando em consideração as tensões no

    processo redacional,24 vários padres do Concílio tiveram a firme atitude de expor seu

    ponto de vista. O exegeta e cardeal Florit assim se manifestava sobre o projeto da

    Dei Verbum: 

    “é uma das mais breves entre as promulgadas pelo Concílio, mas ao

    mesmo tempo uma das mais ricas em doutrina e ainda a coloca no coraçãodo mistério da Igreja e no centro do ecumenismo”.25 

    Outro exegeta, o S. E. Mons. Weber, arcebispo de Estrasburgo, diz “que a Dei

    Verbum  foi o prefácio da Constituição Lumem Gentium  e, ao mesmo tempo, é

    prefácio de todos os documentos conciliares”.26 

    21  Cf. JIMÉNEZ, G. Humberto. Dei Verbum. Historia de su redacción. Cuestiones Teológicas yFilosóficas, v. 32, n. 78, 2005, Medellín (Col), p. 209-224. Esse autor fez seus estudos em Teologia

    antes do Vaticano II. Trata-se de um biblista. Foi também aluno de Sebastian Tromp, que mais tardeacabaria sendo o secretário da comissão teológica no Concílio Vaticano II. Ver também o excelenteartigo sobre a Dei Verbum, escrito de forma sintética e concisa, em DTF, p. 194-198.22 Fala-se também da celebração dos 40 anos da Dei Verbum (cf. LLAGUNO, Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada? Proyección, v. 52, n. 219, ed. 219, out.-dez.2005, Granada, Esp, p. 349-370).23  Alguns estudiosos referem-se à Dei Verbum  como um documento de “grande relevância” emrelação aos demais documentos do Concílio Vaticano II: Piazza, por exemplo, considera que a DeiVerbum ocupa no Concílio uma posição-chave (RDV, p. 15). Gregorio Ruiz destaca esse documentopor sua importância, vital à revelação. O documento merece louvor porque o tema da revelação é quecria, constitui e mantém a Igreja (ComDV, p. 4); para Latourelle, a Dei Verbum é um documento quepode ser visto como o primeiro entre os grandes documentos do Vaticano II (cf. LATOURELLE, René.Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 369).24  Em DTF (p. 190) há uma observação interessante sobre a redação dessa Constituição, referidacomo uma “odisseia”. Aí também se afirma que “não é arriscado dizer que a Constituição DogmáticaDei Verbum seja o documento mais qualificado do Concílio Vaticano II”.25 LYONNET, Stanislas. A Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum. São Paulo: Paulinas, 1971, p. 9.

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     Ao longo da elaboração da Dei Verbum,  ocorreram embates memoráveis.

    Não há dúvida de que essas tensões foram fruto das mentalidades divergentes27 

    presentes no Concílio. Os conflitos que emergiram durante o Concílio já estavam

    presentes antes mesmo do início. Até a promulgação da Dei Verbum (18/11/1965),

    três longos anos se passaram. Em relação aos demais documentos do Concílio, a

    Dei Verbum foi o que mais tempo tomou para sua aprovação final.

     Antes de analisar a Dei Verbum, é conveniente tomarmos conhecimento de

    seu contexto, do lugar em que  foi redigida. Contextualizá-la será importante, pois 

    sua elaboração não se deu no vazio, nem sem nexo com outras realidades

    circundantes. A Dei Verbum foi um documento elaborado a várias mãos,28  e está 

    situada em dois contextos: o eclesial e o histórico. A Dei Verbum insere-se

    primariamente nesse grande contexto de Igreja, um marco eclesial, que é, sem

    dúvida, o Concílio Ecumênico Vaticano II. Deste evento, projeta-se todo seu

    itinerário de redação, e seus debates. Era previsível que, em sua elaboração,

    estivessem presentes as diferentes visões de Igreja e de mundo. De outro lado, com

    uma proposta contrária à dos padres da Cúria, estavam, em maior número, os

    padres que esperavam grandes mudanças na Igreja. Esperavam sinceramente as

    mudanças necessárias, pelas quais já se gritava havia décadas. E várias delas já se

    encontravam em vias de concretização no nível dos movimentos.

    26 LYONNET, S. A Bíblia na Igreja..., op. cit., p. 10.27 Eram alguns grupos de padres conciliares que divergiam em suas posições. Com obras publicadasna Coleção Biblioteca de Autores Cristãos (BAC), havia grupos que tinham mentalidade“antiprotestante”, os quais conflitavam durante todas as sessões com outro grupo que estava mais

    ligado ao movimento ecumênico (cf. ComDV, p. 129; KLOPPENBURG, B., Concílio Vaticano II, op.cit., p. 78).28 Refiro-me aos demais conciliares responsáveis pela sua elaboração: a comissão antepreparatória,a comissão preparatória, a comissão teológica, as subcomissões e, é claro, os peritos.

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    1.1. O CONTEXTO ECLESIAL DA DEI VERBUM

    1.1.1. O Concílio Vaticano II

    Para melhor compreensão da Dei Verbum, é preciso rever 29  o Concílio

    Vaticano II.30

     Este Concílio, o vigésimo primeiro31

     da história da Igreja, foi o evento-marco em que a Dei Verbum foi elaborada. É nessa assembleia conciliar que

    teremos de situar nosso documento temático. 

    Muitos consideram o Vaticano II um dos maiores eventos eclesiais de todos

    os tempos.32 E havia mesmo alguns que, nos bastidores, apontavam-no como um

    Concílio francês. O Vaticano II não foi, entretanto, um evento “isolado” no mundo,

    nem se pode entendê-lo como um acontecimento gerado somente na “segunda

    metade do século XX”.33  Faz-se necessário identificar algumas forças que o

    “influenciaram”,34  como, por exemplo, os movimentos bíblico-litúrgicos. Ademais, o

    Concílio foi, por assim dizer, uma resposta-reflexo às mudanças em

    desenvolvimento no mundo daquele tempo, e já era propósito do papa João XXIII,

    ao abrir o Concílio, buscar abertura e diálogo com o mundo. Entre os padres do

    29  É a proposta de Dom Demétrio Valentin, bispo de Jales (SP), em sua obra Revisitar o Concílio

