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N. 41

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Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democraciaé uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Territó-rio e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia VermelhaEscola de Serviço Social, sala 3322290-240 Rio de Janeiro, RJ

EQUIPE EDITORIALBarbara Szaniecki Giuseppe CoccoBruno Cava Sindia SantosCristina Ribas

DESIGN: Cristina RibasREVISÃO: Sindia SantosCOLABORADORES: Aukai Leisner e Susana Caló

CONSELHO EDITORIAL Rio de Janeiro, Brasil : Adriano Pilatti, Alexandre do Nascimento, AlexandreMendes, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Cristiano Fagundes, Eduardo Baker,Emerson Mehry, Fabricio Toledo, Gerardo Silva, Henrique Antoun, LeonoraCorsini, Marcelo Castaneda, Mariana Medeiros, Pedro Mendes, Rodrigo Bertame,Rodrigo Guerón, Silvio Pedrosa, Talita Tibola, Tatiana Roque e Vladimir Santafé.

Outras cidades, Brasil : Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria, HomeroSantiago – São Paulo, Hugo Albuquerque – São Paulo, Jean Tible – São Paulo, Márcio Taschetto – PassoFundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Natacha Rena – Belo

Horizonte, Paulo Henrique de Almeida – Salvador, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Renata Gomes – SãoPaulo, Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus e Simone Parrela Tostes – Belo Horizonte.

Outras cidades: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret –Espanha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho – Bolívia, Raul Sanchez – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile, Thierry Badouin – França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França.

Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e DemocraciaUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território eComunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro:UFRJ, n. 41 – set-dez 2013

QuadrimestralIrregular (2002/2007) ISSN – 1415-86041. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e

Comunicação. LABTeC/ESS. CDD 302.23306.2

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Apresentação 7Bruno Cava

EDITORIALEspirais pelo deserto com Mandela 11

UNIVERSIDADE NÔMADE• Nem Xenios, nem São Francisco de Assis.O milagre pertence aos pobres 17Fabrício Toledo de Souza• Ubuntu, o comum e as a ões a rmativas 29Alexandre do Nascimento• Cidades insurgentes 37Ricardo Gomes• A favor de Althusser. Notas sobre a evolu ãodo pensamento do último Althusser 51

Antonio Negri• Biopolíticas espaciais gentri cadorase as resistências estéticas biopotentes 71 Natacha Rena, Paula Berquó e Fernanda Chagas

DOSSIÊ DEVIR MENOR (ORG.: SUSANA CALÓ)• Devir menor, espa o, território e emancipa ão social.Perspectivas a partir da Ibero-Am rica 91Susana Caló• Devir Autónomo e Imprevisto:Por novos espa os de liberdade 95Susana Caló• O sul também (não) existe.A ar uitetura ccional da Am rica Latina 103Eduardo Pellejero• O Devir-Mundo das Práticas Menores 121Anne Querrien

• Dionora. Para uma Arquitetura Menor 133Patricio del Real• Ar uitetura, Feiti o e Território. Mat ria e impulsode liberta ão na obra baiana de Lina Bo Bardi 145Godofredo Pereira

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• Abertura Trilogia da Terra 153Paulo Tavares

• A Cidade Multiforme: O caso do Indoamericano 171Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones• Algumas Considerações acercada Prática do Mapeamento Coletivo 185Iconoclasistas

NAVEGAÇÕES• O desejo do motorista de ônibus:es uizofrenia e paranoia situadas 195

Jésio Zamboni e Maria Elizabeth Barros de Barros• Proliferar oásis: por uma história politizadado desejo e da contingência 213Pedro Demenech• Sobre as manifesta ões de junho e suas máscaras 223Javier Alejandro Lifschitz

ARTE, MÍDIA E CULTURA• O modo artístico de revolu ão: da gentri ca ão à ocupa ão 241Martha Rosler

ECONOMIA E SUBJETIVIDADE: O ACELERACIONISMODO PONTO DE VISTA DO MARXISMO• Apresenta ão 265Bruno Cava• Manifesto Acelerar: por uma política aceleracionista 269Alex Williams e Nick Srnicek

• Sobre o aceleracionismo 281Steven Shaviro• O antiprometeísmo entre neoliberais e catastro stas 293Alberto Toscano• Uma crítica hacker ao manifesto aceleracionista 299McKenzie Wark

RESENHA

• Vinte centavos: a luta contra o aumento.(de Elena Judensnaider, Luciana Piazzon e Pablo Ortellado) 310Por Bruno Cava

RESUMOS 315

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Devir menor, espa o, território eemancipa ão social. Perspectivasa partir da Ibero-Am rica

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Da mesma forma, e reconhecendo a transversalidade destas problemáti-cas, esta investigação confere particular atenção à articulação entre campos pro-

ssionais e disciplinares (urbanismo e arquitectura) e práticas espaciais desenvol-vidas por movimentos sociais no âmbito de processos de autonomização cívica eemancipação social.

Finalmente, o próprio contexto geográ co em que este projecto se insereassume contornos que exigem problematização. É preciso ter em atenção que aIbero-América enquanto constructo projecta sobre um amplo e diverso territóriouma ideia de unidade que remete a um passado colonial. Numa primeira instânciaesta aproximação entre a América Latina e a Península Ibérica não pode, portan-

to, ser entendida sem a consciência de uma história colonial e de uma modela-ção identitária que resulta na ofuscação da divergência e da diversidade existenteno espaço deste território. Contudo, mais do que uma limitação, aqui a Ibero--América é uma possibilidade de trabalho. E ao contrário da unidade investidano constructo, o resultado que se procura não é uma mostra unitária, mas umamultiplicidade e heterogeneidade de práticas espaciais e concepções de territórioque emergem deste espaço e das quais é possível tirar partido. Assim, centrarmo--nos aqui nas possibilidades de abertura a outras experiências e práticas de eman-

cipação, procurando estabelecer ligações e cruzamentos entre diversas noções deterritório e de prática, de vida e de relações socioespaciais.Por último, a pergunta que quisemos colocar foi de que modo um en-

tendimentomenor das práticas do espaço abre possibilidades para a emergênciade formas de viver e de habitar mais democráticas. Como conclusão, ressalva-seum entendimento ético-político domenor,isto é, que segue o imperativo de uma prática, que diz respeito a uma tensão e articulação produtiva entre movimentossociais e instituições, com vista à consagração em direito a outros modos de orga-nização, outros modos de produção, outros territórios e modos de vida.

Deste modo, iniciamos este dossier com a exploração cuidada do concei-to dedevir menor avançado por Deleuze e Guattari, e o seu desenvolvimento porrelação com a axiomática do capital na forma do problema dominoritário. Nestetexto, intitulado Devir Autónomo e Imprevisto: Por novos espaços de liberdade, proponho reavaliar o conceito na medida de uma prática de resistência que articu-la uma micropolítica e uma macropolítica, alertando para os perigos de confundiro menor com o pequeno, o independente ou o marginal. Trabalha-se a ideia de quea luta pelos espaços da existência é uma luta pela vida, e que defender o direito aoterritório é também defender o direito à participação na invenção de um mundo.

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Prosseguimos com O Sul também não existe. A arquitectura ccionalda América Latinade Eduardo Pellejero, em que o autor explora uma série de

casos da literatura do último século – cções coloniais e nacionalistas modernase, em contraste, formas “menores” de cção e “desincorporação literária” – paradesenvolver uma ideia de literatura que se opõe a narrativas hegemónicas e àsidenti cações imaginárias que modelam o território permitindo-nos compreendero seu potencial de resistência.

O terceiro ensaio, Devir-Mundo das Práticas Menores é de Anne Quer-rien quea partir da ideia da escola enquanto lugar de articulação da heterogeneidadedo território procuraexpandir o pensamento das práticas espaciais críticas com

vista a uma abertura à participação e autogestão do espaço.A re exão seguinte, desenvolvida por Patricio del Real, com o título Dio-nora. Para Uma arquitectura menor , contrasta a ideia de território ou meta-ge-ogra a ibero-americana com a multiplicidade social e cultural que correspondea esse território. Em alternativa, encetando também uma crítica ao fascínio peloinformal, sugere que se foque a atenção não sobre a escala do território, mas sobrea escala da cidade, por forma a pensar as condições para um processo de menori-zação da prática da arquitectura.

Nesta sequência, a contribuição de Godofredo Pereira Feitiço, Arquitectu-ra e Território, sugere a desconexão contemporânea entre a pro ssão de arquitec-tura e a necessidade de uma política espacial crítica. Partindo da in uência que os“anos entre os brancos” tiveram sobre o posicionamento político da obra de LinaBo Bardi, assim como a proximidade desta com a conceptualização de uma ecolo-gia radical desenvolvida por Félix Guattari, procura pensar a importância “feiticis-ta” de certos objectos enquanto elementos transversais que dão corpo uma relaçãoentre território e existência, enquanto lugar de transformação e luta política.

Ainda sobre a problemática da emancipação social no Brasil, a contri- buição de Paulo Tavares, Abertura – Trilogia da Terra é um projecto vídeo deinvestigação sobre os desdobramentos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no Brasil no período designado de “Abertura”. A partir de umconjunto de entrevistas e dos registos das viagens de Félix Guattari ao Brasil,documentada em Micropolítica: cartogra as do desejo, o autor mostra como aquestão do direito à terra estava no centro das lutas políticas e sociais, à escalaurbana, agrária e territorial.

Prosseguimos com o Colectivo Situaciones que nos traz uma re exão pro-duzida com outros colectivos no Taller Hacer Ciudade.Cidade Multiforme: o casodo Indoamericanoanalisa a ocupação do parque indoamericano em Buenos Aires

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por emigrantes, em dezembro de 2010, que desaguou em violência, terminandocom a sua evacuação. Na análise do processo, os autores identi cam uma compli-

cada trama económica e governamental de micro-gestão territorial e especulaçãoimobiliária conjugada com problemas de emigração, racismo e nacionalismo.Ainda no âmbito de projectos de trabalho colectivo e militante, em Algu-

mas Considerações a cerca da Prática do Mapeamento Colectivo, o coletivo Ico-noclasistas parte de uma crítica ao uso hegemónico da representação cartográ ca para mostrar através da sua extensa experiência como os mesmos recursos podemser usados de um modo contra-hegemónico. Os autores desenvolvem um métodode cartogra a participativa, com vista à produção de novas subjectividades e ter -

ritorialidades.As contribuições aqui reunidas para formar especialmente este dossiêforam desenvolvidas durante o ano de 2012.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 95-

Devir Autónomo e Imprevisto:Por novos espa os de liberdade

Susana Caló

É a variação contínua que constituiu o devir minoritário de todoo mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém. O devirminoritário como gura universal da consciência é denominado

de autonomia. Sem dúvida que não é utilizando uma língua menorcomo dialecto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamosrevolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria,

conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especí co,autónomo, imprevisto.38

As línguas menores não existem em si: existem apenas em relação auma língua maior e são igualmente investimentos dessa língua para

que ela se torne, ela mesma, menor.39

Deleuze e Guattari , Mille Plateaus

Quando em Mille Plateaus Deleuze e Guattari se referem ao projecto dedevir menor enquanto constituição de uma prática revolucionária com o potencialde evadir a axiomática do capital é para o investir de uma dimensão política quemerece ser explorada, para além do campo da literatura em que foi inicialmenteformulado40. É neste movimento que se podem especular linhas de pensamentosobre a questão da relação entre espaço, política e emancipação a partir dos con-

ceitos dedevir menor e minoria. Neste âmbito, há duas ideias chave: primeiro, avirtude de questionar o critério epistemológico que de ne maiorias e minorias e,segundo, a quali cação de uma prática que toma lugar no seio do maior para omenorizar . A primeira e a segunda complementam-se na de nição de uma práticaorientada para a abertura de espaços de conexão à experiência múltipla do mundo,

38 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus,trad. Brian Massumi. London: Continuum, 1987, p. 118.39 Ibid., p. 116.40 Isto não quer dizer que no domínio literário devir menor não tenha um cunho político – pelocontrário, a enunciação da capacidade ética-estética-política da literatura é central ao projectocrítico-clínico de Deleuze e Guattari.

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ou a criação de condições de possibilidade para outras formas de pensamento ede vida. Contudo, é importante notar que, como bem nota Maurizio Lazzarato41,

o conceito de devir menor traduz o período das lutas da década de 1960, numambiente em que se procurava encontrar linhas de fuga através de formaçõesminoritárias à rigidez política dos grandes ajuntamentos sociais, institucionais e partidários. Ora, hoje em dia, passa-se um pouco a situação contrária. Ao passoque o modelo neoliberal se a rma duplamente, quer a um nível micropolítico, nacaptura da produção de subjectividade, quer a um nível macro-político, nas for-mas de estado e instituições ao seu serviço, tanto movimentos sociais como parti-dos, manifestam uma di culdade de expressão e articulação que consiga conectar

estes dois planos. É neste sentido que vale a pena reavaliar a questão do menor.Importa distingui-lo claramente de uma apologia do marginal, do pequeno, ou donão-institucional. É nessa medida que vamos enfatizar essa implicação mútua, emque a política é sempre uma micro e uma macro-política, pois parece-nos que sehoje o conceito é válido é porque convoca a necessidade de procurar formas dearticulação e de formalização entre estas.

I.

Formulado no âmbito de um pensamento político da literatura através doestudo da obra de Kafka42, o conceito dedevir menor refere-se ao processo peloqual, num contexto dominado por uma língua hegemónica, se criam espaços e passagens para a variação e multiplicidade que não é re ectida nas formas de re- presentação dominantes. Segundo a ideia de que “a unidade da língua revela umamanobra política” e que as línguas hegemónicas reforçam a homogeneização, aidentidade e as “constantes de expressão ou conteúdo”, de acordo com um regimede representação,devir menor deve ser entendido como um tratamento da língua

maior cujo propósito é de arrancar a língua às relações de poder que a aprisionam, para a re-conectar com a variação e heterogeneidade que caracteriza a experiênciado mundo. Neste sentido, o menor ou o maior não dizem respeito a duas línguas,mas a diferentes tratamentos ou usos de uma língua. O que importa reter é queo maior determina o padrão ou a regra a partir da qual todos os outros usos sãoavaliados: implementa normas e leis, imanentes tanto ao conteúdo como à forma,

41 Entrevista não publicada, realizada a maio de 2013, Londres.42 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Pour une littérature mineure. Paris: Minuit,1975.

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97Susana Caló

que regulamentam não só as práticas discursivas, mas também comportamentos,formas de falar, de fazer e de pensar.

Parece-me então que face a esta homogeneização, o tratamento menorda língua encontra a sua mais alta justi cação na premissa de que esta deve serdevolvida à multiplicidade do mundo para salvaguardar condições de possibilida-de de enunciação e de formulação de novos problemas. Ou seja, a introdução denovos objectos de luta no espaço político.

Se retomarmos o ponto de vista de Deleuze e Guattari, a literatura menorimplica uma capacidade de afectar a língua maior com um grau relevante de des-territorialização que provoca uma série de deslocamentos e renegociações que a

confrontam com o seu próprio limite. No caso de Kafka este efeito deve-se a des-locamentos contextuais (em Metaformose, por exemplo) que produzem situaçõescuja natureza convoca simultaneamente a renegociação de estruturas familiares,económicas, burocráticas ou jurídicas. Este aspecto entende-se bem se seguirmosa proposta sugerida em Mille Plateaus de que a pragmática é a política da língua,isto é, que a língua não existe em si mesma, mas depende de factores externos a si própria ou pré-condições que permitem, ou não, a sua efectuação, em determina-do campo social ou contexto, e em dado momento no tempo.

Ora, esta confrontação da língua com os seus limites expõe a rede de ele-mentos da qual a efectuação de um enunciado depende, deste modo entendendo--se melhor a língua como um sistema dinâmico com quebras e transições, nafronteira de micro e macro-lutas que re ectem modulações de poder, num certomomento do tempo e revelam o contexto de relações de poder segundo as quaisse a expressão é distribuída.

Se continuarmos a extrapolar o sentido político do enquadramento dalíngua nessa dinâmica de relações, então percebemos que, assim como o fecha-mento da língua sobre si própria neutraliza a sua potência política revolucionária(porque ofusca a sua dimensão colectiva e social), de igual forma o encerramentodo escritor sobre si próprio anula a potência política da criação literária. Como tal,na perspectiva do menor, Deleuze e Guattari defendem que o verdadeiro escritor éaquele que força sobre si próprio uma potência de desubjectivação da experiênciaou uma elevação ao impessoal, como condição necessária para a articulação coma experiência colectiva (e singular) do mundo, assim como de uma ligação do in-dividual ao social. Neste sentido, a noção deagenciamento colectivo de enuncia-ção, também introduzida no livro dedicado a Kafka, é central para compreendero que se entende por literatura menor. O escritor não escreve sobre as coisas, nem

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no lugar delas, mas escrevecom o mundo ou em conjugação com o mundo – é, nofundo, essa a condição política da literatura.

Trata-se de defender que o fazer de uma língua não é uma coisa indi-vidual, mas diz respeito a um processo de criação colectiva, assim como a um processo de constituição de um colectivo. É também a esse respeito que Deleuzee Guattari propõem que a literatura menor inventa condições de possibilidade deum povo por vir , povo esse que está em falta.43 Todavia, é fundamental entenderque este povo não se refere a um grupo particular ou ideal, mas convoca a questãoda política do por-vir , sinónimo de outras formas de vida, outros valores e outrosmodos de pensamento para os quais as condições de possibilidade de aconteci-

mento têm de ser produzidas. No domínio da língua ou da expressão, isso implicagarantir que a enunciação e a formulação de novos problemas sejam informadas por essa multiplicidade, e sensíveis à formalização de novos problemas. É essemovimento dedevir que forja articulações entre vários regimes de poder, e queforça o menor sobre o maior, que deve ser relevado (enquanto uma prática).

II.

Partindo destas considerações e tendo no horizonte a crescente mercanti-

lização da cidade e do território que cada vez mais se a rma como uma tendênciadominante com consequências directas sobre os modos de vida, tentarei agorasugerir a forma como a ideia dedevir menor pode informar um pensamento e prática contra-hegemónicas do espaço e do território. Neste âmbito, a hegemoniadiz respeito ao processo global em que a urbanização hoje promove a expansão docapital, estruturando tanto a cidade como o território de maneiras que geram nãosó exclusão social e discriminação, mas inevitavelmente resultam na a rmaçãode certas formas de relação com o espaço que acarretam como consequência o

estrangulamento de muitas outras. E, com efeito, os aspectos anteriormente men-cionados – desterritorialização da língua maior; elevação ao impessoal; conexãodo individual ao social; agenciamento colectivo de enunciação – revelam-se di-mensões importantes para pensar práticas espaciais e sociais comprometidas.

Mas há ainda dois aspectos que resultam da re exão prévia e que deve-mos notar: o reconhecimento de que as formas de poder operam a diversos níveis,desde a produção de subjectividade aos modos de relação social; e a necessida-de de inventar modos de articulação entre a dimensões subjectivas, movimentos

43 Esta articulação entre um tratamento menor e a noção de um povo por vir é melhor feita emCinéma 2: L’Image-temps (1985), Critique et Clinique (1993) e Qu’est-ce que la philosophie?(1991) por relação com o conceito de fabulação.

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99Susana Caló

sociais, formas de representação e instituições. É claro que a política não podeser reduzida à dimensão maior das representações ou das instituições, pois passa

também pelas formas de vida e processos de produção de subjectividade, querseja pelo “modo como falamos” como por “aquilo que pode ser dito”. Ou seja,a política é algo que se faz e se pratica, atravessando tanto o tecido do individualcomo do social. Esta tomada de consciência é importante, pois a partir do momen-to em que a vida é tomada como objecto de poder, nela reside também uma forçaestratégica que pode ser canalizada para a resistência. Como disse Deleuze, “nãoé uma questão de nos preocuparmos ou de esperar pelo melhor, mas de encontrarnovas armas”.

É evidente que os domínios materiais e espaciais são atravessados porrelações de poder (de formas implícitas e explícitas) e necessariamente emitemregulamentações sobre os modos de relação social, valores e formas de vida. Porisso, o espaço não é, nem deve ser entendido, como um simples contentor pací coe neutral das relações sociais, mas sim como um elemento activo, com o potencialde participar, tanto a um nível molecular, como molar, da singularização e reno-vação dos modos de relação social e cultural. Como explicou Guattari, a produçãode subjectividade depende de uma série de factores polifónicos, espaciais e mate-

riais, discursivos e não discursivos, signi cantes e assigni cantes.Assumindo como ponto de partida que as práticas de emancipação to-mam lugar nos espaços que habitamos e são tanto produtoras de espaço comocontingentes ao espaço, deveríamos ser capazes de operar uma análise dos lugaresque habitamos, não só para identi car modos de organização rígidos e hegemó-nicos, mas também para os reformar. Estaríamos próximos do trabalho de críticae análise institucional de Guattari e Jean Oury no espaço da clínica La Borde44,onde se pode dizer que a estratégia era a demenorizar o espaço institucionalenquanto modo de singularização e autonomização da diferença, e resolver umimpasse entre uma horizontalidade e uma verticalidade puras de poder, ou entre processos topo-base e base-topo.

Nesta lógica, a questão que nos deveria orientar para pensar ideias deemancipação articuladas por práticas espaciais seria: de que modo é que estas podem gerar formas de habitar e de relação com o território que exponenciem processos de singularização e autonomização cívica? Teríamos de pensar uma

44 A primeira vez que tentei analisar as implicações sociais e políticas do trabalho desenvolvidona análise e crítica institucional foi através do estudo do caso da clínica La Borde em “FélixGuattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção da subjectividade para além dohumano.”, em (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiro e Fbaup, 2011.

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100 DEVIR AUT NOMO E IMPREVISTO

economia do espaço e do território orientada para a emergência de concepções deliberdade, de igualdade e de justiça, capazes de constituir uma oposição crítica a

critérios epistemológicos maiores.Embora seja certamente possível de nir certas minorias segundo um cri-tério quantitativo45, esta de nição é tão errada quanto confundir a proposta domenor com a a rmação de espaços pequenos ou independentes, desligados dasociedade e tentativamente separados da realidade, em ruptura com as instituiçõese as estruturas de poder existentes. Não se trata de evitar qualquer tipo ou formade identidade ou de representação – dessa forma anulando estrategizações formaischaves à prática política. Pelo contrário, como sublinha Guattari, o menor deve

mobilizar uma prática de articulação:a conclusão deste tipo de transformações dependerá essencialmente da capaci-dade que tenham os agenciamentos criados para articular essas transformaçõescom as lutas políticas e sociais. Se não se produzir essa articulação: nenhumamutação de desejo, nenhuma luta por espaços de liberdade logrará dar lugar atransformações sociais e económicas a grande escala.” “Fugas moleculares emovimentos não seriam nada se não voltassem às organizações molares pararecombinar os seus segmentos, a sua distribuição binária dos sexos, das classes

e dos partidos.”46

Inevitavelmente as lutas de emancipação social ocorrem às mais diver-sas escalas e nos mais diversos contextos, produzindo formas de identidade, deassociação e de representação que se tornam a dado momento necessariamentemaiores (desde o grupo ao partido). Mas por isso mesmo é necessário identi carmodos de interacção do menor com o maior, que possam substituir a simples opo-sição (improdutiva) entre espaços “menores” vs “maiores”, “marginal” vs “insti-tucional”, “formal” vs “informal”.

45 Como Deleuze e Guattari explicam: “Por maioria nós não entendemos uma quantidaderelativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto asquantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias.” A Thousand Plateaus, p. 321.“Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica adeterminação de uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relaçãoao qual ela é avaliada. (…) A maioria assume um estado de poder e de dominação e não ao contrário(…) Certamente as minorias são estados que podem ser de nidos objectivamente, estados delíngua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas tambémcomo germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveise de desterritorializações da média ou da maioria.” A Thousand Plateaus, p. 116-117.46 Ibid., p. 239

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101Susana Caló

Neste âmbito, as práticas espaciais que se debruçam sobre as relaçõesde trabalho, sobre o colectivo enquanto modo de criação, sobre protocolos de

ocupação de espaços ou sobre as políticas do território e as suas determinaçõeslegais, são particularmente relevantes para imaginar possíveis práticas espaciaisque intervenham no âmbito de diferentes relações de poder. E por isso é crucial prestar atenção também a modelos participativos promotores de outras formas derelação social que potenciem estas articulações.

Por outro lado, ao passo que é preciso não confundir metodologias par-ticipativas com ausência de arquitectura, é crucial ter presente o que sugere oarquitecto Teddy Cruz ao defender que “uma comunidade não será livre enquanto

não for capaz de resolver criativamente as suas necessidades de habitação, de for-mas de sustentabilidade socioeconômica, as suas próprias concepções de espaço público, e os modos de relação com o território: no fundo a sua cultura cívica”.47

III.

“Devir-minoritário é um caso político, e apela a todo um trabalho de potência,uma micropolítica activa. É o contrário da macropolítica, e até da História,onde se trata de saber, sobretudo, como se vai conquistar ou obter uma maio-ria. Como dizia Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para nãoacabar fascista. Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões deum futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir éum bloco de coexistência.”48

Uma prática menor começa por reconhecer que o pensar do espaço e doterritório é um problema que diz respeito a todos. Tal como a invenção de umalíngua diz respeito a um colectivo, e não apenas a um indivíduo ou a um regime derepresentação que se impõe de cima, também o espaço diz respeito a uma comuni-dade, em prolongamento com a construção da sua autonomia cívica. Só perspecti-vando as lutas em torno ao território enquanto lutas pela vida e enquanto sintomasdestes agenciamentos colectivos é que podemos fazer passar a política pelo espaço,isto é, concebendo-o como território de existência. Deste modo, a politização do

47 Cf.: excelente discussãoon-line, em particular, os comentários de Teddy Cruz aqui“Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy and the Collective’sImagination, http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg04012.html.(Acedido em julho de 2012).48 A Thousand Plateaus, p. 322.

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espaço não termina no espaço, mas prossegue apontando uma direcção para foradele, indicando sempre a sua posição num regime transversal de relações de forças,

que pre gura a sua capacidade de intervenção e afectação a diferentes níveis. Semdúvida, a medida de afectação mútua é a medida política do espaço.Por m, reconhecer que a política se faz e se pratica nos espaços da exis-

tência como uma luta pela vida, implica reconhecer e defender que o direito aoespaço é também o direito à participação na invenção de um mundo. Uma parti-cipação que depende da construção de articulações produtivas entre uma micro euma macropolítica.

Referências

CALÓ, Susana. Félix Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepçãoda subjectividade para além do humano. In (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiroe Fbaup, 2011.CRUZ, Teddy. Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policyand the Collective’s Imagination. Disponível em: http://www.mail-archive.com/em- [email protected]/msg04012.html. Acesso em: jul. 2012.DELEUZE, Gilles.Critique et clinique, Les éditions de Minuit. Paris, 1993. (coll.“Paradoxe”)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka: Pour une littératuremineure. Paris: Mi-nuit, 1975. ___. Qu’est-ce que la philosophie?Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris,1991. ___. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus, trad. Brian Massumi.London: Continuum, 1987.

Susana Caló escreve neste momento o doutoramento no Centre for Research inModern European Philosophy (CRMEP), em Londres, com uma tese sobre a política da lingua-gem a partir de Gilles Deleuze e de Félix Guattari em que aborda as relações entre linguagem,semiótica e emancipação.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 103-

O sul também (não) existe. A arquiteturaccional da Am rica Latina

Eduardo Pellejero49

Que classe de ser histórico é o que chamamos de América? Não éuma região geográ ca, nem um passado, nem,quiçá, um presente. É

uma ideia, uma invenção do espírito europeu.

