educação escolar indigena_cadernos secad

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7/26/2019 Educação Escolar Indigena_Cadernos SECAD http://slidepdf.com/reader/full/educacao-escolar-indigenacadernos-secad 1/133    C    A    D    E    R    N    O    S    S    E    C    A    D     3     S   e   c   r   e    t   a   r    i   a    d   e    E    d   u   c   a   ç    ã   o    C   o   n    t    i   n   u   a    d   a  ,    A    l    f   a    b   e    t    i   z   a   ç    ã   o   e    D    i   v   e   r   s    i    d   a    d   e    B   r   a   s    í    l    i   a  –    D    F    A    b   r    i    l    d   e    2    0    0    7 Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola

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    AlfabetizaoeDivers

    idade

    Bras

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    2007

    Educao Escolar Indgena:diversidade socioculturalindgena ressignificando

    a escola

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    Presidente da Repblica

    Luiz Incio Lula da Silva

    Ministro da Educao

    Fernando Haddad

    Secretrio Executivo

    Jos Henrique Paim Fernandes

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade

    Ricardo Henriques

    Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad/MEC)

    Esplanada dos Ministrios, Bloco L, sala 700CEP 70097-900, Braslia, DFTel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

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    CADERNOS SECAD

    Educao Escolar Indgena:diversidade socioculturalindgena ressignificando

    a escola

    Braslia, abril de 2007

    Organizao:

    Ricardo HenriquesKleber Gesteira

    Susana GrilloAdelaide Chamusca

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    2007. Secad/MEC

    Ficha Tcnica

    Realizao

    Departamento de Educao para a Diversidade e Cidadania

    Armnio Bello Schmidt

    Coordenao-Geral de Educao Escolar Indgena

    Kleber Gesteira e Matos

    Redao

    Coordenao: Susana Martelleti Grillo Guimares

    Pesquisa: gna Pereira Martins

    Edio

    Coordenao: Ana Luiza de Menezes Delgado

    Colaboradores: Carolina Iootty de Paiva Dias, Clarisse Filliarte Ferreira da Silva,

    Cristiane Galvo Ferreira de Freitas, Shirley Villela

    Projeto Grfico

    Carmem Machado

    Diagramao

    Jos dos Santos Pugas e Shirley Villela

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    Apresentao

    Os Cadernos Secadforam concebidos para cumprir a funo de documentar as

    polticas pblicas da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade

    do Ministrio da Educao. O contedo essencialmente informativo e formativo, sen-

    do direcionado queles que precisam compreender as bases histricas, conceituais,

    organizacionais e legais que fundamentam, explicam e justificam o conjunto de pro-

    gramas, projetos e atividades que coletivamente compem a poltica posta em anda-

    mento pela Secad/MEC a partir de 2004.

    Procuramos contemplar informaes teis a gestores, professores e profissionais

    da educao que atuam nos Sistemas de Ensino e a parceiros institucionais, tais como o

    Conselho Nacional de Secretrios de Educao (Consed), a Unio Nacional dos Dirigen-

    tes Municipais de Educao (Undime) e demais organizaes com as quais a Secad/MEC

    interage para consolidar suas aes.

    Os temas abordados compreendem as questes da diversidade tnico-raciais,

    de gnero e diversidade sexual, geracionais, regionais e culturais, bem como os direitos

    humanos e a educao ambiental. So analisados do ponto de vista da sustentabilidade

    e da incluso social por meio de uma educao que seja efetivamente para todos, de

    qualidade e ao longo de toda a vida. Para isso, pressupe-se que: i) a qualidade s

    possvel se houver eqidade isto , se a escola atender a todos na medida em que

    cada um precisa; e ii) todas as pessoas tm direito de retornar escola ao longo de sua

    vida, seja para complementar a Educao Bsica, seja para alcanar nveis de escolari-

    dade mais elevados ou melhorar sua formao profissional.

    O grau de envolvimento dos movimentos sociais nessas temticas intenso e,em muitos casos, bastante especializado, tendo em vista que o enfrentamento da dis-

    criminao, racismo, sexismo, homofobia, misria, fome e das diversas formas de vio-

    lncia presentes na sociedade brasileira foi protagonizado, por muito tempo, por tais

    movimentos. Assim, o Estado, ao assumir sua responsabilidade em relao ao resgate

    das imensas dvidas sociais, dentre elas a educacional, precisa dialogar intensamente

    com esses atores a fim de desenvolver polticas pblicas efetivas e duradouras.

    As polticas e aes relatadas nesses Cadernosesto em diferentes patamares

    de desenvolvimento, uma vez que algumas dessas agendas j estavam includas, pelo

    menos, nos instrumentos normativos relacionados educao (e.g. Educao Escolar

    Indgena e Educao Ambiental), enquanto outras ainda estavam em estgio inicial dediscusso e desenvolvimento terico-instrumental (e.g. Relaes tnico-raciais e Educa-

    o do Campo). No caso da Educao de Jovens e Adultos as intervenes necessrias

    eram e ainda so de ordem estratgica, abrangendo escala, metodologia e amplia-

    o do investimento pblico em todos os nveis de governo.

    Esperamos, com esses registros, contribuir para o enraizamento e o aprofunda-

    mento de polticas pblicas que promovam a igualdade de oportunidades na educao,

    a incluso social, o crescimento sustentvel e ambientalmente justo, em direo a uma

    sociedade menos desigual, mais compassiva e solidria.

    Ricardo Henriques

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeMinistrio da Educao

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    Sumrio

    1. INTRODUO 9

    2. MARCOS INSTITUCIONAIS 102.1. Os povos indgenas e a Educao Escolar 10

    2.2. Conceitos Envolvidos na Educao Escolar Indgena 172.3. As organizaes do Estado brasileiro responsveis

    pela Educao Escolar Indgena 222.4. A educao escolar dos indgenas e a legislao brasileira 24

    3. DIAGNSTICO 283.1. A Educao Escolar Indgena nos censos

    educacionais 2002 a 2006 28 3.2. Os sistemas de ensino e a Educao Escolar Indgena 32

    4. POLTICAS PBLICAS PARA A EDUCAO ESCOLAR INDGENA 33

    5. PROGRAMAS, PROJETOS E ATIVIDADES 375.1. Formao de professores indgenas em cursos de

    licenciaturas interculturais 37

    5.2. Formao de professores indgenas para o magistriointercultural 42

    5.3. Produo e publicao de materiais didticosbilnges ou multilnges 53

    5.4. Criao e funcionamento da Comisso Nacional deEducao Escolar Indgena (CNEEI) 70

    5.5. Implantao do Ensino Mdio interculturalnas Escolas indgenas 76

    5.6. Estruturao da rede fsica das escolas indgenas 81

    5.7. Atividades voltadas institucionalizao e enraizamento 85REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 89

    ANEXO 1 Parecer CNE n 14/99, Diretrizes Curriculares Nacionaisda Educao Escolar Indgena e Resoluo CEB n 3/99 93

    ANEXO 2 Decreto n 5.051/04, promulga a Conveno n 169da OIT sobre Povos Indgenas e Tribais 118

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    1. INTRODUO

    No Brasil, os povos indgenas tm reconhecidos suas formas prprias de organi-

    zao social, seus valores simblicos, tradies, conhecimentos e processos de consti-

    tuio de saberes e transmisso cultural para as geraes futuras.

    A extenso desses direitos no campo educacional gerou a possibilidade de os

    povos indgenas se apropriarem da instituio escola, atribuindo-lhe identidade e fun-

    o peculiares.

    A escola, espao histrico de imposio de valores e assimilao para incorpo-

    rao economia de mercado e, nesse processo, devoradora de identidades, passa a

    ser reivindicada pelas comunidades indgenas como espao de construo de relaes

    intersocietrias baseadas na interculturalidade e na autonomia poltica.

    O direito a uma Educao Escolar Indgena - caracterizada pela afirmao das

    identidades tnicas, pela recuperao das memrias histricas, pela valorizao das

    lnguas e conhecimentos dos povos indgenas e pela revitalizada associao entre es-

    cola/sociedade/identidade, em conformidade aos projetos societrios definidos auto-

    nomamente por cada povo indgena - foi uma conquista das lutas empreendidas pelos

    povos indgenas e seus aliados, e um importante passo em direo da democratizao

    das relaes sociais no pas.

    A Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio

    da Educao (Secad/MEC) foi criada pelo Governo Federal com a misso de disseminar

    e implementar conceitos, contedos e prticas de gesto organizadas a partir do reco-nhecimento da diversidade como patrimnio da sociedade brasileira, mobilizadora de

    conquistas e avanos democrticos que constroem uma sociedade justa e igualitria.

    O amplo campo da diversidade sociocultural no pas, submetido historicamente

    a prticas homogeneizadoras, geradoras de desigualdades e injustias sociais, passa

    a ser valorizado nas polticas pblicas e no espao escolar, criando-se novas agendas,

    compromissos e debates.

    Os desafios postos pela educao escolar indgena, que compreende as com-

    plexas demandas implicadas no reconhecimento da diversidade de mais de 225 povos

    e da sua busca por autodeterminao, esto sendo enfrentados pela Secad/MEC compolticas de formao de professores indgenas focadas nas licenciaturas e no magis-

    trio interculturais, de produo de materiais didticos e paradidticos especficos, de

    ampliao da oferta de educao bsica nas escolas indgenas e de fortalecimento da

    interlocuo institucionalizada e informada de representantes indgenas com os gesto-

    res e dirigentes do MEC e dos sistemas de ensino.

    O processo de institucionalizao da Educao Escolar Indgena est descrito nas

    pginas a seguir, com o objetivo de registrar as polticas desenvolvidas para conhecimen-

    to pela sociedade em geral e pelos educadores, lideranas e professores indgenas.

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    2. MARCOS INSTITUCIONAIS

    2.1. Os povos indgenas e a Educao Escolar

    A escola entrou na comunidade indgena como um corpo estranho,que ningum conhecia. Quem a estava colocando sabia o que que-ria, mas os ndios no sabiam, hoje os ndios ainda no sabem paraque serve a escola. E esse o problema. A escola entra na comuni-dade e se apossa dela, tornando-se dona da comunidade, e no acomunidade dona da escola. Agora, ns ndios, estamos comean-do a discutir a questo (KAINGANG apud FREIRE, 2004:28).

    A escola para ndios no Brasil comea a se estruturar a partir de 1549, quando

    chega ao territrio nacional a primeira misso jesutica enviada de Portugal por D. Joo

    III. Composta por missionrios da Companhia de Jesus e chefiada pelo padre Manuel da

    Nbrega, a misso inclua entre seus objetivos o de converter os nativos f crist.

