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Edição nº 009 - Junho 2010 Edição nº 009 - Junho 2010 Edição nº 009 - Junho 2010 Edição nº 009 - Junho 2010 Edição nº 009 - Junho 2010 1

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Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010

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Direção/CoordenaçãoCoordenação da Editora UNEMATOrganizaçãoProjeto Gráfico/Diagramação/CapaRevisãoRevisão de abstracts

Agnaldo Rodrigues da SilvaMarilda de Fátima DiasTaisir Mahmudo KarimJaime Macedo FrançaMaristela Cury SarianCarla Cristina de Paula

Copyright © 2010 / Editora UnematImpresso no Brasil - 2010

Ficha Catalográfica elaborada pela Coordenadoria de BibliotecasUNEMAT - CáceresISSN: 1806-0331

EDITORA UNEMATAv. Tancredo Neves, 1095 - Cavalhada - Cáceres - MT - Brasil - 78200000Fone/Fax 65 221 0080 - www.unemat.br - [email protected]

TTTTTodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Aeservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Aeservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Aeservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Aeservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Aviolação dos direitos de autor (Lviolação dos direitos de autor (Lviolação dos direitos de autor (Lviolação dos direitos de autor (Lviolação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Pei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Pei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Pei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Pei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.enal.enal.enal.enal.

Revista ECOS. Literaturas e Linguísticas.Coordenação de Agnaldo Rodrigues da Silva (Revista do Ins-tituto de Linguagem). Cáceres-MT : Editora Unemat, 2010.

255 p.1. Literatura 2. Linguística

Semestral (Ref.: Julho 2010 - Dezembro 2010) Ano 7, n. 9

CDU: 81

Índices para catálogo sistemático

1. Literatura - 822. Linguística - 81

REVISTA ECOS - INSTITUTO DE LINGUAGEMAv. Tancredo Neves, 1095 - Cavalhada - Cáceres MT - Brasil - 78200000Tel: 65 223 0104 - [email protected]

FAPEMAT - FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MATO GROSSORua 03 s/n - 3° andar - C.P.A. CEP 78050-970 - Cuiabá - MTTel 65 3613 3500 - Fax 65 3613 3502 - Prédio do IOMAT

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ANO VII, NANO VII, NANO VII, NANO VII, NANO VII, NO O O O O 9 9 9 9 9ISSNISSNISSNISSNISSN: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331

REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA ECOSA ECOSA ECOSA ECOSA ECOS

Indexação:Sumários de Revistas Brasileiras (sumarios.org)

Fundação Biblioteca NacionalCapes/Qualis

Entre poesias, prosas e discursos

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Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010

Agnaldo José Gonçalves – UNESPÁgueda Aparecida Cruz Borges - UFMTAna Antônia de A. Peterson - UFMTAna Maria Di Renzo –UNEMATBenjamin Abdala Junior –USPCélia Maria Domingues da Rocha Reis - UFMTEduardo Guimarães - UNICAMPElizete Dall’Comune Hunhoff - UNEMATElza Assumpção Miné - USPIsaac Newton Almeida Ramos - UNEMATJosé Camilo Manusse – Universidade Eduardo Mondlane/MoçambiqueJosé Carlos Paes de Almeida Filho - UNICAMPLiliane Batista Barros - UFPALuiz Francisco Dias - UFMGMaria dos Prazeres Santos Mendes – PUC/USPMário César Leite - UFMTMónica Graciela Zoppi Fontana – UNICAMPNelly Novaes Coelho - USPRita de Cássia Natal Chaves - USPTaisir Mahmudo Karim - UNEMATTânia Celestino de Macedo – USP/UNESPValdir Heitor Barzotto – UNESP/USPVera Lúcia da Rocha Maquêa - UNEMATYasmin Jamil Nadaf - Academia Mato-Grossense de Letras

CONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITORIALORIALORIALORIALORIAL

Agnaldo Rodrigues da Silva - UNEMAT (Presidente)Elza Assumpção Miné - USPInocência Mata – Universidade Nova de Lisboa/PortugalJosé Camilo Manusse – Universidade Eduardo Mondlane/MoçambiqueManoel Mourivaldo Santiago Almeida – UFMT/USPMaria dos Prazeres Santos Mendes – USP/PUCMaria Fernanda Antunes de Abreu – Universidade de Lisboa/PortugalMónica Graciela Zoppi Fontana - UNICAMPRoberto Leiser Baronas - UFSCarTaisir Mahmudo Karim - UNEMATTânia Celestino de Macedo – UNESP/USPValdir Heitor Barzotto – USP/UNESP

CONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULTIVTIVTIVTIVTIVOOOOO

Universidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoReitorVice-ReitorPró-Reitoria de Ensino de GraduaçãoPró-Reitoria de Pesquisa e Pós-GraduaçãoPró-Reitoria de Extensão e CulturaPró-Reitoria de Planej. e Desenv. InstitucionalPró-Reitoria de AdministraçãoPró-Reitoria de Gestão Financeira

Taisir Mahmudo KarimElias JanuárioAgnaldo Rodrigues da SilvaCarolina Joana da SilvaEvanil de Almeida CardosoWeily Toro MachadoAnapaula Rodrigues VargasWilbum de Andrade Cardoso

DIRETDIRETDIRETDIRETDIRETOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUAAAAAGEMGEMGEMGEMGEM Ana Maria Di Renzo

Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010Edição nº 009 - Junho 2010

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

LITERALITERALITERALITERALITERATURATURATURATURATURA

POÉTICA DO SILÊNCIO – ASPECTPOÉTICA DO SILÊNCIO – ASPECTPOÉTICA DO SILÊNCIO – ASPECTPOÉTICA DO SILÊNCIO – ASPECTPOÉTICA DO SILÊNCIO – ASPECTOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOSOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOSOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOSOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOSOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS......................................11......................................11......................................11......................................11......................................11Agnaldo Rodrigues da SilvaTaisir Mahmudo KarimMIOPIA E UTMIOPIA E UTMIOPIA E UTMIOPIA E UTMIOPIA E UTOPIAOPIAOPIAOPIAOPIA EM EM EM EM EM OS TOS TOS TOS TOS TAMBORES DE SÃO LAMBORES DE SÃO LAMBORES DE SÃO LAMBORES DE SÃO LAMBORES DE SÃO LUÍSUÍSUÍSUÍSUÍS E A E A E A E A E A GLGLGLGLGLORIOSA FORIOSA FORIOSA FORIOSA FORIOSA FAMÍLIAAMÍLIAAMÍLIAAMÍLIAAMÍLIA..............................23..............................23..............................23..............................23..............................23Ana Lúcia Gomes da Silva RabechiA CASA EM RUÍNAS COMO REPRESENTA CASA EM RUÍNAS COMO REPRESENTA CASA EM RUÍNAS COMO REPRESENTA CASA EM RUÍNAS COMO REPRESENTA CASA EM RUÍNAS COMO REPRESENTAÇÃO DO CONFLITAÇÃO DO CONFLITAÇÃO DO CONFLITAÇÃO DO CONFLITAÇÃO DO CONFLITO FO FO FO FO FAMILIAR NOS ROMANCESAMILIAR NOS ROMANCESAMILIAR NOS ROMANCESAMILIAR NOS ROMANCESAMILIAR NOS ROMANCESOS DOIS IRMÃOSOS DOIS IRMÃOSOS DOIS IRMÃOSOS DOIS IRMÃOSOS DOIS IRMÃOS, DE GERMANO ALMEID, DE GERMANO ALMEID, DE GERMANO ALMEID, DE GERMANO ALMEID, DE GERMANO ALMEIDA, E A, E A, E A, E A, E DOIS IRMÃOSDOIS IRMÃOSDOIS IRMÃOSDOIS IRMÃOSDOIS IRMÃOS, DE MIL, DE MIL, DE MIL, DE MIL, DE MILTTTTTON HAON HAON HAON HAON HATTTTTOUMOUMOUMOUMOUM11111...............33...............33...............33...............33...............33Antonio Aparecido MantovaniPERIÓDICOS OFICIAIS BRASILEIROS E IMPRENSA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LONDRES....53PERIÓDICOS OFICIAIS BRASILEIROS E IMPRENSA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LONDRES....53PERIÓDICOS OFICIAIS BRASILEIROS E IMPRENSA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LONDRES....53PERIÓDICOS OFICIAIS BRASILEIROS E IMPRENSA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LONDRES....53PERIÓDICOS OFICIAIS BRASILEIROS E IMPRENSA DE LÍNGUA PORTUGUESA EM LONDRES....53Benedita de Cássia Lima Sant’Anna¹AUTÓPSIA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA..................................................................73AUTÓPSIA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA..................................................................73AUTÓPSIA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA..................................................................73AUTÓPSIA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA..................................................................73AUTÓPSIA DA GUERRA COLONIAL EM ANGOLA..................................................................73Lola Geraldes Xavier“EST“EST“EST“EST“ESTAMOS INDO SEMPRE PAMOS INDO SEMPRE PAMOS INDO SEMPRE PAMOS INDO SEMPRE PAMOS INDO SEMPRE PARA CASAARA CASAARA CASAARA CASAARA CASA”””””RADURADURADURADURADUAN NASSAR, NOAN NASSAR, NOAN NASSAR, NOAN NASSAR, NOAN NASSAR, NOVVVVVALIS E O DEVIR NO ALIS E O DEVIR NO ALIS E O DEVIR NO ALIS E O DEVIR NO ALIS E O DEVIR NO BILDUNGSROMANBILDUNGSROMANBILDUNGSROMANBILDUNGSROMANBILDUNGSROMAN......................................................................................................................................................................................................................................9191919191Maria José Cardoso LemosA ESTÉTICA DO LABIRINTA ESTÉTICA DO LABIRINTA ESTÉTICA DO LABIRINTA ESTÉTICA DO LABIRINTA ESTÉTICA DO LABIRINTO NA PRODUÇÃO PO NA PRODUÇÃO PO NA PRODUÇÃO PO NA PRODUÇÃO PO NA PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS E JOARA CRIANÇAS E JOARA CRIANÇAS E JOARA CRIANÇAS E JOARA CRIANÇAS E JOVENSVENSVENSVENSVENS..............................107..............................107..............................107..............................107..............................107Maria Zilda da CunhaENTRE O MEDO E A ESPERANÇAENTRE O MEDO E A ESPERANÇAENTRE O MEDO E A ESPERANÇAENTRE O MEDO E A ESPERANÇAENTRE O MEDO E A ESPERANÇA: UMA F: UMA F: UMA F: UMA F: UMA FAAAAACE DE LCE DE LCE DE LCE DE LCE DE LUUUUUANDANDANDANDANDA SOB A PENA DE MANUEL RUI.......127A SOB A PENA DE MANUEL RUI.......127A SOB A PENA DE MANUEL RUI.......127A SOB A PENA DE MANUEL RUI.......127A SOB A PENA DE MANUEL RUI.......127Marinei AlmeidaO HIAO HIAO HIAO HIAO HIATTTTTO DO PRESENTEO DO PRESENTEO DO PRESENTEO DO PRESENTEO DO PRESENTE.....................................................................................................149.....................................................................................................149.....................................................................................................149.....................................................................................................149.....................................................................................................149Milena MagalhãesA POÉTICA DE SEBASTIÃO UCHOA POÉTICA DE SEBASTIÃO UCHOA POÉTICA DE SEBASTIÃO UCHOA POÉTICA DE SEBASTIÃO UCHOA POÉTICA DE SEBASTIÃO UCHOA LEITEA LEITEA LEITEA LEITEA LEITE: IMPUREZAS E DESDOBRAMENT: IMPUREZAS E DESDOBRAMENT: IMPUREZAS E DESDOBRAMENT: IMPUREZAS E DESDOBRAMENT: IMPUREZAS E DESDOBRAMENTOSOSOSOSOS......................169......................169......................169......................169......................169Rosana Nunes AlencarDESLDESLDESLDESLDESLOCAMENTOCAMENTOCAMENTOCAMENTOCAMENTO E IDENTIDO E IDENTIDO E IDENTIDO E IDENTIDO E IDENTIDADEADEADEADEADE: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA POÉTICA DE MANOEL: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA POÉTICA DE MANOEL: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA POÉTICA DE MANOEL: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA POÉTICA DE MANOEL: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA POÉTICA DE MANOELDE BARROS.......................................................................................................................183DE BARROS.......................................................................................................................183DE BARROS.......................................................................................................................183DE BARROS.......................................................................................................................183DE BARROS.......................................................................................................................183Sandra Aparecida Fernandes Lopes Ferrari

EDITEDITEDITEDITEDITORIALORIALORIALORIALORIAL......................................................................................................................................07......................................................................................................................................07......................................................................................................................................07......................................................................................................................................07......................................................................................................................................07

LINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICAANDORINHA, ANDORINHA................................................................................................197ANDORINHA, ANDORINHA................................................................................................197ANDORINHA, ANDORINHA................................................................................................197ANDORINHA, ANDORINHA................................................................................................197ANDORINHA, ANDORINHA................................................................................................197Eduardo GuimarãesPROCEDIMENTPROCEDIMENTPROCEDIMENTPROCEDIMENTPROCEDIMENTOS METOS METOS METOS METOS METODOLÓGICOS DO ODOLÓGICOS DO ODOLÓGICOS DO ODOLÓGICOS DO ODOLÓGICOS DO ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT: O DOCUMENT: O DOCUMENT: O DOCUMENT: O DOCUMENT: O DOCUMENTADOR, O INFORMANTEADOR, O INFORMANTEADOR, O INFORMANTEADOR, O INFORMANTEADOR, O INFORMANTEE A ENTREVISTE A ENTREVISTE A ENTREVISTE A ENTREVISTE A ENTREVISTA.................................................................................................................209A.................................................................................................................209A.................................................................................................................209A.................................................................................................................209A.................................................................................................................209José Leonildo LimaCássia Regina TomaninValéria Faria CardosoSÓ DE SACANAGEM... VOU NADAR EM OUTRO RIO..........................................................221SÓ DE SACANAGEM... VOU NADAR EM OUTRO RIO..........................................................221SÓ DE SACANAGEM... VOU NADAR EM OUTRO RIO..........................................................221SÓ DE SACANAGEM... VOU NADAR EM OUTRO RIO..........................................................221SÓ DE SACANAGEM... VOU NADAR EM OUTRO RIO..........................................................221Roziner GuimarãesANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSOANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSOANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSOANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSOANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, GRAMÁTICA SISTÊMICO, GRAMÁTICA SISTÊMICO, GRAMÁTICA SISTÊMICO, GRAMÁTICA SISTÊMICO, GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL E REALISMO-FUNCIONAL E REALISMO-FUNCIONAL E REALISMO-FUNCIONAL E REALISMO-FUNCIONAL E REALISMOCRÍTICO: ABORDAGENS TRANSDICIPLINARES...................................................................241CRÍTICO: ABORDAGENS TRANSDICIPLINARES...................................................................241CRÍTICO: ABORDAGENS TRANSDICIPLINARES...................................................................241CRÍTICO: ABORDAGENS TRANSDICIPLINARES...................................................................241CRÍTICO: ABORDAGENS TRANSDICIPLINARES...................................................................241Solange Maria de Barros

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EDITEDITEDITEDITEDITORIALORIALORIALORIALORIAL

A Revista Ecos é uma publicação científica da área de Letras. O periódico tornou-

se um veículo de divulgação científica para os docentes-pesquisadores no âmbito da

Literatura, da Língua e da Linguística, cuja produção acadêmica circula pelas IES

brasileiras e estrangeiras, com textos inerentes aos estudos acadêmicos.

A revista é uma iniciativa da área de pesquisa em Literatura Comparada, da

Universidade do Estado de Mato Grosso, com financiamento, por meio de fomento,

recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso - FAPEMAT. A

publicação tem sido semestral, cujos textos reunidos atribuem à revista um caráter

temático.

A excelência dos textos e o reconhecimento dos docentes-pesquisadores

resultaram na indexação do periódico pelos Sumários de Revistas Brasileiras

(sumários.org) e no Qualis da Capes, dando suporte à circulação do conhecimento de

forma mais consistente. Nessa direção, a revista recebe textos num fluxo contínuo de

mestres e doutores das IES de todas as naturezas jurídicas, sejam do Brasil ou do exterior.

Esta edição apresenta o 9º número do periódico, cuja temática permeia teorias

e análises das diferentes áreas das literaturas, quer na prosa, quer na poesia, além de

outros estudos culturais. No que concerne aos estudos de línguas/linguísticas, as

reflexões teóricas voltam-se para as línguas materna e estrangeiras, bem como às teorias

dessas notáveis áreas de conhecimento.

Os Conselhos Editorial e Temático Consultivo desejam uma boa leitura a todos

e aguardam, para publicação, novas pesquisas científicas para ampla e responsável

divulgação.

Prof. Dr. Agnaldo Rodrigues da Silva

Diretor / Coordenador do Periódico Revista Ecos

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Agnaldo Rodrigues da Silva1

Taisir Mahmudo Karim2

Toda palavra é capaz de poesia; todosentido é capaz de silêncio.

(Eni Orlandi, 1997)

A mãe reparou que o menino gostavamais do vazio do que do cheio.

Falava que os Vazios são maiores eaté infinitos.

(Manoel de Barros, 1999)

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: Esta reflexão sobre o silêncio tomou como corpusuma obra literária, intitulada As palavras poupadas, deautoria da escritora Maria Judite de Carvalho. A obra serávista por um ponto de vista linguístico-literário, de modoque a temática possa ser compreendida em um campo deanálise mais amplo e consistente.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: silêncio; linguístico; literário; poética;análise.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This reflection on the silence has a literary corpus,As palavras poupadas, by the writer Maria Judite de Carvalho.The work will be seen from a linguistic and literary point ofview, so that the issue may be understood in a broader andmore consistent field of analysis.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: silence; linguistic; literary; poetic analysis.

1 Professor do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de Tangaráda Serra. Pós-doutor em Letras. E-mail: [email protected] Professor do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário Cáceres.Mestre em Linguística. E-mail: [email protected]

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A priori, a epígrafe acima demonstra o lugar noqual a linguística e a literatura compreendem o silêncio.Nessa direção, abrem-se dois caminhos para se desenvolvera nossa linha de pensamento: o primeiro institui o silênciocomo aspecto fundante da linguagem, porque ele existe napalavra ou está implícito nelas; isso significa dizer que osilêncio é sentido contínuo, indistinto, horizonte possível dasignificação Orlandi (1996); o segundo atesta a consciênciaaguda da linguagem, já que interpreta o silêncio como umde seus momentos discursivos. Nesse caso, o “vazio” daspalavras ou os diálogos truncados da personagem ou donarrador afirmam e clareiam sempre um novo espaço deinterpretação. Por esse viés de reflexão, incluímos nadiscussão a ficção literária, por meio de um dos romancesde Maria Judite de Carvalho, As palavras poupadas (1961).

Sobremaneira, a escritora pratica a arte do implícitoque lhe brota de um modo específico de encarar osfenômenos do mundo. Esses fenômenos são tratados naobra de ficção como parte integrante da vida daspersonagens, influenciando as suas vaidades, os dramas eos demais variados aspectos miméticos que criam aidentificação entre o Homo fictus e o Homo sapiens3. Amimese indica os pontos de convergência entre o mundoreal e o mundo da ficção, senão, negaríamos todaconstrução do discurso literário. Lembremos de Bakhtin aoafirmar que

o objeto estético abarca todos os va-lores do mundo, que possui contudoum coeficiente estético determinado; aposição do autor e seu desígnio artísti-co devem ser avaliados em função detodos esses valores. Não são as pala-vras nem o material que se beneficiamde um princípio de acabamento, é oconjunto multiforme da existência, vi-vida em todos os seus componentes; odesígnio artístico estrutura o mundoconcreto: no espaço, cujo centro devalores é o corpo; no tempo, cujo cor-po de valores é a alma; e, finalmente,no sentido, no qual se insere a unida-

3 Nomenclaturas utilizadas por Antonio Candido (1985, p.63) em A personagemde ficção, para referir-se ao homem da ficção (personagem) e ao homem sapiens(ser humano).

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de concreta da interpenetração do cor-po e da alma (2000, p. 204).

Indubitavelmente, a concepção de Bakhtin aplica-se coerentemente ao gênero épico (narrativo - e aqui seinsere o romance), em relação aos outros gêneros literários,como o lírico e o dramático, por exemplo. Antonio Candido(1985) teoriza sobre o sintoma linguístico, definindo-o comoa forma discursiva por meio da qual o narrador distingue-se das personagens e, ao mesmo tempo, permite osurgimento do discurso ambíguo sob a perspectiva dapersonagem e do narrador fictício. A capacidade de articularas diversas formas de expressão faz da personagem e donarrador um tipo de ser configurado esquematicamente,no sentido psíquico, bem aproximado do indivíduo real.

Os aspectos revelados pelos pensamentos de Bakhtine Candido levam-nos a considerar que a obra As palavraspoupadas, de Maria Judite de Carvalho, traz uma carga deelementos que faz o silêncio significar, pois o não-dito temsignificados traduzidos pelo processo arquitetônico danarrativa e se mantém como tal, livrando o romance deuma empobrecedora linearidade. O discurso ficcionaltransforma-se em uma fonte, de onde vem uma espécie derealismo poético, fruto de “palavras poupadas” e de umsenso de humanidade revestido de pudor e fineza.

As palavras poupadas é um romance que se incluina literatura produzida por mulheres. Intimista e introspectiva,a obra está voltada aos episódios corriqueiros e à psicologiafeminina, em confronto com a masculina. Assim, a autoraprivilegia temas relacionados à frustração no amor e nacrise da amizade; daí decorrerem episódios repletos deatitudes que envolvem o egoísmo, a solidão e os caminhossecretos da consciência/subconsciência. Contemplando omundo da consciência/subconsciência da mulher, apersonagem feminina vive conflitos interiores que a tornaum ser dividido, pulverizado, diante dos mais variados papéissociais a serem vividos. Os conflitos concretizam-se pelapresença constante do espelho, um utensílio físico que revelaa busca de identidade, um motivo temático, característicode momento de crise existencial.

Movidos pela discussão de Orlandi (1997), em quea linguagem implica o silêncio, aquele que é fundador de

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sentidos e que mostra a complexidade da análise do discurso(e por que não discurso literário, justificado pelo estatutoque rege as relações entre personagem/narrador/autor/homem real, defendido por Bakhtin (2000) e Candido (1985)-, passemos à análise de alguns dos aspectos do texto deficção escolhido como corpus.

Percebamos que o título traz um sentido intrigante,devido aos vocábulos indicadores de “economia” depalavras: As palavras poupadas. O título confirma oconteúdo, pois o silêncio habita a estrutura linguística doromance. O silêncio que atravessa a narração e a construçãodas personagens define a produção de sentidos, permitindoo movimento e a evolução do enredo. Para compreender osignificado estruturante do silêncio, por um lado se faznecessário definir duas instâncias de narrativas: narrativaenquanto estética de escrita (relaciona-se à formaestruturante de um gênero) e a narrativa que define o perfilda personagem-protagonista, a Maria da Graça (nada aver com categorias ou gêneros). O primeiro momentodelimita apenas a estética na qual a obra foi produzida; osegundo permite, inter-relacionado ao primeiro, “a criaçãode um vigoroso mundo imaginário, de personagens ‘vivas’e situações ‘verdadeiras’, já em si de alto valor estético”(CANDIDO, 1985, p.37), o que exige, naturalmente, amobilização de todos os recursos da língua, da literatura eda arte. Por outro, Orlandi destaca que:

A linguagem, mesmo em sua vocaçãoà unicidade, à descrição, ao comple-to, não tem como saturar o possível,porque não tem como não convivercom a falta, não tem como não traba-lhar (com) o silêncio. Isto justamenteporque a linguagem é estrutura e acon-tecimento, tendo assim de existir narelação necessária com a história (ecom o equivoco). (ORLANDI, 1996,p.12).

Apraz-nos ressaltar, nesta altura da discussão, queas palavras (discursos) atravessam sujeitos, o dizer passa anão ser algo inédito, único e exclusivo de alguém, elesignifica pela história e pela língua. E é por essa incompletudedo dizer que o dito é sempre também o lugar do não-dito.

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Como em nossa análise, o verbo poupar pode remeter-nosà ideia de economia, conservação, algo que se evita utilizar.Mas a personagem Graça, ao poupar as palavras, abre umgrande silêncio no seu espaço de “vivência”, atitude que atorna covarde, isolada e isoladora, anônima e depersonalidade volúvel. Bakhtin faz a seguinte afirmação, emEstética da criação verbal (2000): “a consciência criadorado autor não decorre de uma consciência lingüística (nosentido lato da palavra) que não é mais uma fase passiva dacriação – a fase em que o material é superado de modoimanente” (p.208).

Diante do não esclarecimento de Bakhtin a respeitodo sentido stricto da palavra, considera-se, então, que aobra de ficção é constituída de palavras, orações, capítulosou simplesmente páginas escritas de papel. Mas as páginasescritas trazem valores expostos nos discursos do narrador edas personagens e isso bastaria para conceder à obra literáriauma consciência linguística. Para significar, toda criaçãoliterária precisa, necessariamente, trazer no seu bojo diversosatravessamentos, sejam eles sociais, existências, políticos,filosóficos, sociológicos, psicológicos, linguísticos ou deoutros campos do saber. Guilhaumou frisou que “a análisede uma narrativa de acontecimento se conclui por umapesquisa de novas perspectivas com o olhar cruzado dosoutros”, de modo que a narrativa “apoia-se sobre umainterrogação plural em que cada ator ou espectador contribuipara a elucidação da relação entre acontecimento eidentidades políticas, temáticas sociais, diversos regimes dehistoricidade, e pluralidade dos espaços emergentes” (2009,p.139). No romance em análise, não só a palavra proferidapela personagem tem valor semântico, mas também a mudez.A tentação da fala é substituída pela tentação do silêncio eisso certamente ofereceu à personagem maior possibilidadede significar sentidos outros. O silêncio, nesse caso, trabalhoua necessidade de significar o não-dito.

O não-dito inclui o silêncio do desejo, da emoção,da opressão, enfim, de sentimentos que empurram aprotagonista à solidão. É justamente o silêncio da “alma”da personagem que abafa a manifestação das palavras,mergulhando-a em um deserto interior imenso que a isolado resto do mundo. Esses aspectos impedem a realização

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da personagem enquanto mulher, tornando-a omissa nasrelações que tem com os outros. O silêncio torna-se umtipo de escuridão que embebeda de significado a falta depalavras e dá lucidez às ações e discursos aparentementeocultos. Carone (1979) salienta que “a ausência da palavra,que se consome numa expectativa, imobiliza o tempo e oespaço na ‘contemplação indefinida’ potenciada pela formacontínua do futuro” (p.72). Nessa perspectiva, a personagemé fixada em um retrato e a partir do momento em que aspalavras ditas não a identificam mais, o eu-lírico recorre auma linguagem que possa lhe produzir sentido. Silenciarpôde-lhe traduzir a essência de suas incompletudes e a fezatingir o leitor com mais naturalidade do que se houvessefeito por meio de outro artifício.

A narração de As palavras poupadas começa comum taxista “desbotado”, “obsequioso” e “mesureiro”, quenomeia a protagonista de madame. Para ele, a personagemGraça era mais um dos rostos anônimos que passava porali, durante o exercício de sua profissão de taxista. Ao chamá-la de Madame, cria-se uma relação de impessoalidade, cujareação da protagonista enche a narrativa de atitudesdistantes, palavras invisíveis, interpretadas por gestos quevalem mais que as falas. Assim, a impessoalidade e “o sorrisoquase invisível” constroem personagens silenciadas quevivem em mundos à parte, só delas.

Economizando as palavras e atribuindo significadosao não-dito, a personagem-protagonista vive as fantasiasno interior do táxi. Acessa o seu mundo interior, silenciado.Lá, vive a viagem imaginária, embalada pelo escorregar dotáxi que trafegava, vagarosamente, pelo perímetro urbano.É interessante observar, no romance, que a protagonistareconhece o táxi enquanto mundo, pois somente nele podiapoupar palavras e dar significado a sua personalidadesilenciada. Mas o silêncio a faz ter significado na narrativa elhe oferece atributos que a aproxima do leitor.

O táxi coloca-se em um patamar simbólicosignificativo. Ele diz e significa todo percurso da vida deGraça, mesmo embalado pelo silêncio que habita o estardentro do táxi. É, certamente, um lugar de refúgio. Estandono táxi, Graça não teria “fome, nem sede, nem sono, nemsentiria dentro de si aquela estúpida ansiedade que afinal

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de contas nunca a abandonou. Não pensar em Leda, nemno pai, nem em Claude, nem em Vasco, nem em si”(CARVALHO, 1961, p.87-88).

Sob a perspectiva dos elementos da narrativa, apersonagem-protagonista está limitada em espaços e temposdeterminados. Na infância, as lembranças trazem de volta oespaço da casa, lugar que a limita ao convívio do pai, deLeda e de Vasco. Depois, na idade adulta, o lugar dereferência é o quarto de hotel, cujas luzes apagadas a fazcontinuar sempre às sombras do anonimato.

Finalmente o táxi, um veículo que o passageiro pagaconforme o tempo de uso.

O espaço limitado do táxi, ao mesmo tempo que afaz calar, atribui-lhe significados. De certo modo, oenclausuramento psíquico e sentimental cria umaatemporalidade de acontecimentos: um tempo que nãopassa e que só existe dentro dela. Daí, o hábito de fechar osolhos para imaginar outro espaço por meio da ilusão.

O tempo e o espaço têm uma relação peculiar como silêncio: essa relação é necessária, uma vez que não dizer,por meio dessas categorias da narrativa, é revelar intençõesao leitor. Substancialmente, o tempo e o espaço confluemnos acontecimentos e, com isso, significam como as palavrase os atos. Em muitos casos o tempo e o espaço são parceirospara fazer significar o não-dito, seja pelo narrador ou pelapersonagem. Recorramos a Bakhtin (2002a), em Questõesde literatura e de estética, para esclarecer que em literaturaa assimilação do tempo e do espaço é um processo complexoe intermitente. Com efeito, a interligação fundamental dasrelações temporais e espaciais, assimiladas pela ficção, échamada de cronotopo, cujo significado é “tempo-espaço”.A possibilidade da indissolubilidade de espaço e de tempofaz com que os fatos narrados, a personagem e todos osoutros aparatos integrantes da narrativa adquiramlegitimidade de existência. Desse modo,

ocorre a fusão dos indícios espaciais etemporais num todo compreensivo econcreto. Aqui o tempo condensa-se,comprime-se, torna-se artisticamentevisível; o próprio espaço intensifica-se,penetra no movimento do tempo, doenredo e da história. Os índices do tem-po transparecem no espaço, e o espa-

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ço reveste-se de sentido e é medido como tempo. (BAKHTIN, 2002a, p. 211).

Atentando-se ao contexto de As palavras poupadas,a protagonista agarra-se ao tempo e ao espaço paravalorizar a sua posição no romance. Ela se faz significar notempo. Faz-se necessária no espaço, pois, sem apersonagem, o espaço não seria o mesmo. Por isso, porexemplo, um simples olhar para o espelho tem um valorincontestável na evolução da narrativa, já que não é apenasuma imagem refletida, mas é o lugar que se ocupa “dentro”do espelho que faz o sentido. Evidentemente, os espelhosoferecem à personagem a oportunidade de se autoestudar,de especular o próprio eu. Através de imagens estáticas ouem movimento, os espelhos expõem projeções verdadeiras,nas quais ela própria observa a “realidade” do íntimo. Peloreflexo de si, a personagem tem o contato com “a verdade,a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência”(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p.395). Ainda há de seconsiderar que:

O espelho não tem como única fun-ção refletir uma imagem; tornando-sea alma um espelho perfeito, ela parti-cipa da imagem e, através dessa parti-cipação, passa por uma transforma-ção. Existe, portanto, uma configura-ção entre o sujeito contemplado e oespelho que o contempla. A alma ter-mina por participar da própria belezaà qual ela se abre. (p.396).

Assim, há duas situações: fora do espelho, onde setem a mulher “real”, e dentro dele (refletido), onde está amulher que desejava ser. Tempo-espaço delineia a influênciado ontem no hoje e, também, a identificação e oestranhamento do lugar habitado. Vejamos os fragmentos:“Tinha quatorze anos nesse inverno e hoje tem trinta e quatro.Vinte anos em que nada morreu [...] tudo foi sempredolorosamente igual [...] As recordações são às vezes maisfortes do que as presenças” (CARVALHO, 1961, p.28-30).

Com efeito, tempo e espaço nem sempre convivemintrinsecamente. Desse modo, o silêncio do apartamento(espaço) a fez compreender que o passado (tempo) estava

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consumado. O espelho tem papel crucial na compreensão,motivando a transformação da personagem. O leitor, então,tende a perceber que o não-dito não é apenas a falta depalavras, muito menos o silêncio físico, mas tudo o que foisignificado pelo silêncio. Subitamente, o espelho (espaçoque reflete) é partido ao meio, constituindo o marco napersonalidade da personagem: o antes e o depois (tempo).Partiu-se o espaço da habitação e dividiu-se o tempo.

Tempo e espaço, portanto, constroem suas própriassignificações como elementos estruturais da narrativa, navisão instituída por Todorov (2004), e a personagempermanece habitando essas categorias, simultaneamente.Para esse crítico, “a desigualdade dos elementos constitutivosimpõe outra regra: um elemento não se liga diretamentecom qualquer outro, a relação se estabelece em função deuma hierarquia de planos e de níveis, segundo o eixo dassubstituições e o eixo dos encadeamentos (p.33). No romanceO resto é silêncio (1943), de Érico Veríssimo, observa-seperfeitamente a “fluência do passado ao presente e doabstrato da língua para o concreto da linguagem” (TELES1989, p.360).

Na verdade, quem define a importância da relaçãotempo-espaço ou da significação dessas categorias nanarrativa é a personagem. Assim como deve definir o dito eo não-dito, o silêncio e seus sentidos. Bakhtin (2002b), emProblemas da poética de Dostoievski, afirma que apersonagem não interessa como um fenômeno da realidade(mesmo porque não o é), dotado de traços típico-sociais ecaracterológico-individuais definidos e rígidos, como imagemdeterminada. A personagem interessa como ponto de vistaespecífico sobre o mundo e si mesma, de modo que nãoimporta o que a personagem é no mundo, mas, acima detudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela épara si mesma. Isso quer dizer que Bakhtin considera que anarrativa impetra a necessidade de que a última palavra àdecisão de um desfecho seja da personagem, quer seja sobresi mesma ou sobre o seu mundo. Portanto, a personagem,diante de um estatuto que lhe é próprio e peculiar, defineseus espaços de significação. Sendo assim, analisemos osfragmentos abaixo:

Tinham subido o quarto em silêncio.

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Tinham-se deitado em silêncio [...] Umsilêncio. O ruído da borracha a arra-nhar o papel [...] O ruído quebra o si-lêncio de um espaço temporal nãopreenchível, causado pela tensão daconversação [...] Depois de um longosilêncio. Do outro lado do fio a voznão parava de falar. O pai respondeupor fim, deram-lhe tempo [...] Aquelesilêncio grande, sólido, de quando aspessoas esperam por coisa nenhuma[...] Um silêncio. Não arranjara, demomento, palavras disponíveis. Eracomo se todas lhe tivessem fugido parabem longe, deixando-a vazia, sozinha,sem possibilidades de salvação (CAR-VALHO, 1961, p.43, 67, 69, 79).

As instâncias do silêncio observadas nas citaçõesacima significam inúmeras possibilidades na construção doscontextos do texto. Elas não significam no vazio, já que trazemcargas de sentido que se aplicam aos planos da criaçãoficcional. São formas, portanto, de compreender o silêncioem As palavras poupadas em seus diversos níveis ecategorias, em patamares que seguem do físico aopsicológico, do dito ao não-dito, não respectivamente.Nesses casos, dispensaram-se as palavras. Elas nãosignificariam tanto quanto o silêncio significou, pois ele seprojetou como meio para alcançar um fim, o reduto pormeio do qual as personagens expõem ansiedades, traumas,chagas morais e dissimulações.

O silêncio, em As palavras poupadas, empurra alinguagem até o limite de suas possibilidades. No romance,ele articula as diversas categorias da narrativa, perfurandoo impenetrável e sem nexo para dizer, sem o dizer. Assim,muito do que parece vazio, suprimido e veiculado à extinçãode um discurso, comporta significados múltiplos, processadosna interpretação de cada leitor. Lembremos de Silva (2007),ao salientar que a dinâmica da língua é que possibilita areinterpretação em diferentes contextos.

Assim, à guisa de conclusão deste texto, que secoloca nos limites da dificuldade, pela complexidade dotema, lançamos ao leitor o desafio da compreensão aoconsiderar o ponto de vista de Orlandi (1997): “o silêncio

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não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício deuma totalidade significativa” (p.70).

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Aceito em: 03.06.2010

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Ana Lúcia Gomes da Silva Rabechi1

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: O presente trabalho aborda o tratamento históricoque Josue Montello confere à obra Os tambores de São Luíse Pepetela, A gloriosa família. A partir do ponto de vistaenfocado em cada romance, o material histórico-social serávisto como resultante de uma certa miopia ou utopia nomundo que se desenha.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: romance; experiência brasileira e angolana;material histórico; Montello e Pepetela; miopia e utopia.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This paper is about the historical treatment JosuéMontello gives to the work “The drums of São Luís” andPepetela to “A gloriosa família”. From the viewpoint focusedin each novel, the social-historical material will be seen as aresult of a certain myopia or utopia in the wold that is drawn.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: romance; Brazilian and Angolan experience;historical material; Montello; Pepetela; myopia and utopia.

1 Professora no Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de Cáceres.Doutora em Letras/Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa. E-mail: [email protected]

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Em Literatura e Sociedade, Antonio Candido iniciao primeiro capítulo com uma reflexão sobre a objetividadea propósito de uma determinada verdade em relação à obrae seu condicionamento social, afirmando que “nada maisimportante para chamar a atenção sobre uma verdade doque exagerá-la” (2000, p.3). Retirada do contexto emquestão, a afirmação leva a pensar o tratamento dado porMontello à matéria histórica brasileira e o mesmo trabalhopor Pepetela à matéria histórica angolana. No desafio deaproximação das obras, o nosso interesse se volta para aleitura das contradições postas nos romances abordados, afim de desvelar de que maneira elas atuam na organizaçãointerna dos romances.

Na consciência de correr esse risco sem desfigurá-la é que começo este processo comparativo das obras deMontello e Pepetela, averiguando como a miopia e a utopiaatuam na organização interna das referidas obras.

O mundo configurado nos romances Os tamboresde São Luís, de Montello, e A gloriosa família – o tempo dosflamengos, de Pepetela, é exemplo enfático da representaçãode uma determinada perspectiva histórica. Por meio de umaverdade unívoca, que seria privilégio do narrador tradicionalde Montello, o ponto de vista resulta numa certa miopiadesse narrador quanto às fissuras da história. Já em Pepetela,a perspectiva histórica plurívoca, da quebra do monopólioda verdade pelo narrador contemporâneo, concebe umpensamento utópico que advém da margem por intermédiodo narrador escravo, mudo e analfabeto.

É por meio desse ponto de vista que faremos aquiuma rápida leitura da obra brasileira e da angolana, a fimde cotejar a perspectiva histórica nelas contida, já queambas, de forma mais ou menos ostensiva, enfocam oproblema do escravizado numa sociedade colonial.

Em Os tambores de São Luís, a valorização donegro tomado como o centro de referência no romance écaracterizado no seu mundo por um narrador que aderesimpaticamente à sua história, mas que, no entanto,pronuncia-se de um lugar exterior à problemática do negro.Assim, o narrador não escapa às armadilhas dosestereótipos, a começar pela apresentação da obra, em queo romancista diz pretender o resgate de uma velha dívida,contraída com a raça negra em nosso país, e que merecia

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de nossa literatura o seu canto em prosa, a sua verdade, asua denúncia (MONTELLO, 1986).

O negro, nesse romance, longe de ser sujeito dopróprio discurso, é objeto de procedimentos que indiciamideologias, atitudes e estereótipos do discurso oficial. Acomeçar pela configuração da personagem principal –Damião –, cuja nobreza de estirpe, caráter forte, inteligênciae aparência viril dá à personagem um status idealizador,diferindo de outros negros, por conseguinte, revestindo onegro Damião de uma hierarquia para que possa representara sua raça. Hierarquia tão estereotipada quanto a própriavitimização do escravo.

A vitimização transforma as crises de consciênciada personagem num verdadeiro melodrama. Desde suainfância, Damião é injustiçado na Fazenda Bela Vista porser escravo e filho de Julião. Quando moço, sofre maustratos e é responsabilizado por abusar da filha do fazendeiroe pela própria morte deste. No Seminário, para onde étransferido, é constantemente rechaçado pelos padres, quenão aceitam a sua ordenação por ser negro. Como alunodo Seminário, é confinado à última carteira, praticamenteisolado dos colegas. Quando veste os paramentossacerdotais pela primeira vez, numa procissão, éabusivamente criticado: “A Igreja já chegou na senzala!”(MONTELLO, 1985, p.214). Como professor, sofreconstantes ofensas, com a inscrição no quadro chamando-o de “bode”. É humilhado por Donana Jansen, grandeescravocrata, que exige conhecer o “negro que sabe latim”.

Toda essa vitimização sofrida pelo preconceitoracial repete a tônica das transfigurações românticas, cujasmarcas advinham de uma formação desenvolvida no bojode uma cultura escravista. Para os anos setenta (do séculoXX), quando fora escrita a obra, a recorrência dosentimentalismo de Damião se torna caricatural emelodramático, pois o que move a sua indignação é,sobretudo, o sofrimento do negro, que ele vê como um serhumano, repetindo o chavão romântico da necessidade dea nação livrar-se da mancha da escravidão.

