eduardo pellejero - golgona anghel, fora da filosofia - as formas dum conceito em sartre, blanchot,...

113

Upload: eduardo-pellejero

Post on 25-Nov-2015

45 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

  • Fora da filosofia As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze

    Editado por Golgona Anghel e Eduardo Pellejero

    Vol. I

  • Edio: Golgona Anghel e Eduardo Pellejero. Titulo: Fora da filosofia. As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze Capa: Manuel Anghel Data: Janeiro de 2008 ISBN: Depsito legal: Este livro foi realizado no mbito do Centro de Filosofia das Cincias da Universidade de Lisboa (POCTI-ISFL-20-678).

  • Fora da filosofia

  • O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao, Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada, Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente e De Sartre a Deleuze: Onde que pra o compromisso literrio? foram apressentados no I Workshop Fora da Filosofia, organizado pelo Centro de Filosofia das Cincias da Universidade de Lisboa, em colaborao com o Centro de Centro de Histria e Filosofia da Cincia e da Tecnologia da Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e o Departamento de Literaturas Romnicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A clausura do fora foi publicado antes em: Peter Pl Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura - Loucura e desrazo, So Paulo, Brasiliense, 1989. E cantam na planura foi publicado em espanhol em: Archipilago, Cuadernos de Crtica de la Cultura, n 17, Octubre-Diciembre 1994.

  • A abbora que se tornou cosmos A exposio do pensamento ao fora da filosofia

    Freedom fighters come and go Bloody, righteous - and mentally slow

    We're out of work We're out of time We're out of luck We're out of line

    Now we're on the borderline we've really gone and done it this time People say it could never happen here

    But this is a strange frontier.

    Roger Taylor, Strange Frontier

    Duma maneira ou outra estamos todos fora. Minados por deslocamentos lingusticos, culturais ou polticos, os nossos lugares de enunciao parecem cada vez mais precrios no qua-dro do sistema que aspira totalizao do real pela representa-o (duma representao que pretende regular o que significa pensar, criar, lutar, viver). E talvez seja nesse sentido que deve-mos ler a afirmao de Herberto Hlder: todos os lugares esto no estrangeiro (e, seguramente, a de Deleuze: cada um tem o seu sul e o seu terceiro mundo).

    Desejar numa lngua, escrever noutra, pensar numa terceira (viver na que nos seja possvel). E fazer filosofia, claro, na lngua que lhe prpria (as alfndegas filosficas funcionam nisto muito melhor do que as nacionais ou comunitrias: h que adequar-se a um modelo, inscrever-se numa tradio, para ter direito a exerc-la; o resto fica na fronteira). Antes de comear sequer, impe-se uma forma, um contedo.

    Antes de estalar a segunda guerra mundial no seu pas, o escritor polaco, Witold Gombrowicz, sobe ao bordo dum tran-satlntico via Buenos Aires. A viagem atrasa-se 24 anos em ter-ras argentinas. As conversaes no Caf Rex, o xadrez e a por-nografia, as mulheres ricas que acreditam na sua obra, as expe-

    55

  • rincias homossexuais e sobretudo a lngua do exlio, o caste-lhano, constroem as palavras e a fama de W., Toldo, Witoldo. Kafka era judeu e checo mas tinha que escrever em alemo. Kundera ainda no foi traduzido integralmente do francs para a sua lngua materna e o escritor checo mais famoso do momento embora a academia de Praga se tenha vindo a recusar at agora a outorgar-lhe o prmio mais importante de literatura daquele pas. Outros escritores de expresso francesa mas de origem alheia, os romenos Gherasim Luca e Eugen Ionescu fizeram das suas dificuldades lingusticas, da impossibilidade de escrever em francs (por isso mesmo inevitvel faz-lo) um lugar para questionar os prprios limites da literatura. Luca insiste num gaguejar criativo enquanto Ionescu revela que foram preci-samente as tcticas exaustivamente repetitivas e mecnicas dos manuais de lngua que o fizeram levar ao absurdo o teatro na lngua de Racine. Cioran nunca teria sido conhecido, qui, se no tivesse abraado as formas dessa lngua maior. Um con-temporneo seu, Celan, anagrama do romeno Ancel, seguiu o mesmo caminho do exlio francs mas escreveu em alemo, escreveu tanto que se tornou num dos mais importantes poetas modernos da lngua alem. E preciso mesmo ter uma anticabe-a e um corao de gs para abrir a pgina do dicionrio, espetar um estilete sobre a palavra dada e assim nomear um movi-mento de vanguarda. Sami Rosenstock, o romeno judeu, o homem aproximativo conhecido nas noites de Zurique como Tris-tan Tzara, teve esta audcia e assim nasceu o dadasmo.

    Parece que preciso, no s sair para fora de si para alimen-tar a sua prpria voz mas pactuar com o fora, agenciar o outro com o outro, fazer corpo com essas linhas intempestivas e domar essa geografia onde o tempo se desconhece por um momento na histria, abrindo o espao para o surgimento do novo.

    Duma maneira ou outra estamos todos expostos ao fora. No j o ser para a morte heideggeriano, mas o ser formatado a priori pela existncia duma fora plural e coextensiva da vida. Bichat, por exemplo, em vez de pensar a morte como fizeram os clssicos, como um ponto, converte-a numa linha que afronta-mos continuamente, que trancamos at ao momento em que se

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    6

  • acaba. disso que se trata, enfrentar a linha do Fora, dobr-la como quem fecha chave os quartos da casa.1 Recordando esta esttica do fim derradeiro, Rilke conta num dos seus livros (Os cadernos de Malte Laurids Brigge) que em tempos imemoriais as pessoas levavam com elas a sua morte, assim como as ameixas levam dentro o seu caroo. Os adultos tinham uma grande e as crianas uma pequena. As mulheres andavam com ela no seio, os homens traziam-na sepultada no peito. Cada um tinha a sua morte e esta conscincia dava-lhes orgulho, maquinava-lhes uma arte de (sobre)viver. No volume sobre Foucault, Deleuze parece contar a mesma histria, aquela do tempo-morte que se trans-forma num Si. Isto , o fora cria um dentro nas suas dobras, um dentro que se apresenta como resistncia, presente, vida, indi-viduao. Uma histria semelhante deste tempo estranho pare-ce funcionar no processo heteronmico pessoano. No Fer-nando Pessoa, o autor de Chuva oblqua, que escreve. Ele sus-pende-se enquanto autor e passa a existir num plano virtual para deixar que a personagem do tempo das pirmides, a Esfin-ge, vista a roupa do actual e se torne mais real que o prprio Pessoa, porque mais forte, mais frtil.

    De volta filosofia, basta pensar as dificuldades que levan-tam qualquer tentativa de pensar por conceitos fora de Europa. -nos permitido, no melhor dos casos, as veleidades da literatu-ra, de uma certa literatura, legitimada pelos vagos prestgio do mgico (e inclusive na Amrica anglo-saxnica, uma vez que-brado o cordo que o ligava terra me o crculo de Viena, a escola de Frankfurt o pensamento perde o direito filosofia e deve limitar-se aos guetos dos estudos culturais). Eis aqui duas maneiras de fechar o fora da filosofia na interioridade dos departamentos universitrios ou nas marcas de famlia de um gnero.

    H um pensamento do fora que segue sem ter direito a um lugar na filosofia, na literatura, nas artes plsticas; pensamento da loucura, da colnia, da minoria.

    Como em qualquer sociedade medieval, as mulheres da cor-te japonesa, embora muito privilegiadas em comparao com as das classes mais baixas, estavam sujeitas a uma srie de regras e limites. Alm de totalmente isoladas do mundo externo, elas

    A abbora que se tornou cosmos

    7

  • tambm viviam limitadas pela prpria lngua, visto que desco-nheciam a escrita Kanji e o vocabulrio importado do chins pela linguagem culta, que era ento de uso exclusivo dos erudi-tos de sexo masculino. Apesar das circunstncias, coube a um grupo de nobres japonesas talentosas usar a escrita fontica Kana para dar assim origem literatura japonesa e inventar uma grafia que deu depois lugar inveno de dois alfabetos usados hoje em dia: hiragana e katacana. A escritora japonesa, Murasaki Shikibu (978? - 1026?), o nome mais eminente deste perodo. O seu livro, Genji Monogatari ou a Histria de Genji, o primeiro romance da literatura japonesa. Harold Bloom confe-re-lhe o poder fundacional do Dom Quixote.

    Camille Caudel passa despercebida na histria da arte devi-do a sua doena mental surgida no seguimento da ruptura da sua relao com Rodin. Colaboradora e amante do escultor durante mais de quince anos, a sua prolfica produo artstica foi ignorada completamente numa poca em que as mulheres eram circunscritas s limitaes duma minoria negligencivel. A sua psicose provocada pela separao de Rodin reforou o seu isolamento e favoreceu a nvoa em que se perdi a sua obra. Poucos sabem hoje que muitas foram as esculturas trabalhadas em comum com Rodin e que a Camille Claudel tinha a exmia habilidade para esculpir as mos e os ps.

    Contudo, o tema do fora retoma de alguma maneira o pro-blema da crtica, s que o faz de tal modo que no a reformula sem propor a travs desse movimento uma extenso criativa. Um pensamento do fora, de facto, seria aquele que no colo-casse a pergunta sobre as condies de possibilidade da expe-rincia (anlise) sem questionar-se ao mesmo tempo sobre as condies de possibilidade duma experimentao que teria por objecto pensar aquilo que escapa s primeiras (diagnstico). Trata-se, ento de desenvolver as armas, os meios de expresso necessrios para pensar aquilo que escapa representao (de facto e de direito).

    Em vez de resposta, um eco: a arte no mostra o visvel, ela torna visvel. o grito de Klee contra a mimese e as teorias clssicas da representao. No um sentido prvio que mostra

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    8

  • o movimento das coisas, o devir das coisas que se constituem como movimento de sentido.

    E j Foucault assinalava como Marx, Nietzsche e Freud nos abriram novas possibilidades de interpretao2, no mesmo sen-tido em que Deleuze dir que dispomos hoje de meios de pene-trar o sub-representativo (que atravs de Freud dispomos, por exemplo, de uma nova noo do inconsciente 3 ), marcando nessa direco uma das linhas programticas da filosofia (o filsofo como aquele que torna pensveis as foras que ainda no so pensveis)4.

    Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze, so os nomes que mar-cam esta linha menor da filosofia que vem dar uma continuida-de paradoxal a este exerccio de pensamento que se situa nos limites da representao, da racionalidade, da sade: Sade, Hlderlin, Nietzsche, Mallarm, Artaud, Bataille, Klossowsy. E, inclusive se no podemos afirmar para alm de qualquer suspei-ta, que atraco para Blanchot o que, sem dvida, para Sade o desejo, para Nietzsche a fora, para Artaud a materiali-dade do pensamento, para Bataille a transgresso5, a verdade que na apropriao de todos os conceitos se volta a pr em jogo, cada vez, a sobredeterminao do pensamento pelo possvel (formal, transcendental, histrico, material), assim como as eventuais linhas de fuga.