    Vaticano II, São Paulo, Paulinas, 2011, 61 p.30  Nos 40 anos do Concílio Vaticano II, por este tempo, foram publicados diversos artigos emcelebração a este evento. Indicamos alguns artigos que podem iluminar seu significado para a Igreja(cf. GOPEGUI, Juan A. Ruiz. Concílio Vaticano II. Quarenta anos depois. Perspectiva Teológica, anoXXXVII, n. 101, jan.-abr. 2005, Belo Horizonte, p. 11-30; CODINA, Victor. El Vaticano II, un Concilioen proceso de recepción. Selecciones de Teología, v. 177, n. 45, jan.-mar. 2006, Barcelona, Esp, p.5-18; ZULUAGA, Mario Alberto Ramírez. A los cuarenta años de la inauguración del Concilio VaticanoII. Cuestiones Teológicas, 84/02, jun. 2003, Medellín, Col, p. 29-55; DTF, p. 1040-1049).31 Sua santidade, o papa João XXIII, proferiu o discurso na abertura solene do Sagrado Concílio, em11 de outubro de 1962.32  ARIAS, Gonzalo Tejerina (coord.). Vaticano II. Acontecimiento y recepción. Estudios sobre elVaticano II a los cuarenta años de su clausura. Salamanca (Esp): Universidad Pontificia deSalamanca, 2006, p. 9.33 COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. In: TAVARES, Sinvaldo S.(org.). Memória e profecia. A Igreja no Vaticano II. Petrópolis (RJ): Vozes, 2005, p. 97.34 Quando digo influências, refiro-me aos movimentos que influenciaram os conciliares, influenciandoassim o próprio Concílio.

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    Concílio, havia os que faziam parte de alguns daqueles movimentos, que, por sua

    vez, estavam impactados com as mudanças antes do Concílio, como a nova

    teologia. Na “nova teologia em gestação, surgia uma nova geração de teólogos que

    se destacariam no próprio Concílio, como Congar e Rahner”.35 E os que estudam o

    Concílio reconhecem a Dei Verbum  como um documento “ecumênico, de

    atualização e pastoral”.36  Por isso a linguagem do Concílio é acessível, de fácil

    compreensão.

    1.1.1. Os movimentos que inf luenciaram o Vaticano II

    O Concílio Vaticano II é reflexo de um longo período de caminhada da Igreja,

    e houve vários fatores que o influenciaram. Uns mais, outros menos, como os

    movimentos, por exemplo, entre os quais abordaremos aqueles que mais marcaramo processo de elaboração da Dei Verbum, os movimentos bíblico, litúrgico,

    ecumênico e teológico.

    O primeiro é o movimento bíblico, porque tem como eixo a Bíblia. Uma

    renovação estava se desenvolvendo no interior da Igreja e em vários países.37 Este

    movimento é o que lançaria mais luzes na elaboração da redação do futuro

    35 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 38.36  É utilizado usualmente o termo “aggiornamento” para referir-se ao movimento de autênticarenovação ou atualização que marcou o Concílio. Não é só João Batista Libanio que enfatiza essas“características” do Concílio, mas é consenso entre todos os vários estudiosos (LIBANIO, J. B.Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005, p. 67).37 Desde o século XIX, na França, Bélgica e Alemanha já havia uma forte ação de retorno à Bíblia.Dali se fomentaram cada vez mais o uso e o estudo desta, reconhecendo que talvez a Bíblia tivessesido “esquecida” pelos católicos até então e também levando em conta a traumática experiência daera pós-tridentina, que sucedeu a reforma protestante (com sua insistência na exclusividade daBíblia) e que gerou um certo “abalo” na relação com a Bíblia. Eis alguns aspectos que fizeram partedo movimento bíblico: a) a aceitação do estudo da Bíblia com base no método histórico-crítico (1930);

    b) a criação da Escola Bíblica de Jerusalém (1938); c) a publicação da Encíclica Divino AfflanteSpiritu  (1943), de Pio XII, carta magna dos exegetas; d) a descoberta dos manuscritos de Qumram,que deram novo impulso aos estudos bíblicos (1947); e) começa a se pensar numa teologia bíblica etambém na espiritualidade bíblica (COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 104-105).

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    documento Dei Verbum. O estudioso J. B. Libanio, entre outros que se

    aprofundaram nessa temática, afirma:

    “por este movimento a Igreja experimentou os anseios de renovaçãopropostos pela Modernidade. A modernidade entrou no mundo bíblico deforma que o contato com a Ciência e com novos métodos como o histórico-crítico possibilitou uma nova maneira de ‘manusear’ a Bíblia. Dessa formaocorreu um interesse pessoal do fiel na leitura e no estudo da Escritura”.38 

     As características desse novo impulso dos estudos bíblicos dão sentido à

    influência exercida sobre a Dei Verbum. Com essa nova experiência de retomada da

    centralidade da Palavra de Deus, era necessário um documento que pudesseesclarecer de forma segura e sólida alguns princípios para o uso da Bíblia, e este

    veio a ser a Dei Verbum.39 

    O segundo movimento é o litúrgico, que estava em andamento com diversas

    iniciativas em torno da liturgia e da participação ativa dos fiéis batizados, até mesmo

    e especialmente os leigos.40  No mesmo espírito de renovação, ocorriam várias

    ações ecumênicas. Estas, por sua vez, buscavam maior proximidade entre as

    denominações religiosas. Mais tarde, às vésperas do Concílio, a Igreja Católica

    acabaria aderindo a essas ações.41 

    Por último, mas não menos importante, o movimento teológico ou da nova

    teologia. Este movimento desenvolvia-se havia décadas em torno da reflexão sobre

    a volta às fontes, o retorno à patrística e o contato mais próximo com a Sagrada

    38 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 25. 

    39 A Dei Verbum não foi só um documento iluminador no tocante à Palavra de Deus, mas sobretudo

    suscitou outros estudos e documentos após sua promulgação. Um deles e muito importante é odocumento publicado pela Pontifícia Comissão Bíblica em 1993, sobre a interpretação da Bíblia. Omais recente nessa linhagem de estudos é o “Verbum Domini: exortação apostólica sobre a Palavrade Deus na vida e na missão da Igreja”, de 2008.40 Esse movimento teve sua origem nas primeiras décadas do século XX (1909), no interior de algunsmosteiros belgas. Dom Lambert, no mosteiro beneditino de Monte-César, divulgava milhares deexemplares de texto de missa de cada domingo, traduzido e comentado. Levando os católicos àdevida participação na liturgia, especialmente os leigos. Tal atitude propagou-se para além daBélgica, espalhando-se por diversos países, originando uma profunda “renovação” na liturgia (cf.COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 101-102).41  Id., ibid.,  p. 102-104. No tempo da Segunda Grande Guerra, nos países onde incidiu maiscruelmente o terror, católicos e protestantes acabaram tendo certa aproximação. Atividades comunsamenizariam o sofrimento de muitos soldados de um lado e de outro, tanto quanto de importantes

    setores das populações. Até o Vaticano II, diversos passos já haviam sido dados na direção doecumenismo, mesmo sem a presença de parte dos padres da Igreja Católica, estes da Cúria romana,por exemplo. Já durante o Concílio, porém, tornara-se irreversível o envolvimento da Igreja com oecumenismo.