O narrador montelliano, na realidade, não dá vozao negro, pois a memória do velho Damião sobre seupassado é uma estratégia narrativa e o narrador se comportacomo um advogado de defesa que quer comover a platéia

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com sua retórica sentimentalista e seu brado de revolta contraa escravidão. Para a época romântica, essa denúncia tratava-se de um notável feito, que abriu espaço para a problemáticada escravidão num momento histórico em que o negro era,como assinala Antonio Candido (1997, p.247), “a realidadedegradante, sem categoria de arte, sem lenda histórica”,mas, para os finais do século vinte, a repetição dessesestereótipos tornam a reivindicação caricatural.

Outro estereótipo anacrônico para os anos setentaé a discussão de conceitos visivelmente conflitantes, como ode “branqueamento racial” e de “mestiçagem cultural”,perfeitamente conciliáveis no romance. A teoria do Barãoprevê que “na rede ou na cama”, numa visão anárquica doprocesso racial, o brasileiro vai se tornar “moreno”, porém,como confirma o rostinho do trineto do velho Damião, overdadeiro brasileiro está mais próximo de ser branco quenegro, o que contribui, para diluir de uma geração paraoutra, o sentimento do cativeiro, diz o narrador.

Para concluir esse conjunto de estereótipos, osentimento nostálgico da africanidade, que persegue apersonagem como se ela fosse um exilado do paraísoperdido, confere à narrativa, juntamente com sua consciênciacindida, um tom melodramático e um senso histórico calcadoem uma ideologia conservadora. Na tentativa de dar vozao negro através da memória do velho, a narrativa terminapor falar sobre ele com a autoridade de um narradoronisciente, simpático à causa, mas distanciado, perdendo-se em sentimentalismo e folclorização, de forma que Montellonão consegue desmitificar essa imagem do negro que vemdesde o Romantismo na Literatura Brasileira e chega até osnossos dias com outras nuanças. Com a preocupação deretratar aspectos importantes da realidade socioculturalmaranhense, Montello peca por apresentar um regionalismosimplificador e caricato, que atesta a miopia do narrador ea visão estreita que atravessa a narrativa montelliana.

Pepetela, ao contrário, em A gloriosa família – otempo dos flamengos, verticaliza a perspectiva histórica aofazer do silenciado o narrador. O narrador é um escravomudo e analfabeto que tem por função ser a sombra de seudono, o negreiro Baltazar Van Dum. Tempos depois, faz anarrativa da família Van Dum, do ponto de vista de umescravo. Apesar de o narrador não estar ali para falar de

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sua vida de escravo, como afirma, e sim da de seu dono,sua fala não é inocente e acaba por enfatizar suamarginalidade, mesmo que de maneira indireta. A metáforado “silêncio e do analfabetismo do escravo” é uma ironiaque fala por si. Ao se valer da narrativa de outros paracompletar o seu relato, o narrador se põe no centro de umateia de informações e vozes que multiplicam os pontos devista no romance, tornando-o polifônico, para usar o conceitode Bakhtin (1997).

É certo que o escritor maranhense também falado silenciado; a questão é a maneira como o faz, dando aonarrador uma perspectiva comprometida com o discursohegemônico. Para além da voz autoritária do narrador deMontello, a voz do narrador de Pepetela mostra osdeslizamentos de sentido, os apagamentos que dessacralizame relativizam o discurso do poder, da história oficial, docolonizador, da escrita. Instituindo o mundo às avessas, narraquem foi condenado ao silêncio. Ao parodiar a históriaeurocêntrica do cronista português Cadornega, sobreAngola, o escravo –narrador relativiza a verdade da históriaescrita, da univocidade e institui o tom profético como maisuma verdade relativa; satiriza as figuras da história e rebaixaseu próprio senhor. Daí o romance de Pepetela expressaruma visão utópica por meio das várias temporalidades quese delineiam na trama narrativa, como forma de entender opresente e, talvez, tecer o futuro.

A perspectiva histórica que se observa nos doisromances parte em direções diversas e tem no horizonteprojeções distintas: em Montello, a voz narrativa vai do centropara a periferia, considerando que o narrador filtra aconsciência da personagem de forma a forjar um ponto devista que simplifica o processo histórico. Em Pepetela, a voznarrativa vai da periferia para o centro, considerando que onarrador pronuncia-se da margem da sociedade e dahistoriografia oficial, aprofundando a perspectiva espaço-temporal do contexto histórico angolano, possibilitando, comisso, realçar as contradições e o senso real do mundo.

Ao discutir sobre a posição do romancemontelliano, considera-se oportuno tomar a reflexão deSchwarz, ao se referir aos pontos fracos do romancealencariano. Ressalvadas as especificidades do contexto doromance de Alencar, pode-se compreender que também

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Montello, ao tratar dos impasses brasileiros, às vezes “põeo dedo em fraquezas reais, mas para escondê-las, outras,para circunscrevê-las sem as resolver” (SCHWARZ, 2000,p.40). Isso posto, é preciso reconhecer que Montello nãoconsegue transpor para o nível formal a complexidadeobjetiva de sua matéria.

Na recolha de informações da crônica históricaestá o eixo do caráter documental de Os tambores de SãoLuís e A gloriosa família. A partir de fontes documentais,efetivam-se interpretações, dependendo, ainda, de umamontagem plausível do mundo a ser recriado pela ficção.

Expõe-se, desse modo, uma das modalidades dorealismo, que, de acordo com Antonio Candido (1993,p.123), “se baseia nalguns pressupostos, inclusive otratamento privilegiado dos pormenores, pelo acúmulo oupela sua contextualização adequada”. Segundo o ensaísta,mesmo dentro do realismo, os textos de maior alcanceprocuram algo mais geral, que pode ser a razão oculta soba aparência dos fatos narrados ou das coisas descritas.

Ao discutir realidade e realismo na obra de Proust,Candido oferece caminhos para se pensar as obras Ostambores de São Luís e A gloriosa família, em que espaço etempo resultam em cada obra numa configuraçãointerpretativa diferente.

Nota-se que o realismo em Montello é maisreferencial, enquanto em Pepetela é mais convincente,porque a especificação do detalhe se integra numa visadageneralizada que o transfigura. O escravo-narrador, mudoe analfabeto, é uma metáfora irônica sobre a marginalidade.A partir dela, Pepetela consegue ancorar uma particularidadena generalidade do discurso. Essa estratégia irônica chegaa transcender o fato histórico, de maneira que o detalhedeixa de ser parcial e isolado para exprimir uma totalidade,que serve de base verdadeira para a interpretação.

Em Montello, a estratégia da memória do velhoprocura dar à narrativa o efeito da realidade. O nó dadiferença é que Montello vê nos detalhes o registrodocumentário da realidade, enfatizado pelo narrador queenumera as fontes de que se valeu a narrativa: osdocumentos de Nunes Pereira, os documentos do InstitutoHistórico e Geográfico, os processos judiciários. No afã dedocumentar uma época, envolve-se em acúmulo de

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pormenores que valem pouco enquanto possibilidade decompreensão efetiva. Pepetela, no entanto, vê a realidadeno tempo de modo diverso, ao ressignificar o passado atravésde seus vestígios deixados no presente; dá maior grau degeneralidade ao passado, pois permite entender que estesó ganha significado ao desvendar o que permanece e oque permanece são novas formas de escravidão configuradasno mundo globalizado.

Montello utiliza o tom melodramático na históriade Damião, de forma que o passado na narrativa ficaprevisível e redutor, já que seus indícios são recuperadospela memória do velho, que, ao rememorar, fere de nostalgiaas experiências vividas. Assim, a visada do narrador éatravessada por uma perspectiva míope, decorrente daafetividade que reveste suas lembranças, mas, sobretudo,pelo conservadorismo que o constitui. Pepetela, ao contrário,ao utilizar a paródia histórica, imprime um tom mais críticoa esse passado que se presentifica, permitindo umdistanciamento analítico e racional próprio da operaçãohistória que deseja desconstruir.

O efeito do real em Montello descamba para aprevisibilidade, simplicidade e segurança. O excessonarrativo se faz presente por meio das descriçõespormenorizadas. A vida da personagem principal, de escravoa homem livre, é marcada por extremos de sentimentalismo,que reforçam a convencional moralidade, tornando apersonagem caricatural, principalmente quando reclama asua condição de vítima, melodrama que percorre boa partedo romance. Com isso, não se quer caracterizar o romancede Montello como um gênero melodramático, mas detectarna obra características melodramáticas, já que estas, comoafirma Brooks (1985), podem se aliar a gêneros distintos.Para o teórico, o melodrama está presente em várias outrasinstâncias da vida, além das instâncias narrativas. Assim,notamos na narrativa montelliana a presença da vilania, apolarização maniqueísta, a redenção da personagem apósmuita luta e sofrimento, a vitimização, a moral cristã no planoprovidencial, características muito próprias do melodrama.

Em Os tambores de São Luís, a vilania se sobressai,principalmente na Fazenda Bela Vista, onde o Dr. Feitosaencarna o verdadeiro vilão, vingativo e capaz das maisterríveis vinganças com os escravos. Isso se nota

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principalmente em relação a Damião, por fazer lembrar seupai, Julião, respondendo, assim, pelos erros dos escravos,apresentando Damião sempre como vítima em qualquersituação. Além de Damião ser castigado injustamente nafazenda, quando chega ao Seminário, sofre muita rejeiçãopor ser negro, o que culmina com a não aceitação paraseus votos sacerdotais.

Como o melodrama se funda numa moral cristã,o bem deve se caracterizar pelo destino, daí o “destino” deDamião ser marcado por reviravoltas, o que dá espaço paraa personagem proclamar os seus valores e os do universoem jogo. O plano providencial sempre alcança a vida dessapersonagem: o Bispo que aparece na fazenda e o leva parao Seminário, o Pe. Policarpo que o acolhe em meio a esseambiente racista, mas, quando lhe falta, a Genoveva Pialhe dá a mão e, com a sua morte, a Santinha toma seulugar e, no final, “a sorte lhe fora propícia” (p.610).

Na parábola moral da vida de Damião, emborao final feliz prevaleça nesse roteiro tradicional, o infortúnioda vitimização ainda é o último toque da narrativa, aoencerrar com a morte do filho assassinado, naquela noiteem que o velho caminha pela São Luís relembrando seupassado. O suspense que percorreu todo o livro é reveladoe mais uma vez o infortúnio marca a vida da personagem.Essa visada simplificadora e previsível da narrativa deMontello enfraquece o seu enfoque histórico, pois, comobem afirmou Brooks (1985)2, a sofisticação pós-modernanão permite consumir passivamente uma obra pautada noexcesso. Enquanto isso, a visada crítica da obra de Pepetelaé tão mais realista quanto atende a sofisticação pós-moderna, tal como percebeu Candido a propósito dorealismo de Proust e do realismo tradicional, pois a segunda

2 O conceito de “imaginação melodramática” foi criado por Brooks em 1976 e vaialém do conceito de gênero e do cluster concept (conceito-agregado). Para ele, omelodrama, apesar de suas limitações, com efeitos fáceis e emoções pouco autên-ticas, tem uma flexibilidade pouco comum a outros gêneros. É a forma canônica deum tipo de imaginação que tem manifestações mais elevadas na literatura, atémesmo na fatura de escritores tomados como mestres do realismo – como Balzacou Henry James. A essência do melodrama é mesmo a dramaturgia da hipérbole,do excesso e da excitação. No entanto, a nossa “sofisticação pós-moderna” nãopermite consumir passivamente uma obra pautada no excesso. A abordagem maisrealista faz com que muitas características melodramáticas tornem a cena caricatural.Segundo Ismail Xavier (2003), há melodramas de esquerda e de direita, ao contrá-rio ou favoráveis ao poder constituído, e o problema não está tanto numa inclina-ção francamente conservadora ou sentimentalmente revolucionária, mas no fatode que o gênero, por tradição, abriga ao mesmo tempo, simplifica as questões empauta na sociedade, trabalhando a experiência dos injustiçados em termos de umadiatribe moral dirigida aos homens de má vontade.

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é mais “dinâmica e poliédrica”, ao passo que a primeira é“estática e plana” (1993, p.127), perdendo emprofundidade.

Nesse contraponto, a perspectiva histórica nas duasobras resgata a experiência do passado colonial por enfoquesideológicos bem diferentes. A representação da margemfrequentemente “inventada” na ficção e na história é matériacomum, configurada por vieses distintos. A concepção demundo e estratégias narrativas que resultam da construçãode Os tambores de São Luís definem o romance comoherdeiro de um discurso hegemônico e sacralizador. Já emA gloriosa família, a concepção de mundo e as estratégiasnarrativas emergem como um discurso dessacralizador.Nessa medida, o motivo da criação em Montello édesvirtuado pela postura do narrador, que fala da margema partir do centro, enquanto em Pepetela é acentuado pelapostura do narrador que fala do centro a partir da margem.Ambos os romances, por meio de seus narradores, projetam-se em direções diversas: o narrador de Montello escamoteiaas contradições do processo histórico da escravidão noMaranhão; o de Pepetela projeta luz sobre as contradiçõesengendradas pelos documentos e pela historiografia oficial,cristalizados como interpretações fechadas da históriaangolana.

Em Os tambores de São Luís, o passado do velhoDamião é apenas iluminações de sua consciência e o futuroprevisto no rostinho de seu trineto tem a marca de umaideologia ufanista, de modo que o romance conduz asituações desconcertantes, especialmente quando se acentuaa contradição entre o que Montello propôs no seu projetoem Confissões de um romancista e no posfácio do próprioromance, o que de fato ele realizou. Não se quer dizer, comisso, que o romance precisa ser lido à luz das elucubraçõesdo autor, mas que essas referências podem servir dedispositivos para a investigação da perspectiva históricaresultante do ponto de vista do narrador que, sem dúvida,apresenta-se limitado no romance.

Em A gloriosa família, o passado está assentado numdevir em que a desconfiança e o estranhamento não sãosuficientes para apagar do horizonte pepeteliano a utopia.Não mais aquela que moveu a sua juventude no afã daslutas de libertação nacional, no sonho da construção de umpaís livre que restituísse aos angolanos o governo de seus

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destinos, mas aquela outra, a heterotopia, que “resulta nãoda invenção de outro lugar, mas da deslocação radicaldentro de um mesmo lugar, o nosso”, como explicaBoaventura Cardoso (2003, p.325). Com isso, Pepetela dávoz aos angolanos, expõe seus sonhos e suas decepções,dando vida a mundos desaparecidos e a outros latentes naAngola contemporânea.

Ao sacralizar ou dessacralizar a história, os romancesde Montello e Pepetela tecem outras possibilidades de contara experiência humana nas suas rasuras e sucessos, driblandoa esterilidade do mundo cada vez mais embrutecido peladesumanização a que foi subjugada, primeiro pelos impérioscoloniais, depois por sistemas autoritários e pela globalizaçãopotencializada pelas sociedades capitalistas.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1977.BROOKS, Peter. The melodramatic imagination. Nova York:Columbia University Press, 1985.CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. BeloHorizonte: Itatiaia, 1997. v.2.______. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz:2000.CARDOSO, Boaventura. Pela mão de Alice. São Paulo:Cortez, 2003.MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1985.______. Confissões de um romancista. In: ______. Romancese novelas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. P.13-72. v.I.PEPETELA. A gloriosa família – o tempo dos flamengos.Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997.SCWARZ, Roberto. A importação do romance e suascondições em Alencar. In: ______. Ao vencedor as batatas.São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p.33-79.

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood,cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify,2003.

Aceito em: 03.06.2010

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Antonio Aparecido Mantovani¹

A casa, na vida do homem, afastacontingências, multiplica seus conselhos de

continuidade. Sem ela, o homem seria um serdisperso.

(Gaston Bachelard)

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: O diálogo entre a literatura brasileira e acaboverdiana não se esgota nas décadas de 30 e 40. Estepode ser observado até a atualidade e com extensão paraoutras regiões brasileiras, além do Nordeste. A partir destareflexão, este estudo tem como objetivo investigar, dentrodo macrossistema literário de língua portuguesa e no âmbitodas relações literárias contemporâneas entre Brasil e CaboVerde, as tensões das personagens a partir da casa nosromances Os dois irmãos, de Germano Almeida, e Doisirmãos, de Milton Hatoum. Nessas obras, a casa, distantede sua função de aconchego, em vez de ser uma das maiores(forças) de integração (BACHELARD, 2000, p.26),transforma-se num ambiente hostil, que impõe o conflitofraterno que se estende aos espaços em seu entorno.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: literatura caboverdiana; literatura brasileira;estudos comparados; casa; drama familiar.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: The dialogue between Brazilian and Cape Verdeanliteratures does not end up in the 1930s and 1940s. It can

1 Professor do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de Sinop.Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. E-mail:[email protected]

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be observed until nowadays and with extension to otherBrazilian regions beyond north-east. Based on this reflection,this study aims at investigating the tension of the charactersfrom the house in the the novels Os dois irmãos, by GermanoAlmeida and Dois irmãos, by Milton Hatoum, inside theliterary macro system of Portuguese language and in thescope of contemporary literary relations between Brazil andCape Verde. In these works, far from its function of shelterand instead of being one of the greater (strengths) ofintegration (Bachelard, 2000, p. 26), the house changes intoa hostile environment which imposes the fraternal conflictthat reaches the surrounding spaces.

KKKKKeywords: eywords: eywords: eywords: eywords: cape verdean literature; brazilian literature;comparative studies; house; familiar drama.

A história que deu origem ao romance Os doisirmãos, segundo Germano Almeida, aconteceu na ilha deSantiago, por volta de 1976, quando ele, como Agente doMinistério Público2, foi designado para a “acusação de‘André’ pelo crime de fratricídio”. Passado o julgamento, enunca se sentindo em paz, Germano escreveu o romance,no qual, segundo o próprio autor, a realidade se confundecom a ficção. Desta forma, a escrita parece, para além doofício de escrever, ser uma maneira de o autor resgatar ecompreender os motivos que levaram André (nome fictício),em sua volta a Santiago, a matar o próprio irmão. Naverdade, a consumação do crime ocorre não pela vontadedo infrator, mas pela intensa pressão social exercida sobreele, principalmente por parte do pai, que o ignoroucompletamente até a consumação do fratricídio, querepararia, assim, a honra desfeita.

Diante do impacto do meio sobre André, tendo porconsequência o desfecho do crime, não sabemos até queponto essa personagem é realmente a culpada pelofratricídio. Essa dúvida enriquece o texto e instiga o leitor,que conclui que André se viu obrigado a cometer um crimede acordo com a expectativa e os valores de uma sociedadecujo código de honra está acima de tudo.

2 Essa afirmação consta do frontispício do romance Os dois irmãos, chamando aatenção do leitor para a veracidade da história que inspirou o autor a escrever oromance mencionado.

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O romance de Milton Hatoum centraliza o enredona história dos gêmeos Yaqub e Omar, o caçula, e as relaçõesdestes com a mãe, o pai e a irmã, respectivamente: Zana,Halim e Rania. Nos fundos da mesma casa, localizada numbairro de Manaus, moram a empregada Domingas e seufilho, Nael, um menino que anos mais tarde narra uma estóriacheia de vingança, paixão e relações arriscadas, buscandoa identidade de seu pai (Yaqub ou Omar).

A intriga tem seu início quando Yaqub é mandadopara o Líbano, aos treze anos, para evitar o conflito entre osgêmeos. Como consequência dessa relação conflituosa, oinconsequente Omar estoca o rosto de Yaqub com umagarrafa estilhaçada, causando-lhe um grande corte e umaeterna cicatriz, porque ele havia recebido um beijo no rostoda dengosa mocinha Lívia, que atraía os dois irmãos.

Yaqub volta cinco anos depois, transformado numjovem calado, misterioso e cheio de ressentimentos. Maistarde vai estudar em São Paulo, onde o frio da cidade parececontagiar também seu temperamento, e ali se casa emsegredo. Omar é mandado à capital paulista para tentarobter sucesso semelhante ao do irmão mais velho e descobreque este havia se casado com Lívia, a causadora do principalconflito na infância dos irmãos, o que torna a suareconciliação impossível. Posteriormente, Omar sente-setambém traído nos negócios e espanca Yaqub, que planejaráe executará friamente sua vingança.

Feitas essas abordagens e tendo em vista que acasa é um importante componente nas duas narrativas,voltemos nossa atenção à importância do ambiente da casapara a configuração das personagens. Por isso, parece-nosimprescindível destacar os preceitos teóricos de GastonBachelard sobre o tema. O psicanalista suíço, em La poétiquede l’espace (2000), consagra, do total de dez, os seisprimeiros capítulos aos espaços íntimos e seu significadosimbólico, numa espécie de poética da casa. Bachelardcompara a alma humana a uma casa antiga e, paracompreendê-la e explicá-la, faz-se necessária, segundo opensador, uma investigação cautelosa e pertinaz.

No primeiro capítulo, “A casa. Do porão ao sótão.O sentido da cabana”, Bachelard faz um levantamento das

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noções gerais associadas à moradia, tais como proteção,sossego, estabilidade ou o seu contrário. Observemos:

Porque a casa é o nosso canto do mun-do. Ela é, como diz amiúde, o nossoprimeiro universo. É um verdadeirocosmos.[...] a casa é uma das maiores [forças]de integração para os pensamentos, aslembranças e os sonhos do homem [...].Ela mantém o homem através das tem-pestades do céu e das tempestades davida. É o corpo e é a alma. É o primei-ro mundo do ser humano (2000, p. 24-26).

Se a casa representa a proteção, o nosso primeirouniverso, o corpo e a alma, não se poderia esperar outrodesfecho nos dois romances, na medida em que a casa étomada, o lar é desfeito e tudo se vai transformando emruínas, ou seja, num verdadeiro abismo familiar.

Tanto na narrativa de Hatoum quanto na deGermano Almeida é claro o impacto do ambiente interno eexterno da casa nas personagens. No romance de Hatoum,o narrador Nael (participante e observador) tem umaperspectiva privilegiada e ganha a confiança do leitor: nacondição de filho de um dos gêmeos com a empregada,tinha articulação livre pela casa, e, como observador atentoe pessoa de confiança da mãe e do avô Halim, conheciatodos os segredos da casa, menos sua paternidade.

Assim sendo, para construir seu texto, o narradorvai juntando “cacos” dispersos nos interstícios de suamemória, como as conversas entreouvidas da família. É destaforma que, aos poucos, vamos conhecendo a casa e afamília, na medida em que o narrador vai articulando seusrelatos, assim como os alheios, embora fragmentados e semuma sequência lógica, como se estivesse montando ummosaico.

A casa encontra-se dividida pelas disputas travadaspelos dois irmãos pelo amor da mãe, pela atenção do pai epela constituição de suas identidades. Toda ação estácentrada no conflito dos irmãos que divide a família. Opróprio espaço físico expressa essa violenta divisão e cada

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irmão quer, de alguma forma, demarcá-lo. Podemos citarcomo emblemático o momento em que Yaqub, mesmomorando em São Paulo, envia dinheiro para a reforma dacasa, pois, desta maneira, não haveria como olhar para elasem sentir-se diretamente a sua presença:

Halim não teve tempo de recusar a aju-da providencial. Uma boa amostra daindústria e do progresso de São Pauloestacionou diante da casa. Os vizinhosse aproximaram para ver o caminhãocheio de caixas de madeira lacradas; apalavra frágil, pintada de vermelho numdos lados, saltava aos olhos (DI, p.129).

Esse ato de Yaqub parece representar mais umamarcação simbólica de seu espaço do que propriamenteuma ajuda financeira, ou seja, ele consegue umareapropriação do espaço que lhe foi negado, principalmentequando, ainda na infância, teve que deixar tudo para morarno Líbano. Consciente disso, Omar recusa a ajuda, nãopermitindo que reformem seu quarto: “Omar desprezou areforma da casa e da loja. Proibiu que pintassem seu quarto,privou-se de qualquer sinal de conforto material que viessedo irmão” (DI, p.131).

Semelhantes, contíguos e com a mesma mobília,os quartos dos gêmeos deveriam ser iguais, no entanto, cadaquarto é modelado de maneira completamente diferente.Deste modo, o quarto reflete a personalidade dessaspersonagens e como cada uma ocupa seu espaço particular:os quartos dos gêmeos funcionam como uma espécie deespelho de seus moradores.

O quarto de Omar se encontra em perfeita sintoniacom o desregramento e a promiscuidade dessa personagempela desarrumação e pelos objetos que o compõem:

a coleção de cinzeiros, copos, garra-fas cheias de areia, calcinhas, sutiãs,sementes vermelhas, tocos de batom ebaganas manchadas. Domingas, aovasculhar o guarda-roupa, descobriuum remo indígena, lustrado e escuro.Na pá do remo, nomes femininos gra-vados a ponta da faca (DI, p.107).

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Os objetos pessoais indicam a personalidade dessapersonagem transparente e alheia à moralidade, que nãoaceita que pintem seu quarto, o que equivaleria a permitirque o irmão invadisse, ordenasse e descaracterizasse umespaço só dele.

Dessa forma, Omar recusa a interferência do irmãoem seu espaço mais íntimo e simbolicamente transformaseu quarto numa trincheira, seu refúgio e fortaleza, o únicoespaço que ficou livre das interferências de Yaqub. Porém, oquarto, local também para remoer suas derrotas, nunca foio espaço preferido por Omar. Ele sempre teve preferênciapelo espaço aberto. Quando em casa, geralmente seencontra numa rede na varanda. Ainda que preguiçoso parao trabalho, Omar é um homem de ação. A rede parecerepresentar bem essa personagem carregada da dubiedade,alguém extremamente preguiçoso para o trabalho, noentanto, sempre pronto para as “noitadas”. Diferentementeda cama, a rede geralmente fica num espaço aberto e emmovimento, daí sua sintonia com a personagem, que nãoconsegue renunciar às suas “farras”. E impaciente,perturbado, Omar não conseguiria permanecer muito tempoinerte numa cama e trancado num quarto. O alpendre, ondese situa a rede, faz parte da casa, mas, ao mesmo tempo,está fora dela; sendo assim, é um local de onde Omarpresencia tudo ao redor e marca duplamente seu espaço,estando ao mesmo tempo dentro e fora da casa.

A presença de Omar na rede vermelha é tãomarcante que se torna difícil imaginar o alpendre sem ocaçula ali. O vermelho representa um indício claro darebeldia dessa personagem. Entre outros significados,considera-se o vermelho a cor da paixão fervorosa, daguerra, do ódio, do derramamento de sangue e de tudo oque destrói, mas também do poder. Omar prefere dormirna rede vermelha depois de passar suas “noitadas debebedeira” nos cabarés de Manaus. Na rede, o caçula sente-se em seu trono, onde recebe os cuidados das mulheres dacasa.

Ao fim do romance, Omar volta desamparado paraa casa que não mais lhe pertence, por isso, “[...] não haviamais alpendre, a rede vermelha não o esperava” (DI, p.265). Sem a presença das mulheres da casa, do alpendre e

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da rede, titubeante e à deriva, ele “recuou lentamente, deuas costas e foi embora” (DI, p.266). Restaram apenaslembranças e ruínas.

Por sua vez, ao contrário de Omar, Yaqub fixa-seno quarto, espaço de reclusão, para conseguir seus objetivos:“Ali, trancado no quarto, ele varava noites estudando agramática portuguesa; [...] Nesse gêmeo lacônico, carentede prosa, crescia um matemático” (DI, p.31). No entanto,se Yaqub prendia-se no quarto para estudar e se isolar damãe e, principalmente, do irmão, o quarto, na verdade, nãorepresenta um espaço de total reclusão, pois, enquanto aporta estava fechada para a família, a janela encontrava-seaberta para o mundo. Daquele ponto ele olhavareflexivamente para a cidade de Manaus:

Apoiado no parapeito, Yaqub olhavaos passantes que subiam a rua na dire-ção da Praça dos Remédios. Por ali cir-culavam carroças, um e outro carro,cascalheiros tocando triângulos de fer-ro; na calçada, cadeiras em meio cír-culo esperavam os moradores para aconversa do anoitecer: no batente dasjanelas, tocos de velas iluminavam asnoites da cidade sem luz. (DI, p.22).

Da janela, além de se embeber e reencontrar oespaço perdido da infância, Yaqub tem uma visão ampla dasua cidade e da história dela. Estar à janela é “uma formade sair de casa, sem sair fora de portas” (ALMEIDA, 1985,p.3). Yaqub, recém-chegado, a partir da janela, não apenastem uma visão ampla da cidade e reencontra o passadoperdido, mas, observador discreto e atento a tudo que estáa seu redor, com “olhão de boto” (DI, p.31), já se preparapara mais tarde levar “todo mundo para o fundo do rio” (p.30). Para isso, Yaqub encontra nos estudos a melhor maneirapara se sobrepor a todos e deixar aquele espaço que já lhefora negado, em busca de novos horizontes.

A exemplo do quarto do irmão, o aposento deYaqub também reflete a personalidade dessa personagem,capaz de esconder tudo. Por isso, seu aposento é destituídode qualquer adorno, “sem marcas ou entulho: abrigo de umcorpo, nada mais” (DI, p.107). Dominado pelo

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despojamento, esse espaço tem como tônica a discrição, ovazio e a ausência de qualquer marca em sintonia com apersonalidade dessa personagem.

Por sua vez, se os quartos dos gêmeos sãopersonalizados e refletem as características de seusocupantes, a sala, por ser um espaço social, é por todosfrequentada. Cenário de importantes ações do romance deHatoum, sua mobília não demonstra ostentação: apenasum sofá cinzento, algumas cadeiras de palha, um lustre forade moda, um tapete esgarçado e um altar com a estátua dasanta.

Espaço coletivo, a sala torna-se palco de momentosde amor, destempero e violência, local onde o sagrado e oprofano convivem lado a lado: ali, Halim e Zana viverammomentos de amor, muitas vezes, “com a alma pura e ogosto da hóstia no céu da boca, Halim a erguia na soleirada porta” (DI, p.65). Espaço das orações de Zana eDomingas por possuir um altar, com a imagem de uma santae uma bíblia sagrada; a sala também servia de alcova paraOmar, que não respeitava o espaço predileto do pai, e,como forma de afrontá-lo:

Gandaiava como nunca, e certa noiteentrou em casa com uma caloura, umamoça do cortiço da rua dos fundos,irmã do Calisto. Fizeram uma festinhaa dois: dançaram em redor do altar,fumaram narguilé e beberam à vonta-de. De manhãzinha, do altar da esca-da, Halim sentiu o cheiro de pupunhacozida e jaca; viu garrafas de arak eroupas espalhadas no assoalho, caro-ços e casca de frutas sobre a Bíbliaaberta no tapete em frente do altar, eviu o filho e a moça, nus, dormindo nosofá cinzento (DI, p.91).

Halim golpeia sem piedade o filho por ver em suaatitude um insulto, um enfrentamento a ele e ao que haviade mais sagrado, a crença da mãe. A mesma sala, em quetantas vezes Zana rezara pela volta do filho, tambémpresencia o caçula ser espancado e acorrentado pelo pai.

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O sofá cinzento associa-se a Halim. Em casa, opatriarca geralmente se encontra em seu sofá cinzento. Essacor, composta em partes iguais do preto e do branco, estáassociada à justiça equilibrada. Nas crenças populares,representa a cor dos espíritos e das almas errantes. Ocinzento está associado à cor cinza que, entre outrossignificados, é considerada em algumas culturas comosímbolo da morte. Essas observações nos remetem a umexcerto do romance:

[...] ele não se escondia, apenas cami-nhava, solto, errante, desencantado,um balão que murcha antes de tocaras nuvens. Às vezes, ao chegar em casa,Halim sentava no sofá cinzento e mur-murava: “Morreu o Issa Azmar... mor-reu aquele vizinho da loja, o portuguêsda Barão de São Domingos... como sechamava? (DI, p.210).

Se o sofá cinzento nos remete à personagem Halime afirmamos que o cinzento indiretamente simboliza a morte,o reino transitório, essa personagem não poderia escolherum local mais propício para seus momentos finais:

[...] de braços cruzados, sentado nosofá cinzento. Zana deu um passo nadireção dele, perguntou-lhe por quedormira no sofá. Depois, menos trêmu-la, conseguiu iluminar seu corpo e ain-da teve coragem de fazer mais umapergunta: por que tinha chegado tãotarde? Então com o sotaque árabe, ajo-elhada, gritou o nome dele, já lhe to-cando o rosto com as duas mãos. Halimnão respondeu.Estava quieto como nunca.Calado, para sempre. (DI, p.213).

A casa encontra-se dividida, como já foi referido.Zana sente essa divisão, mas não consegue unificá-la. Aruína da casa representa o fim da matriarca. Ela nãoconsegue dissociar sua vida da casa e, ao perdê-la, vaidefinhando até a morte, que não demora a chegar. A perda

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da casa para Zana não denota apenas uma perda material,mas uma vida desmoronada, cujas lembranças constituíamparte significativa de sua identidade. A casa significa paraela a presença da família, ainda que estilhaçada, inclusivedos já falecidos: o pai Galib e o marido Halim. A epígrafedrummondiana do romance já antecipa a importância doespaço da casa para a recuperação da memória:

A casa foi vendida com todas as lem-brançasTodos os móveis todos os pesadelosTodos os pecados cometidos ou emvias de cometerA casa foi vendida com seu bater deportasCom seu vento encanado sua vista demundo seus imponderáveis [...] (DI,p.9).

Para Zana, perder a casa significa perderabsolutamente tudo, não apenas os parentes ainda vivos,mas até as lembranças dos mortos que ali conviviam emforma de fantasmas. A perda material da casa e adesconstituição da família é consequência da rivalidade entreos irmãos. Perdê-la, para eles, é uma forma de negartotalmente o passado cheio de pesadelos e pecados.

O poema de Drummond “Liquidação”, que servede epígrafe ao romance, retrata com propriedade o espaçoda casa, com suas “lembranças, pesadelos e pecados”.Cada móvel, cada canto ou “bater de portas” traz à tona amemória da família com suas alegrias e tristezas, os fatosdo passado que se quer preservar ou que devem seresquecidos ou suprimidos. Porém, o registro da casa de Zanaé marcado pelo conflito, pelo duelo e pelo sofrimento. Asmelhores lembranças da matriarca são de um passadolongínquo. Ela não aceita a perda da casa para não perdertambém as lembranças que cada canto traz à tona. Nessepassado, como sugere Drummond, houve pecados epesadelos, assim como pode ter havido boas lembranças.Olhar para o espaço da casa é recuperar o registro damemória de um tempo perdido: para recuperá-lo, basta àmatriarca olhar ao redor. Para Bachelard (1978, p.202):“Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido.

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O espaço serve para isso”. Perder a casa significa perderdefinitivamente tudo o que na verdade já se perdeu, ou seja,uma vida inteira marcada pela perda. E esta não marcaapenas a personagem Zana: em Dois irmãos, a família inteiraé marcada pelas sucessivas perdas.

Em Os dois irmãos, de Germano Almeida (1995),desde o suposto adultério até o desfecho do crime, a casaabandona sua função primeira de aconchego e passa arepresentar um local de conflito e sofrimento. O próprio paiafirma que “uma desgraça” se abatera sobre a família.

No retorno à casa paterna, à medida que Andrévai se aproximando do antigo lar, evidencia-sepaulatinamente o calvário que teria pela frente. Após achegada à Ilha do Sal, André segue seu destino rumo àcidade da Praia, na Ilha de Santiago, onde “com o sol tãobaixo e com um tempo tão escuro que aconteceu de factoele recear que o avião não encontrasse a pista” (ODI, p.25). Depois de pousar na Praia, segue num caminhão velhoe cheio de gente e ainda caminha a pé por duas horas, sobum sol causticante, “debaixo daquele calor infernal com asmalas já a fazerem-lhe doer as costas [...] (ODI, p.27), atéchegar como um hóspede indesejado à casa que não oesperava.

Mas, antes de chegar, André tem ainda “um morro”(símbolo do calvário) a transpor e não aparenta nenhumamotivação à chegada, ainda que a viagem se tenha tornadosofrida e sem nenhuma recompensa. O filho já não caminha,arrasta-se ao encontro do pai, que, junto da porta,permanece indiferente ao vê-lo “tropeçando ao peso dasduas malas que agora carregava em cada mão” (ODI, p.31).André parece pedir por socorro, mas a mãe nada pode fazerpara aliviar sua angústia; ela sabe que uma inevitáveltragédia está por vir.

A aproximação de André à casa dos pais remete-nos ao calvário de Cristo, o peso das malas semelhante aopeso da cruz que carregará. Essa afirmação parece serconfirmada no oitavo capítulo, quando o narrador afirmaque estava “André trilhando, pelo menos pela segunda vez,a dolorosa via-sacra de todo um calvário que não tinhadesejado, mas que lhe tinha sido imposto quase pela força

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a partir do momento em que chegou à porta da casa dosseus pais” (ODI, p.68).

O tempo escuro na aterrissagem, o calor infernal,o morro a transpor e outros obstáculos, ou seja, a via-sacraque antecede à tragédia inevitável, remete-nos ao queTomachévski (1971, p. 284) chamou de motivaçãocausadora homóloga, pois o espaço externo de um contextodifícil e adverso, vivido pela personagem, sintoniza-se aoseu estado psíquico.

Na casa paterna, a sala, espaço social, local parareceber os estranhos, é onde a família geralmente seencontra, mas não para conversar, pois só alguns pequenosmonólogos são trocados, algumas vezes provocativos, porparte do pai.

A cozinha, que tem a função de aconchego pelapresença do calor do fogo e dos sentimentos da mãe, não épraticamente frequentada pela família. As refeições nãorepresentam comunhão, mas desconforto e conflito. André,que deveria ser acolhido pela volta à casa paterna, passa aser um intruso na mesa de sua própria casa:

Quando lhe passou a angústia daquelavisão, André regressou a casa para omata-bicho. Disse que se sentou noúnico lugar que se encontrava vago àmesa, mas o pai, sem olhar para ele,resmungou que aquele lugar não lhepertencia (ODI, p.123).

O quarto também não se apresenta como espaçoagradável, torna-se apenas um local de recolhimento eangústia, quando deveria proporcionar um “devaneiointerminável”, como afirma Bachelard (2000). No retornode Portugal, André encontra seu quarto como deixara, masa própria disposição dos móveis indica controvérsia. A cama,principal móvel do quarto, deveria estar no centro dele, mastal não ocorre, ela está localizada num canto à esquerda,podendo representar contrariedade e negativismo em virtudedo conflito gerador de um terrível pesadelo.

O primeiro contato que o leitor tem do quarto deAndré é quando este, ao se aproximar da porta, vê

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primeiramente sobre a cômoda a fotografia de seucasamento, como se nunca tivesse saído de casa. Logo aseguir, o narrador retoma a descrição desse momento paradestacar que:

A cômoda continuava à direita, com afotografia do seu casamento mais pen-dida sobre o lado esquerdo para me-lhor poder ser vista logo da porta doquarto. André reviu-se de fato preto egravata e luvas brancas passando o seubraço pelo braço da Maria Joana todavestida de branco, o longo véu tapan-do-lhe a cara (ODI, p.54).

O fato de a fotografia estar providencialmentecolocada sobre a cômoda para ser vista da porta do quartosugere o orgulho da família pelo casamento do filho. Noentanto, à medida que essa união (o casamento) entra emruína, a fotografia adquire outras conotações para os paisde André. Ferramenta da memória, a fotografia capta,recupera e traz à tona no presente um momento vivido que,de alguma forma, dialoga com o passado. Sobre arepresentação da foto, vejamos o que expõe Bridget ChristineArce:

Embora uma foto seja estática e nãomude jamais, sua significância muda.A imagem envolve o espectador indivi-dual de forma vária, e significa diver-sas coisas em diferentes momentos notempo. A fotografia, como ferramentada memória que recupera e capta mo-mentos efêmeros no tempo, mantémtambém uma relação dialógica com opresente, criando novas significações,enquanto cataloga as antigas. (ARCE,2007, p.228).

Ainda que a foto seja estática e não mude, o seusignificado adquire representações diferentes, dependendo

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do momento vivido. O que era aprazível pode tornar-sedesagradável, por criar novas significações a pessoasdiferentes, dependendo do contexto.

Se, a princípio, a fotografia do casamentorepresentava um momento de júbilo da família, à medidaque a união familiar se esfacela, a fotografia passa a serum incômodo por presentificar um passado que deve seresquecido. Talvez por isso, ao retornar a casa após o primeiroencontro a sós com o irmão, André:

Acendeu o candeeiro e começou arru-mando maquinalmente os seusobjectos sobre a cômoda e virou a fo-tografia do seu casamento que encon-trou voltada para a parede. E deitou-se e fechou os olhos e por longo tem-po esteve revivendo o encontro com amulher naquela tarde, e sorriu feliz porter acreditado no João porque os olhosde Maria Joana não lhe tinham menti-do (ODI, p.77).

O fato de André encontrar a foto virada para aparede é uma forte evidência de que, por não ter vingado asuposta traição no momento oportuno (segundo acomunidade), e o pior, ainda por encontrar-se com a mulher,passa a ser encarado como um covarde. A fotografia viradapara a parede representa o repúdio da família, microcosmode comunidade, às atitudes de André.

O filho, indigno, agora é um hóspede intruso, nãohá mais espaço para ele, mesmo em seu próprio quarto.Depois de ficar desaparecido por treze dias, quando já sepensava até mesmo na morte de André, em seu retorno acasa:

[...] ele tinha encontrado a sua camajá desmanchada e o seu colchão en-rolado e amarrado com uma corda ecolocado num canto do quarto e a fo-tografia do seu casamento metida den-tro de uma gaveta (ODI, p.235).

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A cama desfeita, o colchão enrolado e amarradocom uma corda e a fotografia guardada na gaveta deixamclaro para ele que aquele espaço não mais lhe pertence; éhora de partir como um covarde ou vingar-se do irmão. Opróprio pai já o instigara ao fratricídio.