    Para alm, da conquista laboriosa da sua unidade, a exposi-o da filosofia eroso indefinida do fora, leva desta maneira o pensamento a pr em causa os seus pressupostos e colocar em questo a (im)possibilidade radical do seu incessante recomeo. A aposta do jogo a sorte de outro jogo (quando j no parece possvel continuar a jogar); a perverso de um teatro que, fora de m vontade, renova a esperana (desesperada) de encontrar uma sada. Ao abrir-se ao que est alm das suas determinaes histricas e transcendentais, a filosofia procura assim que a cruel indiferena do caleidoscpio ou o golpe cruel dos dados sobre a mesa (como um ponto de crise, de fuso ou de congelao, de ebulio ou de cristalizao), revele as virtua-lidades as virtualidades latentes de um mundo que se fecha sobre a actualidade mais claustrofbica. O pensamento abraa assim, o mistrio da criao, como quem diz o mistrio da f

    A abbora que se tornou cosmos

    9

  • (pelo menos se nos situamos no horizonte terico que Deleuze prope na sua leitura de Peguy), isto , o assombro radical de que um problema do qual no se via o fim, um problema sem sada, um problema em que todo o mundo estava estagnado, de repente deixe de existir e nos perguntemos de que que esta-mos a falar. Peguy, de facto, assinalava que os acontecimentos, como certos estados de sobrefuso, s se precipitam ou cristali-zam pela introduo de um fragmento de acontecimento futuro, por foras que se apropriam de um fenmeno, de um valor, de uma representao, diria Nietzsche, para lhe dar outro sentido, outra essncia, outra vida pela gravitao, generalizemos, do que nesta artificial famlia de filsofos ganhar o nome do fora. Irrupo que faz com que, de repente, sem ter acontecido nada de relevante, se esteja num povo novo, num novo mundo, num novo homem, e que pensar seja de novo possvel no pensamento e que valha a pena pensar.

    E, neste sentido, poderamos parafrasear Foucault e dizer que a filosofia no ento nem a verdade nem o tempo, nem a eternidade nem o homem, seno a forma sempre renovada do fora.

    Uma vez assentes estes elementos minimais para a problema-tizao do conceito, da figura ou da gravitao do fora, as cone-xes se multiplicam e com elas se vai povoando um plano de singularidades ideais. Os personagens so velhos amigos da tropa (alguns, inclusive, partilharam a territorialidade primitiva do bairro e da juventude). Retratamos a seguir as suas apresen-taes formais.

    Patrcia San Payo situa o pensamento do fora para alm da filosofia e do conceito; recuperando a escrita de Blanchot, afir-ma a experincia do fora como a experincia da arte por exce-lncia; olhar por intermdio do qual o Outro se d a conhecer sem contudo perder a sua alteridade e exterioridade. Contra-mundo cuja presena assombra o pensamento e o incita a pen-sar (actuar), no mesmo sentido, talvez, que o fantasma do seu pai mobiliza Hamlet na procura de uma justia impossvel de realizar (espectros da loucura, da perverso, do menor em geral, diramos ns, pensando em Derrida, sem querer com isso poli-tizar em demasia a sua leitura de Blanchot.)

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    10

  • Ao levar-nos intempestivamente ao domnio da msica, Jos Luis Pardo lembra-nos outro nome deleuzo-guattariano para o fora: a msica, que desde uma perspectiva que procura pr em questo a filosofia heideggeriana, constitui o fora da linguagem. A Heidegger lhe devemos, de facto, uma curiosa cantilena que reza assim: a liguagem a casa do ser (deixem-se de msicas, nunca sairo da linguagem) (...) Fora da linguagem nada . De modo que a suposio mais prudente, por muito aberrante que possa parecer, seria que habitamos uma casa que no tem exte-rior, que vivemos confinados num interior sem exterior no qual jamais entrmos e do qual jamais nem sequer pelo negro buraco da morte sairemos. A esta filosofia que pretende fazer coincidir o fim da metafsica com o fim da distino entre inte-rior e exterior sobre a base de uma linguagem autntica, o pen-samento deleuziano contrape uma arte de inventar ladainhas (conceitos) a parti do caos (fora), isto , um pensamento que pela amplificao e o desdobramento do ritmo a-significante das foras sub-representativas faz estremecer a linguagem para alm das condies transcendentais da sua possibilidade: Uma msica que no se pode imaginar nem recordar, trautear nem medir. A msica imensa da natureza sonora, da qual a msica humana no mais que uma pequena parte, uma pequena ilha ou arquiplago de sons bem medidos e agradveis. Pardo no s reconhece uma resposta filosofia heideggeriana, como tam-bm ao mesmo tempo d um sentido (produtivo) equiparao da arte msica (como conceito filosfico e ideia de arte) que Rancire sublinhava em Deleuze e a literatura: precisamente porque a natureza se tornou insensvel e inimaginvel pode a filosofia assenhorar-se do problema de como o imenso-insensvel (os ritmos inimaginveis que no se podem medir, que no se podem ouvir) pode chegar a devir cantilena, de como o inaudvel devm audvel, de qual a mathsis mediante qual a prpria Phisis devm sensvel e sentida.

    Numa lectura original da Histria da Loucura de Foucault, com Blanchot a cruzar os eixos, Peter Pal Pelbart afirma que a loucura (como por outra parte a produo de minorias, estran-geiros, etc.) responde exigncia histrica de enclausurar o Fora, que assim dobrado numa srie de foras encarceradas em

    A abbora que se tornou cosmos

    11

  • tmulos tristes (loucos crnicos, peas de museu). Peter Pelbart no faz isso sem sembrar-nos que, para alm da produo do louco nos hospitais (como das minorias em guetos, os estrangei-ros nas fronteiras, etc.), o fora sobrevive como uma potncia do pensamento (e, acrescentemos, da aco), na figura da desrazo insurrecta que como neutro, anula o tempo, dissolve a hist-ria, desbarata a dialctica e a verdade, abole o sujeito e faz soo-brar uma ordem. Esperana numa aliana entre razo e desra-zo que no desemboque na loucura, na alienao ou no enclausuramento, e por conta da qual se numera a fora capaz de arruinar qualquer histria (logo, as pretenses de totalizao de todo diagrama de poder).

    Numa outra abordagem da obra de Foucault que sugestiva-mente, evita qualquer referncia a O pensamento do fora, Jos Lus Cmara Leme aproxima-se considerao relativa maneira como o fora produzido por qualquer cultura que queira afirmar uma identidade. Qualquer cultura, neste sentido, define o seu interior pelo seu exterior (ao rejeit-lo), a sua iden-tidade por diferena (ao neg-la), produzindo assim um vazio no seu seio, uma exterioridade mais profunda que qualquer inte-rioridade (que no caso do ocidente poder-se-ia definir-se em grandes traos pelo sonho, o sexo, a loucura e, principalmente, o oriente). A exposio desta estrutura estruturante que nos oferece Cmara Leme, vai, de todas as maneiras, para alm da mera determinao de um caso de produo de um fora enclau-surado; ao mesmo tempo, de facto, mostra a forma que pode tomar o pensamento do fora, pensamento que para alm da filosofia, descobre o lugar precrio desde o qual possvel rir de si prprio, isto , das condies que nos constituem como sujei-tos de saber e de poder (acrescentando-se assim srie de determinaes anlogas que encontramos noutros pensadores do fora: a inactualidade nietzscheana, o devir-menor deleuziano, a perspectiva exterior witoldiana).

    Por fim, ns mesmos decidimos cavalgar a linha do fora (eu segui o caminho mais curto), cada um sua maneira, estabele-cendo relaes de fora com outras foras. Deleuze entre a Literatura e o Fora procura explorar, sem trair o estrito princ-pio de imanncia que rege o pensamento deleuziano, a possibi-

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    12

  • lidade de uma abertura da literatura ao fora, capaz de pr em questo o fechamento do texto e a perda da realidade que o acompanha, mas sem se comprometer por isso numa afirmao da transcendncia do sentido (referencial, subjectiva ou estrutu-ral). E encontra, se assim se pode dizer, para alem do mundo da percepo que representaria, como do autor cujos estados de alma viria a expressar, um mundo de intensidades puras, onde a lngua sai dos seus eixos para comear a balbuciar o impercept-vel, o impensvel, como cadncia de vises e audies antepredi-cativas, prsubjectivas, asignificantes. Tal a experincia do fora de toda a (grande) literatura menor: agenciar (fluxos de desejo, de matria, de sentido), para que a percepo perceba o impercep-tvel e a linguagem diga o novo, o inesperado, o marginal, isto , para que o pensamento possa ser lanado sobre a dupla mesa do cu e da terra, dos corpos e dos conceitos, das visibilidades e dos enunciados.

    De Sartre a Deleuze, ressuscita uma questo at agora esquecida pela filosofia contempornea: a doutrina sartreana do compromisso literrio. Para alm de lhe devolver o ar fresco da poca em que a questo surgiu, o ensaio aqui presente volta a problematizar o valor poltico da literatura, recusando-se a cingir a sua perspectiva aos territrios da revoluo modernista que reclamava apenas a arte pela arte. A escrita deixa de ser s um problema da literatura para se tornar num olhar que v desde fora os seus leitores. O escritor assume um compromisso com os seus leitores. Aprendemos desta forma que foi precisa-mente Sarte, antes de Deleuze, a abrir o caminho para um agenciamento colectivo de expresso. Deleuze volta a postular o compromisso literrio fazendo referncia ao fora, mas ao mes-mo tempo rompe com a ideia de que esta referncia tenha que ver com uma representao crtica da sociedade (o livro como imagem do mundo). Longe das utopias marxistas e sem pre-tender que a literatura faa a revoluo, o horizonte que este texto inaugura apontar que o escritor se interessa por algo mais que a sua literatura e a sua vocao clamar por um povo nmada e no por uma cidade modelo.

    A abbora que se tornou cosmos

    13

  • Para alm da interiorizao, pela reflexo filosfica, dos dis-positivos do saber e do poder, eleva-se assim uma nova perspec-tiva, que Foucault baptizou ruidosamente como o pensamento de fora: discurso que se apresenta sem concluso ou sem ima-gem, sem verdade nem teatro, sem argumento, sem mscara, sem afirmao, independente de todo centro, isento de ptria e que constitui o seu prprio espao como o fora em relao a quem fala e fora de quem fala.6.

    Os discursos no so uma srie de estratos mas a interligao da linguagem com outras camadas da experincia. O que se d, como bvio, a estas alturas fora do imprio da mimese. Mace-donio Fernndez tornou visvel este duplo movimento que vai, tal como diz Peter Pal Pelbart, da clausura do fora ao fora da clausura, num conto que fala de A abbora que se tornou cosmos. O rumor desse mundo desmesurado, que irracionalmente nos lembra o nosso, ainda ecoa transfigurado pela recriao inces-sante das geraes.