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    Escritura. Este movimento retomava de forma revigorada o retorno à teologia dos

    santos padres e igualmente à centralidade da Palavra de Deus (Sagrada Escritura)

    na vida cristã. Grandes expoentes dessa “nova teologia” contribuíram para o

    surgimento de diversas publicações42 e também se destacariam no Concílio.

    1.1.2. O ambiente histórico-social e eclesiástico às vésperas do Concílio

     Às vésperas do Concílio, o mundo alcançara enormes mudanças, que neste

    trabalho não seria possível identificar. Numa esfera mundial do pós-Segunda

    Guerra, a guerra fria marcava as relações entre os países,43 e o surgimento de um

    “Terceiro Mundo” já se avistava, no qual, assim como na Europa, a Igreja teria que

    ser repensada.44  O êxodo rural crescia, provocando o aumento das cidades e o

    surgimento de grandes metrópoles como São Paulo e Cidade do México, porexemplo. A explosão, naquele período e nos anos seguintes, em larga escala da

    “miséria em diversos países do Terceiro Mundo principalmente era perceptível e

    fazia pouco tempo que o ser humano chegara à Lua; na esfera política ocorria o

    recrudescimento da relação capitalismo-socialismo-comunismo”;45  a popularização

    dos meios de comunicação crescia ano após ano desde o advento da televisão, e o

    mundo iniciava seu processo de globalização. Tudo isso era mais, muito mais que

    um mundo em mudança.

    Numa dimensão menor, mas preocupante, a Igreja internamente passava por

    tempos difíceis, antes e depois da Segunda Grande Guerra (de 1939 a 1945). Além

    42 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 106-108. Especificamente no âmbito da teologiacatólica, ocorreu também uma profunda renovação. O movimento teológico configurava-se como umanova teologia, marcada pela renovação da volta às fontes patrísticas e bíblicas. Tal renovação vinhaoriginalmente da Bélgica, França e Alemanha, especialmente de jesuítas e dominicanos. Podemosdestacar alguns nomes presentes nesses inícios que mais tarde tiveram grande atuação no futuroVaticano II: J. Danielou, K. Rahner, Y. Congar, M. D. Chenu, H. de Lubac. Surgiam tambémperiódicos notáveis como o Étude  e o Recherches de Science Religieuse, assim como as revistas

     Angelicum, L’Année, e outras que renovaram a teologia da época.43 Id., ibid., p. 95.44 Id., ibid., p. 96.45 Id., ibid. 

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    das grandes mudanças no mundo, também houve profundas transformações dentro

    da Igreja. Leão XIII faz a transição do século XIX para o século do Vaticano. 46 Antes

    do Vaticano II, a Igreja conhece a era dos papas “Pios: Pio X (1903-1914), Pio XI

    (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Tempo de centralismo e firme defesa da fé

    católica e também irredutível na abertura ao mundo moderno que já se iniciara no

    século XIX”. A Igreja, mesmo diante das mudanças no mundo, encontrava-se

    paralisada, estagnada. O que impera é o continuísmo, o imobilismo doutrinário e o

    fortalecimento da hierarquia.47  Posturas que a Igreja, especialmente a hierarquia,

    haveria de rever no novo Concílio.

     Apesar do anacronismo, há sinais de renovação na Igreja, com avanços e

    retrocessos. Além dos movimentos (cf. o item 1.1.1.), há a busca de respostas aos

    questionamentos de um mundo em mudança: no diálogo com outras religiões, por

    exemplo. Isso também expõe “indícios de insatisfação com as posições da Igreja,

    especialmente da hierarquia”.48 

    O papa Pio XII (1939-1958) chegava ao fim de seu pontificado. Angelo

    Roncali sucede-o em meio a grandes dúvidas e preocupações sobre a sucessão.

     Angelo então é eleito papa em outubro de 1958. Não foram poucos os que até entãopensavam que o novo papa seria um “papa de transição, por sua idade avançada.

    Na época de sua eleição, João XXIII estava com 77 anos”.49  Na escolha de seu

    nome, “João, o novo papa inovava. Pois, escolhendo ser chamado de João, levava

    em conta sua origem familiar”.50 

    46 COSTA, S. R. da. Contexto histórico..., op. cit., p. 98.47 Id., ibid. 48 Id., ibid., p. 100.49 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59.50 Id., ibid., p. 61.

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    1.1.3. Do anúncio do Concílio à sua abertura

     A expectativa de que o novo papa fosse apenas de transição foi rapidamente

    desmentida. Três meses depois de sua eleição, João XXIII anuncia importantes

    eventos.51 Na celebração da conversão de São Paulo, “o papa anuncia aos cardeais

    presentes sua vontade que imediatamente produziu grande surpresa a todos, que

    em breve o mundo tomaria conhecimento”.52  As reações da parte dos cardeais

    foram distintas: alguns a acolheram bem, mas outros receberam-na com resistências

    e desaprovação. Já estava posto sobre a história da Igreja este grande projeto, que

    o papa considerava como “obra do Espírito Santo”.53 Kloppenburg diz que o anúncio

    do Concílio levou “surpresa ao mundo e à esfera eclesiástica”.54 Até o próprio papa

    se surpreenderia em seguida com o desenvolvimento do projeto. Lembramos a

    finalidade do Concílio, que em sua primeira encíclica, a  Ad Petri Cathedram, 

    manifestava: “a finalidade deste Concílio é: 1) incremento da fé, 2) renovação dos

    costumes e 3) adaptação da disciplina eclesiástica às necessidades do tempo

    atual”.55 

    Noutro momento, João XXIII dizia: “o principal escopo do Concílio é

    apresentar ao mundo a Igreja de Deus em seu perene vigor de vida e de verdade”. 56 

    Precisamos realçar os objetivos do Concílio para mostrar tudo quanto iluminou o

    processo de elaboração da Dei Verbum. E tais finalidades foram iluminadoras para

    sua redação tanto quanto para a superação das tensões quando estas surgiram.