Como já se disse, em Dois irmãos, de Hatoum, areforma da casa realizada com o dinheiro de Yaqub foi umaforma deste marcar seu espaço, mesmo estando ausente.Yaqub é uma personagem de passagem ou quase umasombra, pelo seu silêncio, mas sua presença torna-seconstantemente representada pelas fotografias que desafiame enfraquecem o caçula, incapaz de se projetar, ascendersocialmente como o irmão mais velho:

Omar sempre esteve presente ali, ex-pandindo sua presença na casa paraapagar a existência de Yaqub. Quan-do Rania beijava as fotos do irmãoausente, Omar fazia umas macacadas,se exibia, era um contorcionista tentan-do atrair a atenção da irmã. Mas a lem-brança de Yaqub triunfava. As fotogra-fias emitiam sinais fortes, poderosos depresença (DI, p. 62).

O caçula continuou a destroçar tudocom fúria: arrastou cadeiras, quebroumolduras dos retratos do irmão, e co-meçou a rasgar as fotos; rasgava,pisoteava e chutava os pedaços demoldura, bufando, gritando (DI, p.172).

A presença das fotos de Yaqub contrapõe-se àrealidade de sua rejeição. Omar sabe que o irmão nãovoltará mais a morar ali, mas suas fotografias o atormentampor preservar a imagem de Yaqub. As fotografias do irmãosão uma espécie de projeção de seu sucesso, pois suaausência é motivada pelo seu êxito na capital paulista, deque o pai sente tanto orgulho; daí mais um motivo para onotável ódio do filho caçula pelos dois.

Voltando ao romance de Germano Almeida (ODI,1995), a casa, que deveria aconchegar a família e apaziguaro conflito instalado, adquire uma função contrária: é nelaque André recebe a maior pressão por meio de um silêncio

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de morte vindo principalmente do pai, que não aceita que o“crime” fique impune. O próprio narrador afirma que umadas falas do pai é “uma espécie de instigação paterna aofratricídio” (p.39). Além disso, todas as portas da casaliteralmente se fecharam para André até o desfecho do crime:

Postou-se um momento junto da mesaolhando o filho numa concentraçãoestática e ausente, como se estivesse avê-lo num mundo diferente do seu ouentão a despedir-se dele e depois, sempressas, como se executasse um ritual,começou a fechar todas as janelas dacasa e a porta que dava para o quintale depois trancou uma das portas dafrente deixando a outra apenas entre-aberta e encunhada com uma pedra(ODI, p.124-125).

No dizer de Laura Cavalcante Padilha, em Oespaço do desejo, as “janelas são a imagem plástica daabertura” (1989, p.42). Como tal, possibilitam, sem sair decasa, a que se tenha contato com o que está do lado defora. Permitem olhar para o horizonte e sonhar com umanova realidade. Com as portas e janelas fechadas, Andrésente-se confinado naquele espaço sem sequer poderimaginar uma nova realidade, a menos que sua honra sejarefeita.

Parece-nos que fechar todas as portas e janelasda casa em momentos de luto (ou semelhantes a ele) eraum hábito em algumas comunidades de Cabo Verde. Nolivro de crônicas A ilha fantástica (1994), de GermanoAlmeida, o narrador em primeira pessoa, numa digressão,relata um antigo costume da comunidade da Boa Vista:

A devolução de uma noiva por faltados três vinténs constituía uma verda-deira tragédia, mil vezes pior do queuma moça solteira de família remedi-ada ficar grávida: era logo declaradoem casa um luto carregado para todaa família, com portas e janelas cerra-das, todos os vizinhos, parentes e co-

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nhecidos comparecendo para apresen-tarem aos pais as suas condolências,exactamente igual a um caso de nojo.(ALMEIDA, 1994, p.46).

Essa última inserção traz à tona um velho hábitocaboverdiano de o noivo devolver a noiva por ela não sermais virgem, como se esperava. O luto cerrado declaradopela família da noiva em virtude da vergonha e da desonrafunciona como evidência, para a comunidade, de que nãoera conivente com tal mácula: as portas e janelas da casasão trancadas em sinal de nojo, para receber os pêsamesdas pessoas mais próximas, numa espécie de ritual em que“as visitas falavam sempre em voz muito baixa” (ALMEIDA,1994, p.46), em sinal de respeito pelo infortúnio presenciado.

Esse hábito tradicional também aparece em Os doisirmãos, quando o pai de André fecha as portas e janelas dacasa num momento de extrema aflição em virtude de o filhocaçula e Maria Joana terem “transgredido” os valores morais,sem ainda terem sofrido, à altura, a inevitável penalidade.O fato de ficar uma única porta entreaberta pode sugerirque ainda haveria uma saída para o filho mais velho, ouseja, vingar-se. E, ao consumar a vingança, ansiosamenteesperada por todos, novamente todas as portas e janelassão reabertas para André:

[...] reparou que as janelas da casaestavam de novo abertas, as duas por-tas escancaradas como se fosse dia defesta, e olhava ainda hesitante a teme-rosa figura do pai quando este desceuos degraus da entrada e, andando de-vagar, mas firme e solene, caminhouaté onde o filho estava e sem quais-quer palavras o tomou pela mão e oconduziu para dentro da casa (ODI,p.152-153).

A porta simboliza a travessia, a passagem doprofano para os valores consagrados pela comunidade, domundo subterrâneo (porta fechada), para o céu, a liberdadesocial (porta aberta). O pai de André, ao vir ao seu encontroe conduzi-lo para dentro de casa, comprova que o filho já

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não é mais um estranho na própria comunidade, uma vezque novamente se conforma aos padrões de conduta locale por isso as portas se reabrem para ele. Agora em casa, nacompanhia do pai, “André tinha-se de novo deitado sobre ocolchão estendido no chão e o pai estava sentado num cantoe enrolava um cigarro” (ODI, p.163). Sobre estar num canto,afirma Bachelard:

A consciência de estar em paz em seucanto propaga, por assim dizer, umaimobilidade. A imobilidade irradia-se.Um quarto imaginário se constrói aoredor do nosso corpo, que acredita-mos estar bem escondido quando nosrefugiamos num canto (2000, p.34).

Esse excerto de Bachelard parece representar ossentimentos do pai que procura encontrar-se em paz consigomesmo, porque o respeito voltara à sua casa. Daí seu refúgionum canto. No entanto, o fato de enrolar o cigarro, alémdo vício, pode sugerir um estado de perturbação pela perdado filho mais jovem.

Honra refeita, o crime ansiosamente esperado portodos, em Os dois irmãos, trouxe a casa à função primeira,pois ela volta a ser um espaço de aconchego, principalmentepara o filho eleito pelo pai. As próprias visitas, antes ausentes,retomam sua constância.

Na obra de Hatoum, a casa é destruída. A últimanota da destruição do passado se estabelece com atransferência da casa de Zana para Rochiram: “a fachadaque era razoável tornou-se uma nota de horror” (DI, p.189).O final do romance não oferece saída, tudo se perdeu.Restaram apenas ruínas e silêncio.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

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Aceito em: 03.06.2010

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Benedita de Cássia Lima Sant’Anna¹

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: A origem da imprensa no Brasil vem sendo objetode inúmeros estudos que reproduzem quase sempre o mesmoconteúdo, ainda que abordado de forma diversa. Apesardisso, é importante dar seguimento a tais estudos, comomodo de valorizar o passado e conhecer o processo quesuscitou o aparecimento de debates políticos, sociais,culturais e literários em nosso país. Como não há meio maiseficaz para se fazer isso do que por intermédio dainvestigação e análise de periódicos da época, traçaremos,neste texto, considerações referentes a tais periódicos.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: século XIX; Brasil e Portugal; periódicosáulicos; imprensa em Londres.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: The origin of the press in Brazil has been the themeof several studies which deal almost with the same subject,even if approached differently. Nevertheless, it is importantto carry on such studies as a way of valuing the past andknow the process which gives rise to the emergence ofpolitical, social, cultural and literary debates in our country.Since the only efficient way to do that is to research andanalyze the journals of that period, we will ponder aboutsuch journals in this paper.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: 19th century; Brazil and Portugal; courtly journals;the press in London.

¹Pós-Doutora em Letras. E-mail: [email protected]

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Escrever sobre a imprensa oficial brasileira e sobrea imprensa de língua portuguesa em Londres é analisar,mesmo que em linhas gerais, a fundação da Imprensa Régia,os primeiros periódicos áulicos, os primeiros debates entreos periódicos brasileiros, publicados com ou sem auxílio dogoverno. É também aludir acontecimentos referentes àhistória do Brasil que estão relacionados à própriahistoriografia da imprensa periódica aqui publicada.

Nesse sentido, informamos que, conformeadvertem Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, na obraHistória da imprensa no Brasil: “A imprensa é, a um só tempo,objeto e sujeito da história brasileira. Tem certidão denascimento lavrada em 1808, mas também é veículo paraa reconstrução do passado” (2008, p.8). Ou seja, a imprensanasce oficialmente no Brasil com a chegada da corte de D.João VI e testemunha, registra e veicula a história do país,bem como a sua própria história, que se constrói juntamentecom a do Brasil, como parte integrante de um mesmoprocesso que se constitui.

É evidente que no longo período que tem inícioapós o achamento do Brasil, ocorrido em 22 de abril de1500, e, mais precisamente, após a instalação dacolonização modelo misto (1548)1, a qual restringia asatribuições dos particulares em nosso território e envolviaforte empenho militar, econômico e jurídico da Coroa até achegada da corte (1808), houve aqui circulação deperiódicos publicados em Portugal e de material que erailegalmente impresso em solo brasileiro, mas tal circulaçãonão era permitida, já que era proibido instalar tipografiasno território. Todas que se instalavam eram destruídas, sobas ordens restritivas do governo português, que impediaqualquer movimento que pudesse dar origem à imprensabrasileira.

Entretanto, como se sabe, em 1807, Portugalrecebeu mais um ultimato de Napoleão e deveria fecharseus portos à Grã-Bretanha, caso contrário, seria invadidopor um exército franco-espanhol (ALVES, 2000). Para evitar

¹Após a fase do escambo e de parcos contatos entre Portugal e Brasil (1500 e1530), D. João III ensaiou três modelos de colonização: o primeiro, estatal (1530-1533), abandonado em razão de seu elevado custo; o segundo, privado (1534-1548), que se revelou insuficiente; e o terceiro, misto, que se inicia em 1548 (CREVO,2000, p.63).

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as humilhações napoleônicas, semelhantes às que fora vítimaa coroa espanhola % cujo rei, Carlos IV, pai de CarlotaJoaquina, foi obrigado a renunciar em favor do filho,Fernando VII, e este, por sua vez, renunciou em favor deJosé Bonaparte % e contando com a proteção inglesa, opríncipe regente, D. João VI, acompanhado de sua mãe, arainha D. Maria I, de sua esposa, Carlota Joaquina, de seusfilhos e toda sua corte, num total de aproximadamente quinzemil pessoas, transfere-se para o Brasil, chegando inicialmentea Salvador (BA), em 22 de janeiro de 1808, e,posteriormente, em 7 de março de 1808, ao Rio de Janeiro.

Há de se mencionar, no entanto, que, conformeadverte o professor e historiador Amado Luiz Cervos (UnB),a vinda da corte portuguesa para o Brasil não se resulta deum imprevisto:

Pensou-se, de tempos em tempos, natransferência do trono português parao Brasil, desde que, pela primeira vez,o donatário da capitania de SãoVicente, Martim Afonso de Souza, ex-pressou essa idéia ainda no século XVI[...] Quando começou o envolvimentoportuguês na guerra atlântica, Rodrigode Sousa Coutinho condicionava a sal-vação da monarquia portuguesa à as-censão do Brasil a uma posição cen-tral no Império Lusitano [...] Afastadado Governo Sousa Coutinho, Lisboaesqueceu-se momentaneamente da es-tratégia proposta pelo Ministro. Con-tudo, na Convenção de 22 de outubrode 1807, Portugal e Inglaterra recupe-raram a idéia e regularam as condi-ções da transferência da Corte. (CER-VO, 2000, p.73).

Ainda sobre o fato, o historiador português AntónioVentura, professor na Universidade de Lisboa, afirma que amudança da família real portuguesa para o Brasil foi umprojeto meticuloso. Segundo ele, o objetivo principal datransferência da corte foi preservar a integridade física dafamília real e a legitimidade da coroa2 Além disso, o

2 Informações retiradas do site: http://diariodorio.com/mudana-da-famlia-real-foi-projeto-meticuloso/, acessado em 04/11/2009.

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historiador afirma que uma viagem como a realizada por D.João VI não poderia ter sido feita repentinamente, sem algumplanejamento, tendo em vista, por exemplo, que a RealBiblioteca, hoje parte da Biblioteca Nacional, foi todacatalogada e transferida para o Brasil, juntamente com acorte.

Mas seja qual for o “real motivo” que justifica avinda da corte, o fato é que essa transferência foi maisimportante para nós do que para os portugueses e é graçasa ela que, conforme observamos na página anterior, nasceoficialmente a imprensa no Brasil:

A imprensa surgiria, finalmente, no Bra-sil - e ainda desta vez, a definitiva, sobproteção oficial, mais do que isso: poriniciativa oficial - com o advento daCorte de D. João [VI]. Antônio de Ara-újo, futuro conde da Barca, na confu-são da fuga, mandara colocar no po-rão da Medusa o material gráfico quehavia sido comprado para a Secreta-ria de Estrangeiros e da Guerra, de queera titular, e que não chegara a sermontado. Aportando ao Brasil, man-dou instalá-lo nos baixos de sua casa,à rua dos Barbonos. (SODRÉ, 1966a,p.22.)

Assim que o material gráfico trazido de Portugalfoi montado na residência de Antônio de Araújo, D. João VIdecreta, por intermédio do ato real de 31 de maio, que,atendendo à necessidade de oficina de impressão no reino,ficava estabelecido que a casa onde se havia montado omaterial serviria inteiramente de Impressão Régia, “onde seimprimam exclusivamente toda a legislação e papéisdiplomáticos, que emanarem de qualquer repartição do meuReal Serviço, ficando inteiramente pertencendo o seu governoe administração à mesma Secretaria” (apud SODRÉ, 1966b,p.22). Na data citada, D. João VI não apenas reconhece eoficializa a atividade gráfica no Brasil, mas também instauranormas rígidas para regularizar a atividade da imprensabrasileira.

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Entre as normas por ele estabelecidas, estava acriação de uma junta responsável pelo exame dos papéis elivros enviados para serem publicados na Imprensa Régia.Era a censura. Temendo que se imprimissem textos contra areligião, o governo e os “bons costumes”, nada se imprimiano Brasil sem o exame prévio do frei Antônio de Arrábida,do padre João Manzoni, Carvalho e Melo, bem como deJosé da Silva Lisboa, todos censores reais.

A censura controlava não só as impressões depapéis no Brasil, como também a circulação deles. Nesseprimeiro momento, um dos atos restritivos dos censores foiproibir a entrada e a circulação do Correio Brasiliense ouArmazém Literário no Brasil, em razão de o jornal tecer críticasaos costumes políticos aqui exercidos e ao governo brasileiro:“[...] a 27 de março de 1809, o conde de Linharesdeterminava ao juiz da Alfândega, José Ribeiro Freire, aapreensão de material impresso no exterior, contendo críticasao governo” (SODRÉ, 1966c, p.29).

O jornal, lançado em Londres no dia 1º de junhode 1808, foi publicado mensalmente até dezembro de 1822,período em que são editados 175 números, de 96 a 150páginas cada um, os quais compõem 29 volumes. Tinha oformato in. 8º e saiu com o objetivo de planejar para oBrasil instituições liberais e atacar os defeitos daadministração.

Seu proprietário era Hipólito José da Costa PereiraFurtado de Mendonça, mais conhecido como Hipólito Joséda Costa, jornalista e diplomata brasileiro nascido na Colôniado Sacramento, então domínio da Coroa Portuguesa (hojepertencente ao Uruguai). O jornalista passou a adolescênciaem Pelotas, no Rio Grande do Sul, iniciou seus estudos emPorto Alegre, mas os concluiu na Universidade de Coimbra,em Portugal, onde se forma em Leis, Filosofia e Matemática.Filho de família abastada no Rio de Janeiro, é enviado comodiplomata pela Coroa portuguesa ao México e aos EstadosUnidos, onde ingressa na maçonaria.

De volta a Portugal, e a ainda a serviço da Coroa,vai para Londres (1802) com o objetivo de adquirir obraspara a Real Biblioteca, aquela que posteriormente seriatrazida para cá por D. João VI. Lá estabelece contato entre

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as Lojas Maçônicas3 Portuguesas e o Grande Oriente4. Emrazão disso, quando retorna ao reino, é detido pelainquisição por ordem de Diogo Inácio de Pina Manique,que o acusa de disseminar as ideias maçônicas na Europa.

Após a prisão, Hipólito José da Costa éencaminhado às celas do Tribunal do Santo Ofício, ondepermanece até (1805), quando, com o auxílio de seus irmãosmaçons e sob o disfarce de criado, foge para a Espanha ede lá para a Inglaterra. Na Inglaterra, contando com aproteção do príncipe Augusto Frederico % duque de Sussek,sexto filho de Jorge III do Reino Unido e grão-mestre damaçonaria %, obtém alguns direitos políticos e passa a editarregularmente o Correio Brasiliense.

Considerado o primeiro periódico brasileiro, oCorreio Brasiliense defendeu as instituições livres em Portugale no Brasil, manteve-se contra a pressão da censura econstituiu órgão de estudos dos problemas brasileiros, fossemesses de origem econômica, política e/ou social. Além disso,mostrou-se favorável à reforma monárquica: “[...] tomoupara si a tarefa de convencer as elites políticas espalhadaspelos domínios de sua majestade de que a melhor alternativa[...] estava na união de todos em torno da reforma daMonarquia” (JANCSÓ; SLEMIAN, 2002a, p.608).

Segundo o proprietário do Correio Brasiliense, anatureza já havia feito sua parte ao dotar o Brasil comrecursos e riquezas estupendas, mas as dificuldades daquelestempos exigiam a invenção de método político quetransformasse tais dotes em instrumento de grandeza doEstado. Por esse motivo, pretendia que seu jornal espalhasseas luzes para libertar das trevas e da ignorância seu leitor,que, em sua maioria, era formado por habitantes do vastoImpério:

O jornal nascia, portanto, sob a égidedo patriotismo e da liberdade de im-prensa, e destinava-se expressamenteaos compatriotas5 de Hipólito, àque-les que, como ele, tinham nas partesdo Brasil a sua pátria, entendendo-se

3 Em boa parte do mundo, os maçons se juntam, formando as lojas maçônicas, ouseja, uma espécie de associação de caráter universal, iniciática, filosófica, filantró-pica e educacional.4 Designação dada à união política formada por lojas maçônicas autônomas, iguaisem direitos e honras e independentes entre si.5 Correio Brasiliense, v.1, p.4.

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por isto a terra que lhes serviu de berçoou foi por eles adotada para sê-lo dosseus descendentes. De resto, em nomedo imperativo das luzes, o novo jornalrompia com a tradicional submissãodos letrados aos ditames do Trono, epara fazê-lo evocava uma tradiçãolibertária da qual, segundo ele, a na-ção portuguesa fora privada pelosdescaminhos de maus governos.(JANCSÓ; SLEMIAN, 2002b, p.9).

O que não significa que o Correio Brasiliense eracontra a monarquia, ou mesmo contra a dinastia Bragança.O jornal defendia a soberania da Coroa nos domínios queeram seu por direito, apoiava o projeto de união luso-brasileira e comungava com o governo no tocante ao repúdioàs ideias de revolução e ruptura. Preparou o Brasil para ainstauração de um Império constitucional e manteve-se fielao pensamento de promover a prosperidade do Império, deintroduzir na administração e no sistema de governo reformasque consideravam necessárias. Entretanto, aderiu, ainda quetardiamente, à independência do Brasil.

Assim, verifica-se que o Correio Brasiliense nãotinha por finalidade pregar a emancipação do Brasil, e defato não a pregou, mas defendeu com eloquência amoralização do governo vigente, a implantação de umsistema representativo, os direitos individuais e a liberdadede imprensa e por tais defesas foi alvo da censura.

Entretanto, importa mencionar que, conformeobserva Ana Luiza Martins, a censura não foi a únicaresponsável pelo início da experiência periódica de a Colôniater sua origem no exterior:

Outros tantos fatores foramdeterminantes na criação de umperiodismo sediado no estrangeiro, acomeçar pelo ambiente acanhado doBrasil, pouco estimulante para investi-mentos no ramo, considerando-se a li-mitação cultural do meio, a maciçapopulação analfabeta e o desconheci-mento dos prelos – elementos quedesencorajavam, de pronto, a ativida-

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de de forte peso mercantil. (MARTINS,2001a, p.47.)

Assim, entre outros fatores, entende-se que manteruma publicação apenas com o lucro obtido com a vendade assinaturas era, no Brasil, tarefa irrealizável. Mesmo parao jornal brasileiro impresso em Londres, independente dacensura direta e da ausência de concorrentes competitivos,foi um empreendimento financeiramente deficiente.

O Correio Brasiliense, certamente, não teriasobrevivido ao longo de seus treze anos se não fossem astentativas de Hipólito José da Costa de arrecadar fundospara o empreendimento, seja de forma lícita, por intermédiodas largas relações que possuía, seja de forma misteriosa,por intermédio de empréstimos suspeitos e chantagenseditoriais (2001b, p. 48-49).

Ao contrário do jornal de Hipólito José da Costa,a Gazeta do Rio de Janeiro, segundo jornal brasileiro eprimeiro impresso no território, não precisou de mobilizaçãofinanceira, seja por intermédio de empréstimos e/ou doaçõesde terceiros, para publicar seus números e manter-se.Lançada em 10 de setembro de 1808 pela então recém-fundada Imprensa Régia, a Gazeta era órgão oficial dogoverno, portanto, subsidiada por ele. Saiu mais ou menosaos moldes da Gazeta de Lisboa, primeiro jornal publicadoem Portugal, que circulava no Rio de Janeiro desde 1778.

Sobre a Gazeta de Lisboa importa mencionar quefoi lançada no ano de 1641, durante o reinado de D. JoãoIV, e reaparece em 1715, durante o reinado de D. João V,sob a direção de José Mascarenhas. Entre 1762-1778, tema publicação suspensa; posteriormente, ressurge, mantendo-se sempre como órgão da imprensa oficial. Entretanto,assume ao longo de sua história outros nomes, como Diáriodo Governo e Diário da República.

Do mesmo modo, a Gazeta do Rio de Janeiromanteve-se sempre como jornal oficial. Dirigido inicialmentepelo frei Tibúrcio José da Rocha, que deixou o cargo quatroanos depois, sendo substituído por Manuel Ferreira de AraújoGuimarães. Seu conteúdo atendia restritamente aosinteresses da Coroa: trazia comunicados do governo,informações sobre a política internacional, particularmentea realidade europeia diante dos conflitos napoleônicos, além

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de notícias dos dias natalícios da família reinante einformações sobre o estado de saúde de todos os príncipesda Europa. Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro, escreveuWerneck Sodré:

Era um pobre papel impresso, preocu-pado quase que tão-somente com oque se passava na Europa, de quatropáginas in 4º, poucas vezes mais, se-manal de início, trissemanal, depois,custando a assinatura semestral 3$800,e 80 réis o número avulso, encontradona loja de Paul Martin Filho, Mercadorde Livros. (SODRÉ, 1966d, p.23.)

Entretanto, não podemos deixar de atribuir méritoà Gazeta do Rio de Janeiro, já que, mesmo sendo de naturezapolítica e doutrinária, a folha coloca em circulação, aindaque de forma reduzida, informações, palavras e constituipara o historiador precioso documento da vida cotidiana,“pois sua seção de avisos deixa entrever vários aspectos doRio de Janeiro que dificilmente se encontram em outradocumentação”, como os anúncios referentes à “proliferaçãode mestres particulares, nacionais e estrangeiros, ensinandoas mais variadas matérias a grupos sociais e etários distintos”(SILVA, 2007, p.22).

Além disso, a Gazeta do Rio de Janeiro sinalizaum impulso para o surgimento de outras folhas, ainda quepertencentes ao governo. Com o passar dos anos, sobretudoa partir de meados de 1821, mostra-se mais do que umsimples veículo de interesse político e passa a interagir como cotidiano da cidade, assumir princípios, como a defesado liberalismo e a modernidade política, os quaiscontinuariam orientando a imprensa brasileira:

[...] a partir de meados de 1821 (apósa Revolução do Porto e com o ministé-rio de José Bonifácio e convocação daConstituinte brasileira), a Gazeta do Rio(o título é reduzido) passa a defender oliberalismo e a modernidade política(citando Rousseau e outros da mesmalinha). E acompanha de perto o pro-cesso de separação entre Portugal e

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Brasil, posicionando-se a favor da in-dependência deste antes mesmo doCorreio Brasiliense. (MOREL, 2008a,p.31-32).

Por outro lado, o Idade d’Ouro do Brasil, primeiroperiódico baiano e segundo publicado oficialmente noterritório brasileiro, impresso na tipografia de Manuel Antonioda Silva Serva, “a única tipografia então existente na cidadede Salvador” (VIANA, 1945, p.19), logo que saiu do prelo,em 14 de março de 1811, tornou-se órgão da imprensaoficial e manteve-se como órgão conservador até a suasupressão.

Esse periódico tinha também o formato in 4, quatropáginas, circulava às terças e sextas-feiras, ao preço de 60réis o exemplar e 8$000 a assinatura anual. Era redigidopor Diogo Soares da Silva Bivar e pelo padre Inácio José deMacedo. Trazia notícias sobre festejos e comércio local,ciências, artes e acontecimentos internacionais. Assumiu ocompromisso com a verdade, expressado desde a epígrafeque o apresenta ao público “Falai em tudo verdades, a quemem tudo as deveis” (Idade d’Ouro do Brasil, 1811, p.1). Noentanto, não demonstrou nenhum respeito por ela, obedeceuàs imposições severamente traçadas pelas autoridades.

Publicado sob a proteção do conde dos Arcos6, oIdade d’Ouro do Brasil manteve sempre a mesma linhaeditorial e defendeu o absolutismo monárquico português.Em razão disso, com a derrota e expulsão das forçasportuguesas, comandadas pelo brigadeiro Inácio LuísMadeira de Melo, em 2 de julho de 1823, o periódico deixade circular.

Sobre o episódio que serve como marco doencerramento definitivo da impressão do Idade d’Ouro doBrasil, e que é acontecimento de suma importância na lutapela consolidação da nossa emancipação política emrelação ao reino de Portugal, escreveu o historiador BorisFausto:

Na Bahia, as lutas entre as tropas por-

6 Refere-se ao oitavo agraciado com o título, Dom Marcos de Noronha e Brito(1771-1828), administrador colonial português e último vice-rei do Brasil, que,com a chegada da família real, é transferido para a Bahia como governador.

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tuguesas, lideradas pelo general Madeirade Melo, e as favoráveis à Independên-cia [do Brasil][do Brasil][do Brasil][do Brasil][do Brasil] resultaram em centenasde mortos. A facção lusa foi de iníciovitoriosa até que as forças brasileiras deterra, apoiadas pelos senhores deengenho do Recôncavo e por uma frotasob o comando de Cochrane, forçarama retirada final dos portugueses, em 2de julho de 1823. (FAUSTO, 2007a,p.144).

Da mesma tipografia do Idade do Ouro, saiu,ainda em 1812, o primeiro periódico literário brasileiro, AsVariedades ou Ensaios de Literatura. Folheto de trinta páginas,obviamente sem foto ou ilustração, contendo discursos sobrecostumes, sobre virtudes morais e sociais, novelas deescolhido gosto moral, resumos de viagens e, ademais,trechos de autores clássicos, em prosa e em verso.

Considerada por muitos estudiosos uma revista,portanto, a primeira impressa no Brasil, As Variedades é umamiscelânea que ofereceu ao público um pouco de tudo. Mas,devido à falta de leitores, durou apenas dois números: oprimeiro impresso no início de fevereiro e o segundo, duplo,impresso nos fins de julho de 1812. Deixou o árduo legadode divulgar literatura e cultura por intermédio de textoimpresso “ em um território em que ainda não havia públicoleitor para isso “ a’O Patriota (1813-1814), jornal literário,político e mercantil do Rio de Janeiro.

Fundado por Manuel Ferreira de AraújoGuimarães, que, posteriormente, sucedera o frei Tibúrciona redação da Gazeta do Rio de Janeiro, O Patriota foipublicado de janeiro de 1813 a dezembro de 1814. Duranteo primeiro ano teve periodicidade mensal e, depois, passoua ser bimestral. A assinatura semestral custava, em 1813,4$000 réis. Em 1814, passou para 6$000 réis. Do mesmomodo, o número avulso d’O Patriota, que durante o ano de1813 custava 800 réis, teve um acréscimo, em 1814, epassou a custar 1.200 réis.

Saído também dos prelos da Imprensa Régia eherdeiro do Iluminismo setecentista, O Patriota divulgava emsuas seções textos relacionados às artes, à agricultura, àbotânica, ao comércio, à geografia, à mineração, à história,

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à filosofia e à política. Tinha como colaboradores homensque atuavam diretamente no círculo de influência dogoverno, ou seja, estadistas, funcionários públicos, militarese professores, entre os quais José Bonifácio de Andrada eSilva, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, Mariano José Pereirada Fonseca (futuro marquês de Maricá), o juiz dosInconfidentes, Antônio Diniz da Cruz e Silva, além de SilvestrePinheiro Ferreiro.

Por intermédio da publicação d’O Patriota,inaugura-se “um espaço para manifestação da vidaintelectual luso-brasileira, colocando-se o Brasil como centroda nação portuguesa” (MOREL, 2008b, p.32). Além disso,segundo Hélio Lopes, O Patriota “não apenas abre ocaminho às publicações científico-literárias, mas também,até certo ponto, reata a nova era a um passado relativamenterecente” (LOPES, 1978a, p.9).

Convém informar que O Patriota, As Variedadesou Ensaios de Literatura, Idade de Ouro do Brasil, bem comoa Gazeta do Rio de Janeiro, não foram os únicos exemplaresda imprensa áulica que o governo joanino forjou ouamparou:

Pela necessidade de enfrentar e neu-tralizar a ação do Correio Brasiliense,[o governo joanino] estimulou algumastentativas de periodismo, começandopelos folhetos de tipo panfletário ecompletando-se logo depois, com ór-gãos específicos do jornalismo.(SODRÉ, 1966e, p.35).

Ainda em 1809, a Impressão Régia lança emLisboa, “com licença da Mesa do Desembargo do Passo”,as Reflexões sobre o Correio Brasiliense, redigido pelo freiJoaquim de Santo Agostinho Brito França Galvão7. Operiódico entra em cena fazendo apologia ao bem-estardos homens e à verdade, pregando o desprezo aos quecom ela faltasse:

7 Natural de Tavira (1767), formado em Teologia, pertenceu à ordem dos EremitasCalçados de Santo Agostinho. Sócio da Academia Real de Ciências, participou narecolha de material para a elaboração da obra Documentos para a história dePortugal.

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A verdade, e o bem dos homens devemser os motivos de todas as composiçõesliterárias. O escritor, que se não propõemespalhar sobre seus semelhantes às luzesde humana sã razão, dilatar o impérioda virtude, e melhorar a condição dohomem social, inculcando moderaçãoaos que mandão, e sofrimento aos queobedecem, é um charlatão indigno, quemerece o desprezo dos homens justos, esábios de todos os séculos, e de todasas nações. (Reflexões sobre o CorreioBrasiliense, 1809a, p.3).

Entretanto, a única verdade que lhe interessavaera a contada e construída por seu redator, particularmentese incentivasse a opinião pública a questionar Hipólito e oCorreio:

Julguem os homens desapaixonados,se o redator do Correio Brasiliense de-sempenha a sua promessa daquelesdiferentes artigos, e se o fruto do seutrabalho toca a meta da esperança, aque se propôs: o meu será examinar[...] a sua boa, ou má fé na exposiçãode fatos. Mas, primeiro que tudo duaspalavras bruscas ao redator do CorreioBrasiliense. Amigo. Falar do que se ig-nora e ser tolo, ou pedante [...] Esgri-mir mui sisudamente uma espada dedois gumes, cortando o talho, e revés,quimeras, e fantasmas, é o mesmo quedar por paus, e por pedras. (Reflexõessobre o Correio Brasiliense, 1809b, p.4-5).

Se as opiniões divulgadas no Correio Brasiliensesobre o governo davam “por paus, e por pedras”, portanto,se não tinham valor como frei Joaquim de Santos Agostinhodesejava pregar, a preocupação em rebatê-las não sejustificaria, o que permite indagar que o Correio estimulava,de fato, o público a refletir sobre atos do governo vigente esobre o modo governamental de gerenciar as decisões. Porisso, conforme explicitamos, era temido pelo governo, que

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não desejava nenhum tipo de questionamento acerca deseus atos.

Importa ressaltar que os ataques do frei Joaquimao jornal de Hipólito só serviram para ampliar o interessedo público e, consequentemente, o prestígio do CorreioBrasiliense junto a esse. Ressalta-se ainda que dois anosdepois do lançamento das Reflexões sobre o CorreioBrasiliense, uma nova tentativa de combater o órgão élançada, desta vez, em Londres.

Redigido pelos médicos portugueses Vicente PedroNolasco da Cunha e Bernardo José de Abrantes e Castro,vindo reunir-se a esses, a partir de 1814, o jornalista e políticoportuguês José Liberato Freire de Carvalho, O InvestigadorPortuguês em Inglaterra ou Jornal Literário Político (1811-1819) era um periódico mensal patrocinado pela CoroaPortuguesa no Rio de Janeiro, que a princípio remetia aojornal 14 mil reis por edição.

Esse jornal integra a corrente jornalística conhecidacomo os jornais de Londres, a qual também se insere operiódico O Português ou Mercúrio Político Comercial ePartidário, redigido pelo jornalista lusitano, protegido deHipólito, João Bernardo da Rocha Loureiro. Jornal mensalque circulou em dois momentos: 1814 a 1822 e 1823 a1826, O Português foi acusado pela autoridade lusitana deincitar o povo a fazer tumultos e revoluções, de disseminarideias sobre anarquia, de contar fatos inverossímeis sobre aRevolução Francesa. Por isso, juntamente com o CorreioBrasiliense, foi proibido de ser editado e de ser vendido emPortugal e em seus domínios.

Outro periódico que se integra à corrente citadae faz oposição ao jornal de Hipólito e ao jornal de JoãoBernardo é O Campeão Português ou o Amigo do Rei e doPovo,8 também redigido pelo José Liberato Freire deCarvalho, que, depois de ter abandonado a redação d’Oinvestigador, lança em Londres O Campeão Português,publicação quinzenal de início, depois mensal, que circulouentre julho de 1819 e junho de 1821 e definia-se comoórgão político publicado para advogar a causa de Portugal.

8 “Pela sua orientação abertamente contra a política ‘brasileira’ da Corte, O Cam-peão opôs-se, mais frontalmente do que qualquer outro, ao Correio Brasiliense”(TERGARRINHA, 1989, p.88).

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Mas devido ao teor e a excessos de suas críticas, inclusive aHipólito e ao Correio, foi alvo da censura lusa.

Sobre a censura imposta a esses jornais, importamencionar que ela não teve o resultado desejado: a ausênciade estruturas fiscalizadoras nos portos brasileiros, recém-abertos, facilitava a chegada dos jornais a seus leitores; alémdisso, a proibição oficial funcionava como propaganda,estimulando o interesse do público pelos impressos.

Com relação a essa censura, especificamente noque se refere às ordens que vetavam a circulação d’OCampeão Português, citamos um trecho do livro Memóriasda vida de José Liberato Freire de Carvalho, publicado pelatipografia de José Batista Morando, em Lisboa, no ano de18559:

E como esta medida foi impotente eineficaz, bem com são todas as dessaespécie, direi o que nesse tempo meescreveu o meu correspondente de Lis-boa. Disse-me, formais palavras: “Aquichegou do Rio de Janeiro a ordem paraproibir o seu Campeão. Este governo,já mais prudente, não quis tomar sobreseus ombros este pecado do estulto evelho Portugal; contentou-se em man-dar pregar pelas esquinas de Lisboa aproibição, assim como aparecera emcorpo e alma nas esquinas do Rio deJaneiro; e aconteceu exatamente quenesse dia desembarcasse são e salvoesse mesmo seu Campeão. Assim, aopasso que se estava executando estemoderado auto-de-fé, atravessava eletriunfante as ruas de Lisboa, às costasde um galego, que eu ia acompanhan-do em distância. Não tenha por issosusto, e fique certo, que se até agora oliam cem, de hoje em diante há de serlido por duzentos, ou mil”. (CARVALHO,1855, p.202-203).

9 Há duas referências de datas: uma logo após o título (1854) e a outra após onome da tipografia (1855). Acreditamos que a primeira refere-se à data em que asMemórias foram redigidas e a segunda, à data em que foi impressa. (OBS.: Leituraon-line, concluída em 24/11/2009, por intermédio do sitewww.books.google.com.br).

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Nota-se que, de fato, a censura não surtia o efeitodesejado e, ademais, conforme adverte José Tegarrinha, notexto “Jornalismo de Convergências e de Confronto”, elaera oscilante:

[...] tanto antes como até depois de1817 foi oscilante a dureza repressivacom estes jornais por parte das autori-dades de Lisboa. Quanto ao Correio,não atingindo tão diretamente Portu-gal, mais preocupado com o governodo Rio, era tratado com algumas hesi-tações. O Português foi o mais dura-mente castigado, por ser a sua críticapredominante dirigida aos governado-res de Lisboa. Contra José Liberato asanha era recente. O Investigador, quefora criado com o apoio das autorida-des portuguesas para combater a in-fluência do Correio, não sofreu perse-guições de início. Mas as posiçõescrescentemente críticas de JoséLiberato, seu redator desde janeiro de1814, vinham indispondo cada vezmais o conde de Palmela10 contra ele.[...] não menos oscilantes eram as po-sições do governo do Rio para comestes jornais. Sabia-se que o Portugu-ês tinha assinatura da Biblioteca Públi-ca do Rio de Janeiro e era voz correnteque o Correio recebia favores ocultosda Corte. (TEGARRINHA, 2003a, p.8-9).

Tal oscilação provavelmente origina-se dadesorientação do aparelho censório no decênio anterior àRevolução Industrial. Os censores tinham de guiar-se portextos de três origens diferentes e em muitos aspectoscontraditórios, os quais provinham respectivamente do“regimento velho da censura, do regimento produzido no

10 [A nota é nossa][A nota é nossa][A nota é nossa][A nota é nossa][A nota é nossa] Título de D. Pedro de Sousa Holstein, embaixador extraordinárioe ministro plenipotenciário em diversas cortes estrangeiras; representante de Portu-gal no congresso de Viena, é nomeado em 1817 ministro dos negócios estrangei-ros. Substitui D. Domingos António de Sousa Coutinho, em Londres; portanto, oca-sião em que ocupa o mais alto posto da diplomacia portuguesa na época. Emoutubro de 1820, cedendo às instâncias de D. João IV, vem para o Brasil e, em 26de abril de 1821, parte juntamente com a família real para a Europa. Morreu em1850, completamente afastado da política.

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Rio de Janeiro e das frequentes ordens ‘azedas’ do governo”(2003b, p.5). Em razão disso, o resultado só poderia seresse, que se alternava em sentidos opostos: ora empenhadoem coibir a circulação e impressão dos jornais políticos, oramais flexível, desatento talvez, acerca dos efeitos que asleituras deles causavam.

Outra hipótese para a oscilação citada se encontrano contexto social e político da época, particularmente naabertura dos portos brasileiros, criticada por Hipólito noCorreio Brasiliense, mas que acabou por facilitar a entradado jornal que era trazido para o Brasil por intermédio denavios ingleses.

Lembramos que, ao chegar ao Brasil, durante suabreve estada na Bahia, o príncipe regente, D. João, decretoua abertura dos portos “às nações amigas” (28 de janeiro de1808), expressão que na época equivalia à Inglaterra. Esseato marca o encerramento de trezentos anos do sistemacolonial e, ao mesmo tempo, garante a continuidade daatividade comercial lusitana, ameaçada em razão das tropasfrancesas em Portugal. O ato também legaliza o comércioclandestino entre a colônia e a Inglaterra, o que significavaa arrecadação dos tributos devidos.

Os produtores de açúcar e os proprietários dealgodão foram beneficiados com a abertura dos portos, masa grande beneficiária foi a Inglaterra: os ingleses acabaramse tornando senhores da alfândega, regulavam tudo, e osfuncionários dos portos receberam ordens para dar particularatenção às indicações do cônsul britânico.

A medida era mais favorável aos comerciantesingleses do que a brasileiros e lusos e provocou váriosprotestos dos comerciantes aqui instalados e doscomerciantes de Lisboa. Por isso, D. João teve de fazeralgumas concessões:

Por decreto de junho de 1808, o co-mércio livre foi limitado aos portos deBelém, São Luís, Recife, Salvador e Riode Janeiro, o famoso comércio dacabotagem, ou seja, entre portos daColônia, ficou reservado a navios por-tugueses; o imposto sobre produtosimportados, que fora fixado em 24%do valor da mercadoria, foi reduzido

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para 16%, quando se tratasse de em-barcações portuguesas. (FAUSTO,2007b, p.123-124.)

Entretanto, isso não trouxe grandes modificações,já que a redução dos impostos sobre produtos portugueses,única medida verdadeiramente significativa tomada naépoca, foi ultrapassada pelo Tratado de Navegações eComércio em 1810, no qual novos favorecimentos são feitosà Inglaterra, em troca de outros favores, como a proteçãodas colônias portuguesas pela esquadra britânica.