    No processo de catequizao, os missionrios jesutas procuraram antes se apro-

    ximar dos indgenas, para conquistar sua confiana e aprender suas lnguas. Esses pri-

    meiros contatos entre jesutas e ndios ocorreram ora em clima de grande hostilidade,

    ora de forma muito amistosa1. Segundo Leonardi (1996), quando o ndio se recusava a

    trabalhar ou se revoltava, opondo resistncia ao processo de escravizao (completa ou

    parcial), ele era duramente perseguido e reprimido.2

    Os ndios que ofereciam resistncia eram vistos como selvagens e embrutecidos,

    precisando ser pacificados. A resistncia escravizao levou a batalhas sangrentas

    com os colonizadores ao longo de todo processo de ocupao do territrio brasileiro 3.

    Em decorrncia disso os africanos acabaram por se tornar o principal contingente a

    fornecer fora de trabalho escrava a partir do segundo sculo da conquista.

    A princpio, para ensinar os ndios a ler, escrever e contar, bem como lhes incul-

    car a doutrina crist, os missionrios jesutas percorriam as aldeias em busca, principal-

    mente, das crianas. Por no disporem de instalaes fixas e prprias para o ensino,

    essas misses foram chamadas de volantes.

    Aos poucos foram se definindo dois ambientes distintos onde os jesutas ensina-

    vam: as chamadas casas - para a doutrina dos ndios no batizados - e os colgios, que

    abrigavam meninos portugueses, mestios e ndios batizados. Nos colgios a educaotinha um carter mais abrangente e estava voltada para a formao de pregadores que

    ajudariam os jesutas na converso de outros ndios (RIBEIRO, 1984:127).

    Mas esses ensinamentos, impostos e distantes da realidade dos nativos, no pro-

    duziram mudanas no seu modo de vida, da forma direta e com a rapidez e facilidade

    que esperavam os portugueses. Bastava que eles voltassem ao convvio com outros n-

    dios que, mesmo aqueles que eram batizados, retornavam aos seus costumes e crenas.

    1 A populao indgena brasileira nessa poca era bastante diversa; estima-se que existiam aproximadamente 10 mi-lhes de ndios e cerca de 1.200 lnguas diferentes faladas por grupos tnicos com costumes e tradies prprios.As diferenas no tratamento dispensado pelos jesutas aos povos nativos eram proporcionais resistncia que osmesmos ofereciam ao processo de escravizao.

    2 Um exemplo seria a violncia praticada contra os ndios Trememb, no sculo XVII; todavia, a expedio militar quefoi enviada para reprimi-los foi chamada de atividade de pacificao (LEONARDI, 1996)

    3 Por exemplo: Confederao dos Tamoios (1555-1667), a Guerra dos Aimor (1555-1673), a Guerra dos Potigua-ra (1586-1599), o Levante Tupinamb (1617-1621), a Confederao Cariri (1686-1692), a Guerra dos Manaus(1723-1744) e a Guerra Guarantica (1753-1756).

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    Na tica dos padres jesutas, o contato com os colonos ocidentais no trazia bons

    exemplos morais e religiosos para os ndios, porque era comum encontrar entre aqueles

    criminosos cumprindo pena de degredo. Muitos deles envolviam-se com os ndios a

    ponto de se converterem a seus modos de vida. Mas os colonos, sobretudo, preferiam

    ter os ndios como mo-de-obra para servios domsticos ou para trabalhar em suasfazendas a v-los estudando.

    Como sada para esse estado de coisas, os jesutas recorreram ao aldeamento,

    procedimento j utilizado em outras colnias portuguesas e que consistia na criao

    de grandes aldeias prximas das povoaes coloniais para agrupar ndios trazidos de

    suas aldeias no interior. Nelas os ndios passavam a viver sob as normas civis e religiosas

    impostas pelos padres missionrios, sem nenhum contato com o mundo externo a no

    ser quando esse atendesse a algum interesse dos jesutas.

    Os aldeamentos assumiam tambm a funo de negar valor s culturas indge-

    nas e impor uma nova ordem social. Nesse sentido, muitos aldeamentos propunhama convivncia entre povos diferentes e estimulavam casamentos intertnicos. O ensino

    praticado centrava-se na catequese, sendo totalmente estruturado sem levar em con-

    siderao os princpios tradicionais da educao indgena, bem como as lnguas e as

    culturas desses povos. Segundo Freire (2004:23):

    Quando a escola foi implantada em rea indgena, as lnguas, atradio oral, o saber e a arte dos povos indgenas foram discrimi-nados e excludos da sala de aula. A funo da escola era fazer comque estudantes indgenas desaprendessem suas culturas e deixas-sem de ser indivduos indgenas. Historicamente, a escola pode tersido o instrumento de execuo de uma poltica que contribuiu

    para a extino de mais de mil lnguas.

    A Lngua Geral, uma adaptao de vrias lnguas indgenas feita pelos mission-

    rios, era ensinada para indgenas de diferentes comunidades com costumes e lnguas

    variadas que viviam nesses aldeamentos. Para se fazerem entender pelos jesutas,

    pelos demais ndios da aldeia e pelos colonos, os ndios cristos viam-se obrigados a

    aprender essa nova lngua, que passou a servir tambm para a aprendizagem do idioma

    portugus.

    Inicialmente os aldeamentos governados pelos missionrios jesutas serviram

    tambm aos interesses dos colonos, do governo-geral brasileiro e da Coroa portuguesa.

    A partir 1757, entretanto, o trabalho dos jesutas deixa de contar com o apoio da Co-roa Portuguesa, ento interessada em aumentar a produo agrcola da colnia, para

    o qual, como reivindicavam os colonos, a escravizao dos ndios era necessria. Os

    jesutas foram expulsos do Brasil e os aldeamentos elevados categoria de vilas, sendo

    criado o regime de Diretrio, representado por um diretor nomeado pelo governador.

    A implantao do Diretrio de ndios no representou mudanas significativas

    para as populaes indgenas, pois, em linhas gerais, deu continuidade ao regime ante-

    rior de expropriao. Ressalte-se, porm, a proibio pelos Diretrios do uso de lnguas

    indgenas em salas de aulas, inclusive da Lngua Geral, e a definio da obrigatoriedade

    do ensino da lngua portuguesa e de seu uso.

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    Com a implantao dos Diretrios intensificou-se a escravizao dos ndios para

    atender ao aumento da necessidade de braos para atuarem nas atividades domsticas,

    agrcolas e extrativistas. Os indgenas foram considerados prprios para essas funes,

    tanto pelo fato de estarem adaptados s condies naturais da regio, quanto por se-

    rem mais baratos do que os escravos negros que j vinham sendo comercializados noBrasil desde 1580.

    Em 1798 foi tambm revogado o Diretrio dos ndios e nada o substituiu oficial-

    mente at 1845, quando o Decreto 426, de 24 de julho, definiu o Regulamento das

    Misses. Essa norma trata das diretrizes gerais para a reintroduo de missionrios no

    Brasil que voltassem a se responsabilizar pela catequese e civilizao dos indgenas.

    A atuao desses missionrios assemelhou-se, em alguns pontos, ao trabalho

    anteriormente desenvolvido pelos missionrios jesutas. Por exemplo, retoma-se o siste-

    ma de aldeamento, que volta a ser entendido como ferramenta imprescindvel para os

    processos de catequizao, civilizao e assimilao fsica e social dos ndios ao restanteda populao.

    Porm, pelo menos duas diferenas merecem destaque. Em primeiro lugar, no

    foi dada a esses missionrios a mesma autonomia desfrutada pelos jesutas. Eles fica-

    ram inteiramente a servio do governo brasileiro, sem contestar suas determinaes

    e, em alguns casos, nem mesmo eram responsveis pelo governo dos aldeamentos,

    pois seus contratos tratavam de prestao de servios administrao provincial como

    assistentes religiosos e educacionais. Em segundo lugar, esses missionrios acreditavam

    que o convvio com cristos facilitaria a catequizao dos ndios, razo pela qual, dife-

    rentemente dos jesutas, eles permitiam a permanncia de no-ndios nos aldeamentos

    (militares, comerciantes, colonos, escravos e ex-escravos negros)4.

    Ao instalar os missionrios nos diversos aldeamentos, o Estado monrquico sub-

    vencionava a criao e a manuteno de escolas para as crianas e adultos indgenas

    que se interessassem em aprender a ler, escrever e contar (instruo primria). Essa po-

    ltica desenvolvia-se a partir da viso da escola como instrumento de desenvolvimento

    humano capaz de viabilizar a formao do povo brasileiro. Com relao s populaes

    indgenas, esse desenvolvimento s seria alcanado se elas fossem catequizadas e inte-

    gradas ao mundo do trabalho das sociedades no-ndias.

    Assim, nesse perodo, inclua-se tambm como funo da educao para os n-

    dios a formao voltada para certos ofcios. O Regulamento da Catequese e Civilizaodos ndios, de 1845, propunha a criao de oficinas de artes mecnicas e o estmulo

    agricultura nos aldeamentos indgenas, bem como o treinamento militar e o alistamen-

    to dos ndios em companhias especiais, como as de navegao.

    Por volta de 1870, diante da dificuldade de manter os ndios nas escolas dos

    aldeamentos, ocorre em algumas provncias o investimento em institutos de educao,

    em internatos e, no caso especfico de Pernambuco, em orfanatos para crianas ind-

    genas, com o fim de transform-las em intrpretes lingsticos e culturais para auxiliar

    os missionrios na suposta civilizao dos seus parentes. Essas escolas localizavam-se

    fora da rea dos aldeamentos e pretendiam oferecer s crianas indgenas no s a

    instruo primria elementar, mas tambm ensino para desempenho de funes iden-

    4 Segundo Amoroso (2001:138): a presena de no-ndios nos aldeamentos do sculo XIX fez com que, na maioriadas vezes, a escola e outras instituies de apoio s populaes indgenas aldeadas acabassem atendendo aos no-ndios, usando para isso a verba destinada catequese dos ndios.

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    tificadas com o desenvolvimento das provncias e com os processos de assimilao da

    diversidade dos povos indgenas.

    Em linhas gerais, durante todo o Perodo Imperial (1808-1889) realizaram-se

    muitos debates em torno do tema educao escolar primria organizada e mantida

    pelo poder pblico estatal que pudesse atender, principalmente, negros (livres, libertos

    ou escravos), ndios e mulheres, que compunham as chamadas camadas inferiores da

    sociedade. Isso se deu em um contexto onde a instruo popular era considerada a

    base do progresso moral, intelectual e social de qualquer pas e havia o entendimento,

    tanto no plano nacional quanto no internacional, de que investir na quantidade de

    escolas e de alunos representava a preocupao para com o progresso e civilizao de

    uma nao.