     Após o anúncio do Concílio, a sua preparação deu-se gradualmente. Alguns

    autores afirmam que o Concílio já estava sendo preparado desde os primeiros sinais

    de surgimento dos grandes movimentos de renovação: o bíblico-patrístico, o

    51 No dia 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII anuncia o sínodo romano, a revisão do Código deDireito Canônico e o Concílio (LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca..., op. cit., p. 59).52 Id., ibid., p. 60-61.53  Id., ibid., p. 59. Conferir também KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 7. Háalguns teólogos que identificam o Vaticano II como Concílio do Espírito (cf. BALTHASAR, H. U. Von .

    El Concilio del Espíritu Santo. In: Puntos centrales de la fe. Madri: BAC, 1985, p. 85-104).54 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 11. 55 Id., ibid., p. 15.56 Id., ibid., p. 16.

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    teológico e o litúrgico.57  E também com as luzes lançadas pela publicação das

    animadoras encíclicas de Leão XIII, entre elas, a Providentissimus Deus, e a mais

    próxima do Concílio, a Divino Afflante Spiritu,  de Pio XII. Mais adiante (em

    17/5/1959), João XXIII nomearia a comissão antepreparatória, para dar início à

    preparação do futuro Concílio. Esta comissão foi presidida pelo cardeal Domenico

    Tardini. Fica então estabelecido que esta comissão enviaria cartas às mais diversas

    instâncias católicas do mundo inteiro, pedindo sugestões para assuntos ou temas a

    serem tratados no Concílio.58 O retorno das respostas foi alentador, sendo de mais

    de 70%. Completada aquela fase, na solenidade de Pentecostes (5/6/1960), inicia-

    se a “fase preparatória”, isto é, a criação das comissões,59  mais a Comissão

    Central,60  presidida pelo papa. Cabe lembrar que a Comissão Teológica ficara“encarregada de examinar as questões a respeito da Sagrada Escritura, a Sagrada

    Tradição, a fé e os costumes”. A esta comissão reservou-se a tarefa de elaborar a

    redação da futura Dei Verbum.  A Comissão Teológica  foi presidida pelo cardeal

    Ottaviani.61 Daí até a abertura do Concílio, o papa ainda se reúne algumas vezes

    com as diversas comissões, especialmente com a Comissão Central, preparando

    gradualmente o Concílio.

    1.1.4. Abertura e andamento da Assembleia Conciliar

    Em 11/10/1962, o papa João XXIII abre o vigésimo primeiro Concílio

    Ecumênico da história da Igreja. Recorda alguns concílios anteriores, esclarece a

    57 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 25-27. Outros autores, entre os quaisJoão Batista Libanio, propõem a mesma linha de raciocínio.58 Id., ibid., p. 49. Cf., também, RDV, p. 18.59 Foram dez as comissões nomeadas pelo papa João XXIII, para que preparassem o Concílio (cf.KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. 1, p. 54; e também RDV, p. 18).60 Esta comissão era constituída pelos presidentes das respectivas comissões, e sua tarefa era seguire coordenar, se necessário, os trabalhos de cada comissão (cf. KLOPPENBURG, B. ConcílioVaticano II, op. cit., v. 1, p. 56).61 Id., ibid.

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    origem e causa do atual Concílio e ainda reafirma a finalidade deste.62 Na abertura

    do Concílio havia cerca de 2.650 pessoas presentes. Da abertura até seu

    encerramento passaram-se quatro anos. De outubro de 1962 até 18 de dezembro de

    1965, ocorreram quatro grandes sessões.63  A Dei Verbum,  nosso documento de

    estudo, foi redigida precisamente em sessões que corresponderam exatamente às

    quatro sessões realizadas no Concílio.

    2. O CONTEXTO HISTÓRICO DA DEI VERBUM 

    Quanto ao contexto histórico da Dei Verbum, ele é permeado de tensões. A

    história de sua redação é polêmica em todo o seu percurso. Desde as primeiras

    consultas conciliares até sua promulgação definitiva em 1965, seis anos

    transcorreram, sem contar os cem anos precedentes, que gestaram os conteúdos dodocumento. Quatro esquemas precederam o texto definitivo.64 O contexto histórico

    da Dei Verbum  pretende remontar seu itinerário de redação a seus respectivos

    esquemas, aos personagens mais significativos para sua redação, a sua estrutura e

    a seu tema mais importante.

    62 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 3ª ed. São Paulo:Paulus, 2004, 733 p.63 Ver as sessões do Concílio de forma resumida, em trabalho de Claude Bressolette, DCT, p. 1821-1823. A primeira sessão realizou-se de 11/10 a 08/12 de 1962; a segunda sessão, de 29/09 a 04/12

    de 1963; a terceira sessão, de 14/09 a 21/11 de 1964; e a quarta e última sessão, de 14/09 a 08/12de 1965.64 SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar a Palavra – as grandes intuições da Dei Verbum. Estudos daCNBB, n. 91, p. 59.

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    2.1. As grandes influências sobre a Dei Verbum 

    Podemos dizer que várias influências foram exercidas sobre a Dei Verbum.

    Destacamos três grandes influências: o espírito conciliar, os movimentos de

    renovação e alguns documentos do Magistério da Igreja.

    a) A primeira influência

    Ela vem do espírito conciliar.65  Este espírito envolveu os grandes

    protagonistas da redação da Dei Verbum. E por isso pôde matizar o estilo redacional

    desta Constituição. Este espírito conciliar promovido inicialmente por João XXIII foi

    sustentado e firmemente experimentado pela maioria dos padres conciliares, e de

    forma incisiva refletiu-se, sobretudo, na Dei Verbum. Ele traduziu-se no espírito de

    renovação, de caráter pastoral, ecumênico, e no diálogo com as demais religiões,

    tanto quanto com a sociedade e as ciências.

    b) A segunda influência

     A segunda influência veio dos movimentos da Igreja, formadores, certamente,

    dos “ventos” que soprariam sobre todos os conciliares. Entre eles, recebendo

    destaque especial os que protagonizaram sua elaboração. E dos quais os mais

    importantes foram os movimentos bíblico-litúrgicos, o movimento ecumênico e omovimento da nova teologia, acolhendo, sobretudo, os grandes avanços que a

    ciência bíblica até então havia alcançado. Também a experiência ecumênica de

    vários padres conciliares em diversos países contribuiu para influenciar essa

    Constituição.

    65 Com espírito, quero dizer o que moveu o Concílio e as finalidades que João XXIII via no Concílio,como diálogo, os avanços ecumênico e pastoral, o aggiornamento.