Octavio Paz , O labirinto da solidão

mas aqui embaixo, abaixo,a fome disponível

recorre ao fruto amargodo que outros decidem

enquanto o tempo passae passam as paradas

e fazem-se outras coisasque o Norte não proíbe.Com a sua esperança dura

o Sul também existe.Mario Benedetti , O sul também existe

Entre outras tantas aventuras intelectuais, o século XIX reservava à Eu-ropa o cansaço da cultura e a tristeza da carne, contaminando os sonhos dos seus poetas com fantasias de evasão.50 A ilusão de uma vida simples, sem as contra-dições que dilaceravam as cidades modernas, levaria alguns a fazerem-se ao mar

49 Traduzido do espanhol por Susana Guerra.50 “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. / Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseauxsont ivres / D’être parmi l’écume inconnue et les cieux! / Rien, ni les vieux jardins re étés parles yeux / Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe / O nuits! ni la clarté déserte de malampe / Sur le vide papier que la blancheur défend / Et ni la jeune femme allaitant son enfant. /Je partirai! Steamer balançant ta mâture, / Lève l’ancre pour une exotique nature! / Un Ennui,

désolé par les cruels espoirs, / Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs! / Et, peut-être,les mâts, invitant les orages / Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages / Perdus,sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots... / Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!!”(Mallarmé, “Brise marine”, 1887)

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104 O SUL TAMBéM (N O) EXISTE

(muitas vezes para desaparecer), mas, sobretudo, levantaria no vazio da literaturada época a utopia de um mundo virgem, de um mundo onde tudo ainda estava por

ver, por nomear e por fazer.51

Essa utopia nissecular não era nova. A América nascera de uma fantasiasimilar.52 A imaginação europeia projetara durante séculos a imagem de um paraí-so terrenal sobre os despojos da conquista, sobrepondo uma topogra a intelectuale fantástica ao território real, perpetuando a cção de um mundo novo, puro, semfalhas. Os mares do sul não eram neste contexto um simples tropo literário, eramassunto de Estado.

Signo do valor atribuído a esta cção pelo poder são as numerosas dis-

posições coloniais através das quais Espanha pretendeu proibir, a partir do sécu-lo XVI, a publicação e importação de qualquer material romanesco na colónia.Visando fundamentalmente o controlo ideológico do novo mundo, a metrópoletentava deste modo impor limites à imaginação americana.53Os inquisidores com-

51 As mesmas contradições que inspiravam d fantasias, por outra parte, davam lugar na mesmaépoca a outra utopia, esta vez imanente e materialista, que a rmava que o mundo estava por ver, pensar e fazer em todas partes e a todo o momento.52 Sobre a fundação ccional da América, cf. TODOROV. Fictions et vérités. L’Homme, v. 29,n. 111, Paris, 1989, p. 7-33; “A América é uma utopia, isto é, é o momento no qual o espíritoeuropeu se universaliza, se desprende das suas particularidades históricas e se concebe comouma ideia universal que, quase milagrosamente, encarna e a ança-se numa terra e num tempo preciso: o porvir. Na América a cultura europeia concebe-se como unidade superior” (PAZ,Octavio. El laberinto de la soledad . Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 71); “Coma descoberta da América, o “Novo Mundo”, o Ocidente converte-se em terra verdadeira de promissão. (…) A chave mais importante deste ocidente será o ouro. A ideia de “El Dorado”(uma lenda índia que chegou aos ouvidos dos espanhóis no século XVI), deu asas à fantasia e àcobiça dos europeus. O Ocidente passará a ser – a partir das expedições dos conquistadores do

século XVI até à “quimera do ouro” californiana na época posterior a 1848 –, o ponto cardealdos caçadores de tesouros. (…) Mas o Ocidente converte-se em terra promisionis também emsentido político. Durante séculos, a América constituirá a meta de inúmeros emigrantes que,abandonando as estreitas e opressivas condições europeias, procuravam no “dourado Ocidente”liberdade individual, independência e riqueza, ou – como os padres peregrinos, os quáqueres emuitos outros grupos – queriam tornar realidade, com a fundação de novas comunidades, umaordem social ideal” (cf. RICHTER, Dieter. El sur . Historia de un punto cardinal. Un recorridocultural a través del arte, la literatura y la religión. Tradução espanhola de María Condor. Ma-drid: Ediciones Siruela, 2011, p. 30).

53 Para uma visão mais apurada da questão da cção na América colonial, cf. AntonioAntelo. Literatura y sociedad en la América Española del siglo XVI: Notas para su estudio. In:Thesaurus, tomo XXVIII, n. 2, 1973; cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales. Traduçãoespanhola de José Leandro Urbina e Ángela Pérez. Bogotá: FCE, 2004, p. 27.

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105Eduardo Pellejero

preendiam muito bem que a proliferação não regrada das imagens e dos discursosà qual dá lugar a cção literária constituía uma ameaça (real) para a fundação

( ccional) do novo mundo.54

Espanha procurava assegurar o monopólio da força assegurando o mo-nopólio da cção. Com o argumento (platónico) de que os romances eram dis- paratados e absurdos (isto é, mentirosos), com o argumento de que podiam ser prejudiciais para a saúde espiritual dos cidadãos, durante 300 anos os americanosforam privados do direito à sua leitura, ou, melhor, foram forçados a lê-los decontrabando, de tal modo que o primeiro romance que se publicou sob essa gurana América hispânica só apareceu depois da independência55.

Trezentos anos é muito tempo. Há costumes que se enraízam. Quero di-zer que depois de viverem tantos anos envolvidas numa cção, as nações nas-centes necessitariam da cção para viver. O sul, que até então fora uma projeçãofantasmática do norte, um espaço onde as topogra as reais e imaginárias se en-contravam indissoluvelmente ligadas, arriscava a desagregar-se enquanto lugarsimbólico a golpes de realidade (guerras civis, con itos fronteiriços, uxos mi-gratórios etc.). Libertada nalmente do controlo espanhol, era hora da imaginaçãoamericana dar consistência a um território que aparecia dividido e depredado. E,

numa época em que a experiência religiosa (e as suas fábulas associadas) de nha-va enquanto fundamento do vínculo social, a literatura haveria de responder a essanecessidade espiritual e política, assumindo a tarefa de produzir o sucedâneo deuma experiência partilhada, de uma memória comum.

Poetas e políticos con uiriam nesta empresa. Assim, por exemplo, em1847, o futuro presidente da Argentina, Bartolomé Mitre, introduzia no prólogodo seu romanceSoledad , uma espécie de manifesto com o qual pretendia suscitar

54 Espanha aspirava controlar totalmente a vida nas colónias americanas, e pretendia portantodeter também o monopólio da cção. É difícil de compreender, contudo, que tenha tentadosubmeter a literatura a uma forma tão sistemática de censura. O certo é que se o poder pretende, por um lado, enclausurar ou expulsar a cção (pensem na expulsão dos poetas da república pla-tónica, que inaugura esta história de exílios que se estende tristemente até aos nossos dias), poroutro lado, o poder também procura apropriar-se da potência da cção para os seus próprios ns(lembrem também, neste sentido, que na República, Platão funda a divisão do trabalho numa

cção ou num mito: o da implantação do ouro, da prata, do bronze e do ferro nas almas doshomens). A associação imediata, claro, é 1984, de George Orwell: “Quem domina o presente,domina o passado. Quem domina o passado, domina o futuro”. Cf. LLOSA, Mario Vargas. Laverdad de las mentiras. Buenos Aires: Alfaguara, 2002, p. 15-16.55 Trata-se do romance de José Joaquín Fernández de Lizardi, El periquillo sarniento, publicado no México, em 1816.

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a produção de romances que zessem as vezes de cimento para a nova nação. No espírito de Schiller, considerando que a revolução política só era possível a

partir de uma reforma cultural56

, Mitre estava convencido de que os romances dequalidade promoveriam o desenvolvimento do país; os romances ensinariam a população sobre a sua história incipiente, sobre os seus costumes apenas formula-dos, sobre ideias e sentimentos políticos e sociais, oferecendo uma representaçãosensível da sua transformação em curso, do seu devir histórico imediato57.

Resultado de invasões violentas e de divisões forçadas, de pactos desi-guais e alianças improváveis, as novas nações careciam de qualquer tipo de coe-são. As identi cações imaginárias que a literatura era capaz de suscitar apareciam

portanto como uma alternativa efetiva. Nesse sentido, intelectuais e governantesalentaram a fabricação de cções compensatórias para preencher um mundo cheiode vazios.58

Exemplo: Em Amalia59 (1844), de José Mármol, Eduardo Belgrano (por-tenho) é ferido quando tenta fugir de Buenos Aires para somar-se à resistência aogoverno de Rosas; Daniel Bello salva-o e oferece-lhe refúgio na casa da sua primatucumana, Amalia. A paixão entre Eduardo e Amalia in ama a paixão política,

56 A interpretação que Mitre faz de Schiller pode ser posta em causa, mas certamente Mitreafeta a sua in uência, chegando a utilizar, no Prólogo, as categorias de homem moral e homemsiológico.

57 “É por isso que gostaríamos que o romance criasse raízes no solo virgem de América. O povo ignora a sua história, os seus costumes apenas formulados não foram loso camenteestudados, e as ideias e sentimentos modi cados pelo modo de ser político e social não foramapresentadas sob formas vivas e animadas copiadas da sociedades na qual vivemos. O romance popularizaria a nossa história apelando aos acontecimentos da conquista, da época colonial, edas memórias da guerra da independência. Como Cooper no seu Puritano e o espía, pintaria os

costumes originais e desconhecidos dos diversos povos deste continente, que tanto se prestam aser poetizados, e dariam a conhecer as nossas sociedades tão profundamente agitadas pela des-graça, com tantos vícios e tantas grandes virtudes, representando-as no momento da sua trans-formação, quando a crisálida se transforma em brilhante borboleta. Tudo isto faria o romance, eé a única forma sob a qual podem apresentar-se estes diversos quadros tão cheios de ricas corese movimento.” (MITRE, Bartolomé.Soledad . Buenos Aires: Tor, 1952).58 Deste modo, na América Latina, os romances, do mesmo modo que as constituições e oscódigos civis, vinham legislar sobre os costumes modernos. A literatura fornecia uma espéciede “código” civilizador, que tinha por objeto erradicar a barbárie, e de uma forma tão certacomo os códigos civis promulgados muitas vezes pelos mesmos autores; cf. RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina: Literatura y Política en el siglo XIX.México: FCE, 1989.59 MARMOL, José. Amalia. Madrid: Cátedra, 2000.

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107Eduardo Pellejero

e leva os primos a ngir-se partidários do regime para secretamente lutar contraRosas. Na véspera da inevitável fuga de Buenos Aires, Eduardo e Amalia casam,

mas morrem na tentativa às mãos das tropas de Rosas, fechando um pacto que jánão poderá ser desfeito. Na prosa de Mármol, a história de amor funciona ao mes-mo tempo como impulso para uma nova ordem política; projeta, num contexto dedivisão social e na ausência de um poder legítimo (tal é a perspectiva de Mármol),o tipo de cópula entre a capital e as províncias, capaz de estabelecer uma família pública de direito.

O caso de Amalia é representativo de um gênero que conheceu uma tra-dição prolí ca, cujo objeto era conciliar as diferenças entre etnias, classes e re-

giões, postulando os antigos inimigos como futuros aliados. Romance erótico/ político, onde a metáfora do matrimónio (conquistado com grandes esforços) ouda união de fato (minada por todo o tipo de condicionamentos materiais, sociaise culturais), se desdobra como metonímia de consolidação nacional.60 Os aman-tes desejam-se apaixonadamente ao mesmo tempo que desejam o nascimento deuma nova ordem política, uma ordem capaz de tornar possível a sua união; cadaobstáculo que os amantes encontram intensi ca o amor – o das personagens e odos leitores –, pelo surgimento de uma nação onde a paixão possa ser consuma-

da61

. A cção literária é politicamente fundacional: não implica diretamente umaorganização nova do social, mas dá lugar a um novo agenciamento coletivo deenunciação, que apela aos leitores presos nos mesmos impasses que narra parao tornarem seu. Palavra impessoal à espera de um corpo (político) que lhe dêvoz, a cção fundacional pressupõe um sujeito paradoxal, que coloca em causa(e rede ne) as distinções entre o público e o privado, o individual e o coletivo, o particular e o universal.

Balzac dizia que “o romance é a história privada das nações”, mas o queacontece na América é demasiado; os termos invertem-se: as biogra as familiaresda literatura são as que dão lugar à história nacional. Não há separação entre o na-cionalismo épico e a sensibilidade íntima; os romances da época fornecemalego-rias nacionais (Fredric Jameson), articulando num nível simbólicocomunidades

60 Enquanto, por exemplo, na França, os romances de Balzac expunham as tensões e as bre-chas da família burguesa, os latino-americanos tentavam reparar essas ssuras, com a vontadede projetar histórias idealizadas que apontavam, ora ao passado (enquanto espaço legitimador),ora ao futuro (enquanto meta nacional).61 Cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales, pp. 41-65.

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imaginadas (Benedict Anderson)62. Enquanto na Europa os escritores exploram asfalhas da sociedade burguesa e projetam a fantasia de um novo começo nos mares

do sul, na América os escritores tentam balizar a imaginação desse território emebulição à imagem e semelhança dos estados do norte. E, enquanto a literaturaeuropeia reconhece na crítica a sua autêntica forma de intervenção, a literaturaamericana da época parece de nir-se politicamente por uma função substitutiva:oferece um horizonte de sentido (sobre um território fragmentado), preenche va-zios (identitários), cobre distâncias (étnicas, sociais, políticas). Sem nenhum fun-damento moral, losó co ou religioso, os romances fundacionais são cções quese fazem passar por verdade, criando um espaço – ilusoriamente estável – para

novas formas de aliança política.Identi car-se na leitura com a paixão dos amantes para consumar o seudesejo, era já assumir um programa político. Por exemplo, o da eliminação dasdiferenças sociais, étnicas ou culturais, numa sociedade dada, isto é, o da pro-dução de uma identidade cívica nacional capaz de se impor sobre essas formascon ituosas de identidade tradicional.63 Evidentemente, estes programas políticosnem sempre pressupunham a igualdade e, do mesmo modo que os romances, im- plicavam a subordinação de uma parte à outra – da mulher ao homem, do índio ao

mestiço, do campo à cidade etc.O certo é que a fundação da América Hispânica é em boa medida umexercício de fabulação.64 Um singular exercício de fabulação, que tem o homemamericano apenas por sujeito dos enunciados (nos enunciados assistimos, de fato,

62 JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.SocialText , n. 15, 1986.63 Não se trata apenas de uma forma arcaica de funcionamento. A literatura, o cinema, a televi-

são, conheceram sempre e continuam a conhecer um valor substitutivo similar, sempre mais oumenos polarizado pelas apostas do poder. Também não se trata de um fenómeno meramente lo-cal, uma deformação terceiro-mundista da arte (atribuível, por exemplo, ao hipotético populis-mo latino-americano). Nos Estados Unidos, por exemplo, Robert Burgoyne retoma o tema das

cções dominantes enquanto imagens de consenso social e o seu papel central na construçãode uma identidade nacional por parte do cinema norte-americano do tipo The birth of a nation.Fabulação nacionalista que opera “de cima” (isto é, propiciada ou dirigida pelos poderes insti-tuídos), e para a qual o cinema clássico teria constituído uma mediação fundamental, criandouma imagem da sociedade imediatamente acessível a todas as classes.

64 Borges seria um dos primeiros a assinalar a impostura dos mitos da fundação (Fundaçãomítica de Buenos Aires), reconhecendo (criticamente) a superioridade da potência política da poesia sobre o espírito das leis. Cf. BORGES, Jorge Luis.Obras Completas. Barcelona: EmecéEditores, 1989.

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à sua criação como personagem de uma história sem memória), mas do ponto devista do sujeito da enunciação pressupõe o homem europeu (inclusive se cruzou o

Atlântico, se se amancebou, se leva já nas suas veias sangue novo). É neste senti-do que temos que entender o problema levantado por Octavio Paz em El laberintode la soledad(1950): a América é uma ideia, invenção do espírito europeu, masenquanto ser autónomo, a América vê-se confrontada com essa ideia e é capaz deopor-lhe uma resistência imprevisível.65

A América é uma complexa trama ccional reconjugada pela evoluçãoda própria literatura americana. O novo mundo não é tão novo assim. Começoque já é uma repetição, ocupa de fato um espaço duplamente ctício: um forneci-

do pela tradição europeia e reelaborado pelos escritores americanos, que tentamreinventar-se a si próprios e à América num movimento sem m.66

Assim, a fundação mítica ou cção originária, que se postulava de formadogmática, passa a ser lida com diversos graus de ceticismo. E a literatura, corre-lativamente, deixa de aspirar à totalização imaginária da realidade para passar aassinalar as suas brechas, os seus desajustamentos, as suas possibilidades desaper-cebidas; passa a compreender-se e a expressar-se como divergência fundamental,como desvio, como dispersão. Assim, em Rayuela(1963), Cortázar escreve: “Se

o volume ou o tom da obra podem levar a crer que o autor tentou uma summa,apressar-se a assinalar que está ante a tentativa contrária, a de uma subtração”.67

Os grandes romances contemporâneos re-escrevem ou des-escrevem ascções fundacionais latino-americanas. Opõem formas de desincorporação lite-

rária às identi cações imaginárias forjadas durante o século XIX (e não só), istoé, colocam em causa, segundo um deslocamento estratégico da perspectiva, essa política ccional que não logrou reconciliar as classes em luta, nem aproximar ocampo à cidade, nem unir os pais europeus com as mães da terra (ou que só logrouessa reconciliação subordinando, silenciando ou eliminando um dos termos).

Então, como assinala Doris Sommer, os amores fundacionais própriosdos romances do século XIX revelam a sua intrínseca violência, e as mentiras pie-dosas aparecem como estratégias para controlar con itos raciais, regionais e eco-nómicos que ameaçavam o desenvolvimento das novas nações (na sua evolução burguesa e capitalista, claro). Esses romances aparecem como parte do projeto da

65 Cf. MADRID, Lelia. La fundación mitológica de América Latina. Madrid: Espiral HispanoAmericana, 1989, p. 8.66 Cf. ECHEVERRÍA, Roberto González. Alejo Carpentier : The pilgrim at Home. New York:Cornell University Press, 1977, p. 28.67 CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Sudamericana, 1983.

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burguesia para conquistar (para assegurar) a hegemonia desta cultura que se en-contrava em estado de formação (uma cultura que, idealmente, seria uma cultura

acolhedora, que ligaria as esferas pública e privada, dando lugar a todos, desdeque todos soubessem qual o seu lugar).Sommer propõe como exemplo deste último tipo de cções La muerte de

Artemio Cruz (1964), de Carlos Fuentes. Entre batalhas, Artemio e Regina lem- bram a conversa amorosa do seu primeiro encontro, sentados na praia, contem- plando as suas imagens re etidas na água. Uma lembrança dourada para encobrira cena original da violação (que foi o que efetivamente tivera lugar). Fuentesescreve: “essa cção... inventada por ela para que ele se sentisse limpo, inocente,

seguro do seu amor... essa bela mentira... Não era verdade. Ele não entrara na sua aldeia, como em tantas outras, procurando a primeira mulher que passassedesprevenida pela rua. Não era verdade que aquela rapariga de 18 anos tinha sido subida à força num cavalo e violada em silêncio no dormitório comum doso ciais, longe do mar.”68

De alguma forma, os escritores, antes alentados a preencher os vaziosde uma história que contribuía para legitimar o nascimento de uma nação e im- pulsionar essa história no sentido de um futuro ideal, procuram dizer agora o

não dito nas cções fundacionais, tentam reintroduzir a contingência no passado,destruindo as estruturas imaginárias e materiais sobre as quais assenta o presente, propiciando a resistência e a abertura de novos espaços de possível.

Exemplo: Em El siglo de las luces69 (1962), de Alejo Carpentier, trêsadolescentes – Sofía e Carlos, irmãos, e Esteban, o seu primo – perdem o pai e otio, cando sozinhos numa enorme casa da Cuba colonial, até que um dia chegaum estranho visitante – Víctor Hugues, comerciante e partidário dos novos ideais políticos do século XVIII – que abre a casa ao mundo e à época, implicando--os nos movimentos revolucionários. Mas as ideias de liberdade, fraternidade eigualdade – e a declaração universal dos direitos do homem, enquanto cção fun-dacional ou constituinte –, são colocadas em questão numa história difícil paraas personagens, revelando a traição da revolução francesa aos levantamentos dosnegros do Caribe. Sofía, que se apaixona por Víctor e pelas suas ideias (e se en-trega a ambos), acaba por se desenganar: Víctor, o mesmo que trouxera à Américao decreto da abolição da escravidão, acaba comprometido num falido intento de

68 FUENTES, Carlos. La muerte de Artemio Cruz . México, D.F.: Fondo de Cultura Económica,1967. Cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales, p. 45.69 CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Barcelona: Seix Barral, 1985.

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genocídio da população negra.70 Ou seja, o romance, longe de fundar alguma coi-sa, des-funda uma narrativa hegemónica na qual se espera (ainda) que venham a

alinhar-se as nações latino-americanas.71

Exemplo: EmConversación en La Catedral(1969), de Mario VargasLlosa, Santiago e Ambrosio mantêm uma conversa num bar chamado La Cate-dral , durante a ditadura do general Odría, da qual resulta uma exploração profun-da das razões da corrupção e da desídia dos dirigentes, assim como da resignaçãoe da impotência dos peruanos. Isto é, Vargas Llosa não nos oferece (mais) uma

cção fundacional para o Peru, mas, pelo contrário, aplica-se à destruição (à des-construção) de um estado de coisas insustentável, que as cções fundacionais

pretendem passar por alto. De fato, o romance de Vargas Llosa começa assim:“Da porta de La Crónica, Santiago olha para a avenida Tacna, sem amor: carros,edifícios desiguais e descoloridos, esqueletos de anúncios luminosos na névoa,o meio-dia cinzento. Em que momento se tinha lixado o Perú?”72. A perguntanão tem resposta, ou, melhor, não tem apenas uma resposta. Cada resposta (cadahistória) levanta novas questões, cada questão dá lugar a novas histórias, e assim. Não há verdade fundacional, apenas cções que na tentativa de articular o sentidodo presente redeterminam (ou simplesmente apagam) o passado.73

Exemplo: EmYo, el supremo74

(1974), Augusto Roa Bastos reconstrói,utilizando indiferenciadamente elementos históricos e ctícios, a biogra a políticade José Gaspar Rodríguez de Francia (também conhecido como Doutor Francia,

70 No m, procurando expiar a culpa ou conquistar a redenção, So a viaja para Madrid, ondese faz matar (corajosamente, desesperadamente) num levantamento popular contra Napoleão.71 A proximidade de Carpentier à Revolução Cubana (1959) e a data de publicação de El siglode las luces (1962), podem transmitir a ideia de que Carpentier escreve o seu livro na senda darevolução e que a sua crítica da narrativa da revolução francesa é solidária deste acontecimento,mas a verdade é que Carpentier declarou ter terminado de escrever o livro em 1958.72 LLOSA, Mario Vargas.Conversación en La Catedral . Buenos Aires: Sudamericana –Planeta, 1981.73 Nesse sentido, Vargas Llosa não se limita conduzir a sua genealogia até o momento da con-quista, mas reconhece, nos próprios “povos originários” (concretamente, nos Incas), o mesmomecanismo misti cador de ccionalização total da realidade. (Mario Vargas Llosa, La verdadde las mentiras, pp. 25-28) Historicamente el ou não, a proposição de Vargas Llosa é um principio de interpretação: qualquer cção fundacional é a apropriação violenta de uma cçãoanterior, não sendo possível, por um exercício de regressão, dar com nenhuma palavra verda-deira (o mito é um mito, dirá Jean-Luc Nancy); logo, não há comunidade originária, apenas

cções da comunidade.74 BASTOS, Augusto Roa.Yo, el Supremo. Buenos Aires: Sudamericana, 1985.

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Karaí Guazú, e “el Supremo”), ditador do Paraguai durante 26 anos (1814-1840).A biogra a estrutura-se sob a forma de uma espécie de discurso ditado, estrategi-

camente pontuado pelos comentários (sediciosos) do seu secretário pessoal, multi- plicando as vozes de tal modo que a cção mística sobre a qual se fundava o poderde Francia aparece atravessada de contradições, de inconsistências e de mentiras.O ditador dita, mas o secretário adenda, omite, repete, e em geral faz gaguejar odiscurso. O escritor empreende um trabalho de segunda mão, não funda nada, não pre-escreve nada com a sua escrita, simplesmente re-escreve uma versão anterior.Sobre a literatura já não repousa nada (não pode), mas no seu movimento desregra-do a escrita pode fazer tremer (e em última instância derruir) qualquer construção

(cultural, social ou política) que assente sobre bases ccionais.Exemplo: Em Respiração Arti cial 75 (1980), Ricardo Piglia trama, a par-tir de fragmentos de cartas, monólogos, diálogos e documentos, um romance que,contra o monopólio narrativo que tendem a impor as cções estatais, procura res-taurar a polifonia de vozes silenciadas pela ditadura. Renzi (um dos protagonistas)recebe os papéis (até então em posse do seu tio, Marcelo Maggi) de um dos seusantepassados, Enrique Osório, dando origem à descoberta de uma história nãoo cial, de uma história dos derrotados, ou, melhor, de uma memória sem história.

A sua reconstrução tem por resultado uma versão sem pretensões de instituciona-lização, que nas margens de um país das margens, torna possível (vivível) a desin-corporação das personagens (e dos leitores) em relação aos horizontes instituídosde sentido. Renzi compreende com Tardewski (e nós compreendemos com ele)que o grande mérito de um escritor não é a fundação do comum, mas a capaci-dade de ouvir a sua própria época, de ouvir e fazer ouvir o murmúrio silenciado pela história o cial, de trazer à luz a palavra dos esquecidos, mesmo se se tratada palavra da derrota, da claudicação ou do desespero. A sociedade é para Pigliauma trama de relatos, um conjunto de histórias que circulam entre as pessoas, pelo que traçar o mapa ccional da sociedade constitui a tarefa mais importantedo escritor, remetendo as cções hegemónicas a uma região especí ca do plano,e assinalando os lugares onde algo é dito e não é ouvido, algo é pensado e não éconsiderado, algo é feito e não é visto.76

Exemplo: Em Zama (1956) de Antonio Di Benedetto, o romance funda-cional é invertido através de uma paródia do romance histórico. A estrutura de Zama é aparentemente simples: o protagonista narra, na primeira pessoa, 10 anos

75 PIGLIA, Ricardo. Respiración arti cial . Buenos Aires: Sudamericana, 1988.76 “Que estrutura têm essas forças ctícias?”: talvez este seja o centro da re exão política dequalquer escritor” (Ricardo Piglia, Crítica y cción, Buenos Aires, Seix Barral, 2000; p. 43)

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da sua vida; anos cruciais, nos quais o protagonista experimenta os sintomas dasua decadência física e moral (é, portanto, a história de um perdedor, com o qual

muda já o sujeito da história em relação ao sujeito heróico das cções fundacio-nais). Por outro lado, Di Benedetto não repete as velhas crónicas familiares doromance burguês do século XIX, nem divide a realidade em nações, não pretendeser a summa de nenhuma classe ou território, mas, pelo contrário, multiplica ashistórias, as alegorias e as metáforas, anulando a ilusão biográ ca e historicista.Essa fragmentariedade, que contamina o livro, dispõe, aí onde as cções funda-cionais pressupunham a identidade, a continuidade e a coerência no desenvolvi-mento, a heterogeneidade, as diferenças, os acidentes, os acontecimentos mais in-

signi cantes ou mais refratários ao sentido77

. Consideremos a passagem a seguir,onde esta espécie de contra-história aparece de forma ímpar. Zama está a cruzaringloriamente a selva paraguaia quando dá com uma estranha tribo, que caminha pelas veredas abertas no mato, guiada por crianças que levam os adultos pela mão.Zama diz:

“Cegos. Todos os adultos eram cegos. As crianças não. (...) Eram vítimas da ferocidade de uma tribo mataguaya. Tinham-nos cegado com facas ao rubro.(...) Não viam e tinham eliminado deles o olhar dos outros. (...) Quando a tribo se habituou a viver sem olhos foi mais feliz. Cada um podia estar só consigo próprio. Não existiam a vergonha, a censura, a culpa; não eram necessários oscastigos. Acudiam uns aos outros para atos de necessidade coletiva, de interessecomum: caçar um animal, reparar o telhado duma cabana. O homem procuravaa mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para se isolarem mais,alguns batiam nos ouvidos até partir os ossos. Mas quando os lhos alcançaramcerta idade, os cegos compreenderam que os lhos podiam ver. Então foram pe-netrados pelo desassossego. Não conseguiam estar em si mesmo. Abandonaramas cabanas e internaram-se nos bosques, nas pradarias, nas montanhas... Algo

os perseguia. Era o olhar das crianças, que ia com eles, e por isso não conse- guiam deter-se em parte nenhuma”78.