    A abbora estava a crescer solitariamente em terras da Pata-gnia. Favorecida por uma terra que lhe dava de tudo, a abbo-ra foi crescendo em liberdade e sem remdios especficos como uma verdadeira esperana da vida. Os seus dirios ntimos refe-rem que se ia alimentando darwinianamente de plantas mais dbeis que estavam em seu redor (o que, lamentamos diz-lo, era uma maneira um tanto antiptica e capitalista de se desen-volver custa dos outros). Mas so os seus anais oficiais que nos interessam para a casustica do fora. A sua histria de conquista s os gauchos a podem contar, vendo-se envoltos na massa abo-borfera. O medo chega a Buenos Aires e Montevideu. Muito rapidamente realizado um Conselho Pan-americano em Genebra: horas inteiras de negociao, conciliao, propem-se solues. A Organizao Green Peace prepara manifestaes de protesto em Washington e em Cabul. Circulam opinies cient-ficas, suspiros das senhoras, propostas (g)astronmicas. Quando os seus poros atingem dez metros de largura, companhias areas russas organizam voos de lazer para verem a abbora crescer e engolir a Amrica toda com a sua casa branca mais falada l dentro. Os homens so absorvidos como moscas e muito bre-vemente os chineses se resignam ao perceber que a sua vez che-

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    14

  • gou a ser uma questo de horas. Os antroplogos percebem que se encontram na iminncia do Mundo da Abbora. Diferentes movimentos de rua protestam em Paris, por que que nin-gum nos avisou?. E quando apenas falta a Austrlia, empresas imobilirias apresentam ofertas de como melhor se alojarem dentro da abbora. E a fuga parece mudar de sentido: mulheres e crianas fogem agora para dentro. Quando a abbora engoliu o planeta todo, e qual foi a ltima ilha da Polinsia a entrar no sistema aboborgeno no se tem notcias. Dizem que agora se est a preparar para engolir a via lctea... nada se sabe ao certo, desconhecemos como chegmos a praticar uma Metafsica Cur-curbitcea. Vivemos neste mundo que todos sabemos, mas ago-ra dentro de uma casca, com relaes somente internas e por isso sem morte e sem fora, o que para a maioria visto como um progresso. Mas algumas pessoas, nos recantos longnquos do espao abobrico, onde escasseia a polpa e no se vem mais do que descampados onde a sociedade escoa a sua quota diria de sementes secas, comeam a procurar uma sada. A abbora pode abranger tudo mas no tudo, pelos menos no tudo aquilo que somos. H algo no nosso corpo, no nosso pensa-mento que lhe resiste. A claustrofobia grande m-mmm-m-mas -s vez-z-zzz-z-zes nas d-oooo-obras da c-c-c-carne q-q-qre-cremos vir-vir-ouvir vo-vooo-vozes... dum mundo por vir.

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    Notas 1 Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2000 (PP), p. 150. 2 Foucault, Nietzsche, Freud, Marx, em Dits et crits (vol. I), Galli-mard, Paris, 1994 3 Cf. ID 161 4 Cf. Deleuze, Deux rgimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Minuit, 2003 (DF); p. 146 En philosophie: la philosophie classique se donne une espce de matire rudimentaire de pense, une sorte de

    A abbora que se tornou cosmos

    15

  • flux, qu'on essaie de soumettre des concepts ou des catgories. Mais de plus en plus, les philosophes ont cherch laborer un mat-riau de pense trs complexe pour rendre sensibles des forces qui ne sont pas pensables par elles-mmes. 5 Foucault, La pense du dehors, em Dits et crits (vol. I), p. 525.

    Golgona Anghel Eduardo Pellejero

    16

  • O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    Patricia San Payo

    Como falar de um conceito esse conceito seria o fora, tal

    como surge, por exemplo, na designao deste encontro: Fora da Filosofia: as formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze1, a propsito de uma palavra na qual o que da ordem do conceptual parece recuar e dar lugar ao que no conceito no conceito, algo que, como observou Derrida, seria da ordem da metfora, justamente da ordem de uma fora que designa por metaforicidade que o conceito apaga a troco de um maior grau de abstraco e de uma menor equivocidade nas modalidades do seu uso2. No vocabulrio de Blanchot, dehors, como alis ressassement ou desoeuvrement, so palavras de difcil traduo. Devemos ter em conta que a pala-vra dehors surge em LEspace Littraire, associada experincia da literatura, uma experincia que Blanchot descreve neste livro sobretudo a partir de Kafka (dos Dirios, mas tambm de O Processo, O Castelo e de um conto, O Covil), de Mallarm (de Crise de vers, Igitur, e de Un coup de ds) e de Rilke (a cor-respondncia e as elegias). Em que consiste tal experincia? Ela a experincia do fora que se abre no interior da prpria lin-guagem, um fora de todo o discurso significativo que, no entan-to, no constitui um limite da linguagem, dado que se trata de uma abertura que a ilimita do interior. No decurso da experin-cia o escritor subtrado dimenso do possvel e arrastado na direco do impossvel, reserva do negativo a que nenhuma positividade corresponde, resduo inassimilvel pelo discurso do que permanece na sua noite, que como que uma noite que se abre na noite, e qual Blanchot faz corresponder a dico do elementar.

    Pelo modo oblquo como se lhe refere, torna-se claro que a palavra dehors deve ser levada a um grau de indeterminao que importante para a compreenso do que est em jogo.Com

    1717

  • frequncia o autor caracteriza esse fora por intermdio de aces indeterminadas que parecem apontar no sentido de qualquer coisa de elementar, como o caso das aces expressas pelo verbo francs ruisseller (correr, manar, fluir, jorrar); j a palavra ruissellement (presente numa formulao recorrente em LEspace Littraire, le ruissellement eternel du dehors) que designa simultaneamente o cambiante das jias e o escoa-mento rpido da gua nas vertentes3, refere uma aco que se produz sem especificao do agente; com efeito, para o cam-biante das jias parecem concorrer vrios factores conjugados, dado que depende de uma propriedade destas, mas tambm do olhar do observador, da posio relativa de ambos, do tipo de iluminao, por exemplo; trata-se em qualquer caso de uma aco paradoxalmente prxima de uma ausncia de aco, de um agir sem agir4 prpria do neutro, efeito neste caso acentua-do pela proximidade da palavra ternel. O segundo exemplo fornecido pelo dicionrio, o escoamento rpido da gua nas vertentes, parece ilustrar um outro processo de funcionamento do neutro: trata-se, com efeito, de algo que desfaz o que no entanto prossegue inalterado (de algo como um desfazer subter-rneo, inaparente). Verbos iterativos como fluir ou escoar possuem a particularidade de remeter para aces que se cum-prem sem que aparentemente isso represente uma progresso relativamente a um estado anterior.

    Com a expresso ruissellement ternel du dehors, Blan-chot aponta para a exigncia do neutro na escrita de cada vez que o escritor aprofunda o movimento que lhe prprio e que conduz ao fora de qualquer discurso ou de qualquer enuncia-o. O autor parece ter pretendido aumentar a ambiguidade ou o poder de cintilao do termo quando em LEspace Littraire o coloca sob o signo de Orfeu que erra nas trevas de uma noite pr-conceptual e pr-ontolgica, falhando na misso de trazer Eurdice para o dia no momento em que se vira para a ver. O valor emblemtico que Orfeu adquire nesta obra deve-se a que o seu canto se constitui na proximidade de uma origem (inori-ginria) contra aquilo que o compromete, a violncia indistinta do fora no ponto do espao literrio onde a linguagem se apre-senta como rumor incessante e incessante proliferao do que

    Patricia San Payo

    18

  • escapa inteligibilidade. Por outro lado, por intermdio desta verso transformada do mito, Blanchot caracterizou o olhar do poeta -o olhar de Orfeu um olhar por intermdio do qual o Outro se d a conhecer na sua alteridade e exterioridade. Num texto sobre a imagem e o neutro, Blanchot observa que a ima-gem no apenas, como era para Sartre, um acto no qual se vence, ou nega, o nada, tambm o olhar do nada que nos fixa: a imagem neutra impe o afastamento ao mesmo tempo que prope o contacto. Na imagem que partilha com o cadver as caractersticas do neutro (ne uter), qualquer coisa est diante de ns que no nem o ser vivo em pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o que era em vida, nem outro, nem outra coisa. Tal como o cadver, a presena cadavrica estabelece uma rela-o entre aqui e em lado nenhum, entre o nico e o qualquer. A imagem neutra sempre, por conseguinte, um jogo antro-pomrfico de semelhanas viscerais e inversamente, nela os traos do humano dissolvem-se no impessoal5.

    Devemos ter em considerao que Blanchot no um filso-fo, mas fundamentalmente um escritor e um crtico literrio e que a persistente interrogao que se formula ao longo da sua obra, incidindo sobre a escrita e o espao literrio, emerge jus-tamente no ponto de intercepo entre teoria e fico. Nos seus textos de crtica ou de ensaio sempre essa interrogao que encontramos, como se de uma investigao sem termo assinal-vel se tratasse, sobre as propriedades do neutro e a tarefa que cabe ao escritor de aprofundar o movimento que este desenca-deia. A investigao do neutro no d lugar a uma resposta, mas sim a uma srie de afirmaes no positivas e incertas. Isto con-fere sua obra um carcter suspensivo e mesmo paradoxal. O constante uso do paradoxo, ou de figuras como a paranomsia, enfraquece o conceptual e subverte as conexes lgicas do dis-curso.

    Por vezes Blanchot parece adoptar um modo mais filosfi-co de explanao e desenvolvimento das ideias, mas, na reali-dade, mesmo nesses textos, a coerncia em termos lgicos do discurso posta em causa por um elemento que o fragmenta, ainda que de modo inaparente. certo que em LEntretien Infini se evoca a tradio do dilogo filosfico, mas a opo pelo di-

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    19

  • logo corresponde sobretudo a uma estratgia discursiva pela qual, na proximidade do discurso argumentativo, se vo des-fiando os poderes da escrita (indeterminao dos aspectos rela-cionados com a enunciao, o fragmento, o constante recurso ao paradoxo, bem como a formas de interpolao, citao ou rasura prprias do neutro). Uma maior liberdade relativamente s vrias convenes discursivas parece partida assegurada no discurso ficcional, mas trata-se de prosseguir o trabalho da escri-ta por desfigurao das suas instncias e categorias, nomeada-mente da desarticulao do dispositivo da representao. Fou-cault referiu-se converso da linguagem da reflexo operada por Blanchot. Em vez da negao, uma afirmao no positiva; em vez de reconciliao, ressassement (processo de regressar constantemente ao que j foi dito, constante repisar de um mesmo assunto); em vez da unidade na qual o esprito se afir-ma, a eroso do fora; Uma converso simtrica se d na lingua-gem da fico, na qual mais do que de imagens se trata dos interstcios entre elas, do seu intermedirio neutro. Em qual-quer caso, observa, trata-se de uma palavra do fora: Como palavra do fora, acolhendo nestes termos o fora ao qual se diri-ge, este discurso ter a abertura do comentrio: repetio do que no fora nunca deixou de murmurar. Mas como palavra que permanece sempre de fora do que diz, este discurso uma incurso incessante no sentido daquilo cuja luminosidade, de uma extrema finura, nunca acedeu linguagem. Este modo de ser singular do discurso regresso ao espao oco onde se encontram a origem e o fim define sem dvida o lugar comum aos romances e s narrativas de Blanchot e sua crtica6.