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    c) A terceira influência

    a) a Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,66 do Vaticano I.

     A Constituição Dei Filius sobre a Fé Católica,67 do Vaticano I, foi, de todos os

    documentos magisteriais, o mais citado. Abaixo, elencamos em que momentos na

    Dei Verbum a  Dei Filius  é citada.68 Esta Constituição merece certo destaque, por

    causa das cerca de 10 citações de trechos seus que aparecem na Dei Verbum.

    Destacamos alguns de seus traços relevantes. A Dei Filius sobre a Fé Católica do

    Vaticano I é um documento gerado num Concílio que ocorre numa Igreja em “busca

    de certezas”.69 A Igreja é confrontada internamente para responder aos ataques, e,

    sobretudo, é confrontada externamente em seu fundamento: a revelação.

    Questionava-se a “possibilidade da revelação de Deus pessoal, criador e redentor”.70 

    Desde a “Revolução Francesa causava impactos à Igreja o rompimento de uma

    ordem patriarcal e hierárquica”71 junto à qual a Igreja de certa forma se estruturava.

    Na época do Concílio Vaticano I, o racionalismo já impunha à Igreja sérias questões.

    É neste contexto de modernidade que situamos o Concílio Vaticano I (de 8/12/1869

    a 18/12/1870) e, portanto, também a Dei Filius. Nesta Constituição está presente a

    preocupação da Igreja em responder de modo claro e firme às questões lançadas

    pela modernidade, condenadas pelo papa Pio IX, especialmente na Encíclica

    Quanta Cura (8/12/1864),72 lançada poucos anos antes do Concílio. E antes Pio IX

    havia lançado outra encíclica, a Qui Pluribus (9/11/1846),73 que já mencionava em

    seu texto alguns temas que seriam reafirmados na Dei Filius. Nesta encíclica tocava-

    se em pontos como: 

    66 Denz. 3000.67 Id., ibid.68  No tema da revelação acolhida com fé (DV, 5); no tema das verdades reveladas é citada duasvezes (DV, 6); no tema da transmissão da revelação divina, os apóstolos e seus sucessores, arautosdo Evangelho (DV, 7); no tema da Sagrada Escritura (DV, 8); na relação da Tradição e da SagradaEscritura com toda a Igreja e com o Magistério (DV, 10); no tema da Inspiração divina e ainterpretação da Sagrada Escritura, Inspiração e verdade na Sagrada Escritura (DV, 11); e nainterpretação da Sagrada Escritura (DV, 12).69 DTF, p. 1036.70 Id., ibid.71 Id., ibid.72 Denz. 2890.73 Id., ibid., 2775.

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    “a. que a nossa religião foi gratuitamente revelada por Deus à humanidadee recebe toda a sua força da autoridade do próprio Deus que fala; b. dodever da inteligência de inquirir sobre o fato da revelação para obter acerteza de que Deus falou; e, por último, c. de que é necessário prestar fétotal a Deus que fala”.74 

     Algumas afirmações da Dei Filius, na Constituição sobre a Fé Católica, são

    inseridas mais tarde na Dei Verbum. A Dei Verbum vai retomar a declaração de que

    a revelação de Deus deve ser recebida com obséquio pleno da vontade e

    inteligência à fé (cf. DV, 5; Dei Filius, cap. 3).75 A Dei Verbum vai reafirmar, como já

    fora feito na Dei Filius,  que é o Espírito Santo quem move e converte a Deus os

    corações, abre os olhos da alma e dá a todos a suavidade e o assentimento naadesão à verdade (DV, 5; Dei Filius, cap. 3).76 

     A Dei Verbum  de certa forma toma como referência a Dei Filius, com

    assuntos que já haviam sido abordados nas encíclicas de Pio IX. Em síntese, há

    alguns temas mais preponderantes, como as fontes da revelação, a necessidade de

    uma revelação sobrenatural, os motivos de credibilidade da revelação, a liberdade

    do assentimento e as virtudes sobrenaturais da fé e sua necessidade, mistérios da

    fé revelada, a relação entre ciência humana e fé divina, a imutabilidade dos dogmas.

    Por sua vez, a Dei Filius, sem dúvida, condicionará a seguir os tratados sobre os

    temas ligados à revelação, pois tem o “grande mérito de compor num documento

    doutrinal o conceito de revelação que é exposto”.77 

    Em suma, a Dei Filius enfatiza:

      Que a revelação sobrenatural é dada no Antigo e no Novo Testamento;

      Que desta revelação Deus é o autor e a causa;  A iniciativa da revelação é de Deus;

      O objeto natural da revelação é o próprio Deus;

      Todo o gênero humano é beneficiário da revelação.78 

    74 LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 301.75 Cf. Dei Filius. In: Denz. 3008.76 Id., ibid., 3010.77 DTF, p. 1038.78 LATOURELLE, R. Teologia da revelação, op. cit., p. 303.

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    Próxima do Concílio veio a público a Encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio

    XII. Esta encíclica foi publicada nas comemorações dos 50 anos da

    Providentissimus Deus. Foi o reconhecimento de que a caminhada da Igreja nos

    estudos da exegese estava no rumo certo. Eis algumas características da Divino

     Afflante Spiritu:

    “abre caminhos para a exegese católica; Deu frutos como a Bíblia deJerusalém e o Comentário Católico de toda a Sagrada Escritura; Valoriza astraduções que partem da língua original; Fala pela primeira vez dos‘gêneros literários’; Convida a se fazer a leitura crítica e histórica da Bíblia ea se utilizar dos muitos resultados das ciências, da arqueologia e daliteratura; Busca uma harmonia entre a exegese e as ciências”.81 

    Na Dei Verbum, as contribuições dessa encíclica estão dispostas:

    * No tema da Inspiração divina e a interpretação da Sagrada Escritura: Inspiração e

    verdade na Sagrada Escritura (DV, 11);

    * No dever apostólico dos estudiosos (DV, 23);

    * Quando recomenda a leitura da Sagrada Escritura (DV, 25).

    3. O ITINERÁRIO DA REDAÇÃO DA DEI VERBUM 

     Anunciado o Concílio, coube à comissão antepreparatória82

      (17/5/1959)contatar os bispos e instâncias católicas do mundo inteiro para se informarem sobre

    os assuntos pertinentes ao futuro Concílio. Após esta fase, foi nomeada pelo papa a

    81 Estudos CNBB, n. 91, p. 24-25.82  Tinha como função contatar todas as instâncias católicas do mundo inteiro. São membros dessaComissão: o cardeal Alfredo Tardini, presidente, e Felici, secretário (RUIZ, Gregorio. Historia de laConstitución Dei Verbum. In: SCHÖKEL, Luis Alonso, ed. Comentarios a la Constitución Dei Verbum.Madri: BAC, p. 40; abreviada como ComDV).