    No entanto, estar presente nas agendas polticas da poca no representou para

    os ndios uma poltica imperial voltada especificamente para seus interesses. Ao final

    do Imprio, os especialistas e autoridades, que chegaram a se entusiasmar com a pos-sibilidade de haver instituies pblicas destinadas ao ensino de crianas indgenas, de-

    sacreditavam que isso pudesse ocorrer sem a interveno das misses religiosas. Dessa

    forma, at o incio do sculo XX o indigenismo brasileiro viver uma fase de total iden-

    tificao com a misso catlica e o Estado dividir com as ordens religiosas catlicas,

    mais uma vez, a responsabilidade pela educao formal para ndios.

    Assim, na primeira dcada do perodo republicano, retomada a oferta s po-

    pulaes indgenas de ensino suplementar associado ao ensino de ofcios, voltados s

    necessidades locais, sob o comando das misses religiosas que fundaram alguns inter-

    natos para a educao de meninos e meninas5.

    Nos anos seguintes, com a instaurao e consolidao do regime republicano, o

    Estado sistematizar uma poltica indigenista com a clara inteno de mudar a imagem

    do Brasil perante a sociedade nacional e mundial. rgos governamentais so criados

    com as funes de prestar assistncia aos ndios e proteg-los contra atos de explorao

    e opresso e de gerir as relaes entre os povos indgenas, os no-ndios6e os demais

    rgos de governo.

    Nesse esprito, cria-se em 1910 o Servio de Proteo aos ndios (SPI), que ser

    extinto em 1967, sendo suas atribuies repassadas para a Fundao Nacional do ndio

    (Funai).

    A educao escolar, uma das aes de proteo e assistncia sob a responsabi-

    lidade desses rgos indigenistas, assume papel fundamental no projeto republicano

    de integrao do ndio sociedade nacional por meio do trabalho. Ela posta como

    fundamental para a sobrevivncia fsica dos ndios e inclui no s o ensino da leitura e

    da escrita, mas tambm de outros conhecimentos como higiene, saneamento, estudos

    sociais, aritmtica, ensinamentos prticos de tcnicas agrcolas, marcenaria, mecnica e

    costura. A finalidade disso fazer com que os ndgenas passem a atuar como produto-

    res de bens de interesse comercial para o mercado regional e como consumidores das

    5 Segundo Rizzini (2004:380) [] no Norte, os capuchinhos da Ordem da Lombardia fundaram, em 1895, um

    colgio (Instituto Indgena) para jovens ndios Tenetehara, Canela e Timbira, maiores de 14 anos, provenientes dealdeamentos do Maranho. Dois anos depois, os capuchinhos instalaram na recm-criada Misso de So Jos daProvidncia do Alto Alegre um internato para meninas menores de 14 anos, vindas de diversas aldeias.

    6 Com o crescimento econmico as terras ocupadas pelas populaes indgenas passam a ser alvo de interesse dediferentes grupos e motivo de conflitos entre ndios e latifundirios, posseiros, garimpeiros, empresas de minera-o ou as responsveis pela construo da infra-estrutura (estradas, hidroeltricas).

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    Anot

    aes

    tecnologias produzidas pelos no-ndios, constituindo tambm uma reserva alternativa

    de mo-de-obra barata para abastecer o mercado de trabalho.

    Esse papel ser instrumentalizado pelo discurso de valorizao da diversidade

    lingstica dos povos indgenas, com a proposio da utilizao das lnguas maternas no

    processo de alfabetizao7para grupos que no faziam uso da lngua portuguesa, vi-

    sando facilitar o processo de integrao sociedade nacional. Assim, o ensino bilnge

    estabelecido como prioridade e busca-se implant-lo nas escolas indgenas por meio

    de materiais produzidos para a alfabetizao e da capacitao de ndios para assumirem

    funo de alfabetizadores em seus respectivos grupos.

    No programa de educao bilnge ento vigente, os ndios eram alfabetizados

    na sua lngua materna ao mesmo tempo em que eram introduzidos no aprendizado da

    lngua portuguesa. Quando atingiam o domnio deste idioma, o ensino passava a ser

    realizado exclusivamente em portugus. Essa metodologia, na qual a lngua materna

    usada comoponte para o domnio da lngua nacional, chamada de bilingismo detransio. A partir dela a lngua indgena servia para facilitar, e mesmo acelerar, o pro-

    cesso de integrao do ndio cultura da sociedade no-ndia, pois quando aprendia o

    portugus e deixava de falar sua lngua, simultaneamente, abandonava seu modo de

    vida e sua identidade diferenciada.

    Diante das dificuldades tcnicas encontradas para implantar o ensino bilnge,

    em virtude dos escassos conhecimentos lingsticos referentes s vrias lnguas autcto-

    nes, a partir de 1970, a Funai estabelece convnios com o Summer Institute of Linguis-

    tics(SIL), visando ao desenvolvimento de pesquisas para o registro de lnguas indgenas,

    identificao de sistemas de sons, elaborao de alfabetos e anlises das estruturas

    gramaticais. Alm disso, passa a ser responsabilidade dessa instituio a preparao de

    material de alfabetizao nas lnguas maternas e de material de leitura, o treinamento

    do pessoal docente, tanto da Funai, como de misses religiosas e a preparao de au-

    tores indgenas. O SIL, cujo objetivo principal era converter povos indgenas religio

    protestante, passa a atuar de uma forma que se confunde com a do Estado e, em al-

    guns casos, assume para si a obrigao estatal de tutela desses povos.

    As aes desenvolvidas junto aos indgenas pelos missionrios e lingistas vincu-

    lados ao SIL ou a outras similares8sempre foram alvo de muitas crticas, sobretudo por

    parte de instituies da rea de lingstica e antropologia. Mas somente quando a res-

    ponsabilidade de coordenar as aes relativas educao escolar indgena foi assumidapelo Ministrio da Educao, que ocorreu uma ruptura com essas organizaes.

    Em linhas gerais, nesse perodo, a educao para os ndios proposta pelo Estado

    brasileiro, deu continuidade poltica praticada nos perodos colonial e imperial, focada

    na assimilao e integrao dos povos indgenas sociedade nacional, por meio de sua

    adaptao a uma nova lngua, a uma nova religio, a novas crenas, a novos costumes,

    a novas tradies, enfim, a novas formas de viver.

    Prova disso que, em julho de 1990 foi realizado o III Encontro de Professores

    Indgenas do Amazonas e Roraima, cujo documento final afirmava que, naquele mo-

    7 Os art. 49 e 50 da Lei n 6.001/1973, Estatuto do ndio, preconizava a orientao da educao do ndio para aintegrao na comunho nacional, com a alfabetizao feita na lngua materna e em portugus (BRASIL. Funai/CGDOC, 2005).

    8 Segundo Ferreira (2001:85) alm do Summer Institute of Linguistic(SIL) atuaram junto aos ndios do Brasil, nesseperodo, mais de 50 misses religiosas catlicas e protestantes. O SIL hoje foi renomeado comoSociedade Inter-nacional de Lingstica.

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    Educao Escolar Indgena 15

    mento, a maioria das escolas indgenas estava estruturada e possua normas de funcio-

    namento consoantes s diretrizes das Secretarias Estaduais e Municipais de Educao,

    sendo que, tal estrutura geralmente impunha prticas educativas e contedos progra-

    mticos que no levavam em considerao as especificidades culturais de cada comuni-

    dade e seus processos prprios de aprendizagem (MARI apud FREIRE, 2004:25).

    Aes alternativas s do governo brasileiro passaram a surgir nos anos 70, quan-

    do se iniciou no Brasil, com a emergncia mundial de debates em torno dos direitos

    humanos, possibilitados pelos processos de descolonizao e pela tendncia globali-

    zao, um movimento de recuperao da autonomia e da autodeterminao dos povos

    indgenas, controlados at ento pelo poder tutelar e hegemnico do Estado. Criaram-

    se organizaes civis de colaborao, apoio e defesa da causa indgena9, compostas

    por pesquisadores no-ndios - principalmente, antroplogos e lingistas - indigenistas

    e missionrios leigos.

    Defendendo o reconhecimento da diversidade sociocultural e lingstica dos po-vos indgenas e, conseqentemente, a participao desses povos na definio, formu-

    lao e execuo de polticas e aes no campo indigenista, as iniciativas dessas orga-

    nizaes acabaram por contribuir para mudanas importantes na viso que a sociedade

    nacional e o Estado brasileiro tinham dos indgenas e de seus direitos.

    Aos poucos o movimento embrionrio do incio dos anos de 1970 ganhou fora

    e multiplicaram-se as organizaes no-governamentais de apoio aos ndios. Paralela-

    mente, e em consonncia desse movimento, os prprios povos indgenas buscaram se

    articular politicamente para defender seus direitos e projetos de futuro e, a partir de

    meados de 1970, so criadas organizaes e associaes indgenas, em diferentes regi-

    es do pas, que passaram a realizar assemblias, encontros ou reunies, culminando na

    criao, em 1980, da Unio das Naes Indgenas (Unind, hoje UNI) e suas regionais.

    Dessa mobilizao surgiu um movimento indgena de mbito nacional articulado

    na busca de solues coletivas para problemas comuns aos diferentes grupos tnicos

    basicamente a defesa de territrios, o respeito diversidade lingstica e cultural, o

    direito assistncia mdica adequada e a processos educacionais especficos e diferen-

    ciados (FERREIRA, 2001:95). Como resultado da presso que esse movimento10passou

    a exercer junto ao poder legislativo, efetivaram-se as mudanas mais significativas da

    histria dos povos indgenas no Brasil, iniciadas com a definio da Constituio de

    1988 e asseguradas nos demais textos legais definidos a partir dela.11

    No mbito da educao escolar, as entidades indgenas e de apoio aos povos

    indgenas propem e mantm atividades de cunho educativo que, aos poucos, passa-

    ram a constituir uma rede de programas educacionais para as populaes indgenas no

    Brasil. Essa rede se sustenta em um elemento fundamental: os projetos educacionais

    implantados so aes geradas para atender reivindicaes indgenas por uma educa-

    o diferenciada. Alm disso, pressupem a participao ativa das comunidades indge-

    nas, representadas por seus lderes, na elaborao, acompanhamento e execuo dos

    projetos desenvolvidos em seus territrios.

    9 Dentre essas, destacam-se as seguintes entidades de apoio: i) com perfil laico - Comisso Pr-ndio de So Paulo,do Rio de Janeiro e do Acre; Centro de Trabalho Indigenista (CTI); Centro Ecumnico de Documentao e Informa-o (CEDI); Associao Nacional de Ao Indigenista (ANAI); Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA);e ii) ligadas s igrejas catlicas e luteranas - Operao Anchieta (OPAN); Conselho Indigenista Missionrio (CIMI);Conselho de Misses entre ndios (COMIN).