Dentre esses favorecimentos estava a redução datarifa a ser paga sobre as mercadorias inglesas exportadaspara o Brasil, então fixada em apenas 15% de seu valor,taxa inferior à paga pelos produtos portugueses.Posteriormente, as duas tarifas foram igualadas, mas “avantagem inglesa continuou imensa. Sem proteção tarifária,as mercadorias de um país atrasado, como se tornaraPortugal, no âmbito do capitalismo europeu, não tinhamcondições de competir em preço e variedade com osprodutos ingleses” (FAUSTO, 2007c, p.124). E não competiu.

Interessa-nos, entretanto, não exatamente essefato, e sim verificar que o favorecimento à Inglaterra davaorigem a críticas severas expressas em jornais de línguaportuguesa impressos em Londres, como o periódicobrasileiro Correio Brasiliense, cuja entrada e circulaçãoclandestinamente no Brasil, quando assim o era, forambeneficiadas pelas concessões dadas ao país, já que osnavios ingleses não eram vistoriados pelas autoridadesportuguesas e/ou brasileiras.

Aliás, sobre essa imprensa e o jornalismo em línguaportuguesa impresso em Londres, importa lembrar queprincipiaram a difundir abertamente entre nós, por todas asclasses da nação, as ideias liberais. Missão que aspublicações impressas no Brasil, bem como as impressas

11Além dos jornais citados, também foram publicados na Inglaterra jornais portu-gueses que não exerceram relevo à imprensa brasileira, dentre esses O Argus,jornal de tendência absolutista, redigido por José Anselmo Corrêa Henrique, doqual foram impressos quatro números, todos em 1809; o Microscópio de Verdadesou Óculo Singular para o Povo Português Ver Puras e Singelas Verdades Despidasdos Caprichos e Paixões Particulares e Outras Expostas a Brilhante Luz do Patriotis-mo, Depois de Terem Sido Descobertas por Ele, Entre as Sombras do Erro, daIgnorância ou Malícia dos Godoyanos, redigido por Francisco de Alpoim e Menezes,do qual foram impressos sete números entre os anos de 1814 e 1815, e O PadreAmaro ou Sovéla Política Histórica e Literária, redigido por Joaquim Ferreira Freitas,que circulou mensalmente de janeiro de 1820 a agosto de 1829, com apêndiceaté 1830.

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em Portugal, ainda não estavam aptas para realizar, querseja pela repressão e censura, quer por condições materiaisou pela própria tomada de consciência que foi incentivadapelas folhas vindas de Londres.

Se esses jornais publicados em Londres11 exercerampapel importante no processo formador de nossa imprensa,superando e legando ao esquecimento a publicação defolhas portuguesas impressas em Paris,12 onde os custos paralançar uma publicação periódica e mantê-la eram menores,foi também importante - ou melhor, decisiva para osurgimento de nossa imprensa - a publicação dos periódicosoficiais brasileiros anteriormente citados.

Nesse sentido, concluímos que, graças à existênciade periódicos como a Gazeta do Rio de Janeiro, Idaded’Ouro do Brasil e, principalmente, As Variedades ou Ensaiosde Literatura e O Patriota, a imprensa brasileira vaiassumindo aos poucos um perfil menos oficioso e maisenciclopédico, o que resultará no surgimento de umaimprensa mais rica do ponto de vista cultural e instrutivo: aimprensa literária e cientifica brasileira, responsável peladivulgação da literatura da época, e, consequentemente,pela formação do público leitor.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

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12 Na época estudada, foram publicados em Paris três periódicos de língua portu-guesa: Observador Lusitano em Paris ou coleção literária, política e comercial, redi-gido por Francisco Solano Constâncio, de janeiro a abril de 1815; os Anais dasCiências, das Artes e das Letras, dirigido por Diogo Mascarenhas Neto, de julho de1818 a abril de 1822, e O Contemporâneo político e literário, redigido por ManuelInácio Martins Pamplona Corte-Real, Cândido José Xavier e José da Fonseca, dejaneiro a setembro de 1820.

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Aceito: 03.06.2010

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Lola Geraldes Xavier1

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este texto pretende interrogar a ficção de João deMelo na sua relação com a História, nomeadamente com aguerra colonial portuguesa em Angola. Para isso, teremosem consideração o seu romance de 1984, Autópsia de ummar de ruínas. Analisaremos esse romance numa perspectivasemântico-gradativa a partir da significação alcançada nanarrativa pelo Mar, pela Autópsia e pela Ruína. Esses temas,pela sua abrangência, permitem que Autópsia de um marde ruínas, apesar de conter referências marcadas espacial etemporalmente, atinja a atemporalidade, pela descriçãoficcional da guerra e suas consequências. Esse é um romancede denúncia da inutilidade dos conflitos armados, do seuabsurdo e da perda da racionalidade.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: guerra; subalterno; indiferença; medo;intertextualidade.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This paper intends to question the fiction of Joãode Melo in its relationship with history, particularly with thePortuguese colonial war in Angola, in his novel Autópsia deum Mar de Ruínas (1984). We will review this novel in asemantic-gradual perspective from the achieved significancein the narrative by the Sea, by the Autopsy and the Ruin. Byits coverage, these themes allow that Autópsia de um Mar deRuínas achieves timelessness by the fictional description ofwar and its consequences, though it contains referencesmarked spatially and temporally. This is a novel of

1 Professora-adjunta da Escola Superior de Educação de Coimbra-Portugal. Douto-ra em Literatura Comparada de língua portuguesa. E-mail: [email protected]

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denunciation of armed conflicts futility, its absurdity and theloss of rationality.

KKKKKeywords: eywords: eywords: eywords: eywords: war; subaltern; indifference; fear; intertextuality.

Ó mar,Ó mar,Ó mar profundoÓ mar,Negro altarDo fim do mundo

Em ti nasceu,Ó mar,A noite que já morreuNo teu olhar.(José Afonso, «Canção do mar»)

João de Melo (S. Miguel, 1949), escritor e ensaístaportuguês, com vasta produção literária de mais de trêsdécadas, sobretudo na década de 80 do século passado,traça em Autópsia de um mar de ruínas (AMR) um retratocruel e realístico da guerra colonial em Angola. Mobilizadopelo exército, para África, onde prestou serviço como furriel-miliciano enfermeiro, essa dolorosa experiência foifundamental para a escrita da sua obra, como refere emvárias entrevistas.

Esse romance de 1984, uma nova versão maistrabalhada literariamente do romance A memória de vermatar e morrer (1977), abre perspectivas de intertextualidadee de reavaliação da História da guerra colonial portuguesa.O título remete-nos ab initio para a atmosfera infausta quepercorre a totalidade da obra. A acção passa-se em 19732,no Norte de Angola, onde os combates entre a tropaportuguesa e a resistência angolana se intensificam a partirdo final da década de 60. O leitor tem acesso quer àperspectiva dos habitantes civis angolanos de Calambata,quer à perspectiva dos militares aí sitiados.

2 «Estava ali apenas para enriquecer com a possível decência e sem que alguémdesse por isso. Para que haviam de servir doze anos de guerra, em comissõessucessivas (…)?» (AMR, p.169).

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O valor documental3 da obra, enriquecido pelaexperiência do autor empírico e pela explicitação nadedicatória4 que abre o romance, resulta na intercepção devários pontos de vista, visíveis, desde logo, na forma comose organizam os capítulos. Composto por 24 capítulos, oromance começa pelo espaço da tropa portuguesa e terminano espaço da sanzala dos civis africanos. Os capítulos quedizem respeito ao ponto de vista dos habitantes africanos deCalambata estão intercalados pelos capítulos em que seretrata a forma de sobrevivência dos militares portugueses5,dividindo-se o romance em doze capítulos para cada umadas perspectivas: a da tropa colonizadora e a dos autóctonescolonizados. Há algo, porém, a unir os militares portuguesesde baixa patente e os angolanos: a miséria, a fome, aanimalização, o sentimento de injustiça, a aberração dasconsequências do colonialismo, a irresponsabilidade humananas suas vertentes cívica e política e a faceta amoral dopoder.

Essa preocupação em mostrar o ponto de vista dosdois grupos em contacto (os africanos a viver em Calambatae os portugueses aí a servir na tropa) evidencia o esforço deJoão de Melo em tentar compreender a identidade angolanae expor as realidades das facções em convívio, ambas comfragilidades, ambas com personagens ambivalentes, na suabondade e maldade.

Nesse sentido, ao intercalar pontos de vista denarradores que compõem a cena diegética, são exploradasficcionalmente as condições de vida dos africanos. O africanoé mostrado como uma personagem esmagada pelocolonialismo, transplantado das suas terras do sul para umaldeamento do norte e vigiado pela polícia que facilmenteexerce o seu autoritarismo por meio da violência. A fome ea consequente dependência das crianças aos restos da

3 João de Melo, a propósito do seu último romance, O Mar de Madrid, respondenuma entrevista ao Jornal de Letras (2/3/2006): «Lido com verdades que mentem ecom mentiras que dizem a verdade, para melhor serem ficção». Daqui resulta abase documental de parte da sua ficção.4 «À memória dos que morreram em Calambata».5 Se tivermos em consideração Mayombe (1980), de Pepetela, romance que retrataas relações humanas entre guerrilheiros do MPLA circunscritos à floresta de Mayombe,veremos o lado da resistência angolana, as várias formas de pensar, as susceptibi-lidades tribais, o olhar crítico lançado aos burocratas do MPLA, distantes da difícilrealidade dos guerrilheiros, que escapa a este romance de João de Melo. A pers-pectiva em comum com Autópsia de um Mar de Ruínas e Os Cus de Judas, deAntónio Lobo Antunes, prende-se com um exame crítico e psicológico da guerraem Angola, com o pânico da morte dos militares (angolanos e portugueses), com asolidão e com a incompreensão para com as crueldades da guerra.

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comida dos soldados agudizam essa imagem de sujeição.Por conseguinte, ao africano, sob o jugo do colonialismo,apresentam-se-lhe quatro vias: junta à força de libertação,contra os portugueses; faz parte da Tropa Especial, lutandoao lado dos brancos; submete-se aos aldeamentos vigiadospelo colonizador e concentra-se em sobreviver, esperandopela independência, ou, aí, finge-se dominado pelosportugueses, mas serve de informador às tropas delibertação. Romeu é o exemplo da opção por esta últimavia. No final do romance, essa personagem,inesperadamente para o leitor, passa de africano apático esubmisso a informador das tropas de libertação e,previsivelmente, é castigado até à morte pela tropaportuguesa, ainda que sem provas evidentes da sua traição.

No lado dos angolanos, considere-se algumaspersonagens, algumas delas adquirindo estatuto de narrador,como Natália, que representa a força e a determinação dasmulheres inteligentes; Romeu, que representa o agente duplo;soba Mussunda, que caracteriza o despossamento do poder,mero fantoche nas mãos dos portugueses, tentando, todavia,manter uma certa dignidade para com os seus, ainda que a«Sua coragem [estivesse] definitivamente subjugada pelo jogodos colonos» (AMR, p.256). Por outro lado, temospersonagens que compactuam com o poder colonial, comoAugusto, cozinheiro da tropa e símbolo da aliança com oopressor, por conveniência, e Bartolomeu, o bailundo quefazia reverência ao «Pai Branco» (AMR, p.67), mostrandofalta de solidariedade para com os restantes africanos deetnias diferentes.

A dignidade roubada aos africanos vê-se, porexemplo, no episódio da compra do café por colonosbrancos, pois estes adquirem o café aos negros a um preçoinferior ao merecido, como se os brancos estivessem «todoscombinados para roubar o preto» (AMR, p. 254). Para alémdisso, o episódio que se segue, dos mercadores portuguesesa aproveitarem o dinheiro dos negros, aliciando-os comnovidades, roupa, comida e bebida, sobretudo, evidencia aexploração das fraquezas dos negros despudoradamente,que Natália denuncia. A luta dos africanos civis contra osbrancos mostra-se, assim, fracassada, pois, como Natália

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reconhece, «os brancos estragaram a vida, comeram asforças todas dos homens» (AMR, p.34).

Por tudo isso, a imagem que os negros têm dos brancosnão pode ser positiva. As negras, envelhecidasprematuramente, caracterizavam o abraço dos brancos comosendo: «sujo e mortal. Tem morte nele que nunca sai fora[…]. Seu amor é morte apressada» (AMR, p.53). Os brancossão vistos pelos negros como «gente barriguda eavermelhada» (AMR, p. 253), vigarista (cf. AMR, p.263), cheiade manha, tentação e malvadez (cf. AMR, p.258).

O assédio e as violações dos brancos às negras sãoum exemplo do que fazia aumentar o ódio: «o ódio está játão grande que parece é um desprezo e mais nada» (AMR,p.57). De facto, a abjecção da guerra e a consequentedesumanização, as arbitrariedades, a violência gratuita paracom os habitantes de Calambata instiga os negros a umsurdo sentido de rebelião. O autoritarismo dos altoscomandos e as brutalidades cometidas contra os africanospela polícia política e por alguns elementos da tropa nãoapaziguavam a revolta silenciosa dos negros.

Em contrapartida, os negros são vistos pelos brancoscomo «molengões» (AMR, p. 253), sendo coisificados edespersonalizados: «” E querem isto a independência, vejamvocês!» (AMR, p.254). Nessa óptica, ambas as facções veemo grupo oposto de forma animalizada. Essa perspectiva, desensação de omnipotência do colonizador, vem ao encontroda ironia feita pelo narrador omnisciente em torno do furrielTavares, que escrevia as suas memórias de guerra emduplicado, com um químico, três cartas por dia à mulher,como se se tratasse de um diário de campanha, intitulado«De Como Nos Fomos A Eles em África e Asinha Os TornámosEscravos Nossos E de Única Nossa Vontade» (AMR, p.52).

Do lado dos portugueses, o alferes enfermeiro “ comose se tratasse de um alter ego do autor empírico “, representaa consciência moral e incorruptível, na tentativa de preservara decência e proteger os mais fracos, como os negros e ossoldados. É a personagem que se apresenta maishumanizada e que serve de ponte entre os dois grupos,agindo, dentro do possível, como um protector dos negros.Mais abaixo, na hierarquia, Renato, um dos narradoresprincipais, simboliza os militares anónimos que lutam no

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mato, sofrem emboscadas, convivem constantemente como terror de morrer e, quando morrem, caem no esquecimentodo país. Apenas a família se lembra deles. Essa insignificânciado soldado, visto apenas como mais um número,despersonalizado pelo esquecimento do seu nome, está bemsistematizada numa estrofe do poema «Romance de Pedrosoldado», de Manuel Alegre: «Soldado número tal/ Só amorte é que foi dele./ Jaz morto. Ponto final./ O nome morreucom ele».

No lado oposto aos soldados, meros instrumentos depoder, situam-se os elementos da polícia, como o chefeValentim, as chefias, os comandantes e «a indiferençainsensível dos burocratas da guerra» (AMR, p.138). Estes,sendo apresentados de forma desumanizada, mostramindiferença e desrespeito pela vida humana. São eles quedecidem sobre o rumo da guerra, alimentando umaideologia balofa, decrépita e inconsequente. Assim, do ladoportuguês, os soldados opõem-se aos superioreshierárquicos, pois os soldados

tinham vindo ali parar, trazidos pelamãozinha rufiona do dever patrióticodos outros, dos outros que serviam apátria à sombra das cidades […], ga-nhando bom dinheiro, dormindotranquilamente com mulher sua oualheia; dos outros que planeavamsurdamente a morte à distância e que-riam mais e mais e sempre mais. (AMR,p.42).

A vivência da guerra é exposta a ridículo pela disciplinamilitar despropositada e desadequada ao cenário de guerra,na incompreensível mecanicidade dos rituais marciais. Éexemplo disso o jovem militar que se vê humilhado einsultado pelos superiores, como acontece com o furrielenfermeiro obrigado a cortar o cabelo, por não ter a«gadelha nos termos regulamentares» (AMR, p.174). Algunsmilitares sentem-se arma e “dejecto” da ideologia colonial,mostram-se descaracterizados e revelam sentimento deincompreensão para com a vida que levam.

Se nos ativermos ao título da obra, poderemosconsiderar uma gradação descendente de valor disfórico,

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que vai do Mar, elemento associado à geografia e Históriade Portugal, geralmente percepcionado como elementopositivo, para a Autópsia e as Ruínas, como formasaniquiladoras de não-ser e não-estar de um país e dos seushabitantes. Nesse sentido, vejamos em que temáticas assentaessa gradação.

MarMarMarMarMar

A evocação do mar acontece pela primeira vez no«capítulo nono», aquando de uma emboscada: comparadoà terra, o ruído das metralhadoras e dos morteiros «soa umpouco de memória, mas é tão-só a terra enchendo-se deferidas, crateras, fissuras enormes “ como o mar […] aindae sempre como o mar dos Açores, bramindo na sua pólvorabranca» (AMR, p. 114).

O mar serviu como elemento condutor da culturaportuguesa, sobretudo através da língua. A língua que, noscapítulos sobre a vida na sanzala, em que o narradoromnisciente intercala com Natália, apresenta-se numa formade «português desgramatizado» (AMR, p.71), em que aconcordância verbal entre sujeito e predicado se desvia danorma padrão e a escrita tenta imitar a oralidade doportuguês africanizado. A adopção da cultura ocidentalizadaverifica-se também nos nomes das personagens africanas:Natália, Romeu, Sebastião, Josefa, por exemplo, em oposiçãoaos nomes africanos dos mais velhos: soba Mussunda e vavóKatuela. No entanto, a cultura ensinada era a que ia aoencontro do regime português da altura e da ideologia docolonialismo. Faz-se, pois, ironia com o ensino ideológicoque se praticava: «sô pressora Tina, lá na escola, costumavasempre dizer a razão estava justa: Angola era Portugal» (AMR,p.78).

Por seu turno, nos capítulos sobre a vida dos militaresportugueses, a linguagem torna-se vulgar, disfemística, comoforma de exorcizar a realidade irreal da guerra, por meio danomeação de obscenidades6.

O mar é simultaneamente imagem de vida e de morte7.Se nas epopeias de exaltação aos descobrimentos o mar

6 Semelhante, por exemplo, a O cus de Judas, de António Lobo Antunes.7 Cf. Chevalier e Gheerbrant (1994, p.439).

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era símbolo de esperança e regozijo, nas narrativas dasegunda metade do século XX o mar parece expelir o quede negativo foi acumulando ao longo dos séculos, tornando-se metáfora para o locus horrendus das consequências daexpansão portuguesa, tema também presente, por exemplo,em As naus, de António Lobo Antunes.

Autópsia de um mar de ruínas permite não só umaperspectiva histórica da guerra colonial portuguesa,enriquecida por tentar abranger as duas realidades emconfronto, mas também por permitir uma reavaliaçãometafórica da epopeia expansionista portuguesa e por fazeruma crítica ao fascismo. O título, centrando o elemento‘mar’, permite ao longo do romance estabelecer váriasintertextualidades a propósito da identidade portuguesa.

Em Autópsia de um mar de ruínas, o mar é de«rémoras» e de «lodo» (AMR, p.125); acolhe a morte comouma «paisagem naufragada no mar» (AMR, p.127). É ummar de «quinhentos anos e outros tantos dias» (AMR, p.132),é um mar que deu a sensação de omnipotência aosportugueses, estabelecendo-se uma intertextualidade comOs lusíadas (VII: 14) para mostrar ironicamente o ridículodo esforço dos séculos passados: «E Se Mais Mundo HouveraLá Chegara» (AMR, p.133). A ideia do peso da históriaconcentra-se também na figura do padre, símbolo datentativa portuguesa de evangelização nas terrascolonizadas, que parece «um homem de quinhentos anos,de um país que se voltara na direcção de um mar inocente»(AMR, p.165). É um mar que não levou o desenvolvimentode forma sustentável aos povos colonizados, a prová-lo veja-se a imagem de pobreza das cubatas de Calambata,apresentadas como «um barco sem mastros, à beira denaufragar» (AMR, p.65).

Ao longo do romance, a visão sobre Portugal édisfórica; trata-se de um país como «um coro sem órgão»(AMR, p.287), que se converteu aos poucos num «asilo develhos» (AMR, p.287), «porque todo o destino deste país decorvos e cornos nos puxa para África» (AMR, p.93). Assim,aquando do momento da partida dos soldados no aeroporto,«Mães-amantes choravam agarradas aos pilares, o corpodas manas estava trémulo, os amigos e os irmãos diziampiadas sem gosto» (AMR, p.93). Essa despedida faz lembrar

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o choro das mães e as «noivas por casar», de «MarPortuguês», de Fernando Pessoa. Mais à frente é evidenciadaa responsabilidade do regime pelos mortos produzidos pelaguerra. O narrador mostra ironia, por meio dos adjectivos edo advérbio de modo: «era certo e seguro que o ministromandaria um telegrama de condolências à família: grande,grande é a nossa pátria porque tais filhos ela tem; ascorajosas mães que choram são o vivo exemplo de quePortugal é o país eterno; a nossa juventude morregenerosamente nas distantes partes de África, mas vive nocoração dos que melhor amam o seu povo» (AMR, p.144,sublinhados nossos). Vem ao encontro dessa apologia dosacrifício pela pátria o discurso do comandante após a mortede nove homens do batalhão numa emboscada, que«pensava aproveitar a oportunidade para discursarterrivelmente acerca da pátria viva e sempre imortal; da pátriaque se cobria de glória, por cada soldado tombado ao seuserviço e em sua defesa, ideal supremo» (AMR, p.176). Maisuma vez, o narrador omnisciente usa a ironia pararidicularizar a insensibilidade e a irresponsabilidade dosburocratas face à morte dos seus homens na guerra. Odiscurso desse comandante, de apelo ao ódio para com osnegros, termina numa incitação teatral de hino: «Matá-los-emos todos, sem dó nem piedade, como nos ensinaram osnossos antepassados. Viva Portugal em Angola!» (AMR,p.178).

Os militares têm consciência da morte inglória a queo país os obriga, deixando de acreditar nesse tipo de pátria.As inscrições fúnebres previstas por Renato, em maiúsculas,no final do «capítulo vigésimo terceiro», estão emconformidade com este descrédito, insistindo no campolexical da morte, pois Portugal e os portugueses fundem-seno mesmo destino: «VAI MORRER UM PAÍS QUE MATOUUM MILHÃO E QUINHENTOS MIL HOMENS NA GUERRA.COMO SERÁ A SUA MORTE?» (AMR, p.293).

À medida que a guerra avança e as frentes delibertação angolana ganham consistência, o país mostra-seexpectante, cada vez mais vigiante e repressor, evidenciandodesespero de causa e dando a entender que o regime «corriaperigo e estava, ele mesmo, em desespero de causa» (AMR,p.95). Nesse cenário, os soldados esperam que «aconteça

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uma Grande Coisa no país, porque quando um país ficaassim amarelecido, com um ar de outono sem remédio, éporque há-de estar para acontecer-lhe uma Grande Coisa»(AMR, p.95). A repetição irónica dessa ideia faz-se quandoo furriel enfermeiro se vê rodeado de companheiros mortosnuma emboscada:

Pensava de novo nos pássaros da suainfância, na voz longínqua do mar doseu destino. Pensava que boa parte dasua vida se fora já com a esperançade que pudesse um dia acontecer-lheuma Grande Coisa, talvez uma prima-vera nunca igual ou um fruto bem àmedida da sua sede. […] Tenho o meudestino de mar a cumprir, sou um ho-mem do seu sal e da sua profundida-de. Ouço-lhe a voz e sei que a ouvireisempre enquanto estiver longe dele.(AMR, p.143).

Nesse sentido, todo o romance parece ser umaconfirmação da perplexidade e das interrogações do Velhodo Restelo: «A que novos desastres determinas/De levar estesReinos e esta gente?/Que perigos, que mortes lhe destinas,/Debaixo de algum nome [sic] preminente?» (Os Lusíadas, IV,estrofe 97).

Portugal apresenta-se, assim, como uma «pátria emcrise» (AMR, p.22), traiçoeira e enganadora. Um paísironicamente percepcionado por meio dos seus poderespolíticos, Salazar e Américo Tomás (AMR, p.43), um paísque se sumia nos

numerosos amigos americanos a quema gloriosa política de Portugal em Áfri-ca infundia uma excepcional admira-ção, país tão pequeno, esse, tão cheiode merda atómica nas suas praias, mastão tenaz na sua resistência ao comu-nismo internacional. (AMR, p.44, su-blinhados nossos).

Veja-se a ironia conseguida por intermédio do usode adjectivos e da repetição do advérbio de intensidade.

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AutópsiaAutópsiaAutópsiaAutópsiaAutópsia

Autópsia de um mar de ruínas revela, pois, um exameda guerra colonial portuguesa em Angola, permitindo umaanálise psicológica do militar português subalterno por meiode uma crítica severa à ideologia da época e aos que aalimentavam (os representantes do regime, os burocratasetc.).

Aos soldados resta apenas a dignidade do desejo decontinuarem vivos; no entanto, essa dignidade é corroídapelas circunstâncias de guerra. É também pelo direito àdignidade que lutam os habitantes de Calambata,animalizados pela polícia portuguesa e castigados por esta,sempre pronta a chicoteá-los. É, no entanto, uma dignidaderoubada ao soba que se apresenta velho e com medo dapolícia portuguesa, logo respeitoso para com ela. Omomento de maior dignidade apresentado no romance dá-se no final do segundo capítulo, quando o soba tenta libertarRomeu dos maus tratos de Valentim8, o chefe de polícia, e é,ele próprio, pontapeado; responde com o silêncio,mostrando-se indefeso e conformado.

Mais à frente, Romeu afirmará: «vida de preto é piorque estrume. Coisa suja onde o branco não vai pôr nunca amão mas só o chicote e a voz que manda para exigirobediência, sem condições» (AMR, p.121). Como járeferimos, o ódio dos negros pelos brancos é justificável pelasacções arbitrárias destes: tiraram-lhe as terras, a liberdade,violaram as mulheres, exploraram, bateram, alimentaram afome. Não podemos, porém, esquecer que, em Portugal, asituação de miséria não era diferente, pois, como afirmauma personagem de O manual dos inquisidores, de AntónioLobo Antunes: «como se morrer de fome onde [Cova daPiedade] os pretos somos nós fosse melhor do que morrerde fome onde [Luanda] os pretos são outros» (O manual dosinquisidores, p.212). A miséria não era, de facto, diferentepara a generalidade dos portugueses em Portugal, nem emAngola, e na obra insiste-se nas condições de fadiga, sede,

8 O castigo de Valentim, como se de uma justiça divina se tratasse, não tarda aacontecer. Após ter sido o responsável pela capotagem de um jipe com crianças,quando morre Júlia, pede destacamento para uma sanzala mais a sul, mas acabamorto «por uma emboscada de um só tiro…» (AMR, p.224). As reticências fazemprever que terá sido um assassinato, e não uma emboscada, resultado das inimiza-des que coleccionara entre os negros.

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fome e medo a que se submetiam as patrulhas portuguesaspelo mato.

O romance constrói-se nos contrastes opressor/oprimido; subjugador/subjugado; rico/pobre. Essescontrastes entre a pobreza e a riqueza continuamempiricamente actuais, sobretudo na Angola hodierna:

mulheres essas que traziam pela mãocrianças cor de lama e em cujo rostose surpreendia as crateras da fome ilu-dida na sua ingenuidade; depois, eramos bairros lavados dos brancos. […] osilêncio dos ricos, os carrosexageradamente luxuosos e quase fu-nerários dos ricos de toda a parte domundo. (AMR, p.86-87).

Na gradação que estamos a analisar, destaca-se oepisódio em que o jipe cheio de crianças capota e provocaa morte de Júlia Doke. A sua autópsia é feita pelo delegadode saúde, que chega no dia seguinte, e pelo furriel enfermeiro«debaixo de uma árvore, à vista de toda a gente, e toda asorte de insectos pousava na carne semiapodrecida docadáver trucidado» (AMR, p.224). Sendo as crianças «aexplicação do mundo» (AMR, p.221), como se refere neste«capítulo décimo sétimo», esse episódio é particularmentesimbólico, pois representa a banalização da morte e ainsensibilidade para com o valor da vida. Na verdade, amorte e o sofrimento, pela repetição e pelo hábito, provocamindiferença. Assim, face aos feridos e aos mortos, resta ainsensibilidade (cf. AMR, p.245) que as personagensdemonstram.

Vem nesse sentido a intertextualidade com o capítuloXI da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, em momentosde morte iminente para os soldados: «É só preciso chegardepressa, acudir aos nossos e à sua perdiçom, aos nossos,aos nossos, acudamos prestes que matom o meestre, queos matom todolos nossos e pronto nom serão vivos…» (AMR,p.116). Por meio da repetição intensifica-se a angústia e ainquietação, apelando-se à união e à solidariedade, devidoà necessidade de acordar as consciências contra a morte ena tentativa de reunir as hostes numa só direcção de

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interesses pelo Bem do país, como aconteceu no últimoquartel do século XIV.

Esse é, assim, um romance sobre a vivência agónica,a sensação física e psicológica da morte, a neutralização daimportância do ser humano, reduzido à sua condição físicaefémera e frágil. O descrédito pela guerra é acentuado pelaironia presente, por exemplo, nas inscrições nas paredes,repetidas ao longo do romance, quer do lado dos brancos,quer do lado dos africanos: «É PROIBIDO DIZER QUE HÁGUERRA» (AMR, p.51, 108, 194); «SANZALA DA PAZ “ POVORECUPERADO» (AMR, p. 81 e 250).

RRRRRuínasuínasuínasuínasuínas

Esta nossa análise gradativa de elementos de Autópsiade um mar de ruínas culmina no sentido das ruínas, no sentidoda decadência de ideologias, da destruição do espaço físicoe psicológico que envolve os dois grupos em convívio e,finalmente, da degradação da mente e do corpo daspersonagens.

A relação com o título do romance é explícita uma sóvez. A expressão é usada aquando o furriel Borges aparece«como se emergisse do fundo de um mar de ruínas» (AMR,p.127), após a descoberta dos soldados portugueses mortosnuma emboscada.

A solução apresentada no romance peloscomandantes visava responder à guerra com mais guerra,sem se importarem com a morte de soldados: «Matem-se,porém, todos os meninos de suas mães, para que assim avíbora desta revolta se ache asinha vencida e fatigada demorrer» (AMR, p.167). A intertextualidade com «O meninoda sua mãe», de Fernando Pessoa9, é aqui evidente,enfatizando a intemporalidade da temática da morte dejovens inocentes. O narrador denuncia a responsabilidadedos “senhores da guerra” nas atrocidades cometidas, pois oimportante para os comandantes era que pudesse acontecer«Grandes Coisas de bem e riquezas e honras», como jáalertara o Velho do Restelo (cf. Os lusíadas, IV, estrofe 95),

9 «««««No plaino abandonado/ Que a morna brisa aquece,/ De balas traspassado/”duas de lado a lado “,/ Jaz morto e arrefece./ […] / Jaz morto, e apodrece,/ Omenino da sua mãe», Fernando Pessoa, «O menino da sua mãe».

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indiciando que em quinhentos anos nada mudou na naturezahumana.

Nesse cenário funesto de conflito, um dos elementossimbólicos explorado na obra é o corvo. Este assume nanarrativa um simbolismo negativo, no sentido de mensageiroda morte, em que se tornam os «americanos [que] fazemdisto uma guerra de saldo» (AMR, p.21) e os elementos dapolícia política (AMR, p.95).

É todo esse ambiente de morte que se vai agudizandoassim que caminhamos para o final do romance, quer daparte dos africanos, quer dos portugueses. Apesar de Natáliater pensado, logo no capítulo segundo, que «gostava de verainda o dia do seu marido revoltar nos brancos» (AMR, p.33),essa personagem está longe de imaginar que o seu desejose irá realizar no final de forma trágica.

A morte é também uma realidade constante para osmilitares, que se tornam mortos-vivos: «A guerra era a única,a inacreditável realidade do tempo e do mundo. Além dissotodos estavam em dúvida acerca de tudo. Permaneciamdespertos, mas confundiam a vida com o pesadelo dosmortos» (AMR, p.179). O soldado Ricardo filosofaráigualmente: «Nunca mais seremos os mesmos homens»(AMR, p.202, 203). Desta forma, a consciência da alteraçãoprovocada pela guerra, no eco repetido das suas palavras,evidencia o absurdo da vida.

A expressão do desejo dos militares, acicatada pelasolidão, no assédio às africanas, na evocação da mulher-amada, atinge particular destaque com a aproximação damorte, na repetição agónica do cabo enfermeiro Couto parao furriel enfermeiro: «Três filhos, furriel. E uma mulher» (AMR,p.136) e nas cartas de amor que Renato idealiza e, emparticular, na que fecha simbolicamente o penúltimo capítulo,quando essa personagem se prepara para morrer: «feridode morte, penso. Digo ferido de morte porque os meus vintededos, amor, começam a sofrer do azul insofrimento da terra.[…] Amor, eu não sei se dói» (AMR, p.292-293). A carta deamor que Renato escreve termina ainda de forma elucidativaem relação a este aspecto: «É o que escrevo aqui, sentadona noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os mortosque cercam Calambata cercada de guerra pelo norte. Apensar, amor, que há em mim um morto que não morre»

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(AMR, p.276). Essa morte psicológica transformar-se-á emmorte física à medida que, simbolicamente, o mar ésubstituído pelo pântano da existência, pelo espaçopsicológico:

De modo que aos poucos fomos ga-nhando este aspecto de náufragos dopântano, com a lama a crestar-se-nosno corpo “ e, assim, agora a morte é ocrescimento do musgo: a minha peletransformou-se em escamas de peixe etodo eu sou decerto um anjo oceânicoque não soube nem pôde escapar àguerra. (AMR, p.285).

Assim que a morte se aproxima, Renato vê-se a tornar-se «leve como um pombo, amor, como o menino que nuncaviu o mar de perto, sendo de morte as suas águas tãobrancas, caladas, deslizantes…» (AMR, p.293).

O desânimo e a amarga experiência das personagensconferem à narrativa uma marca anti-heróica, tambémpatente de forma paródica em As naus, de António LoboAntunes. O sentido trágico da existência atinge assim o clímaxno final do «capítulo vigésimo terceiro», em que morre Renato.

Autópsia de um mar de ruínas é, assim, um romanceatemporal, pelas sinestesias de guerra que congrega: aperspectiva é a da guerra colonial portuguesa no norte deAngola, mas o medo da morte, a solidão, as hierarquiasmilitares, burocráticas e paralisantes são factores de todosos confrontos. É um conflito que conduz a transformaçõespsicológicas, que animaliza o colonizador e o colonizado,que mostra a indiferença para com o sofrimento dosangolanos e dos subalternos em geral. É um romance contra«toda a inspirada indústria de uma guerra» (AMR, p.43).

Essa narrativa contribui para uma nova tomada deconsciência de valores invertidos durante a guerra, para areanálise da história colonial e, por arrastamento, dosdescobrimentos portugueses, no que de violento tiveram, oque vem ao encontro de As naus, enquanto desmistificaçãodesse período considerado ainda glorioso por algunsportugueses contemporâneos.

Autópsia de um mar de ruínas parece, por conseguinte,responder negativamente à questão colocada por Fernando

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Pessoa, em «Mar Português»10: «Valeu a pena?». João de Meloparece querer dizer com esse romance que nem tudo vale apena, mesmo quando a alma não é pequena.

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10 «Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! /[…]/ Valeu apena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena» (Fernando Pessoa, «Mar portu-guês»).

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Aceito: 03.06.2010

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Maria José Cardoso Lemos¹

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: O artigo pretende pensar a moderna noção deBildungsroman a partir da leitura conjunta do romanceLavoura arcaica, de Raduan Nassar, e do romance Heinrichvon Ofterdingen, de Novalis, de onde foi retirada a citaçãoexistente na referida obra nassariana.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: Raduan Nassar; Novalis; bildungsroman;intertextualidade.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This paper presents the modern notion ofBildungsroman based on a critical analysis of the novelsLavoura Arcaica by Raduan Nassar and Novalis’s Heinrichvon Ofterdingen, from where a citation found in Nassar’saforementioned work was taken.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: Raduan Nassar; Novalis; bildungsroman;intertextuality.

1 Professora de Teoria Literária da UERJ. Doutora em Literatura Brasileira. E-mail:[email protected]

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O romance de formação é a formação do romance.Forma híbrida sempre inacabada, como queriam osromânticos de Iena. Schlegel, no Fragmento 116, afirmaque a poesia universal progressiva “é capaz da formaçãomais aprimorada e mais universal”, aproximando, assim, otema da Bildung de um campo semântico mais amplo emenos datado pelo anseio da burguesia por uma formaçãopessoal e universal, como no romance Meister, de Goethe.A Bildung tem, no texto do fragmento, um sentido deformação de um novo paradigma poético e intelectual,expressado sob o termo de “poesia universal progressiva”.

Nesse sentido, a Bildung, assim como a poesia, aliteratura [romance para os românticos], se abre ao devir, aum acabamento que, entretanto, não se completa. Para ondeestamos indo? - parece se perguntar a própria poesia,questionando sua direção, sua possibilidade de formação ede acabamento. E é essa mesma pergunta que formula opersonagem Heinrich von Ofterdingen, do romance deformação [homônimo] (1802) de Novalis: “Para ondeestamos indo?”, cuja resposta, dada por Cyané, é: “Estamosindo sempre para casa”.

Heinrich, como poeta, aprende que se escreve não apartir da origem, mas para tentar atingir a origem, ou seja,a casa, lugar do estranho, da essência não essencial, comoformulou Maurice Blanchot a partir de sua leitura de Novalis,ligada também aos conceitos de ponto de origem oudésoeuvrement [inoperância]. Pode-se pensar também anoção de linguagem da infância, como sugere GiorgioAgamben (2000), linguagem do estado fetal, da purapotência, linguagem do solo comum que necessita ser criada,conquistada. Novalis trabalha assim contra a turbulênciagenial; o que importaria não é o dom do gênio, senão quese pode aprender a ser gênio, a ser poeta.

O escritor brasileiro, filho de pais libaneses, RaduanNassar usou de maneira explícita em sua obra textosconsiderados pela crítica como romances de formação e anoção de Bildungsroman se torna importante chave parapensar sua obra. Mas é a noção de escrita, poesia, que noslegou os românticos de Iena, que nos interessa maisprecisamente. Em seu romance Lavoura arcaica2 (1975), o

2 Na primeira edição do Lavoura arcaica, havia uma dedicatória ao pai do escritor,a denominação “romance” e as Notas do autor, onde Nassar elencava de maneiranão exaustiva os textos que usou para compor seu romance. Nas edições posteri-ores, tais referências foram retiradas e também o texto sofreu modificações.

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personagem André, também poeta de sua própria história,pergunta: Para onde estamos indo? Estamos indo semprepara casa, responde ecoando Novalis, num misto entreparódia séria e transgressiva.

Novalis escreve Heinrich von Ofterdingen (1802)movido pelo desejo de se afastar de Goethe. Se o Meisterconstituiria o mundo burguês, o romântico, movido pelodesejo de transcendência, pretende abrir o romance àformação e ao conhecimento da Vida. Para Novalis, o temado Meister seria absolutamente prosaico e vulgar. Contra aconcepção de Goethe, Novalis propõe uma poesia que queralcançar o maravilhoso pela ligação com a natureza e pelavontade de transformar o mundo pela linguagem poética:

Um romance deve ser todo poesia. Apoesia … é este acordo harmonioso denossa alma, onde tudo se torna maisbelo, onde cada coisa aparece na suaverdadeira luz e encontra o acompa-nhamento e a atmosfera que lhe con-vém. Em um livro verdadeiramente po-ético, tudo parece tão natural e entre-tanto tão maravilhoso… (apud CAMUS,1942, p.55).

A função suprema da poesia está na possibilidadedo encaminhamento do homem para a transfiguração, paraa possibilidade de dizer a totalidade, e é o que faltaria, paraNovalis, no Wilhelm Meister. Eis porque afirma ser esse livrode um feito de “ateísmo estético”.

Para os românticos, porém, a totalidade, osistema, o infinito nunca é alcançado, embora sejaperseguido, não apenas pela razão, mas principalmente peloque eles irão chamar, na esteira de Fichte, de imaginaçãoprodutora. E se o infinito não pode se realizar no sensível,não pode encontrar um acabamento, a arte seria o médiumpróprio para reunir o ideal com o sensível, numa síntesedialética sempre móvel. Existe então um novo tipo deacabamento para os românticos, que, segundo Lacoue-Labarthe e Nancy, seria o “acabamento como inacabamentoda infinitude” (2004, p.75). Assim, se a poesia não conseguerepresentar o absoluto, ela aponta sempre para essa

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Ausência, ela apresenta (Darstellung) na linguagem,enquanto livre atividade criadora, essa falta.

E uma vez que a apresentação tem uma estruturaaporética, pois estabelece uma relação inversa com aidentidade (ordus inversus), a noção da forma fragmentáriatorna-se assim fundamental para tentar exprimir o absoluto,o infinito. A noção de romance seria essa nova forma quecontém um novo tipo de acabamento, capaz de dizer oinacabamento, o devir. Essa nova concepção de literatura,que por meio da forma do fragmento e do romance se abrepara o obrar, para a experiência da escrita como algooriginal, se traduz nessa escrita que procura o que éessencialmente literário, o que é próprio da literatura: umaprodutividade incessante. Vale dizer que essa novaconcepção marcou de maneira definitiva a noção de escritatal como proposta por Blanchot.

Para Fichte, e na sua esteira os românticos, a reflexãoengendrada pelo Eu, pela via da intuição intelectual, querapreender a pura forma, ou seja, o pensamento como tal.O conhecimento seria produzido via reflexão do Eu, daLiberdade, por intermédio da imposição de obstáculos, delimites que engendra o sensível. Em outras palavras, o euempírico é posto pelo Eu puro, para tornar possível aapresentação sensível do Eu, que se dá pelo movimentoincessante da reflexão e da posição, do por de novo, novosobstáculos, limites.