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    Comissão Central83  (5/6/1960). E nesta mesma data se nomeava a Comissão

    Teológica.84 

    Na preparação do Concílio foram criadas outras comissões. Em 27/10/1960,uma subcomissão,85 e, já nas vésperas do Concílio, criava-se a Comissão Doutrinal

    (6/9), que seria a sucessora da Comissão Teológica.86  Durante o Concílio outras

    comissões seriam criadas: a Comissão Mista e o Secretariado para a União dos

    Cristãos.87  Além destas comissões, foram criadas a Comissão Cardinalícia

    Coordenadora; a Subcomissão interna da Comissão Doutrinal e a Comissão

    Teológica, também da Comissão Doutrinal.88 

    Entregue pelo papa à Comissão Teológica o encargo de preparar o textosobre fé, Sagrada Escritura, Sagrada Tradição e Costumes, assim começa uma

    longa jornada de elaboração do texto sobre a revelação divina. Posto em discussão

    na primeira sessão do Concílio, foi um dos primeiros documentos a serem discutidos

    (14/11/1962) e um dos últimos a serem aprovados (18/11/1965). Relembramos

    ainda as sugestões dos bispos, quando dos trabalhos da comissão antepreparatória

     – até sua promulgação foram longos seis anos. Consta que, em grande parte das

    respostas dos bispos e instituições consultadas, os pedidos eram frequentementepara que se tratasse sobre o tema da revelação. Com efeito, já pela longa duração

    de sua redação e o tempo transcorrido até sua promulgação, a Dei Verbum tornou-

    se emblemática. Assim ela foi reconhecida como um documento que “teve a história

    83  RUIZ, Gregorio. Historia de la Constitución..., op. cit.,  p. 40 (ComDV). Esta comissão, agorapreparatória, tinha como função supervisionar e coordenar o trabalho das 10 comissões. Seupresidente era o papa João XXIII, sendo Felici o secretário.84 Recebeu a atribuição de preparar os nove esquemas e, entre eles, o “De fontibus”. Seu presidente

    era Ottaviani e o secretário, Tromp.85  Tinha a função de desenvolver o “esquema compendiosum De fontibus”.  Era presidida porGarofalo.86 Id., ibid. Essa Comissão teria a função de reelaborar esquemas de acordo com as observações dospadres conciliares. Seu presidente era Ottaviani; os vice-presidentes, Browne e Charue; ossecretários, Tromp e Philipps.87  Id., ibid. p. 41. Foram criadas em 24/11/1962. Tinham a função de preparar o segundo esquema.Seu presidente era Ottaviani, para a Comissão Doutrinária, com Browne e Liénart como vices, Tromp,como secretário, e Bea, no Secretariado para a União dos Cristãos, tendo Willenbrands comosecretário.88  Id., ibid.,  p. 42. A Comissão Cardinalícia Coordenadora foi criada em 18/12/1962. Tinha comofunção coordenar os trabalhos do Concílio, seu presidente era o cardeal Cicognani, auxiliado porvários secretários. Já a Subcomissão interna da Comissão Doutrinal foi criada em 7/3/1964. Sua

    função era refundir o segundo esquema de acordo com as observações dos padres. Quem a presideé Charue, e seu secretário é Betti. E a última comissão é a Teológica, criada em 22/9/1965, com afunção de classificar “os modi” dos padres, e presidida por Charue. Não há a informação sobre quemera o seu secretário.

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    mais agitada de todos os documentos conciliares”.89 Quanto ao itinerário da redação

    da Dei Verbum, é importante uma síntese global das votações de seu texto. Consta

    de forma reduzida, nos Documentos da Igreja (2004), uma visão mais ampla das

    votações.90 

     A) O 1º esquema sobre a revelação divina

    Na primeira sessão do Concílio (11/10 a 08/12 de 1962), o 1º esquema sobre

    a revelação divina foi apresentado aos padres conciliares pela primeira vez. E a

    discussão do 1º esquema foi feita na aula conciliar da décima quinta à vigésimaquarta Congregação Geral, de 14 a 21 de novembro de 1962, após a discussão

    sobre “Liturgia. Em seguida, foi posto em discussão o texto sobre a revelação

    divina”.91  No ato de apresentação desta Constituição, havia cerca de 2.220

    conciliares, e ao cardeal Alfredo Ottaviani, presidente da comissão teológica, coube

    apresentar o novo projeto sobre a revelação. Foram sete dias de debates,

    permeados de tensões, até 21 do mesmo mês.92 O projeto apresentado por Alfredo

    Ottaviani não foi aceito. Apesar de, mesmo antes do Concílio, ter sido aprovado pelopapa e depois enviado aos padres antes da aula conciliar,93  este 1º esquema foi

    rejeitado por grande número dos padres do Concílio.94  Este projeto foi alvo de

    severas críticas e, como vemos, recebeu inúmeras emendas de alterações. Este

    esquema inicial teve então que ser revisto em diversos pontos:

    “ele não define a natureza e o objeto da revelação; não fala de Cristo, sumarevelação do Pai; dá demasiada importância à parte polêmica e poucaimportância à parte positiva; dá pouca importância à Tradição; além disso,

    89 SILVA, Valmor da. Ouvir e proclamar..., op. cit., p. 26.90 DOCUMENTOS DA IGREJA. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus,2004, p. 347.91 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., p. 161.92 Id., ibid., p. 162.93  A aula conciliar era a reunião dos padres conciliares para tratar sobre os temas. Esta “aula”chamava-se Congregação, por congregar os conciliares no estudo dos demais assuntos.94 Título: Constituição Dogmática sobre as fontes da revelação; Primeiro Capítulo: das duas fontes da

    revelação; Segundo Capítulo:  da inspiração, inerrância e composição das Escrituras; TerceiroCapítulo: do Antigo Testamento; Quarto Capítulo: do Novo Testamento; Quinto Capítulo: da Escriturana Igreja (RDV, 1986, p. 19). Conferir também o excelente artigo “Historia de la constitución DeiVerbum” (p. 3-43), de Gregorio Ruiz (ComDV).