    10 Composto de uma rede de mais de duzentas organizaes.

    11 No tpico Marcos Legais deste Caderno trataremos de forma mais detalhada dessas legislaes.

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    A princpio, esses projetos educacionais consistiam na alfabetizao de jovens

    ndios das comunidades envolvidas, respeitadas suas demandas polticas e especificida-

    des culturais e lingsticas. Em seguida, de forma autnoma e comunitria, as entida-

    des promotoras passam a responsabilizar-se por iniciativas de formao de professores

    ndios, pela formulao, sistematizao e regularizao de propostas curriculares al-ternativas s vigentes nas escolas indgenas at aquele momento e pela elaborao de

    materiais didticos de autoria indgena adequados s diferentes realidades.

    As organizaes indgenas12passam ento a reivindicar, junto ao poder pblico,

    a legitimao e legalizao dessas atividades educacionais formais desenvolvidas pelos

    professores indgenas em suas escolas por meio da sua insero no sistema pblico de

    ensino.13

    Nesse sentido criam-se parcerias entre rgos governamentais de mbito fe-

    deral, estadual e municipal - movimentos indgenas e organizaes pr-ndio e, aos

    poucos, experincias educacionais bem-sucedidas, desenvolvidas por iniciativa prpriaou a pedido das comunidades indgenas, passam a ser referncia para as agncias go-

    vernamentais na construo de suas polticas.

    Estas novas referncias polticas e conceituais so afirmadas pelas definies pre-

    sentes na Constituio de 1988, a qual, como j mencionado, serviu como alavanca em

    um processo de mudanas histricas para os povos indgenas no Brasil. A partir dela a

    relao entre o Estado brasileiro e os povos indgenas se transforma e a poltica estatal

    indigenista, de carter integracionista e homogeneizador, vigente desde o perodo co-

    lonial, d lugar a um novo paradigma, no qual esses povos passam a ser considerados

    como sujeitos de direitos.

    Essa mudana se deveu, principalmente, superao, no texto constitucional,

    da perspectiva integracionista. Isso se mostra de forma ntida quando se reconhece a

    pluralidade cultural e lingstica da sociedade brasileira, caracterstica at ento vista

    como obstculo para a formao e desenvolvimento do Estado-nao. Em decorrncia

    desse reconhecimento, fica definida como responsabilidade da Unio assegurar e ga-

    rantir aos povos indgenas o direito de serem diferentes, de manterem sua organizao

    social, seus costumes, suas lnguas, tradies e os direitos originrios sobre as terras que

    tradicionalmente ocupam.

    As polticas pblicas relativas Educao Escolar Indgena ps-Constituio de

    1988 passam a se pautar no respeito aos conhecimentos, s tradies e aos costumesde cada comunidade, tendo em vista a valorizao e o fortalecimento das identidades

    tnicas. A responsabilidade pela definio dessas polticas pblicas, sua coordenao e

    regulamentao atribuda, em 1991, ao Ministrio da Educao.

    Para o delineamento dessas polticas, o MEC passa a contar com a participao

    de representantes indgenas, entidades de apoio e outras instituies, adotando como

    parmetro as experincias bem-sucedidas promovidas pela sociedade civil, afirmando

    seus conceitos e metodologias. Dessa maneira, iniciativas de carter local tornam-se

    referncia ampla para a conceituao e implementao de uma poltica pblica de edu-

    cao escolar indgena voltada para o atendimento da demanda de escolarizao das12 Destaca-se a articulao do movimento dos professores indgenas, por exemplo: a Comisso dos Professores

    Indgenas da Amaznia (COPIAM) e a Organizao Geral dos Professores Ticuna (OGPTB).

    13 Em 1988, o Conselho Estadual de Educao de Mato Grosso regulamentou a Escola Estadual de 1 Grau IndgenaTapirap (FERREIRA, 2001:92-3).

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    comunidades indgenas, a partir de um novo paradigma da especificidade, da diferen-

    a, da interculturalidade e da valorizao da diversidade lingstica (MONTE, 2000).

    Finalmente passa a ser um princpio para o Estado brasileiro fazer com que os

    povos indgenas sejam ouvidos e atendidos com relao ao tipo de escola que querem

    e gesto dessa escola. As aes governamentais passam a ser orientadas para possi-

    bilitar que os povos indgenas discutam, proponham e procurem realizar seus modelos

    e ideais de escola segundo seus interesses e suas necessidades.

    Nesse caminho, a escola - outrora imposta aos ndios e por eles vivenciada como

    uma ameaa sua maneira de ser, pensar e fazer - tem sua presena hoje reivindicada

    por esses mesmos ndios. Os povos indgenas contemporneos vem a escola por eles

    construda como instrumento para a construo de projetos autnomos de futuro e

    como uma possibilidade de construo de novos caminhos para se relacionarem e se

    posicionarem perante a sociedade no-indgena, em contato cada vez mais estreito.

    Em 2003, tem incio no Ministrio da Educao um movimento para a insero

    e enraizamento do reconhecimento da diversidade sociocultural da sociedade brasi-

    leira nas polticas e aes educacionais, que se consolida com a criao da Secretaria

    de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), qual est vinculada a

    Coordenao-Geral de Educao Escolar Indgena (CGEEI).

    A Secad criada com o objetivo de institucionalizar no Sistema Nacional de Ensi-

    no o reconhecimento da diversidade sociocultural como princpio para a poltica pblica

    educacional, evidenciando a relao entre desigualdade de acessoepermanncia com

    sucesso na escolacom a histrica excluso fomentada pela desvalorizao e desconsi-

    derao das diferenas tnico-raciais, culturais, de identidade sexual e de gnero, nasescolas brasileiras.

    Assim, a educao escolar indgena passa a receber um tratamento, no MEC,

    focado na assero dos direitos humanos, entre eles o de ter seus projetos societrios e

    identitrios fortalecidos nas escolas indgenas.

    2.2. Conceitos Envolvidos na EducaoEscolar Indgena

    Deixando de lado noes essencialistas de cultura e identidade, a nfase poltica

    dada pela Secad/MEC valorizao e manuteno dasociodiversidade indgenatoma

    por referncia os princpios e conceitos utilizados nos projetos societrios e identitrios

    construdos autonomamente por cada povo indgena para a conduo de seus destinos

    e definio de seu modelo de desenvolvimento.

    Desse modo, a produo das diferenas sociais se concretiza na formulao de

    diferentes projetos societrios, definidos por cada povo, a partir de seus valores sim-

    blicos, de sua histria, de suas perspectivas polticas de autonomia e de continuidade

    cultural, bem como de suas estratgias de interao com a sociedade majoritria.

    Uma das importantes peculiaridades dos povos indgenas remete a que alguns

    dos territrios tradicionais, regularizados de forma contnua ou no, no coincidem

    com as divises poltico-administrativas em estados e municpios. Assim, por exemplo,

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    os territrios do povo Guarani Mbya se distribuem ao longo da costa brasileira em seis

    estados da federao: Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Paran, Santa Catarina

    e Rio Grande do Sul.

    Do mesmo modo, os territrios do povo Xavante, no Estado do Mato Grosso,

    englobam mais de 11 municpios. Os Guarani e Kaiow, no Mato Grosso do Sul, tm

    suas comunidades em uma rea que envolve 24 municpios. So muitos os exemplos

    da ocupao territorial que nos levam considerao do conceito de territorialidade

    indgena na definio das aes, que devem prever novas articulaes entre diferentes

    gestores e institucionalidades, superando a fragmentao administrativa, e passando a

    operar com o princpio do reconhecimento da organizao social dos povos indgenas.

    Assim, torna-se relevante induzir as Secretarias Estaduais de Educao a obser-

    varem a territorialidade desses povos e a inovarem na proposio de prticas de gesto

    articulada e compartilhada entre vrias Secretarias de Educao, com a indispensvel

    participao informada de representantes das comunidades para a definio de proje-tos e aes que possam melhorar suas condies de vida.

    Outro importante conceito que norteia a ao da Secad/MEC concerne relao

    entre escola esustentabilidade. imprescindvel que a ao educacional se volte para

    contribuir com subsdios e reflexes para asustentabilidade socioambientaldas comu-

    nidades indgenas. A presso para a explorao econmica dos recursos naturais exis-

    tentes em seus territrios e a presena de grandes projetos do agronegcio no entorno

    tm como conseqncias a degradao da vida social e o esgotamento dos recursos

    naturais com reflexos na qualidade da vida das comunidades indgenas.

    Os representantes indgenas tm demandado dos dirigentes pblicos, de dife-rentes setores responsveis pelas polticas indigenistas, a coordenao de polticas que

    contribuam para a sustentabilidade socioambiental, articulando conhecimentos tradi-

    cionais com novas tecnologias para que possam desenvolver a gesto de seus territrios

    com autonomia e a partir de seus interesses e necessidades. Desse modo, espera-se que

    a escola e os professores indgenas colaborem e participem da formulao e execuo

    de projetos de auto-sustentao.

    A Secad/MEC, em parceria com o Conselho Nacional de Secretrios Estaduais

    de Educao (Consed), mobilizou fortemente o Sistema de Nacional de Educao para

    tratamento da Educao Escolar Indgena como poltica pblica de garantia de direitos.

    Anteriormente, para a execuo de aes de formao de professores indgenas e deproduo de materiais didticos, eram priorizadas, pelo Ministrio da Educao, algu-

    mas organizaes no-governamentais em detrimento das Secretarias de Educao.

    importante observar que a ao de algumas organizaes no-governamentais

    foi e referencial para as mudanas no perfil de gesto do setor pblico, por respeitar

    a sociodiversidade indgena. No entanto, responsabilidade do Ministrio da Educao

    mobilizar os sistemas de ensino para atuarem levando em conta os marcos constitucio-

    nais dos direitos indgenas e a avaliao crtica das polticas integracionistas e homoge-

    neizantes de longo curso que ainda fundamentam muitas das prticas gerenciais nos

    dias atuais e sua superao.Desenvolveu-se, ento, um conjunto de aes para enraizar o tratamento da

    diversidade sociocultural no mbito educacional induzindo as Secretarias de Educao

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    Educao Escolar Indgena 19

    a reconhecer o amplo campo da diversidade na reorganizao de suas polticas, prio-

    ridades e prticas gerenciais. O movimento social ator imprescindvel para a formu-

    lao e experimentao de novas prticas indigenistas nas polticas e aes da Secad,

    no entanto a construo de uma sociedade mais justa passa pela democratizao e

    responsabilizao do setor pblico.

    Com foco na democratizao das instituies pblicas, a Secad/MEC inseriu com

    forte nfase a institucionalizao daparticipao e docontrole social indgena. Assim,

    as Secretarias de Educao foram instadas a criar espaos institucionalizados de co-

    municao e participao indgena para possibilitar condies de estabelecimento do

    dilogo intercultural entre representantes indgenas e gestores pblicos, dando con-

    sistncia e resultado ao e financiamento pblicos. A partir dessa base dialgica,

    as iniciativas devem procurar direcionar a ao pblica s necessidades, interesses e

    concepes das comunidades indgenas.