    Conduzir a linguagem para o fora de toda a linguagem, observa ainda, criar das imagens os interstcios e insistir no vazio que circula entre as palavras, pronunciar um discurso sobre o no discurso de todos os usos da linguagem, criar pela fico o espao invisvel no qual este ltimo se constitui.

    O permanente intercmbio entre fico e teoria contribui para a indeterminao com que se colocam os mais persistentes temas e motivos de Blanchot. Que se pense, por exemplo, no modo como a noo de Il y a que sustenta algumas das suas

    Patricia San Payo

    20

  • mais conhecidas pginas sobre a literatura e a experincia liter-ria - e que foi tambm um dos assuntos de Lvinas nos seus primeiros livros descrita em Thomas LObscur, o seu primei-ro romance. De modo anlogo, a morte e as suas vrias declina-es (a morte inevitvel e impossvel, o seu carcter impessoal, a sua impenetrabilidade a experincia etc), outro leitmotiv dos seus textos tericos, constantemente tematizada nos textos de fico. Pense-se ainda em LArret de Mort, curta narrativa publi-cada em 1948,na qual se encontram os temas da finitude e da comunidade que prossegue em outros lugares da sua obra (nomeadamente em La communaut inavouable). Mas um outro tipo de apelo se estabelece entre aquela narrativa e a reflexo sobre a imagem que prossegue simultaneamente na sua obra ensastica. O narrador de Larret de Mort descreve apersonagem que morreu e regressa vida. No seu rosto vivo sobrepe-se o rosto do cadver e vice-versa, segundo um princpio de reversibi-lidade paradoxal a que obedece a narrativa. As circunstncias descritas vm como que dramatizar certas consideraes sobre a imagem e semelhana cadavrica em LEspace Littraire. Em outros momentos dessa narrativa coloca-se de outro modo a questo da semelhana, desta vez, segundo consideraes sobre as condies tcnicas da reproduo s quais Blanchot se referi-r mais tarde em textos sobre a imagem em LEntretien Infini ou LAmiti. H nela um momento em que o narrador observa o molde em gesso das mos da personagem feminina, J. verifica ento que as linhas nas palmas da mo so no molde mais leg-veis, do que no original, enquanto que as rugas da parte de fora desapareceram no que aparenta ser agora uma superfcie de marfim. O processo de duplicao, na medida em que a relao da cpia e do original posta em causa, desencadeia o movi-mento imparvel da similitude. No processo aqui ilustrado por intermdio da modelagem em gesso, intervm factores que ins-talam o que Outro no lugar do semelhante. Uma idntica reflexo tem lugar em LAmiti, num texto que Blanchot consa-gra a Malraux, no qual se refere ao papel desempenhado pelos acidentes a que uma obra submetida no processo de chegar a ns (nomeadamente os efeitos da eroso nas esttuas ou nas pinturas) observao que, por sua vez, dada como exemplo do

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    21

  • modo como a uma representao diverge do representado e no limite, de si mesma, entre outras razes pela aco do tempo sobre os suportes. Comentando esse texto de Blanchot, Didi Huberman observa muito justamente que ao contrrio da est-tica clssica, que idealiza o instante e atribui s obras de arte a propriedade de o eternizar, para Blanchot as imagens partici-pam do movimento de um devir no qual se fazem e desfazem interminavelmente. Nesse texto, prolongando as reflexes de Malraux sobre a arte, o museu e o tempo, Blanchot coloca a imagem na escanso de uma temporalidade que no nem o intemporal, nem o absoluto, nem o eterno. Porque as coloca no plano de um devir e porque elas se constituem a par-tir de uma desapario (na realidade so aparies), a imagem sempre objecto de uma memria, uma sobrevivncia e implica a experincia do ressassement, um tempo que Didi-Huberman situa entre o tremor de Kierkgaard e o eterno retorno de Nietzsche7.

    Ao colocar a experincia do fora como a experincia da arte por excelncia, Blanchot persegue vrias finalidades.

    1) Por um lado, procura atribuir arte e literatura um lugar que no o da filosofia, embora as respectivas esferas se interceptem. No entanto, a misso atribuda ao artista por Blanchot quase diametralmente oposta misso herica que Heidegger atribua ao poeta. Escreve Blanchot: O artista e o poeta tm como misso recordar-nos incessantemente do erro, virar-nos para esse espao no qual tudo o que somos, tudo o que se abre na terra e no cu regressa ao insignificante, onde o que se aproxima o no srio e o no verdadeiro, como se da brotasse talvez a fonte de toda a autenticidade8.

    2) Por outro lado, para desimpedir o caminho de uma refle-xo sobre a literatura e a arte apoiadas na noo de escrita e de imagem como manifestaes do neutro (a referncia a Heideg-ger aqui continua a ser importante, na medida em que o neutro em Blanchot se constri a partir do neutro heideggeriano) A partir de LEntretien Infini, com a caracterizao das proprieda-des do neutro, a reflexo sobre a escrita conflui no sentido da caracterizao do sentido como simulacro, ou dito de outro modo, como se a literatura devesse ser em todo o caso espectral,

    Patricia San Payo

    22

  • animada pelo que prvio ao sentido, velando o sentido ausente (no sentido).

    No captulo de LEspace Littraire intitulado Les Deux Ver-sions de lImaginaire, Blanchot consagra dois regimes da ima-gem. Numa primeira acepo, a imagem consiste na possibili-dade de apreenso ideal da coisa, na medida em que a nega enquanto tal ao mesmo tempo que para ela remete; dito de outro modo, a imagem a negao vivificante da coisa (em sentido hegeliano). Mas numa outra acepo na qual o autor se deter em toda a sua reflexo posterior a imagem remete no j para a coisa ausente, mas para a ausncia como presena no duplo neutro do objecto no qual a relao de pertena que mantinha com o mundo se dissipou. Nesta concepo, o que importa no que a imagem venha depois da percepo (do objecto), mas justamente que o objecto seja posto distncia, porque desta maneira ele se torna inactual, inapreensvel. O fora surge relacionado com o desaparecimento das coisas na imagem, na qual o mundo se retira: deste modo a imagem tor-na-se elementar, como se o elementar a reclamasse nesse pr-se distncia (afastamento) da coisa, movimento pelo qual ela escapa ao valor de uso e de verdade, bem como prpria signi-ficao: Na imagem, o objecto aproxima-se de novo de qual-quer coisa que tinha dominado para se constituir como objecto. Qualquer coisa contra a qual ele se tinha edificado e definido, mas agora que o seu valor e a sua significao se suspenderam, agora que o mundo o abandonou inoperncia e o pe de lado, a verdade nele recua e o elementar reivindica-o empo-brecimento e ao mesmo tempo enriquecimento que o consagra como imagem9.

    Ao colocar a imagem sob um duplo regime, Blanchot asse-gura a possibilidade de, pela fico, se dispor das coisas na ausncia destas, retendo-nos no mbito do sentido. Mas, mes-mo tempo, valoriza uma outra possibilidade pela qual, como vimos, a palavra no falaria j do mundo. No neutro, a seme-lhana desunifica, cria uma relao de no-unidade entre a coisa e a sua representao a fim de melhor desarticular os plos dessa relao, ou seja, a fim de instaurar a diviso do prprio ser. Em vez de uma correspondncia, encontramos a semelhan-

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    23

  • a espectral, na qual a prpria desapario se tornou, por sua vez, aparncia. com base nessa semelhana espectral, na qual, como no rosto do cadver o reflexo absorveu a vida e a tranferiu para um plano inusual e neutro, que se d a afirmao irreal (no positiva) do poema ou da narrativa que simultaneamente uma abertura a um espao (o espao literrio) no qual reina a fascinao.

    Num texto de LEntretien Infini, Vaste comme la nuit, ttu-lo que consiste numa citao de um conhecido verso de Cor-respondances, de Baudelaire, referindo-se justamente noo de imagem tal como Bachelard a entende, Blanchot dir que quando consideramos num texto a dimenso da escrita deixa de fazer sentido pensar-se em termos de imagens poticas porque o que nele se d a escutar/sentir a evidncia da realidade na afirmao irreal (no positiva) do poema, no o mundo posto em imagens, ou imagens do mundo, mas a presena (sem ima-gens) de um contra-mundo. Nesta acepo, a imagem conduz-nos ao fora do seu prprio espao, afastando-nos num movi-mento oscilante da esfera do signo e do sentido ao qual perten-ce tambm, para se apresentar como figura do infigurvel, forma do informe10.

    A linguagem no poema no se desdobra, como pressupe a tradio hermenutica e a tradio da leitura alegrica (na qual a imagem suprimida); entre o que nele figura e um sentido alegrico que a leitura nele descobre, sentido este que, por se apoiar numa extensa rede de semelhanas, prolonga horizon-talmente a figura at ao infinito, pelo comentrio que a duplica ou recobre. Para Blanchot, o prprio Plato, ao ridicularizar o rapsodo, esteve mais prximo da verdade de Homero do que os gramticos que nele procuravam e descobriam a exposio de todas as certezas fsicas, morais e metafsicas. a tradio aleg-rica que expulsa da cidade, no Homero, e isto porque nada h a explicar num poeta, fechado que este se encontra no seu mundo de reflexos e superfcie. No plano da crtica alegrica, afastando-se da ideia comummente aceite de que ao crtico compete a explicao do texto, Shelling desempenhou um papel importante na desmistificao da ideia de que um poema se desdobra entre figura e alegoria. Bachelard, por sua vez, ter

    Patricia San Payo

    24

  • efectuado o mesmo movimento relativamente psicanlise (na qual o smbolo surge como uma verso atenuada da alegoria).

    Na teoria de Bachelard, nota Blanchot, a imagem como que o comeo e a origem da linguagem, no o seu fim, no o ponto em que ela claudica, razo pela qual no se trata de uma concepo mstica de imagem (trata-se de saber acolher na leitura une ouverture de langage). Fazendo sua uma distino, estabelecida em Potique de lespace, no modo de funcionar das imagens em funo de diferentes modos de ler ou de se enten-der a leitura, Blanchot referir-se- a uma possibilidade de resso-nncia da imagem, que nesse ressoar reenvia sentimentalmente para a nossa experincia e a uma possibilidade alternativa de reverberao que, por sua vez,d acesso d acesso ao no- espao e ao no-tempo da literatura; nesta ltima acepo ela manifes-tao do fora, reverberao (retentissement) pela qual se pro-longa e distende o espao e o tempo que lhe prprio. Apenas a esse nvel nos dado aceder linguagem da poesia: S a reverberao nos coloca no plano do poder da poesia, apelo da imagem ao que nela sempre recomea, apelo urgente a sairmos de ns e a movermo-nos no estremecimento da sua imobilida-de. A reverberao no tem a ver com a imagem que reverbera (em mim, leitor, a partir de mim) mas o prprio espao da imagem, a animao que lhe prpria, o ponto de ecloso no qual, falando de dentro, ela fala j do de fora11.