Na sua austeridade e o seu laconismo, Zama não representa a condição profunda da América,não é mais uma imagem da nossa fragilidade e da nossacontingência (mesmo que isso possa ser reconfortante). Se o romance de Di Be-nedetto evita qualquer exaltação patriótica, se recusa qualquer tentação de his-toricismo ou de cor local, não o faz em nome de nenhuma nova identi cação. A

77 Cf. SAER, Juan José. Prólogo. In: DI BENEDETTO, Antonio. Zama. Buenos Aires:Adriana Hidalgo, 2000.78 DI BENEDETTO, Antonio. Zama. p. 171-172.

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agonia do seu protagonista, o seu inevitável declínio, é apenas metonímia da deso-rientação e da falta de sentido (histórico) do tempo no qual Di Benedetto escreve

a sua história. E nesse sentido Saer tem razão: Zama propõe-nos, não uma evasãodo presente, mas um trabalho (necessariamente paciente) sobre a sua irresoluçãoe a sua problematicidade, sendo o afastamento metafórico em direção ao passadoapenas um mecanismo para a sua irrealização. Na sua leitura desconhecemo-nosenquanto sujeitos de uma história que acreditávamos ser nossa, estranhamo-nosde nós próprios, isto é, colocamos em causa os fundamentos da nossa identidadee os alicerces das construções imaginárias às quais a nossa identidade se encontraassociada (simplesmente, já não nos sentimos parte).

Poderíamos multiplicar os exemplos inde nidamente. As obras de Felis- berto Hernández, Haroldo Conti, José Donoso, Alfredo Bryce Echenique, ManuelPuig, José Revueltas, Ernesto Sabato, Osvaldo Soriano, Juan José Saer, RobertoBolaño, e boa parte da literatura da americana hispânica permitem uma leituradeste tipo, e compreendem uma relação problemática, difícil, irresoluta, com asfábulas fundacionais que demarcam o território ccional no qual se movem.

Durante séculos, o norte impôs ao sul a sua espada e a sua pena. Cavou,no vazio da sua própria dispersão, um lugar ccional a partir do qual pretendia

a rmar-se apesar de todas as suas diferenças, das suas falhas e contradições. Osul era uma miragem: a ilusão mínima necessária para manter as coisas a funcio-anr (outro mundo é possível, mas do outro lado do mundo, elusivo, inatingível, proibido).

Os poetas, os loucos e os desesperados procuraram-no de diversas for-mas, e de diversas formas o encontraram, mas não como paraíso perdido nemcomo território virgem (nem, certamente, como terra da liberdade).

“Com a sua fome disponível (...) e a sua esperança dura”79, o sul insinua--se nas margens das línguas e do imaginário que chegaram do norte, masnãoexiste, pelo menos não como lugar de identi cação.

Se o sul é alguma coisa, é uma diferença, ou, melhor, a promessa (semprediferida) de uma diferença. A diferença, sempre con ituosa, entre a representaçãoque a Europa fazia de nós, a representação que os fundadores das nações ameri-canas faziam de nós, e as representações que nós próprios fazemos de nós. Umadiferença que a literatura frequenta de forma clandestina. Uma diferença na qualnão se joga destino nenhum, mas em virtude da qual resiste aquilo que mantém

79 BENEDETTI, Mario. El sur también existe. In: Preguntas al azar . Buenos Aires:Sudamericana, 2000.

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viva a imaginação daquilo que ainda não somos, daquilo que ainda não dissemosnem sonhámos, daquilo que apenas nos atrevemos a pensar.

Entre as fábulas da sua origem e uma origem sempre por fabular 80

, entreas identi cações imaginárias que dão forma ao horizonte da sua história e as de-sincorporações estéticas que relançam continuamente o devir da sua consciência,o sul debate-se por esta diferença sem modelo, isto é, pela utopia desrazoável deuma liberdade sem determinação.

É, claro, um sonho de loucos, de desesperados e de poetas. Que outracoisa podem ser os mares do sul? Que mais?

Crédito da imagem: “Alejandro Thornton, America, 2010.

Post-scriptum sobre as condições de possibilidade de uma política daliteratura

Se falamos da inscrição da literatura nos corpos individuais, ou se assi-

nalamos a possibilidade de uma desincorporação a respeito dos corpos coletivos80 Os produtos da cção são particulares e arbitrários, mas a faculdade de produzir cções éuniversal e necessária.

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através da escrita; se constatamos, de forma geral, um devir-menor das poéticaslatino-americanas de cujos efeitos políticos ainda não tirámos todas as conse-

quências, devemos pressupor que a cção e a realidade setocam em algum lugar,sobrepõem-se ou, melhor, entram numa zona de indiscernibilidade.Mais geralmente, a possibilidade de uma relação efetiva entre estética e

política remete a um plano comum, a uma ordem imanente cuja lógica tem sidodiversamente abordada pelo pensamento contemporâneo, nomeadamente na ten-tativa de pensar as formas de intervenção da criação artística. Remeter a questãoa uma estética primeira (Rancière) ou a um plano de imanência (Deleuze) são al-gumas das formas contemporâneas de dar conta dessa condição de possibilidade,

cuja determinação é uma exigência para qualquer loso a que pretenda inscrevera arte no contexto de uma pragmática alargada.Tomemos o caso de Gilles Deleuze. Na ideia de que a literatura é ou pode

chegar a ser algo mais que uma sublimação dos nossos desejos falidos, na ideia deque a literatura é um objeto entre outros objetos, máquina entre máquinas, e que oescritor “emite corpos reais”81, Deleuze desenvolve uma ontologia da expressão.Esta ontologia conhece diferentes formas na sua obra, mas ganha uma consis-tência ímpar através do conceito deagenciamento de desejo, enquanto unidade

de análise que articula estrategicamente uma série de elementos heterogéneos(discursos, instituições, arquiteturas, regulamentos, leis, medidas administrativas,enunciados cientí cos, proposições losó cas etc.). Alternativa conceptual aosujeito e à estrutura, o agenciamento de desejo permite a Deleuze refundar umateoria da expressão eliminando qualquer traço representativo. Relacionando os

uxos semióticos com os uxos extra-semióticos e as práticas extra-discursivas, para além das relações de signi cante a signi cado, de representante a representa-do, o agenciamento é uma relação de implicação recíproca entre a forma do con-teúdo (regime de corpos ou maquínico) e a forma da expressão (regime de signosou de enunciação). Neste sentido, assinala Deleuze, qualquer agenciamento temduas caras:

“Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo,não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento coletivo deenunciação (...) E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado comoo faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação num processoque não permite que nenhum sujeito seja atribuído, mas que permite por isso

mesmo marcar com maior ênfase a natureza e a função dos enunciados, uma vezque estes não existem senão como engrenagens de um agenciamento semelhante

81 Deleuze. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 183.

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(não como efeitos, nem como produtos). (...) A enunciação precede o enunciado,não em função de um sujeito que o produziria, mas em função de um agencia-mento que converte a enunciação na sua primeira engrenagem, junto com asoutras engrenagens que vão tomando o seu lugar paralelamente”82.

Noutras palavras, os corpos e os enunciados, as palavras e as coisas, são parte de um mesmo regime de expressão, de uma mesma con guração do desejo(sempre aberta, por outra parte, a novas con gurações, na medida em que qual-quer agenciamento compreende pontas de desterritorialização, linhas de fuga poronde se desarticula e se metamorfoseia). É a partir dessa ontologia que, retoman-do a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político, Deleuzerestitui toda a sua potência à literatura. A máquina de projetar da escrita não é se- parável do movimento da política: subjetiva, a escrita remete à subjetividade dosgrupos onde começa a fazer sentido como expressão, onde deixa de ser um merodevaneio da imaginação para passar a formar parte de um agenciamento coletivode enunciação (“a força de projeção de imagens é inseparavelmente política, eró-tica e artística”83). A literatura é uma engrenagem (a) mais, uma formação suple-mentar, lado a lado com os equipamentos do saber e do poder, as con gurações dasubjetividade e as canalizações do desejo que dão consistência a uma sociedade;e, nessa mesma medida, concorre na articulação (sempre inconclusa) do comum.

Mais perto de nós, Jacques Rancière propõe que arte e política não sãoduas realidades separadas cuja relação estaria em causa, mas duas formas de par-tilha do sensível dependentes de umaestética primeira: espécie dea priori histó-rico que determina regimes especí cos de identi cação (do público e do privado,do individual e do coletivo, da arte e do trabalho etc.)84. Deste ponto de vista, a política compreende uma estética, na medida em que estabelece montagens deespaços, sequências de tempo, formas de visibilidade, modos de enunciação que

constituem o real da comunidade política. Ao mesmo tempo, a arte compreendeuma política pela distância que guarda a respeito dessas funções, pelo tipo de tem- po e de espaço que estabelece, pela forma em que divide esse tempo e povoa esseespaço. O que liga a prática da arte à questão do comum, o laço entre estética e política, é a constituição, ao mesmo tempo material e simbólica, de um determina-do espaço-tempo (no qual se redistribuem as relações entre os corpos, as imagens,

82 GUATTARI, Deleuze. Kafka: Pour une litterature mineur. Paris: Minuit, 1975, p. 147-152.83 GUATTARI, Deleuze.Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993, p. 148.84 Cf. RANCIÈRE. A partilha do sensível : estética e política. Tradução portuguesa de MônicaCosta Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 15-26.

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as funções etc.), produzindo certa ambiguidade em relação às formas ordináriasda experiência sensível (o próprio da arte, segundo Rancière, consiste em praticar

novas formas de articulação dessa experiência).“A relação entre estética e política é a relação entre a estética da política e a política da estética, isto é, a forma em que as práticas e as formas de visibilidadeda arte intervêm na partilha do sensível e na sua recon guração, no qual recor -tam espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o particular. A estética tem a sua política própria que não coincide com a estética da política senão na formado compromisso precário. Não há arte sem uma determinada partilha do sensí-vel que a liga a uma determinada forma de política (a estética é essa partilha).

A tensão das duas políticas ameaça o regime estético da arte, mas é ao mesmotempo aquilo que o faz funcionar.”85

A literatura pode momentaneamente colaborar na conformação políticade um corpo social, mas a escrita – no seu regime estético, isto é, tal como a pra-ticamos, a lemos e a pensamos hoje – tende a produzir uma desincorporação emrelação às identi cações imaginárias disponíveis, tende a interromper as coorde-nadas normais da experiência sensorial e, a partir desta, a percepção ordinária da partilha do sensível (e as suas coordenadas políticas). Qualquer política da poéticacontemporânea não pode ser para Rancière senão uma política do dissenso (como risco de anular-se como poética), e não pelas intenções que projetamos sobre aliteratura, mas pela forma na qual – nos nossos dias – vemos, fazemos e pensamosa arte.

As tentativas de pensar as relações entre estética e política não se limi-tam aos dois casos que mencionámos (nem esses casos desconhecem problemasde ordem teórica e prática). Como dizia Blanchot, a resposta autêntica é semprea vida da pergunta, e esta é uma pergunta que nos inquieta e nos inquietará quiçá por muito tempo. Nem toda a obra rede ne a arte, da mesma forma que nem todoo nascimento recria o mundo, mas late nestes dois acontecimentos seminais aesperança de um outro mundo possível, de um outro homem, do devir (menor) daconsciência.

85 RANCIÈRE.Sobre políticas estéticas. Tradução espanhola de Manuel Arranz. Barcelona:Servei de Publicacions de la Universitat Autónoma de Barcelona, 2005, p. 33; cf. p. 51: “Oregime estético da arte implica uma determinada política, uma determinada recon guração da

partilha do sensível. Essa política divide-se originalmente ela própria, como tentei mostrar, nas políticas alternativas do devir-mundo da arte e da reserva da forma artística rebelde, deixandoem aberto que os opostos possam recompor-se de diversos modos para constituir as formas e asmetamorfoses da arte crítica”.

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119Eduardo Pellejero

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120 O SUL TAMBéM (N O) EXISTE

Textos de revistas e periódicos

L’Homme, Paris, 1989, v. 29, n. 111, p. 7-33; cf. PAZ, Octavio Paz. El laberinto de la soledad . Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998.JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism.Social Text , n. 15, 1986.

Eduardo Pellejeroé argentino de nascimento, português por adopção, residente noBrasil, apátrida por convicção. Actualmente é professor de Estética Filosó ca na UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte, onde desenvolve uma investigação no domínio da Filoso a(política) da Arte. Publicou Deleuze y la rede nición de la losofía (México: Jitanjáfora, 2006)e A postulação da realidade (Lisboa: Vendaval, 2009).

Tradutora Susana Guerra é graduada em História pelo Instituto Superior de Ciências do Tra-

balho e da Empresa (Lisboa-Portugal, 2004), mestre em Estudos Asiáticos pela Faculdade de

Letras da Universidade do Porto (Porto-Portugal, 2007), doutora em História pela Faculdade deLetras da Universidade do Porto (2012). Professora do Departamento de História da Universi-dade Federal do Rio Grande do Norte.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 121-

O Devir-Mundo das Práticas Menores

Anne Querrien

São numerosos os jovens arquitectos que se põem hoje a questão de in-ventar novas práticas que os levem a contornar uma encomenda que se tornouhipotética, através da valorização de uma procura latente, ligada às necessidadesdas populações. As encomendas de arquitectura por parte das construtoras imobi-liárias ou das instituições públicas, a pretexto de dar resposta às necessidades dealojamento, traduziu-se em programas de especulação nanceira, que estão em parte na origem da crise actual. Construir ou projectar nestas condições torna-seinsustentável, no sentido de não ecologicamente duradouro. Os arquitectos vêem--se cada vez mais rapidamente confrontados com a necessidade de in ectirem assuas práticas. A arquitectura participativa dos anos do passado, que se contentavacom fazer modi car na margem os programas estabelecidos pelas autoridades,não conduz a novos programas; limita-se ao comentário das instituições domi-nantes, baseia-se nos seus programas para se desenvolver, não abre novos camposde práticas.

Até mesmo quando se trata de alojar a população, esses programassão os de uma casta que associa “grandes arquitectos” e altos funcionários narepetição das mesmas atitudes paternalistas em resposta aos problemas sociais.O desenvolvimento industrial permitiu na Europa o desenvolvimento de cen-tros de cidade, destinados ao comércio e à cultura, testemunhos de uma certaqualidade arquitectural. Na América Latina, as periferias abandonadas por estaforma de organização são ainda mais vastas. De um lado e de outro do Atlân-

tico, o saber arquitectural, formado nas escolas e nas agências de arquitectura,distribui o espaço da vida quotidiana ou torna-se uma referência para as peque-nas empresas e a autoconstrução. Os “grandes arquitectos” de nem os espaçosmonumentais destinados às práticas do poder, quer se trate de os valorizar emtermos espectaculares ou de os associar às necessidades fundamentais de edu-cação e de saúde.

A juventude da democracia nos países ibero-americanos conduziu a prá-ticas menos hierárquicas. Foi assim que, em Barcelona, a escola de arquitectura

pôde propor por altura da preparação dos Jogos Olímpicos que se aproveitassea acumulação de desenhos de praças públicas e de fantasias utópicas, realizadosnos anos anteriores a partir do projecto de embelezar a cidade e de a tornar aces-

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122 O DEVIR-MUNDO DAS PR TICAS MENORES

sível a todos os cidadãos. Do mesmo modo, no Brasil o programa de urbanizaçãodas favelas rompeu provisoriamente com as formas habituais de expropriação, e

comprometeu-se com um trabalho colectivo do espaço que permitia restituí-lo à população, ainda que a propriedade efectiva continuasse a ser posta em causa86.Mas, nos dois casos, a boa vontade não resistiu perante a avidez consentida pelaorganização de eventos internacionais, como as conferências do Fórum em Barce-lona ou a organização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A arquitectura é denovo subordinada à realização de projectos espectaculares efémeros. Os jogos dascrianças ou os itinerários quotidianos são ignorados em bene cio da circulaçãodos turistas.

E, entretanto, independentemente do brio com que o arquitecto participena governação urbana, o uxo crescente dos estudantes de arquitectura di cil-mente encontra lugar nos quadros canónicos da pro ssão. Dirão alguns que issose deve ao facto de serem demasiado numerosos. Mas a experiência mostra que setratou antes de não terem sabido rede nir o seu espaço, potencialmente alargado pelo seu número. Nem toda a gente pode vir a ser o “grande arquitecto” em di-recção ao qual a encomenda pública ui abundantemente para melhor se repetir.É necessário inventar outras práticas, encontrar outros comanditários, instaurar

outras ligações com os utilizadores nais que são os moradores e os visitantes.Com o devir-menor da arquitectura aparece o carácter plural daqueles a quem elase destina, carácter plural no tempo da frequentação, nos desempenhos esperadosdas construções. Este devir-menor pode tomar forma de múltiplas maneiras. Aquiabordarei o caso do Atelier d’architecture autogerée87 , e a sua experiências deorganização da transição ecológica em bairros pobres e periféricos de Paris. Po-derá esta prática situada intervir como referência num contexto ibero-americano,transatlântico e do Sul?

Construir o programa

Foi no início da década de 1970 que se descobriu em França que, à forçade se disporem a obedecer à encomenda a m de poderem construir e ganharmais88, os arquitectos podiam tornar-se cúmplices de operações absurdas, quan-do não nocivas. Foi assim que se viram obrigados pelo Ministério da Educação

86 Cf. BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris:L’Harmattan, 2011.87 http://www.urban-tactics.org88 Revista Recherches, Architecture, programmation et psychiatrie, 1967.

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123Anne Querrien

Nacional [francês] a fabricar estabelecimentos de ensino secundário industriali-zados, que não tinham a possibilidade de bene ciar de centros de documentação

ou outros equipamentos adjacentes. Do mesmo modo, alguns deles julgaram-seobrigados a fabricar hospitais psiquiátricos que se tornaram inúteis depois da rá- pida difusão dos medicamentos psicotrópicos e da emergência da hospitalizaçãodomiciliária. As concepções administrativas pareciam em atraso sobre o per l pro ssional das práticas, ao mesmo tempo que as reivindicações sindicais das pro ssões se exprimiam em termos de necessidades tradicionais. Era, portanto,necessário intervir sobre o dispositivo da enunciação das necessidades, incluindono colectivo membros do conjunto dos pessoais implicados e representantes dos

utilizadores. O arquitecto já não era o decorador encarregado do “embrulho” deum programa de nido e calibrado quantitativamente para o adaptar a um certolugar. Tornava-se o agente grá co e escritural, ao mesmo tempo que o animadorde um colectivo, chamado a de nir o projecto com ele: sem dúvida, num processoque tal, o arquitecto não ocupa uma posição igual à dos outros actores, porque possui um saber grá co que permite representar o espaço, oferecer ao grupo umespelho do seu pensamento, e desempenha assim um papel maiêutico essencial.Mas está, também ele, numa situação de aprendizagem, de descoberta das ne-

cessidades do grupo e do local preciso que o ocupa. Deixa de poder dispor derespostas antecipadas para tudo89.A escola primária e o estabelecimento de ensino secundário são pro-

gramas arquitecturais comuns à França e ao mundo ibero-americano. Inácio deLoyola foi o primeiro a imaginar que, graças a dispositivos espaciais concretos,Deus poderia dirigir-se em particular a cada ser humano. As igrejas da Idade Mé-dia dirigiam-se a grupos sociais hierarquizados, que retransmitiam, cada um àsua maneira, a palavra divina90. Os Exercícios Espirituais propõem ao homemde espírito cultivado a forma mais desterritorializada desse dispositivo espacial:o crente, imaginando intensamente as cenas da vida de Cristo, escolhendo cuida-dosamente todos os detalhes, poderá chegar a desterritorializar-se o bastante parase tornar lugar da eleição de Deus, entrar num diálogo directo consigo mesmo na presença do Senhor, e descobrir a solução dos problemas éticos ou práticos queo apoquentam. A prática mostrou que nem sequer os mais próximos de Loyolaconseguiam pensar em Cristo com a intensidade e a liberdade su cientes para

89 GUATTARI, Félix. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube,La Tour d’Aygues, 2011.90 PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions de Minuit,1967.

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124 O DEVIR-MUNDO DAS PR TICAS MENORES

acederem a um tal grau de desterritorialização. Os companheiros de Inácio viram--se por isso reduzidos a mandar fabricar livros que transformassem em quadros as

cenas da vida de Cristo e a organizar um ensino moral a seu propósito. Enquanto,até então, só a leitura e o canto eram ensinados na igreja, a escrita passou a ser do-ravante o utensílio privilegiado das escolas cristãs. A escrita que dá conta do quese observou, do que se aprendeu, mas que eventualmente abre também à práticada liberdade. Os jesuítas enviados em missão para todos os continentes recente-mente descobertos têm de enviar todos os meses uma carta a Inácio, dando-lheconta do que descobriram e dos problemas que são levados a pôr-se. Encorajadosassim à curiosidade perante novas civilizações do mundo, estabelecem-se nelas e

tornam-se seus dignitários. A escola de bairro ou de aldeia é a pedra sobre a qualse constrói o novo edifício espiritual. Difunde-se nas terras recentemente con-quistadas tão rapidamente como nos campos da Europa, e enfrenta nelas resistên-cias iguais ou superiores. A igreja barroca e o colégio dos jesuítas são programasarquitecturais omnipresentes na América Latina.

Em França, a Revolução, trazendo consigo uma constituição escrita e asoberania popular, conferiu à escola um novo papel: forjar o povo que ainda au-sente, fundir num mesmo conjunto o centro e as periferias. A escola torna-se um

lugar central de cada comuna, uma marca explicitamente assinalada, deixando dese albergar em edifícios arrendados, ou recuperados, inadequados à sua funçãode representação da República e de formação de cada um dos seus membros. Econtudo, a escola republicana instala-se nos dispositivos espaciais e pedagógicosconcebidos pela escola cristã. Na sala de aula, as carteiras dos alunos são coloca-das diante do mestre que se instala no plano superior do estrado, com um cruci xoou o busto da República atrás dele – ou atrás dela, quando a escolarização passa aabranger igualmente as raparigas, cerca de um século mais tarde, na generalidadedos casos. Mas a reunião de um grupo de crianças dá lugar a numerosas outrasrelações, geralmente ignoradas pelo olhar do mestre, ou percepcionadas comodi culdades. Ora, é ao longo destes vectores horizontais, destes agrupamentos parciais, que vai organizar-se a aprendizagem através dos ricochetes do discursodo mestre, da formação mútua ou do treino nos expedientes improvisados. Ascrianças aplicam-se de modo a fazerem com que as mensagens passem ou a detê--las; a sua presença activa é precisamente a condição de uma pedagogia e caz.Certas pedagogias diferentes aperceberam-se de que assim era e esforçaram-se por desenvolver cenários alternativos, muitas vezes baseados no funcionamentodo grupo da turma em entidades mais pequenas. A sala de aula torna-se facilmenteum espaço cheio de entraves e de ruído. Tal é a origem do sonho de instalações

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125Anne Querrien

mais amplas e mais diversi cadas. Ao que se opõem as condições do nancia-mento, uma vez que as programações centrais só podem sobreviver da reprodução

das mesmas células de base. O olhar lateral dos alunos entre eles e em direcção aomundo prolonga-se então voltando-se para os seus pais, ou para o meio no qualse enraíza a escola. Ao ligar-se ao seu meio, a escola descobre a possibilidadede novas contribuições, de novos intercâmbios. É a própria escola que acaba porse ver assim revisitada. Deixa de ser o lugar onde as crianças são postas de ladoenquanto os pais trabalham, mas torna-se um lugar de aprendizagem para todos,um núcleo de formação para a aldeia e para o bairro. Entretanto, o seu invólucroarquitectural evolui, alarga-se, passa a ter aberturas que deixam passar a luz e o

olhar, desenvolve-se a comunicação entre o interior e o exterior, e o programatransforma-se à imagem de um centro de desenvolvimento comunitário local91.Daqui resulta uma imposição maior e homogénea: a escola torna-se um

lugar de articulação e de prolongamento dos elementos heterogéneos presentesno território, na aldeia ou no bairro: um lugar de cruzamento e de expressão damultiplicidade dos devires-menores com que pode deparar. É articulando-se comestes devires-menores, com as práticas singulares das crianças ou dos adultos presentes no meio circundante que a escola poderá transformar o seu contexto em

meio educativo.A arquitectura escolar pode assumir então diversas con gurações, fun-ção das trajectórias que vêm atravessá-la. A escola deixa de corresponder a ummodelo que se aplicaria não importa onde para obter resultados mais rápidos emenos caros. O seu programa é produzido localmente, utilizando todas as contri- buições de séculos de experiência escolar, mas afastando-se dessa tradição a mde permitir aos devires-menores que nele se cruzam não sendo capturados pelahierarquia que até hoje os conduziu à exclusão. Nesta situação, os arquitectos sãoresponsáveis pela cartogra a dos desejos e pelo fornecimento à comunidade dasinformações indispensáveis à possibilidade de escolher.

91 Anne Querrien, L’école mutuelle, une pédagogie trop ef cace?, Les empêcheurs de penseren rond, Paris, 2004; Julien Pallota, L´école mutuelle, au-delà de Foucault, Bibliothèque de philosophie sociale et politique, Paris, 2012.

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126 O DEVIR-MUNDO DAS PR TICAS MENORES

Crédito da imagem: “Le 56 rue Saint Blaise, un salon de jardin près d’un grand ensemble© AAA (www.urban-tactics.org).

A construção ecológica de lugares urbanos

São raras as operações arquitecturais académicas que partem de umaimersão na quotidianidade para a construção de uma proposta pública e comum aum conjunto de moradores. A crítica arquitectural corresponde na maior parte doscasos a projectos de renovação: estes são, depois, apreciados pelos moradores emfunção das mudanças a que os submetem, e, de um modo geral, recusados. Numacidade em vias de desenvolvimento, o valor monetário dos bens destruídos não pode ser su ciente para reaver o valor de uso equivalente – para já não falarmos

das relações desfeitas pela mudança de local. Os promotores públicos e privadosapoiam-se no fraco número dos participantes para passarem por cima destes as- pectos. Asseguram-se da desmoralização dos moradores.

Para evitar esta espiral depressiva noquartier La Chapelle prometidoa uma renovação completa, os fundadores do Atelier d’architecture autogerée,Constantin Petcou e Doina Petrescu, imaginaram a ideia de desenvolver num ter-reno vago, que a SNCF92 deixara desocupado, uma investigação-acção sobre a ini-

92 Ou Société nationale des chemins de fer – companhia nacional dos caminhos de ferrofranceses (N.d.T.).

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127Anne Querrien

ciação dos moradores na ecologia e no desenvolvimento durável93. Criou-se, entre paletes de transporte de mercadorias, um grande jardimhors-sol (“fora do solo”) a

ser partilhado em comum; crianças e adultos tinham a possibilidade de plantar alio que quisessem, aprendendo a respeitar-se uns aos outros. O desenho do jardim,as suas regras de funcionamento, a animação quotidiana, que seria rapidamentecontinuada por moradoras e moradores, conseguiram construir um corpo comum.Projecções de lmes, o cinas debricolage, apresentações de trabalhos de artistasde toda a Europa partilhando a mesma problemática, permitiram soldar uma co-munidade multicultural, empenhada no trabalho de construção comum através dodesenho generoso dos espaços. Quando a renovação começou, foi possível nego-

ciar uma continuação do jardim partilhado pelos moradores com a municipalidadede Paris. A acção fez com que emergissem no bairro alguns líderes, sobretudomulheres, e uma preocupação com os jardins que a municipalidade retomou porsua conta no programa da renovação.