A reflexão, como forma de conhecimento, se dá pelovoltar-se, pela viagem empreendida não pela subjetividadeempírica, mas pela subjetividade pré-individual. Com efeito,o Eu põe o exterior (o Não-Eu) e através desse movimentose reflete, ou seja, sai de si, para no encontro com o mundo,se encontrar novamente. Se a posição é desdobramento, areflexão é retorno para atingir o Eu por esse movimentoincessante. O Eu se reconhece em sua criação (o exterior, anatureza) e então pode voltar-se para o próprio interior, podefazer o “caminho de volta”, pode ir para “casa”.

EEEEESTSTSTSTSTAMOSAMOSAMOSAMOSAMOS INDOINDOINDOINDOINDO SEMPRESEMPRESEMPRESEMPRESEMPRE PPPPPARAARAARAARAARA CASACASACASACASACASA

Diversos traços aproximam Heinrich von Ofterdingende Lavoura arcaica, dentre eles, o fato de ambos se utilizarem

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de uma prosa poética, de serem divididos em duas partescom estrutura circular, cuja questão é o acabamento sempremóvel, qual seja, a chegada que nunca se efetua ao núcleodo absoluto, a casa. Destaca-se o fato de ambas as históriasse concentram em um protagonista adolescente queexperimenta seu primeiro amor e a morte da amada. Valeressaltar que a divisão em galhos da família em Lavouraarcaica – o que estabelece um jogo de contrastes –, sendo ogalho direito ligado ao pai e o lado esquerdo ligado à mãe,repete a estrutura orgânica usada por Goethe no Meister.

Heinrich é o personagem adolescente que após amorte de sua bem-amada procura e acha uma novaconcepção da poesia. Para o romantismo, a experiência damorte experimentada por Heinrich é imprescindível aoacabamento, pois a morte é a saída fora de si. No romance,cuja primeira parte se intitula A espera, Heinrich tem umsonho profético, que lhe revela sua vida e resume a tramada narrativa:

Primeiro ele sonhou com distâncias in-finitas, com lugares selvagens e desco-nhecidos. Ele andava, atravessandomares com facilidade incompreensível;ele viu animais estranhos; ele viveu juntoa homens de diversas raças, tanto naguerra, em tumultos desenfreados, tan-to em pacíficas cabanas. Ele conheceua prisão e a mais negra miséria. Todosos sentimentos se exaltaram nele até umgrau em que nunca haviam alcança-do. Ele viveu uma existência infinitamen-te movimentada, morreu e retornou àvida, amou com uma paixão extrema efoi em seguida separado pela eterni-dade daquela que ele amava.(NOVALIS, 1942, p.69).

A “Flor Azul”, símbolo criado a partir da figura desua jovem noiva, Sophie von Kühn, morta em 1797 aosquinze anos, só é encontrada pela linguagem, pela suacapacidade mágica de transformar o mundo em um universode beleza que compensaria a queda:

Porque ficarei agarrado às misérias ter-

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restres?Meu coração e minha vida não sãoseus para sempreE teu amor não é minha garantia aqui?

(NOVALIS, 1942, p.61).

A queda é a separação da origem e Sophie é osigno que substitui a mãe. O poeta, para se formar, precisaromper a relação incestuosa que mantém com a linguagem.Ou seja, a partir do momento que aceita que a linguagemnão é natural, que é incapaz de dizer o Ser, o poeta, pelamorte da mãe, do vazio que surge e que não será nuncapreenchido, estará pronto para trabalhar e inventar umalíngua que tentará infinitamente dizer essa impossibilidade.Como explica David Wellbery, o poeta buscaria dizer a “mãelíquida” (WELLBERY, 1998, p.105).

A segunda parte – O acabamento – que, entretanto,ficou inacabada, se abre pelo poema Astralis, no qualHeinrich canta sua impaciência diante de seu desejo de uniãocompleta com a Natureza/Amor – impaciência encontradatambém em Lavoura arcaica. Vejamos a beleza mágica dosprimeiros versos de Astralis:

Vim ao mundo em uma manhã de ve-rãofoi então que senti a pulsão da minhaprópria vidapela primeira vez; mas a medida que oamorse perdia em êxtases mais profundos,ainda mais me despertava, e a exigên-ciade uma união mais intima, de uma fu-são completa,se fazia a cada instante maisurgente. (NOVALIS, 1942, p.351)

Nessa segunda parte, lhe será revelada a condiçãodo homem, que é a separação. É então que aparece Cyané3,

3 É preciso salientar a menção ao Oriente maravilhoso feita por meio da persona-gem Cyané. O Oriente penetrou no imaginário europeu, sobretudo, com o ro-mantismo. A representação que a Europa faz do Oriente é da evasão, espécie deparaíso original. Em Nassar, menos que um motivo de evasão, o Oriente é o mo-tivo da dor do estranhamento, da origem perdida, mas defendida pelo persona-gem André de Lavoura arcaica, no constante relevo dado ao avô, o representanteda fonte oriental da família.

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nova encarnação de Mathilde, que ajudará Heinrich a aceitara separação, uma vez que para viver/ver realmente é precisomorrer. Nessa experiência com a morte, Heinrich se aproximado Ideal transcendente e porque viveu a separação, estápronto para a união com o mundo, num movimento deautorreflexão produtora do eu. Assim, a poesia une o eu aomundo e o mundo ao eu, transformando uma relação deoposição em libertação.

O poeta deve, assim, abrir mão do desejo daapresentação objetiva do Ser, pois corre o mesmo risco queOrfeu, que perde Eurídice para sempre, ao retornar paravê-la e trazê-la ao mundo. A escrita que pretende dizer essaimpossibilidade deve ser feita por desvios. E, assim, essalinguagem, que quer dizer o impossível, o devir, o Ser emseu trabalho puro de Ser, deve privilegiar as torções da língua,o ritmo, a sonoridade, o sonho, a lenda, espaços e temposincertos, que sejam capazes de imprimir uma mudançaconstante das formas, para chegar ao limite da linguagem,fazê-la apontar o que não é possível de ser representado,ao dissolver demarcações fixas e tentar alcançar o caos.

No seu ensaio intitulado O athenäeum, do livro Aconversa infinita, Blanchot analisa justamente o chamadoRomantismo de Iena para conceber a noção dedésoeuvrement e coloca em destaque um importantefragmento de Novalis:

Existe algo estranho no fato de falar eescrever. O erro risível e assombrosodas pessoas é que acreditam falar emfunção das coisas. Todos ignoram oprojeto da linguagem: que somente seocupa de si mesma. Por isso é um fe-cundo e esplêndido mistério. Quandoalguém fala simplesmente por falar,então justamente é quando diz o maisoriginal e verdadeiro que se pode di-zer… Somente aquele que tem o senti-mento profundo da língua, que a senteem sua aplicação, seu ritmo, seu espí-rito musical – somente aquele que aentende na sua natureza interior e cap-ta em si seu movimento íntimo e sutil… sim, somente esse é profeta. (apudBLANCHOT, 1993, p.550).

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Analisando esse fragmento de Novalis, Blanchotconcebe sua noção de désoeuvrement:

Podemos dizer que nesses textos estejaexpressa a essência não romântica doromantismo e todas as principais ques-tões que a noite da linguagem contri-buirá a deixar claro: escrever é fazerobra de fala, porém que essa obra éócio, “desobra”; falar poeticamente éfazer possível uma fala não transitivaque não tem por tarefa dizer as coisas(desaparecer no que significa), senão dizer (se) deixando (se) dizer, ainda quesem fazer de si mesma o novo objetodessa linguagem sem objeto (se a po-esia é simplesmente a fala que preten-de expressar a essência da fala e dapoesia, se volta, apenas mais sutilmen-te, ao uso da linguagem transitiva –dificuldade maior para chegar a deli-mitar-se, dentro da linguagem literá-ria, a estranha lacuna que é sua pró-pria diferença como sua noite, noitepavorosa, análoga a que Hegel acre-ditou ver ao mirar nos olhos dos ho-mens). (p.551, grifos nossos).

Para Blanchot, a noção de désoeuvrement ou pontode origem remete exatamente para o que não é românticono romantismo de Novalis, ou seja, a busca de umalinguagem intransitiva e que não pode ser confundida coma essência da linguagem poética. Esse ponto de origem étambém o fora, que força o limite de uma dada forma e édo domínio do sub-representativo, que, como o devir, nãopode ser completamente formado nem representado.

Lavoura arcaica, como podemos deduzir de seutítulo, reenvia também à questão da « palavra original »,do espaço onde tudo começou, de um tempo que não éapenas cronológico, mas imemorial. O livro trabalha apalavra, o verbo, que é inspirado pelo retorno, escrita órfica.Mas, impossibilitado pelo retorno, o sujeito se perde nessemar convulsivo e sedutor e, assim como Orfeu, perde Eurídiceao retornar para vê-la, André perde Ana, sua irmã, e não a

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terá somente pelos desvios da linguagem que restitui sempreoutra coisa.

A primeira parte do romance se intitula A partida etraz como epígrafe versos de Jorge de Lima, extraídos doCanto Primeiro, XXII de Invenção de Orfeu: “Que culpa temosnós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço econstância?” (LIMA, 1952; 1997, p.525), momento doromance em que as recordações de André remetem paraum tempo cíclico; a segunda parte do romance se intitula Oretorno e tem como epígrafe uma passagem do Alcorão –Surata IV, 23 –, na qual se lê: “Vos são interditadas: vossasmães, vossas filhas, vossas irmãs […]”, parte em que oromance é dominado pelo tempo cronológico e irreversível;as epígrafes articulam, assim, o desejo e a impossibilidadede retorno à origem, a casa.

Como se nota, a estrutura do romance é espiralada,dividida entre a partida e o retorno, seguindo a noçãoautorreflexiva do eu romântico. Os textos de Nassar seutilizam de uma estrutura espiralada, pois, se encaminhampara situações-limite, com uma ruptura no final que conduza narrativa de volta para uma situação semelhante à inicial,criando-se um outro elo ao movimento em espiral, comoondas que sondam o centro, mas nunca o alcançam.

O romance é narrado em primeira pessoa, emmomento posterior ao que aconteceu. Há duasrememorações, uma da própria narrativa, que visa a retornare contar o que se passou, conduzida por André-narrador, eoutra acionada pela partida do personagem André, o desvio,o tresmalhamento, extravio, que, pelo efeito da embriaguezdo vinho, pelo recolhimento ao quarto-útero, espécie de ritode iniciação e regressão, provoca o jorro convulsivo deAndré-personagem, que revela, assim, seus segredos e suarevolta para Pedro, o irmão mais velho.

Nassar revela, assim, de maneira constante, adiferença entre o eu que escreve e o eu escrito, entre asubjetividade e a alteridade que se exprimem na linguagem,independentes da vontade do sujeito. Predomina, nessanarrativa em primeira pessoa, a teatralização do sujeito pelosujeito mesmo, um sujeito que é outro, pois, para contar suahistória, é necessário ser outro, estar fora de si:

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Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto(NASSAR, 1997, p.9)

[…] meus olhos depois viram a maça-neta que girava, mas ela em movimentose esquecia na retina como um objetosem vida, um som sem vibração, umsopro escuro no porão da memória[…]. (p.10).

Essa ambivalência do olhar é presente também nailuminação do romance em que prevalece, como jádissemos, o claro/obscuro. A claridade é ligada à palavrado pai, à razão, e o obscuro se refere à paixão e ao planoafetivo no qual se situam as mulheres, mas também o irmãomais novo, Lula, com quem André também cometerá incesto,insistindo, tal como um Cupido que dispara suas flechassem cessar, no uso da imaginação enganosa.

Assim, André deixa a casa paterna após ter seduzidosua irmã Ana – aqui, signo que substitui a mãe –, mas retornaa casa após ter sido convencido pelo irmão Pedro. Entretanto,André não volta arrependido, mas decidido a promover, desua maneira, a verdadeira união da família, a revelar-lhesuas partes obscuras em oposição às “idéias claras edistintas”4 do pai. Porém, seu retorno, que conduz a narrativaa um tempo acelerado e irreversível, desencadeia a tragédiaque irá se produzir: o pai mata Ana, impossibilitando a tarefade união total e corporal de André, mas possibilita suaformação como poeta, mesmo que de maneira traumática.

Como foi dito, André conta sua vida com umdistanciamento temporal e espacial, uma vez que a narraçãoem Lavoura arcaica se dá pela autorreflexão do narrador,que, como poeta, só pode escrever sua história passionalapós passar pela experiência da separação. A divisão doromance em duas partes sinaliza dois momentos dapersonalidade de André, como dito: nessa primeira fase, opersonagem ainda acredita no poder de seu verboconvulsivo, com a finalidade de promover a união com afamília, situação que se inverte na segunda parte, quandoele adquire um discurso racional e cínico, com desejo detomar o lugar do pai.

4 Alusão a René Descartes.

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Desta forma, esse narrador em primeira pessoaconta o que se passou quando era adolescente, quandotinha pretensões de atingir o Absoluto. Mas a visão desseadolescente, que carrega em si uma dose exagerada derevolta e de crença na possibilidade em realizar essa tarefaa qualquer custo, pronto a usar de qualquer artifício, apareceem oposição ao ceticismo da narração feita pelo mesmoAndré a posteriori, apontando a ironia presente no texto:

que feno era esse que me esvaía emcalmos sonhos, sobrevoando a quei-madura das urtigas e me embalandocom o vento no lençol imenso dafloração dos pastos que sono era essetão frugal, tão imberbe, só sugando nosmamilos o caldo mais fino dospomares? (p.50-51).

Como em Novalis, o poeta não quer viver apenaspelo entendimento, pela razão; o pai de Heinrich uma vezsonhou com a flor azul e poderia ter sido artista, masabandonou esse desejo e preferiu o ofício de artesão, assimcomo o pai Iohána, de Lavoura arcaica, que prega em seussermões o uso da razão, do entendimento, do equilíbrio, emdetrimento do uso da paixão, própria para construir um novomundo.

Como foi dito, Novalis está literalmente citado emLavoura arcaica, no capítulo 6:

Desde minha fuga, era calando minharevolta […] que eu, a cada passo, medistanciava lá da fazenda, e se acasodistraído eu perguntasse « para ondeestamos indo? » – não importava queeu, erguendo os olhos, alcançasse pai-sagens muito novas, quem sabe me-nos ásperas, não importava que eu,caminhando, me conduzisse para regi-ões cada vez mais afastadas, pois ha-veria de ouvir claramente de meusanseios um juízo rígido, era um casca-lho, um osso rigoroso, desprovido dequalquer dúvida : « estamos indo sem-pre para casa ». » (P.35-36, grifos nos-sos).

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É fundamental destacar a importância do tema Oretorno ao país natal ligado ao acabamento, que já aparecena primeira parte do romance de Novalis:

A Flor maravilhosa se mostrava diantedele e ele olhou para trás em direçãoa Thuringe que ele deixava, com o es-tranho pressentimento que, do costa-do para onde eles iam atualmente, eleretornaria à sua pátria após longosdesvios e que em realidade era entãopara esta pátria que sua viagem o con-duziria. (p.139).

Esse tema vai retornar diversas vezes ao longo doromance, como sondagem circular, que aparece na estruturado romance de Novalis, assim como o de Nassar, ao centro,ao Absoluto, ao Eu puro. Mas antes é preciso se afastarpara ver realmente; assim, o poeta deve passar pela provada separação e mesmo da morte, inevitável para aqueleque quer encontrar a linguagem poética.

A casa aqui não simboliza o familiar, o lugar seguro,mas, antes, a convivência do diurno com o noturno, que sópossível, para Novalis, via transcendência. Esse lugar paraonde quer ir bravamente o poeta é o universal insondável epleno de mistérios, onde se abriga todas as individualidadese ao qual se chega não pela razão, mas pela experiêncialimite de ultrapassamento da própria individualidade e darealidade empírica.

Em Lavoura arcaica, André experimenta também oafastamento, tempos de espera, mas sua volta não significaainda sua formação como poeta, como acontece noromance de Novalis. O poeta nassariano continua a insistirem trabalhar a imaginação de maneira enganosa. Serápreciso a morte de Ana perpetrada pelo pai para que Andréconsiga contar sua história passional. A formação trágicadesse poeta acomete toda a família, que passa tambémpelo rito da separação.

Se no romance de Novalis a dedicatória é paraSophie, signo que substitui a mãe, em Nassar a dedicatóriaé para o pai. A primeira edição de Lavoura continha umadedicatória em memória ao pai de Nassar, que foi retiradanas seguintes edições. O pai é aqui reconhecido duplamente

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como presença capaz de barrar o desejo incestuoso, mastambém como ausência capaz de desobstruir o recalque quesua Lei imporia. O reconhecimento ao pai surge comofórmula aporética, como gratidão ingrata.

Deixando entreaberta essa aporia, ao final doromance, o narrador repete as palavras do pai, as liçõesdadas à mesa dos sermões que, entretanto, foram semprerenegadas pelo filho:

[…] com os olhos amenos assistir aomovimento do sol e das chuvas e dosventos, e com os mesmos olhos ame-nos assistir ao movimento do sol e daschuvas e dos ventos, e com olhos ame-nos assistir à manipulação misteriosade outras ferramentas que o tempohabilmente emprega em suas transfor-mações, não questionando jamais so-bre seus desígnios insondáveis, sinuo-sos, como não se questionam nos pu-ros planos das planícies as trilhas tor-tuosas, debaixo dos cascos, traçadasnos pastos pelos rebanhos: que o gadosempre vai ao poço.) (p.194, grifosnossos).

“O gado sempre vai ao poço” parodia o trecho deNovalis anteriormente citado, ou seja, esse trecho repete oque antes o filho havia dito quando cita literalmente Novalis.O primeiro André tinha pretensão de alcançar umalinguagem poética, capaz de exprimir o Absoluto, omisterioso, estava sempre indo para a casa. André repete aspalavras do pai, que, afinal, repetem suas próprias palavras,em espaço e tempo diferentes, mas que se afasta de qualquertranscendência e remete ao plano terreno, de uma essêncianão essencial, reforçando a noção de repetição infinita.

A lição aprendida remete diretamente à inoperância– désoeuvrement - das palavras enquanto capazes de dizero mundo, mas que se tornam palavras do mundo, semespaço, tempo ou sujeito. Não nos cabe questionar ouconhecer os mistérios insondáveis do mundo, apesar desempre querer dizê-los, daí a necessária indiferença quantoa esses assuntos. A repetição se faz aqui pelo verbo arcaico,

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quando surge essa fala indiferenciada que instala um novocírculo à espiral.

Como visto, a leitura de Lavoura arcaica abre paraa questão da Bildung como entendido pelo importantepensamento romântico. Se a poesia para Novalis não émoralizante como para o pensamento idealista, não deixade ter um telos próprio à formação do poeta, que seria atentativa de alcançar a casa, o místico, o divino, que,entretanto, nunca é alcançado neste mundo.

Em nítida distância do pensamento romântico, paraNassar, assim como em Blanchot, esse telos inalcançável setorna indiferente, apenas restando a repetição incessanteda vida em seu sentido trágico. Se a arte não é mais capazde conter em si a necessidade do Absoluto, como queriamos românticos, a literatura porta a vacuidade da escrita eesse é seu único engajamento, sua única possibilidade deencontrar a liberdade absoluta, porém, inoperante. Essaimpossibilidade é a procura de uma obra que se direcionapara sua ausência e o escritor escreve doravante a obra daausência de obra - e esse é o seu trabalho infinito. RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

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Aceito: 03.06.2010

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Maria Zilda da Cunha1

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Neste artigo, valemo-nos do labirinto, comometáfora, para análise de textos contemporâneos paracrianças e jovens; propomos uma discussão sobre leitura.Para tanto, selecionamos produções - entre livros e telas -,cujas arquiteturas projetam, à semelhança dos caminhos deBorges, desafios, de modo a fazer o leitor imergir emintrincado espaço textual e percorrê-lo como um todo semse perder. A regra básica dessa exploração seria, portanto,não chegar rapidamente ao final, mas visitar o maior númeropossível de lugares.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: literatura para crianças e jovens; leitura;formas expressivas da contemporaneidade.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: In this paper we propose a discussion on reading,making use of the labyrinth as a metaphor for analyzingcontemporary texts for children and young people. To thisend, we selected productions - from books and paintings -whose architecture, similar to the ways of Borges, presentchallenges so as to immerse the reader into intricate textualspace and visit it as a whole without getting lost. Thus thebasic rule of this exploration would not reach the end quickly,but visit as many places as possible.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: children and young people literature; reading;ontemporaneity expressive forms.

1Professora na Universidade de São Paulo. Doutora em Estudos Comparados deLiteraturas de Língua Portuguesa. E-mail: [email protected]

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Nota introdutóriaNota introdutóriaNota introdutóriaNota introdutóriaNota introdutória

As reflexões que aqui empreendemos fazem partede um projeto maior que visa ao aprofundamento dasreflexões sobre leitura e procura dimensionar a produçãoartística contemporânea para jovens e crianças, verificandoem que medida as experiências, que emergem na relaçãocom novos ambientes hipermidiáticos, tornam-se capazesde articular a pluralidade em enlaces complexos, não sesubmentendo a padrões unilaterais e hegemônicos.

Neste artigo, valemo-nos do labirinto como metáforapara nos acercar de alguns textos literários (entre livros etelas) para jovens e crianças; textos cujas arquiteturasprojetam desafios, de modo a fazer o leitor imergir emintrincado espaço textual, percurso em que o viajante podedeparar-se com caminhos que engendram múltiplaspossibilidades, numa exploração em que a regra básica nãoé chegar rapidamente ao final, mas visitar o maior númeropossível de lugares para conhecer o labrinto como um todo.

Entendemos o viajante como aquele que buscaconhecimento em uma aventura e que ao viver o trajeto designificações, ressignifica-as, substancializando suaexistência. Nesses termos, quem viaja busca respostas e sedepara sempre com novas perguntas. O viajante-leitor,assim, faz-se na espessura do texto e no diálogo com ocontexto. Ao reencontrar-se com o mundo, na saída, sentir-se-á transformado.

O labirinto foi um tema pelo qual diversos autoresrevelaram sua predileção. Kafka, em sua genialidade, toma-o como favorito para retratar o ser humano angustiado nabusca da identidade. Os caminhos labirinticos desse autorsão construídos por medos, culpas, terror, paranóias. Olabrinto de Kafka nos invade e só podemos vencê-lo sevencermos a ansiedade e só assim o mundo se oferecerápara ser mascarado (KAFKA apud BLOOM, 1994). JorgeLuiz Borges, em seus magníficos ensaios, arquiteta uma obraque se confunde com a imagem do labirinto. Tecidos de fiosdiversos e imagens sombrias, os labirintos de Borges nosfalam de morte, mas também falam do acervo da espécie eda imaginação humana que se agregam ao mundo,adensando-lhe a complexidade. Julio Cortázar, em O jogo

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da amarelinha, faz a revelação de labirintos virtuais que seescondem na escrita. Lewis Carrol, em uma produção paracrianças, arquiteta, a partir do nonsense e de paradoxos,caminhos labirínticos na jsutaposição de mundos entre oreal e a fantasia. Os labirintos em Alice desestabilizam noçõesde tamanho, tempo, espaço; corropem as molduras da lógicaaristotélica; na esteira de Deleuse, destroem paradigmasesclerosados.

Thomas Hanna (1970), em Corpos em revolta,comenta a rebelião cultural dos corpos humanos diante dacomplexidade crescente das sociedades tecnológicas edesenvolve uma hipótese explicativa, segundo a qual há odesenvolvimento de uma cultura somática. Para o filósofoamericano, o ser humano como “soma” é fusão corpo/espírito, que em nossa época passa por novo estágio deevolução.”Soma” é matéria em contínua pulsação, ação,fluência, síntese e relaxamento. “Somas” somos nós, nesselugar onde estamos, seres, cuja história evolutiva conduzao momento revolucionário da percepção de que o mundoa ser explorado pelo século XXI é um imenso labirinto.

Os labirintos são imagens que persistem na históriada humanidade e revelam profundas questões do imaginárioe do pensamento humano. São inúmeras as definições evárias as simbologias que a ele se vinculam.

Os recentes trabalhos com a hipermídia tambémapresentam uma estrutra labiríntica, com uma construçãointrincada, tortuosa, com estratagemas que sinalizammúltiplos caminhos, bifurcações e múltiplos centros. ArlindoMachado (2002) considera a metáfora do labirinto perfeitapara a hipermídia, a nova forma de linguagem que vimosnascer no alvorescer dessa nossa era. Respeitadas asespecificidades, tal imagem pode ser tomada para textosimpressos e videográficos, cujos traços constitutivosassemelham-se.

O espaço a percorrer em um labirinto sempre trazdesafios e vai requerer uma percepção astuta, captação depistas, inteligência sensível.

Enfim, uma inteligência capaz de retomar pontos eperceber novas direções. Um trabalho intelectual de leituras,o qual vai requerer um conjunto de estratégias interagindocom diferentes níveis de conhecimento e muita astúcia para

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alcançar um distanciamento crítico para a compreensãodesse espaço, percorrendo-o, senão como um todo, demodo a visitar o maior número possível de lugares.

LLLLLeitura: breves reflexõeseitura: breves reflexõeseitura: breves reflexõeseitura: breves reflexõeseitura: breves reflexões

A leitura, alvo de estudos de diferentes campos,ocupa parte muito significativa da preocupação educacional.Em seu conjunto, os estudos explicitam a complexidade doprocesso, as estratégias cognitivas e metacognitivasmobilizadas pelo leitor, a mediação para investiduras críticase criativas em vários gêneros e também em obras literárias.

Considera-se a leitura envolvendo situações deprodução de sentido, pois permeia o imaginário do receptor,estabelecendo relações voltadas para o contexto-histórico,uma vez ser condição de produção discursiva.

Práticas de leitura, sob tal orientação, oferecem aoleitor possibilidades de estabelecer relações com seuspróprios conhecimentos e experiências prévias, com outrostextos já lidos, com o contexto histórico, em exercício dopensamento e de adequação ao meio em que vive.

Em se tratando do texto literário, cuja finalidadeprimeira é a fruição de uma mente criativa via sensibilidadee imaginação, é um universo que, muitas vezes, traz comodesafio o recriar, de forma relacional, meandros da realidadee da ficção, possibilitando chegar-se ao grau deficcionalidade do texto, à trama que as linguagensorquestram na composição da obra, ao grau de literalidade,procedimentos estilísticos, caráter lúdico e a interação queestabelece com o leitor.

A leitura assim processa-se no engendrar desensações, imagens, diagramas de compreensão, hipóteses,experimentações e raciocínio, de forma a articular umcomplexo sígnico que consubstancia o texto literário em suafunção social, ideológica e estética.

Ler nessa perspectiva envolve um trabalho ativo doleitor e envolve busca das marcas do enunciador pararepresentar o mundo, projetadas no texto, nas relações queestabelece com outros textos, outras épocas e outros lugarese com outras vozes. O texto, assim, é sempre tessitura dascondições de produção (do sujeito e seu mundo) e suas

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práticas de linguagem. Tessitura que face à revoluções quevivemos, adensa-se.

LLLLLeituras e leitoreseituras e leitoreseituras e leitoreseituras e leitoreseituras e leitores

Vivemos uma revolução da informação, dacomunicação, das linguagens e do conhecimento semprecedentes; basta atentarmos para a velocidade dastransformações históricas.

Há algum tempo, com a desmaterialização do textoeletrônico, passamos a ter um suporte dinâmico que distribuitextos on line, possibilitando às mensagens circularem pordispositivos múltiplos, em arquiteturas hipertextuais; com aintrodução da escrita nos meios hipermidiáticos, surgiramnovas formas de recepção.

Na verdade, em termos de leitura, há uma dinâmicaque providencia, em diferentes sociedades e momentoshistóricos, em função das tecnologias de que dispõem, tiposespecíficos de leitores. Em estudo recente, sobre o perfilcognitivo do leitor contemporâneo, Santaella (2007) resgatapropriedades do leitor contemplativo próprio do iluminismo,para quem o tempo não conta e que tem diante de si textosduráveis (livros) e que podem ser revisitados a todo e qualquermomento; ao sinalizar as diferenças entre esse e o leitorfruto da revolução industrial, do desenvolvimento docapitalismo, que recebe grande apelo de informaçõessimultâneas, desafiado à decifração de textos híbridos emdiferentes suportes, a autora chama a atenção para ainevitável convivência do leitor do livro, meditativo, com oleitor movente, leitor de formas, volumes, massas,movimentos, leitor cujo organismo mudou de marcha,sincronizando-se à aceleração do mundo.

A era digital surge com o poder dos dígitos paratratar toda e qualquer informação com a mesma linguagemuniversal: bites de 0 e 1 permitindo que todo e qualquersigno possa ser recebido, estocado, tratado e difundido viacomputador.

Essa era faz nascer o leitor imersivo – aquele quediante do texto eletrônico navega programando leituras, numuniverso de signos evanescentes e disponíveis. Um leitor quedesenvolve um estado de prontidão num roteiro multilinear,

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multissequencial e labiríntico (SANTAELLA, 2007). Esse leitorque está emergindo passa a conviver com leitor do livro,meditativo e com o leitor movente leitor de formas, volumes,massas, movimentos. Ao fim e ao cabo, temos, hoje, leitoresmúltiplos e, ao mesmo tempo, um leitor híbrido.

A utilização cada vez mais intensiva de redeshipermidiáticas, de computadores na produção artística eintelectual de nosso tempo introduz problemas novos; outroselementos se interpõem à imaginação criadora, aopensamento investigativo e à indagação estética que seopera em nosso tempo. Como discutimos em outro trabalho,outras respostas perceptivo-cognitivas são dadas aohibridismo promovido pelas novas criações.

Enfim, há outras atividades agora implicadas no atode leitura, posto que todo esse contexto consolida condiçõesde produção (do sujeito e seu mundo) e suas práticas delinguagem. Num contexto como esse, qual será o lugarassinalado para o leitor contemporâneo? Seu ponto de vista,seu local de escuta?

Evidentemente, o desafio é sempre maior quequalquer resposta. Algumas obras foram selecionadas aquia fim de exemplificar modos construtivos que parecemmarcar, nas formas expressivas contemporâneas, o lugar doleitor. As escolhas devem-se ao fato de a própria obraoferecer-se como metáfora para a leitura.

O lugar do leitor nas formas expressivasO lugar do leitor nas formas expressivasO lugar do leitor nas formas expressivasO lugar do leitor nas formas expressivasO lugar do leitor nas formas expressivascontemporâneascontemporâneascontemporâneascontemporâneascontemporâneas

[...] para dizer do novo é preciso criaro novo e, na busca de novas formasde feitura do texto, a eficácia estará emromper com o estereótipo e fabricar oinédito. Um dis-fazimento, um dizer quefaz o dito e desfaz o repetido. (Samira Chalhub)

Uma nova consciência de linguagem, damaterialidade do signo artístico manifestou-se na literaturainfantil e juvenil a partir dos anos 70, consolidando vetoresmuito expressivos da criação literária, dentre os quais, a

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intertextualidade, a metalinguagem, a confluência decódigos, o resgate de formas, de problemáticas, o diálogosentre palavra e imagem em produções que se constroemquestionando ou explicitando o próprio processo de suaconstrução e convocando o leitor a assumir umposicionamento menos ingênuo nos atos de leitura e fruição(COELHO, 1998).

Propõe-se desmontagem ativa dos elementos daobra, para detectar processos de produção; isso a faz ganhardimensão mais dinâmica, uma vez que nela ficamfranqueados elementos que presidem sua gênese, os diálogose as transformações. A recepção, por sua vez, também torna-se muito mais dinâmica, pois modifica, de forma constante,a leitura desses processos, desvelando processos delinguagem de que se reveste a realidade.

Os recursos ficcionais, dessa forma, promovem umaprodução textual que se faz como tecido urdido com fios derealidade e ficção, como jogo de linguagens na configuraçãodo objeto literário a ser disponibilizado para crianças e jovens- como se estivessem preparando seus leitores para aspróximas metamorfoses.

A partir dos anos 90, vêm se delineando modosconstrutivos pela inserção de novas tecnologias na produção,na recepção e no consumo, pela interface das linguagensverbais, visuais e sonoras, pelo estreitamento do tempo eespaço ao homem contemporâneo face ao desenvolvimentodas telecomunicações. Essas motivações associam-se aoutras, de caráter cultural mais amplo, como: a consciênciade uma complexidade cada vez maior do pensamento e davida; a descoberta do comportamento instável e caótico douniverso; o esfacelamento dos valores tidos como morais,universais; e das dicotomias clássicas da divisão social epolítica do planeta.

Tomando como ponto de partida a observaçãoconcreta dos trabalhos literários para crianças e jovensproduzidos nos últimos anos, temos procurado detectaralgumas formas de representação e algumas formas deexpressividade que, abarcando essa complexidade, refletemnovos conceitos estéticos.

A multiplicidade, a complexidade e as metamorfosesaparecem como características essenciais de muitas obras,

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bem como a disponibilidade instantânea de possibilidadesarticulatórias que o texto permite para a participação doleitor. Enfim, as obras contemporâneas passam a ser espaçode potencialidades tanto de sujeitos que a integram (leitor eautor), como dos componentes materiais de significaçãoindeterminada que entram em sua discursivização. As obrasadmitem o instável, a imaterialidade, sintonizando-se coma física quântica, a teoria do caos, das fractais, dacibernética.

Há obras concebidas de forma não necessariamente“acabadas”, que existem em estado potencial, pressupondo,assim, o trabalho de “finalização” provisória por parte doleitor ou espectador ou usuário. Arquitetadas de modo não-linear (semelhante a das memórias de computador), sãocompostas de textos em fragmentos que estariam ligados,entre si, por elos móveis e probabilísticos.

Nesses termos, a metáfora do labirinto é bastanteapropriada: em primeiro lugar porque a arquitetura do textoreproduz a estrutura intricada e descentrada daquele, bemcomo a complexidade que lhe é inerente. A complexidade,como diz Morin (1991), é um tecido complexus: aquilo queé tecido em conjunto), cujos constituintes heterogêneos econtraditórios encontram-se inseparavelmente associados.Por suas bifurcações e proposições múltiplas em função dasligações ambíguas entre as partes, a forma labiríntica permiterepresentar, lembrando Bakhtin, uma verdade que temsempre uma expressão polifônica.

O labirinto cretense em sua forma é consideradorepresentativo da complexidade que a imaginação dohomem da Antiguidade poderia atingir. Ele foi concebidotambém como um espaço para as festas e os jogos. Dequalquer forma, o labirinto possui uma estrutura que implicaem uma participação muito intensa do leitor/viajante.

Rosenstiehl (1988) aponta três traços que seriamdefinidores do labirinto: o convite à exploração (a fascinaçãodo percurso está em tentar esgotar a extensão de seus locaise voltar a pontos percorridos para obter alguma segurança);a exploração sem um mapa previamente elaborado, umavez que não se tem a visão global; a exigência de umainteligência astuciosa para que o viajante prossiga e progrida

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sem cair em armadilhas, permanecendo em constantescircunvoluções.

A beleza e a astúcia do labirinto estão namultiplicação das possibilidades e na vivência dos tempos eespaços simultâneos. Arlindo Machado (2002) considera ametáfora do labirinto perfeita para a hipermídia, respeitadasas especificidades; tal imagem pode ser tomada para textosimpressos e videográficos, cujos traços constitutivosassemelham-se.

Literatura para crianças e jovens e asLiteratura para crianças e jovens e asLiteratura para crianças e jovens e asLiteratura para crianças e jovens e asLiteratura para crianças e jovens e asestratégias para medir a astúcia do viajanteestratégias para medir a astúcia do viajanteestratégias para medir a astúcia do viajanteestratégias para medir a astúcia do viajanteestratégias para medir a astúcia do viajante

Literatura [...] – uma espécie de´fio de Ariadne´ que poderia indicarcaminhos, não para sairmos do ´labi-rinto´, mas para conseguirmostransformá-lo em ´vias comunicantes´que a concepção do mundo atual exi-ge.

(Nelly Novaes Coelho)

Realizado em um momento da literatura infantil ejuvenil, ao qual Nelly Novaes Coelho atribui forte consciênciacrítica e muita energia inventiva para a configuração de novosvetores estilísticos - ao que já fizemos referência -, Oproblema do Clóvis, de Eva Furnari, lançado pela Vale Livros,constitui um trabalho bastante original de metalinguagem eintertextualidade.

A obra retoma o conto dos Irmãos Grimm, O príncipesapo, na tradução de Monteiro Lobato. Pela originalidadeno resgate, constitui um metatexto, uma narrativa que,arquitetada de forma labiríntica, perfaz um caminho que ésua própria construção.

A narrativa de Eva Furnari revela a perícia com quecada detalhe carrega significados. Só leitores atentoscompreenderão as pistas enganadoras. O jogo labirintico ématéria constituinte do livro.

Os elementos dispostos na capa colocam o leitor,mesmo antes de sua entrada no espaço textual - tramadopor diversas linguagens -, diante de uma situação decombatividade interpretativa, uma vez que as pistas ali

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dispostas bifurcam-se em possibilidades. Há microinformações endereçadas ao olhar do leitor, mas as pistasnão estão em consonância com uma memória repertorialsobre o conto retomado. Assim, o encontrar da chave paraa entrada no texto não está facilitado por nenhum processode identificação. Desse modo, dependendo da escolha, asurpresa, ou o encontro com o enredar da estória, é diverso.

Seja qual for a opção do leitor, o convite àexploração é irrecusável e seu percurso acaba por ser o deum explorador com vista desarmada, sem mapa deorientação, posto que a terceira página do livro (equivalenteà primeira da estória) está vazia. Isso provoca umdeslocamento do referente para o incógnito, uma vez queainda não se tem visão global desse espaço que se vaipercorrer.

Dotado de percepção local, o agora viajante/leitoravança com atenção para não cair em mais armadilhas,mas adiante depara-se com alguém que, trêmulo de espanto(?), aflição (?) pergunta: “Ué! Cadê a estória? O queaconteceu?” Ambos, narrador, personagem e leitorcompartilham o espaço e as aflições; a decisão, no entanto,será do leitor, em avançar ou não.

Ao folhear o livro, o leitor vai seguindo, por trilhasdo estranhamento, uma estória, no lúdico da página e nolúdico do olhar, cruzam-se campos intertextuais. A atençãoredobra para a decifração de pistas e tomada de decisões,agora, quanto à predição de sentidos. Cria-se um campopara o leitor no espaço imaginário, pois os significantesocultos estão à disposição de uma memória repertoriada.Estória de amor (?) De um homem? (?) Estória de fadas (?)De um redator (?) Talvez de alguns problemas do editor (?),melhor ainda, a estória de uma estória, ou dos bastidoresde uma história de como se faz um livro de estórias (?).Bem, em todos os casos, o leitor vai encontrando pluralidadede enfoques, com ocorrências paralelas, em diagramas deespaço e tempo. As sinalizações acionam a memória eprovocam confrontação e possibilidades de representar parachegar ao reconhecimento.

Em uma paródia formal e temática, tal livro faz oresgate do conto, dessacraliza o cânone, borra fronteirasentre técnica e arte, magia e trabalho construtivo, desnuda

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o percurso criativo do maquinar, desenhar, escrever, editar,até mesmo coordenar a produção de arte de um livro,convocando-o a participar desse percurso trabalhoso, sujeitoa muitas aflições, mas divertido.

Em última instância, confronta-se o trabalho decriação com as determinações e exigências do mercadoeditorial. Mas é somente ao final que o leitor tem a visãodessas múltiplas ocorrências.

Em 2007, Zubair e os labirintos foi lançado pelaCompanhia das Letrinhas. A obra tem texto verbal, ilustraçõese concepção gráfica de Roger Mello. Tempo e espaço, verbale não-verbal ganham aspecto conceitual na fusão imagéticade uma ampulheta na sinopse:

Bagdá, abril de 2003. Mísseis semrumo atingiam ruas e mercados. Feri-dos e mortos em uma confusão debombardeios. Prédios públicos como aBiblioteca Nacional e a universidadepilhados. Durante três dias o Museu deBagdá foi saqueado diante dos olhosdas forças americanas e britânicas, queignoravam o apelo dos funcionários domuseu e dos arqueólogos do mundotodo. Entre os artefatos roubados, relí-quias da civilização mesopotâmica deaté 7 mil anos de idade, levadas demaneira organizada para ser vendidasno mercado de arte clandestino. Quan-do o menino Zubair encontra um obje-to entre os destroços depara com enig-mas que o conectam a antigaMesopotâmia, onde surgiram a escri-ta, o cálculo e o conceito de tempo.Por caminhos tortuosos como labirin-tos. Zubair alcança o tempo dossumérios, acádios, assírios ebabilônicos, antigos povos que agoratêm seu legado comprometido, damesma maneira que os atuaisiraquianos em meio a guerra. (MELLO,2007).

No âmbito da temática, evidencia-se uma perspectivacrítica a respeito da violência, da guerra e o impacto dessa

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experiência para a destruição de legados da história e dosprojetos humanos. Roger Mello, com uma visão muito aguda,por meio da ficção, chega a um mundo demasiado real eque carece de sentido; à semelhança de Borges, ele criafantasmagorias tão coerentes que nos faz duvidar a princípiodo que seja linguagem e do que seja realidade.

O artista reveste a realidade brutal por umacomplexa trama de linguagens. A obra sugere a viagempelos labirintos e o faz no deslocamento de espaços diversos,colocando os locais em confronto. Espaços que, como locaistextuais, reverberam perspectivas, problematizamidentidades.

A fragmentação dos múltiplos espaços e aintervenção do passado no presente, por meio da memória,leva à consciência da instância que narra, ora observador,ora imerso na narrativa.

A obra tece-se em camadas de sentidos. Produzidapara crianças e jovens, reveste-se do caráter dinâmico elúdico do labirinto.