    A estas consideraes sobre Potique de lEspace,Blanchot acrescenta algo que nos interessa para chegar a definir o que entende por fora. Nada negando das ideias de Bachelard, acentuando mesmo as suas consideraes sobre o duplo efeito das imagens e o tipo de entendimento (prximo da ideia de tabula rasa) que pedem, este autor observa, contudo que num poema no h imagens, a no ser imagens de linguagem. Com isso pretende sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar que a noo de imagem que nos d a retrica em nada nos esclarece sobre a abertura da linguagem que o poema . No seu lado neutro a imagem no quantificvel, no pode ser isolada para fins de classificao retrico-estilstica: ela no pode ser tomada de per si, fora de uma dimenso que incorpora o ritmo e a medida poticas ou, como tambm observou Bachelard, fora da

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    25

  • composio propriamente dita (composio aqui no sentido de um agrupamento de imagens mltiplas). Em segundo lugar, a imagem de linguagem que o poema , ou seja, o espao que aceita (com algumas reservas) designar por espao do imagin-rio, no encontra correspondncia em nenhuma acepo conhecida da palavra imagem, a qual sugere sempre uma analo-gia com o perceptual. Mas o visvel no encontra no espao literrio qualquer correspondncia, do mesmo modo que as coordenadas que fazemos derivar da nossa experincia nele se no aplicam. Citando Michaux, escreve, comentando Bache-lard: Que uma tal imagem nos aloje ou desaloje, nos d o sen-timento de uma permanncia feliz ou infeliz, que nos oprima ou nos resguarde, nos deporte e nos transporte, no quer dizer que a imaginao se aproprie das experincias reais ou irreais do espao, mas sim que nos aproximamos pela imagem do prprio espao da imagem, do fora que a sua intimidade, Esse terrvel de dentro de fora no qual consiste o verdadeiro espao nas palavras de Michaux que se tornam inesquecveis desde o momento em que as apreendemos12.

    Acentuando uma ideia que em Bachelard no ter talvez um carcter to radical, Blanchot reafirma que o entendimento ou acolhimento do que na imagem reverberao a sua ten-so, extenso e a abertura na qual se d a apario , o que do domnio da opinio, o que se d por certo no plano da cultura, de nada conta, ou representa mesmo um obstculo. imagem neutra, a que corresponde o espao que a escrita abre na super-fcie do discurso, parece poder aplicar-se o que Mallarm escre-veu em Un Coup de Ds, rien naura eu lieu que le lieu, por-que o fora tambm vacilao de um sentido, construdo a partir das antinomias (dentro/fora, presena/ausncia, apare-cimento/desaparecimento, objecto/simulacro, figurado/no figurado), doravante indisponvel. Acolher o neutro (a ser pos-svel) s se pode dar na condio de nos virarmos para l, ou seja, efectuando o seu giro, desencadear, favorecer, propiciar a reverberao. No verso de Baudelaire Vaste comme la nuit et comme la clart, a palavra vaste d acesso a um espao no qual participam a noite e a claridade, noes que por no se oporem uma outra permanecem imveis face a face, trocando

    Patricia San Payo

    26

  • entre si as suas cintilaes. Fora seria esse espao, no qual a noite e a claridade se vo prolongando sem se confundir, sem dar lugar ao dia por rendio da primeira, nem sequer noite como se por um movimento idntico de sinal contrrio a clari-dade fosse totalmente absorvida. Porque participam do movi-mento da escrita so conceitos atravessados pela diferena, o que significa que a fissura se instaura em cada um deles e no entre eles como no caso dos dois plos de uma oposio.

    Como pensar estas noes fora, repetio e diferena, ino-perncia nas quais assenta o pensamento do neutro? Segura-mente de fora do quadro disciplinar, nomedamente, fora da filosofia, pois como observou Didi-Huberman, elas relevam, como as figuras do pensamento em Bataille, de uma heterolo-gia. Para Foucault, a imagem neutra constitui a face heterodoxa da dialctica e Lvinas, por sua vez, referindo-se a uma ressem-blance desassemble que encontra nos textos de Blanchot, disse que nestes se d o desenraizamento das imagens relativa-mente ontologia heideggeriana.

    O que Hlderlin foi para Heidegger, ter sido Celan para Blanchot? O que efectua o movimento inverso ao do primeiro? No pretendendo trazer as coisas linguagem por um acto de nomeao na qual so devolvidas sua essncia, mas, pelo con-trrio, por ser incapaz de nomear, prosseguindo de um modo, hesitante, absolutamente sem garantias, a reconfigurao do mundo na escrita? Dir-se-ia que, em Celan, justamente a partir desse desenraizamento ontolgico, a partir de um nada articu-lado sobre a perda, que as coisas, associadas de outra maneira, para l ou aqum do sentido, se vm inscrever. Como a erva e a escrita entrelaadas na ausncia de sentido de tal imagem que assim inicia o seu giro: Mas assim como a escrita se l como a aparncia de uma coisa, de um de fora de coisa condensando-se numa coisa ou noutra no para a designar mas para se escre-ver no movimento de vaga de palavras que no cessam de surgir , tambm o de fora no se l por sua vez como uma escrita, uma escrita des-ligada, sempre j exterior a ela mesma: erva escrita fora uma da outra?13.

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    27

  • Notas

    1 O encontro em questo reuniu alguns investigadores na Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa em torno de um conceito, o fora, na obra de Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze e Derrida. 2 Sobre este assunto cf., por exemplo, Jacques Derrida,La Mithologie Blanche, Marges de la Philosophie, 1972. 3 Conforme definio do Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. 4 Cf. Derrida, Pas , Parages, 1986, onde este autor se refere sintaxe do sem em Blanchot, ao paradoxal passo sem passo, espcie de recuo inaparente em qualquer progresso. Um passo assim considerado no se sucederia a um outro de acordo com as regras de desenvolvimento e prossecuo lgicas de um raciocnio. Para Derrida o modo como os textos de Blanchot evidenciam a coluso entre anlise e paralisia (paralyse) decorre da fascinao enquanto efeito de leitura, do que neles conduz invariavelmente aporia, indecidibilidade. 5 Maurice Blanchot, La sollitude essentielle, LEspace Litraire, onde lemos, por exemplo, voir est une sorte de touche () un contact distance () ce qui nous est donn par un contact distance est limage, et la fascination est la passion de limage, pp. 28-29. 6 Comme parole du dehors, accueillant dans ces mots le dehors auquel il sadresse, ce discours aura louverture du commentaire: repe-tition de ce qui au-dehors na cess de murmurer. Mais comme parole qui demeure toujours au dehors de ce quelle dit, ce discours ser une avance incessante vers ce dont la lumire, absolument fine, na jamais reu langage. Ce mode dtre singulier du discours retour au creux equivoque du dnouement et de lorigine dfinit sans doute le lieu commun aux romans au rcits de Blanchot et sa critique Michel Foucault, La Pense du Dehors, pp. 25-26. 7 Cf. De Ressemblance ressemblance, Maurice Blanchot Rcits critiques , Cristhophe Bident & Pierre Vilar (eds). 8 Maurice Blanchot, LEspace Littraire, p. 337, n. 9 Dans limage, lobjet affleure nouveau quelque chose quil avait maitris pour tre objet, contre quoi il stait difi et defini, mais present que sa valeur, sa signification est suspendue, maintenant que le monde labandonne au dsoeuvrement et le met part, la vrit en lui recule, llementaire le revendique , apauvrissement, enrichisse-ment qui le consacrent comme image, Maurice Blanchot, Entretien Infini, p. 348. 10 Cf. Maurice Blanchot, Entretien Infini, p. 476. 11 Seul nous met au niveau du pouvoir potique le retentissement, appel de limage ce quil y a dinitial en elle, appel instant sortir de nous et nous mouvoir dans lbranlement de son immobilit. Le retentissement nest donc pas limage qui retentit (en moi, lecteur, partir de moi), il est lespace mme de limage, lanimation qui lui est propre, le point de jaillissement o, parlant au-dedans, elle parle dej tout au dehors; Maurice Blanchot , Entretien Infini, p.470. 12 Que telle image nous loge ou nous dloge, nous donne un senti-ment du sjour heureux ou malheureux, nous resserre ou nous abrite, nous deporte et nous transporte, cela ne veut pas seulement dire que

    Patricia San Payo

    28

  • limagination sempare des expriences relles ou irreles de lespace, mais que nous nous approchons, par limage, de lespace mme de limage, de ce dehors quest son intimit, cet horrible en dedans-en dehors quest le vrai espace, selon les termes de Michaux quon ne peut gure oublier, lorsquon les a saisis; Maurice Blanchot, Entretien Infini, p.475. 13 Mais de mme que lcriture se lit sous lespce dune chose, dun dehors de chose se condensante en telle ou telle chose, non pour la designer, mais pour sy crire dans le mouvement de houle des mots qui toujours vont, le dehors ne se lit-il pas encore comme une criture, criture sans lien, toujours dj hors delle mme: herbe, crite hors lune de lautre?; Maurice Blanchot, citando Celan, Une Voix Venue dAilleurs, p.75.

    O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinao

    29

  • Deleuze, Fora da literatura

    e com a casa tomada

    Golgona Anghel Experincias literrias do Fora. Num conto de Julio Cort-

    zar, A casa tomada, dois irmos levam uma vida marcada pelo estatismo incerto das lembranas e por uma rotina repetida mecanicamente todos os dias. Essa rotina v-se consolidada com uma existncia fechada de quase monaquismo anacortico, uma existncia secreta que se restringe ao ntimo da casa. O ritmo vagaroso das suas existncias modificar-se- progressivamente cada vez que desde os fundos da casa estejam a surgir rudos estranhos. Os rudos fazem com que alguns quartos da casa sejam fechados e permaneam de acesso vedado.

    O som vinha impreciso e surdo, como um voltejar de cadeira sobre o tapete ou um afogado sussurro de conversao. Tambm o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daqueles quartos at porta. Ati-rei-me contra a porta antes de que fosse demasiado tarde, fechei-a de repente apoiando o corpo; felizmente a chave estava metida do nosso lado e para alm disso tranquei-a com o grande ferrolho para mais segurana. (...) Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte do fundo.1

    A rotina vai alterando o seu ritmo montono enquanto uma presena estranha avana progressivamente e se manifesta como uma inquietao insinuante: de onde vem esses rudos?; e os irmos, so eles quem vive na casa ou ento a casa que os habita?; e se h algum mais dentro da casa, quem , quem so? e por que que avanam?; para qu? A crescente e lenta redu-o do espao da casa aumenta o suspense na medida em que abre uma zona do impreciso e do desconcertante. O espao da casa como unidade fica dividido entre um aqui (onde vivem os irmos) e um ali (aquele dos rudos), ao mesmo tempo que outra dualidade entra em jogo: o ns, dos irmos que se des-

    3131

  • locam para Fora sob a suspeita de uma ameaa que no pode ser confrontada, e eles do no-nomevel que avana para dentro.