    Paralelamente, foi implementada uma srie de aes para a ampliao da ofertada educao bsica nas reas indgenas segundo segmento do Ensino Fundamental e

    Ensino Mdio - com o objetivo de desenvolver um tratamento sistmico dos princpios

    e diretrizes da educao escolar indgena em todos os nveis, etapas e modalidades de

    ensino. Assim, as diretrizes de afirmao das identidades tnicas - de recuperao das

    memrias histricas, de valorizao das lnguas e conhecimentos dos povos indgenas

    - so estendidas para toda a educao bsica intercultural e tambm para a formao

    superior de professores indgenas, ao esta que fundamenta a ampliao da oferta de

    educao bsica intercultural de qualidade.

    Na histria da renovao das prticas pedaggicas e curriculares da escola in-

    dgena, algumas idias se firmaram a partir da reflexo e ao promovidas pelas ex-

    perincias inovadoras conduzidas pelas organizaes de apoio aos povos indgenas e

    da mobilizao de professores e lideranas indgenas interessadas em uma educao

    escolar que contribusse para sua autonomia.

    Uma dessas idias o reconhecimento da multietnicidadee dapluralidade. No

    Brasil contemporneo existem mais de 225 povos indgenas14que, segundo o Referen-

    cial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas (RCNEI), cultural e lingisticamente

    representam uma magnfica

    [...] soma de experincias histricas e sociais diversificadas, de

    elaborados saberes e criaes, de arte, de msica, de conhecimen-tos, de filosofias originais, construdos ao longo de milnios pelapesquisa, reflexo, criatividade, inteligncia e sensibilidade de seusmembros. (...) Sua variedade e sua originalidade so um patrimnioimportante no apenas para eles prprios e para o Brasil, mas, defato, para toda a humanidade (BRASIL. MEC, 2005a).

    relevante compreender a diversidade implcita na pluralidade tnica para a

    formulao de polticas e aes adequadas s realidades e perspectivas de cada povo in-

    dgena. Por isso, no so condizentes com essa realidade propostas de polticas e aes

    que tomem os povos indistintamente, sem contemplar suas especificidades em termos

    culturais, lingsticos, de histrias de contato com a sociedade nacional, de projetos de

    14 O fenmeno da reemergncia tnica, nos ltimos anos, tem dado visibilidade social a povos antes no reconhe-cidos devido a processos de discriminao e negao de suas identidades. o caso, entre outros, dos Tapeba,localizados na Grande Fortaleza-CE, dos Pankar, em Floresta-PE, dos Caxix, em Minais Gerais. Santrem-PA, noCenso Escolar Inep/MEC de 2006, inseriu 30 escolas indgenas localizadas em comunidades que vm exigindo oreconhecimento de seus direitos tnicos (cf. OLIVEIRA, 1999; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2006).

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    futuro e de presente. Construir uma agenda poltica, acordada com professores e repre-

    sentantes de cada povo, que reflita suas perspectivas e suas demandas socioambientais

    um importante desafio para os gestores pblicos.

    Outra idia-chave a distino entre educao indgena e educao escolar in-

    dgena.Meli (1979) evidenciou os processos de aprendizagem de diferentes povos,

    dimenso ignorada pelas polticas assimilacionistas que no reconheciam os padres de

    transmisso dos conhecimentos tradicionais para a formao de jovens e crianas de

    acordo com suas concepes sobre sociedade e formao da pessoa humana. As prti-

    cas socializadoras da comunidade, em diversificados momentos, por meio de diferentes

    agentes e ao longo de toda a vida so educacionais por natureza, se valem da oralidade

    e tm estratgias prprias. A essa atividade, a educao escolarizada foi imposta inten-

    tando substituir e neutralizar esses processos de formao.

    Desse modo um dos fundamentos da educao escolar indgena o reconheci-

    mento da comunidade educativa indgena, pois, conforme o RCNEI, ela

    [...] possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e dis-tribuda por seus membros; so valores e mecanismos da educaotradicional dos povos indgenas (...) que podem e devem contribuirna formao de uma poltica e prticas educacionais adequadas(BRASIL. MEC, 2005a).

    O reconhecimento dos processos prprios de aprendizagem deriva do conheci-

    mento das diferentes formas de se organizar socialmente dos povos indgenas. Desse

    modo, muitos professores indgenas tm se preocupado em pesquisar os fundamentos

    e as estratgias desses processos cognitivos, gerando o que se entende hoje porpeda-

    gogias indgenas.Nos Dirios de Classe de alguns professores indgenas, relatos do seutrabalho pedaggico em sala de aula, essas pedagogias so evidenciadas nas escolhas

    metodolgicas para a aquisio da lecto-escritura, no uso da oralidade para a constru-

    o dos conhecimentos, na organizao do tempo e do espao escolar, no agrupamen-

    to dos estudantes, nas diversas atividades feitas a partir da associao da escola com a

    vida comunitria (PIANTA, 2003).

    Outra idia que conceitua o campo da educao escolar indgena diz respeito

    autodeterminao das comunidades indgenas.Para o RCNEI :

    Os povos indgenas em todo o mundo, no contexto atual de inser-o nos estados nacionais, tm contato com valores, instituiese procedimentos distintos dos que lhes so prprios. Eles tm odireito de decidir seu destino, fazendo suas escolhas, elaborandoe administrando autonomamente seus projetos de futuro. Dessemodo, a escola indgena faz parte desse projeto de construoautnoma do projeto societrio. Para isso, a comunidade deveparticipar da definio do projeto poltico-pedaggico da escola,das decises pedaggicas e curriculares e da organizao e gestoescolares (Op. cit.).

    As experincias alternativas que inovaram a discusso e prtica da educao es-

    colar em um contexto de diversidade indgena firmaram algumas categorias que se tor-

    naram definidoras da escola indgena como uma categoria especfica de estabelecimen-

    to de ensino. So caractersticas da escola indgena: a interculturalidade, o bilingismoou multilingismo, a especificidade, a diferenciao e a participao comunitria.

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    A interculturalidade considera a diversidade cultural no processo de ensino e

    aprendizagem. A escola deve trabalhar com os valores, saberes tradicionais e prticas

    de cada comunidade e garantir o acesso conhecimentos e tecnologias da sociedade

    nacional relevantes para o processo de interao e participao cidad na sociedade

    nacional. Com isso, as atividades curriculares devem ser significativas e contextualizadass experincias dos educandos e de suas comunidades.

    As escolas indgenas se propem a ser espaos interculturais, onde se debatem

    e se constroem conhecimentos e estratgias sociais sobre a situao de contato inte-

    rtnico, podem ser conceituadas como escolas de fronteira15 - espaos pblicos em

    que situaes de ensino e aprendizagem esto relacionadas s polticas identitrias e

    culturais de cada povo indgena.

    Portanto, a educao escolar indgena problematiza enfaticamente a relao en-

    tre sociedade, cultura e escola, reassociando a escola a todas as dimenses da vida

    social e estabelecendo novos sentidos e funes a partir de interesses e necessidadesparticulares a cada sociedade indgena. Assim, a escola indgena ser especfica a cada

    projeto societrio e diferenciada em relao a outras escolas, sejam de outras comuni-

    dades indgenas, sejam das escolas no-indgenas.

    A escola indgena se caracteriza por ser comunitria, ou seja, espera-se que este-

    ja articulada aos anseios de comunidade e a seus projetos de sustentabilidade territorial

    e cultural. Dessa forma, a escola e seus profissionais devem ser aliados da comunidade

    e trabalhar a partir do dilogo e participao comunitria, definindo desde o modelo de

    gesto e calendrio escolar o qual deve estar em conformidade s atividades rituais e

    produtivas do grupo - at os temas e contedos do processo de ensino-aprendizagem.

    Os direitos lingsticosdos povos indgenas, de que os processos de aprendiza-

    gem escolares sejam feitos nas lnguas maternas dos educandos, trazem a ateno para

    a realidade sociolingstica da comunidade onde est inserida a escola e para os usos

    das lnguas tanto no espao comunitrio quanto no escolar. Chamamos isso de bilin-

    gismoou multilingismona escola indgena, visto que em algumas regies, falantes

    e comunidades indgenas usam no dia-a-dia, alm de duas ou trs lnguas maternas, o

    portugus e as lnguas usadas nos pases com que o Brasil faz fronteira.

    Esta caracterstica da escola indgena passa hoje por uma reflexo extensa e pro-

    funda entre os professores indgenas e as equipes tcnicas dos sistemas de ensino, pois

    se trata de uma abordagem s lnguas usadas na comunidade e na escola, tendo em vista

    um horizonte de manuteno, ampliao e/ou revitalizao das lnguas maternas e apren-

    dizagem da lngua portuguesa com metodologias de aquisio de segunda lngua.

    Levar em conta os direitos lingsticos das crianas nas escolas indgenas signifi-

    ca, ento, conhecer a realidade sociolingstica da comunidade e discutir essa realidade

    na escola, fortalecendo e valorizando a lngua indgena em seu uso como lngua de

    instruo, de comunicao, dos materiais didticos e como objeto de anlise e estudo.

    Para isso, os professores indgenas devem participar de cursos de formao continuada

    que possam possibilitar a construo de conhecimento e reflexo sobre a realidade da

    sua lngua, do bilingismo ou multilingismo praticado na comunidade, e formular es-

    tratgias no mbito da escola para fortalecer e ampliar o uso da prpria lngua.

    15 Tassinari (2001) conceitua as escolas indgenas como espaos de fronteira, entendidos como espaos de trn-sito, articulao e troca de conhecimentos, assim como espaos de incompreenses e de redefinies identitriasdos grupos envolvidos nesse processo, ndios e no-ndios.

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    CADERNOS SECAD22

    Anot

    aes

    Nas discusses sobre as realidades sociolingsticas importante problematizar a

    situao do uso da lngua portuguesa como lngua materna. Muitos povos indgenas no

    processo colonizatrio perderam o uso de suas lnguas e adotaram a lngua portugue-

    sa. Vrios pesquisadores vm demonstrando que as variedades da lngua portuguesa

    usadas pelos povos indgenas so marcadas pelas diferenas culturais e que, portanto,essas variedades tm que ser levadas em conta, frente variedade-padro e outras

    variedades, pois espelham o pertencimento tnico dos educandos.

    2.3. As organizaes do Estado brasileiroresponsveis pela Educao Escolar Indgena

    No Brasil Colnia a educao formal dos indgenas esteve primeiramente de

    1549 a 1757 sob a responsabilidade dos missionrios catlicos, principalmente padres

    jesutas, representantes da Companhia de Jesus, os quais foram legitimados e apoiados

    pela Coroa Portuguesa e pelos administradores locais.