A acção foi de tal modo exemplar que Paris-Habitat, a principal organi-zação de alojamento social da Ville de Paris, propôs ao Atelier de ArquitecturaAutogerida fazer cultivar por meio da sua metodologia uma faixa de terreno áridoentre dois prédios, precisamente diante do maior complexo de habitação social de

Paris, a ser objecto de renovação próxima. A terra pedregosa do número 56 darue Saint Blaise encontrou-se em breve coberta de plantações, ao mesmo tempo quese desenvolveram diversas actividades colectivas para os moradores do bairro. Aocontrário das intervenções artísticas que tinham tentado pontualmente despertara consciência cívica dos moradores, “o 56” transformou-se numa instalação du-radoura, num pequeno espaço de demonstração das técnicas ecológicas em Paris:fossas secas, painéis solares, utilização das águas da chuva. Uma instalação forado solo (hors-sol ) pode funcionar de maneira autónoma sem ligação às grandesredes: prova da possibilidade de numerosas outras instalações posteriores. Em ter-mos muito concretos, os princípios de base da ecologia são instaurados numa ins-talação aberta: um “salão de verdura” num bairro popular. Com efeito, “o 56” nãoé simplesmente uma montra técnica da ecologia urbana: é um local de debates,sob o nome de Laboratório de Urbanismo Participativo ( Laboratoire d’urbanisme participatif ) que re ecte em termos abertos e públicos sobre as experiências deconstrução ecológica ou de Land Art na Europa. Também aí a gestão do local é progressivamente con ada a uma associação de moradores-jardineiros, principal-

93 Multitudes, n. 20, Constantin Petcou e Doina Petrescu, Au rez de chaussé de la ville,Amsterdam, Paris, 2005, e idem, n. 31, DP e CP (orgs.), Une micropolitique de la ville: l’agirurbain, Amsterdam, Paris, Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 2007.

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128 O DEVIR-MUNDO DAS PR TICAS MENORES

mente jardineiras, que se encarrega da animação do terreno enquanto os arquitec-tos se retiram parcialmente para desenvolverem o seu projecto noutros espaços94.

Alguns representantes eleitos de Colombes, uma cidade da periferia no-roeste de Paris, foram convidados a visitar o 56 por um morador-jardineiro. Con-venceram omaire da comuna a retomar o projecto de uma formação dos morado-res em conversão ecológica no quadro de um projecto intitulado R-Urban95. Trêsdomínios de trabalho começam a ser explorados nos terrenos deixados por cul-tivar: agricultura urbana com os moradores das habitações sociais vizinhas; umagaleria de fabrico, exposição e venda de objectos produzidos a partir de materiaisreciclados; um habitat cooperativo autogerido. Há também aqui um processo as-

sociativo de produção de ideias a partir dos moradores, confrontados com anima-dores de investigações nestes domínios, chegados de todas as partes do mundo.Colombes torna-se o núcleo de uma exploração de referências e de práticas quegarantem um futuro apesar da crise. Na arquitectura passam a participar a agri-cultura, a economia, a sociologia, a escultura, aland art , num novo processo defabricação do quotidiano.

Um diálogo a abrir com o Sul

A arquitectura autogerida é solicitada a integrar-se no modelo dominantecomo um seu enésimo caso, através de numerosas formas de reconhecimento in-ternacional, prémios, artigos pedidos… Mas a força de ruptura de uma propostasemelhante, hoje con nada a espaços dedicados à economia social e solidária, éampliada e reencaminhada pelo projecto artístico e político de Doina Petrescu eConstantin Petcou, visando criticar no plano dos actos tanto o capitalismo como o“socialismo real” que ambos viveram durante a sua juventude na Roménia. Trata--se, para começar, de abrir espaços de liberdade, de criar um comum vivo, antes

de dar resposta aos novos imperativos da arquitectura ecológica. Em França, este projecto é um projecto singular – apesar de fazer escola, no sentido em que nu-merosos estagiários chegam para participar nele, e, sobretudo, apesar de, quandoos terrenos envolvidos logram alargar-se, não estarmos ainda perante uma práticacolectiva que transborde os quadros sucessivos que o viram nascer.

O interesse por esta experiência vem actualmente sobretudo do Norte,de investigadores e artistas que tentam também uma crítica através daland art ou da instalação de dispositivos ecológicos. Estas conexões são facilitadas pe-

94 http://www.urbantactics.org/projectsf/passage%2056/passage56html.html95 http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rurban.html

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129Anne Querrien

los nanciamentos europeus96, enquanto as cooperações com o Sul são apoiadassobretudo quando envolvem instituições já muito reconhecidas. Esta cooperação

europeia acarreta uma funcionalização da proposta, permitida também pelo ca-rácter relativamente homogéneo da população a que se dirige: as classes médias pobres das periferias urbanas, que descobrem assim novos meios para a sua buscade responsabilidade social.

O dinamismo das regiões do Sul é sustentado, em contrapartida, pelamestiçagem ds populações, a fusão das vagas sucessivas de imigrantes (coloni-zadores portugueses e espanhóis, escravos negros, operários agrícolas e traba-lhadores fabris europeus, judeus fugindo ao anti-semitismo, árabes fugindo ao

islamismo, e outros grupos). Fazendo do lugar alternativo (l’ailleurs) marcado pela presença índia, ainda que fortemente exterminada, o crisol dos seus novossonhos, os povos da América Latina lançaram os alicerces de novas construçõesculturais97. Como pode fazer arquitectura esta civilização em fuga e, depois, emreconstrução? Fez já a uma música que desenvolve as suas linhas de fuga, dosritmos africanos às elaborações contemporâneas, passando pelas melodias espa-nholas98. Entre as igrejas barrocas, o modernismo arquitectural e a oresta, queserá possível tecer? O espaço das favelas é, no essencial, um espaço de habitat,

privado; mas, nesse espaço, a rua é muito frequentada e muitas vezes ocupada; adecoração apodera-se dos muros, multiplicam-se as iniciativas teatrais. Precisa-seum renascimento, que os poderes municipais se apressam, de resto, a enquadrarem renovações urbanas que, há 20 anos, seriam inconcebíveis, como aconteceuno caso de Medellin99.

As culturas do Sul alimentam uma relação com o outro a que os escrito-res e artistas brasileiros, na esteira de Oswald de Andrade, chamaram antropófaga,consistindo em se apropriar do que o outro tem de melhor, em assimilá-lo a mde se transformarem. Acolher a arquitectura europeia tal como esta é deixa de serrecomendável nesta nova produção. E para tanto é já necessário escapar aos pro-gramas monumentais e aos modelos. Trata-se de desenvolver no espaço público pequenas intervenções no limite da arte contemporânea, da performance e da ar-quitectura, de fabricar uma arquitectura da rua, que se desenvolva nos interstíciosda cidade, e que não se autorize senão da sua própria iniciativa – uma arquitectura

96 Rhyzom, Cultural Practices Within and Across, AAA, Paris, 2010.

97 Multitudes, n. 35, Amérique Latine, Amsterdam, Paris, 2009.98 Michel Plisson, Le tango, du noir au blanc, Actes Sud, Aix en Provence, 2004.99 http://www.pavillon-arsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243

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130 O DEVIR-MUNDO DAS PR TICAS MENORES

que poderíamos dizer autogerida, mais centrada na ecologia e na formação doshabitantes.

Enquanto o Sul ofereceu durante muito tempo a imagem do sofrimentohumano, pontuada por alguns focos de resistência que a atenuavam, a sua potên-cia recente em termos de desenvolvimento económico revela nele uma diversida-de in nita e a capacidade de estabelecer o diálogo entre os saberes, de deslocaras linhas. A este apelo as experiências do Norte respondem por meio da crítica da pretensão das disciplinas à hegemonia e a profusão das experimentações. Mas a proliferação é impedida pelas vontades de controle e pelas crispações repetitivasque persistem. A convergência das emergências100 prepara-se lentamente, numa

dispersão completa das suas manifestações. Assistimos a uma nova crioulizaçãodo mundo, a uma hibridação, que reemerge a partir do Sul e prepara o advento domundo-todo (tout-monde)101 cantado por Edouard Glissant102.

Referências

BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris:L’Harmattan, 2011.

GLISSANT, Edouard.Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.GUATTARI, Felix. Máquina Kafka. São Paulo: N-1 Edições, 2011. ___. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube, La Tourd’Aygues, 2011.PALLOTA, Julien. L´école mutuelle, au-delà de Foucault . Paris: Bibliothèque de phi-losophie sociale et politique, 2012.PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions deMinuit, 1967.QUERRIEN, Anne. L’école mutuelle, une pédagogie trop ef cace? Les empêcheursde penser en rond. Paris, 2004.

100 SANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud. Etudes rurales, n. 187, Ecolesdes hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.101 Termo que condensa e reitera a ideia de uma “mundialidade” (mondialité) alternativa proposta por Glissant (N.d.T.).102 GLISSANT, Edouard.Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.

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131Anne Querrien

Artigo de revista

PETCOU, Constantin; PETRESCU, Doina. Au rez de chaussé de la ville. Multitudes,Amsterdam, Paris, n. 20, 2005. ___. Une micropolitique de la ville: l’agir urbain. Multitudes, Amsterdam, Parisn, n.31, DP e CP (orgs.), Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 200ASANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud, Etudes rurales, n. 187, Eco-les des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.

Textos da internet

Atelier d’architecture autogeree. Urbantatics. Disponível em: <http://www.urbantac-tics.org/>. Acesso em: 12 dez. 2013. ___. Le 56 / Eco-interstice. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/ passage%2056/passage56html.html>. Acesso em: 13 dez. 2013. ___. R-URBAN – participative strategy for development, practices and networks oflocal resilience. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rur- ban.html>. Acesso em: 28 dez. 2014.Pavillon de L´Arsenal. Medelìn, Urbanismo Social. Disponível em: <http://www.pa-villonarsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243>. Acesso em:28 dez. 2014.

Anne Querrien é socióloga e urbanista. No maio de 68 militou no Movimento de 22

de março, depois trabalhou no Cer com Félix Guattari. Dirige a redação do journal Les Anna-les de la Recherche Urbaine. É membro dos comités de redação da Multitudes et da Chimèrese participa de diversas associações como a AITEC e a CLCV.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 133-

Dionora. Para uma Arquitetura Menor

Patricio del Real

Não deve surpreender-nos que num mundo assim, onde os mais belos jovens tinham sido reproduzidos nus e num tamanho gigantesco,

por todos os lados, se desencadeasse uma virulenta febre deninfomarmáticos e ninfomarmóreas.

Reinaldo Arenas

Dionora domina o terraço do seu edifício. Há muito já que se mudou paraa açoteia de uma antiga construção de Habana Vieja: “Fui a primeira moradora”,diz com uma voz forte e segura, “deste ‘palácio’, antes da Revolução” – em Ha-vana, todas as casas velhas se transformam em palácios. Ostentando uma atitudesenhorial, conta como “alargou ao terraço” o seu espaço “depois de a moradorase ter ido embora do país”. Defensora das conquistas da Revolução, admite tam- bém os seus malogros, mas adverte-me que não pense que o estado ruinoso doedifício se deve à negligência, que não vá dizer “lá fora” que o que aqui se vêé sinal de um fracasso colectivo. Dionora é combativa; vive há muito tempo jáuma batalha quotidiana: litígios com os vizinhos devidos às in ltrações constan-tes; negociações no mercado negro enquanto procura materiais para prosseguira sua expansão permanente sobre as açoteias de Havana. Dionora combate paraconservar o seu pequeno estado matriarcal. Embora defendida por um sistemalegal e ético, Dionora luta contra uma cidade colonial que está a ser objecto desaneamento e posta ao serviço do turismo internacional desde que foi declarada pela UNESCO, em 1982, Património da Humanidade. As recentes transformaçõesdo Estado cubano, a legalização da propriedade privada em nais de 2010, com oobjectivo da inserção do espaço urbano num mercado imobiliário nascente, geramnovos con itos para aqueles que, como os construtores debarbacoas103, vivemintensamente o património histórico da nação cubana; por detrás das pressões do

103 As barbacoas – por vezes consideradas como “favelas interiores” – são plataformas outablados construídos aproveitando os “pés direitos” muito altos de velhas casas, cujo resultadoé subdividir e reordenar os espaços interiores, fornecendo alojamento a um grande número deelementos da população de Cuba. (N.d.T.).

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134 DIONORA. PARA UMA ARqUITETURA MENOR

mercado internacional per la-se a geogra a económica nacional e consolida-se aimagem do “cubano” através de uma arquitectura colonial consumida por turistas.

No Rio de Janeiro, a batalha pela cidade assumiu dimensões olímpicas.Recentemente, o presidente do Comité Olímpico Internacional, Jacques Rogge,reclamou a “urbanização” das favelas do Rio. Rogge declarou que um grande in-vestimento em infra-estruturas seria qualquer coisa de “fantástico”104. Por detrásda soma delirante, calculada em mais de cinco mil milhões de dólares, de um pro- jecto fantasista, esconde-se o ditame de urbanizar – ou seja, de produzir um sujei-to urbano. Os recentes projectos de arquitectura e urbanismo no Rio revelam umacidade sequestrada pelo Olimpo, na qual os mecanismos internacionais são usa-

dos para expulsar (“relocalizar”, na boa gíria burocrática) sujeitos incivilizadosem operações menos espectaculares do que as recentes incursões paramilitares emfavelas transformadas, através da imprensa e da televisão, em baluartes do trá cointernacional de drogas. Os construtores de favelas já não têm apenas de combaterquotidianamente situações e organismos locais; hoje, é-lhes necessário ainda in-serirem-se em circuitos internacionais e defenderem, através de organismos comoa Organização dos Estados Americanos, reivindicações locais, não esquecendoque tais instituições possuem os seus próprios mecanismos de ofuscação105. A

situação relocalizou as favelas do Rio, uma vez que o olhar internacional as des-locou para o sector dos desportos. A visão das favelas, apresentada nas páginasinternacionais e de desporto, produz uma ofuscação populista entre espectáculosde violência real e violência ritualizada. Este modo de apresentar a questão, quetenta conter e localizar o problema como sendo o da existência de focos de inten-sidade urbana malsã, faz-nos esquecer que é o sujeito urbano, que Rogge deseja,que materializa o trá co de drogas, e que as supostas redes internacionais têm asua contrapartida nos consórcios internacionais das empresas farmacêuticas que possibilitam os escândalos olímpicos dodoping .

“You don’t need these”, dizia Encarnación num inglês re nado aos agen-tes da polícia da cidade de Nova Iorque; “não faço mal a ninguém”, continuava,entregando-lhes as algemas que, deslizando, lhe tinham caído das mãos pequenas.Há mais de 10 anos que Encarnación vendetamales a um dólar em Harlem, a

104 http://www.portal2014.org.br/en/news/6917/PRESIDENT+OF+THE+IOC+SLUMS+UR BANIZATION+BEFORE+2016+RIO+OLYMPICS.html (Consultado em dezembro de 2011).

105 Por exemplo, é impossível encontrar a referência a estes con itos na página web da OEA,organismo que pretende defender tanto os direitos privados como humanos. Ver: http://www.cidh.oas.org e http://www.usatoday.com/sports/olympics/2011-02-23-rio-de-janeiro-slums-hu-mans-rights-2016-Olympics_N.htm

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135Patricio del Real

trabalhadores, a estudantes, ao autor deste texto, a menos de um quarteirão de dis-tância de um McDonalds,onde se fala espanhol. Encarnación vivia no Estado de

Guerrero, no México, “com um telhado de folhas de palma e paredes de adobe”,e, como muitos, veio para os Estados Unidos para melhorar a vida dos que ca-ram no seu país106. Encarnación também melhorou Harlem; a sua pequena bancamóvel (um carrinho de supermercado) à boca da estação de metro, junto a um pequeno parque, acabou por desenvolver ao longo de muitos anos uma pequenazona comercial efémera, onde, dependendo do dia e do tempo, se podem encontrarfruta, ores, bijutaria e até mesmo artigos de segunda mão. Esta forma de pressãosobre o uso correcto e o cial da cidade provocou a acção policial directamente

sofrida por Encarnación, mais como um aviso destinado a lembrar quem realmentemanda do que da efectividade de um poder que tem de negociar com uma econo-mia estrati cada e, assim, usar múltiplas estratégias de cooptação. As acções ur - banizadoras da polícia de Nova Iorque não são tão espectaculares como as do Rio – as detenções efectuadas pela polícia da cidade são, em geral, bastante silenciosos.Menos violenta ainda é a política o cial de bene ciação estética da cidade (Arts inthe Parks Program), que instala, temporária mas ruidosamente, esculturas nos par-ques da cidade, urbanizando assim uma cidade já urbana e que, em certas ocasiões,

se sobre-urbaniza. As ovelhas de bronze do escultor Peter Woytuk, que disputamagora com Encarnación o pequeno parque, não serão, sem dúvida, detidas107.Em Havana, Rio de Janeiro e Nova Iorque, nestas três cidades tão diferen-

tes, como em tantas outras, entretecem-se relações de poder no espaço urbano quedesdobram um leque de desejos locais e internacionais, sob uma globalização quemobiliza e põe a produzir todos os estratos sociais e económicos. Pequenas acções,como vender umtamal a um dólar, mobilizam estratégias que revelam mercados paralelos em Nova Iorque (evitemos andar por aí a dizer que o mercado negro sóexiste no Terceiro Mundo), que, como em Havana ou no Rio, melhoram um certonúmero de vidas. O desejo de uma vida melhor transformou-se num imagináriocolectivo que, nas suas pulsações globais, transcende qualquer geogra a. As in-

ltrações contra que Dionora batalha na sua açoteia, manifestam um mundo defendas através do qual a informação se globaliza e se democratiza. Este uso intensodo espaço urbano revela uma cidade conectada, articulada em redes internacio-

106 Sobre a sua história, ver: http://www.nypress.com/article-20390-the-tamalera.html

107 Ver http://www.nycgovparks.org/art Estas esculturas são efémeras, o que signi ca que nãosão permanentes; no momento em que escrevo este ensaio, encontram-se no parque duas ove-lhas de bronze, Sheep Pair, do escultor Peter Woytuk. Ver http://www.woytuk.com/archives/gallery/the-new-york-sculptures/

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136 DIONORA. PARA UMA ARqUITETURA MENOR

nais, tanto legais como alheias à realidade o cial, activadas por um sujeito localque navega essas intensidades segundo os seus desejos e necessidades, produzindo

múltiplas cidades dentro e fora dela. A cidade é uma zona de contacto intenso eexpansivo onde o desejo encontra a sua forma. Surge aqui uma clara contradição, porque a intensi cação dos contactos e a expansão das redes manifestam uma he-terogeneidade que fragmenta a totalidade implícita na ideia de cidade. É, portanto,necessário falar, não de cidade, mas decidades. Esta necessidade de falar no plural,assinalada há já algum tempo por Michel de Certeau, entre outros, e de rompercom a ideologia da universalidade na qual se esconde ainda a táctica de reduzir “ooutro”, continua a ser um obstáculo para os que tentam articular meta-geogra as,

como a que a noção de Ibero-América supõe. Esta noção, e a relação histórico--cultural iniciada pela colonização espanhola e portuguesa a que a noção implicita-mente se refere, articula um território possível de diferença e resistência, mas quese dilui com Encarnación, que articula outra comunidade, que não é só aquela quevive nos Estados Unidos, mas a que vive nos uxos migratórios de uma força detrabalho “liberalizada”. Inserir trabalhadores deslocados no quadro de geogra asculturais particularistas parece ser um acto comprometedor, uma vez que os nige-rianos na Península Ibérica, que não participam dos benefícios culturais de uma

ideologia ibero-americanista, por exemplo, sofrem do mesmo modo que os equa-torianos que hipoteticamente poderão mobilizar uma suposta cultura comum comose fosse uma carta de chamada. A mobilização do termo e da ideia de uma comuni-dade ibero-americana pode ser um acto de reivindicação, mas a ideia esconde umaconsagração implícita de valores e tradições que reclamam unidade de espírito etransformam a história e a cultura em essências, por mais que as fragmentemos em pluralidades. A noção de Ibero-América depende da ideia de território; esta con-vergência entre espírito e território manifesta-se hoje como sintoma do retraimentoe alargamento do Estado frente ao mercado internacional. Deve ter-se presenteque o imaginário luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, que serviu paraexaltar as bondades do colonialismo e da ditadura num momento de debilidade de-mocrática no chamado Terceiro Mundo, serve como advertência perante qualquermeta-geogra a que insista em articular oposições e exclusões. Creio ser hoje maisimportante falar de uma rede de cidades do que de territórios, uma vez que a cres-cente urbanização agenciada actualmente pela expansão do mercado internacionalreclama de nós novos imaginários geográ cos. A chamada comunidade transna-cional ibero-americana exerce as suas próprias exclusões, e se há alguma coisa queda globalização devamos recuperar, é precisamente a sua força de inclusão. Assim,devemos menorizar a Ibero-América.

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137Patricio del Real

Hoje, ranchos como os de Caracas108, que antes não guravam nos ma- pas, são cadastrados e incorporados na cidade; no Rio de Janeiro, pode fazer-se um

circuito turístico pelas favelas; asbarriadas de Lima integram-se plenamente nomercado imobiliário, de acordo com o ideário do economista peruano Hernando deSoto. As acções de uma “linguagem imperial” de “urbanização” passaram ultima-mente a tomar por objecto lugares anteriormente inexistentes, excluídos ou demo-nizados. A cidade é rearticulada hoje enquanto corpo orgânico, quer dizer, como umtotal diferenciado, não desprovido de con itos, mas necessariamente funcional soba globalização. Esta rearticulação, ainda em processo, manifesta-se a diferentes es-calas. Em Bogotá, Caracas e Rio, os bairros pobres de Santo Domingo, San Agustín

e Alemão respectivamente, foram incorporadas no tecido urbano através de elegan-tes funiculares, e, em certos círculos de arquitectura da Ibero-América, encontramosum interesse pontual e renovado pelos processos ditos informais, que dão origema favelas,ranchos, villas miserias, barbacoas, barriadas, tapancos, chabolas, pue-blos jóvenes, shanty towns, slums, bidonvilles etc. Estabelecem-se assim momentosde contacto, de fascínio e de desejos, entre o marginal e a arquitectura.

A constante luta dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro esforçando--se por melhorarem as suas vidas é uma fonte de admiração e estupefacção para

arquitectos que propõem intervenções críticas e para ateliers de escolas de arqui-tectura que tentam introduzir novos temas, com o objectivo de promoveram a re-novação de uma disciplina já comprometida com o poder e de uma pro ssão cega por uma espectacularização sob a tutela dos starquitects. Das condições extremas – extremadas pela intensidade daqueles que as vivem e pela distância daqueles quenão a sofrem –, os arquitectos recuperam um agenciamento inventivo do presentee do agora, executado por sujeitos marginais investidos de uma certa inocênciae de uma criatividade intensa. O desdobrar-se de estratégias construtivasad hoc,destebricolage material e produtivo, solicita o interesse e a admiração, e mobilizaum estranho humanismo que reclama a nossa compaixão e a nossa inveja, reve-lando a profunda transformação conceptual que os ranchos sofreram. Se antes asvillas miserias eram cancros a ser extirpados, são hoje imaginados como padrõesurbanos alternativos, construções sociais de onde emergem propostas vernacula-res de um “lugar” possível contraposto ao espaço abstracto da cidade moderna.Hoje os processos de construção dasbarbacoas revelam novos procedimentos de projecto para uma arquitectura sobrecarregada pela tecnologia e reduzida à sub-

108 Um rancho, na Venezuela, é uma construção improvisada, utilizando materiais usadose pobres, como as que encontramos nos chamados “bairros de lata”. Este tipo de construção proliferou em Caracas, sobretudo a partir da década de 1960 (N.d.T.).

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138 DIONORA. PARA UMA ARqUITETURA MENOR

jectividade do seu autor. Nestes espaços marginais, alguns descobrem um proces-so de construção de comunidade enquanto acto social reivindicativo e processo de

projecto de resistência; aos dois níveis, social e pessoal, surge aqui como que umaalternativa aos discursos hegemónicos da globalização. A sedução em causa nãoé nova, possui uma já longa tradição, que, desde o século XIX, tenta reintegraruma tradição enraizada nas forças descontextualizantes da modernização: trata-seda luta que encontramos em Dionora, quando, armada com baldes de cimento e pequenas vigas de ferro, madeiras e pás, menoriza a subjectividade de género do“construtor”, que a própria linguagem pre gura como sujeito masculino. Como já observou a crítica Eve Kosofsky Sedgwick, dos Estados Unidos, a recuperação

do não-o cial liberta um uxo de desejos escondidos. As incursões paramilitaresnas favelas do Rio revelam os complexos combates de género de um lugar já al-tamente politizado. As intervenções dos arquitectos nosranchos desarticularão osdesejos de masculinidade da arquitectura?

A dualidade persistente entre tradição e modernidade foi forjada na ar-quitectura por um modernismo que desejava ser a linguagem o cial do moderno.Os bairros degradados não podem ser reduzidos a sonhos românticos, a espaçosvernaculares de sociabilidade pré-capitalista, numa tentativa visando reproduzir

lugares de resistência ao mercado internacional; também não podem ser reduzi-dos a espaços de um capitalismo selvagem dominados e espectacularizados pelaviolência; não são lugares de resistência ou espaços de violência, mas constituemâmbitos nos quais descobrimos resistências e violências; por outras palavras, sãolugares reais e actuais, não imagens para deleite ou horror de um consumidorafectuoso ou hostil, embora nos dois casos igualmente distante. Neste sentido,qualquer tentativa de articular uma relação entre uma urbanidade intensa de emer-gência e uma arquitectura emergente na Ibero-América requer a identi cação deum momento de in exão histórica. A valorização de espaços produzidos à mar -gem, ainda que sempre ligados ao mercado, à cidade, à arquitectura, marca anossa particularidade histórica. Trata-se de uma postura sintomática de um mundoheterogéneo, e também de uma mudança cultural, em que já não vemos, nas suasvastas extensões urbanas, o “atraso da nação”, como se dizia nos anos 1950 a propósito dosranchos de Caracas, mas o seu futuro. A capitalização da cidadetornou-se extensiva; mas se se valoriza a experiência vivida pelos residentes dos bairros pobres, se se valorizam os processos de construção, o uso dos materiaisque aponta para uma criatividade do sujeito marginal, devemos perguntar tam- bém onde terminam os contornos desta valorização. A coincidência dos valoresde mercado e dos valores produzidos nosranchos está ainda em gestação. As

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narrativas anteriores, que descreviam a injustiça social no interior de um quadronacional de cidadania, são hoje reformuladas no quadro da economia, duplicando-

-se a todos os níveis, da gestão dos recursos naturais (ecologia) à correcta admi-nistração do doméstico (oeconomia) e do pessoal.É importante, por isso, perguntar que valores hoje aqui descobrem os

arquitectos. A obra persistente de Jorge Mario Jáuregui – insistindo durante 15anos sobre as favelas do Rio através do Programa Favela-Bairro – obteve res-sonância e constituiu-se como modelo para a Ibero-América. Trata-se, contudo,de um trabalho que causa também desorientação, uma vez que, sem menosprezoda magní ca e necessária obra realizada, depende da gura do arquitecto como

pro ssional-especialista que reconcilia os desejos dos moradores dos bairros como poder. A capitalização da arquitectura social, embora não completamente con-solidada, efectuou-se já na Sétima Bienal de Veneza sob o título Less Aestethics, More Ethics – Menos estética, mais ética, e, mais recentemente, no Museu deArte Moderna de Nova Iorque, com a exposiçãoSmall Scale, Big Change. Oque estou a tentar articular aqui são os limites tanto do fascínio que hoje exercesobre os arquitectos a necessidade sofrida pelos construtores de tapancos109, comoos limites de um olhar que responde a uma pergunta tautológica, uma vez que,

nesse fascínio e nesse olhar, os arquitectos ou se descobrem a si próprios, ou sedescobrem arquitectos “menores”, e deparamos aqui com um impasse. A perguntaé unidireccional – de quem olha quem – tentando abrir assim um espaço teórico.Porque aquilo que importa, se quisermos continuar a reclamar benefícios das bar-racas, não é vermos como os construtores de pueblos jóvenes110 são arquitectos em ponto pequeno, mas como as suas acções menorizam a arquitectura. É fácil des-cobrir arquitectura nas shanty towns111, mas é mais difícil descobrir shanty towns na arquitectura. Proponho que retomemos o processo de capitalização efectuadoem Veneza, no sentido em que o limite da valorização das favelas – quer dizer,o que não se trata de valorizar nas favelas – deve ser precisamente a estética queexibem. Daí que, em Veneza, se tenha insistido mais na ética, a m de prevenir ocolapso da arquitectura sob os seus próprios valores estéticos.