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    afirmando que a revelação está contida em ‘duas fontes’, opõe a Tradição àEscritura, o que nunca foi ensinado pelo magistério da ‘Igreja’”.95 

     As reações foram fortes, apontando o problema criado por esse esquemaquando se refere a duas fontes da revelação. Ao longo de sete dias de debate,

    vários participantes reagem, proferindo discursos tensos. Vale lembrar o notável

    discurso de Emilio De Smedt (bispo de Bruges, da Bélgica), que fala em nome do

    Secretariado para a União dos Cristãos. Foi graças a este discurso que os padres

    conciliares despertaram para a inadequação do primeiro projeto sobre a revelação

    divina.96 

     Após as reações dos apoiadores e dos críticos ao 1º esquema, encerra-se o

    momento inicial de trabalho sobre o texto da revelação divina, sem contudo avançar.

    O 1º esquema é então rejeitado e recebe uma votação interessante.97 Não havendo

    consenso, o papa João XXIII intervém: nomeia uma Comissão Especial, chamada

    também de comissão mista, que incluía o cardeal Bea.98  Nessa mesma ocasião

    (21/11/1962), o papa comunica em plenário a elaboração de um novo texto,

    recebendo então outro título, agora denominado “De Divina Revelatione”.99  A

    intervenção do papa era necessária para amenizar uma possível radicalização dasposições contrárias.

    B) O 2º esquema sobre a revelação divina

    Na segunda sessão do Concílio não foi possível a discussão do texto sobre a

    revelação devido às dificuldades da primeira sessão. Encerrada a 1ª sessão do

    Concílio (8/12/1962), e não havendo grandes progressos na elaboração do texto, o

    95 RDV, p. 19.96 KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II, op. cit., v. II, p. 179-182. 97 O número de votantes era de 2.209, com as seguintes proporções na votação: “Placet”, com 822apoiadores, e “Non placet”, com 1.368. Com apenas 115 votos a mais de diferença, completar-se-iamos dois terços exigidos pelo regulamento para uma posição (cf. RDV, p. 10).98 O cardeal Agostinho Bea, padre jesuíta, exegeta, presidira até pouco antes do Concílio a PontifíciaComissão Bíblica. No tempo do papa Pio XII, era seu confessor e no Concílio foi designado para

    presidir o Secretariado para a União dos Cristãos.99 Há uma ligeira mudança do título anterior para o de agora, Sobre a Revelação Divina. O anteriorera De fontibus Revelatione  (Sobre as fontes da revelação divina) (cf. KLOPPENBURG, B. ConcílioVaticano II, op. cit., v. IV, p. 94).

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    Concílio declarou o recesso dos trabalhos, e somente em março do ano seguinte

    (1963) o esquema recebeu algumas modificações:

    “mudança do título para ‘De divina revelatione’ (sobre a divina revelação);acréscimo de um proêmio para falar da natureza e do objeto da revelação;‘fórmula de compromisso’, não separar a Escritura da Tradição e nãoafirmar que a Tradição contém mais do que está na Escritura; maiordesenvolvimento dado à parte referente à Tradição”.100 

    Surge o 2º esquema. Ainda no recesso do Concílio, o 2º esquema é enviado

    aos padres conciliares para avaliação. O clima tenso não fora superado, mesmo

    durante o recesso.101 A tensão é tamanha, que o cardeal Florit, na segunda sessão

    do Concílio, sugere que não se retome mais no Concílio o tema da revelação.102

     

    C) O 3º esquema sobre a revelação divina

    Como na segunda sessão do Concílio não fora discutido o texto sobre a

    revelação, em julho de 1964, após as sugestões dos padres conciliares e das

    correções das Comissões (Central e Teológica), é elaborado o 3º esquema. Antes

    de iniciar a terceira sessão do Concílio, em março de 1964, criou-se umasubcomissão na Comissão Teológica que ficou constituída de sete padres

    conciliares e 19 peritos.103  Esta subcomissão estudaria o então 2º esquema e

    apresentaria um novo. A subcomissão reelabora então o esquema anterior e

    apresenta outro.104 

    Em julho de 1964 o 3º esquema é enviado aos padres conciliares durante o

    recesso. Fito isso, a Comissão Teológica altera alguns pequenos detalhes, e o novo

    100 Cf. RDV, p. 19-20.101 É bom salientar que durante o recesso, houve as conversações, o encaminhamento de questõesespinhosas. O texto sobre as fontes da revelação não deixou de ser focado. O recesso (fora daassembleia) fora um momento de amadurecimento sobre o tema. Este recesso foi do fim da primeirasessão (dezembro de 1962) até o início da segunda sessão (setembro de 1963).102 Cf. Id., ibid., p. 20. Ermenegildo Florit era o cardeal de Florença.103  Nessa subcomissão estavam presentes grandes teólogos, como Rahner, Ratzinger, Congar,Moehler e outros (id., ibid.). 104  Proêmio: maior desenvolvimento da noção de revelação (não só palavras, mas fatos...); maiorrelevo à encarnação (revelação em Cristo). Capítulo 1º: no título, aparece a palavra “transmissão”.Maior relevo à Tradição. Capítulo 2º: formulação mais ampla da noção de “inspiração”. Declaração de

    que o trabalho exegético deve estender-se a toda a Escritura (também no Novo Testamento).Capítulo 3º: ênfase dada à história da salvação. Capítulo 4º: ênfase dada à índole própria de cadaevangelho (contra um conceito demasiado estreito de historização). Capítulo 5º: paralelismo entreEscritura e Tradição; encorajamento dos estudos bíblicos e pastorais.

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    papa, Paulo VI,105  poderia abrir a terceira sessão. Agora com as questões mais

    difíceis já refletidas durante o recesso, pôde-se nesta terceira sessão continuar o

    debate sobre o tema da revelação divina. As dificuldades encontradas anteriormente

    tiveram de ser enfrentadas nessa terceira sessão. É claro que o tempo de recesso

    favoreceu de certa forma para que os pontos mais espinhosos fossem abordados,

    sem que, contudo, o texto fosse posto em votação. A discussão desse 3º esquema

    foi feita da nonagésima primeira para a nonagésima quinta Congregação Geral, de

    30 de setembro a 6 de outubro do mesmo ano. Assim, retomava-se o projeto

    centrado na revelação divina logo após a discussão do projeto “De Eclesia”.106 No

    primeiro dia se debateu sobre o primeiro e o segundo capítulo do projeto sobre a

    revelação. Este projeto basicamente foi o foco dos maiores conflitos entre as “duasmentalidades” discordantes, apesar de menos intensos que na primeira sessão.