    No Perodo Pombalino (1750 a 1777) por contrariar os interesses dos colonizado-

    res e da Coroa Portuguesa, a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil, sendo institudo

    o Regime do Diretrio16. Como afirma Vieira (2003), o Marqus de Pombal pretendia

    instituir no lugar da educao pblica religiosa, vigente at ento, uma educao

    pblica estatal. Em 1798, diante das constantes irregularidades e abusos cometidos

    por alguns diretores contra os ndios dentre outras, aes de violncia e a invaso das

    terras das aldeias - revogado o Diretrio dos ndios.

    De acordo com Cunha (1992), apesar de extinto, o Diretrio dos ndios ficou

    oficiosamente em vigor no perodo entre 1798 a 1845. Em algumas provncias, como

    Cear e Rio de Janeiro, ele foi oficialmente restabelecido. Outras provncias, como a

    do Maranho, passaram a definir suas prprias diretrizes e oficializaram o regime das

    misses, que consistia na permisso legal para o retorno de missionrios ao Brasil sem

    obstculos sua atuao.

    Mesmo depois da instituio do Regulamento das Misses, em 1845 (AMORO-

    SO, 2001), os Diretrios dos ndios foram mantidos com diretores militares naquelas

    provncias onde o nmero de missionrios no foi suficiente para suprir a demanda e osaldeamentos eram localizados em reas de fronteira.

    No Brasil Imprio, os missionrios foram reintroduzidos oficialmente no territrio

    brasileiro para de novo tratarem do governo dos ndios aldeados e de sua educao

    formal, por meio do Decreto n. 426/1845, que definiu o Regulamento das Misses17.

    Mas aos missionrios catlicos desse perodo no se deu total autonomia. Assim sendo,

    de 1845 a 1910, o Estado dividiu com vrias ordens religiosas catlicas a administrao

    da questo indgena, includa a a responsabilidade pela educao formal.

    Com a instaurao e consolidao do regime republicano e da sistematizao

    pelo Estado de uma poltica indigenista baseada nos ideais positivistas, institudo, pelo

    Decreto n 8.072, de 20 de julho de 1910, o Servio de Proteo aos ndios e Localiza-

    16 Tambm chamado de Diretrio dos ndios ou Diretorias dos ndios.

    17 Tambm conhecido por Regulamento da Catequese e Civilizao dos ndios.

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    Educao Escolar Indgena 23

    o de Trabalhadores Nacionais, mais tarde denominado Servio de Proteo aos ndios

    (SPI). Esse foi o primeiro rgo estatal formalmente institudo em separado das ordens

    eclesisticas, com a finalidade de gerir as relaes entre os povos indgenas.

    Da data de sua criao at sua substituio, em 1967, pela Fundao Nacional

    do ndio (Funai), o SPI funcionou vinculado a diferentes ministrios. De 1910 a 1930

    esteve vinculado ao Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio, sendo que, at

    1918, alm do governo dos ndios teve a tarefa de fixao no campo da mo-de-obra

    rural no estrangeira.

    Em 1931 o SPI tornou-se uma seo do Departamento do Povoamento no Mi-

    nistrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, sendo, em 1936, vinculado ao Ministrio da

    Guerra, na Inspetoria Especial de Fronteiras. Em 1939, o SPI volta a subordinar-se ao

    Ministrio da Agricultura (LIMA, 1992:155-72).

    Percebe-se por esse histrico que a questo da proteo dos ndios esteve sem-

    pre intimamente relacionada questo da terra, seja no sentido de colonizar, ocupar

    e demarcar o territrio, seja para fazer essa terra produzir, transformando o ndio em

    trabalhador rural. Como afirma Lima (1992), era tarefa do SPI atrair e pacificar os ndios,

    bem como conquistar suas terras sem destru-los, a fim de que eles se transformassem

    na mo-de-obra necessria execuo dos ideais de desbravamento e preparao das

    terras no colonizadas para uma posterior ocupao definitiva pelos no-ndios.

    Na rea educacional, a nfase no trabalho agrcola e domstico visava incor-

    porao dos indgenas sociedade nacional como pequenos produtores rurais capazes

    de se auto-sustentarem. O SPI iria doutrinar os ndios, fazendo-os compreender a

    necessidade do trabalho, convertendo-os em cidados produtivos. Em sntese, era nostermos do Regulamento do SPI, aprovado pelo Decreto n 736/1936, que se sustentava

    a aplicao dapedagogia da nacionalidadee do civismo.

    A extino do SPI e a criao da Funai tiveram como motivao diversos fatores,

    dentre os quais destacam-se a implantao da ditadura militar, que desencadeia a re-

    definio da burocracia estatal, e a necessidade de se difundir internacionalmente uma

    viso positiva acerca das polticas e aes do Estado brasileiro voltadas s populaes

    indgenas, pois pesava contra o Brasil a acusao de extermnio cultural desses povos.

    A poltica educacional da Funai estruturou-se fundamentada nos Programas de

    Desenvolvimento Comunitrio (PDC), respaldados pela ONU, e nas aes de implanta-o do ensino bilngenas escolas indgenas. Na prtica, de acordo com Santos (1975),

    as escolas situadas em reas indgenas foram estruturadas e funcionavam como as

    escolas rurais de outras partes do Brasil, ou seja, distantes das realidades das diferentes

    comunidades indgenas.

    Em 1991, um conjunto de Decretos descentraliza para outros rgos pblicos

    diversas aes no mbito indigenista, at ento de exclusiva responsabilidade da Funai.

    Essa mudana institucional na conduo da poltica indigenista um marco importante,

    pois envolve novas agncias do Estado no campo da definio e execuo das polticas

    pblicas. Por definio do Decreto Presidencial n 26/1991, o MEC passa a ser respons-

    vel, em todos os nveis e modalidades de ensino, pela definio de polticas de educaoescolar indgena de qualidade, fundamentada nos princpios constitucionais, e os Estados

    e os Municpios passam a ser responsveis pela execuo desta poltica educacional.

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    Anot

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    Para definir essa poltica de educao escolar indgena, o MEC tomou como pa-

    rmetro o trabalho pioneiro realizado na rea, a partir da metade da dcada de 1970,

    por organizaes no-governamentais indgenas e de apoio aos povos indgenas crian-

    do, alm disso, espaos para a participao da sociedade civil nessas definies. Assim,

    no intuito de contar com assessoria, possibilitar a participao dos envolvidos com aquesto indgena e orientar os sistemas de ensino, o MEC, em julho de 1992, instituiu o

    Comit Nacional de Educao Indgena, composto por representantes de organizaes

    no-governamentais, universidades e representantes indgenas.

    Ainda em 1991, foi estruturada a Coordenao-Geral de Apoio s Escolas Ind-

    genas (CGAEI) no mbito da ento Secretaria de Ensino Fundamental (SEF) para co-

    ordenar, acompanhar e avaliar as aes pedaggicas da educao escolar indgena no

    pas18. Alm de mobilizar a atuao do Comit e promover a realizao de encontros

    regionais e seminrios nacionais para discusso e sensibilizao dos sistemas de ensino,

    com a participao representantes indgenas, das organizaes no-governamentais e

    de docentes das universidades.

    Em 2002, o Comit Nacional de Educao Escolar Indgena foi substitudo pela

    Comisso Nacional de Professores Indgenas, formada por treze professores. Em 2004,

    em atendimento propostas e reivindicaes do movimento indgena essa Comisso

    foi transformada em Comisso Nacional de Educao Escolar Indgena, passando a ser

    composta por professores e lideranas indgenas, por entender o movimento que ela

    no deveria ser formada apenas por professores.

    Um outro marco legal importante foi a criao de uma vaga para um represen-

    tante da Educao Escolar Indgena no Conselho Nacional de Educao19, em decorrn-

    cia dos compromissos assumidos pelo Brasil na Conferncia Mundial contra Racismo,

    Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada em Durban, frica

    do Sul, em 2001.

    A Coordenao-Geral de Apoio s Escolas Indgenas (CGAEI) atuou at julho de

    2004, quando, por meio do Decreto Presidencial n 5.159/2004, foi transformada em

    Coordenao-Geral de Educao Escolar Indgena (CGEEI) vinculada ao Departamento

    de Educao para Diversidade e Cidadania (DEDC) da Secretaria de Educao Continu-

    ada, Alfabetizao e Diversidade (Secad).

    2.4. A educao escolar dos indgenas e alegislao brasileira

    No adianta ter leis, se a escola indgena diferente no for diferente.At agora a escola diferenciada s est no papel. A gente j faloumuito sobre escola indgena diferente, mas na prtica as coisas de-moram muito para mudar. A gente no quer que a nossa histriae a nossa cultura se percam. Por isso, muitas comunidades indge-nas esto fazendo seus prprios currculos, do jeito que elas achambom. Agora temos leis que falam de educao indgena. As leis es-

    to do nosso lado e ns vamos lutar para que sejam cumpridas.20

    18 Portaria Interministerial MJ e MEC n 559/1991. (BRASIL.Funai/CGDOC, 2005)

    19 Decreto Presidencial de 15 de maro de 2002.

    20 Depoimento da Prof. Maria de Lourdes, Guarani do Mato Grosso do Sul (apudGRUPIONI, 2004:51).

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    Educao Escolar Indgena 25

    A compreenso das bases legais vigentes que regulamentam e garantem os di-

    reitos indgenas, dentre as quais as relacionadas educao, passa necessariamente

    pelo entendimento de que esses dispositivos, por um lado, refletem a adequao jurdi-

    ca e administrativa do Estado brasileiro aos termos de tratados e pactos internacionais

    dos quais signatrio e, por outro, representam conquistas de lideranas indgenas,que vm ganhando fora junto aos poderes executivos e legislativos brasileiros desde

    meados dos anos de 1970.

    Ao longo do processo de colonizao do territrio brasileiro, o Estado portugus

    era o responsvel por mediar os conflitos entre trs agentes colonialistas: o administra-

    dor legal, o missionrio e o colono. Isso se reflete diretamente na legislao do perodo,

    que se concentrar em disposies jurdicas relativas organizao das relaes entre

    os conquistadores e os conquistados e serviro de respaldo para os fins da evangeliza-

    o realizada de incio apenas pelos jesutas e posteriormente tambm por missionrios

    de outras ordens religiosas.

    A legislao desse perodo no considera o ndio como cidado: ele tido como

    ser humano inferior e dependente do no-ndio, supostamente incapaz de se autogo-

    vernar, o que tornava necessria a tutela do Estado21. Para promover a tutela indgena

    foi necessria a criao de uma legislao compatvel com as idias que se formaram

    em torno dessa questo (COLAO, 2000).