109 O tapanco designa originalmente, no México, um piso que se constrói sob o telhado, porcima do tecto ou falso tecto das outras divisões (N.d.T.).110 Designação peruana de aglomerações de construções precárias, que surgem na periferia dascidades, e cuja população é composta quase integralmente por negros, índios e ex-camponesesmestizos (N.d.T.).111 Bairro precário e muitas vezes clandestino, como o “bairro de lata”, o bidonville, os pueblos jóvenes, a favela, a barriada etc. (N.d.T.).

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140 DIONORA. PARA UMA ARqUITETURA MENOR

As recentes e magní cas arquitecturas de Bogotá e de Medellín – como, por exemplo, a Biblioteca España de Giancarlo Mazzanti, na segunda destas ci-

dades – abrem um diálogo complexo que mobiliza os contrastes: uma clara esté-tica arquitectónica de elite sobrepõe-se à estética convulsa do slum112 de Medel-lín. Articula-se assim uma arquitectura cívica de elevado valor, tanto nanceirocomo estético. Em Santiago do Chile, Alejandro Aravena, com o concurso dassoluções de construção “elemental”, integra estratégias de crescimento gradual,incorporando assim uma temporalidade presente nosbidonvilles e estratégias deconstrução elaboradas durante a década de 1950, por exemplo, no Norte de Áfricasob o regime colonial francês. Mas o que importa é perguntar se as estratégias e

os discursos uem nas duas direcções: quer dizer, se podemos descobrir na ar -quitectura de Aravena ou de Mazzanti essa informalidade que hoje exerce tantofascínio; descobrir osranchos nas Torres Siamesas do Campus San Joaquín daPonti cia Universidad Católica do Chile; se podemos descobrir asviilas miserias num dos bastiões do poder na Ibero-América; se a estética da emergência apa-rece na arquitectura ibero-americana emergente – uma arquitectura que começaa transbordar do seu limite geográ co, não como curiosidade do momento, mascomo arquitectura menor.

Crédito da imagem: Dionora, fotogra a de Patricio del Real.

As incursões de arquitectos nasbarbacoas menorizaram a arquitectura.A polivalência material, a utilização de diversos materiais tradicionalmente pre-cários, como o tijolo e a madeira; a revalorização dos processos de construçãoinformais ou primitivos, como o adobe – como na Escuela de Artes Visuales de

Oaxaca, no México, de Mauricio Rocha –, revelam as atitudes da arquitectura

112 Ver a N.d.T. anterior (N.d.T.).

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141Patricio del Real

emergente. A preferência por estratégias informais é condicionada por uma ten-dência já bem estabelecida para a experimentação material em arquitectura. As-

sim, a articulação material não é necessariamente uma menorização da arquitectu-ra. Talvez seja, portanto, mais produtivo tornarmos a insistir no campo da estética,uma vez que a estética de elite resiste a incorporar a emergência. Se examinarmosa produção arquitectónica que se contém na casa unifamiliar da Ibero-América,descobriremos que nada nela emerge. A casa unifamiliar revela-se como o gran-de baluarte de uma classe social tradicionalista hoje protegida por um cuidadoe sufocante minimalismo estético. As múltiplas versões daquilo a que podemoschamar “a gaiola” de vidro, cimento ou madeira – muitas vezes desvirtuada por

combinações de materiais ou geometrias decorativas postiças – exprimem o tédio,a leviandade intelectual e a ausência de valores comunitários dos seus proprietá-rios. Estes cubículos da versão estética o cial, espaços de abstracção minimalista,são máquinas de fuga potenciadas pelos arquitectos – pois, quem desejará vivernum estado de constante fragmentação como o dasbarriadas? Mas são tambémespaços de poder, onde se reproduzem os valores de uma sociedade desigual etradicionalista no pior sentido da palavra, como é o caso com o ainda muito vin-cado paternalismo da região. O elitismo que circula com insistência nas revistas

de arquitectura e a compartimentação das construções informais no interior deuma emergência que não vê a sua contribuição estética, não fazem mais do quecon rmar que a região continua a ser a mais desigual do mundo. Após as repetidasincursões no mundo da informalidade, a arquitectura na Ibero-América não foicapaz de articular um projecto coerente de arquitectura menor. E se a incursão nasfavelas radica somente na capitalização de uma economia de valores imobiliárioe humanitário, reduz-se consequentemente a valorização e o efeito saudável queaquelas podem ter sobre uma arquitectura que depende ainda da estética do poder.

Mas a resposta não está nem nos proprietários, defensores dos seus pró- prios interesses, nem nos arquitectos, porque ao m e ao cabo o simples construir já é su cientemente difícil: o problema radica na ausência da crítica da arquitectu-ra – mas que arquitecto ou proprietário deseja que a sua obra e o seu investimen-to nanceiro e estético seja desvirtuado por subtilezas intelectuais que, emboratambém difíceis de construir, a poucos interessam? Não devemos esquecer quesó o meritório merece ser criticado, pois o que interessa é a crítica produtiva,a crítica que trabalha. Como tantas outras casas difundidas por revistas ibero--americanas, a elegante Casa Poli dos arquitectos Pezo von Ellrichshausen (PvE),instaura, numa falésia da costa chilena, a convergência de uma casa de fériascom um centro cultural, que, como um cubo caído do céu, tenta fazer esquecer o

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142 DIONORA. PARA UMA ARqUITETURA MENOR

preço ecológico que estas arquitecturas implicam – não só devido aos processosde construção que alteram o ambiente, mas também, e em primeiro lugar, pela

contaminação abstracta que a sua capitalização estética exerce sobre o quadronatural. A estética da paisagem, tão elegantemente elaborada pela equipa chileno--argentina de arquitectos através das elegantes vistas sobre o Oceano Pací coque perfuram o cubo, articula uma manipulação visual que insiste na de niçãoartístico-estética da palavra paisagem – uma de nição que esquece por força a suarelação com um terreno que o camponês trabalhou arduamente, sem contempla-ção, mas com a sua própria naturalidade estética. O império do visual desdobra-sena imagem, produzindo uma arquitectura facilmente capturada pelas revistas. A

estética do camponês já foi capturada pelo romantismo no século XIX, e hoje, naIbero-América, resiste a esta nova forma de incorporação.A partir da convergência entre o visual e o terreno, do confronto entre a

paisagem e o camponês, da união entre o olhar do autor e a mão da sua antítese, docontraste máximo entre a obra na falésia dos arquitectos PvE e a açoteia de Diono-ra, podemos elaborar uma tentativa de arquitectura menor. Devemos começar porrecusar qualquer tentativa de de nir as favelas como arquitectura, uma vez queessa incorporação discursiva esconde a hierarquia operacional de valores estéti-

cos ainda bem instalada na arquitectura, e desarticula qualquer tentativa possívelde elaborar uma arquitectura menor, uma vez quer, se seguirmos Deleuze, ela só poderá ser a prática menor no interior de uma linguagem maior. Se considerarmosa produção construtiva por volume da cidade ibero-americana, veremos que sãoos arquitectos que produzem a menor quantidade de estruturas e de espaço cons-truído da cidade, enquanto são os construtores dos bairros que produzem a maior parte. Assim, a operacionalidade da arquitectura como linguagem a menorizarradica principalmente em acções críticas sobre os seus valores estéticos – quer di-zer, na sua relação com o poder, ou, como diriam os modernistas brasileiros, coma bão tradição, com essa tradição que delineia os contornos da boa sociedade. Seos arquitectos podem aprender alguma coisa com os construtores de favelas é omodo como estas permanecem frágeis, sem que isso seja fraqueza: a fragilidadeconstrutiva que faz da favela uma obra em surgimento constante é qualquer coisaque os arquitectos começam já a incorporar, ainda que de modo insu ciente. Es-tando em construção permanente, asbarriadas exibem as suas contradições à orda pele e revelam uma construção estética colectiva, uma montagem expressivasem autor a que a arquitectura resiste. O caminho a percorrer é difícil, uma vezque a ideologia do estilo unitário e representativo da mão do “arquitecto” comocriador singular e autoritário está tão enraizada que um artefacto tão complexo

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como um edifício, um artefacto que requer uma equipa de pessoas e pro ssionais, precisa ainda de ser identi cado e reduzido a um único arquitecto. Objectar-se-á

que, sem esta força homogeneizadora e controladora o resultado seria uma vagadesordenada dekitsch numa sinfonia sem tom nem harmonia. Talvez, mas temosde nos dar conta de que, por detrás de tais argumentos contra a dissonância e a he-terogeneidade, se esconde a produção de simples objectos de consumo imediato,de uma arquitectura capitalizada pelo mercado e não por arquitectos.

Patricio del Realrealizou o doutoramento em História da Arquitectura e Teoria naUniversidade de Columbia em Nova Iorque e o mestrado em Arquitectura pela Universidadede Harvard. É coeditor da antologia Latin American Modern Architectures: Ambiguous Terri-tories, publicado pela Routledge, 2012, e actualmente trabalha no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 145-

Ar uitetura, Feiti o e Território.Matéria e impulso de libertação naobra baiana de Lina Bo BardiGodofredo Pereira

1 – Lina Bo Bardi

A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular (1959)representa, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois elementos centrais: porum lado, o interesse por arte popular que traz já desde Itália, pelo outro, uma preo-cupação com a realidade política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O programa original propunha-se articular a ideia de “Civilização Brasileira” atravésde um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia” e “Europa e PenínsulaIbérica”. Seria uma espécie de viagem à história do país através da sua arte quoti-diana. Para Lina, a palavra “civilização” indicava “o aspecto prático da cultura, a

vida do homem em todos os instantes”, e a exposição devia tornar visível a “procu-ra desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser ‘demitidos’,que reclamam o seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar nodesespero, uma a rmação de beleza conseguida com o rigor que somente a presen-ça constante de uma realidade pode dar. Matéria prima: o lixo”.113

A partir de Lina Bo Bardi, este texto aborda um problema central para aarquitectura, nomeadamente, o do seu estatuto enquanto objecto, assim como asrelações que estabelece com os objectos pelos quais é ocupada e habitada. Não é,contudo, a natureza losó ca deste problema que aqui interessa, mas sim a liga-ção entre o objecto e um território que lhe dá sentido. Identi cando uma certa con-tinuidade entre objectos e territórios, explora-se aqui o modo como o debate emtorno à natureza dos objectos não se resume a estes, mas re ecte uma constantedisputa em torno a diferentes concepções de território. Desde território entendidocomo espaço sob a jurisdição do estado nação, parte de uma organização social produtiva baseada na privilégio da propriedade privada sobre todos os demais di-reitos, até ao território entendido na sua dimensão existencial, agenciamento deelementos heterogéneos que dão consistência aos modos de vida. Em ambos oscasos, quer por revelarem as condições de produção que os constituíram, quer por

113 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa O cial, 2008, 158.

152

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146 ARqUITETURA, FEITIçO E TERRIT RIO

revelarem os afectos, hábitos ou práticas que os materializaram, os objectos fun-cionam como um arquivo de con itos e debates territoriais. Ora, precisamente esta

capacidade de ver nos objectos as lutas e circunstâncias daqueles que os produzi-ram, marca toda a obra de Lina, desde o seu interesse por máscaras, talismãs e ex--votos até ao desenho da “Cachoeira do Pai Xangô” para o centro da Bahia (1986),às exposições sobre a cultura do Nordeste. Estes objectos “carregados” são centraisna arquitectura de Lina, pois participam de um modo de projectar que privilegia aconcepção de territórios a que chamarei deexistenciais, por tratarem, como indicaOlívia de Oliveira, matérias subtis, ao mesmo tempo naturais e míticas.114

Este mesmo termo, “territórios existenciais”, é também usado pelo lóso-

fo/psicanalista Félix Guattari, em Lês Trois Ecologies, para se referir aos espaçosafectivos criados por contextos e experiências de pertença. Mas a sua diversidadeencontra-se em perigo de desaparecimento face à homogeneização das subjec-tividades promovida pelo capitalismo neoliberal. Pode dizer-se que da mesmaforma que os países “desenvolvidos” são os principais poluidores ambientais, sãotambém os principais poluidores existenciais, o que se manifesta na crescente“ossi cação” de comportamentos, imaginários e formas de “territorialização” queos caracteriza.115 Olhando para Lina através de Guattari, podemos sugerir que o

recurso a “objectos carregados” se insere na tentativa de capturar a expressão dediferentes modos de viver e habitar o mundo.Claro que o seu interesse por objectos advém também de privilegiar a

questão do habitar, a nal a grande preocupação da arquitectura moderna. Desdecedo preocupada com os problemas do quotidiano – vejam-se os textos escritosainda em Itália, sobre a Disposição dos Ambientes Internos116 e sobre O aquá-rio na Casa117 – Lina não reduz o habitar apenas a um problema funcional, masentende-o enquanto prática existencial. Podemos ver, por exemplo, como as casasValéria Cirell (1958) eChame-Chame (1958), valorizam a expressão dos mate-riais acima da pureza da forma e da organização espacial. Mas não se trata aqui dequalquer romantismo da expressão ou da natureza, mas de uma busca da simplici-dade que se conquista na relação da obra com as práticas de vida e os seus rituais.De qualquer forma, se numa fase inicial este discurso emerge ainda preso aosestudos decorativos da casa, ganha toda outra radicalidade nos seus escritos sobre

114 OLIVEIRA, Olivia de.Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barcelona:Gustavo Gili, 2006.

115 Cf. GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.116 BARDI, Lina Bo. Sistemazione degli interni. Domus, 198, 1944.117 BARDI, Lina Bo. L’Acquario In Casa. Lo Stile, 10, 1941, p. 24-25.

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o Nordeste entre 1959-63. É aí, em proximidade com uma “estética da fome” deGlauber Rocha, que Lina aborda as profundas relações entre emancipação social

e produção artística popular: “Em Pernambuco, no Triângulo Mineiro, no Ceará,no polígono da Seca, se encontrava um fermento, uma violência, uma coisa cultu-ral no sentido histórico verdadeiro de um País, que era o conhecer da sua própria personalidade”.118 Recorde-se que nos anos 1960 no interior nordestino, a maioriada população vivia abaixo do limiar da pobreza, devido não só à escassez de re-cursos ditada por um clima de semi-aridez, mas principalmente pela exploraçãosocial operacionalizada pelas oligarquias agrárias. É esta violência e miséria queanima o ressurgimento em 55 das Ligas Camponesas, associações de camponeses

em luta por uma reforma agrária, ou no cinema o surgimento de um novo movi-mento, a “estética da fome” de Glauber Rocha, a partir da qual se reposiciona aimportância das práticas quotidianas dessa população esquecida. E é devido a estecontacto com o sertão e as suas transformações político-culturais, que para LinaBo Bardi a arte popular deixa de ser simplesmente algo que confere profundidadee realidade à arquitectura, e se refere cada vez mais concretamente às condições brutas da existência. E progressivamente também a arquitectura de Lina começa a participar activamente na emancipação desse território quotidiano e não-erudito,

como forma de resistência à hegemonia cultural colonial.2 – Feiticismo e Colonialismo

De acordo com o antropólogo William Pietz na sua série de ensaios sobreThe Problem of the Fetish, o termo “fetiche” tem origem nos territórios inter--culturais da África Ocidental nos séculos XXVI e XXVII como resultado doencontro entre mundos culturais radicalmente heterogéneos. Segundo Pietz, “estasituação nova começou com a formação de espaços habitados interculturais ao

longo da costa da África Ocidental (especialmente ao longo da Costa da Mina)cuja função era traduzir e valorizar objectos entre sistemas sociais radicalmen-te diferentes (...) estes espaços, que existiram durante vários séculos, existiamnum triângulo de sistemas sociais composto por feudalismo Cristão, linhagensAfricanas e capitalismo mercante”119. Emergindo da descrição das falsas crençasdo outro, o termo migra posteriormente para a Europa com os escritos de Char-les de Brosses, lentamente adquirindo o seu uso mais familiar com as obras deFeuer bach, Marx e Freud. Mas para Pietz a relevância do termo fetiche ou mais

118 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo: Imprensa O cial, 2008, 153.119 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. I. Res, n. 9 (1985): 6.

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adequadamente feitiço não reside na sua capacidade de descrever mecanismosculturais reais (a natureza de uma especí ca crença), mas sim na capacidade de

evidenciar a natureza de certos encontros, na medida em que refere a uma histó-ria de con itos em torno à correcta valorização (afectiva, cultural, comercial) dedeterminados objectos. Referindo-se ao entendimento dos europeus, Pietz diráque “no discurso sobre feitiços, esta impressão da propensão do primitivo para personi car objectos técnicos – ou para os considerar veículos de causalidadesobrenatural – é conjugada com a percepção mercantil que os não-Europeus atri- buem valores falsos aos objectos materiais”120. Uma posição semelhante é desen-volvida por Bruno Latour emThe Cult of the Factish Gods, argumentando que a

declaração de feiticismo surge sempre enquanto acusação sobre as falsas crençasdo outro. Acresce que tal acusação sobre a crença dos outros servirá para funda-mentar uma acção “pedagógica” de correcta valorização, tornando evidente comoos princípios argumentativos que subentendem designações de primitivismo ousuperstição, substanciam também um processo de apropriação de um territóriomaterial. Surgindo sempre em relação a empreendimentos coloniais, a históriado feitiço é por isso a história da constituição de culturas de fronteira, por relaçãocom o desenvolvimento de sistemas mercantes, ou do nascimento do projecto

capitalista.Assim, reconhecer o “feitiço” como um local de con ito, implica quese entenda o objecto como uma questão material, queatrai na mesma medidaem que divide. E é precisamente neste ponto onde o “feitiço” se torna político, jáque o seu real poder deriva do fato de revelar uma disputa e por conseguinte umadiferença. Além disso, o “feitiço” – tal como os “objectos carregados” de Lina BoBardi – revelando diferenças, torna-se por isso mesmo um objecto de fronteira a partir do qual, ou sobre o qual, essas diferenças serão supostamente resolvidas(gestos iconoclastas, vandalismo etc.)121

3 – Territórios de Fronteira

Digamos que Lina desenha os seus edifícios de uma forma feiticista, de-vido não só ao seu interesse pelas práticas populares, mas também devido aoestatuto instável dos vários objectos com que ocupava os seus edifícios, assimcomo pela relação pessoal que estabelecia com eles. Em Lina vemos o redescobrir

120 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. II, The Origin of the Fetish. Res, n. 13 (1987): 42.121 Cf. TAUSSIG, Michael. Defacement : Public Secrecy and the Labor of the Negative.Stanford, Calif: Stanford University Press, 1999.

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149Godofredo Pereira

de todos estes objectos “outros”, carregados de vidas e de costumes, de histórias. Neste sentido um dos debates que para a arquitecta se tornou central foi precisa-

mente a questão do folclore, contra o qual lutava pela ideia de arte popular. ParaLina a arte popular e artesanato designam formas de produção directamente liga-das às condições de produção (económicas, geográ cas, climáticas e culturais)e não poderiam ser entendidas como formas inferiores, isso sim fazia o folcloredesignação reservada às “artes menores”. Além disso, se através do processo pe-dagógico colonial/capitalista os objectos são por um lado forçados a categoriasdiscretas do saber, e por outro transformados em mercadoria de formato turís-tico – em ambos os casos desconectados das forças territoriais que os modelam

–, uma outra pedagogia era necessária, mais próxima de Gilberto Freyre, paralibertar as forças que “carregam” esses mesmos objectos e mobilizá-las enquantoforças políticas. Assim, como a rmava Lina “O balanço da civilização brasileira‘popular’ é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do Folclore, sempre paternalistamente amparado pela cultura elevada, é o balanço ‘visto do outro lado’, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, éo habitante das ‘Vilas’, é o negro e o índio, é uma massa que inventa, que traz uma

contribuição indigesta, seca, dura de digerir.”122

Claramente aqui se vê o quantofoi importante a in uência de António Gramsci e a sua defesa da importância deuma força colectiva nacional-popular como prática contra-hegemónica. De facto, para Lina a aprendizagem com a arte popular seria o elemento chave que deveriainformar o processo de industrialização e modernização brasileiro, ou seja, umaaprendizagem desprovida de romantismo mas entendida como oportunidade paraa constituição de um novo território, construído a partir da cultura existente. As-sim, longe de se reduzir a um discurso da pequena escala, Lina aproveitava asenergias de um Brasil em construção que na altura re-imaginava os limites do possível. Neste sentido a a rmação de Lina que Brasília era “um belo começo para uma nação é paradigmática”.

Os seus projectos para a Bahia são testemunho de como para Lina foiimportante a in uência do Candomblé, das tradições afro-americanas, e em parti-cular desses objectos que os portugueses, através do comércio de escravos, trou-xeram de um continente ao outro. Não por acaso, a Costa da Mina onde o antropó-logo William Pietz localiza o início da história desses objectos-feitiço, é contíguaà costa dos Escravos, onde se encontra hoje o Benin, e de onde veio a maioria da população Afro-descendente para a Bahia. Procurando valorizar a história local,

122 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa O cial, 2008, 210.

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150 ARqUITETURA, FEITIçO E TERRIT RIO

um dos mais notórios projectos que Lina desenha na Bahia é a recuperação de umantigo edifício colonial para ser transformado na Casa do Benin, onde estaria em

exposição o arquivo do antropólogo Pierre Verger sobre as relações culturais entreBrasil e África. Deste modo, promover uma concepçãoexistencial do território talcomo o faz Lina, implica portanto, a possibilidade de praticar a coexistência de“mundivisões” heterogêneas. A luta pelo reconhecimento de alternativas às práti-cas epistemológicas da modernidade, contra o “eliminativismo” da tecnociênciasobre outras formas de conhecimento123, é central para poder defender o direito adiferentes visões do mundo e outras formas de produção.124 Convém notar, apesarde tudo, que não se trata aqui da defesa das culturas indígenas ou tradicionais

como que constituíssem uma alternativa, mas reconhecer com Arturo Escobar,que as soluções devem ser buscadas a partir do meio: “a noção de colonialidadeassinala dois processos paralelos: a supressão sistemática pela modernidade do-minante de culturas e conhecimentos subordinados (o encobrimento do outro); ea necessária emergência, a partir desse próprio encontro, de conhecimentos par-ticulares formatados por essa experiência e que têm pelo menos o potencial de setornarem lugares para a articulação de projectos alternativos”125.

4 – Devir-território

O fazer do território não pode ser objecto de conhecimento especializado, pois não há como especializar o direito à expressão e à existência. Aterritoriali- zação é um processo colectivo que agencia pessoas, mas também espaços, arte-factos, instituições, materiais, narrativas, modos de estar etc. E por isso mesmo aluta por diferentes concepções de território é, por isso, também a luta pelo direitoa existir e por diferentes visões do mundo. Recordando o projecto para a recupera-ção do centro histórico da Bahia (1986), em que o objecto de recuperação não fo-

ram as arquitecturas consideradas historicamente relevantes mas sim a “alma” dacidade, vemos como esta concepçãoterritorializante é central para Lina. QuandoLina recupera não só as praças, ruas e miradouros, mas também a economia infor-mal, que tem lugar nasladeiras, nas associações recreativas e nas lojas ilegais, ou

123 No que respeita à coexistência entre as práticas cientí cas e outras formas de produção deconhecimento, convém referir o importante trabalho que Isabelle Stengers tem vindo a desen-volver. Isabelle Stengers, Cosmopolitics II, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2011.124 Cf. SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing SocialEmancipation. London: Verso, 2006.125 ESCOBAR, Arturo.Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. London:Duke University Press, 2008, p. 12.

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151Godofredo Pereira

quando desenha bancos de rua, uma fonte e até um comboio de recreio, percebe--se que a Bahia que tinha em mente não era a de um museu histórico, mas a da

sua vida local. Tentando dinamizar as formas de comércio e expressão popular,torna-se evidente que orientando a prática da arquitectura para uma atenção aosmodos de vida dos seus habitantes, se abre a possibilidade para que outras subjec-tividades e formas de praticar o espaço possam também ter lugar. Se a arquitecturae as práticas espaciais intervêm num território que éexistencial , então este tem denecessariamente ser também entendido enquanto colectivo.

Devir-menor não é que não um processo de territorialização que operaa partir das margens dos discursos dominantes, que se alimenta das condições

geradas, forçosamente, pelo habitar de zonas de fronteira. Daí a sua proximidadeao feitiço, a esses objetos naturalmente fronteiriços, em si mesmos arquivos deconstantes encontros. Mas é também o assinalar de uma possibilidade, constitu-tiva de imaginar vidas possíveis. E aqui a obra de Lina é exemplo maior de umaimaginação constante e lutadora. Exemplo de que é possível fazer arquiteturacom as pessoas, com os seus mitos, as suas práticas e as suas lutas. Sempre aten-ta ao quotidiano na sua dimensão mais alargada, Lina defendia uma arquiteturaenquanto processo, não abdicando das conquistas da modernidade, mas retirando

daí ilações que lhe são menos reconhecidas: que viver e habitar são demasia-damente importantes para serem de exclusiva responsabilidade dos arquitetos, promovendo o realizar da arquitetura, enquanto construção coletiva do território,como uma luta por direitos e por justiça.

Referências

GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.ESCOBAR, Arturo.Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. Lon-don: Duke University Press, 2008.LATOUR, Bruno.On the Modern Cult of the Factish Gods. Durham: Duke UniversityPress, 2010.OLIVEIRA, Olivia de.Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barce-lona: Gustavo Gili, 2006.PIETZ, William. The Problem of Fetish I. RES – Anthropology and Esthetics, 1985,n. 9: 5-17. ___. The Problem of Fetish II. The Origin of Fetish. RES – Anthropology and Esthe-tics, 1987, n. 13: 23-45.

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152 ARqUITETURA, FEITIçO E TERRIT RIO

___. The Problem of Fetish IIIa. Bosman’s Guinea and the Enlightenment Theory ofFetishism. RES – Anthropology and Esthetics, 1988, n. 16: 105-123.

SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing SocialEmancipation. London: Verso, 2006.STENGERS, Isabelle.Cosmopolitics II . Minneapolis: University of Minnesota Press,2011.TAUSSIG, Michael. Defacement : Public Secrecy and the Labor of the Negative. Ca-lifornia: Stanford University Press, 1999.

Godofredo Pereira é arquiteto formado no Porto. Realizou o mestrado na BartlettSchool of Architecture e é actualmente doutorando no Centre for Research Architecture na Gol-dsmiths, University of London. A sua investigação “Feiticismo Territorial” debruça-se sobre o papel da tecnociência na recon guração de con itos políticos e epistemológicos em torno aoterritório. É professor de História e Teoria no MArch Urban Design na Bartlett School of Archi-

tecture. É editor do livroObjetos Selvagens/Savage Objects (INCM, maio 2012) e organizadorde vários seminários entre os quais se destacamObjectos, Práticas e Territórios (Capital Euro- peia da Cultura, Guimarãoes 2012) e Devil’s Advocate (Forensic Architecture, Londres, 2013).