    Como tinha ficado com o relgio, vi que eram as onze da noite. Cingi com o meu brao a cintura de Irene (eu acho que ela estava a chorar) e samos rua. Antes de nos afastarmos tive pena, fechei bem a porta da entrada e atirei a chave no canal de esgoto. No fosse que a algum pobre diabo lhe passasse pela cabea roubar e se metesse na casa, a essa hora e com a casa tomada.2

    Obviamente, vrias poderiam ser as nossas leituras deste

    conto. Uma delas poderia consider-lo como se fosse um con-tinente que remete para um contedo, atravs do qual preciso buscar os seus significados e inclusive, se somos ainda mais per-versos ou mais corruptos, partir procura do significante. O livro seguinte ser considerado como se contivesse o anterior ou estivesse contido nele. Haver comentrios, interpretaes, sero pedidas explicaes, escrever-se- o livro do livro, at ao infinito3.

    Agora, geralmente sabido que na tradio cultural francesa se tem construdo um debate entre duas posies tericas opos-tas relativas ao modo de aproximao a um texto literrio.

    Ora, podemos centrarmo-nos no funcionamento interno do discurso literrio dando primado sua organizao significante, s formas e sua estrutura. O sentido, a verdade so sempre um efeito, um resultado do jogo e da organizao significante, material; a chamada posio estruturalista que se deu a conhecer atravs da corrente Tel Quel (Sollers, Kristeva, Barthes). Nesta linha, Kristeva, por exemplo, limitaria o conto de Cort-zar a um jogo entre o Mesmo e o Outro que se vai construindo na gramtica textual com base nos dois pares dicotmicos: Den-tro/ Fora, Ns/ Eles.

    Ou ento, partindo do pressuposto de que a linguagem vocacionada para o mundo e que tem como funo o facto de nos dizer alguma coisa, de nos comunicar, a obra literria vai ser entendida como tendo um sentido ligado a uma referncia (real ou irreal). D-se assim prioridade a um sentido que justifi-

    Golgona Anghel

    32

  • ca a organizao material do texto. Trata-se da perspectiva fenomenolgica que faz da literatura a manifestao de um sen-tido ligado a uma experincia originria vivida, e a expresso de uma subjectividade, de um autor. E o que que teria Cortzar para comunicar, na Casa tomada (1951), com a presena deste estranho no-dizvel que avana implacavelmente e toma posse da casa? Ser este Fora o prenncio de que alguma coisa de importante, de subversivo que est prestes a acontecer? Talvez a revoluo? 1951 o ano de publicao do volume Bestirio que integra o conto, bem como o ano em que Cortzar deixa Argen-tina por problemas polticos. Em Setembro do mesmo ano, uma tentativa de derrubar o sistema totalitrio desemboca num fracasso.

    A questo que se pe agora se h outra possvel aproxima-o literatura, que no seja uma narrao formal da estrutura e das categorias internas do texto, nem uma hermenutica dos contedos na direco do sentido alegrico. Gilles Deleuze prope uma alternativa a estas posies.

    Ele vai conservar, certo, alguns vestgios do estruturalismo, o essencial, talvez: o princpio da imanncia. Mas aquilo que ele rejeita o fechamento do texto e a perda da realidade que o acompanha, o primado do sistema significante e das prticas formais, ou seja aquilo que ele chama de ditadura do significan-te qual este tipo de anlise conduz. A palavra de ordem geral, como elemento constitutivo do pensamento deleuziano e da sua esttica no a verdade mas o interessante: A filosofia no consiste em saber, e no a verdade que inspira a filosofia, mas as categorias como aquela de Interessante, de Notvel ou de Importante que decidem o xito ou o fracasso4.

    Quais sero, ento, as consequncias que esta liberao do imprio da verdade tem? Como conservar esta abertura para o Fora sem se referir transcendncia do sentido? Como manter uma anlise puramente imanente sem abandonar os direitos do sentido e da vida? Assim a literatura no fica mais encerrada no fecho do significante, da lngua, certo, mas o resultado no parece ele contrrio ao desejado? Ou seja, ao querer afirmar o Fora, Deleuze parece asseverar tambm a perda do mundo exte-rior, um pensamento seno fechado em si mesmo, pelos menos

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    33

  • destinado a uma esfera encerrada de intelectualidade. No ca-mos desta maneira num fechamento ainda pior? O Fora invo-cado por Deleuze no tem nada a ver, de facto, com um mundo exterior: um forma mais longe do que todo mundo exterior5; um Fora no exterior6.

    Nesta sua maneira de se aproximar literatura, e quase caminhando ao encontro das nossas dvidas, Deleuze prope um outro tipo de leitura: consideramos o livro como se fosse uma pequena mquina a-significante; o nico problema ser que isto funciona? Como que isto funciona para vocs ? Se isto no funciona, se nada acontece, tm ento que tomar outro livro. Esta outra leitura uma leitura em intensidade: alguma coisa acontece ou no. No h nada a explicar, nada a com-preender, nada a interpretar. do estilo de ligao elctrica. (...) Esta outra maneira de ler ope-se precedente porque liga o livro directamente como o Fora7.

    Ou seja, a soluo proposta por Deleuze considerar o livro como uma mquina a-significante cujo nico problema se funciona ou no. No h nada para explicar, nada para inter-pretar, nada que compreender. uma espcie de conexo elc-trica que relaciona directamente o livro com o Fora. E como que o conto funciona para ns, se que funciona?

    O conto poderia funcionar como uma pequena engrenagem nesta maquinaria exterior, muito mais complexa. Porque quan-do escrevemos, diz Deleuze, mantemos relaes de corrente e contracorrente com outros fluxos fluxos de merda, de esper-ma, de fala, de aco, de erotismo, de moeda, de poltica, etc. Tal como refere Bloom: escrever com uma mo na areia e mas-turbar-se com a outra8.

    A Casa tomada seria o nosso dehors, ou pelo menos como um dos nossos dehors na medida em que nos fora a pensar, que nos arrouba o pensamento para aquilo que ele no pensa ainda, levando-o a pensar diferentemente9. O Fora, menos do que um espao outro, essa fora no-representvel que, por mais exterior que parea pela sua violenta estranheza, est a dentro da casa, mais prxima que todo mundo interior. Os irmos tentam afront-la por momentos e as armas que tm

    Golgona Anghel

    34

  • para conjurar o caos so os rumores domsticos, a voz ou as canes de embalar:

    De dia eram os rumores domsticos, o roce metlico das agulhas de tecer, um rudo ao passar as folhas do lbum filatli-co. (...) Na cozinha e na casa de banho, que ficavam perto da parte tomada, pnhamo-nos a falar em voz alta ou a Irene can-tava canes de embalar. Numa cozinha h demasiados rudos de loua e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitamos a o silncio (...)10

    A pequena cano territorial, como o canto dos pssaros: um ritornelo que agencia um espao, que marca assim o seu territrio. Uma criana no escuro, tomada de medo, tranquili-za-se cantarolando. Anda, pra, ao sabor de sua cano. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com a sua cano. Esta como o esboo de um centro estvel e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos.11 Os prprios modos gregos, os ritmos hindus so territoriais, provinciais, regionais. Do caos nasce uma voz que determina momentaneamente um centro: Quando a Irene estava a sonhar em voz alta, eu acorda-va de repente12. Elementos diversos, o rudo das folhas, o roce das agulhas, a voz, referncias e marcas de toda espcie intervm para manterem as foras do caos, o territrio do pesadelo no exterior tanto quanto possvel.

    Mircro-Arqueologia do pensamento do Fora. Mas de onde

    vem este tema do Fora? Em entrevista com Claire Parnet (1986), Gilles Deleuze fala numa influncia de Maurice Blanchot sobre Foucault13. Esta influncia passa por uma dvida que Foucault sempre reconheceu que tinha com Blanchot, e que diz respeito a trs temas: primeiro, falar no ver, ou seja a diferena que implica que, ao dizer aquilo que no vemos, empurramos a lin-guagem para o seu limite extremo; segundo, a superioridade da terceira pessoa sobre as duas primeiras; terceiro, o tema do Fora, a relao (ou a no-relao) com um Fora mais longnquo que todo o mundo exterior e por isso mais prximo que todo o mundo interior14.

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    35

  • Vrias suposies relacionadas com uma possvel genealogia do pensamento do Fora se perfilam tambm no texto que Fou-cault escreve sobre Blanchot, La pense du dehors, in Critique, Junho de 1966, n 229. Segundo ele pode ser que se tenha ori-ginado nos textos msticos do Pseudo-Dioniso nascidos nas margens do cristianismo e que tenha sobrevivido assim como uma teologia negativa. Ou ento, menos arriscado ainda seria admitir que tenha surgido com Sade e Hlderlin para depois reaparecer na segunda metade do sculo XIX: em Nietzsche, Mallarm, Artaud, Bataille ou Klossowski 15 . E a travs de Blanchot que Foucault conclui que a literatura no a lingua-gem que se identifica consigo mesma, a linguagem que se afas-ta o mais possvel de si mesma e a palavra que nos conduz pela literatura, para esse Fora onde desaparece o sujeito que fala. Deleuze se inscreve nesta linhagem do pensamento do Fora. A presena que Blanchot identifica como sendo a intimidade enquanto Fora, o exterior tornado intruso16 o plano de ima-nncia em termos deleuzianos.

    O Fora: do poder ao possvel. Enquanto historiador da

    filosofia bem sabido que Deleuze procurou exercer a arte de fazer retratos mentais, conceptuais: seria o caso de Espinosa, Kant, Leibniz, Foucault. Assim como isso acontece em pintura, a histria de filosofia, segundo ele, deve, no recontar o que disse um filsofo, mas dizer o que ele subentendia necessaria-mente, aquilo que ele no dizia e que est entretanto presente no que ele diz.

    Em Foucault (1986), Deleuze recruta experincias do pensa-mento do Fora e activa problemas fundamentais para o seu entendimento. Do pensamento de Foucault ele subtrai trs problemticas fundamentais: o Saber, o Poder e a Subjectivao. Nesta fissura criada pela subtraco operada no pensamento foucaultiano desta maneira deslocado, desprovido das suas constantes e assim submetido a uma nova confrontao com outras determinaes , surgem questes que s vezes tornam indiscernveis os territrios deleuzianos e os de Foucault: o que que podemos saber, ou o que que podemos ver e dizer em

    Golgona Anghel

    36

  • certos contextos; quais so os poderes a enfrentar e quais so os nossos modus vivendi, os nossos processos de subjectivao.

    Segundo Deleuze, os primeiros livros de Foucault As pala-vras e as coisas, Histria da Loucura, Isto no um cachimbo, O Nascimento da clnica e Vigiar e Punir problematizam a questo do saber.

    O saber um plano formal em que tudo se d conforme um registo de visibilidade (aquilo que pode ser visto, o visvel) e um registo de enunciao (o que pode ser dito, o dizvel ou o enuncivel). Cada poca histrica organiza-se em funo das constelaes que o visvel e o enuncivel podem constituir. O ofcio do arquelogo teria como tarefa definitria revelar o que se pode dizer e ver numa determinada poca. Isto , demarcar as camadas prprias de cada perodo com as suas mutaes e as suas constantes. Acontece que, esta tarefa no to simples como possa parecer, visto que as visibiliadades no so directa-mente observveis nas coisas nem os enunciados se deixam ler imediatamente nas palavras. O que no quer dizer que haja uma espcie de ocultao; tudo dito e visto em cada estrato em funo das condies de possibilidade do enunciado e do observvel daquela poca. H no entanto que fazer uma rasura das palavras e das coisas. Ora, segundo Foucault visto por Deleuze o saber funda-se nos limites do visvel e do enuncivel.