    Outro aspecto caracterstico da legislao do Brasil colonial diz respeito exis-

    tncia de duas categorias distintas de ndios, os aldeados - aliados dos portugueses

    - e os ndios inimigos - espalhados pelos sertes. Seguindo essa diviso, a legislao

    e poltica indigenistas seguem tambm dois rumos distintos: h normas legais que se

    aplicam aos ndios aldeados e aliados e outras relativas aos inimigos 22. Esse princpio

    prevalece ao longo de todo o perodo de colonizao e, para os ndios dceis e amigos,

    funcionava a poltica da brandura, baseada na viso protecionista e paternalista; para os

    inimigos, aplicavam-se asguerras justas, que resultavam na sua morte ou escravizao

    (AMOROSO, 2001).

    Apesar de toda a legislao protecionista, as injustias e a explorao indgena

    aconteciam porque, fundamentada na idia de incapacidade indgena, ela atendia ora

    aos interesses dos governantes, ora aos interesses da Igreja e ora aos interesses dos

    colonos, ignorando quase que totalmente os interesses e as caractersticas prprias das

    sociedades indgenas, cultural e organizativamente diferenciadas.

    A legislao republicana relativa ao ndio marcada pela tomada de conscincia

    da questo indgena. Se no ocorreram mudanas significativas na prtica, pelo menos

    na regulamentao passam a constar princpios como o da relatividade das culturas. Esse

    princpio est presente, por exemplo, no texto do Decreto n 8.072, de 20 de julho de

    1910, que institui o SPILTN (Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhado-

    res Nacionais) e define como fundamento bsico desse rgo o respeito s tribos ind-

    genas como povos que tinham o direito de ser eles prprios, de professar suas crenas,

    de viver segundo o nico modo que sabiam faz-lo: aquele que aprenderam de seus

    antepassados e que s lentamente vai mudar. (RIBEIRO, D. apudRIBEIRO, B.,1984).

    21 Devido viso do ndio como uma criana imatura e indefesa e do estado como seu tutor e protetor, havia nesteperodo a figura do juiz de rfos, pois cabia aos rgos do Estado a funo de proteger e garantir o bom trata-mento aos ndios, garantindo-lhes a evangelizao, a educao e o amparo de enfermos e rfos, protegendo-osem suas relaes com outros ndios e com no ndios (cf. COLAO, 2000:97; CUNHA, 1992:146-7).

    22 O texto de Beatriz Perrone Mises (In: CUNHA, 1992, p. 115-32) apresenta uma anlise da legislao para osndios aldeados e para os no aldeados no Brasil dos sculos XVI a XVIII.

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    Alm desse decreto de instituio do SPI merecem destaque, neste perodo, a

    Lei n 5.371, de 1967, que extingue esse rgo e institui a Fundao Nacional do ndio

    (Funai), que o substituir em suas atribuies; e a Lei n 6.001, de 19 de dezembro de

    1973, que define o Estatuto do ndio.

    Entretanto, o estudo das leis brasileiras relativas questo indgena demonstra

    que, apesar de assumir nuances diferentes, segundo os interesses polticos, econmi-

    cos e sociais presentes na sociedade geral em seus diferentes momentos histricos, os

    documentos legais relacionados ao ndio permanecem, em sua essncia, praticamente

    inalterados desde o perodo colonial at os anos de 1980, na pressuposio da supera-

    o de suas identidades tnicas.

    At a promulgao da Constituio de 1988, a legislao fundamentava-se na

    pragmtica assimilacionista e na ideologia integracionista23. Assim, os dispositivos le-

    gais buscavam legitimar a conquista e o domnio sobre os bens dos povos indgenas;

    serviram para justificar as guerras contra os ndios, para tranqilizar as conscincias dosgovernantes com relao ao extermnio dos povos indgenas em confrontos armados,

    bem como a utilizao da mo-de-obra indgena e a negao dos direitos desses povos

    durante quase 500 anos de dominao, destruio e morte.

    As definies da Constituio Federal de 1988 relativas aos direitos dos ndios

    consolidaram os avanos alcanados junto ao Estado pelo movimento indgena, que

    desde a dcada de 70 se organizava na busca da afirmao dos direitos desses povos no

    Brasil. Os arts. 231 e 232, respectivamente, reconhecem aos ndios sua organizao

    social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras

    que tradicionalmente ocupam e que suas comunidades e organizaes so partes

    legtimas para ingressar em juzo em defesa de seus direitos e interesses rompendo

    definitivamente com o paradigma integracionista e a instituio da tutela.

    Essas definies devem-se tambm adequao do Estado brasileiro a um pano-

    rama mundial em que muitos Estados Nacionais, diante da luta por direitos humanos e

    sociais, afirmam, por meio de novos ordenamentos constitucionais e legais, a possibili-

    dade dos povos indgenas manterem suas identidades e prticas socioculturais.

    Nessa perspectiva, as definies da Constituio Brasileira de 1988 representam

    o marco mais importante na legislao referente a questes indgenas, pois possibilitam

    a reformulao de todos os parmetros legais e conceituais que presidem o relaciona-

    mento do Estado brasileiro com esses povos.

    Dentre os encaminhamentos importantes efetivados aps a Constituio de 1988,

    est o Decreto Presidencial n 26/1991, que define o Ministrio da Educao como o res-

    ponsvel pela proposio da poltica de educao escolar indgena, passando os Estados

    e Municpios a ser responsveis por suas execuo sob orientao do MEC.

    Alm desse decreto, outros documentos legais representativos so gerados no

    plano educacional. Destacam-se, no mbito federal, a Lei n 9.394/96, de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional, o Plano Nacional de Educao Lei n 10.172, de 9 de

    janeiro de 2001, o Parecer n 14/99 do Conselho Nacional de Educao (CNE), que tra-

    ta das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educao Escolar Indgena, regulamentadas

    pela Resoluo n 03/CNE/99.

    23 Vale registrar que a poltica integracionista reconhecia as diferenas, mas pretendia extermin-las, pois visavaa anulao de toda e qualquer diferenciao tnica por meio da incorporao dos ndios sociedade nacional(RCNEI.BRASIL. MEC, 2005 a: 26).

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    No mbito dos Estados h, no perodo ps-Constituio Federal de 1988, a pro-

    mulgao de novas Constituies e definio de legislaes especficas para a educao

    escolar indgena, com o intuito de se adequarem os princpios nacionais s particulari-

    dades locais.

    Embora ainda no se tenha alcanado a plena efetivao das leis na forma como

    foram pensadas e definidas, no se pode negar o avano desencadeado pelas defini-

    es presentes na Constituio Federal de 1988 e nos documentos dela decorrentes.

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    3. DIAGNSTICO

    3.1. A Educao Escolar Indgena nos censoseducacionais 2002 a 2006

    Os dados do Censo Escolar Inep/MEC 2006 mostram que a oferta de educao

    escolar indgena cresceu 47,3% nos ltimos quatro anos. Em 2002 tnhamos 117.171

    alunos freqentando escolas indgenas em 24 unidades da federao. Hoje este n-

    mero chega a 172.591 estudantes em cursos que vo da educao infantil ao Ensino

    Mdio.

    No Grfico 1 a seguir, os nmeros nos informam que, a partir de 2002, a expan-

    so anual da matrcula em escolas indgenas aproximava-se da taxa de 10% ao ano.Nenhum outro segmento da populao escolar no Brasil apresenta um crescimento to

    expressivo no perodo.

    Grfico 1 Estudantes indgenas na Educao Bsica 2002-2006

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    De acordo com o Censo Escolar 2005, os estudantes indgenas estavam distribu-

    dos nos diversos nveis e modalidades de ensino, conforme consta da Tabela 1 abaixo:

    Tabela 1 Alunos indgenas em escolas indgenas, segundo o nvel e modalidade de ensino - 2005

    Nveis / Modalidades Total dealunos

    % sobre total

    Educao Infantil 18.583 11,3

    Ensino Fundamental - 1 segmento 104.573 63,8

    Ensino Fundamental - 2 segmento 24.251 14,9

    Ensino Mdio 4.749 2,9

    Educao de Jovens e Adultos 11.862 7,2

    Total 164.018 100

    Em 2006, a distribuio se apresentava conforme descrito na Tabela 2 a seguir:

    Tabela 2 Alunos indgenas em escolas indgenas, segundo o nvel e modalidade de ensino - 2006

    Nveis / ModalidadesTotal dealunos % sobre total

    Educao Infantil 18.846 10,9

    Ensino Fundamental - 1 segmento 104.906 60,8

    Ensino Fundamental - 2 segmento 28.226 16,4

    Ensino Mdio 7.630 4,4

    Educao de Jovens e Adultos 12.983 7,5

    Total 172.591 100

    Podemos observar que cresceu a oferta do segundo segmento do Ensino Funda-

    mental e do Ensino Mdio em escolas indgenas, o que desejvel.

    Entretanto, em que pesem os avanos obtidos nos ltimos quatro anos, estes

    dados demonstram que muito ainda tem que ser feito, pois:

    A relao entre o nmero de alunos indgenas nos dois segmentos do Ensino

    Fundamental de 3,72. Obtivemos este ndice dividindo o total de alunos

    indgenas matriculados no primeiro segmento do Ensino Fundamental pelo

    nmero de alunos indgenas matriculados no segundo. Se a oferta de Ensino

    Fundamental estivesse, de fato, garantida s comunidades indgenas esta re-

    lao seria prxima a 1,00, pois este ndice tem um valor mdio de 1,23 paratodo o pas.

    O nmero de estudantes indgenas em turmas de Ensino Mdio ainda mui-

    to reduzido. Isto significa que centenas de jovens indgenas ainda tm que

    migrar para as cidades em busca do Ensino Mdio, enfrentando inmeras

    situaes de risco social.

    Apesar do expressivo investimento realizado em 2005 e 2006, a maioria das

    escolas indgenas no conta ainda com estrutura fsica e equipamentos ade-

    quados ao pleno desenvolvimento de suas atividades.

    No h uma avaliao adequada da qualidade do ensino ministrado nas aldeias.

    Em alguns estados a formao do professor indgena se faz de forma intermi-

    tente e com qualidade questionvel.

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    De todo modo importante ressaltar que a expanso da oferta do segundo

    segmento do Ensino Fundamental no perodo de 2002 a 2006 foi mais acentuada que

    a oferta do primeiro segmento, o que significa em mdio prazo a garantia de Ensino

    Fundamental completo nas terras indgenas. A Tabela 3 registra estes dados.

    Tabela 3 Expanso da matrcula de estudantes indgenas em escolas indgenas e relao entre nmero

    de alunos indgenas matriculados no 1 e 2 segmentos do Ensino Fundamental 2002 e 2006

    Ensino Fundamental N alunos 2002 N alunos2006% de Crescimento

    da Matrcula

    Primeiro Segmento 82.918 104.906 + 26,4

    Segundo Segmento 16.148 28.226 + 74,8

    Total 99.066 133.132 + 34,4

    Relao 1 seg. / 2 seg. 5,13 3,72

    A relao entre o nmero total de estudantes nos dois segmentos do Ensino

    Fundamental (ltima linha da tabela) outra forma de detectar a expanso da oferta

    de 5aa 8asries nas aldeias.