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 153-

AberturaTrilogia da Terra

Paulo Tavares

Entre 1979 até o ano de sua morte em 1992, Félix Guattari viajou setevezes ao Brasil. Também esteve na Palestina, Polônia, México, Japão. “Talvez sejaisso que estou buscando com tanta viagem nos últimos tempos” – disse durante umade suas visitas ao país –, “será que existe um povodesterritorializado que atravessaesses sistemas dere-territorialização capitalística?”126 O Brasil passava por umatransformação radical nos anos 1980. Deixava para trás 20 anos de ditadura militarem direção à abertura política. 1979 foi o ano da anistia e o início do retorno aomultipartidarismo. Em 1982 ocorrem as primeiras eleições diretas para governosregionais. Dois anos depois uma ampla campanha pelas eleições diretas à presidên-cia da república mobilizaria o país inteiro. Mas apenas em 1989, meses depois da promulgação da nova Constituição de 1988, é que a população iria às urnas paraeleger o presidente pela primeira vez desde o Golpe Militar de 31 de março de 1964.

Além das transformações macro-políticas no aparelho estatal que sus-tentava o regime, o Brasil dos anos 1980 foi marcado por um intenso processode formação de agenciamentos micro-políticos e abertura de novos espaços decontestação nos mais diversos setores da sociedade. Uma vez que os canais tra-dicionais da esquerda como sindicatos, diretórios estudantis, ligas camponesas,associações pro ssionais etc. haviam sido suprimidos ou esvaziados pela brutalrepressão imposta pelo governo militar, durante a década de 1970 houve um re-

uxo da dissidência em direção à espaços menos formais de representação e or -ganização popular. Grupos “minoritários” e diferentes movimentos sociais, comdistintas agendas e formas de atuação, começam paulatinamente aparecer na cena pública, engendrando a formação de novos sujeitos políticos e a articulação desubjetividades resistentes à lógica autoritária que era cultivada pelo regime. Nadécada de 1980, estes espaços e sujeitos e subjetividades vieram à tona como uma potência transformadora que então parecia incontornável. Foi justamente esta di-mensão menor das convulsões na realidade política do Brasil, ou melhor – e paraser mais preciso –, foi esta concatenação do processo de re-estruturação político-

126 GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartogra as do desejo. São Paulo:Editora Vozes, p. 375

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154 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

-jurídica do aparelho de Estado e a intensi cação de processos micro-políticos dere-democratização que mobilizou as paixões e viagens de Guattari pelo país du-

rante este período. “O que me parece importante no Brasil” – ele declarou duranteum debate promovido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 1982 na cidade deSão Paulo – “é que não vai ser depois de um grande movimento de emancipaçãodas minorias, das sensibilidades, que vai se colocar o problema de uma organiza-ção que possa fazer face às questões políticas e sociais em grande escala, pois isto já está sendo colocado ao mesmo tempo”127.

Estes e outros registros da viagem de 1982 foram transcritos e compila-dos por Suely Rolnik no livro Micropolítica: cartogra as do desejo, publicado

no Brasil quatro anos mais tarde128

. Entre agosto e setembro daquele ano, acom- panhado por Rolnik, Guattari deambulou por cinco regiões do país, seguindo umintenso calendário de encontros, conferências, entrevistas, mesas redondas e con-versas formais e informais com diversos grupos, movimentos, organizações e in-divíduos que, conforme escreve Rolnik, “institucionalizados ou não, constituíamnaquele momento subjetividades dissidentes”129.

Este talvez seja o único registro das sete viagens que Félix Guattari fezao Brasil durante os últimos 14 anos de sua vida que Suely Rolnik menciona

na introdução de Micropolíticas. Observado com olhos contemporâneos, o livroconverteu-se em um documento histórico, não apenas porque as falas de Guattari,capturadas no uxo das conversas e encontros, prestam testemunho da sua vervecriativa e engajamento político, mas também porque percorrendo a cartogra ade Micropolíticas é possível acessar o exato momento de abertura para um mo-vimento de transformação histórica que parecia se anunciar. Isto é, para além do processo formal de ‘Abertura’, percebe-se que, naquele momento, e a despeito do‘ m da esquerda’ e do ‘ m da história’ que alguns projetavam com a derrocada

nal do bloco comunista e consolidação da hegemonia geopolítica do Império Norte Americano, era possível imaginar outros espaços que não se alinhavamcom a ordem neoliberal que estava sendo implementada. O Brasil dos anos 1980 parecia incubar aquilo que Félix Guattari chamava de “Revolução Molecular”130.

Como se sabe, este momento de abertura, que marcou não apenas o Brasilmas grande parte dos países da América Latina que foram comandados por regi-

127 Micropolíticas, p. 195.128 Micropolíticasfoi recentemente traduzido para o ingles sob o título de Molecular Revolution in Brasil , MIT 2008.129 Micropolíticas, pg. 16130 GUATTARI, Félix. La révolution moléculaire.Fontenay-sous-Bois: Recherches , 1977.

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155Paulo Tavares

mes autoritários durante a Guerra Fria, logo se fechou no longo pesadelo neolibe-ral. Apenas no nal dos anos 1990 e início dos anos 2000 é que houve uma reação

à este “fechamento”, quando vários países do continente passaram novamente porgrandes convulsões políticas que redirecionaram as regras do jogo à esquerda.É por isso que, no prefácio à nova edição Brasileira publicada em 2007, SuelyRolnik escreve que Micropolíticas“ganhou uma dimensão de registros de pistas para uma genealogia do presente”, e não apenas do momento presente em con-texto Latino Americano, mas em escala mundo, uma vez que hoje, por toda partedo globo, o projeto neoliberal dá sinais de completo esgotamento, principalmentenos centros do capital nanceiro do Ocidente, no lugar mesmo onde foi elaborado.

Passados cerca de 30 anos desde sua publicação original e, fundamental-mente, após o Brasil ter vivenciado as “jornadas de junho” de 2013, a situação mu-dou de maneira radical. No atual contexto, a releitura deste registro histórico talvezseja ainda mais relevante, pois carrega consigo uma memória viva que pode lançarnovas bases para se pensar o presente político. Sem nostalgia, rumo às novas “aber-turas” escancaradas pela multidão que veio para ocupar as ruas de nossas cidades.

O projeto Abertura (trilogia da terra) –um vídeo instalação que parte daleitura dos registros da viagem de Guattari em 1982 para pensar os desdobramen-

tos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no Brasil. Observadosdesde o ponto de vista espacial, os agenciamentos micro-políticos articulados du-rante os anos 1980 são mapeados em três escalas – urbana, agrária e territorial –,cada uma delas marcada pelo surgimento de formas de “re-des-territorializaçãodissidentes”. Assim como Guattari o zera, durante o mês de abril de 2012, juntocom o arquiteto André Dalbó, membro do coletivo de arquitetos Grupo Risco131,e o advogado Anderson Santos, integrante da Rede Nacional de Advogados Po- pulares, viajei de sul à norte do Brasil para realizar uma série de conversas com personagens que foram ativos durante o processo de abertura política. Tomandocomo inspiração o registro-colagem elaborado por Suely Rolnik em Micropolíti-cas, trechos destas conversas seguem transcritas abaixo, organizadas de acordocom o diagrama escalar que formata o projeto.

Em escala urbana, conversamos com Ermínia Maricato, uma das prin-cipais protagonistas do movimento de “reforma urbana” durante o processo dere-democratização. Em escala agrária, a conversa foi com Darci Frigo, advogadoque desde os anos 1980 trabalha com a defesa dos direitos humanos de campo-neses envolvidos em con itos pela terra. Por m, zemos uma conversa como jurista Carlos Marés, uma autoridade em direitos territoriais indígenas e ator

131 http://www.gruporisco.org

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156 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

central no processo de elaboração da nova constituição Brasileira de 1988 que, pela primeira vez, reconhece por lei que os povos indígenas gozam de direitos

de autonomia sobre seus territórios originários. Observadas em conjunto, esta tri-logia revela que no centro da ‘revolução molecular’ do Brasil encontrava-se aabertura de um antigo nó colonial – a terra – nó górdio que até hoje, a despeitodas promessas lançadas nos anos 1980, continua sendo a base de sustentação deum sistema excludente e desigual.

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157Paulo Tavares

TERRA: ESCALA: URBANA

Ermínia Maricato: No início dos anos 1960, nós tivemos no Brasil uma mobi-lização da sociedade em torno de propostas de reforma. A principal delas era areforma agrária. Por que é que eu digo que é a principal? Era a principal não sódo ponto de vista do travamento do desenvolvimento econômico e social do país,mas também porque era a que tinha maior apoio da população, de organizaçõessindicais e sociais. E nós tivemos o início da proposta de reforma urbana, que foiarticulada em 1963 num encontro de arquitetos na cidade de Petrópolis, no hotelQuitandinha.

A reforma urbana signi cava o quê, em 1964?

Era principalmente a questão da distribuição de terra urbana. É precisoentender a conjuntura: nós estávamos numa época de avanços, de libertação naAmérica Latina, não é? E muitos arquitetos estavam voltando de Cuba, de ondetrouxeram essa ideia de que é preciso expropriar a terra, libertar a terra de um jogode privatização. A terra sempre foi no Brasil, e na América Latina como um todo,mas no Brasil parece que é uma característica muito forte, o nó que permeia as re-

lações de poder político, econômico e social. Todos esses movimentos que preten-diam reformas profundas no país deram num beco sem saída na Revolução de 64.

Devido à urbanização e industrialização acelerada da década anterior,no início dos anos 1960 o Brasil passava por um forte processo migratório cam- po-cidade, levando ao inchamento das periferias, extrema carência habitacionale falta de infra-estruturas adequadas para acomodar a população migrante. Osarquitetos então começaram a debater e elaborar temas e propostas que visavam

orientar as políticas públicas para o que cou conhecido como “Reforma Urba-na”, isto é, uma série de diretrizes que propunham contornar a precária situaçãode moradia da classe trabalhadora nos centros urbanos, alterando o balanço daconcentração de terra nas cidades. O ponto alto desta articulação foi marcado pelo Seminário de Habitação e Reforma Urbana – SHRU, organizado pelo Insti-tutos dos Arquitetos do Brasil (IAB) em julho de 1963, no Hotel Quitandinha no Rio de Janeiro, e dias depois na sede do IAB de São Paulo.

A proposta de Reforma Urbana fazia parte de amplo espectro de trans-

formações estruturais da sociedade brasileira que ganhavam força com o go-verno trabalhista de João Goulart. Conhecidas como “reformas de base”, estasmedidas reuniam um conjunto de iniciativas no setor nanceiro, scal, adminis-

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158 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

trativo, urbano e, principalmente, a questão da reforma agrária. Em larga me-dida, a deposição de Goulart pelo Golpe Militar de 1964 foi uma resposta para

bloquear este processo de mudança da estrutura política e territorial que estavaem curso no Brasil.

EM: Depois da cassação e da prisão dos arquitetos, passa um certo tempo e surgeo que eu chamo de umanova escola de urbanismo no Brasil. É uma ‘corrente’que vai-se associar aos movimentos sociais, que vai desvendar a cidade real, quevai tirar esse véu, essa invisibilidade e mostrar o tamanho daquela cidade ilegal.Essa escola de urbanismo recupera muito da reforma pré-64. Eu particularmenteentrei nesse movimento de retomar a proposta de reforma urbana a partir de umconvite da Comissão Pastoral da Terra132, em 1979, que dizia “olhe, nós estamossendo procurados por movimentos urbanos e nós não temos essa capacidade delidar com o rural e o urbano, nós achamos que é necessário uma esfera dos movi-mentos urbanos”.

Com o violento processo de urbanização dos anos 1960 e 1970 a cidade setorna um grande palco político de reivindicação

EM: A cidade começa a apresentar movimentos novos no Brasil. Na luta contraa ditadura nós tivemos algumas vitórias, nós tivemos o crescimento dos movi-mentos populares, o crescimento dos movimentos sindicais, a criação da CUT133,a saída dos partidos que estavam clandestinos para a legalidade, a criação do PT.Havia a pastoral operária atuando nas periferias, movimentos de bairro etc. Nós tí-nhamos também os movimentos sociais avançando muito. E nós tivemos a eleiçãode gestões municipais de um novo tipo, que começa a implementar, com a ajudadessa nova escola de urbanismo, políticas que incorporavam a participação social

e incorporavam o que chamávamos de ‘inversão das prioridades’, isto é, tentarresolver esta cidade invisível, dar cidadania para quem não tem. As prefeituras

132 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu durante o Encontro Pastoral da Amazônia,organizado pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) na cidade de Goiânia em junho de 1975. A CPT teve um papel fundamental na luta pela distribuição da terra e melhoriadas condições de vida dos camponeses durante a ditadura militar, e tornou-se um dos principaisespaços articuladores da abertura política.

133 A Central Única dos Trabalhadores (CUT), entidade que reúne os sindicatos e associaçõestrabalhistas no Brasil, foi fundada em 1983 durante o 1º CONCLAT – Congresso Nacional daClasse Trabalhadora, que foi realizado na cidade de São Bernardo do Campo, região industrialda cidade de São Paulo, palco central da luta operária na década de 1970/1980.

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159Paulo Tavares

agiam de uma forma nova, na contramão do que vinha da Europa, da BarcelonaOlímpica, dessa coisa da arquitetura espetacular, do urbanismo do espetáculo... do

m da esquerda, não é?Quando eu assumi a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano(em São Paulo), a secretaria era virada para a cidade legal, ela tinha um bracinholá que tratava das emergências, mas as emergências estavam cada vez mais fre-quentes, não dava para enxergar mais aquilo como emergência. Nós zemos umareversão dentro da secretaria. O que era um apêndice voltado para as pessoas que

cavam sem casa com as enchentes, com os incêndios nas favelas, com as áreasde risco que desmoronavam, com aquele crescimento impressionante de favelas,

isso se tornou o eixo da ação. Era necessário que a gente tratasse a exceção comoregra. Essa era a nossa di culdade, aliás, essa é a di culdade até hoje.

Eu queria conversar sobre essa ideia de participação. Durante a Abertura, háuma demanda por novos espaços organizacionais, uma espécie de micropolí-tica dos novos movimentos sindicais, as pastorais, os movimentos de bairro,e de luta por terra no campo e na cidade. Novos fóruns estão surgindo, novasmaneiras de participação popular, novos espaços políticos. E de repente aparticipação entra no centro do discurso da virada neoliberal.

O consenso de Washington é fechado em 1989. Aí é formalizada a receitaneoliberal. Durante os anos 1980, não vamos nos esquecer, há uma di culdadeem ter recursos para investir, o sistema de nanciamento da habitação, o sistemade nanciamento do saneamento, toda a política que era ligada aos transportesurbanos (o governo federal durante a ditadura teve uma empresa nacional voltadaà política de transporte urbana, coisa que nós não temos novamente até hoje) etc. – tudo isso recua. Inicia-se uma marola que depois se transformou num tsunamique nos afogou literalmente. E é interessante que a esquerda foi crescendo nocampo institucional e caindo no campo da mobilização social. Eu acho que o mdo ciclo implica nisso.

No meu artigo eu escrevi ‘nunca fomos tão participativos’134. Lembroem uma mesa em Vancouver, no Canadá, durante um fórum urbano mundial, adiretora do Banco Mundial fez um discurso emocionado a favor da participaçãoda ação social na esfera pública. Então há um período de ascensão da esquerda, porque o capitalismo tem uma lógica que é de uma inteligência impressionante,

134 Ermínia Maricato, Nunca fomos tão participativos,disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774

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160 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

ele abre espaço para a esquerda no campo institucional, muita liderança sindical e popular entra nesse espaço, se elege ou se emprega nas administrações públicas,

nos gabinetes de políticos e realmente existe um declínio da capacidade ofensivae do poder de ação que os movimentos sociais tinham. E foi com a chegada do PTno poder federal que esse ciclo se completa.

A institucionalização se completa, e a situação realmente ganha uma qua-lidade nova. Mas as políticas não estão melhorando em vários aspectos. Algumasestão, sem dúvida. Eu acho que tirar 13 milhões de pessoas do nível de indigêncianão é pouca coisa. Mas na área que eu conheço bem, a política urbana, nós es-tamos caminhando para uma regressão fortíssima. O centro dessa regressão está

relacionado com a terra. Desde 1963, quando surgiu a reforma urbana, nós nãomudamos o chão. Nós tivemos muito avanço institucional, nós ganhamos umaconstituição que fala das cidades, nós ganhamos o Estatuto da Cidade 13 anosdepois, que era o que os juristas queriam para regular a constituição e para se po-der aplicar a função social da propriedade... mas que nós não estamos aplicando. Nós não mudamos o chão, a base, a raiz do que é a política urbana, que é uso eocupação do solo.

Você sempre volta para a questão da terra...Sempre. É a base… mas com a globalização este nó que era central no perí-

odo colonial, imperial, republicano, ganha uma nova qualidade. Hoje você vê paísescomprando terras na África de maneira brutal... o fato é que a terra adquire novosaspectos, ela continua sendo um nó, mas é um nó diferente, no campo e na cidade.

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161Paulo Tavares

TERRA : ESCALA : AGRÁRIA

Darci Frigo: O capital se territorializou. A terra, ascommodities, agora a pro-dução de bio-massa... são elementos centrais para a reprodução do capital. Na

década de 1980 as pessoas diziam “o campo está cando para trás, um lugar do passado”. Que nada! Hoje o campo é o centro da disputa do capital. A cidade éonde as pessoas estão, mas a disputa está no campo.

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162 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

Como você se envolveu nesta disputa?

Eu sou lho de camponeses, vivi a década de 1970 no campo. Em 1975entrei num Seminário para fazer os estudos do primeiro grau, e segui nessa traje-tória religiosa. Em 1982 eu encontro a Teologia da Libertação, quando estava aquino norte do Paraná, e nós começamos a ter acesso a algumas bibliogra as queeram críticas em relação à própria Igreja. O livro mais importante que eu li nesse período foi “Caminhando se abre caminho” de Arturo Paoli, um padre italiano queestava aqui no Brasil. É um livro muito denso, muito crítico em relação à própriaIgreja. Este livro despertou um outro sentido em relação à proposta para a vidareligiosa e o futuro que ela poderia ter.

O segundo momento desse processo aconteceu em 1984. Eu vim paraCuritiba iniciar os estudos em loso a, ainda na vida religiosa, e descobri quetinha um centro de direitos humanos sendo fundado por um grupo de PastoralUniversitária da Universidade Estadual de Ponta Grossa que estava ligado à Te-ologia da Libertação. Esse grupo se colocou como desa o formar um centro dedefesa dos direitos humanos para enfrentar os problemas ainda ligados à ditaduramilitar, mas também outros problemas que estavam acontecendo na sociedade.Ainda ano de 1984, chega um abaixo-assinado no centro de direitos humanos em

favor do Leonardo Boff, que estava sendo submetido a um silêncio obsequioso pela congregação da doutrina da fé, conduzida pelo Papa anterior, o Ratzinger.

Um frei, que inclusive é meu parente, dizia: “o problema é que existemumas freiras e uns padres que se descaracterizaram completamente, não tem maisnem a identidade religiosa, viraram comunista, estão muito envolvidos com osmovimentos sociais, então tem os excessos”. Este era o discurso para descaracte-rizar o propósito da Teologia da Libertação.

Neste ano eu z minha primeira missão relacionada com o tema de terra

e essas questões de direitos humanos. Havia uma ameaça de despejo dos sem--terra que estavam ocupando o Cavernoso. Eu nem sabia da existência do MST(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Havia a ameaça de despejodeste grupo destas terras e me falaram: “o exército quer despejar os sem-terra evocê tem que ir lá falar com o Bispo de Guarapuava e dizer para o ele falar para ogeneral para não mandar as tropas tirarem os sem-terra de lá.”

Um dos setores que sofreram maior repressão após o Golpe de 1964

foram as ligas camponeses que haviam se formado na década de 1950, principal-mente no Nordeste do país, que então viviam um momento de intensa mobiliza-ção política pela redistribuição da terra. Lideranças foram presas, assassinadas

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163Paulo Tavares

ou levadas ao exílio, e grande parte do movimento foi desarticulado. A questãoagrária voltaria com toda força durante o processo de abertura nos anos 1980.

Uma das principais organizações neste processo foi a Comissão Pastoral da Ter-ra, um braço da Igreja Católica que atuava junto aos camponeses sem-terra por justiça social no campo. O envolvimento de padres, bispos, freis, freiras e ativis-tas ligados à igreja em lutas sociais teve como pano de fundo uma re-articulaçãoradical do discurso e prática da Igreja Católica na America Latina nos anos1960 e 1970 através da Teologia da Libertação, uma vertente de teologia (po-lítica) critica que nasceu da necessidade de aproximar a leitura do evangelho àrealidade desigual que permeava todo o continente, e direcionar a ação pastoral

para a transformação desta realidade. O termo foi originalmente cunhado pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez no livro A teologia da Libertação, publicadoem 1978, e contou com outros expoentes como Jon Sobrino em El Salvador, Juan Luis Segundo do Uruguai e, no Brasil, o frei Leonardo Boff. Na con uência da re--articulação do ativismo da ala progressista da Igreja Católica e o ressurgimentodas organizações camponesas é que vai surgir o Movimento dos TrabalhadoresSem Terra do Brasil, o MST, fundado o cialmente em 1984.

O MST inicia-se com formas táticas de ocupação: não havia o direito à terra,portanto você vai lá ocupar até que esse direito seja implementado. Comovocê enxerga a dimensão política desta prática?

O aspecto político e ético foi sendo construído no processo de inserçãonos debates da própria Teologia da Libertação, com a ideia de que os pobres ti-nham direitos e que os pobres precisariam lutar por esses direitos, e portanto era preciso fazer ações para conquistar estes direitos porque não bastava esperar o

Estado. Havia uma situação insustentável do ponto de vista ético que era a distri- buição da terra. A ocupação de terra vinha como uma resposta a um direito legíti-mo que os trabalhadores tinham de acessar à terra. E o argumento era esse, de queera insuportável que metade da terra agrícola do Brasil estivesse na mão de 1% da população. A ideia de que a gestão desse patrimônio que devia ser coletivo, par-tilhado, era fundamental e nunca foi posta em dúvida em relação a esse processo.

Do ponto de vista legal, nós começamos a trabalhar o aspecto do reco-nhecimento desse direito a partir do que se colocava como uma dívida que deviaser resgatada pelas populações negras, indígenas, camponesas que historicamentenunca tiveram esse direito. A Constituição de 1988 consagrou o princípio da fun-ção social da terra, e essa função social sempre foi colocada como uma questão

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164 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

importante, não é só o direito de propriedade, é o direito de acessar a terra, uma possibilidade de você ter um outro futuro.

Há uma relação muito diferente entre a terra e a territorialidade do latifún-dio, agora do agronegócio, com a relação terra-territorialidade do pequenoagricultor, do camponês. Como você vê essa diferença, e como você interpre-ta essa organização espacial e territorial dentro do MST?

Na Comissão Pastoral da Terra havia um debate – eu me inseri na comissão pastoral da terra em 1986 –, sobre terra de trabalho e terra de negócio. A terra de

trabalho era a terra do camponês, do indígena, do quilombola, do poceiro, terra legí-tima pelo uso que você faz dela. A terra do agronegócio é uma terra para você tirarlucro. Como dizia uma das criadoras do conceito do agroecologia, a Ana Primavesi,o agronegócio trata a terra como um cadáver, mata a terra, trata a terra como umobjeto puro e simples. Já os camponeses e as populações tradicionais, indígenas ouquilombolas, tratam a terra numa outra perspectiva, mais espiritual, mais cultural.

Eu aprendi esse processo na convivência com as pessoas que viviam es- pecialmente no Nordeste e no Norte do país. Porque para nós no Sul, apesar de

termos participado dos movimentos em torno da Teologia da Libertação, a forma-tação da nossa cultura é baseada no paradigma que separa a terra como apenasobjeto de produção, um projeto econômico. Só com o tempo e com a relação comesses outros grupos e vendo outras formas de você cultivar a terra, e especialmen-te a relação com a oresta, é que a gente foi mudando a visão.

No livro As monoculturas da mente135, Vandana Shiva faz uma leiturade como o cristianismo vai sedimentar todo o processo de colonização segundoo qual a Natureza é inimiga de todos esses que se colocam contra o progresso, e

como isso legitimou uma grande violência contra certas populações em todo omundo. A Natureza aparece como aquilo que você limpa porque a terra limpa é olugar do cultivo. Do ponto de vista mais ligado a Teologia da Libertação, o debatesobre a “ética do cuidado” que o Leonardo Boff e outros teólogos vão captar a partir do modo de viver das comunidades indígenas teve um impacto importante.Essa troca de experiências, de “in-culturação”, foi muito importante para todauma geração de militantes.

135 SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente.São Paulo: Gaia, 2003.

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165Paulo Tavares

TERRA : ESCALA : TERRITÓRIO

Carlos Marés: Quando eu estudava Direito nos anos 1960, a questão da antropo-logia era uma questão que se discutia. O Brasil começava a pensar que era latino--americano. E quando a gente começa a discutir a questão latino-americana, osíndios começaram a aparecer. Embora o movimento de esquerda não tinha tantaconsciência da questão indígena, as questões de antropologia apareciam comoteoria.

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166 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

Quando saí do Brasil para o exílio no Chile fui conviver com um ambien-te latino-americano muito mais caracterizado. E embora as esquerdas latino-ame-

ricanas não fossem marcadamente indígenas, isso aparecia no Chile, e tambémaparecia no Peru, na Bolívia. E quando você entra por essa via, todos os processoshistóricos da América Latina sempre esbarram por alguma coisa indígena. Porexemplo, qual é o grande movimento de independência no Peru? Não é a chegadado movimento pelas tropas de San Martín, pelo Sul, e do Simon Bolívar, pelo Norte. O grande momento foi o movimento indígena que começa em 1870. Arevolução mexicana de 1910 é uma revolução que nasce de um índio, que é o Za- pata. E toda a questão do Zapata se alçar numa revolução é uma questão territorial,

indígena-camponesa. O Zapata é o guardador dos documentos que legitimam a propriedade da comunidade. Outro grande marco é a revolução boliviana, de 1952.Diz que foram os mineiros. Bom, os mineiros são índios. Mais de 70% dos minei-ros são índios, eu acho que chega bem perto de 100%. E os camponeses juntos.Ora, os camponeses também são índios. Portanto, são os índios que se rebelam em1952 e fazem uma revolução. As recentes marchas dos mineiros na Bolívia, elassão marchas de índios... Por que é que isso não é explícito? Você começa a dar-seconta que na América Latina há essa exclusão, essa invisibilidade dos índios.

Na minha volta do exílio no nal de 1979 havia já uma ebulição de ummovimento indígena já estava a começar a existir, formada principalmente por al-guns índios intelectualizados que começavam a estruturar uma organização pan-in-dígena desde as cidades. Essa organização se chamou União das Nações Indígenas(UNI). Tinha um nome pretensioso, aliás muito pretensioso, porque era um grupo pequeno de índios intelectualizados, cuja relação com as suas etnias não era umarelação muito simples porque eles não eram propriamente os líderes tradicionais.Pois bem, eu me vinculei a eles trazido pelos antropólogos, e como não tinha muitagente no direito que trabalhasse essa questão, ao contrário, não tinha ninguém, eu praticamente fui levado a trabalhar com o movimento indígena por contingências.