O livro precisa ser desenrolado como um antigopapiro ou como um embrulho. Assim como o faz Zubair nanarrativa, “desembrulhando uma, duas, três vezes, o tecidoespesso abraçava um livro em que se lia: Os treze labirintos”.Verifica-se então, nesse momento, o livro dentro do livro eleitura dentro da leitura. Roger Mello consegue cimentar,ao redor do leitor, camadas labirínticas que o prendem àhistória, por meio da escrita, das imagens e do construto dopróprio livro como objeto.

Assim como as matryoshkas, o aparecimento desselivro secundário traz à tona uma intricada relação deinternarratividade. O narrador, em Os treze labirintos,anuncia a estória de um “quarto emissário” que precisavaentregar uma mensagem ao rei e para atravessar as esquinasenganosas do labirinto contava apenas com ajuda domencionado livro. Assim, como o quarto emissário e os seusantecessores, Zubair aventura-se pelos corredores de Ostreze labirintos e com ele acompanha os leitores do livroZubair e os labirintos, que também tentam decifrar asenigmáticas ilustrações de mapas e as suas igualmenteobscuras descrições.

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O leitor, ao chegar ao final de “Zubair e os labirintos”,não o encerra; a página do labirinto perdido é o livro que seencontra em nossas mãos; a saída do protagonista é aentrada do leitor para essa estória. Zubair, o quarto emissáriodo rei, o terceiro, o segundo, o primeiro e outros que vieramantes são absorvidos pelo labirinto- livro, tornam-sepersonagens dele.

É necessário resolver o labirinto para conhecê-lo; olivro, ele mesmo, coloca-se como um desafio para medir aastúcia do leitor/viajante.

Em um projeto de videoarte, Arnaldo Antunes realizauma epopéia multimídia – Nome. Trata-se de um projetoconceitual que expõe, em espaço e tempo simultâneos,discussões sobre metalinguagem, filosofia, ciência,tecnologia, história, cultura, em diálogo relacional por meiomicro clipes.

A consciência de linguagem e da materialidade dosigno ganha visualidade e operacionalidade. O próprio autor,em certo momento, aparece no vídeo deslizando a mãoeroticamente sobre a pele de vogais e consoantes,explorando a dimensão plástica da escrita, em toqueapaixonado pela físicalidade da letra.

No “abc” festeja eletronicamente o nascimento docalígrafo informático. Remete-nos à literatura infantil viaqualidades elementares, lúdicas e analógicas; ao selecionarcomo referentes terra, água, ar, bichos, o corpo humanopode deixar entrever o poeta-informático- ambientalista-eco-urbanista-místico-interestelar. Mas é na vertigem dos signosque se criam as próprias referências. É aí, naautorrefrencialidade, que convergem as temáticas modaisda complexidade sistêmica, das questões éticas, do ambiente,da percepção, da racionalidade, da centralidade do corpo,da criação da vida, entre o natural e o artificial. Aí, nessavocação especulativa geral, insere-se a dimensão social, nointerior da qual uma coletividade informacional assume-secomo parte de um grupo sistêmico mais amplo, maisarticulado e global. A centralidade da obra e do artista,labirinticamente, substitui a centralidade desse mundo.

A multiplicidade e a imprevisibilidade aparecemcomo dados a serem decodificados. O leitor deve encarar otexto permutativo como obra em movimento. São fragmentos,

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poesia visual, computação gráfica, minimalismo, músicaeletroacústica, coreografia e recursos cênicos, luz, formas,som e imagens se entrechocam, intercambiam sentidos,desafiando as interpretações lineares.

Cada texto assim é tecido, labirinticamente, e expõeum enigma a ser decifrado. É a sensibilidade, a disposiçãolúdica e inteligência astuciosa que não fará o leitor/ouvinte/expectador saltar para fora dos sentidos ali potenciais.

Em Agora tem-se um diagrama temporal, umlabirinto no tempo, encapsulando presente, passado, futuroem rede vertiginosa de tempos convergentes, divergentes eparalelos, formando uma imagem incompleta, mas não falsado movimento do universo. No mesmo clipe, o tartamudeioda voz que acompanha os flashs das palavras escritas e vãoremetendo ao frágil da representação face à miríade depossibilidades que o real pode apresentar. O quepensávamos estar separado, ali, aparece num jogo urdidode linguagem e realidade: nós próprios e as questões detodos os tempos que engendram o homem.

Cultura, em feixes complexos de cores, desenhosestilizados, sons e brincadeiras verbais inscreve na tela, empalimpsexto a história da cultura humana, fazendo conviverem simultâneos nós a nossa concepção de mundo, a dacriança e a de nosos ancestrais, reverenciando-asesteticamente.

Os labirintos aqui evocam a dinâmica da vida, omovimento de criação e a expansão do mundo, por meiode formas de espirais labirínticas que comportam doissentidos: de pensamento e praxis, de evolução e involução.Em cada entrecruzamento adensa-se o caráter revelador.

Para concluir, comentamos uma experiência emhipermídia, realizada por Ângela Lago2. Antes de entrarmosna animação, vale considerar que a hibridização permitidapela digitalização e pela linguagem hipermidiática, do pontode vista do suporte, consiste em dados transcodificadosnumericamente num espaço a n dimensões. Esse suportefísico tem sua existência em telas de luz e sons codificados.

No caso dos textos em hipermídia, o autor nãoconstrói propriamente a obra, mas concebe seus elementose o algoritmo combinatório, ficando a cargo do leitor a

2 http://www.angela-lago.com.br/oh.html

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realização da obra, ainda que cada um o faça de formadiferente. O carater não-linear das memórias de computadorpermite que os vários fluxos textuais estejam ligados entre sipor elos probabilísticos e móveis e possam ser configuradospelos receptores, de modo a compor possibilidades instáveis.Isso permite ao autor e ao leitor intercambiarem polos deatuação de modo muito operativo.

O leitor trabalha com alternativas dadas, mas deforma a recolocá-las em circulação com as possibilidadesvirtuais do texto; por meio desse processo, devolve-se o textoa uma fase anterior à seleção final de seus elementosconstituintes, restituindo-lhe variantes possíveis. Desse modo,o leitor opera com um número elevado de interações, o queexige dele interferências, diante de incertezas,indeterminações e de fatores aleatórios. Como o textohipermidiático também não apresenta uma linha deraciocínio, ele se abre para a experiência da percepção, daimaginação, do raciocínio do leitor, como um processo quese modifica sem cessar, adaptando-se em relação ao contextoe jogando com dados disponíveis. A leitura aqui ganha essecaráter lúdico, mas exige esforço intelectual e a decisão dequerer ou não imergir nesses meandros textuais, com o riscode retornar a pontos mais complicados.

Segundo Arlindo Machado (2002), a forma labirínticada hipermídia repete a forma labiríntica do chip, ícone porexcelência da complexidade em nosso tempo. Uma dessasproduções é OHOHOHOHOH! Um misto de desafio, mistério e humor,uma narrativa que é um jogo assombrado.

Entrando na animação (flash), vê-se a silhueta deum rato, a ossada de um cachorro (a abanar o que, um dia,foi rabo) e um esqueleto segurando uma vela; vê-se tambémum piano de meia-cauda e, no canto inferior direito da tela,um pedaço de papel com um rato desenhado. Apenaspasseando com o apontador do mouse, sem clicar emqualquer das figuras, o rato põe-se a movimentar; sua colunachega mesmo a dobrar-se completamente, a fim de quepossa estufar o peito, ou melhor, as costelas... a caveira,por sua vez, entoa um aviso e quando o cursor é arrastadopara o alto da tela ou fundo da cena, soam trovões.

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Nesse clima de mensagens cifradas, não há quemresista a dedilhar o piano. As teclas aparecem quase aomodo do instrumento convencional, intercalando-se entrebrancas e pretas — mas há uma a mais. Cada qual vaidesempenhar uma função. É passando o cursor sobre acauda do piano que ela se abre e duas mãos-fantasmasurgem, de dentro: uma segura a tampa, a outra dedilha deforma persistente uma tecla, enquanto se ouve uma risada.Nesse instante, o ratinho se move, indo parar sob as pernasdo cão-esqueleto.

Se o internauta-leitor-autor não decide o que fazer,os olhos da caveira se movem para os lados, ao mesmotempo que suas costelas arfam... uma possibilidade é[1] tocar mais um pouco de piano e veremos o ratinho semovimentando sob os possíveis pés do esqueleto... ou, então,[2] clicar sobre o desenho do rato e o rato irá saltar sobreo esqueleto humano, guinchando... Apenas passando omouse, o esqueleto treme na tentativa de livrar-se dopequeno animal. A decisão imediata pode ser um clique: osremelexos continuam sem solução. Pode-se solicitar auxíliodo cachorro, clicando sobre sua imagem. De fato, o cãoabocanha o rato e o inevitável acontece: fica engasgadocom um rato, nem muito vivo, nem morto, a entrar e sair desua boca. O esqueleto humano cruza os braços sobre orosto, recusando-se a olhar a regurgitação do cão comroedor semidevorado em sua boca...

O internauta pode intervir e o rato é salvo pelomouse. Passeando com o mouse, os trovões permitem quese veja até o esqueleto do rato. Um raio caindo duas vezes,sobre o mesmo rato, faz com que ele recupere suas carnes.Como se livrar do roedor que parece não querer mais largaro mouse do internauta? A única alternativa parece serlevantar a tampa do piano e clicar para ver o que acontece.Ali dentro, parece morar um monstro que papa o rato parajúbilo dos dois expectadores: o cachorro põe a entoar maisum prolongado OH, com a pose de cantor lírico, enquantoo esqueleto aplaude a decisão do internauta.

Então era tudo uma armação para o rato, uma“mouse trap”... o papel onde há um desenho do rato érapidamente riscado com um X vermelho: então, relemosesse pedaço de papel, como um mapa, ou o retrato de

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alguém que está condenado a ser morto-devorado pelomonstro do piano (ou seria o pianista, ou o próprio piano?).

Há um som, como guincho de rato que persiste emsoar, enquanto nada se faz. Os olhos da caveira se inquietam.É necessário reparar bem e ver que o desenho-retrato agoraé de um cão — e a folha tem o número 2. Mais uma estória...já podemos imaginar o que fazer: servir o cachorro para opiano, mas há um inconveniente: ele é apenas ossada... omenor deslize do cursor faz, por exemplo, uma revoada demorcego preencher a cena, saídos do piano... temos quefechar sua tampa.

O cão lambe a perna do esqueleto. Seria um mimo?Clicando no desenho do cão, no papel, ou na imagem dopersonagem, pode-se conferir: sua intenção é fazer umarefeição... o próximo clique faz com que o cachorro destaqueo osso da perna do esqueleto — e este pega o cão pelorabo, fazendo-o de sanfona, enquanto segura a vela com aboca... Mais um clique e o cão espatifa-se sobre o piano: éo fim do instrumento e do animal. Só resta um: aplaudindo-se. É o fim, último clique sobre o esqueleto - que, então, seaproxima da tela do internauta, com seus olhos móveis. Olhabem para quem o olha.

Registra-se uma simultaneidade comunicativa atravésdo olhar, pois o internauta que olha para a cena é quemassusta a caveira que agora o espia...O esqueleto recuapara a cena; o cão levanta-se e, ambos correm apressados,saindo pela esquerda. O piano, que também cria pernas,sai pelo lado oposto. O espetáculo, enfim, termina.

O enredo é construído visual e sonoramente. Sendodestinado a crianças, o encadeamento vai se dando namedida em que se movimenta o mouse. Desse modo, anarrativa monta-se com a intervenção de seu receptor,munido de um instrumento de comando — o mouse.

A constituição sonora dessa hipermídia é feita desamplers, em que os arquivos de áudio não se encontramdisponíveis. Há a predominância do visual, no entanto, alinguagem sonora é fundamental para marcar a sintaxe e atemporalidade da narrativa. O receptor é colocado no jogoda sintaxe dos corpos sonoros.

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Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Distintas marcas históricas singularizam as formasartísticas, as várias migrações e as reinvenções de imagens,concepções e estruturas se afirmam como metáforas paraformulação de conceitos estéticos. Os espaços textuaisretecem-se em fluxos operativos entre a participação do autore do leitor.

Os distintos trânsitos e diálogos observados nos textosem análise atestam uma ecologia cultural de complexassemelhanças, que se traduz por via do imaginário, fertilizadopela própria inventividade de que o texto artístico é portador.

Nas obras inscrevem-se elementos como absorções,diálogos e transformações. Multiplicidade, complexidadeaparecem como dados a serem decodificados. O leitordepara-se com um espaço labiríntico de traços permutativosque requer disposição lúdica e inteligência aventureira paraos sentidos ali potenciais. Cada obra assim passa a serespaço de travessia, potencialidades tanto de sujeitos queas integram (leitor e autor), como dos componentes materiaisde significação que entram em sua discursivização.

A apreciação estética é lúdica, ao mesmo tempo,utópica e reflexiva, tornando-se capaz de regenerarsentimentos e engendrar pensamentos críticos a respeito doconcreto histórico, posto que entram em jogo re-leituras daHistória, do concreto social, da herança cultural, da literaturapor meio de vozes dissonantes na apresentação de umaverdade agora polifônica. Se os códigos verbais e não-verbais tornam-se essenciais para a construção dos sentidos,códigos de sistemas sociais, culturais e literários tambémconstituem estratégias discursivas.

Fragmentação, colagem, montagem conceitual efusão presidem a composição das obras. A dessacralizaçãodas formas canônicas de narrar introduz, nas formascontemporâneas, aspectos ancestrais de experiênciasnarrativas, por conseguinte, mais caóticas. No entanto, pelaconsciência de linguagem com que autores e receptoresoperam esses elementos, engendram-se, pelas vias da arte,em novas ordenações, formas mais rebuscadas.

Nesta época de poderosas tecnologiascomunicacionais, em que a sociedade humana vem

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desenvolvendo formas de socialização ciberculturais,começamos a nos deslocar por paisagens híbridas,desterritorializadas, que estão sendo colonizadas por umcapitalismo perverso e cuja extensão pode abarcar e moldarculturas sob a égide de um modelo hegemônico.

É exatamente diante dessas constatações quepensamos a importância de nos colocarmos perto dosartistas. Estes têm sido hoje os responsáveis pelahumanização das tecnologias. Daí lembrarmos que se osartistas tomam para si a tarefa de reconfigurar a sensibilidadehumana, em regeneração contínua, ao intelectual cabe tomarpara si o trabalho de modelagem de novos conceitos, maisaptos aos enigmas que têm de deslindar. No dizer de NellyNovaes Coelho, a literatura é uma espécie de fio de Ariadne,que poderia indicar caminhos - não para sairmos do labirinto-, mas para conseguirmos transformá-lo em viascomunicantes que a concepção do mundo atual exige.

Como intelectuais das letras, devemos aguçar nossoolhar crítico para rotas de sensibilidade e inteligibilidadeexploradas pelo artista. Estas garantem tessituras maiscriativas e responsáveis para o desenvolvimento doimaginário, um território de múltiplas sínteses e tendências.

Com a profusão de processos sígnicos que derivamde misturas sem fim, em vertigem, essa forma cifrada demanifestação humana – a literatura - perpassa o tempo eatravessa diferentes culturas, muito à vontade, abrindo apossibilidade de se re-encantar o mundo, a vida, as relaçõeshumanas e a relações homem/máquina (por que não?).

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

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COTÁZAR, J. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1987.CUNHA, Maria Zilda. Children’s literature and the birth ofa new language: hypermedia. Anais do 29th IBBY WorldCongress: Books for África, 2005. p.30-37. Mimeo.FURNARI, Eva. O problema do Clovis. Aparecida-SP: ValeLivros, 1992.MACAHADO. Arlindo. Pré –cinema & pos-cinema. SãoPaulo: Papirus, 2002.MELLO, Roger. Zubair e os labirintos. São Paulo:Companhia das Letrinhas, 2007.MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.Lisboa: Instituto Piaget, 1991.ROSENSTIEHL, P. Labirinto. Enciclopédia Einaudi.Lisboa:Imprensa nacional, 1988. v.13.SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfilcognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2007.

Aceito: 03.06.2010

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Marinei Almeida1

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Propomos neste artigo uma leitura da novela Umanel na areia (estória de amor), escrita em 2000/2001 peloangolano Manuel Rui. Nosso objetivo principal é discorreranaliticamente sobre a Luanda recriada ou a Luanda daescrita nessa narrativa, levando em consideração as palavrasde Octávio Paz (2003), quando ele pondera que o poder dalinguagem nascida da palavra desemboca em algo que aultrapassa e faz a imagem recobrar asas.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: Literatura africana; Manuel Rui; Angola;espaço.

Riassunto: Riassunto: Riassunto: Riassunto: Riassunto: Proponiamo in questo articolo uma lettura delracconto Um anel na areia (estória de amor), scritta tra il2000 e il 2001 dall’angolano Manuel Rui. Il nostro obiettivoprincipale è discorrere analiticamente riguardo la città diLuanda ricreata o la Luanda di questa narrativa, prendendoin considerazione le parole di Octavio Paz (2003) quandopensa che il potere del linguaggio che nasce dalla parolasbocca in qualcosa che la oltrepassa e che fa sì chel’immagine metta le ali.

PPPPParole chiave:arole chiave:arole chiave:arole chiave:arole chiave: letteratura africana; Manuel Rui; Angola;spazio.

1 Professora do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de Pon-tes e Lacerda. Doutora em Letras/Estudos Comparados de Literaturas de LínguaPortuguesa (USP). E-mail: [email protected]

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ninguém pode ser do mundose não tiver a sua pequena aldeia(Mia Couto)

Um anel na areia (estória de amor) é uma novela escritaem 2000/20012 pelo angolano Manuel Rui, escritor,professor de literatura, jurista, cronista, autor de várias obrasliterárias e do hino de Angola. Manuel Rui iniciou a suacarreira literária com colaboração em revistas e jornais e apublicação dos primeiros poemas; colaborou, também, emprogramas de rádio e no cinema. Teve ativa participaçãona vida cultural e política em Angola no período que sesegue a independência daquele país.

Em Um anel na areia encontramos, por meio de umalinguagem mesclada pelas vozes do narrador em terceirapessoa e pelos diálogos entre personagens, o relato dahistória de amor, como o subtítulo traz, do casal de jovensMarina e Lau, que, em pleno clima de guerra, insatisfação,exploração e violência, começam seu namoro graças a umadas costumeiras quedas de luz na escola em que estudavam.Namoro selado no voo certeiro do “avião de papel queatravessou a escuridão da sala” (p.2) e aterrizou na carteirade Lau em resposta ao beijo que Marina recebeu deleminutos antes. Atitude carregada de coragem, cumplicidade,mas também de risco e atrevimento, uma vez que tal atopraticado pelos dois jovens transcorre numa sala de aulaescura pela falta de luz e pela ameaça de serem descobertospela professora, clima que os instiga a “aventurar viagemno escuro”, como lemos no trecho de abertura da narrativa:

É que passavam quase três anos queMarina havia começado a ter a sensa-ção de estar grávida desde aquela aula,de noite, quando a luz foi e, na escuri-dão, Lau atrevidou levantar-se, ir aténa carteira dela e beijar-lhe na bocaque se abriu de Marina para ele de-pois falar no ouvido dela: gosto muitode ti. Lau, a tua boca sabe a laranja equando a luz voltou, Marina, quase

2 Utilizo uma versão, enviada a mim por e-mail, que tomei a liberdade de colocarpágina.

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desligada na atenção da aula, visgo depássaro para os olhos dele e pegaremnos olhos dela ainda com a boca fer-vente de sabor no beijo e laranja, paraescrever bilhete numa folha inteira decaderno, maiúsculas grandes, letra apri-morada de desenho, sabes que tam-bém gosto muito de ti e quero-te beijarde dia? Devias dizer aqui na sala queme gostas a gritar num megafone mui-to alto como nos cômicos antigamenteou som de disco jóquei. Que eu gostode ti a gritar. A gritar muito. Do teuamor, Marina. E fez dobra de aviãonesse papel. Ficou a estudar distância.A professora no quadro, de costas paraa turma, atiro-atiro não atiro ou pro-veito o escuro e vou-lhe entregar namão. Atiro. E, num instante em que aluz aceitou outravez se desistir, Marinalevantou-se, pensou ainda cuidado desim ou não, descalça sem barulho, irlevar o bilhete que estava dentro doavião de papel no aproveitamento denão se ver, enquanto sem, mas o gostodela era mesmo se aventurar viagemno escuro para acertar com o aviãobicando certo na carteira de Lau. As-sim que a luz acendeu, ela virou osolhos para lá. Lau a desdobrar o aviãode papel. Está a olhar para mim. Comoé que ele advinhou que lá dentro iaescrito o princípio do nosso namoro?Parece que me sinto que grávida, mi-nha nossa! Grávida dele! (p.2).

Nesse trecho inicial percebemos claramente aambientação em que convivem os jovens e os dois eixosimportantes que sustentam toda a narrativa. Por um lado,tem-se o medo, o risco, a violência, a insatisfação, adesigualdade e, por outro, uma grande vontade de desafiartal situação e driblar o infortúnio. Há de se observar que jánesse início da obra Manuel Rui lança mão de importantesrecursos estilísticos, como certas metáforas e algumasconstruções que ora servem de combinação entre seuselementos, ora servem de contrastes como prenúncio do que

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virá adiante: a escola como um espaço de insegurança,mas que ao mesmo tempo representa um espaço de encontrode dois jovens que apostam no amor e na união de forçaspara lutar pela esperança de uma vida melhor: a fragilidadedo avião de papel que vence a escuridão, ludicamenteutilizado no lugar do avião bélico; a metáfora do dia e danoite (escuridão e luz); o sabor de laranja remetendo aosabor da terra; a gravidez imaginada e as expressões comforte conotação de tensão. Elementos que, como já dissemos,contêm e prefiguram os acontecimentos a serem narrados eque, no decorrer da história, outros elementos de forteconotação semântica comparecerão, como os anéis, o mar,o espelho, a Kianda, a sereia.

O enredo não apresenta grandes ações; é uma históriaquase circular em que mostra as dificuldades materiais deLuanda,,,,, sobretudo a maneira de vida dos jovens em plenaconvivência com as várias consequências sociais queresultaram dos anos de exploração, violência edesigualdade, frutos da herança colonial. Marina, moçajovem, bonita e sonhadora que, graças ao domínio do inglêse da informática, trabalha no escritório de uma petrolífera eque mora com sua tia Aurora - saudosa dos tempos idos.Marina, não tendo mãe, fora morar com a tia para nãodeixá-la sozinha, uma vez que esta há muito não obtinhanotícias de sua filha, que fora para Portugal, e nem de seufilho, que provavelmente teria morrido em combate, pois jásomavam mais de sete anos sem notícias dele. Ao contráriode Marina, Gui, sua amiga, que, por falta de atributos físicose capacitação exigida no mercado de trabalho, é uma moçadesempregada e seu discurso demonstra uma enormeinsatisfação com tal situação e acaba por entrar no ramoilegal de compras e vendas de produtos como meio desobrevivência. Sua maior ambição (que também permeia oespírito de Marina) era poder sair da cidade e tentar a vidafora, como muitos jovens faziam na espera de uma vidamelhor. Lau, namorado de Marina, é um jovem corajoso,crítico e moderno que trabalha num despachante, graças,também, ao domínio da língua inglesa e do conhecimentode informática, mas que vive na tensão de conseguir o “papelde recenseamento militar” (p.3), que o livraria do risco deser recrutado para a guerra.

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A história é ambientada na cidade de Luanda, com suasmodificações sociais e estruturais, focalizando desde aconvivência de duas gerações representada pela tia e pelosjovens, pela Kianda e pela sereia, pelos espaçosdiferenciados (casa da tia e o escritório da petrolífera). Essaperspectiva chega à crítica social ao mostrar o desemprego,a falta de moradia e/ou a diferença desta que, por meio dasobservações das personagens e das descrições do narrador,somos informados sobre as casas, os anexos, apartamentos,prédios localizados em diferentes bairros, bem como as ruasde Luanda, recheadas de pessoas de diferentes níveis,principalmente de jovens e crianças a esmolar pelas calçadas.

Mas não somente esse cenário de desigualdade -utilizado como recurso voltado para “o sentimento de vazioque corrói os grupos e os seres” (CANDIDO, 2004, p.12) -compõe o texto de Manuel Rui. Temos aí, além do elementoamor como força positiva, a presença do mar, que, aliás,não só tem presença marcante na vida dos jovensprotagonistas – Lau e Marina -, como é um elementocarregado de subjetividade, que comparece na grandemaioria das obras literárias desse escritor, como em Memóriado Mar (1980), Cinco vezes onze – Poemas em novembro(1985), Quem me dera ser onda (1991).

Manuel Rui, ainda em 75, foi considerado por RusselG. Hamilton um dos autores mais produtivos da pós-independência. Hamilton observa, também, que “acodificação da linguagem quotidiana, intimamente ligadaao período histórico e à nova ordem sóciopolítica, é o fulcroda sua ficção” (HAMILTON, 1975, p.192). Manuel Rui“trabalha a partir do registro das ruas de Luanda na maiorparte de suas narrativas”, pondera Tânia Macedo em seuminucioso estudo Uma cidade e sua escrita: a representaçãoliterária de Luanda (2004, p. 54). Na obra, objeto de nossaatenção, além da focalização do espaço da cidade deLuanda, num constante contraste, esse espaço luandensecomparece no enredo por meio do discurso de Lau, algunslugares de Joanesburgo, ora demonstrando a eficácia doprogresso, ora suas consequências.

Vários desses espaços que permeiam a narrativa serãoaqui observados mais de perto por pensarmos que taisespaços recriados fertilmente no tecido textual dialogam

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semanticamente com a situação vivida pelas personagens.....Lembramos que não utilizaremos dados sobre a pessoa doescritor e quase nada sobre as circunstâncias histórica esocial de Angola, mesmo conscientes de que “estudar aliteratura produzida em Angola é obrigatoriamente referir-se a Luanda, sua história e sua gente” (MACÊDO, 2004,p.11). Portanto, nosso objetivo é o de lançar um olhar maisapurado sobre a camada textual e discorrer analiticamentesobre a Luanda recriada ou a Luanda da escrita, como sugereTânia Macedo sobre essa novela de Manuel Rui, levandoem consideração as palavras de Octávio Paz (2003), quandoele pondera que o poder da linguagem nascida da palavradesemboca em algo que a ultrapassa e faz a imagemrecobrar asas.

A cidade fotografadaA cidade fotografadaA cidade fotografadaA cidade fotografadaA cidade fotografada

Ao discorrer sobre a cidade da escrita em “A presençade Luanda na literatura contemporânea em português”,Tânia Macedo (2002) afirma que:

A sociedade industrial é urbana e a ci-dade é, pois, o seu cenário por exce-lência [...] e por seu papel de destaqueno mundo de que hoje somos parte, acidade se impôs como componenteativo da maneira de ser de nosso tem-po: somos urbanos e nossa históriapassa necessariamente pela história dascidades do mundo ocidental. (p.67).

Ao ressaltar que as cidades fundadas e conquistadaspelo império colonial português não mantêm um perfilexclusivo, a autora traça “uma tipologia de alteração destatus dessas cidades de acordo com o poder imperial e asrelações de auto-consciência da colônia” (p.69-70). Dessemodo, num primeiro momento, a urbe, representando “osonho de uma ordem”, adquire a feição de cidadeportuguesa no além mar. Num segundo momento, tem-se achamada cidade colonizada – a partir dos fins do séc. XVIII,e, num terceiro momento, a cidade re-criada, que ao voltar-se para sua própria face e não mais a européia, deixa emergiruma literatura nacional, a qual se fortalece na denúncia ao

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colonialismo a partir do que Fanon denomina como a“cidade do colonizado”, quando este observa a tensão quecaracteriza a exclusão recíproca entre o espaço habitadopelos colonizados e pelos colonos.

Faz-se pertinente, então, lembrarmos também do outrointeressante estudo A sociedade angolana através daliteratura (1978), de Francisco Mourão, que ao debruçar-sesobre a obra de Castro Soromenho, analisa as fases daLiteratura Angolana relacionadas ao processo decolonização, voltando a atenção à cidade de Luanda,sobretudo, no primeiro capítulo. Mourão pondera que emtodas as fases dessa literatura (período que vai das décadasde 30, 40 e 50), a produção literária tem “por meio ambientala cidade de São Paulo de Luanda, mais comumenteconhecida apenas por Luanda” (p.14).

Nos fins dos anos 50 e inícios dos 60, Luanda continuaa ocupar os espaços das páginas literárias na LiteraturaAngolana, sobretudo, como forma de engajamento aoprojeto nacionalista, ao mesmo tempo que denuncia ocolonialismo (MACÊDO, 2002). Luanda surge, então, emvários textos literários, dividida em bairros e,consequentemente, em classes sociais.

No estudo recentemente apresentado na Universidadede São Paulo (aqui já citado), após discorrer sobre a capitalde Angola, observando sua beleza geográfica, historicamentemarcada pelo projeto colonialista, Tania Macêdo (2004)lança um olhar crítico e descortina uma outra face de Luanda:

Mas há uma outra realidade de Luan-da: a que se revela a partir dos merca-dos livres que levam o nome de pro-gramas da televisão brasileira comoRoque Santeiro e Os Trapalhões, ouainda em suas ruas congestionadas ecom pavimentação quase inexistente,com um número assustador de crian-ças de rua, ao lado de uma grande frotade automóveis de luxo, de casas gra-deadas e guardadas por cães e empre-sas privadas de segurança, de bairrosclandestinos que crescem assustadora-mente do dia para a noite, da ruína dosedifícios históricos ou da destruição dopatrimônio urbano. Luanda em que as

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falhas de energia elétrica e de águasão constantes e na qual as doençasdiarréicas, a malária e a AIDS são osmales que dizimam a população maispobre. (p.9).

A partir desse retrato, podemos afirmar que em Umanel na areia atravessam imagens que esteticamente sãorecriadas à luz da degradação deixada por anos deexploração e da guerra em meio à exigência de um mundoglobal em que a modernização ou a falta desta atropela ohumano e a história.

O enredo, como vimos, começa por uma lembrançado início do namoro de Lau e Marina no espaço escolar.Uma escola que sofre as sérias consequências da falta deinfraestrutura e respeito, mas que ainda é um espaço ondea esperança visita, pois foi neste mesmo espaço que oencontro dos dois jovens, símbolo do novo e da ousadia,começa a pintar com outras cores o aspecto sombrio domedo. A escola, lugar de violência, injustiça e corrupção,desenhada pelo olhar da personagem Gui, acaba porfuncionar quase como um correlato ou mesmo como umaextensão dessa “outra realidade de Luanda”:

Sabes que tem escolas que quandofalta a luz vem logo a gatunagem. La-drões? Sim, costumam assaltar as sa-las e rapar o material todo e fogem eainda outro dia quando a luz acendeuum bandido ainda não se tinha despa-chado de pôr numa miúda parece queaté desconseguiu na maneira que elase apertou nas pernas mesmo com aboca tapada pelo grego depois a fugircom o biquíni na mão todo rasgado[...] outro para lhe safar na corrida fezum tiraço para a lâmpada tudo escurooutra vez [...] o pessoal todo a fugir aprofessora com a cabeça escondidadebaixo da secretária. (p.2-3).

Que às vezes no caminho que nos cha-tearam com essa porcaria das listaspara entrar na escola e não deixaremuns estudar de dia mas só à noite, vê

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só como a sorte passa por esses cami-nhos, Marina! Te lembras bem que aminha mãe teve de juntar dinheiro paracomprar duas notas de cem dólares eeu entregar naquele director para ficarnas aulas de dia e tu a chorar, lem-bras-te? Porque te saiu o azar de teraulas à noite. (p.6).

A escola, em vez de representar um estabelecimentode convivência e harmonia entre pessoas de todos os credose raças, um “sistema ou doutrina de pessoa notável emqualquer área do saber” (HOLANDA, 1993, p.219), aquirepresenta um espaço antes de carência do que de suplência.A escola, como símbolo civilizatório, é subvertida, e pelacrueldade do sistema colonial desampara suas metashumanizantes, já que o saqueamento do espaço escolar,como lemos no trecho citado, numa outra perspectiva quevai além da violência, simboliza o saqueamento de umconteúdo cultural, de uma civilização – africana, angolana– e o despojamento de seus bens mais preciosos.

A escola é um espaço que se “democratizou” com odesenvolvimento do capitalismo, da sociedade industrial eque passou a requerer trabalhadores com melhoresqualificações. Esse acento urbano da escola a coloca comuma das principais instituições na construção de uma ideiade nação, pois é principalmente por meio da instituiçãoescolar que os valores e as ideologias são inculcados nosjovens.

Como observado momento atrás, há no texto umacomparação entre Luanda e Joanesburgo. Luanda é traziacomo um espaço de degradação, que ocupa um lugar bembaixo da pirâmide social, no qual muitos têm pouco ou nãotem nada e poucos têm muito. Assim, Luanda traz um cenáriode pobreza, medo e insegurança:

Ouviste na rádio? Sim. Lau, cada vezestá pior é melhor não ires às aulas.[...] Lau, já pensei que podíamos ir paraa África do Sul ou mesmo paraNamíbia, começo a ter medo. E eu te-nho medo é de sair daqui. Porquê? Nãosei, parece que às vezes sinto as per-nas cortadas e quando penso uma coi-

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sa dá-me a impressão que toda a gen-te está a ouvir e a ralhar comigo. (p.7).

Marina no sábado Lau a deixar-lheconduzir a motorizada e quando para-vam, os miúdos zungueiros e mutila-dos de esmola eram logo-logo de ofer-ta para guardarem na moto. (p.17).

[...] e é mesmo preciso ir de avião porcausa das emboscadas e minas. (p.28).

Também do desemprego e da desigualdade social:

[...] uns que vieram da tropa só nadiamba e sem emprego ou sem perna,outros que vieram de Cuba com amania que são socialistas e doutoresque não têm emprego. (p.15).

Um filho de rico, de um ministro ougeneral, está agora mesmo em Lisboa,em Paris, em Nova Iorque ou mesmoaqui perto em Joanesburgo, Harare ouWindhoek, sem estes problemas [...]eles têm tudo, não têm problemas detropa, moram em apartamentos, tudonuma boa, jipes e jipaços, buates emais buates. É isso marinas. Mastigamchiclas, assim dez pastilhas de cadavez,estão-se cagando para isto. (p.10).

[...] sabes que agora ninguém pode terum apartamento novo porque não sefazem e as únicas casas novas que sefazem são essas tipo muceque, estás aver na Praia do Bispo? É tudo assimaté na ilha está tudo atafulhado decasas só de cimento e zinco, buracosque são janelas e portas vê só aquelesfornos e ainda casa de banho nada,não há casas [...] Marina quer dizer hácasas na Luanda Sul e isso que cha-mam condomínios mas é tudo paraeles. (p.15).

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Em relação a esta última citação poderíamos nosreportar à classificação de Fanon sobre a zona habitada da“cidade do colonizado”:

[...] a cidade do colono, uma cidadesólida, toda de pedra e ferro. É umacidade iluminada, asfaltada. [...] a ci-dade do colonizado [...], um lugar malafamado, povoado de homens mal afa-mados [...] Um mundo sem intervalos,onde os homens estão uns sobre osoutros, as casas unas sobre as outras.A cidade do colonizado, uma cidadefaminta [...] uma cidade acocorada,uma cidade ajoelhada, uma cidadeacuada. (MACÊDO, 2002, p.70).

A colonização, sem dúvida, é o motivo principal dessacondição, mas com certeza ela está no seio de um projetomaior de expansão capitalista e de centralização do poder,sobretudo a que assistimos após a segunda guerra mundial.As consequências disso continuam hoje a acontecer nãosomente em Angola, mas em São Paulo, no Rio de Janeiro,no Quênia, para citarmos apenas alguns lugares vitimadospor tal projeto. Ou seja, o que esses sistemas autoritáriossão capazes de gerar é, sobretudo, pobreza, e uma sociedadeempobrecida não é aquela que foi despojada somente deseus bens materiais, mas também de suas tradições e desuas possibilidades de escolhas.

Enquanto Luanda, no texto de Manuel Rui, representaum cenário de totais privações, Joanesburgo desfila noimaginário dos jovens como signo do progresso e do novo:

Um dia hei-de te levar lá emJoanesburgo, [...] Mas aquilo é outronaice [...] O anel comprei no mercadodo Bruma e um dia tens que lá ir comi-go porque não dá para explicar quan-do a gente sai de uma terra como estaonde apanha choque na torneira ondenão sai água e não tem luz na lâmpa-da que deita água, uma pessoa fica apensar nisto tudo, Marina, só no Bru-ma que é um mercado popular tem

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mais organização do que num minis-tério aqui e ainda ias gostar porque temespetáculos, bailarinos e tudo. (p.5).

Nesse sentido, não podemos esquecer aqui delocalizar a África do Sul, levando em consideração sua forçano contexto dos países africanos e a dependência cultural eeconômica em que vivem países como Angola eMoçambique, por exemplo, até mesmo pela proximidadegeográfica. A questão da língua inglesa, tratada na narrativade Manuel Rui, tida como um dos fatores básicos paraobtenção de bom emprego para Lau e Marina e algunsprivilégios que essas personagens têm por falar essa língua,não passa de uma exigência vinculada ainda ao poderio doimpério britânico e a sua ideologia da separação que fez asegregação racial na África do Sul, o apartheid, que, naprática, ainda segrega. Ressonâncias muito significativas,pois a “Paris” de muitos africanos é a vida, principalmente aurbana, da África do Sul.

Se, por um lado, os jovens se sentem insatisfeitos e, decerta maneira, até encurralados pelos vários “caminhosminados” (p. 30) causados por todos os pontos negativostrazidos pela guerra, pela exploração e pelo descaso emLuanda, por outro lado, Joanesburgo também nãocorresponde ao lugar ou ao mundo mais justo e viável queos jovens desejam, uma vez que, com o desenvolvimento,vem também a desumanidade, a violência, o medo,estabelecendo a contradição típica da modernidade:

Sim, uma velha branca a pedir esmolanum cruzamento de rua para o merca-do do Bruma. E então? Nada, tinhaum cartaz de cartolina branca seguronas mãos e escrito a feltro azul helpme! [...] As pessoas? As pessoas an-dam de um lado para o outro, traba-lham, compram, enchem os casinos efalam muito nos assaltos, morre muitagente assassinada, táxis como aqui nascombis e também dos outros que umapessoa pode chamar só para si, sãobué, mas olha, na zona do Bruma, numlago com hotéis à volta, encontraramna água cinco cadáveres, secaram o

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lago, quer dizer, as pessoas, as pesso-as, as pessoas de Joanesburgo, namo-rados não vi assim abraçados comoaqui. (p.5).

A África do Sul se apresenta como contraponto nocenário africano, sendo o país mais próspero da Áfricasubsaariana; no entanto, viveu e ainda vive situações deviolência e discriminação, como as conhecidas no conflitoIsrael-Palestina no Oriente Médio. Então, o paraíso aindanão é aí.

Desse modo, parece oportuno lembrarmos a discussãoque Alfredo Bosi (1993), no texto “Poesia Resistência”, fazsobre o papel do poeta e da poesia no mundo moderno,cindindo pelo sistema capitalista:

As almas e os objetos foram assumi-dos e guiados, no agir cotidiano, pelosmecanismos do interesse, da produtivi-dade; e o valor foi-se medindo quaseautomaticamente pela posição queocupam na hierarquia de classe ou destatus. Os tempos foram ficando –como já deplorava Leopardi – egoístase abstratos. “Sociedade de consumo”é apenas um aspecto (o mais vistoso,talvez) dessa teia crescente de domínioe ilusão que os espertos chamam “de-senvolvimento” [...] e os tolos aceitamcomo “preço do progresso”. (p.142).

Assim, recordemos também Walter Benjamin, em seulivro clássico Charles Baudelaire um lírico no auge docapitalismo (1998), quando volta sua atenção para Paris dosegundo império, tomando a obra de Charles Baudelairecomo ícone para refletir sobre a relação do homem modernona era capitalista. Ao reconhecer no proletariado o lutadorescravizado, o teórico observa que as resistências que amodernidade opõe ao impulso produtivo natural ao homemsão desproporcionais às forças humanas. Walter Benjaminobserva, também, que em Baudelaire a relação damodernidade está atrelada à antiguidade, apontado, de certamaneira, para um certo saudosismo ao passado, resultado

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da era moderna, do tempo da brevidade e do imediatismoem que o vazio busca um alento ao passado.

Vale apenas observar que em África essa elaboraçãoacontece num estado de tensão, uma vez que essa cultura,sufocada, mas não totalmente dominada pelo sistemacapitalista, não apaga o passado e nem consegue restaurá-lo. Então, enquanto que na Paris de Baudelaire essa cisão éprovocada pelo sistema industrial causador da avalancheda divisão de trabalho e da divisão de classe, logo, da divisãodo próprio humano, em África essa cisão é provocada,sobretudo, pela chegada do colonizador. Assim, Manuel Rui(1985), em seu ensaio “Eu e o outro - o Invasor ou empoucas três linhas uma maneira de pensar o texto”, abordaa complexa relação entre esses dois tempos e entre essesdois universos ao discutir a questão da oralidade e da escrita(uma das questões flagrantes abordadas pelos escritoresangolanos). O texto de Manuel Rui cabe perfeitamente noâmbito da discussão sobre o duo tradição e modernidade.Desse modo, Rita Chaves (2005), ao comentar a questãoabordada nesse texto de Manuel Rui, afirma que

a consciência da ruptura aberta pelocolonialismo é clara e ilumina ainevitabilidade da situação que mes-mo a independência não pôde soluci-onar. Diante do panorama que se abre,não há regresso, e a sugestão do poe-ta é só uma: dinamizar o legado, apro-priar-se daquilo que outrora foi instru-mento de dominação e foi, seguramen-te, fonte de angústia. A recuperaçãointegral do passado é inevitável. Seuesquecimento total se coloca comouma mutilação a deformar a identida-de que se pretende como forma dedefesa e de integração no mundo. Aharmonia – tal como era, ou deveriaser – foi atingida e não podendo serrecuperada, há de ser reinventada comaquilo que o presente oferece. [...]Destituído de tanta coisa, o africanorecupera-se na desalienação, ponto departida para afirmação num mundoque já é outro, no qual ele precisa con-quistar um lugar. (p.51).