    Esta ideia de que o enunciado nunca poder conter o visvel e vice-versa perpetua-se tambm num outro livro de Foucault: Isto no um cachimbo. Aprendemos com ele que h em Magritte uma disjuno permanente entre texto e figura. Na medida em que nos impossvel no tentar relacionar o texto com a ima-gem, deparamo-nos simultaneamente com outra impossibilida-de: aquela de encontrar uma relao associativa entre o signo verbal e a representao visual. Esta fissura entre o visvel e o enunciado vem estremecer a tradio da mimesis.

    com Vigiar e Punir que as preocupaes de Foucault ope-ram a transio do saber ao poder. Assistimos assim da passa-gem do Foucault arquelogo a um Foucault genealogista. Se o saber constitudo pelas visibilidades e pelos enunciados, o plano do poder feito de relaes de foras mveis, informe, diagramtico, no-estratificado. Entre o saber e o poder, h por-

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    37

  • tanto uma diferena de natureza, mas h tambm uma relao, ou melhor, uma no-relao. As relaes de foras virtuais dos diagramas ganham forma no plano do saber, actualizam-se nos arquivos, isto , no visvel e no enuncivel. H ainda uma outra componente que escapa ao complexo saber-poder: a linha do Fora. Se os diagramas so compostos por relaes de fora que se encontram num perptuo devir, a linha do Fora sai dos limi-tes do saber e do poder e surge como um espao anterior, no-estratificado, uma nuvem no-histrica, preindividual e intempestiva. Este domnio do indeterminado e do intempesti-vo situa o Fora num espao de virtualidades reais que resistem duma certa maneira ao poder: o pensamento do Fora um pensamento de resistncia17.

    Que tipo de linha esta se a relao que se estabelece com ela j no de poder, nem de saber?

    A estas perguntas, Deleuze j tentou responder numa entre-vista com Claire Parnet de 1986:

    difcil de falar disso. uma linha que no abstracta, embora no tenha nenhum contorno. No est no pensamento nem nas coisas, mas ela se encontra em todos os lados onde o pensamento enfrenta qualquer coisa como a loucura, e a vida, qualquer coisa como a morte. Miller dizia que a encontramos numa molcula qualquer, nas fibras nervosas, nos fios da ara-nha. Pode encontrar-se a terrvel linha da baleia, da qual fala Melville em Moby Dick, que nos pode levar ou estrangular quando se est a desenrolar. Pode ser a linha da droga de Michaux (...) pode ser a linha dum pintor, como aquelas de Kandinsky ou aquelas que levam Van Gogh morte. Acho que estamos a cavalgar tais linhas cada vez que pensamos feitos ver-tigem ou que vivemos no meios destas foras18.

    Podemos ento afirmar com Deleuze que o prprio poder d origem a uma fora que resiste ao prprio poder. O Fora enquanto fora de subverso no pra de criar resistncias que encarnam por vezes a cabea da morte. Seria ento preciso dobrar essa tendncia mortal, essa linha mortfera, dando lugar a uma dobra, a uma vida, um dentro no interior do Fora. Quando isso acontece, o Fora entra numa relao de fora con-

    Golgona Anghel

    38

  • sigo mesmo, entra num processo de auto-afeco e isso que Foucault entende por subjectivao19.

    Trata-se de uma relao da fora consigo (ao passo que o poder era a relao da fora com outras foras), trata-se de uma dobra da fora, da constituio de modos de existncia.

    Em O Nascimento da clnica h uma passagem dedicada a Bichat em que Foucault analisa a concepo da morte. Bichat apresenta a morte como violenta, plural e coextensiva da vida. Em vez de pensar a morte como fizeram os clssicos, como um ponto, converte-a numa linha que afrontamos continuamente, que trancamos at ao momento em que se acaba. disso que se trata, enfrentar a linha do Fora, dobr-la como quem fecha a chave os quartos da casa20.

    Num outro conto de Cortzar, Carta para una seorita en Pars, o protagonista tem a extraordinria capacidade de vomitar coelhos. O que estranho no o facto em si, mas o tom natu-ral com o qual a personagem explica dona da casa, ausente de momento, a presena dos coelhos na casa. Como se experimen-tar essa linha do Fora j no tivesse nada a ver com a experin-cia da angstia dos irmos que se vem expulsos da casa. Aprendemos assim que experimentar a linha do Fora, para alm de levar a uma prova demasiado violenta, demasiado rpida que nos introduz numa atmosfera irrespirvel, de asfixia, pode tam-bm levar a uma vivncia, a uma prtica. A personagem de Car-ta para una seorita en Pars faz dela, na medida do possvel e durante todo o tempo que lhe possvel uma arte de viver. Como se estivesse a dobrar a linha do Fora, ele cria uma zona onde lhe seja possvel, residir, respirar, lutar, e assim pensa21.

    Dobrar a linha do Fora despregar o processo de subjectiva-o. Criar novos modos de existncia dobrando a fora fazer do Fora, quando no uma ars moriendi, uma ars vivendi e, desta maneira, cravar no interior da resistncia ao poder a metstase do possvel.

    Conceito, Percepto, Afecto. bvio que a existncia ou

    no de um mundo exterior ao sujeito pensante no est aqui em jogo e que esta questo no faz sentido na problemtica

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    39

  • deleuziana. Quando Deleuze fala do Dehors, esta palavra tem dois sentidos complementares salienta Franois Zourabichvili num ensaio recente: 1/o no-representvel, a saber a exteriori-dade da representao ; 2/a consistncia mesma do no-representvel, a saber a exterioridade das relaes, o campo informal das relaes 22. Deleuze chama de plano de imanncia a

    to

    ar a linha do Fora determina uma mutao do pen-sam

    de adores

    e a filosofia no pode prescindir das suas personagens28.

    este campo transcendental onde nada pressuposto que haja a priori com excepo da exterioridade que rejeita precisamente qualquer pressuposto: Poderamos dizer que O plano de ima-nncia ao mesmo tempo aquilo que deve ser pensado, e o que no pode ser pensado. Isto , o no-pensado do

    23. A questo que se pe saber em que condies podemos

    entrar em relao com um elemento desconhecido, com o Fora? Como que se pode alcanar o Fora? Por que meios? E como que cavalg

    ento? Tanto a filosofia como a arte so modalidades do pensamen-

    to, e no o so menos porque o elemento prprio do pensa-mento filosfico seja o conceito e os do pensamento artstico o afecto e o percepto. A filosofia, enquanto criao de conceitos s vive da sua confrontao com a arte, a literatura e a cincia, com o no-filosfico. Deleuze reclama as origens das ideias filo-sficas no s destas disciplinas como tambm da histria interna da filosofia24. Porque a partir da literatura e no do interior da histria da filosofia que se inaugura um novo pen-samento. A filosofia e a literatura so inseparveis: so necess-rias as duas (...) como se fossem duas asas ou duas barbatanas25. Toda a obra de Deleuze , de facto, atravessada pela literatura: os livros sobre Proust, Beckett, Carmelo Bene, vrios ensaios dedicados literatura anglo-americana reunidos na sua ltima publicao, Critique et Clinique, falam desta presena. Por que esta aproximao? Porque, diz ele, tanto a literatura como a filo-sofia se alimentam da mesma fonte, o pensamento, e as duas tendem para a mesma finalidade: inventar novas possibilidades

    vida26, libertar a vida de todos os stios onde esteja presa27. As grandes personagens da literatura so grandes pens

    Golgona Anghel

    40

  • A obra de arte s vale pela sua consistncia interna, a sua autonomia. Ora, a obra no se parece com nada, no imita nada. A verdade dela existir por si prpria, sem denotar ou remeter para um mundo Fora dela que reflectisse ou expressas-se: a obra um monumento29, um ser autnomo e suficiente, um bloco de sensaes30.

    A literatura no serve para nomear o mundo, porque j est feito 31 pela linguagem comum mas para nomear uma espcie de duplo do mundo capaz de recolher a violncia e o excesso32 e isto com o fim de relanar as foras de vida e de devir no seu poder de criao e de inveno. aquilo que Deleuze entende por devir. Escrever uma questo de devir, sempre inacabada, sempre em curso de se realizar, e que trans-borda qualquer matria vivvel ou vivida33. A literatura e a filo-sofia vem de uma nica e mesma actividade, pensar, e as duas s tm uma s finalidade: inventar novas possibilidades de vida34. Este programa no somente apropriado literatura mas tambm a todas as formas de pensamento e de vida: contra a imitao reprodutiva da vida a produo de vida nova. esta a meta de qualquer grande escritor ou grande filsofo.

    Vises e Audies. A nova lngua que nasce no interior da

    lngua materna no desemboca no nada; no est fechada ou recolhida sobre si mesma. Ela nos faz ouvir ou ver alguma coisa atravs das suas palavras e os seus procedimentos. A literatura, diz Deleuze, feita de Vises e de Audies. Mas aquilo com o qual ela comunica, no o mundo da percepo que ela repre-sentaria, nem o autor cujos estados de alma poderia expressar. Os perceptos, que contm as vises e as audies, e os afectos, so diferentes das percepes dos objectos e das afeies do sujeito que perceve. O que um percepto? O percepto uma viso, uma audio, mas no uma percepo. Pelo contrrio, ele este bloco de sensaes, que na percepo nos faz ver, perce-ber o imperceptvel, aquilo que se encontra no limite do per-cepcionado, para alm de qualquer objecto e das categorias per-ceptivas que organizam a experincia do mundo, como para alm de qualquer clich ou esteretipo. Da mesma maneira o

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    41

  • afecto aquilo que nos permite levar as nossas afeies ao limi-te daquilo que ns sentimos, para nos lanar naquilo que Deleuze chama de devir, ou seja uma intensidade impessoal, para alm de qualquer sujeito pessoal, de qualquer individuali-dade. Por outras palavras: escrever no contar as nossas lem-branas, as viagens, os amores e os lutos, os nosso fantasmas35 No escrevemos com as nossas neuroses36, porque so con-sequncias do percurso da vida. A literatura uma enorme fabulao. Mas, certo, para Deleuze, fabular no consiste e m imaginar e projectar o seu eu; no se trata de uma histria pri-vada37. A literatura no revela o mundo (nem o ser no mundo na sua experincia originria), nem expressa um sujeito autor. Ela no tem outro sujeito ou objecto seno estas vises e audi-es, os perceptos da vida que fazem desbordar as percepes e as afeies vividas para caminhar na direco do limite da lin-guagem. A fabulao criadora no tem nada a ver com a lem-brana mesmo que amplificada, nem com um fantasma. De facto, o artista, e portanto o escritor tambm, transborda os estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido. um voyant: Viu na vida alguma coisa de muito grande, demasia-do, intolervel38.