Durante a década de 1970, ignorando a existência das populações e ter-ritórios indígenas, o regime militar implementou um violento projeto de coloni- zação na Amazônia. Pretendia-se sobrepor toda a bacia do Rio Amazonas comuma matriz urbana de proporções continentais, formada por uma série de encla-ves extrativistas, interligados por linhas expressas de comunicação e transporte. Nas margens dos corredores rodoviários, o governo promoveu programas de re--assentamento dos camponeses desterrados pelas fronteira da soja e do latifúndio pecuário com o intuito de ‘absorver’ os efeitos políticos dos con itos de terra que

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167Paulo Tavares

se davam em outras partes do país, principalmente no Nordeste e no Sul. “Umaterra sem gente para uma gente sem-terra”, foi como o General Garrastazu Mé-

dice descreveu a Amazônia em 1970. No nal dos anos 1980, o processo de desmatamento desencadeado poreste “desenho territorial” estava totalmente fora do controle. A oresta entãotornou-se num espaço por onde se reuniram vozes dissidentes à lógica destrutiva gestada durante a ditadura. Dois momentos foram especialmente marcantes nes-te período: a luta dos seringueiros no território do Acre, extremo oeste da Amazô-nia, e o surgimento das organizações indígenas que lutavam pela defesa de seusterritórios. Um dos resultados mais expressivos deste processo cou registrado

na nova Constituição Brasileira de 1988, que legitima e garante o direito dos povos indígenas à autonomia cultural e territorial.

Como foi a discussão em torno da questão indígena no momento da Consti-tuição de 1988?

A participação dos indígenas na Constituição foi muito grande, foi muitoforte. Os indígenas se organizaram para isso. Claro que quando a gente fala nos

indígenas brasileiros é preciso ter em conta que são 220 povos. Desses 220, uma boa parte não tem sequer ideia de que existe estado nacional, não tem ideia. Então,está vivendo a sua vida e está muito bem. Então quando dizemos que os movi-mentos indígenas se mobilizaram, foram alguns povos, os mais próximos, masalguns muito poderosos, como os Kaiapó, por exemplo. Os Kaiapó tiveram uma presença na Constituinte muito forte. Seria muito difícil nós termos um artigo 231na Constituição se não houvesse a presença indígena.

O artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 estabelece que “sãoreconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tra-dições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”.

A Constituição de 1988 abre uma ideia de autonomia territorial para os ín-dios impensável no dia anterior.

As constituições é que constituem um Estado Nação. O Estado Naçãonasce com as constituições. Portanto, a ideia é que só quando estivesse um rom- pimento na constituição é que o Estado Nação estaria modi cado. A convenção

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168 ABERTURA TRILOGIA DA TERRA

169136, que é anterior à Constituição, diz que existem pequenos ou grandes gru- pos dentro das nações que devem ser respeitados como grupos diferenciados. A

Constituição de 1988 assume muito claramente essa posição, dizendo que esses povos têm o direito a continuar a existir como povos, os seus direitos são direitosda sua organização social, da sua cultura etc., tudo isso ligado por um território. Aconstituição brasileira é a primeira, mas não é a única. Praticamente todas as cons-tituições latino-americanas desta época seguem essa linha. Há um rompimento, aConstituição Brasileira de 1988 rompe com uma tradição... Por isso é que se diz“neo-constitucionalismo sul-americano”.

Isto é uma ruptura, mas é também um problema. Porque todos esses di-

reitos estão ligados a um território, são direitos territoriais. Então se você nãoconsegue localizar esses direitos dentro de um território determinado você excluia possibilidade de eles serem exercidos. A questão territorial é uma questão, diga-mos assim, prevalente na de nição de um povo. A gente discutia coisas como se é possível existir povo sem território? Claro que é possível, olhem para os ciganos, por exemplo... Pois bem, sendo as coisas como são, com a Constituição de 1988alguns povos começaram a retomar a busca pelo seu território. Mas que território?Onde é que está? Então recomeçam a retomar a busca pela sua identidade cultural,

antes de mais nada. E a partir da identidade cultural, qualquer lote de terra, qual-quer pedacinho de terra passa a ser o território.Pois quem está fora do território, não teria estas garantias jurídicas. Esta é

uma interpretação rasa, porque a interpretação mais complexa seria agir segundoa necessidade de se restituir esses territórios, reconstituí-los, reorganizá-los. É um processo de organização territorial. Não é pegar o mapa como está hoje. Entre-tanto, todas as decisões são nesse sentido, de consolidar o mapa como está hoje.

O pensamento mais conservador não consegue admitir a ideia de haverterritório indígenas dentro de um Estado-nação...

Porque o Estado tem que restringir o seu próprio controle sobre uma partedo território...

Tem que restringir o controlo porque tem que restringir o controlo sobreaquele povo. Lá é outra história, lá não podem dizer como é que vocês casam, não pode dizer como é o contrato o casamento. Aliás, não diz numa favela, quanto

136 Aprovada em 1989, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o cialmentechamada de Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, é o primeiro instrumento legal internacionalque trata especi camente dos direitos dos povos indígenas e tribais à suas terras originárias.

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169Paulo Tavares

mais num território indígena. En m, lá o Estado não podeimpor o contrato. Emalguns lugares do Brasil a sociedade hegemônica não é a sociedade capitalista

branca. Por exemplo: no Alto Rio Negro a maioria da população é indígena. Umacidadezinha chamada Araweté não tem nenhum branco e falam-se sete línguas di-ferentes. O que é Araweté? É nação brasileira? Não, é território brasileiro apenas porque está marcado no mapa. E não estou falando de um Portugal, é um territórioimenso. Estou falando de Portugal, Espanha e um pedaço da França juntos.

Um grande território que não é um território hegemônico.

Referências

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartogra as do desejo. Petrópo-lis: Vozes, 1986.GUATTARI, Felix. La révolution moléculaire, Fontenay-sous-Bois: Recherches,1977. ___. Revolução Molecular . São Paulo: Brasiliense, 1987.GUTIÉRREZ, Gustavo.Teologia da libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola,1978.PAOLI, Arturo.Caminhando se abre o caminho. Trad. Guido Piccoli. São Paulo: Ed.Loyola, 1979.SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da bio-tecnologia. São Paulo: Gaia, 2003.

Textos da internet

MARICATO, Ermínia. Nunca fomos tão participativos. Disponível em:<http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774>. Acesso em: 12dez. 2013.

Paulo Tavares é um arquitecto e urbanista formado no Brasil. Lecionou na Univer-sidade London Metropolitan, no Laboratório de Culturas Visuais/ Mestrado em Teoria de ArteContemporânea – Goldsmiths, e desde 2008 lecciona no programa de Mestrado no Centro paraInvestigação em Arquitetura – Goldsmiths. No Brasil, paralelamente às suas actividades comoinvestigador/arquitecto, Tavares esteve envolvido com muitas práticas autónomas dos meios

de comunicação desde o nal dos anos 1990. Como resultado a sua prática combina a análisearquitectónica, cartogra as baseadas em meios de comunicação e escrita como modalidadesinterconectadas de leitura espacial/condições ecológicas.

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 171-

A Cidade Multiforme:O caso do Indoamericano 137

Atelier Hacer-CiudadColectivo Situaciones138

Em dezembro de 2010, teve lugar uma ocupação maciça e em princí- pio inesperada do Parque Indoamericano, na Zona Sul de Buenos Aires. O Indo-americano é um dos rostos menos visitados da cidade. Talvez porque nele não sere ecte nenhuma das mensagens retóricas que ambicionam captar o espírito deuma cidade que o cialmente se apresenta como aberta ao turismo, santuário dacultura, meca do cosmopolitismo, cadinho de raças, além de sede de amabilidadecívica e laboratório de criatividade política. Encontramos neste fragmento cru davida urbana chaves para a compreensão do que existe, e do que poderia existir.O presente e os seus possíveis. Os episódios violentos que marcaram a desocu- pação do Parque Indoamericano conjugam num só movimento a procura de terrae habitação ao mesmo tempo que a dinâmica da valorização imobiliária; a acçãodirecta das massas ao mesmo tempo que operações “punteriles”139; o racismo que

137 O texto que se segue é a versão ligeiramente modi cada de algumas páginas que compõemVecinocracia. (Re)tomando la ciudad, investigação levada a cabo pela o cina Hacer-Ciudad,que funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa autogerida por grupos e colectivosmúltiplos e diversos). Fazemos parte da o cina pessoas que participam ou participaram numaou em várias experiências de investigação e acção colectivas (Colectivo Situaciones, SimbiosisCultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos,

cadeiras universitárias alternativas etc.). Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad foi editado porRetazos / Tinta Limón, Buenos Aires, dezembro de 2011.138 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira139 Adjectivo formado a partir de puntero. “Os punteros são militantes do Partido Justicialistacolocados como intermediários entre os recursos federais, provinciais e municipais dentro do bairro (cestas básicas, consultas medicas, vagas em escolas), além de serem os responsáveis pela elaboração das listas de bene ciários dos planos de assistência. Sua capacidade de mo- bilização da comunidade (para actividades politicas peronistas, como comícios) é o que fazcom que tenham maior ou menor acesso aos recursos governamentais” – cf. CARDOZO, Fer-

nanda Soares. Protestar não é delito. A criminalização dos movimentos sociais na Argentinacontemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). Universidade Federal do RioGrande do Sul, Instituto de Filoso a e Ciências Humanas, Porto Alegre, 2008. Disponível em:http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15316/000677668.pdf?sequence=1. O pun-

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172 A CIDADE MULTIFORME

atravessa transversalmente o social, as instituições governamentais e os estereóti- pos mediáticos, ao mesmo tempo que um re orescimento da sacrossanta naciona-

lidade argentina vinculada à defesa da propriedade privada; a violência criminal,civil e policial, ao mesmo tempo que momentos agónicos da vida colectiva ecomunitária; o estatuto do espaço público e a ressigni cação da gura dovizinho (“vecino”).

Bem-vindos à selva urbana!

À cidade dos planos in nitos. Pseudo-ambiente vivo, saturado de infor -mação. Cidade-drama dos processos do comum e da guerra civil dos modos de

vida. Bem-vindos, pois, à agitação urbana do constante jogo de encerramentoe abertura, de ligação e desligação. Cidade espelho – às vezes el / quase sem- pre distorcido – das fórmulas de produção de valor. Cidade biopolítica, enquantoobjecto de mecanismos de apropriação do valor social, enquanto espaço de resis-tências aos mecanismos de controle, enquanto território dinâmico de novas per-cepções e modos de conhecer. Cidade produtiva, fábrica das formas de vida quenela se misturam, se distinguem e se entretecem. Cidade-arca de memórias, desentidos e de con itos. Bem-vindos à própria fábrica da cidade, à fábrica social.

O Indoamericano como problema

Quando falamos do fragmento não nos referimos à parte qualquer partede um todo anterior explodido: falamos de uma situação concreta e problemáticacuja força de realidade nos violenta. Que nos arrasta no processo da sua evolução.Que nos afasta de qualquer abstracção. O fragmento é sempre índice expressivodesta vida urbana.

O fragmento não seria, assim, um estilhaço arbitrário. O fragmento é um

problema essencial captado na sua evolução. Interrogá-lo, penetrá-lo, supõe umconfronto com o concreto em mutação. O fragmento é uma dobra. Que explica,se desdobrado. Que dissimula as suas implicações, se o deixarmos envolto no seuvéu. Contém uma marca cifrada da época e uma potência discordante. Desvelar ofragmento afecta a perspectiva, descobre latências e possíveis.

O fragmento é um todo concreto cujos lamentos tocam outras situações.Do racismo às economias informais; das dinâmicas de ocupação da terra às dinâ-micas da migração; das técnicas biopolíticas dos Estados à propaganda política;

terismo designa assim um sistema de clientelas e caciquismo que procura manter a base popularsob o controle de uma hierarquia político-partidária (N.d.T.).

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173Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones

da codi cação mediática à urbana; das formas submersas de trabalho e de sobre-exploração à precarização do direito à habitação.

O fragmento histórico contém as chaves da compreensão de mutaçõescolectivas maiores. O fragmento é ao mesmo tempouniversal (fala de algumacoisa que se manifesta em muitas outras situações) ecaso concreto (sucede comoepisódio fechado, contextualizado, e mantém sob uma aparência extremamenteempírica uma incógnita urgente).

Do mesmo modo que a investigação do caso promove a investigação política sub-representativa140, o pensamento do fragmento conduz-nos, na com- panhia de Walter Benjamin, a um tratamento diferente do universal. O universal

concreto é uma porção de realidade da qual se pode dizer: “está tudo aí”. Eremete sempre para uma práxis, que não precisa de ser remetida para uma tota-lidade abstracta. Para o fetiche de uma totalidade complexa com as suas media-ções in nitas. Pelo contrário, Benjamin expõe as suas razões a favor da unidadeimediata (monádica) da situação sem necessidade de recorrer a qualquer ciênciaabstracta.

O fragmento émundanidade. Convite a desenvolver práticas de mundo.O fragmento pode abrir, portanto, uma sequência de politização: gosto

pelo episódio (caso); militância de investigação; problematização expressiva (o problema da escrita, ou do discurso das imagens). Fazer cidade. É o que procu-ramos e o que se nos impõe. Porque a cidade supõe e aspira desde sempre a umateoria política, a um jogo que a rma os usos comuns e as suas mutações por meiode uma gestualidade inevitavelmente política. E o gesto político, o convite à es-crita tem sempre por ponto de partida a a rmação da igualdade de potência dossocialmente desiguais.

Como necessidade persistente de cartogra as para nos apropriarmos dacidade como riqueza comum. De uma temporalidade comum. Um ano do In-doamericano sobrepõe-se aos 10 anos de 2001141. As perguntas acumulam-se e

140 “Sub-representativo” possui aqui duas acepções convergentes: a presença de factos e da-dos como potência para dissolver o espaço da representação estatal e mediática (na medida emque a verdade e a justiça avançam juntas, a investigação supõe uma ética contra a criminalidadedo poder) e, ao mesmo tempo, recurso ao “poder do falso”, uma vez que a cção nos ajuda acompreender as camadas mais profundas do que podemos assumir como verdade.141 Ao completar-se uma década da crise que mudou o país para sempre, a nossa perspectiva

não é a da recordação. 2001 não é um ano, mas um princípio activo, uma chave para pensaresta década. 2001, para nós, é quase um método, uma maneira de olhar as coisas vendo-as emmovimento. Neste sentido, a crise torna-se premissa, na multiplicidade das suas signi cações:instabilidade e criação, preocupação e incerteza, abertura e alteração do calendário… Tanto

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174 A CIDADE MULTIFORME

dilaceram-se retrospectivamente. São estas feridas que nos aproximam de umaenunciação comum. Contra a língua neoliberal que separa minuciosamente e por

etiquetas cada um dos estereótipos e as perguntas que não devem misturar-se. Oque nós procuramos é tornar um texto um convite esclarecido sobre o sistema defronteiras, que atravesse guetos urbanos, zonas políticas e temas privados. Não énada fácil. Mas persistimos.

(Re)tomando o indoamericano

Tomamos o Indoamericano como fragmento, caso e situação.Uma célula mínima de realidade observada que equilibra com o seu pró-

prio peso o resto da cidade. O Indoamericano não é um facto excepcional, exceptona medida em que permite apreciar uma complexidade de níveis e dinâmicas quehoje convergem nisso a que chamamos (fazer) cidade. A cidade tem mil planos.Impossível vê-los todos ao mesmo tempo. A opacidade do Indoamericano surgedo encontro entre muitos e muitos destes planos. Não tentamos explicar o Indo-americano a partir de uma análise abstracta e totalizadora da cidade, mas, pelocontrário, propomo-nos pensar melhor a cidade referindo-a imediatamente a essassingularidades, e às tendências e lutas sociais que a constituem. Que singularida-

des são essas?Primeiras hipóteses / O Indoamericano como condensação de problemas/ Nova gestão governamental / Racismo micropolítico / Nova lógica deocupação: expectativas económicas e organização não-tradicional

A ocupação do Parque Indoamericano reúne uma quantidade de proble-mas nos quais se joga boa parte do posterior triunfo eleitoral do candidato da di-reita a “intendente” (presidente do município), Mauricio Macri, na cidade. Esses

dias violentos puseram em evidência a brutalidade das acções do mercado, asreacções racistas e a violência social contida. Não se trata de dizer que o Indoa-mericano seja tão diferente de outras coisas que costumam passar-se na cidade, enoutras cidades, mas é uma situação privilegiada, devido às camadas de questõesque condensa em vista de pensarmos e agirmos na conjuntura da cidade.

Há nesta relação, entre o que aconteceu no Indoamericano e o triunfo deMacri, uma subtil trama micropolítica que poderíamos reconstruir tomando como ponto de partida o pôr em série dos acontecimentos desses dias com as imagens

quando é visível, como quando, como nos tempos de agora, corre como uma corrente subterrâ-nea numa sociedade “normal” ou num país “a sério”.

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difundidas depois pelo macrismo – que vão datransparência obscena dos factosde dezembro de 2010 à estratégia de comunicação e de gestão governamental, es-

tratégia mascarada de um estiloanti-político ingénuo, que explicita um conteúdoracista indisfarçado.A e cácia da operação consiste num deslocamento da signi cação do

público (não por acaso, o Indoamericano é um parque público maioritariamenteusado por migrantes); na visibilização e na gestão de formas (tão odiosas comoefectivas) de produção de cidade; num deslizar dos modos deconstrução política capaz de dar conta da face micropolítica reaccionária sobre a macropolítica dogoverno nacional, cujos enunciados inclusivos e pós-liberais são objecto de uma

suspensão pelos lemas e divisas do governo da cidade (“é bom estar aqui”, “seja bem-vindo”) que transmitem ao nível do imaginário colectivo uma cumplicidadecom a exclusão da ameaça. A ocupação do Indoamericano, ao contrário do quese disse na altura, revela menos aausência do Estado como o facto de, na gestãoterritorial , o próprio Estado (no seu funcionamento ma oso) ser parte do pro- blema. Mas também o mercado intervém na ocupação, uma vez que se trata deum fenómeno que não pode considerar-se à margem do contexto das práticas deespeculação imobiliária.

Pensar a dinâmica própria da ocupação requer uma investigação que devedesprender-se de múltiplos imaginários, por exemplo, o da tradição de ocupaçõescomunitariamente organizadas. Com efeito, as ocupações pertencem a uma formade luta popular promovida e desenvolvida por formas políticas e organizativasque, partindo das necessidades, desenvolveram experiências sociais comunitárias.Todavia, tanto na ocupação do Indoamericano, como em todas as outras ocupa-ções que houve na mesma altura, não podemos situar as coordenadas dessa tradi-ção: a ausência de enunciados e uma narrativa sobre o que acontecia, a di culdadede encontrar interlocutores, e o transbordar da violência tão difícil de interpretar,sugerem-nos que se trata de outro tipo de situação emoldurada num contexto emalta do ciclo económico, em que a renda nanceira se orienta em geral para a terrae para a construção de habitação.

A título de hipótese, portanto, deparamos com dois eixos:uma racionali-dade económica em posta em causa e uma fraqueza por parte dos actores sociais para introduzirem outras dinâmicas alternativas ou comunitárias. Os cálculosdo Indoamericano, verdadeiroconcentrado dos cálculos urbanos, obrigam-nos adesprendermo-nos das representações mais simples e habituais através das quaisse procuram explicar as dinâmicas da cidade.

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176 A CIDADE MULTIFORME

Crédito da imagem: Fotogra as de Sub.Coop, 19 de dezembro de 2012. Cortesia Sub.Coop.

A cidade espontânea? / Ocupações promíscuas / Cálculos / Especulaçãoimobiliária e reivindicação democrática

No fazer cidade, há sempre qualquer coisa de espontâneo. As cidades sãotramas complexas que não podem explicar-se somente através do planeamento(de urbanistas, de governos, de organizações sociais) nem dolivre arbítrio dassuas pulsões vitais. Nas ocupações manifesta-se um estranho paradoxo: a consta-tação de uma organização e, ao mesmo tempo, a sua ausência.

A espontaneidade não signi ca a ausência de inteligência e organização,mas, de uma maneira ou de outra a convergência – emtensão e harmonia – deracionalidades e planos diferentes de acção. Deste modo, podemos pensar a si-multaneidade da organização punteril (dos líderes de bairro)142, nessa negociação política que inclui habitualmente cálculos especulativos de mercado, com pro-cessos menos evidentes, ligados a solidariedades entre os ocupantes, à vontadede alojamento e de terra que, talvez, se a rmasse antes de outro modo, através deoutro tipo de organizações, con uindo hoje numa dinâmica, que adquire um tom promíscuo característico das misturas: autoritarismo e oportunismo a par de mo-

142 Ver a N.d.T. anterior. (N.d.T.)

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mentos de solidariedade e vontade de uma vida melhor. As ocupações são tantomomentos de manipulação ao serviço de negócios e de criação arti cial de climas

políticos, como dinâmicas de reapropriação de espaços urbanos anteriormentecapturados como espaços privados ou públicos para usos precisos. Quando sãoocupados, esses espaços readquirem um carácter comum. Mas, nesse território,que torna a ser comum, desenvolvem-se esses traços de promiscuidade que assi-nalámos, onde funcionam conjuntamente lógicas ma osas mais visíveis e outrasligadas ao querer-viver, menos evidentes.

O paradoxo destes modos de fazer cidade consiste em canalizar os im- pulsos populares e as reivindicações democráticas de terra e alojamento, através

de esquemas políticos tão autoritários como rebeldes, dando lugar a excessos mui-to difíceis de organizar (para os militantes) e de representar (para os políticos). Na província de Buenos Aires sempre houve ocupações. Não se trata de

um fenómeno extraordinário ou de outro planeta. Na realidade, a ocupação deterras é um modo de fazer cidade, e foi assim que se constituiu grande parte daconurbação. Mas os meios de comunicação tratam a capital federal como um ter-ritório privilegiado, ondeessas coisas não acontecem. A mensagem em torno dasocupações do Indoamericano foi clara: na capital, protege-se a propriedade, e os

usurpadores, na sua maioria estrangeiros, são os que a põem em perigo…O problema real é, sobretudo, o do apinhamento. E também a subidado preço dos arrendamentos, que deriva do primeiro problema. Os ‘punteros’143 avisam quando começa a entrever-se a possibilidade de uma ocupação, e os inte-ressados preparam-se para agir. Entre estes incluem-se desde os ‘pibes’ (meninos)apostados na revenda de lotes aos que necessitam de terreno onde possam fazerum lugar para viverem; desde os que aproveitam a ocasião para comprar lotes as-sim que se inicia a ocupação, aos que vêem nela uma oportunidade de adquiriremmais casas para revender ou arrendar.

Os novos bairros compõem-se em geral de paraguaios, bolivianos e perua-nos, que são os que têm mais lhos e estão sempre dispostos a entrar em acção. Jáem Lugano144 se tinham dado ocupações de terras… Algumas. E a reacção racistafoi sempre muito forte. Foi o caso da Villa 20. mas eram ocupações pequenas,comparadas com a do Indoamericano. Nalgumas delas, houve até certo apoio doconsulado boliviano, através do fornecimento de colchões às famílias bolivianasocupantes. Mas a ocupação do Indoamericano foi diferente. Pela escala, sobre-tudo, e também por ter escapado ao controle. Houve um acordo entre o governo

143 Ver a N.d.T. inicial. (N.d.T.)144 Ou Villa Lugano, uma das grandes circunscrições urbanas de Buenos Aires (N.d.T.)

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178 A CIDADE MULTIFORME

da cidade e o do país para recensear os ocupantes e dar-lhes dinheiro (calculoque três mil pesos pelo menos, e há quem fale em oito mil, e quem fale em cinco

mil…) para os fazer abandonar a ocupação. Os ‘punteros’ sabem onde é possívelfazer ocupações, onde há terras que se podem ocupar. Sabem também quando háalguma oportunidade de ocupação temporária, que não poderá ser mantida, mas pode render alguma massa (como neste caso). O ‘puntero’ averigua, tem os seusajudantes e aparece nos bairros encorajando as pessoas à ocupação. Aconselhasobre a melhor maneira de agir, sobre a maneira de proceder à ocupação comrapidez. Sabe de quem são os terrenos, está sempre bem informado, e disposto anegociar e a tentar obter algum benefício… e se for possível car com os terrenos,

tanto melhor. Mas no Indoamericano as coisas não puderam ser controladas. Deum modo geral, as ocupações tendem a transbordar a organização, mas no Indoa-mericano, tratou-se de uma ocupação a uma escala formidável.

Racismo / Classi cação: Vizinhos versus Okupas / Inquérito erecenseamento em tempo real

Se até ao momento imagens como as do Indoamericano têm sido difun-didas e lidas como as de uma “guerra de pobres contra pobres”, devemos admitir

que a intervenção astuciosa do governo municipal de Macri facilitou uma novaoperação hegemónica sobre a cidade. A guerra deixaria de ser entre pobres, pas-sando a ser entreusurpadores e vizinhos. Aos vizinhos cabe defender o ParqueIndoamericano e a Plaza Francia. A equivalência é evidente: o corte não é de clas-se nem étnico-nacional. O problema não é a imigração, mas sim odescontrolo.

Qual é o objecto desta guerra entrecaos e controlo?A riqueza da cidadee o espaço público (hospitais, escolas, parques ameaçados pelosimigrantes). Ascoisas orientam-se assim de tal maneira que a reacção dos vizinhos de Soldati/Lu-

gano, avalizada por boa parte da cidade e das suas instituições, parece consagrarum direito ao racismo145, até ao momento só reconhecido pelo Estado a certas partes e classes da cidade.

145 Tal como costumamos interrogar-nos sobre a lei que dita que acatemos a lei, a obrigaçãode obedecer, interrogamo-nos também sobre o direito que garante a posse de direitos, o direitoa ter direitos. De onde vem esse direito natural, condição primeira da igualdade? Quem reco-nhece e quem garante o direito a ser-se sujeito de direitos, a ser-se cidadão, a ser-se humano?

Pensamos o racismo como a máscara que dissimula e, ao mesmo tempo, explica as desigual-dades subjacentes à plena igualdade promulgada pelos regimes liberais. Mas o racismo não selimita a encobrir e a revelar paradoxalmente, mas produz também muitas outras desigualdades.Desigualdades – se há lugar para estabelecer esta distinção – não de facto, mas de direito. O

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“Em bairros como Lugano I e II, há desde sempre resistências contráriasà construção de habitação para a gente das villas146. A experiência da se ir às com-

pras ao supermercado Coto é su ciente. Vêem-se como são recebidas as ‘tarjetassociales’ (senhas de compras), e como se observa o consumo dos paraguaios e bolivianos. Sobretudo da Villa 20. Que enchem as salitas, as escolas públicas, osupermercado Jumbo, os parques durante os ns de semana. Os espaços públicossão lugares de mistura, de encontros, de preconceitos. A escalada daanimalização vai de formas mais atenuadas, como ‘negros’, a ‘villeros’ e, termo depreciativoentre todos, a ‘bolivianos’”.

Esta mutação de imaginários é estranha. Até certo ponto, os bolivianos

são valorizados segundo uma imagem do trabalhador dócil. Alegoria da migração boa, que se faz a partir de baixo, regenerando valores como o trabalho, o estudo ea família. Mas, em contacto com a “villa”, espaço de uma selvajaria insondável, o boliviano vai-se confundindo com o villero, o negro, o narco.

O governo municipal de Macri dirigia-se em tempo real aos vizinhosem suas casas, perguntando-lhes o que queriam eles que o município zesse. O bairro aprovou que Macri declarasse que, se havia problemas de alojamento, osargentinos deviam ser prioritariamente atendidos. Agora, a guarda está nobairro,

a sua simples presença mudou o estado de coisas. Os guardas garantem a segu-rança durante a noite. Sobretudo nos quarteirões mais violentos onde se começaa vender paco147. Circulam permanentemente, de carro ou a pé. A guarda ocupa olugar de uma autoridade pública armada para travar essa violência desenfreada.