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E é por essa corrida, pela conquista de um lugar,que as personagens de Um anel na areia clamam, e o teorde denúncia e descontentamento desse mundo de rupturasé permeado em todo tecido textual. Isso está flagrante nãosó nos discursos dos jovens, mas também nas observaçõesda Tia Aurora, que apresentam não só esse teor dedescontentamento, mas aponta para um saudosismo, comcerta dose de melancolia, do antigamente. Um tempo que,aos olhos dos jovens, também não era, com certeza, osuficiente para se ter uma vida mais digna e talvez nem paraTia Aurora, mas que inconscientemente esta não conseguiaver sentido no mundo permeado de incertezas em que elavivia. Assim, parece-nos que o saudosismo da tia Auroranão é somente o reclame pelas crenças e tradições perdidasao longo do tempo, mas também por parecer que “aspessoas mais novas até já nem sabem a vontade de terfelicidade que antigamente até lutar era felicidade, dançar,cantar, tudo, minha filha, hoje nem sequer sabem chorarcomo deve ser, ouviste?” (p.19).

Duas ordens em tensãoDuas ordens em tensãoDuas ordens em tensãoDuas ordens em tensãoDuas ordens em tensão

A discussão que se fez até aqui permitiu-nos observarque há, nessa narrativa, um embate de duas ordens, portanto,paira uma tensão entre mundos e tempos diferentes. Essatensão aparece claramente se pensarmos na correlaçãosimbólica dos espaços (casa da tia e o escritório dapetrolífera, Angola e Joanesburgo, cidade e mar) daspersonagens que povoam a história ou aquela que nela éaludida (os jovens e tia Aurora, a Kianda - ora denominadade sereia), também dos objetos (espelho da tia e espelho doserviço de Marina, as missangas e o anel de “ouro”) quecomparecem na narrativa e que Manuel Rui faz questão dechamar atenção por meio de uma escrita circular, na qual autilização da reiteração intencionalmente excessiva e a vastasaturação estilística são constantes. Assim, discorreremosanaliticamente sobre alguns desses elementos que julgamospertinentes à nossa reflexão.

Lembrando-nos das profícuas palavras (as quaisutilizamos como epígrafe) do escritor moçambicano MiaCouto (2005) quando este, ao fazer um balanço dos 30

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anos de independência de Moçambique, afirma que“ninguém pode ser do mundo se não tiver a sua pequenaaldeia” (p. 5). Nesse balanço, Mia Couto analisa a trajetóriadesigual de Moçambique e consequentemente de outrospaíses da África que sofreram o mesmo processo castradorda ação colonialista e que agora sofrem as suasconsequências e tenta, ao mesmo tempo, concorrer comoutros países de estruturas e histórias sociopolíticastotalmente diferenciados (questão que se entende nãosomente a esses países africanos, mas também aos outrostantos países periféricos alcunhados de “países de terceiromundo”) para a busca de um lugar, não somente ao sol,mas ao sistema global que parece não ter consciência daimportância da chamada solidariedade, para utilizarmos otermo do professor Benjamin Abdala Junior.

Nesse sentido, chama-nos a atenção, na novela deManuel Rui, a ênfase dada ao problema da moradia, comojá enfatizamos momento anterior. Além da insegurança deLau em relação ao recrutamento para guerra, o casal se vêimpedido de casar-se por falta de moradia. Também apossibilidade de morar com a tia Aurora é uma questão quenão agrada aos jovens, primeiro por pensar que “quem casaquer casa”, pegando carona no ditado popular, e depoispor não se identificarem com a casa da Tia Aurora, uma vezque tal espaço não corresponde ao espaço desejado – a docomeço de uma construção. Numa leitura fenomenológica,recorreríamos a Bachelard (2000), quando, no estudo sobrea simbologia da casa, afirma que a casa é o nosso canto nomundo, nosso primeiro universo, uma primitividade quepertence a todos, é o “não-eu que protege o eu” (p. 24).Portanto, tal simbologia é estudada como a extensão doser, no entanto, vemos aqui nesta narrativa que a questãose amplia quando pensamos nessa “pequena aldeia”almejada (de que fala Mia Couto) que ultrapassa, naverdade, o espaço físico. A casa simboliza aqui uma ideiaampla que abriga uma comunidade inteira, na suaintimidade, ou até mesmo um país. A casa, pois, é lugar deabrigo, daí sua relação com a terra, com a nação.

A casa da tia Aurora não corresponde aos anseios dojovem casal, já que tal geração não se identifica com tal“casa”. O espaço que abriga a tia está vinculado a um

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espaço anterior ao dos jovens, a um tempo que passou:“uma casa tão grande, parece que já foi gêmea, duascozinhas e duas casas de banho devem ter sido duas casasque depois da independência o teu falecido tio mandoujuntar” (p.16).

Se a casa da tia representa um tempo passado em queparecia “gêmea”, portanto, ambígua - e aqui lemos essaexpressão, “gêmea”, pensando que o imóvel não pertenciasomente ao tio, mas também ao outro – do império português–, já que se trata de uma arquitetura de casa que remete aum tempo anterior à independência, o escritório dapetrolífera, por sua vez, também não corresponde ao lugarde identificação dos jovens, pois também esse lugar simbolizauma ordem castradora, a ordem capitalista, onde o teresmaga o ser.

Isso fica bastante explícito quando Marina não sereconhece no espelho da casa da tia:

Marina no espelho da casa de banhodo serviço. O espelho é grande. Elasempre se vê muito melhor nesse espe-lho do que no espelho do quarto da tiaAurora, rachado e envelhecido comfalhas que viraram manchasacinzentadas, a tia fala que o espelhoera de uma senhora portuguesa que lhedeu antes de ir quando começaram ostiros nas vésperas de independência eque lhe dera já assim rachado que umdia de chuva com trovoada a senhoranão tapou o espelho com um lençolou cobertor nem rezou a seguir SantaBárbara e um relâmpago raio faísca eum trovão e o espelho rachou sozinho.(p.17).

Em uma das acepções sobre o símbolo do espelho,lemos esta pergunta acompanhada de uma das possíveisrespostas no Dicionário de símbolos (CHEVALIER, 2000,p.393): “O que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade,o conteúdo do coração e da consciência”. O espelho refletea reciprocidade das consciências, revelando a identidade ea diferença, já que esta dá uma imagem invertida darealidade. Portanto, sua única função não é refletir uma

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imagem simplesmente, existe, pois, “uma configuração entresujeito contemplado e o espelho que o contempla” (p. 396).

Nesse sentido, vemos que Marina não se vê integradaao mundo “rachado e envelhecido” da tia, no entanto, elatambém não se encontra inserida totalmente no meiocontroverso que a abriga, uma vez que Marina não conseguese ver por completo no espelho da moderna “casa de banhoque é quase só para ela”, pois “nesse espelho, Marina vêmais de metade do corpo bem iluminado” (p.17).

A questão da identidade aqui encontra na metáforado espelho a ideia perfeita para a reflexão de um (sujeito)com relação ao outro, ou melhor, do “eu” e o “outro”.Lembremos também que o contrário da identidade é adiferença. Nesse sentido, a imagem incompleta de Marina,ora pelo rachamento e envelhecimento do espelho da tia,ora pela amputação refletida no espelho da petrolífera,remete não mais a uma imagem inteira e una, muito menosao reflexo de uma realidade, mas à difração, no sentido deque há o choque com o outro, produzindo fragmentos,conflitos e tensões.

Outro elemento bastante instigante na discussão sobreessa tensão que permeia o tecido textual e que é fruto doconflito em que a jovem Marina vive está relacionado coma presença da Kianda, ser maravilhoso do mundo quibundo,entidade mítica que percorre o imaginário de toda cidadede Luanda (MACÊDO, 2008), que ora, aqui, recebe adenominação europeizada de sereia. Em quase toda anarrativa, Marina convive com o conflito causado pelascrenças que, de certa maneira, estão permeadas por umtemor em agredir uma tradição respeitada pelos mais velhos,cobrada por sua tia Aurora, principalmente quando Marinatroca os anéis de fantasias, deixados pela sua mãe,“deitando-os” ao mar, pelo anel de “ouro” ofertado por Lauao selar o compromisso de namoro. Tensão que se resolveao final da narrativa, quando Marina perde este falso anelna areia que simbolicamente é interpretado pela sua tia comouma providência divina e que interpretamos aqui como gestoda aliança firmada entre os jovens, a família e a terra, poislogo após a perda do anel na areia, há um amadurecimentoda jovem Marina. Esta se descobre grávida e a notícia édada ao Lau na areia do mar, ou seja, na presença da Kianda

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e, em seguida, há a aproximação do casal com a tia que osrecebe de braços abertos em sua casa, num gesto deacolhimento aos jovens e ao fruto dessa união.

Assim, em todo percurso narrativo, Marina mostra-sedividida não somente em relação às questões culturais, masem relação àquilo que lhe é “dado” nas circunstânciasvividas.

“Bom é que não houvesse guerra e houvesse luz”“Bom é que não houvesse guerra e houvesse luz”“Bom é que não houvesse guerra e houvesse luz”“Bom é que não houvesse guerra e houvesse luz”“Bom é que não houvesse guerra e houvesse luz”

Essa frase comparece por várias vezes na narrativaaqui analisada e que, a nosso ver, merece nossa atenção,como motivo que julgamos fértil: mais como uma aberturapara outras discussões que para uma conclusão, levandoem consideração a densidade que o texto lido apresenta.

A reiteração dessa frase no corpo textual nos apontapara as várias possibilidades desejadas e possíveis, uma vezque a presença do tempo verbal no subjuntivo nos indicaalgo que poderia acontecer; esta frase, em que compareceduplamente a utilização do verbo “haver”, conjugado nosubjuntivo, remete ao desejo de um devir melhor.

Na abordagem feita até aqui, poderíamos concluirque em Um anel na areia (estórias de amor) apresenta-secomo um texto engajado na intenção primeira de denúnciaa um sistema devorador; no entanto, ao lançar mão derecursos e símbolos representativos de positividade, o autorsabiamente nos passa a mensagem de que, no meio docaos instaurado, sempre há lugar na crença de um novoamanhã.

Nesse sentido, reportemo-nos ao título que traz umsímbolo mítico – o anel -, já que este, simbolicamente, remeteà aliança firmada entre o céu e a terra, entre Deus e o homeme entre o homem e a mulher e nada melhor do que a presençado amor para firmar essa aliança. Daí que Manuel Rui trazpara o meio da desilusão, do cotidiano recheado deprivações e do medo, o elemento amor como chave paralutar e enfrentar esse meio. Diante disso, recordemo-nos daspalavras de outro poeta - o moçambicano Eduardo White -que, tal como o autor dessa novela, acredita no elementoamor como arma eficaz para driblar as injustiças trazidas

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pelos inúmeros fatores, inclusive pelo fator guerra nestemundo desigual:

E falo muito do amor. Porque eu soujovem, vivo num país em guerra, umaguerra muito difícil. Pode ter a dimen-são do que é estar à noite a dormir esaber que do outro lado se está a bom-bardear, se está a matar pessoas, e agente a ouvir? Num país em guerra,falar do amor parece uma coisa fútil,uma coisa banal. Não estou a ver por-que é que eu, num país em guerra, numpaís em dificuldades, não posso evo-car o amor. O amor é importante.(CHABAL, 1994, p.105).

Portanto, o elemento amor é a chave, neste textode Manuel Rui, para enfrentar as dificuldades. É esseelemento que justifica a felicidade e a força inabalável daunião dos jovens Lau e Marina. Mas essa união, conformejá afirmamos momento anterior, não se realiza somente entreo casal de jovens, enlaçada mais fortemente pela gravidezde Marina, agora não mais imaginada como vimos no inícioda novela, pois nada melhor que um fruto do amor, resultadoda união de dois jovens, para selar a esperança de temposmelhores. Observamos, então, que não se trata unicamenteda simbologia da união entre dois jovens, mas também,simbolicamente, firma-se uma aliança com a própria terra,representada não só miticamente pelo gesto da troca doanel de noivado, mas, sobretudo, firmada pela presençadeterminante do mar. É esse espaço aberto – o mar –, símbolo carregado desubjetividade, lugar dos nascimentos, das transformações edos renascimentos (CHEVALIER, 2000) que acompanha etestemunha os acontecimentos na vida do casal protagonistada novela de Manuel Rui e aponta, sugestivamente, parauma “projeção do devir na escrita do presente” (ABDALAJUNIOR, 2003, p.250).

O anel na areia é, portanto, uma imagem forte queao mostrar um pequeno objeto perdido num espaço onde équase impossível de ser encontrado, semanticamente nospermite ler esse gesto como a presença de um pequeno

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grão de utopia sob a pena de Manuel Rui. Esse pequenogrão nos mostra a crença na construção. Uma construçãocom elementos variados que, mesmo entre materiais deruínas e estilhaçamento, seja possível (re)erguer uma nova“casa”, um novo país.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

ABDALA JUNIOR, Benjamin. De vôos e ilhas: literatura ecomunitarismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In:______.Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. SãoPaulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas, v. 3).______. Paris do Segundo Império. In: ______. CharlesBaudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas, v. 3).BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In:______. O ser e o tempoda poesia. São Paulo: Cultrix, 1993. p.139-192.CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Lisboa: Veja, 1994.CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência coloniale territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário desímbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras,cores, números). 15.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.COUTO, Mia. “Moçambique – 30 anos de Independência;No passado, o futuro era melhor?” (16 de junho de 2005).HAMILTON, Russel G. Literatura africana literatura necessáriaI – Angola. Lisboa: Edições 70, 1975.MACÊDO, Tania. Angola e Brasil – estudos comparados. SãoPaulo: Arte & Ciência, 2002._____. Uma cidade e sua escrita: a representação literáriade Luanda. 2004. 214f. Tese (Doutorado em EstudosComparados de literaturas de Língua Portuguesa) - Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade deSão Paulo.MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. A sociedadeangolana através da literatura. São Paulo: Ática, 1978).PAZ, Octavio. Signos em rotação. 3.ed. São Paulo:Perspectiva, 2003.RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. Liboa: EdiçõesCotovia, 1991.

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_____. Eu e o outro – o invasor (ou em Três poucas linhasuma maneira de pensar o texto). In: MEDINA, Cremilda deAraújo. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987.p.75-79._____. Um anel na areia (estórias de amor). Luanda:Nzila, 2002.

Aceito: 03.06.2010

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Milena Magalhães¹

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Neste ensaio, duas pontas interligadas. De um lado,reflexões acerca dos sentidos do presente. De outro, a partirda leitura dos romances do escritor Milton Hatoum, sobretudode Cinzas do norte, analiso como ele responde às injunçõesdesses sentidos, construindo uma narrativa em que trata opresente como aquilo que é afetado pela memória dopassado.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: Milton Hatoum; Cinzas do norte; sentidosdo presente.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this essay, two linked ends: on one hand, thoughtsabout present significations. On the other hand, based onthe reading of Milton Hatoum’s novels, especially the lastone, Cinzas do Norte [North Ashes], I analyze how heresponds to the injunctions of these meanings in constructinga narrative in which he is dealing with the present assomething that is affected by the past memory.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: Milton Hatoum; Cinzas do Norte; presentsenses.

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Aqui tudo parece que é ainda constru-ção e já é ruína.(Caetano Veloso)

I.I.I.I.I.

Há diversas formas de tratar o presente. Os seussentidos são múltiplos e fugidios. Diante de uma constataçãoparecida, a narradora de Água viva, de Clarice Lispector,afirma: “Quero possuir os átomos do tempo: E querocapturar o presente que pela sua própria natureza me éinterdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, aatualidade sou eu sempre no já” (1998, p.9). Esse aspectomúltiplo e fugidio produz, tanto na literatura como na crítica,um impasse diante das aporias do nosso tempo: é possível“capturar o presente”? Ou muitas das suas nuanças nosescapam, intimidadas pelas categorizações que tendem afichar o “presente”, dando-lhe diagnósticos apocalípticos?

Se tanto o discurso crítico quanto o literário buscamespecificar, listar, caracterizar o que é definidor do tempoem que vivemos, cabe-nos pensar que tal responsabilidadenão se põe sem riscos. Em outras palavras, ainda é olhandoem direção ao passado, seja para efeito de comparação,seja para efeito de negação, que o presente é definido. Nãocusta lembrar que, para a narradora de Clarice, a atualidadeé um “eu sempre no já”. Seja o que for que inferimos desse“já”, estamos incluídos nele, reconhecemo-lo a partir deidiossincrasias, de identificações, de modo que, no meio detantas categorizações, convém tratar o presente como umamaneira difusa de apreender vários sentidos, e mesmodesmembrá-lo da atualidade1, como o faz sorrateiramentea narradora de Água viva.

Marcos Siscar (1999, p.49-50), insistindo nanecessidade de ver “o presente como uma questão ou, antes,como um foco de interesse”, afirma que este dificilmente étratado como uma “questão relevante por si mesma”. Asabordagens, segundo ele, privilegiam, antes, a determinaçãode “dominâncias, recorrências, pontos de ruptura”. Taisgestos, embora pareçam necessários à criação e à defesade certa concepção do presente, adiantariam ou retardariam

¹ Professora da Universidade Federal de Rondônia-RO. Doutora em Literatura. E-mail: [email protected] Para aprofundamento desta questão, cf. Derrida (1996) e Siscar (1999).

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as discussões de questões importantes para melhorcompreendê-lo, uma vez que, ainda segundo Siscar, “opresente raramente foi objeto de uma análise que levasseem conta um determinado transbordamento do sentido”.Ou, a meu ver, quando se leva em conta, vê-se essetransbordamento como uma exceção que não teria a funçãosenão de marcar ainda mais as definições dadas ao presente.Nesse sentido, vale perguntar o que escamoteamos sobreas múltiplas referências do presente para que algunsacontecimentos sejam inicialmente vistos como exceções num“cenário”. O que seria a exceção senão aquilo que, passandodespercebido dentro de uma lei geral, de repente ganhacorpo a ponto de ser notado, anotado, comentado?

O caso da literatura é um bom exemplo. Com o apoiodos estudos acerca do pós-modernismo, definindo-sebasicamente em relação ao modernismo, seja como ruptura,seja como reformulação ou mesmo como certa continuidadedescontínua2, supôs-se que a literatura, tendo sido anunciadaa morte das grandes narrativas, seria a partir de então umasucessão de textos em que traços como a intertextualidade,a autorreflexividade, a ironia intensificada na forma depastiche, a fragmentação, o hiper-realismo, o simulacroestariam inevitavelmente presentes, simulandoexaustivamente a fantasmagoria da presentidade. Por outrolado, o novo modelo ficcional também se concentraria emnarrativas com a preocupação de colocar em evidência as“margens”. Não haveria literatura se não fosse literaturanegra, literatura feminina, literatura GLS etc. Seriam essasliteraturas, sem filiação aos textos ditos clássicos, salvo pelasfiguras do simulacro e do pastiche, que predominariam aomesmo tempo como causa e consequência das aporias docontemporâneo. Estaríamos, pois, em um tempo que negariaas heranças. Seria esse o cenário.

O caso da literatura de Milton Hatoum é um bomcontraexemplo. A palavra do escritor desfaz e refaz essecenário apocalíptico, desmontando as palavras de ordem,pois não se enquadra em nenhuma das determinantes daficção contemporânea. Detendo-me, sobretudo, em Cinzasdo norte, apoio-me na hipótese de que os seus romances

2 Cf. Connor (1989). Para a abordagem em relação à literatura brasileira contem-porânea, confira o excelente trabalho de Villaça (1996).

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problematizam o presente, sem, no entanto, tratá-lo comomatéria dada, com significados previamente estipulados.

Relato de um certo oriente, seu primeiro livro, desdeo título, é uma narrativa nos moldes “modernos”. Com umaenorme carga de poeticidade, a linguagem mostra-se semos experimentalismos sugeridos pelas novas leis narrativas.O livro não remete, por exemplo, à linguagem esfaceladado cinema, mas, antes, à narrativa secular das Mil e umanoites. Os diversos narradores, alinhavados por umanarradora que envia relatos para o irmão distante,reconstituem um passado, e não, tal qual uma câmera,inventariam ações desordenadas do presente. Hatoum secoloca em uma posição ambígua: seu romance não derivado apelo das culturas de massa, tampouco da resistênciaorganizada a essa cultura. Embora ele faça de Manaus, acidade onde nasceu, um espaço geográfico e mítico, ostraços não são de uma literatura que extraia desse fato oseu qualificativo; por exemplo, literatura regional. O lugarperiférico, descentrado, sim, está lá, porém, a sensação dedesterritorialização, de distância do cenário econômico ecultural brasileiro, conhecida por qualquer um que nasce evive na Amazônia, é transposta para a paisagem humana.A estrangeiridade é sentida, tida, vivenciada no corpo decada personagem, marcando o compasso do enredo – dosquadros poéticos nos quais se relatam a história dessaestranha família habitante de um estranho lugar (estranhono sentido do que é de fora, do que é estrangeiro; cf. Aurélio).Manaus mais parece uma sorte de não-lugar onde podemcoabitar muitos lugares: o oriente, por exemplo. Dedescendência libanesa, tendo sido criado na Amazônia,Hatoum pode ser considerado um estrangeiro no estrangeiro.Duas vezes estrangeiro (um libanês em terras amazônidas;um amazonense em plagas brasileiras), ele faz disso matériade seu romance, mas sem conceituação. Em outras palavras,o lugar descentrado é ele mesmo, um caldeirão de culturas,embora desconhecido, pouco ou quase nada comentadonas paragens da literatura e da crítica contemporâneas.

Sem querer transpor o pensamento do escritor comopalavra última para seus romances, vale lembrar queHatoum, em diversas ocasiões, afirma desacreditar em umaliteratura que recrie ambientes de forma pitoresca, pois, para

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ele, essa ambientação deve estar vinculada “aos conflitos emodos de ser dos personagens” (Entrelivros, n. 10, 2006,p. 27). O espaço é, portanto, ancorado na vivência individualde cada personagem. Nem paródia, nem pastiche, nemautorreflexividade elevada ao quadrado, nem hiper-realismo.

Sem descartar certo desencanto, os seus livros abremum hiato no discurso do presente. A sua ligação com atradição literária brasileira advém não da geraçãoimediatamente anterior, reconhecida pelo experimentalismocom a linguagem e pela mistura dos gêneros, mas de umalinhagem de escritores fundadores. Sua herança advém deMachado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, alémde uma formação de leitura em que constam grandesescritores da literatura mundial (sobretudo francesa): MarcelProust, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, entre outros3.

De certo modo, o hiato ocorre tão-somente devidoà insistência em definir paradigmas que buscam explicitarum lugar de origem para a literatura brasileira. No iníciodos anos 1990, a ficção no Brasil, debatendo-se com asaporias do presente, registrou uma preocupação com o lugardo passado para a compreensão do presente; entretanto, omodo como Hatoum o faz é distinto. Não se pode falar demetaficção historiográfica nos moldes apontados por LindaHutcheon4. Não há reescrita da história por uma veia irônica.Como tema, as passagens da história se confundem com adas personagens e é nesse ponto que ganham relevância.

Ao expor as fissuras do presente, Hatoum o faz,sobretudo, pelo estilhaçamento da memória, materializadonuma narrativa construída de vaivens, curvas, retardamentosque levam ao encontro com o passado – sempre pela viasubjetiva – como maneira de compreender o presente; aomenos assim o é nos dois primeiros romances, havendo umasutil, mas significativa, mudança a partir de Cinzas do norte.Agarra a narrativa pela mão. Carrega na mão esquerda aorquídea rara, “de um vermelho excessivo, roxeado, quasevioláceo”; carrega-a entre os dedos com “o olhar de quemnão reconhece mais ninguém” (HATOUM, 1989, p.61).Assim, um de seus personagens caminha cego pelas ruas

3 Cf. sua coluna mensal na revista Entrelivros, intitulada norte, em que invariavel-mente ele comenta sobre seus livros de formação.4 Conferir Hutcheon (1991), sobretudo a segunda parte (p.141-162).

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para ser “tragado” pelas águas. Parece haver uma cargade inatualidade no seu gesto, mas finca-se na atualidade.Autor contemporâneo. E dos bons.

Também não significa que seu gesto seja inovadorapenas porque se volta para o passado, quando as setasestão apontadas para o “presente eterno”. De fato, ele geracerta hesitação – o intervalo de que falava – devido ao fatode seus livros serem marcados pela ausência de algumasdiretrizes que parecem definir o lugar da literatura nopresente, uma certa ideia desse lugar, sem que isso signifiqueo alheamento a essas questões. Ele reforça a ideia de que afunção da literatura, se ela tem uma, é criar redes que deemsentidos também ao passado histórico, sem que isso sejanecessariamente um ato de resistência ou de revisão dahistória. O caráter ficcional ainda é o principal atributo doslivros de Hatoum. É justamente nesse ponto que a sualiteratura deixa de ser exceção. Ou prova a sua não-exceção.Prova que a sua literatura é ela mesma um discurso que selibera constantemente dos discursos críticos que tentamenquadrá-la, expondo as descontinuidades inerentes às ditascorrentes literárias.

Um parêntese. Relato de um certo oriente, seu primeirolivro, é publicado em 1989. Apenas em 2000, Dois irmãos,o segundo romance, é lançado. Mais cinco anos para Cinzasdo norte ser publicado. É nesse intervalo de tempo, trêsromances lançados, além de alguns contos publicadosesparsamente, que esse autor ganha os mais diversos eprestigiados prêmios e passa a ser considerado um dos maisimportantes escritores brasileiros contemporâneos.

Não podemos esquecer que adquirir tal título não vemsem certo preço a pagar, como, por exemplo, a exigênciade atualizar a sua “novidade” a cada livro, a cadaempreitada editorial. Ele paga seu preço em Cinzas do norte,livro em que parece expressar certa preocupação com oposto que lhe foi dado, de modo que a responsabilidade doescritor mexe com suas estratégias discursivas. Dadas asdiferenças, seu gesto lembra o de Clarice Lispector, quandodo momento de realização de A hora da estrela, no qual aescritora busca responder a uma certa crítica que lhe exigiamaior atenção às questões do real, e ela assim o faz, sem,

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no entanto, ceder às simplificações dos limites dos discursosacerca desse real.

II.II.II.II.II.

Se fizermos um percurso imaginário nos romancesde Hatoum, chegamos a esse estranho liame – do relato àscinzas. Da literatura como relato à literatura como cinzashaveria um salto que metaforizaria o salto da tradição àmodernidade (ou da modernidade à pós-modernidade)?Nem um nem outro. A temática é a da desintegração,reiterada pelas tentativas de reconstrução da memóriaconcebida como traço. Da reconstrução do passado pormeio dos vários narradores de Relato até a construção denarradores que saem em busca do passado, colhendo-opor diversas vias (Dois irmãos e Cinzas do norte), forma-senão um painel, mas um mosaico de subjetividades.

Cinzas do norte é um romance composto por umaamarração tão discreta que pode passar despercebida aum leitor menos atento. São nas últimas páginas que onarrador em primeira pessoa – Lavo – dá a pista de que olivro que temos em mão é o que ele escreveu para contar ahistória de Raimundo – Mundo –, o protagonista. Nesserelato, ele insere as cartas que Mundo lhe envia quandoparte para terras estrangeiras. Insere também a narrativa –em forma epistolar – do seu tio Ranulfo, que conta paraMundo a história de amor que une a mãe de Mundo a ele,Ranulfo. São nesses três planos, nos quais ainda estãopresentes outras personagens (Jano, Arana, o cachorro Fogo,Ramira etc.), que eles coexistem, formando uma espécie dequadrilha drummondiana. Não faltam as divisões – sociais(o núcleo pobre e o núcleo rico); políticas (o livro cobre operíodo ditatorial até aos nossos dias); artísticas (duasconcepções de arte se confrontam: a de Mundo e a de Arana,das quais falaremos depois).

O leitor de Cinzas do norte, já tendo lido Hatoum,há de se perguntar o porquê de tanta desesperança. Diriaque este é o livro que cumpre melhor as “exigências” do seutempo. A prova está na acentuação do tom “político”. Oescritor paga seu preço. E o paga mediante a intensificaçãodo desencanto do presente. No tom político, recusa-se toda

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forma de solução, como se a inadequação ao presente,muito forte no narrador Lavo, se estendesse – como umarede esfarrapada – a toda narrativa, como se no presentenão houvesse redenção para qualquer acontecimento dopassado – seja histórico, seja individual, não se esquecendode que a intenção é que toda História seja história dossujeitos.

A história atravessa os esquecimentos da épocaditatorial até aos nossos dias, pincelando as suasconsequências – talvez ainda mais terríveis, uma vez queocorrem em um lugar “descentrado”, como o é Manaus. Astragédias – as advindas do período ditatorial que,paradoxalmente, trouxe o desenvolvimento tecnológico –tocam diversas vidas humanas, mas quase não deixamrastros, sendo esquecidas mesmo por aqueles que hoje vivemo presente da cidade. Sem a mesma intenção de realismo,mas com o mesmo desencanto, lembra por instantes os filmesdo cineasta chinês Jia Zhang Ke, que representa o impactodo desenvolvimento tecnológico chinês por meio depersonagens que são protagonistas de pequenas tragédiascotidianas trazidas por esse “desenvolvimento”. Personagensterrivelmente tristes, como que observadores de umacontecimento que eles não sabem se nomeiam comotragédia ou como milagre.

O presente agônico do “sobrevivente” – o narradorLavo – deve-se aos acontecimentos do passado, não lherestando senão testemunhar a história daqueles que a vidaterminou “antes do fim”. A busca pelas respostas que todopresente necessita para que o testemunho não seja esvaziadode sentido se realiza apenas no livro que Lavo acaba porescrever (o que estamos lendo) para contar a história deMundo – e de toda uma geração que morre com ele. Nãohá reconciliação alguma com o passado, mas, da parte deLavo, o passado é o lugar de onde não consegue sair.

Dentro dessa problemática, por que o livro é escrito?Quem é este narrador que busca recompor não sua história,como era o narrador de Dois irmãos, mas a história de umoutro, de um amigo? Assim ele o nomeia diversas vezes. Elesó encontra seu rosto no rosto do outro – na alteridadeabsoluta da amizade. E mais ainda: de um amigo quesobrevive à morte de outro. O filósofo francês Jacques

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Derrida (2003, p. 139), em contextos diferentes, afirma quea lei da amizade é justamente a de que um amigo vai sempreantes do outro. E a cada vez que um morre o mundo ésuspenso de maneira única e somos privados não apenasdo amigo, mas do mundo inteiro, sobretudo do nosso mundoque estava aberto para o amigo. Para ele, essa seria umadas razões pelas quais se testemunha o amigo antes mesmoda sua morte, como uma forma de luto antecipado.

Lavo se inscreve sobre as cinzas de um tempo –histórico e pessoal. Mundo era o “centro” e Lavo se põe naposição de testemunha. Ele é o sobrevivente – e narra comotal. Também as cartas do tio Ranulfo que compõem anarrativa são cartas de um sobrevivente. Depois que recebea visita do tio, que lhe anuncia a morte do amigo, Lavopondera: “Talvez fossem acusações de um homem enlutadoe desesperado, que perdera a grande aposta de sua vidabem antes do fim” (p.268). As palavras de acusação que otio lhe endereça são as que exigem as leis da amizade: “Nãopude detê-lo por muito tempo; logo jogou na minha cara:por que eu não viajara para o Rio? Por que tanta omissão,tanto descaso, nessa amizade?” “Tu e teu egoísmo, teusprocessos” berrou, socando a papelada sobre a mesa. “Omais necessitado era seu amigo [...]” (p.268).

O que o tio vê como descaso realça, na construçãonarrativa, a posição de Lavo como testemunha. Ele é o queobserva e isso lhe permite dar o seu testemunho porintermédio da escrita5 – reunir os farrapos de memória comoforma de vivenciar o luto. Para Lavo, portanto, o tempo nãoé o do “presente”, mas o de “ter estado presente” nosacontecimentos, narrando a partir de uma experiênciacorporal e insubstituível. Assim ele aparece em diversaspassagens do livro:

Alícia notou que eu perscrutava pertoda copa e me fez sinal para que euentrasse: eu disse que voltaria mais tar-de para falar com Mundo. (p.117).

Eu não queria estar ali, participando deuma conversa familiar, íntima. (p.119).

5 Valho-me aqui da palavra testemunha, sem, no entanto, relacionar os romancesde Hatoum à literatura de testemunho. Para perceber a diferença, conferir, entreoutros, o livro de Seligmann-Silva (2005), sobretudo os artigos da parte II (p.63-120).

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Minha tia foi para o quarto, mas deixoua porta aberta. Alícia virou a cabeça,notou que eu escutava a conversa e riu:“Teu sobrinho tem ouvidos de cachorro,não perde uma palavra”. (p.100).

Subi num banco para assistir à dança(p.76).

À parte as diferenças, a amizade se faz por esseolhar atento, de tudo apreender, em busca de umacompreensão que se afigura esquiva, incompleta, porquesempre ainda a compreender. O lugar do amigo, esse “lugarinsuportável” (DERRIDA, 2003, p. 210), guarda sempre umsegredo, que vem da alteridade do outro, do que permaneceinacessível mesmo a um amigo: “De nada adiantaria dizera ele [Ranulfo] que Mundo sempre fora arredio, ainda quetivesse me contado episódios da infância” (p.269).

É justamente essa esquiva que nos ajuda acompreender a forma como Hatoum insere o tempo históricona sua narrativa, remetendo-o à singularidade de umtestemunho que não tem força de prova. Colhendo a suahistória tanto da sua posição de testemunha quanto da deamigo (aquele que ouve, interpreta, compreende o amigo),o narrador de Cinzas do norte é alheio às leis dahistoriografia, assim como o escritor Hatoum é alheio àsleis da metaficção historiográfica; tentativa de escapar dostraços de uma literatura por vezes considerada mais políticado que literária. Um risco. Hatoum se arrisca.

O próprio título já o anuncia. O que seriam as cinzasde Cinzas do norte? É Lavo quem as avista. É o própriopassado, e como cinza. É a ameaça que paira na História,na história de Cinzas como cinza. Sendo assim, mais que ahistória de Mundo, é a de Lavo, que se anuncia no título(No Aurélio eletrônico: Cinzas – derivação: por metáfora: otempo consumado; as horas passadas; aquilo que evocatristeza, desolação; sentimento de lembrança, daquilo quepassou); é ele quem testemunha o fim de toda uma época,de maneira desiludida e de certo modo distanciada. De certomodo porque não podemos esquecer que o sentimento deluto, de perda do amigo, é o que gera o texto.

Para Derrida (2005, p.14-15), “cinza é também onome do que aniquila ou ameaça destruir até a possibilidade

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de testemunhar o próprio desaparecimento. É a figura dodesaparecimento sem resto, sem memória, sem arquivolegível ou decifrável”6. O romance de Hatoum evoca essesdois sentidos de cinzas, apontando a posição ambígua eincômoda daqueles que vivenciaram o passado e agora sãotestemunhas do que está em vias de desaparecimento. Emduas passagens exemplares do romance, citadas maisadiante, em que as cinzas, sem serem nomeadas, são a figurade um tempo sem memória, vemos como o testemunho – aforça do “estive lá” – está sempre sob a ameaça doesquecimento e, ao mesmo tempo, é o que proporciona onão-esquecimento. Hatoum já havia evocado essa formade apagamento da história em Dois irmãos. Em Cinzas donorte, a personagem Mundo, ao conceber uma arte dosdestroços, destinada a virar cinzas, acredita que pode intervirna memória do seu tempo. Uma arte de intervenção. O tipode arte feita por ele traz na gênese a sua própria destruição,seja pelas leis da ordem pública (“Teu filho é atrevido: fezdo bairro um cemitério. Bela obra. Mas vamos destruir todaessa porcaria em pouco tempo”, p. 183), seja pelas leis dafiliação (“O fogo devorou a roupa, alguns livros de Arana etodos os livros e desenhos de Mundo. A obra do meu amigo,no Novo Eldorado, também terminara em cinzas”, p.177). Éo risco da arte de intervenção e da arte do presente. Osgestos de Mundo lembram os de artistas como Siron Franco,que criou a série “Césio”, denunciando as consequênciaspara a população pobre do acidente radioativo ocorridoem Goiânia, além de outras intervenções que podem serconsideradas “políticas”, “sociais”. Fatos esquecidos dahistória recente do Brasil e de como esses fatos afetaram avida das pessoas são contados, mas sem fazer crer que aarte é bem sucedida quando desempenha o papel detestemunha.

Talvez o ponto incômodo do romance, no sentido deque a estratégia discursiva parece estar exageradamenterevestida de um tom político, advenha da insistência dedenúncia do tipo de arte feita pela personagem Arana, queabusa dos motivos amazônicos para atrair compradorespara suas obras. O equilíbrio conseguido pelo livro no

6 Tradução minha: «La cendre, c’est aussi le nom de ce qui annihile ou menace dedétruire jusqu’à la possibilite de témoigner de l’anéatissement même. C’est la figurede l’anéantissement sans reste, sans mémoire, sans archive lisible ou déchiffrable».

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aspecto metalinguístico é ameaçado por essa insistência.Porém, com a revelação final, esse jogo ganha um aspectoferoz, pois, enquanto a arte de Mundo desaparece, a deArana é cada vez mais celebrada, à medida que se tornacada vez mais comercial. As questões da filiação e daherança são, portanto, investidas de um sentido em que aascensão de um é o espelho da derrota do outro, como senão existisse lugar para os dois em um mesmo mundo.

Em um dos momentos mais felizes da tensão com ahistória que acaba por se imprimir no livro de Hatoum, Lavoé a testemunha, aquele que pisa no solo do Novo Eldorado(o bairro construído para “depositar” os moradoresribeirinhos e também local escolhido por Mundo para arealização de sua obra) por duas vezes, ambastestemunhando os restos de memória que permanecemapenas graças à sua condição de ter estado presente, ali,onde o passado é queimado, destroçado, aniquilado, nãosendo mais que ruínas. As citações são longas, porém, dãoconta de mostrar o modo terrível como os gestos de violênciasão apagados:

No dia seguinte bem cedo fui ao NovoEldorado. O campo de cruzes haviasido destruído pela polícia na tarde doferiado. A visão de ruínas acentuava atristeza do lugar. Cruzes de madeiracrestadas cobriam um descampado; otronco da seringueira fora abatido, asraízes arrancadas; galhos secos espe-tados em trapos queimados pareciamcarcaças carbonizadas. Nas ruas deterra, mulheres juntavam pedaços decruzes para acender um fogareiro. Porvolta das oito, os empregados da pre-feitura jogaram os destroços nacarroceria de um caminhão, deixandoapenas a árvore derrubada. (p.177-178, grifos meus).

Acompanhei-o até o Novo Eldorado,onde morava numa casinha doada porJano. O bairro se multiplicara, era umacidade no subúrbio de Manaus. As ruastinham sido asfaltadas, e uma fina ca-mada de cimento repleta de buracos

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semelhava uma calçada: não haviavestígio do Campo de cruzes [a obrade Mundo], e o descampado se torna-ra um capinzal com uma árvore no cen-tro. No tronco, uma placa enferrujadacom letras verdes: “Praça CoronelAquiles Zanda” [o responsável pelaconstrução do bairro] (p. 272).

A árvore derrubada, onde Mundo tinha colocadoparte da sua obra, será, páginas adiante, outra no centrodo descampado que se tornara um capinzal. É a tragédiado esquecimento operada pelo tempo, mas também pelasações políticas que transformam violências em homenagens.No tronco da árvore, o que resiste é o nome do idealizadordo bairro, como se houvesse no seu ato razão parahomenagem. O passado é, portanto, celebrado como senão fosse uma mancha que envergonha ou deveriaenvergonhar. Não são os nomes dos artistas que estão nesseslugares; do ato de resistência não há um único vestígio. Porque a necessidade de não esquecer? Por que aimpossibilidade de esquecer? Parece ser esta uma dasperguntas do livro. Em entrevista, Hatoum afirma: “Para mim,a arte não é exatamente a vida, mas também não éexatamente a sua negação: isto é, ficamos num limbo”7. Eleo afirma para explicar a impossibilidade de separar a ficçãoda história. Desde o princípio, essas duas linhas seentrelaçam. Isso faz, por exemplo, com que Relato de umcerto oriente tenha um tom memorialístico acentuado, sendopor vezes confundido com relato autobiográfico, e em Cinzasdo norte essa mistura das memórias da família é alinhavadacom a história do passado recente do Brasil.

Uma outra ponta. As cinzas do título também podemfazer alusão às cicatrizes, sobretudo, as de Mundo. Seu corpoé mutilado pela doença que adquire misteriosamente noColégio Militar para onde foi forçado a ir por seu pai Jano.Seu corpo é um fardo e ele o expõe como gesto de revolta:seu corpo, “ali, nu, na boca do túnel, para festejar o ocasodo regime militar” (p.263) sofre os horrores da punição doseu gesto nas celas da delegacia, deixando-o ainda maisfragilizado. Um estrangeiro – como todos os índios na

7 Entrevista no endereço: <http://www.hottopos.com/collat6/milton1.htm>. Aces-so em: 15.jul.2007.

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civilização – nu na entrada do túnel, espancado e violentadona sua “pátria”; “estrangeiro a si mesmo e a seu país”.