    Os dados do Censo Escolar Inep/MEC 2006 mostram uma evoluo ainda mais

    significativa no Ensino Mdio oferecido nas terras indgenas, conforme demonstrado

    na Tabela 4.

    Tabela 4 Evoluo da matrcula de alunos indgenas em escolas indgenas de Ensino Mdio 2002 a 2006

    Escolas eEstudantes indgenas 2002 2006

    Taxa deExpanso (%)

    Escolas indgenas com Ensino

    Mdio 18 escolas 99 escolas + 405Estudantes indgenas nestasescolas 1.187 7.630 + 543

    Com relao ao nmero de estabelecimentos temos um aumento significativo

    na quantidade de escolas indgenas nos ltimos quatro anos, conforme demonstra o

    Grfico 2.Grfico 2 Escolas Indgenas de Ensino Bsico 2002 - 2006

  • 7/26/2019 Educao Escolar Indigena_Cadernos SECAD

    31/133

    Educao Escolar Indgena 31

    De 2002 a 2006, 713 novas escolas indgenas entraram em funcionamento (ou

    escolas j existentes passaram a ser reconhecidas como escolas indgenas), o que signi-

    fica uma expanso de 41,8 %. Sabemos que cada escola indgena abriga em mdia se-

    tenta alunos, quatro professores e pelo menos mais um funcionrio da comunidade. O

    crescimento no nmero de escolas indgenas significa, portanto, cerca de 49.910 novosalunos indgenas tendo acesso formao escolar, cerca de 2.852 novos professores e,

    pelo menos, 3.565 novos assalariados em terras indgenas.

    Com relao vinculao e manuteno das 2.324 escolas registradas no Censo

    Escolar de 2005 tnhamos a situao apresentada na Tabela 5.

    Tabela 5 Escolas indgenas segundo a dependncia/categoria administrativa - 2005

    Escolas Indgenas N de escolas

    Estaduais 1.083

    Municipais 1.219Particulares 22

    Total 2.324

    Com relao vinculao das atuais 2.419 escolas, temos o quadro exposto na

    Tabela 6 e no Grfico 3 a seguir.

    Tabela 6 Escolas indgenas segundo a dependncia/categoria administrativa - 2006

    Escolas Indgenas N de escolas

    Estaduais 1.112

    Municipais 1.284

    Particulares 23

    Total 2.419

    Grfico 3 Escolas Indgenas segundo a dependncia/categoria administrativa 2006

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    CADERNOS SECAD32

    Anot

    aes

    O expressivo nmero de alunos indgenas no Ensino Fundamental garantiu, em

    2006, s escolas das comunidades indgenas que fazem parte dos sistemas estaduais

    e municipais de ensino, recursos da ordem de R$ 149 milhes, oriundos do Fundo de

    Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magist-

    rio (Fundef). Tambm por pertencerem aos sistemas estaduais e municipais de ensinotodas essas escolas tm acesso aos programas do Fundo Nacional de Desenvolvimento

    da Educao (FNDE), tais como Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE); Programa

    Nacional de Alimentao Escolar Indgena (PNAEI); Programa Nacional do Livro Didtico

    (PNLD); entre outros.

    3.2. Os sistemas de ensino e a EducaoEscolar Indgena

    A Educao Escolar Indgena vive hoje impasses com relao efetivao do

    que est garantido em diversos textos legais e normativos. necessrio refletir sobre

    quais alternativas podem ser propostas para acelerar o processo de desenvolvimento

    da educao escolar indgena sob os princpios da interculturalidade e do bilingismo

    ou multilingismo, a fim de resolver questes como: i) a falta de regulamentao sobre

    oregime de colaborao que rege a relao entre as trs esferas de governo; ii) a des-

    continuidade da ao dos sistemas de ensino, a dificuldade de estabelecer um dilogo

    intercultural, ouvindo e compreendendo as perspectivas indgenas; iii) problemas de

    gesto que mantm as escolas indgenas sem receber insumos bsicos para seu fun-

    cionamento, como merenda escolar e material didtico; iv) falta de transparncia naaplicao dos recursos pblicos.

    Nesse sentido, a proposio do movimento indgena de criao de um Sistema

    de Educao Escolar Indgena, com mecanismos legais e normativos que garantam a

    autonomia to buscada pelas escolas indgenas e assegurem a aplicao dos recursos

    pblicos disponveis para a educao escolar, ganha fora. Essa discusso ainda est em

    processo em diferentes fruns na sociedade civil e no mbito estatal.

    Parece vivel pensar que, mais que uma modalidade de ensino, a Educao Es-

    colar Indgena pode ser considerada um sistema, ou um subsistema especfico dentro

    do sistema de ensino, uma vez que a escola indgena definida pelo Conselho Nacionalde Educao (CNE) como uma categoria especfica de escola, com normas e procedi-

    mentos jurdicos prprios, e as diretrizes e os objetivos dessa modalidade de educao

    escolar tm como foco a valorizao dos usos lingsticos, a interculturalidade, a parti-

    cipao comunitria e a colaborao com seus projetos de auto-sustentao.

    A regulamentao desse sistema geraria mecanismos legais, normativos e geren-

    ciais que tornariam mais claro para as Secretarias de Educao o tratamento que essas

    escolas devem receber. Hoje, no mximo, so feitas adaptaes em um quadro legal

    pr-existente que no condiz com as perspectivas da educao escolar intercultural.

    Existem vrios exemplos desse ajuste, tais como os que so feitos para a contratao

    de professores, elaborao de calendrios escolares, desenvolvimento de modelos de

    gesto pedaggica e de currculos, que no satisfazem, com toda razo, os diferentes

    atores indgenas, sejam eles professores ou lideranas.

  • 7/26/2019 Educao Escolar Indigena_Cadernos SECAD

    33/133

    Educao Escolar Indgena 33

    4. POLTICAS PBLICAS PARA A EDUCAOESCOLAR INDGENA

    Para enfrentar os desafios postos para o incremento da Educao Escolar Indge-

    na, com qualidade e respeito autodeterminao desses povos, a Secad/MEC direcio-

    nou seu esforo institucional a aes que proporcionassem mudanas e impactassem

    a conduo das polticas pblicas para Educao Escolar Indgena em todas as esferas

    de governo. Para isso, foram priorizadas: a articulao com o Conselho Nacional de

    Secretrios Estaduais de Educao (Consed), a poltica de concertao e articulao

    intraministerial e o fortalecimento do controle social indgena.

    Para dar peso poltico s diversidades socioculturais na educao escolarizada, foi

    fortalecida a articulao com o Consed, tendo em vista a mobilizao dos sistemas de

    ensino em uma escala que garantisse mudanas nas polticas e programas educacionaiscom contedo e celeridade. Essa conjugao de esforos viabilizou o compromisso das

    Secretarias Estaduais de Educao com a agenda poltica das diversidades socioculturais.

    Com isso, uma srie de aes foi posta em curso para dar centralidade Edu-

    cao Escolar Indgena no conjunto de polticas e programas desenvolvidos pelas Se-

    cretarias de Educao. Analisou-se, em vrias reunies no mbito daquele colegiado, a

    situao da Educao Escolar Indgena. Foram estabelecidas prioridades, discriminados

    os desafios e pactuada com o MEC uma agenda24que criasse um novo patamar de

    compromisso e responsabilidade institucional com uma educao escolar que respeitas-

    se os projetos de futuro dos povos indgenas.

    A articulao com o Consed favoreceu discusses coletivas e ampliadas com os

    dirigentes pblicos, proposies e decises que tiveram ressonncia nas Secretarias de

    Educao, dinamizando novos contextos poltico-administrativos para o atendimento

    das demandas indgenas.

    Como estratgia para dar efetividade ao regime de colaborao que rege as rela-

    es entre os sistemas de ensino no pas, a Secad/MEC props uma poltica de concer-

    tao na qual compromissos foram acordados, com expressiva participao indgena,

    entre as instituies responsveis na esfera federal, estadual e municipal, para melhoria

    das condies de gesto da educao escola indgena.

    Ao fim de audincias pblicas, seminrios estaduais e/ou regionais, ou reuniesampliadas, um termo de compromisso era pactuado entre os dirigentes pblicos, com

    participao de organizaes no governamentais indgenas ou no-indgenas, para

    garantir as aes do controle social indgena e a cobrana de responsabilidade pelo

    Ministrio Pblico Federal. A proposta teve o efeito positivo de dinamizar a estrutura

    pblica possibilitando gerar mais foco no planejamento estratgico, na execuo ora-

    mentria e na avaliao das aes desenvolvidas.

    Investiu-se tambm no fortalecimento do controle social indgena na de-finio e acompanhamento das polticas pblicas. No mbito do Ministrio daEducao foi alterado o perfil da instncia de participao e controle social,

    atendendo reivindicaes do movimento indgena, e fomentado o dilogo entre aComisso Nacional de Educao Escolar Indgena (CNEEI) e os vrios rgos do MEC.

    24 Carta do Amazonas, abril de 2005.

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    CADERNOS SECAD34

    Anot

    aes

    Nos demais sistemas de ensino, a Secad/MEC incentivou a criao de espaos p-

    blicos que possibilitassem a interlocuo institucionalizada dos representantes indge-

    nas com dirigentes e gestores para dar foco ao planejamento e execuo dos recursos

    oramentrios disponveis.25

    As estratgias estabelecidas pela Secad/MEC tornaram necessria uma forte arti-

    culao intraministerial. Foram envidados esforos contnuos para buscar parcerias com

    os demais rgos do MEC, visando a fortalecer e integrar polticas pblicas.

    As aes de formao de professores indgenas em nvel superior, bem como

    as focadas no acesso, permanncia com sucesso e relevncia cultural para estudantes

    indgenas em cursos universitrios, com os investimentos financeiros implicados, esto

    sendo construdas com a Secretaria de Educao Superior (Sesu/MEC).

    Observe-se que, para a oferta de educao bsica intercultural nas escolas ind-

    genas, prioritria a formao de professores indgenas em licenciaturas especficas.

    Resultados promissores tm sido verificados com o apoio s propostas formuladas pelas

    universidades pblicas em dilogo com representantes das comunidades indgenas, o

    qual foi viabilizado por essa articulao entre a Secad e a Sesu.

    Outra importante poltica pblica est sendo construda com a Secretaria de

    Educao Tecnolgica (Setec/MEC) para a integrao da educao profissional com a

    educao bsica intercultural indgena. Os povos indgenas demandam que seus jovens

    recebam uma formao ancorada em seus conhecimentos tradicionais, que possibilite

    igualmente o acesso a tecnologias e conhecimentos cientficos que possam subsidiar

    seus projetos de