    A subverso da linguagem, enquanto meio para chegar a sua finalidade ltima, portanto inseparvel duma certa forma de relao com o mundo que no perde de vista. A literatura como inveno de novas maneiras de sentir e de pensar partilha esta finalidade ltima com a filosofia. Mas qual o objectivo pr-prio da literatura? A literatura no pode representar o mundo tambm no pode comunicar, transmitir uma mensagem, por-que para isso temos a linguagem comum, para isso, ao nvel mundial temos o standard English. Ento, para que que serve a literatura? Resposta: para criar uma nova linguagem39, a nica que pode permitir a criao de novas possibilidades de vida, de lanar devires. Esta funo pressupe que nos afaste-mos do nvel descritivo e comunicativo da linguagem, desvian-do-nos das conotaes codificadas usuais. O que, em termos deleuzianos, inventar significa inventar uma nova lngua 40 . Resulta portanto uma operao dupla: a literatura apresenta dois aspectos, na medida em que opera uma decomposio ou

    Golgona Anghel

    42

  • uma desconstruo da lngua materna, inventa uma nova lngua, pela criao da sintaxe (...). como se a lngua casse num del-rio, que a faz sair dos seus contornos. No entanto, este trabalho de desconstruo da lngua, esta sada dos contornos habituais, a agramaticalidade e a asintaxe s quais o escritor pode recorrer no so gratuitas. O papel subversivo e transgressivo, intempes-tivo, da literatura encontra-se ligado a um poderoso desejo de liberdade, de libertao de fluxos, de linhas de fuga do desejo.

    O que , enfim, este limite para o qual a obra literria nos conduz? A obra comunica com o seu Fora, diz Deleuze41. As vises e as audies, que compem o Fora, o que que nos fazem ento ver e ouvir? Aquilo que est no limite do visvel e do audvel: por isso que Deleuze diz que o escritor (como o filsofo, alis) testemunha uma coisa que demasiadamente grande para ele. O artista da mesma maneira que o filsofo vol-tam sempre do pas dos mortos 42 . Porque pensar como um artista ou como um filsofo no uma coisa inocente. um exerccio perigoso: Pensar sempre seguir uma linha de bruxa-ria43.

    Para bem entender este tema no qual se concentra o essen-cial do pensamento deleuziano, temos que voltar a uma questo aparentemente trivial: o que pensar? enfrentar o caos. Como que se opera este lance no caos do devir que desfaz qualquer identidade, estabilidade e continuidade? O pensador leva consigo uma espcie de prancha, como os surfistas em alto mar, ou ento ele esboa um plano que organiza este caos, qua-se como se estivesse a cortar um pedao. neste plano que ele vai tentar fazer funcionar os seus conceitos, afectos ou perceptos. isto pensar: atirar-se no abismo para tentar ilumin-lo um segundo. De onde o ar estranho dos pensadores.44 As audies e as vises no se separam portanto da escrita, duma nova ln-gua, que teremos talhado na lngua usual da comunicao. Assim, as vises e as audies s nos so dadas atravs da lin-guagem, graas aos meios literrios especficos. Logo Deleuze no fala de experincias inefveis, quase msticas, para alm das palavras, para Fora da linguagem. Aquilo que se encontra no limite da linguagem ainda linguagem no seu borde interno, e no remete para aquilo que seria Fora da linguagem, porque

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    43

  • sairamos da literatura, do pensamento. sempre atravs das palavras, entre as palavras, nos seus interstcios, atravs da sua organizao, composio, ou seja atravs daquilo que designa-mos como estilo, que ouvimos e vemos45, que produzimos uma linha de fuga, um devir. Aquilo que nos faz ver e ouvir o Fora que se mostra na linguagem, o seu prprio Fora. O Fora no est Fora da linguagem. As vises e as audies so somente o avesso da linguagem o qual enquanto avesso ou limite ainda mantm uma relao com ela. O limite no est fora da lin-guagem, ela o seu fora : ela feita de vises e audies non langagire, certo, mas que s a linguagem as torna possveis46. Escrever portanto levar a linguagem ao seu limite para que possa captar aquilo que no pertence a nenhuma outra lingua-gem silncio e msica estas vises e audies que so mesmo a passagem da vida na linguagem47.

    Esttica da subverso: n-1. Deleuze desenvolve uma esttica

    da linha libertadora em relao com s autoridades sociais que se servem da lngua de comunicao como de um instrumento privilegiado. A questo esttica consiste agora em precisar como que, no plano concreto, se pode produzir este lanar de linhas de fuga. O princpio nico assenta no primado dos procedi-mentos de minorao e subtraco.

    Para qu reduplicar a realidade percebida com uma outra fictcia, narrada? Para se emancipar do sistema dominante e dos poderes da lngua que nos aprisionam. E para isso preciso minorar, subtrair ou desfazer as formas canonizadas pela lin-guagem. A inveno consiste em criar e no em descobrir ou reencontrar aquilo que precede o mundo perceptvel e a lingua-gem consagrada da lngua. No se trata de nenhuma maneira, como quer a fenomenologia, de um retorno a qualquer coisa anterior, dada a um pr-conhecimento, que seja o sentido de ser ou um dito fundador instaurado pelos presocrticos, como para Heidegger, ou seja uma experincia primordial do mundo, antepredicativo, que marca a nossa pertena originria ao mun-do e que nos permite o habitar.

    Golgona Anghel

    44

  • O livro tambm, filosfico ou literrio, segundo Deleuze, conseguido quando salienta o primado de um acto, de um fazer, entendido como uma projeco de linhas de fuga ou de dester-ritorializao, e no ao expressar um sentido, mesmo que pri-mordial, ao transmitir uma mensagem. A obra literria sem sujeito expressado nem objecto representado: Um livro no tem objecto nem sujeito48. Ento, o que a obra, o que que ela faz? Agencia: O livro, agenciamento com o fora, contra o livro imagem do mundo49. Como o Fora no tem imagem, de significao ou de subjectividade, j no se trata de imitar, mas de agenciar. J no o livro imagem (do mundo, duma sociedade, duma poca), no o livro mensagem, o livro cdigo com uma unidade de sentido secreta.

    A obra literria um agenciamento de fluxos heterogneos, ou de linhas de fuga que valem por si mesmas, pelo seu poder de subverso dos sentidos dominantes e de libertao dos sujei-tos dominados. Consequncia: o sentido est no uso. o pragmatismo deleuziano. Um livro tem que ser funcional: uma caixa de ferramentas50. Deve servir como pea de agen-ciamento libertador.

    Resulta assim que qualquer escrita tem uma dimenso necessariamente poltica, porque o livro tem como fim conectar-se com todos os gneros de fluxos, entre os quais os sociais tambm. Ao criar um rizoma com o mundo histrico e social, a escrita cria uma realidade micropoltica no campo social.

    Como concretamente subverter, desfazer o poder descritivo da linguagem narrativa e escapar doxa que dirige esta funo da linguagem?

    Existem alguns procedimentos que podem contribuir para o efeito entre os quais salientamos os mais importantes:

    a) as frmulas (exemplo de Bartleby: I would prefer not...); b) les mots valises (Lewis Carroll) que condensam e

    entrecruzam significados mltiplos para abrir um sentido inde-terminado, suspenso, a completar. ex: flor santstica = manjeri-co;

    c) os termos agramaticais como no caso de Louis Wolfson, ltudiant didiomes dment, aquilo que ele faz traduzir seguindo certas regras: traduzir uma palavra da sua lngua

    Deleuze, Fora da literatura e com a casa tomada

    45

  • materna ingls com uma palavra do francs, alemo, russo ou hebraico de sentido semelhante que tenha sons ou fone-mas comuns (por ex: a palavra Tree Tere que atravs de um trabalho fontico torna-se Dere e acaba no russo derevo);

    d) as repeties diferenciais e as variaes que fazem a ln-gua gaguejar (cf. Gherasim Luca) sacudindo as suas constncias e as suas invariantes ( a lngua inteira que varia para eliminar um bloco sonoro ltimo, um nico sopro ao limite do grito51).

    Deleuze usa a lingustica como ferramenta crtica. E para tal efeito, o procedimento lingustico imprescindvel afirma Deleuze no ensaio sobre Louis Wolfson. A lingustica em si no lhe parece, no entanto, essencial. O que interessa o caracter activo da lngua. Todas as palavras contam uma histria de amor, uma histria de vida e de saber, mas essa histria no est designada nem significada pelas palavras, nem traduzida de uma palavra a outra. Essa histria o que h de impossvel na lin-guagem e por isso lhe pertence ainda mais estreitamente: o seu Fora. Deleuze reconhece neste empurrar da lngua para o seu prprio limite, para o seu Fora agramatical, a-significante uma operao de subtraco, uma minorao de sentido, de significaes, que tm como fim produzir um efeito de inde-terminao que lhes permite desdobrar uma fuga, uma polivo-cidade.

    A crtica e clnica deleuziana, embora marcadas pelo devir a-sintctico, agramatical da lngua no seu processo de criar uma lngua estrangeira na prpria lngua materna, mantm uma relao com os fluxos do social, fazem corpo com as foras do Fora, criam uma micropoltica. Mais do que isso, quando den-tro de uma lngua se cria outra lngua, a linguagem na sua tota-lidade tende para este limite a-sintctico.

    bvio que para Deleuze no h uma metalinguagem nem espcies de linguagem. H diferentes jogos da lngua, isso sim, como por exemplo o jogo lingustico do quotidiano, o jogo do discurso judicial, o da literatura, etc. Todos eles tm limites. No se podem infringir os cdigos da linguagem quotidiana como tambm no se podem infringir as regras dum regula-mento processual. A literatura tambm tem os seus limites mas sobretudo o lugar onde os prprios limites esto em jogo. O

    Golgona Anghel

    46

  • agenciamento, como j foi referido, uma maneira de entender o jogo lingustico duma maneira pragmtica. Afinal a teoria da linguagem deleuziana uma pragmtica ampliada. Porque os limites do jogo lingustico se referem a componentes de expres-so mas tambm a componentes exteriores expresso. O jogo lingustico nunca total, universal. Basta a contaminao com o black English e a mudana de gnero se produz atravs do Fora.

    O que que tm em comum todos estes procedimentos? Um processo de minorao que desencadeiam um devir, lan-am uma linha de fuga. Percebemos ento por que o secreto do mltiplo, a sua frmula reside em n-1, na subtraco e no na adio (de unidades prvias). Percebemos tambm por que Deleuze fala de littrature mineure. Porque aquilo que Deleu-ze entende por isso sempre uma minorao, uma subverso do maioritrio e do modelo que ele constitui para a maioria (a qual por natureza conformista, que precisa de um modelo para estar conforme). A literatura menor (que no forosamente aquela das minorias tnicas ou doutras) pressupe uma minora-o no sentido quase matemtico do termo: preciso reduzir, diminuir a importncia dos significados estabelecidos, subtrair, deformar a sintaxe e a gramtica da lngua para soltar os devires contra a histria gregria e democrtica, consensual e maiorit-ria. Ou seja a obra s verdadeira na medida em que traa linhas de fuga e faz corpo rizomtico com fluxos sociais.

    O Fora funciona como um motor do pensamento deleuzia-no sobre a literatura. na articulao do/com o Fora que se criam os conceitos de literatura menor,