    Para termos uma ideia das reações, citamos.107 

    Nos demais capítulos, poderíamos apontar pendências no texto sobre a

    inerrância, vista como um tema a ser evitado, por ter conotação negativa. É preciso

    esclarecer mais e melhor o tema da inspiração, levando em conta as sugestões. O

    texto retornou para a subcomissão, sendo então novamente reelaborado. Em 11/11

    de 1964 chega à Comissão Teológica e em seguida é aprovado por ela sem maiores

    dificuldades.108  No dia 20/11 surge o 4º esquema, que é distribuído aos padres

    conciliares.

    D) O 4º esquema sobre a revelação divina

    O 4º esquema chega aos padres ainda na terceira sessão, mas as alteraçõessugeridas serão debatidas somente na seguinte, isto é, na quarta e última sessão do

    Concílio (14/9 a 8/12/1965). O 4º esquema sobre a revelação é debatido e votado

    nas aulas conciliares (da 131ª à 133ª), do dia 20/9 ao dia 18/11/1965. Sobre este 4º

    105  Após a morte do papa João XXIII, Paulo VI é eleito o novo papa, e este continua a obra doConcílio, iniciada pelo antecessor.106 Projeto sobre o mistério da Igreja. Conduzirá à futura constituição dogmática que será denominadaLumem Gentium (LG).107 No cap. 1º, deve-se acentuar a preparação evangélica do Antigo Testamento; ensinar que Cristo é

    a plenitude da revelação, não só em sua pessoa divina como em sua pessoa humana; no cap. 2º,distinguir claramente entre tradição apostólica (doutrinária) e tradições eclesiásticas (institucionais);afirmar o progresso da revelação.108 RDV, p. 22.

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    esquema da Dei Verbum, vamos levar em consideração os apontamentos utilizados

    pela BAC, que são esclarecedores.109 

     Ainda quanto à redação, algumas figuras tiveram grande importância noprocesso redacional. Em destaque estão o papa João XXIII, o cardeal Alfredo

    Ottaviani, o cardeal Agostinho Bea e o bispo Emilio De Smedt. Cada um contribuiu,

    a seu modo, para a elaboração do texto da Dei Verbum. João XXIII, quando

    ressaltou a finalidade do Concílio, deu um caráter pastoral, de diálogo e ecumênico.

     Acabou determinando as grandes linhas da Dei Verbum. O cardeal Ottaviani,

    presidente da Comissão Teológica, daria ao primeiro projeto falando da revelação

    divina um teor estritamente conservador, quando insistia numa redação com o título

    de “duas fontes da revelação”, reflexo de certa teologia ainda tridentina. O cardeal

    Bea foi incisivo em todas as suas intervenções, tanto a pedido do papa João XXIII,

    com quem num primeiro momento aceitara prontamente colaborar na resolução do

    impasse, mas também ao longo do Concílio com sua pertinente atuação. Seu

    empenho para preservar no texto da Dei Verbum  o caráter ecumênico e pastoral,

    pedido desde o início pelo papa, foi fundamental. O cardeal Bea era exegeta e

    também presidente da Secretaria para a União dos Cristãos. A experiência que

    adquiriu no campo do ecumenismo fortaleceu sua posição por ocasião dos vários

    atritos com aquele grupo de mentalidade contrastante. Ademais, Agostinho Bea foi

    “fiel” às finalidades pastoral e ecumênica, definidas desde o início no Concílio por

    João XXIII.

    Por último, lembramo-nos do bispo Emilio Josef De Smedt, de Bruges, na

    Bélgica. De Smedt fez um discurso notável.110 Seguramente, foi graças a esta fala

    que os padres conciliares tomaram consciência das fragilidades do 1º esquema darevelação divina, com o teor “das fontes da revelação” apresentada por Ottaviani.

    109 Dos dias 20 a 22 de setembro houve as votações dos padres sobre o 4º esquema (da 131ª à 133ªCongregação Geral). Logo após, a Comissão Técnica classifica e estuda as “sugestões” dos padres.Depois a Comissão Teológica examina e ratifica os trabalhos da Comissão Técnica, e o papa pede àComissão Teológica para reexaminar três pontos. Depois há a distribuição do fascículo com assugestões e suas respostas. Ocorre em seguida a votação sobre as emendas e a aprovação do texto(155ª Congregação Geral). Em seguida, novo texto da Constituição é distribuído aos padresconciliares, e o secretário geral notifica a qualificação teológica da Constituição. Por fim, vem apromulgação da Constituição Dei Verbum (na oitava sessão pública) (ComDV, p. 39).110  Vale a pena percorrer na íntegra o discurso de De Smedt. Pela lucidez e pela problemática da

    linguagem lançada no Concílio. Não se havia atentado sobre a questão da linguagem. E nos pareceque foi o que o papa João XXIII havia inicialmente apontado. A questão da Igreja não é tanto alterar oconteúdo, mas o uso de uma nova linguagem para o mundo (KLOPPENBURG, B. Concílio VaticanoII, op. cit., v. II. Primeira Sessão, set.-dez. 1962, p. 179-182).

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    Dali em diante as reações conclusivas foram de rejeição daquelas propostas, por

    parte da maioria da assembleia conciliar.

    4. A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM 

     A Dei Verbum é um dos 16 documentos elaborados pelo Concílio Ecumênico

    Vaticano II.111  É uma das quatro “Constituições”,112  todas definidas como

    dogmáticas, exceto a Gaudium et Spes (GS), que é pastoral. A Dei Verbum assume

    a condição de Constituição Dogmática.113 É Constituição, porque é “reservada para

    textos que expõem e discutem verdades doutrinárias, e é Dogmática, porque a eleva

    ao de máxima importância como doutrina que tem valor normativo para a fé da

    Igreja”.114 A Dei Verbum contém seis capítulos e 26 parágrafos. É Dei Verbum por

    tratar da revelação divina. A revelação é seu tema central, e os outros temas

    gravitam em torno dela.

    O objetivo da Dei Verbum vem exposto em seu próprio texto. Ali é dito que,

    seguindo Trento e Vaticano I, vem propor a genuína doutrina sobre a revelação

    divina e a sua transmissão (DV, 1). O documento está assim estruturado:

    111 Constituição Dogmática Sacrossanctum Concilium:  Sobre a Sagrada Liturgia (SC); ConstituiçãoDogmática Lumem Gentium