Rede nição reaccionária da gura do migrante / Discurso de Evo /Imigração descontrolada / Macri e os representantescomunitários

De facto, durante a ocupação do Parque Indoamericano o discurso da

imigração usurpadora foi ampliado até ao insuportável. Por um lado, o discur-so dosvizinhos que entraram em acção contra os ocupantes. Por outro lado, as próprias organizações imigrantes e o próprio governo de Evo Morales assumi-

direito ao racismo opera através de uma dialéctica negativa que consiste na auto-atribuição queum grupo se faz do direito a negar direitos. O direito ao racismo deita por terra a pretensa uni-versalidade liberal. Os meus direitos, segundo dita o manual, acabam onde começam os direitosdo outro. Os seus direitos, diz o bom vecino porteño [o bom morador, ou vizinho, de BuenosAires (N.d.T)] aos ocupantes do Parque Indoamericano, acabam aqui.146 O termo villas, ou villas miseria designa, na Argentina, os bairros de lata ou zonas ocupadas pela construção de alojamentos precários. (N.d.T.)147 Pasta de cocaína. (N.d.T.)

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180 A CIDADE MULTIFORME

ram que as comunidades estrangeiras não deviam comprometer a sua imagemem semelhante tipo de acções. Por parte do Estado nacional, a mobilização da

guarda limita-se a con rmar o novo mapa das fronteiras nacionais, que se des-multiplicam no interior de bairros e villas da Zona Sul. A proliferação de umdiscurso abertamente racista, com a plena cumplicidade dos meios de comuni-cação de massa levou o discurso presidencial a referir-se a uma migração boae trabalhadora. Raiando o extremo, o discurso de Macri, dirigente máximo dacidade, referia-se àimigração descontrolada, identi cando as ocupações com onarcotrá co e a delinquência em geral.

A TV titula: ‘vecinos’versus ‘okupas’, mostra imagens de confrontos

na ausência das forças policiais. Por quê esta ausência? As imagens eram de umatolerância inédita perante a violência crua. Havia imagens da Polícia Federal es- pancando as pessoas com violência. Da [força policial] Metropolitana, não erasurpreendente (os seus efectivos ocupavam-se da repressão dos ‘cartoneros’148),mas supunha-se que a Federal estava proibida de usar a violência e de reprimir.Os confrontos prolongaram-se horas a o. Tanta impunidade corrobora uma ca- pacidade de violência, de cuja possibilidade já suspeitávamos, por parte dos vizi-nhos. No Facebook , nas redes argentinas – de vizinhos do bairro – e nas redes de

bolivianos dizia-se a mesma coisa: eram poucos os indignados com a violência,e havia uma maioria que se opunha à ocupação como maneira fácil e irrespon-sável de apropriação de terrenos para construção de alojamentos, bens que aoslocais custam muito trabalho. Incluem-se aqui membros da comunidade bolivia-na, envergonhados de serem associados aos ocupantes. Na realidade, o ParqueIndoamericano não era um lugar utilizado pelas famílias do bairro. Era quaseinteiramente ocupado por migrantes.

No Indoamericano, houve de tudo, mas insistiu-se sobretudo na presençados bolivianos. São os bolivianos que cam até ao m. Os bolivianos tornam-semais visíveis porque se mantêm na parcela que ocupam; não se movem, para quenão lhes roubem o lugar. Os bolivianos são fáceis de expulsar, os ‘pibes’ tiram--lhes os terrenos e, a seguir, vendem-nas (lhas). Os paraguaios, em contrapartida,organizam-se com rapidez; estão preparados para se defenderem e ocupam o terri-tório colectivamente. Os bolivianos agiam cada um por sua conta, isolados ou emfamília, mas não se agrupavam num colectivo. Muitas vezes são ‘pibes’ recém--chegados para trabalhar numa o cina. As organizações bolivianas preocupam-semuito com a sua imagem e condenam tudo o que possa entrar em con ito com os

148 Os cartoneros dedicam-se à recolecção e recuperação de lixos e resíduos. (N.d.T.)

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valores considerados dominantes na cidade. E durante esses dias, condenavam aocupação, para salvaguardar a imagem dos bolivianos…

Mas, além disso, há, entre os bolivianos, uma ruptura profunda do comu-nitário; competição, isolamento… en m, um individualismo bastante exacerba-do. Nestas situações de ocupação observa-se uma mistura muito estranha. Umamistura de assembleia, de espontaneidade e de organização. E não é raro que, emresultado dessa dinâmica, se dêem actos de racismo, às vezes com origem nos próprios lhos dos bolivianos. Nestas ocupações, falta que os bolivianos actuemcom mais força, com mais organização colectiva. Falta uma a rmação mais deci-dida, como acontece noutros casos ou nalgumas movimentações em que se mani-

festam modos de a rmação mais claros… No bairro Samoré organizaram-se ‘bandereadas’ (ruas Escalada e Delle- piane) convocadas pela palavra de ordem: ‘Traz a tua bandeira argentina para de-fender o bairro’. E em vários autocarros que passavam pelo bairro Samoré (o 36,o 50, o 114 etc.), todos os passageiros bolivianos eram obrigados a sair. Quandoos vizinhos cortaram a circulação em Dellepiane, o 36 teve de desviar-se uns 10quarteirões para evitar que fossem espancados os bolivianos que iam no autocar-ro. No 50, foram os próprios passageiros que não deixaram entrar no autocarro

uma boliviana.

Organização do excesso, condução das reivindicações / Oportunismo edisponibilidade / A construção docaso social como forma de negociação

O tipo de organização que protagoniza as ocupações já não é a que identi-camos com outros ciclos de lutas, que se desenvolviam a partir de características

comunitárias (promovidas por grupos militantes e por uma cultura política autó-

noma). Até ao momento, este tipo de lutas não gerou um discurso político próprio.Esta con uência de “punterismo”, aspirações e oportunismos não possui nem asformas herdadas de consistência, nem os valores anteriores. Sabemos o que estetipo de lutas não é. Mas talvez o urgente seja sabermos o que de facto pode, oque de facto é. Quando dizemosoportunismo, fazemo-lo despojando esta noçãodas suas conotações morais. Em contrapartida, falamos dadisponibilidade, por parte dos que participam nestas movimentações, para se darem rapidamente contade uma possibilidade que se abre de obterem um pedaço de terra, uma casa, um projecto. A decisão rápida de participar numa acção colectiva pode acabar mal,mas pode também mudar a vida de alguém da manhã para a noite. Da con uênciaque descrevemos entre organização “punteril” e cálculo de mercado resulta uma

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182 A CIDADE MULTIFORME

organização rápida e exível, na qual coabitam os poderes políticos e dinâmicascompensatórias mais subtis, em que as expectativas das pessoas desempenham

um papel central. Num contexto em que há riquezas para repartir , este tipo de acções con-segue estabelecer negociações rápidas com as esferas o ciais, preocupadas coma paci cação do con ito, abrindo-se sem perda de tempo a negociação entre as partes. Neste esquema, as pessoas referem menos a sua situação a um cenáriode luta e organização colectiva e mais a uma situação pessoal ou familiar. E na perspectiva das instâncias o ciais, trata-se menos de lidar tomando como referên-cia elementos políticos orgânicos e representativos do que de estabelecercasos

particulares.Daí o recurso o recenseamento como primeira e principal operaçãoorganizadora da negociação.A sequência estabelece-se, portanto, a partir da constituição (ocasional)

de uma forte capacidade de acção colectiva, que opera por meio doexcesso e daapropriação directa com o propósito de abrir uma instância de negociação. Umavez aberta a negociação, a capacidade de acção transforma-se em reivindicaçãooucaso, susceptível de enquadramento enquantocaso social . Nesta segunda fase,é fundamental a participação de um funcionalismo – sobretudo a nível dos muni-

cípios – com uma sensibilidade e uma experiência resultantes da participação nasmilitâncias dos movimentos sociais.“Finalmente, e como que num o mais ténue de interesse, surge a inter -

rogação sobre o que se passou com os ocupantes e sobre o porquê de terem sidorecenseados? Como funciona o sistema das pulseiras de controle nos acampa-mentos rodeados pela guarda? As pessoas obtiveram resposta ao seu problemade alojamento? Denúncias recentes apontaram o facto de não se ter avançado nadescoberta dos responsáveis pelos três homicídios que tiveram lugar nos dias dosacontecimentos, enquanto há processos contra os protagonistas sociais da ocupa-ção. Depois tudo se foi silenciando. Não houve mais notícias. Para a maioria, osfactos caíram no esquecimento.

No segundo ou terceiro dia da ocupação, aparecem as famílias que vêmcomprar lotes aos ‘pibes’. ‘Pibes’ que muitas vezes ocupam lotes por conta dos‘punteros’. É todo um mercado que se monta no local. No Indoamericano, haviade tudo. Pessoas que vendiam e pessoas que precisavam de alojamento.

O que é interessante nas ocupações, e o que realmente motiva a mobiliza-ção de todos, é o momento em que chega o Estado ou as empresas com a sua ofer-ta de serviços, fazendo com que as pessoas se unam para recusar a instalação doscontadores destinados a assegurar depois a cobrança desses serviços, como a luz.

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183Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones

É justo ocupar. Porque o direito à habitação está ameaçado. Não há umarelação necessária entre ocupar uma casa e comprar… Mas, de um modo geral,

este discurso não intervém na ocupação; não se faz ouvir, por exemplo, um discur-so contra a propriedade privada, ou de crítica à circunstância de ter de se comprar para se ter acesso ao alojamento”.

Cidade multiforme: excesso, mercado e planeamento

À margem de planos. Não se vive sem criar espaço. Não se vive semdestruir espaço. Os modos de vida que a cidade produz, a cidade que resulta dos

modos de vida, entrelaçam-se, tecem alianças ou combatem-se mutuamente. Omercado joga o seu jogo, limita e potencia essas formas de viver segundo as des-cubra como mais ou menos funcionais nos termos da sua lógica. A cidade excedeo cálculo com o qual mantém uma relação de estranheza familiar. Dar para rece- ber. Gerir. Se a cidade é um entretecido, fazer cidade é a maneira como se concen-tram e se disseminam os percursos dos corpos, as apropriações, as xações e asmobilidades dos que nela estamos, dos que chegam e dos que partem. Há cidadesque urbanizam a injustiça: que segmentam territórios, que se espacializem em

vista da exploração e da distribuição dos corpos, das suas vidas e das suas mor-tes. Nelas ensaiam-se também outros modos de vida, há lutas (as mais diversas)visando produzir situações de justiça urbana. Situações que alteram, reinventam oespaço-tempo, que reorganizam o sentido de uma vida metropolitana, com os seusanonimatos e as suas dores.

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184 A CIDADE MULTIFORME

Créditos: Coletivo Situaciones.

Colectivo Situaciones tem vários anos de experiência compartilhada. Uma forma produtiva de trabalho tem sido a co-investigação ou investigação militante: um modo de fazeralianças para pensar, discutir e problematizar o que entendem por uma vida política. Nessa li-nha, foram decisivos uma série de encontros e trabalhos, como parte do movimento de piquete,de direitos humanos, de camponeses, e de gestão comunitária da educação. A partir da estruturade uma editora própria, aTinta Limón Ediciones, propõem-se a editar e propagar estas discus-sões assim como outras relacionadas com a loso a e a dimensão latino-americana própria do pensamento, exigido pela questão da emancipação. Actualmente encontram-se envolvidos emdiversas iniciativas ligadas à investigação, à edição e ao debate colectivo que procuram, deacordo com as necessidades da época, construir um espaço enquanto comum.

A o cina doAtelier Hacer-Ciudad, funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires(casa autogerida por grupos e coletivos múltiplos e diversos). Fazemos parte da o cina pessoasque participam ou participaram numa ou em várias experiências de investigação e ação cole-tivas (Coletivo Situaciones, Simbiosis Cultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos, cadeiras universitárias alternativas etc.).

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LUGAR COMUM Nº41, pp. 185-

Algumas Considerações acerca daPrática do Mapeamento Coletivo

Iconoclasistas149

Vivemos com uma noção de território herdada da modernidadeincompleta e do seu legado de conceitos puros, muitas vezes

praticamente intangíveis, atravessando os séculos. É o uso do

território, e não o território em si mesmo, que constitui o objeto daanálise social. Trata-se de uma forma impura, de um híbrido, de umanoção que, por conseguinte, requer uma revisão histórica constante.O que tem de permanente é o fato de ser o nosso quadro de vida. O seu entendimento é, pois, fundamental para afastarmos o risco daalienação, o risco da perda de sentido da existência individual ou

coletiva, o risco da renúncia ao futuro.Milton Santos , O Retorno do Território .

Desde tempos passados que a produção de cartogra as foi um dos prin-cipais instrumentos que o poder dominante utilizou para a apropriação utilitáriados territórios – o que inclui não só uma forma de ordenamento territorial, mastambém a demarcação de fronteiras para assinalar as novas ocupações e plani caras estratégias de invasão, de saque e de apropriação do comum. Desta maneira,os mapeamentos que habitualmente circulam são o resultado do olhar que o po-der dominante recria sobre o território, produzindo representações hegemónicasfuncionais nos termos do desenvolvimento do modelo capitalista, descodi cando

o território de maneira racional para enumerar e caracterizar os recursos naturais,as suas características populacionais e o tipo de produção mais e caz para trans-formar em capital a força de trabalho e os recursos. Este olhar cientí co sobre oterritório, os bens comuns, e aqueles que o habitamos é completado através deoutras técnicas que perscrutam o corpo social, como a videovigilância, as técnicas biométricas de identi cação e as fórmulas estatísticas que interpretam situações eoferecem a informação que permite a execução de mecanismos biopolíticos orien-tados para organizar, dominar e disciplinar os que habitam um território.

149 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira.

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186 ALGUMAS CONSIDERAç ES ACERCA DA PR TICA DO MAPEAMENTO COLETIVO

Chamamos “mapeamento colectivo” à apropriação da técnica de mapea-mento a desenvolver em o cinas com a participação de estudantes, organizações

de moradores, movimentos sociais, artistas, comunicadores, e de qualquer um denós que se senta interpelado a pensar colectivamente o seu território. Em muitoslugares da nossa América Latina, a esta técnica chama-se “mapeamento partici- pativo”, denominação que não nos satisfaz completamente, porque consideramosque o “participativo” implica a reunião a qualquer coisa de pré-existente, ao passoque os mapeamentos colectivos se engendram durante o espaço de criação coope-rativa e são representações originais e particulares. Outros conceitos associados aesta modalidade de trabalho são: cartogra a social / crítica / contra-cartogra a /

descartogra a etc. – denominações, todas elas, que têm a sua justi cação própriae que apresentam diferenças válidas e interessantes.Desde o ano de 2008, organizamos o cinas de mapeamento colectivo

(talleres de mapeo colectivo,TMC) juntamente com organizações políticas, mo-vimentos sociais e colectivos culturais, impulsionando um trabalho cooperativoem mapas e planos cartográ cos a partir da concepção e da libertação de uma sé-rie de ferramentas que através da socialização de saberes não especializados e deexperiências quotidianas dos participantes permitem compartilhar conhecimentos

em vista da viabilização crítica das problemáticas mais prementes do território,identi cando responsáveis, conexões e consequências. Este olhar amplia-se no processo de rememoração e sinalização de experiências e espaços de organizaçãoe de transformação, visando tecer redes de solidariedades e de a nidades. A partirdo trabalho colectivo é construído um panorama complexo sobre o território, que permite distinguir prioridades e recursos quando chega o momento de se projecta-rem práticas transformadoras que em seguida adoptam diversos cursos de acção.

Os TMC potenciam a elaboração de narrativas colectivas críticas nasquais a re exão a partir de um mapa permite articular processos de territoriali-zação. Os mapas funcionam como ferramentas que geram instâncias de trabalhocolectivo e devem permitir a elaboração articulada de programas e narrativas quecontestam e impugnam os estabelecidos a partir de diversas instâncias hegemó-nicas (não só políticas, sociais e institucionais, mas também as correspondentes àopinião pública e aos meios de comunicação de massa, bem como as associadasao nível das crenças, decretos e formas do senso comum).

Assim, o mapeamento colectivo é um modo de elaboração e de criaçãoque subverte o lugar de enunciação desa ando as narrativas dominantes sobre osterritórios para transformar a invisibilidade de saberes, situações e comunidadesem narrativas colectivas críticas. Quando falamos de território, estamos a aludir

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187Iconoclasistas

não só ao espaço que nos serve de suporte, mas também ao corpo social e às sub- jectividades rebeldes. Um dos desa os de trabalhar com mapas é a possibilidade

de abrir um espaço de discussão e de criação que não se feche sobre si mesmo,mas que se posicione como um ponto de partida disponível para ser retomado por outros, um dispositivo apropriado que construa conhecimento, potenciando aorganização e a elaboração de alternativas emancipatórias.

Não há requisitos nem condições exigidos para a participação nas o ci-nas, porque todos temos a capacidade de noselevarmos acima do nosso território,operando um sobrevoo que, a partir da memória, nos permita re ectir e sinalizardiversas temáticas. Deste modo, a criação crítica activa-se a partir da conversa e

da narrativa de experiências, conhecimentos e pareceres, potenciando a escuta,aguçando os sentidos e focando o trabalho sobre uma plataforma comum. Naso cinas aprofundam-se as diferentes formas de compreender e sinalizar o espaço, pondo à disposição dos participantes vários tipos de linguagem – como símbolos,grá cos e ícones – que estimulam a criação de colagens, frases, desenhos, instru-ções, ao mesmo tempo que tudo isso favorece o desenvolvimento de modalidadesde produção várias, que não obstruem a diversidade de olhares culturais, sociais e políticos dos participantes na o cina, mas que antes permitem a construção de um

horizonte colectivo a partir do qual pensar e agir visando o bem comum.Para o mapeamento colectivo poderão ser retomadas representações he-gemónicas (como um mapa cadastral com fronteiras pré-desenhadas), uma vezque será depois subvertidas no processo de socialização dos saberes, potenciandoa visibilização dos diversos olhares que operam sobre o espaço. Se se dispuser detempo para tanto, os mapas poderão também ser desenhados à mão jogando comas fronteiras e as formas; mas é importante esclarecer que o retomar de um mapao cial é uma questão chave, por exemplo, em situações de reterritorializaçãoempreendidas com comunidades de origem, nas quais a necessidade de sinalizarcom exactidão a partir das fronteiras o ciais se torna premente no momento deusar essa informação como parte de uma exigência de reconhecimento territorialapresentada ao Estado nacional (o caso arquetípico é o processo que arrancou nocomeço dos anos 1990 no Brasil).

As o cinas integram uma instância de ‘pôr em comum’ que se torna fun-damental no momento de expor narrativas de grupo, de relevar diferenças e deconstituir horizontes de abordagem e de compreensão. Todos tomam a palavra num processo de socialização e de identi cação do comum em vista de um agir articu-lado. Assim, os TMC con guram-se como espaços de formação de comunidadestemporais que permitem a elaboração de estratégias e de práticas orientadas para o

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188 ALGUMAS CONSIDERAç ES ACERCA DA PR TICA DO MAPEAMENTO COLETIVO

conhecimento colectivo e a transformação social. As o cinas, tanto no seu processode construção como no que se refere aos resultados, funcionam em primeira instân-

cia como dinamizadores lúdicos que depois se autonomizam a partir da autogestãode desejos e de necessidades dos grupos, a m de recriarem um protagonismo dedesa o que se visibiliza na heterogeneidade das vozes colectivas participantes.

O mapeamento colectivo é uma ferramenta lúdico-política e não estáisento de ambiguidades. É preciso ter em conta que o conhecimento crítico quesurge das o cinas, se cair em mãos erradas, pode ser utilizado para vulnerabili-zar os direitos dos participantes. Por isso, se se decidir construir uma ferramentacomunicacional a partir do mapeamento e dar-lhe difusão pública, a informação

incluída deverá ser objecto de um consenso prévio. Os mapas são criados a partirda multiplicidade dos participantes e devem adquirir a forma e os objectivos dosseus criadores, circulando a partir das necessidades, das narrativas e das inquieta-ções das comunidades, organizações e movimentos participantes.

Outro aspecto a considerar é que os mapas mostram um instantâneo domomento em que se realizaram e não repõem na sua completude uma realidadesempre problemática e complexa, mas transmitem antes uma determinada con-cepção colectiva sobre um território sempre dinâmico e em permanente mudança,

onde as fronteiras (reais e simbólicas) adquirem um carácter relacional e uido esão continuamente alteradas pela activação de corpos e subjectividades. Por isso,a elaboração de mapas deve fazer parte de um processo maior, constituir umaestratégia mais num processo de organização colectiva, ser um ‘meio para’ a re-

exão, a socialização de saberes e de práticas, o impulso à participação colectiva,o trabalho com subjectividades diversas, a disputa em espaços hegemónicos, entreoutras possibilidades.

Em 2011, integrámos nos TMC o traçado de uma série de suportes grá-cos que nos permitiram alargar o olhar a outros estratos que não correspondem

exclusivamente ao espacial-geográ co. Chamamos-lhes “dispositivos múltiplos”(DM) porque consistem em mecanismos de re exão e criação colectivas cuja con-cepção e maquetagem variam, e que vamos adaptando, modi cando e aperfeiço-ando de acordo com as diversas modalidades do território e as preocupações detrabalho dos participantes na o cina. Alguns deles são:

■ Linhas de tempo e rugosidades: permitem a identi cação e o relevar defactos signi cativos, personagens chave, políticas públicas e sublevações;

através da utilização de símbolos, alegorias e signos que ilustram e acom- panham as precisões elucidativas. As rugosidades são trabalhadas na se-quência de um processo de construção de mapas críticos e de linhas de

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189Iconoclasistas

tempo, através de uma transparência que permite relevar colectivamentevínculos entre umas e outros, visibilizando conjunções, transformações

e embates entre planos temporais (históricos) e espaciais (geográ cos). ■ Representações discursivas: construção de planos hegemónicos associa-dos ao discurso dos meio de comunicação de massa, da publicidade e de‘o que se diz na rua’, quer dizer, o nível do senso comum que impregna osocial e se exprime nessas frases e comentários naturalizados.

■ Constelações: colocação de transparentes sobre as cartogra as ou osdispositivos múltiplos para assinalar as resistências e os processos detransformação e de mudança através da utilização de cartões coloridos

com diversas formas. O que potencia a criação de ‘imaginários’ ondeadquirem protagonismo as diversas subjectividades permitindo pensar ossímbolos e os protagonistas da nossa história assumidos pelas identida-des rebeldes.

■ Deriva urbana com instruções: realização de percursos em pequenos gru- pos e intervenção durante o trajecto: Mapeamento em movimento (mar-cando lugares, situações, experiências, momentos etc., segundo um eixotemático) e fotogra as panorâmicas (capturando paisagens urbanas que

complexi quem e articulem diversas problemáticas associadas). ■ A cidade e os sentidos: intervenção individual sobre um mapa, identi-cando as zonas ou os lugares de trânsito quotidiano pela cidade e pondoem jogo a memória afectiva que a na os sentidos de modo a interviratravés de ícones no que se escuta, sente, cheira, vivencia ou percebe;identi cando lugares, instituições, momentos; o que de signi cativo dá prazer ou causa mal-estar.

■ Paisagens reveladoras: criação de uma colagem fotográ ca em vista daconstrução de panoramas urbanos que ponham em evidência uma varieda-de de problemáticas complexas e associadas. Intervenção posterior sobrea imagem através da inscrição de detalhes que situam, ampliam ou refe-renciam a paisagem detectando responsáveis, causas, a situação actual etc.

■ Corpo/Disciplina, imposição e controle: sinalização operada sobre -guras humanas visando identi car o modelo e o impacto dos discursos,situação e instituições hegemónicas; considerando os dispositivos urba-nos de controle (câmaras, radares), as instituições disciplinares (trabalho,hospital, escola), a violência (polícia, segurança privada), as imposiçõessociais, as frases publicitárias, as enfermidades físicas, a incorporação denovas tecnologias como próteses de identidade ou de personalidade etc.

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190 ALGUMAS CONSIDERAç ES ACERCA DA PR TICA DO MAPEAMENTO COLETIVO

A utilização de DM facilita e potencia o exercício de revelação colectivafocado sobre diversas temáticas e problemáticas referidas a um território particu-

lar. A con guração destes dispositivos surge muitas vezes do improviso que se promove no espaço da o cina e que activa a experimentação de recursos a partirdas particularidades subjectivas dos participantes. Estes mecanismos geram umsistema de socialização da informação e das experiências sustentado por uma co-municação dialógica que estimula a participação e põe em cena um olhar crítico ealerta sobre o acontecer naturalizado.

O mapa não é o território

Alfred Korzybsky (aristocrata polaco e fundador da semântica geral)cunhou a frase que gura como título deste texto a partir da sua experiência comoo cial na Primeira Grande Guerra, na ocasião em que dirigiu uma ofensiva desas-trosa durante a qual os soldados que comandava acabaram por cair numa vala quenão aparecia no mapa. Gregory Bateson (antropólogo e linguista norte-america-no) completou esta frase com a precisão “e o nome não é a coisa nomeada”. O queos dois autores tentavam exprimir é a impossibilidade de objectivar as dimensõessigni cativas e afectivas dos espaços e das representações linguísticas.

O vínculo com o território consolida-se a partir de processos de inter- pretação, de sensação e de experiências próprias. Os mapas não são o território porque lhes escapa a subjectividade dos processos territoriais, as representaçõessimbólicas e os imaginários que se lhes referem, e a mutabilidade permanente e amudança a que estão expostos. Somos nós, as pessoas, que realmente criamos etransformamos os territórios, e não há uma mimese entre a materialidade espacialdos mapas e a percepção imaginária sobre o território, porque este é uma constru-ção colectiva, moldado a partir das formas subjectivas do habitar, do transitar, do

perceber, do criar e do transformar.Entendemos que as sociedades actuais são marcadas por uma precariza-ção da existência que penetra a vida em múltiplos aspectos: atravessando a con-

guração urbana como um farol de vigilância, quebrando os laços sociais atravésda retórica do medo, minando os direitos sociais mais básicos nas instituições pú- blicas, tornando no imaginário colectivo carne a violência simbólica, degradandoa experiência do comum e obturando as formas perceptivas no abismo da ansieda-de. É por isso que através das o cinas de mapeamento colectivo e de dispositivos

múltiplos procuramos recriar colectivamente panoramas complexos que aprofun-dem os olhares críticos e potenciem subjectividades alertadas e emancipatórias,imprescindíveis para a protecção dos bens comuns contra o saque e a depredação,

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para a luta contra os processos de colonização e privatização do público, e para aconstituição de novos mundos.

Sabemos que partimos de um limite ao trabalhar com mapas, uma vezque estamos a tentar recortar um olhar sobre realidades que não são estáticas, masse encontram em permanente mudança. É por isso que adicionamos aos planoscartográ cos a concepção de dispositivos múltiplos que sinalizem uxos, proces-sos, conexões, planos subjectivos, plataformas corporais etc., incluindo modosde expressão e de representação populares, simbólicos, e de forte presença ima-ginativa. Estas ferramentas não produzem transformações por si mesmas, masarticulam-se num processo de organização e de prática colectiva complexo e pro-

fundo que é potenciado a partir do trabalho cooperativo nestes suportes grá cos.Trabalhamos a partir do território para potenciar os laços de solidarie-dade e de acção comum. Às experiências das o cinas somam-se as derivas im- pensadas adquiridas pelos recursos, metodologias e dinâmicas socializados, quesão retomados pelos participantes promovendo formas de autogestão em espaços próprios. As o cinas estimulam a criação de novas territorialidades, recriam es- paços vividos críticos, desvelando sentidos impostos e paisagens hegemónicas,que estimulam a intervenção e o protagonismo na mudança. Assim, os processos

de territorialização intervêm no espaço e no tempo, alteram as imagens naturali-zadas, contestam a conformidade da interiorização das narrativas hegemónicas, etrabalham a partir do passado como forma de potenciar uma memória colectivaque recuse o discurso o cial.

Iconoclasistas é um duo formado em 2006 por Pablo Ares (artista, animador delme, cartoonista e designer grá co) e Julia Risler (professora e investigadora da Universidade