As cicatrizes, as feridas, as escoriações do corpo estãoem quase todas as personagens: em Mundo; em Alícia, suamãe; em Jano, seu pai, e em Ranulfo. As cicatrizes viramlinguagem: Ranulfo escreve como que endereçado a Mundo;Alícia se confessa a Mundo e depois a Lavo. As escoriaçõessão a matéria da arte de Mundo. Assim como a do romance.A mãe se fere quando destrói parte da obra de Mundo –justamente a maior “expressão” das feridas: a série dequadros que faz quando está em Londres, para onde vaidepois da morte do suposto pai (que também tinha um corpodebilitado). Livre da figura física daquele que acredita serseu pai, ele parte para o mundo, é o anti-herói da atualidade,expatriando-se em busca de uma identidade perdida, indode um canto a outro, sem rumos nem raízes. É o que elelamenta na carta que deixa como testamento para Lavo: “Aerrância não era o meu destino, mas a volta ao lugar deorigem era impossível” (p.308). A série de sete quadros é aferida aberta na qual ele marca a impossibilidade de retornoà origem; em termos psicanalíticos, seria a forma deabandonar-se ao trauma, na tentativa de livrar-se dele; étambém o modo de resistir, de marcar seu lugar no mundo,de onde se sente expatriado. A sua assinatura passa, então,pela história e pela memória da história, como podemosver no nome que dá a sua série de quadros:

As duas últimas telas, de fundo escu-ro, eram antes objetos: numa, prega-dos no suporte de madeira, os farra-pos da roupa usada pelo homem noprimeiro quadro, que havia sido ras-gada, cortada e picotada; na última,o par de sapatos pretos cravados compregos que ocupavam toda a tela, ossapatos lado a lado mas voltados paradireções opostas, e uma frase escrita àmão num papel branco fixado no can-to inferior esquerdo: História de umadecomposição – Memórias de um filhoquerido. (p.293).

No livro, a arte descrita é aquela que imprime atragédia da existência, não como uma abstração coletiva,e sim como aquilo vivido pelo homem, pelo vivente, no corpo

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do vivente. Tal descrição lembra muito alguns quadros eobjetos de arte contemporânea que carregam a mesmaexpiação. Na expurgação ao pai, vêm-me a mente os objetosde Louise Bourgeois e de Niki de Saint-Phale. E na descriçãodas telas, impossível não pensar nos seres deformados deFrancis Bacon. Hatoum nos lembra da subjetividadenecessária a qualquer descrição do real. A apropriação davida não poderia ser por uma via realista, mostrando-se maispor meio da desaparição, do apagamento. Por isso, oprimeiro quadro é referencial, mas de quadro a quadro, narepetição, o destino da pintura é fazer desaparecer qualquerreferencial, como um rastro que se apaga:

Na primeira pintura uma figura mas-culina aparece de corpo inteiro, osolhos cinzentos no rosto severo, aindajovem, terno escuro e gravata da cordos olhos, as mãos segurando um fi-lhote de cachorro, e, ao fundo, o casa-rão da Vila Amazônia, com índios, ca-boclos e japoneses trabalhando na bei-ra do rio. Mundo, no meio dos traba-lhadores, olha para eles e desenha. Nasquatro telas seguintes as figuras e aspaisagens vão se modificando, o ho-mem e o animal se deformando, enve-lhecendo, adquirindo traços estranhose formas grotescas, até a pintura desa-parecer. (p.292).

Como no romance, os quadros representam atragédia do apagamento. Os sujeitos da narrativa – o pai, ocachorro, índios-caboclos-japoneses do casarão da VilaAmazônia, o próprio Mundo – viram estado amorfo,indefinido, “grotesco”. Os sujeitos reais são filtrados pelossujeitos pintados, confundindo-se de forma abstrata, comoque trapaceados pela memória. Por isso, se os outrosquadros, esboços, gravuras realizados por Mundo sobrevivemà morte, à sua morte, e viram a herança da mãe, por meioda qual ela sobrevive nos seus derradeiros anos, essa sérienão poderia “sobreviver”, não poderia ser deixada comoherança (mesmo que tenha sido endereçada a Lavo), ou sópoderia sobreviver em forma de ruínas, dilacerando maisuma vez um corpo, e não qualquer corpo. O corpo materno:

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Morreu seca e sozinha, que nem o fi-lho. Na última bebedeira, chorava dedar pena. Foi pro quarto de Mundo, setrancou lá [...] Ela tinha destruído to-dos os quadros... rasgou as telas, que-brou tudo com tanta força, tanto ódio,que só ficou um monte de lixo no chão,uns pregos tortos, pedaços de roupa[...] Ela estava deitada no meio dessascoisas, toda cortada, tinha vomitadomuito. (p.300).

Em cada uma das citações do romance, o passadovai sendo apagado, virando destroços, cinzas (a instalaçãode Mundo queimada pelas autoridades, os seus livros dearte queimados por Jano, os seus quadros quebrados pelamãe, até que o próprio artista também morre), de modoque sobram tão-somente rastros ao narrador. A série édestruída porque senão poderia ser uma concessão aopresente, pois, assim, existiriam materiais concretos parajustificar os atos do passado. Nada resta a não ser a palavrade Lavo. Restam as larvas. Mundo alude na sua carta-testamento o “fim de uma história antes do fim” (p.305). “Avida pelo avesso, Lavo”, confessa ele, antes de afirmar oque a sua série tinha provocado: “Agora sei que meu trabalhofoi um demônio que moeu sua consciência [a da mãe],roendo-a e queimando-a por dentro” (p.308).

Todo esse quadro de destruição porque as telas,assim como o livro de Hatoum, tratam também da filiação.As telas não tratavam apenas do assunto aparente, que eraa desfiguração do pai. Nessa desfiguração, estava tambéma da mãe, detentora a vida inteira de uma mentirarelacionada à filiação. Alícia, diferentemente das figuras demãe dos outros dois romances, hesita no seu papel; é frágile fútil, é forte e fraca. Como as outras personagens, elanunca provoca simpatia ou identificação suficientes.

A questão da filiação acompanha a da herança – oherdeiro não a reconhece, não a quer para si. A herança écomo o sangue que respinga do seu pescoço quando daviolência do pai suposto. Isto é, um sangue que jorra parafora, expulso do corpo pela violência. O sonho de Jano deter um herdeiro que dê prosseguimento à ordem capitalista

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por meio da qual constrói seu império (que também viranada) é abortado pela veia artística de Mundo. O que se vêé o embate entre dois mundos. Um que, grosso modo,representa a ordem do capital, e outro que resiste a essaordem por intermédio da arte. Tanto um como o outro sãocegos em relação ao outro. A herança vem por outras vias,a da nomeação. Quem lhe dá nome é Ranulfo, o amanteda mãe, que, ao fazê-lo, o institui seu herdeiro. É o queMundo afirma nas cartas – que foi Ranulfo quem lheencaminhou para a arte, mais do que Arana (de quem deveriaherdar). O sangue não é suficiente para estabelecer umafiliação, mas a nomeação o é.

Daí o porquê de Raimundo – Mundo – não poderser solução, como no verso drummondiano. Nem Lavo, queestá preso ao passado, a ponto de sua vida ser silenciada.Ele não tem uma existência, que não é contada, narrável.Não há vitória da arte das cinzas, justamente o contrário: amorte vence, conduzindo a narrativa desde o princípio.Quase todos estão mortos antes do início. Ruínas antes deser construção, como no verso de Caetano. O sobrevivente,o amigo, é quem tem o dom do envio – sem ele não haveriahistória. O epílogo, a palavra final, é a carta de um morto.O nome próprio sobrevive à morte. O envio, retardado pelasmãos maternas, é, portanto, o símbolo de uma narrativa decinzas – toda ela feita de.

III.III.III.III.III.

Nenhuma literatura é configuração de outra. Barthesjá dizia que à literatura cumpre fazer perguntas. Se há linhas,tendências, pressões, posições cabe a cada escritor buscaro intervalo – algum espaço onde possa fazer sua parte. Aobra de Milton Hatoum, na pressão das exigências, faz-nosreconhecer que o apelo do presente se firma nas aporias.Como uma obra reafirma questões exigidas pelo presente econcomitantemente restabelece o próprio sentido dessetempo? Na impossibilidade de resposta satisfatória, ensaia-se essa impossibilidade. O hiato é muito mais esclarecedordo que a continuidade. Passando rapidamente a vista nasvertentes da literatura brasileira contemporânea, em suaextensa lista de escritores – Rubem Fonseca, João Gilberto

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Noll, Bernardo Carvalho, Chico Buarque, Marcelo Mirisola,Cristovão Tezza, entre tantos outros –, é mais fácil encontrardescontinuidades do que continuidades, diferenças quesimilaridades. A exemplo de Milton Hatoum, os seus livroscarregam a potência de escapar ao que lhes serve demedida. Cada um desses escritores não constitui umexemplar que aponta para as recorrências do presente, masuma maneira singular, a de cada um, de responder àsinjunções do presente. E esse fato diz ainda o quê? Sobretudoque a responsabilidade do escritor é responder às injunçõesà sua maneira.

Uma última observação. As cartas que Mundoenviava a Lavo não respondiam às perguntas. Por fim, eramapenas esboços. E, mais depois, o vazio: “Mais estranha foia série de envelopes que Mundo me enviou em seguida,todos postados na mesma data: em cada um deles, umafolha branca, na frente e no verso [...] Foram as últimas‘mensagens’ dele.” (p.257), narra Lavo.

Antes do epílogo do morto, as derradeiras palavrasdo vivo são o vazio da narração. Parte daquela interdiçãoprópria do presente de que fala a narradora de Água viva.Esse vazio, metaforizado pelas folhas em branco, faz pensarno famoso texto de Maurice Blanchot, em que ele diz:“Acontece de escutarmos serem feitas estranhas questões,esta, por exemplo: “Quais são as tendências da literaturaatual?”. Ou ainda: “Para onde vai a literatura?” (1959,p.265). Sim, questão surpreendente, mas, o maissurpreendente, é que se existe uma resposta, ela é fácil: aliteratura vai em direção a ela mesma, em direção à suaessência, que é o desaparecimento”8. Os romances deHatoum simulam esse desaparecimento de ponta a ponta.É sua questão para o presente. Insistir em especificá-lo comdefinições que buscam uma unidade é, no mínimo, ser cegoàs diferenças.

Referências BibliográficasReferências BibliográficasReferências BibliográficasReferências BibliográficasReferências Bibliográficas

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Aceito em: 03.06.2010

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Rosana Nunes Alencar1

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: Em pouco mais de 40 anos dedicados à escritaliterária, Sebastião Uchoa Leite, uma das vozescontemporâneas da poesia brasileira, singulariza-se porconstruir sua poética a partir de um olhar que espreita omundo pelas frestas, pelos vãos, pelas sombras. O estiloprosaico, a escrita enxuta, a fratura inusitada dos versos edas palavras aproximam sua escritura de Drummond, deJoão Cabral, dos concretistas, revelando que esse poetapernambucano apropriou-se e deixou-se contaminar porvozes consagradas da poesia brasileira (e da francesa, aexemplo de Paul Valéry), e por linguagens como a do cinema,da pintura e dos quadrinhos, de modo a desdobrar-se emmúltiplos exercícios de invenção. Portanto, é objetivo desteartigo investigar a impureza da escritura e seusdesdobramentos na poética de Sebastião Uchoa Leite.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: Sebastião Uchoa Leite; impurezas;desdobramentos.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: In little more than 40 years devoted to literary writing,Sebastião Uchoa Leite, one of the contemporary voices ofthe Brazilian poetry, stands out for constructing his poeticfrom a look that stalks the world through the cracks, the vainand the shadows. The prosaic style, the clear writing, theunusual fracture of the verses and words have approachedhis writing to Drummond, João Cabral and to the Concretism,revealing that this poet from Pernambuco has appropriatedand has been involved by renowned voices of Brazilian poetry(as well as the French poetry, for example Paul Valéry), and

1 Professora do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da UniversidadeFederal de Rondônia. Mestre em Letras. E-mail: [email protected]

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for languages like the cinema, painting and comics, in orderto result in multiple exercises invention. Therefore, the aim ofthis paper is to investigate the impurity of the writing and itsconsequences in Sebastião Uchoa Leite’s poetics.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: Sebastião Uchoa Leite; impurities;developments.

Esboço de uma poéticaEsboço de uma poéticaEsboço de uma poéticaEsboço de uma poéticaEsboço de uma poética

Raro entre os raros. Assim, João Alexandre Barbosarefere-se a Sebastião Uchoa Leite em um texto dedicado àsua produção poética. Neste estudo, o crítico analisa asquatro décadas de produção do poeta pernambucano soba perspectiva de uma “transformação substancial” tanto dosujeito lírico como do fazer poético. Transformação e nãomudança, até porque, seguindo a linha de um traçadocronológico dessa obra, “tem mais a ver com uma espéciede potencialização de traços que já estavam presentes nostrês primeiros livros do que num abandono ou substituiçãopor outros trazidos pelos três últimos” (BARBOSA, 2002, p.12). É, portanto, uma poética que já anunciava algunsprocedimentos que seriam, ao longo de sua trajetória, oraafinados, ora reiterados, ora deslocados.

A obra poética de Sebastião Uchoa Leite compõe-se de dez títulos publicados, além da coletânea Obra emdobras (1988), que engloba os seis primeiros livros (Dezsonetos sem matéria/1960, Dez exercícios numa mesa sobreo tempo e sobre o espaço/1962, Signos/Gnosis e Outros/1970, Antilogia/1979, Isso não é aquilo/1982 e Cortes/Toques/1988). Além da produção poética, o espírito agitadoe dinâmico de Uchoa Leite fez com que exercesse outrasfunções no universo literário, por isso, transitou pela crítica(publicou três ensaios) e pela tradução.

Herdeiro de um legado literário, a tradição damodernidade (especialmente a francesa) e o modernismobrasileiro, que parece ter esgotado todas as possibilidadesde instaurar o novo na poética brasileira pós anos de 1960,Uchoa Leite surge com uma escritura que desestabiliza essatradição não pelo viés da ruptura, nem da simples afirmação,mas pela reescrita que desloca procedimentos e reflexões

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sob a perspectiva de um olhar contemporâneo que espreita,portanto, observa atentamente a partir de um entre-lugar.Consciente da presença da linguagem do outro em sua obra– compreendendo esse outro como escritores, pintores,músicos, cineastas, fotógrafos etc. – o poeta não padeciada “angústia da influência”, lembrando Harold Bloom(1991), que levou alguns poetas, esse é o caso de ThomasMann, a querer fazer exatamente o contrário do outro, comose essa postura por si só já não revelasse uma sutilmanifestação da influência. Nesse sentido, essa consciênciada transitividade poética, ou seja, criar no entre-discurso deoutras vozes, aparece encenada nos poemas, nos ensaios enos depoimentos que Uchoa Leite concedeu por meio deentrevistas. Um desses exemplos pode ser visto na avaliaçãoque faz acerca da “importância que Valéry, como crítico epoeta, exerceu em sua formação intelectual” (SILVA, 2005,p.284). Sebastião Uchoa Leite diz: “Ainda me babo ao ler,por exemplo, ‘Ébauche d’un serpent’” (LEITE apud SILVA,2005, p.284).

Poeticamente, “Ébauche d’un serpent” (Esboço deuma serpente), de Paul Valéry, é deslocado por Uchoa Leiteda tradição moderna para ser reescrito sob a égide dacontenção e da autorreferencialidade do signo. Trata-se dopoema “Outro esboço”, presente na obra Cortes/toques:

A serpente semântica disse:não adianta querersignificar-meneste silvo.Meu único modo de ser é a insinuosidade e a insinuação.Não é possível pensara verdadeexceto como veneno.

(LEITE, 1988, p.20)

Um dos aspectos revitalizados em “Outro esboço”,já anunciado no poema de Paul Valéry, é a dissimulação/sinuosidade da serpente que metaforiza a linguagem poética.Ambos os poemas recuperam o mito bíblico do paraísoperdido pela astúcia do diabo travestido de serpente. Assimcomeça o poema do poeta francês:

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Entre a árvore, a brisa acalentaa víbora que hei de vestir;um sorriso, que o dente espetae de apetites vem luzir,sobre o jardim se arrisca e vaga,e o meu triângulo de esmeraldaatrai a língua do réptil...Besta sou, porém besta arguta,Cujo veneno, embora vil,Deixa longe a sábia cicuta! [...]

(VALÉRY)2

Perpassam os dois poemas o tom sarcástico, a ironiarefinada, a aliteração em /s/ que mimetiza a locomoçãodeslizante da serpente. Metalinguisticamente, os poemasproblematizam a condição da linguagem por meio dametáfora da serpente, uma vez que ambas se insinuamcapciosamante para envolver a “presa”. No entanto, se tudofosse identidade entre os poemas de Valéry e Uchoa Leite,sobressaindo-se apenas as marcas da intertextualidade, ese esse procedimento se repetisse com os diversos artistascom quem o poeta pernambucano dialoga (Corbière,Mallarmé, Baudelaire, Bandeira, Drummond, João Cabral,alguns concretistas e poetas marginais), a sua obra seriadestituída de particularidade. Como essa é uma poética queestá longe de circunscrever-se pelas vias da repetição, oque se dá é a tomada de consciência quanto à crise dalinguagem e ao desgaste das formas e procedimentos pelosquais passava a arte literária pós anos de 1960.

Assim, ao se alimentar da tradição (e esse é umprocedimento recorrente na poética em estudo), Uchoa Leiteestabelece uma diluição das fronteiras, demarcando oespaço da arte contemporânea a partir da convergência deuma pluralidade de vozes que vai da tradição damodernidade à cultura de massa, do cinema à fotografia,do jornal aos quadrinhos. Isso posto, podemos dizer queUchoa Leite, à semelhança de Goethe, admite ser modeladopela presença do outro sem se incomodar em colher as floresencontradas pelo caminho. É possível transformar “asriquezas dos outros em nossas próprias riquezas”, diz HaroldBloom (1991, p.87).

2 Disponível em: <http://www.arquivos.com/valery2.htm>. Acesso em:14.ago.2009.

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Nessa perspectiva, pensando na singularidade daescrita de Uchoa Leite, retomemos o poema “Outro esboço”.Como já ressaltado, um dos aspectos que particulariza essepoema é a contenção que Paulo Cesar Andrade da Silva,em sua tese de doutorado intitulada O poeta-espião: aconfiguração do sujeito em Sebastião Uchoa Leite, chamade “estilo minimalista” (2005, p.74). A economia é visíveltanto na materialidade do poema como nas escolhaslinguísticas. Estruturado em apenas uma estrofe, formadapor dez versos, significativamente curtos – enquanto o poemade Paul Valèry apresenta 31 estrofes com dez versos em cadaestrofe –, “Outro esboço”, por meio de uma linguagemtelegráfica (como diriam os modernistas), porque rápida e,ao mesmo tempo, sinuosa, porque envolvida pelos trejeitosdo eu lírico, a serpente, metaforiza a arte da sedução. Aanunciação solene do monólogo da serpente (“A serpentesemântica disse:”), aliada à predominância do discurso diretoque se manifesta em forma de sussurro, configurado nareiteração do som sibilante (“significar-me”, “neste silvo”,“ser”, “sinuosidade”, “sinuação”, “possível”, pensar”,“exceto”), bem como o jogo entre negação (“não adiantaquerer/significar-me”), afirmação (“meu único modo de seré a in/sinuosidade e a in”) e negação (“Não é possívelpensar/a verdade”) são peças de uma cena marcada pelaprovocação dissimulada.

Compõe ainda esse cenário a fratura da palavra,que institui a fratura do verso:

Meu único modo de ser é a insinuosidade e a insinuação.

Semanticamente, esse procedimento de corte, levadoa um grau máximo nos poemas “memórias das sensações4: vertigo 3” e “memória das sensações 6; a insídia”,publicados em A regra secreta (2002), não apenasproblematiza a linguagem ao representar suas múltiplasmaneiras de deslizar pelo texto, seja pelo acréscimo do prefixo[in] em “in/sinuosidade” ou por sua exclusão em “in/sinuação”. Em ambos os casos, o poeta conscientementecorrompe o sentido dicionarizado dos termos: “sinuosidade”e “insinuação”, respectivamente: “s.f. Qualidade ou estado

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do que é sinuoso; flexuoso; ondulado; recurvado em váriasdireções; (fig.) que não é franco; dissimulado” e “s.f. Ato deinsinuar; dito que faz criar suspeitas no ânimo de outrem;coisa que se dá a entender; sugestão; censura; advertência;remoque” (FERNANDES, et al., 2003). Assim, a inserção doprefixo [in] no primeiro caso pode acrescer a ideia denegação ou movimento para dentro; no segundo caso, apossível ausência do mesmo prefixo faz emergir o sentidode afirmação. A decomposição do signo em suamaterialidade promove a decomposição do sentido originaldos vocábulos, refletindo, metalinguisticamente, o processode composição poética que vampiriza e deixa por entre ocorpo do texto marcas da fonte, mas por meio de insólitosexercícios de criação sabe-se fazer diferente, posturaanunciada desde o título: “Outro esboço”.

Outro procedimento esboçado por Sebastião UchoaLeite no poema em foco diz respeito à sua visualidade, ouseja, a disposição dos versos duplica a metáfora da produçãoartística, associada ao deslizamento da serpente, comopodemos constatar abaixo:

A serpente semântica disse:não adianta querersignificar-meneste silvo.Meu único modo de ser é a insinuosidade e a insinuação.Não é possível pensara verdadeexceto como veneno.

A incorporação desse procedimento estético, típicodos concretistas brasileiros, faz com que a presença dosignificante agregue valor ao significado, como acontececom o prefixo [in] já comentado, ampliando o caráterpolissêmico do poema. O efeito produzido pela disposiçãodas palavras nos versos e destes na página em brancoreconstituem visualmente a sinuosidade do deslizamento daserpente.

Assim, vemos proliferação de recursos técnico-formais, uns herdados da tradição moderna, outros exercíciosde invenção particular, que, afinados artisticamente, discutem

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a condição da poesia na contemporaneidade. Semelhanteao poema “Ébauche d’un serpent”, de Paul Valèry, quequestiona a criação divina (“Que o mundo é apenas umdefeito/Ante a pureza do Não-ser!”) e, por extensão, acriação poética, Uchoa Leite promove uma reflexão acercada impossibilidade de significação da arte (“não adiantaquerer/ significar-me/ neste silvo.”). Mais do que ummetapoema, “Outro esboço” encena questões correlatas àfilosofia, fazendo deste um “filosofema” (termo usado porUchoa Leite no poema “Ludwing de im Traum”, de A espreita)ou um “questionema” (termo usado por Haroldo de Campos,na orelha do livro A espreita, para se referir à poética“sebastiânica”), que relativiza o conceito de verdade,manifesto nos últimos versos. A verdade, tal como a serpente,é de natureza provocadora: “Nesse sentido, a poesia não émais uma arma de guerrilha cultural, mas uma espécie deveneno enigmático insinuado pela serpente poema” (SISCAR,2005, p.10).

PPPPPoética esboçadaoética esboçadaoética esboçadaoética esboçadaoética esboçada

A crítica tem apontado, na poética de SebastiãoUchoa Leite, para duas obras, em alguns casos, para três, oajuste entre “os espaços e os tempos adequados para oregistro de um certo modo de ver, sentir e pensar a realidade”(BARBOSA, 2002, p.16). São as obras Isso não é aquilo(1982) e Cortes/toques (1988), as duas últimas da coletâneaObra em dobras (1988). Há que acrescentar aí (esse é ocaso de Paulo Cesar Andrade da Silva, em sua tese dedoutorado) o livro Antilogia (1979), também presente nacoletânea citada.

Indiscutivelmente, nessas obras Uchoa Leite manifestaa habilidade poética de vampirizar a massa de informaçãoerudita de autores e obras, bem como da cultura de massa:“Uma vez apropriados pelo poeta, esses textos tornam-secontaminados e, por fim, reescritos e desdobrados pelosnovos sentidos que suscitam” (SILVA, 2005, p.65). Valeressaltar que esse é um procedimento de via dupla, porquetanto a poética de Uchoa Leite contamina como se deixacontaminar pelos textos alheios, revelando que uma dassaídas para o desgaste e a saturação das formas poéticas

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tradicionais pode ser a reinvenção a partir da discursividadejá existente. Segundo Barthes, o texto é um “tecido de citaçõese saídas, dos mil focos da cultura” (1988, p.69), por issomesmo a ideia de originalidade artística é uma utopia, comodestaca Julia Kristeva, para quem por um texto seentrecruzam múltiplos outros textos (1974, p.60).

Essa concepção teórica pode ser depreendida dospoemas de Sebastião Uchoa Leite e assinalada na epígrafe“mèlange adultère de tout./ trop cru, – parce qu’il fut tropcuit, .../ trop réussi, – comme raté”, de Tristan Corbière,presente no Livro Antilogia (1979). Segundo Dassie (2007,p.36), “estes versos de Corbière são de um poema chamado‘Epitáfio”, que, na tradução de Marcos Siscar, lê-se: “Misturaadúltera de tudo/ Cru –, porque esteve sempre frito/Vitorioso, fracassado”. Em entrevista, Sebastião Uchoa Leiteafirmou: “Virei adepto da mistura, do anti-homogêneo, eisso é quase um principio a partir de ‘Antilogia’” (apudDASSIE, 2007, p.36). Talvez seja o desfile de algunspersonagens como vampiros, assassinos, mulheres-panterase animais como ratos, morcegos, serpentes e aves, dentreos múltiplos procedimentos artísticos, um dos modos deinscrever a presença do discurso do outro no universo poéticode Uchoa Leite. Aliás, muitas vezes esses personagensfuncionam como desdobramento do sujeito lírico,materializando uma espécie de despersonalização. Esse é,por exemplo, o caso do poema “Drácula”, presente emAntilogia”:

esvoaço janela adentroestou aqui ao ladodo teu pescoço longo e brancocom meus dentes pontiagudospara esse coito tão vermelhovocê desperta em transeesvoaço outra vezà meia luz dos lampiõesde volta à minha máscaraquando entro na salacom cara distinta e lívidade olheiras esverdeadasa minha imagem em negativonão se reflete no espelho

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você solta um grito de horroresvoaço janela a fora

(LEITE, 1979, p.126)

Esse recurso técnico-formal aproxima o poeta daconstrução heteronímica de Fernando Pessoa. No entanto,sob uma perspectiva diferente do poeta português, adespersonalização do eu lírico na poesia de Uchoa Leite seconfigura por meio de tipos reconhecidamente desafiadoresda lei e da ordem pública. Seria isso uma metáfora do seuprojeto estético? Possivelmente. Até porque as identidadesque pululam os textos, além de misteriosas, vivem à margemda sociedade, à espreita, escondidas e disfarçadas.

No poema “Drácula” acima transcrito, o eu lírico sedesdobra na lendária figura do Conde Drácula, imortalizadapela literatura e pelo cinema. Símbolo do ocultamento e dasedução, o vampiro age sorrateiramente à noite para sealimentar do sangue de suas vítimas. Esse sugador deenergias alheias, embora no poema de Uchoa Leitereproduza ações típicas da sua condição vampiresca –esvoaçar “janela adentro” à noite, aproximar-se de “pescoçolongo e pontiagudo”, não ter a imagem refletida no espelhoetc. –, apresenta também um comportamento debochado eirreverente. É digno de nota a facilidade com que esseindivíduo fugidio entra e sai dos ambientes sem ser notado,como se houvesse um pacto pelo não-desmascaramento.

Os procedimentos formais confirmam algumasdessas observações. As escolhas linguísticas (“meia luz doslampiões”, “máscara”, “imagem”, “grito de horror”) encenamuma atmosfera sombria. O jogo cromático e gradativo(“branco”, “vermelho”, “meia luz”, “lívido”, “esverdeadas”)participa da construção desse ambiente mórbido e, aomesmo tempo, intensifica a carga de mistério que envolve acena. Ainda no que diz respeito às escolhas linguísticas,chama a atenção a recorrência do verbo “esvoaçar”, que,estrategicamente, aparece no início (“esvoaço janelaadentro”), no meio (“esvoaço outra vez”) e no fim do poema(“esvoaço janela a fora”). Mais do que configurar a açãovolátil do vampiro, revela a sua entrada e saída abrupta decena, materializando um jogo entre presença e ausência,visibilidade e ocultamento. Do ponto de vista da sonoridade,é perceptível o ambiente insinuante materializado pela

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presença da aliteração em /s/ (“esvoaço”, “pescoço”,“esse”), que reforça o caráter dissimulado do vampiro, bemcomo da consoante linguodental /l/ (“janela”, “lado”,“longo”, “luz dos lampiões”), cuja manifestação ressalta aação vampiresca de ataque, valendo-se da língua e dosdentes.

O estrato linguístico e sonoro, conjugado a um ritmodeslizante – marcado pela recorrência de palavras,aliterações, versos predominantemente octossílabos e rimastoantes (ao estilo de João Cabral) – faz com que o poema“Drácula” encene, por meio de um proceder metalinguístico,a condição da poesia contemporânea. O desdobramentodo eu lírico na figura do vampiro, temática e esteticamente,é uma constante na poesia de Uchoa Leite; isso pode serconstatado em poemas como “V internacional”, “He ridesagain” e “Plaisirs d’amour”. Esse ser insubordinado,impertinente e misterioso, serve de metáfora a uma poéticaque se quer desajustada, própria para “soltar as cobras” oupara “espalhar-ratos / com unhas e dentes”, como está ditono poema n. 1 da série “Take off”, em Antilogia. Por isso, deacordo com Paulo Cesar Andrade da Silva, “o vampiro éuma metáfora produtiva para simular tanto esse sujeito líricovoraz, que ‘morde tudo e que tudo pode’, quanto estaescritura que vampiriza textos alheios” (2005, p.65).

As ações do vampiro são esquivas, fugidias, à meia-luz; quando está prestes a ser descoberto, desaparece. Esseé o estilo poético de Uchoa Leite: a despersonalização, odesdobramento, a marginalidade, o escamoteamento, aduplicação, a impureza, ou seja, é uma poesia que se pautapela negatividade no sentido de não-identificação, comoressalta o título de um de seus livros Isso não é aquilo (1982).Tal postura se ajusta perfeitamente à presença de serpentes,vampiros, assassinos, detetives, “monstros do mundo inteiro”(drácula, nosferatu, frankstein etc.) nos poemas de UchoaLeite, todos seres ambíguos e camaleônicos, capazes de sedesdobrarem em outros, como é o caso da serpente(anteriormente analisada) e do vampiro (que semetamorfoseia em lobo, morcego, cachorro etc.).

O processo de vampirização passa pelamanipulação de alguns procedimentos, como já vimos areleitura de um estilo, ou “antiestilo” (esse é o caso “Outro

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esboço”), a metaforização de uma poética que se estruturana decomposição do eu (“Drácula”), até mesmo narecuperação de formas que, a princípio, nada têm depoéticas. Estamos falando de poemas como “Um sonho deFran Angelico”, “Outro sonho alegórico: de Carpaccio”, “Oartista e o coiote”, “As categorias límpidas” e “Worm hole”,da seção “informes”, publicada na obra A ficção vida (1993),bem como de alguns poemas da seção “memórias dassensações” e “a terra e o ar”, de A regra secreta (2002). Ospoemas extraídos do livro A ficção vida assemelham-se auma resenha científica, enquanto poemas como “memóriasdas sensações 9: eu em p/b”, “algo perfeitamente sério” e “o quase nada de Jorge Guillén”, publicados em A regrasecreta, simulam relato de acontecimento, análise de umpoema e apresentação de uma obra poética,respectivamente.

Ao se apropriar de outros gêneros textuais, UchoaLeite problematiza a noção de gênero literário, bem comode autoria. A primeira questão diz respeito ao fato de quesão textos de difícil classificação (poema? resenha? relato?análise? prefácio? poema em prosa? prosa poética?). Afinal,do que se trata? A segunda, porque se já existe um texto-fonte, a “leve reescrita” é suficiente para atribuir autoria aquem a reescreveu? Esse fato se dá com o poema “Ascategorias límpidas”, cuja nota publicada ao final do livroesclarece que “é uma redução montagem e leve reescritade um texto de divulgação científica do biólogo Stephen JayGould sobre o ornitorrinco, que vive nas costas da Austrália”(LEITE apud DASSIE, 2007, p.41).

Reflexões assim são suficientes para ilustrar adesestabilização que a poética de Uchoa Leite produz nosconceitos teóricos da literatura, participando, inclusive, dorol de discussões, até mesmo da questão da literariedadedo texto preconizada pelos formalistas russos. A título deilustração, concentremo-nos no poema, já citado, “Ascategorias límpidas”:

Constroem tocas em margens de córregose riachos, e passam quase toda a vidana água em busca de larvas e insetos ecutucam sedimentos de aluvião com osbicos. Os machos têm espora afiada e

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oca nos calcanhares, que se liga a umaglândula venenosa na coxa. Os organis-mos ovíparos formam ovos no corpo eóvulos muito protoplasmáticos onde o pla-no de clivagem não consegue penetrare dividir a extremidade vegetativa, ouseja, a clivagem meroblástica caracteri-za vertebrados terrestres répteis ou pás-saros. Cadwell enfatizou o caráter rep-tiliano desses mamíferos paradoxais, masnavegadores europeus por muito tempoforam ludibriados por taxidermitas chine-ses e por costuras de cabeças e troncosde macacos às partes traseiras de peixes.Porém não consegui achar emendasOu costuras. O enigma interno sendo ain-damaior, contudo, os primeiros evolucionis-tas franceses insistiram em que a anato-mia não podia mentir: os ovos, eles bra-davam, acabarão por serem encontra-dos um dia (naquele tempo ainda não seencontrara glândulas mamárias). Saint-Hilaire manteve acesa a chama da ovi-paridade. Caldwell solucionou um misté-rio específico, intensificado, porém, oproblema geral. A natureza clamava pe-las categorias límpidas, pois é impossí-vel vencer num mundo assim: ou se é umprimitivo prima facie ou especializadopor uma simplicidade implícita e oculta.

(LEITE, 1993, p. 43-44)

Certamente, um texto assim, publicado em um livrode poemas, perturba o leitor. É um poema? É uma resenha?É um poema em prosa? Se for poema, onde está o caráterliterário, marca peculiar a esse tipo de texto? Se for umaresenha científica, por que está publicado em uma obraliterária? Só essas perguntas já desestabilizam e criam certomal-estar no leitor, porque difíceis de serem respondidas. Éfato que a discussão maior passa pela definição, ou melhor,pela problematização quanto aos limites/fronteiras dogênero, seja literário ou não. Para isso, o poeta cria a partirda “leve reescritura” de um texto científico, cuja finalidade ésingularizar uma espécie animal, o ornitorrinco.

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O título do poema, “Categorias límpidas”, já antecipauma ironia, pois, do mesmo modo que a comunidadecientífica teve dificuldades para classificar “um dos animaismais curiosos do mundo, o ornitorrinco [...] um mamíferoque põem ovos, tem focinho em forma de bico de pato epatas palmadas, que usa para nadar” (BARSA, 1998, p.488),é difícil estabelecer a fronteira entre os gêneros textuais. Aindaatentando para o título e o final do poema-resenha (“naturezaclamava pe-/las categorias límpidas, pois é impossí-/velvencer num mundo assim: ou se é um/ primitivo prima facieou especializado/ por uma simplicidade implícita e oculta”),é possível depreender íntimas associações entre o universocientífico e o poético, pois ambos, durante muito tempo,clamavam por “categorias límpidas”, formas puras, algo,do ponto de vista do evolucionismo inaceitável e do literário,provocador de múltiplas discussões.

Um texto assim, que problematiza a natureza doliterário e do não-literário, que dilui as fronteiras dos gênerostextuais, que se apresenta visualmente como uma tela noespaço branco da página, que aproxima a natureza híbridado ornitorrinco ao hibridismo do texto literário, que discutea questão da autoria, enfim, que vampiriza outro texto,desdobrando-o em múltiplas formas e sentidos, revela umprincípio básico do evolucionismo, que serve para a literaturacontemporânea: a sobrevivência (no mundo animal ou noliterário) é uma questão de adaptação ao meio.

Portanto, Uchoa Leite brinca com as formas, age, navisão de Siscar, no texto “A cisma da poesia brasileira”, comoum “ilusionista”: “Os poemas tornam-se então ‘notas’,‘esboços’, também na escrita que joga com a improvisação,a ausência do olhar poetizante, a opção pelos modosretóricos aparentemente menos rebuscados e mesmonitidamente pouco ‘elegantes’” (2005, p.11). É uma poéticaque se abre para a vida, para o mundo e para as coisas,mostrando que tudo cabe no poema: animais peçonhentose “paradoxais”, monstros, personagens de histórias emquadrinhos, filmes e romances policiais, moradores de ruas,dias de internação em hospital, sessão de exames médicos,outros textos, a condição da arte na contemporaneidade,enfim, tudo passa pela “obliqüidade do olhar, que espreita

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e insinua” (SISCAR, 2005, p.10), fazendo do poema o espaçodas impurezas.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

BARBOSA, João Alexandre (Prefácio). Raro entre os raros.In: LEITE, Sebastião Uchoa. A espreita. São Paulo:Perspectiva, 2000. p.11-27.BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria dapoesia. Tradução de A. Nestrosvski. Rio de Janeiro: Imago,1991.BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ____. O rumor dalíngua. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 65-70.CAMPOS, Haroldo de. (Orelha do livro). In: LEITE, SebastiãoUchoa. A espreita. São Paulo: Perspectiva, 2000.DASSIE, Franklin Alves. Sebastião Uchoa Leite: poética, vozese espaços. 2007. 119f. Dissertação (Mestrado em Letras),Universidade Federal Fluminense, Niterói.FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, F.Marques. Dicionário brasileiro Globo. 56.ed. São Paulo:Globo, 2003.KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de L.H. F. Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras. São Paulo:Duas Cidades. 1998.______. A ficção vida. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.______. A espreita. São Paulo: Perspectiva, 2000.______. A regra secreta. São Paulo: Landy, 2002.NOVA enciclopédia barsa. São Paulo: EncyclopediaBritannica do Brasil Publicações, 1998.SILVA, Paulo Cesar Andrade da. O poeta-espião:configuração do sujeito em Sebastião Uchoa Leite. 2005.295f. Tese (Doutorado em estudos Literários) - Faculdadede Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,Araraquara.SISCAR, Marcos. A cisma da poesia brasileira. Sibila – Revistade Poesia e Cultura, São Paulo, ano 5, n. 8-9, p.1-10, 2005.VALÉRY, Paul. Esboço de uma serpente. Disponível em:<http:// www.arquivos.com/valery2.htm>. Acesso em:14.ago.2009.

Aceito em: 03.06.2010

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Sandra Aparecida Fernandes LopesFerrari¹

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Há muitas maneiras de se falar sobre a produçãodo sentido poético e essa questão se intensifica nos temposatuais. Vivemos num tempo em que os vários discursoscorrentes acabam, de certa forma, afastando a poesia doseu centro e provocando o deslocamento do sujeito paraum novo espaço. Isso leva a uma fragmentação do sujeitoem múltiplas identidades e abre caminho para uma maiorreflexão sobre o sentido da identidade poética e da existênciahumana. Nessa direção, encontram-se os versos de Manoelde Barros.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: deslocamento; identidade; sentido poético;Manoel de Barros.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: There are many ways to talk about the productionof poetic meaning and this issue is intensified in modern times.We live in a time when the various current speeches are over,somehow putting the poetry away from its center and causingthe displacement of the subject for a new space. This leadsto a fragmentation of the subject on multiple identities andopens the way for a greater reflection on the meaning ofpoetic identity and human existence. In this direction areManoel de Barros´s verses.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: displacement; identity; poetic sense; Manoel deBarros.

1 Professora Universidade Federal de Rondônia, campus universitário de Vilhena.Mestre em Teoria da Literatura. E-mail: [email protected]

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Bernardo é quase árvore.Silêncio dele é tão alto que os passari-nhos ouvem.

(Manoel de Barros)

O universo crítico e teórico da produção literáriacontemporânea produz uma série de reflexões. O conceitode literatura, desvinculado de hierarquias, em que formas eelementos não canônicos antagonizam-se, acaba dando àteoria uma identidade fragmentária. Isso se dá a partir doenfraquecimento das identidades nacionais, causado peloprocesso de globalização, que desestabiliza os códigosculturais e, com isso, a perda de identidade do próprioindivíduo.

Muitas reflexões têm sido feitas a respeito do conceitode indivíduo pós-moderno. Grandes teóricos, principalmenteos da sociologia, discutem a questão sob o argumento deque as “velhas identidades estão em declínio”. Entendemospor velhas identidades aquelas que se mostram estáveis eunificadas. Essa unificação do sujeito à sociedade, nasegunda metade do séc. XX, passa por um processo dedesagregação ou de deslocamento do seu centro e, nessedescentramento, o indivíduo encontra-se na chamada “crisede identidade”.

Sabemos que o conceito de identidade no universopós-moderno é algo discutível, isto é, segundo Hall, “opróprio conceito com o qual estamos lidando ‘identidade’,é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido emuito pouco compreendido na ciência social contemporâneapara ser definitivamente posto à prova” (HALL, 2005, p.8).Tal pensamento impossibilita afirmações e conclusões a esserespeito, sendo-nos permitido apenas traçar algumasreflexões sobre a origem dessa questão.

Para compreender as modificações pelas quaispassou o sujeito, Hall refere-se a três concepções: o sujeitodo Iluminismo, aquele que é racional, soberano, centradoem si; o sujeito sociológico, que realiza a interação do eucom a sociedade; e o sujeito pós-moderno, que sedescentraliza dos ideais iluministas e sociais e se fragmentaem várias identidades, muitas vezes contraditórias consigomesmas. O autor lembra que “a identidade torna-se umacelebração móvel formulada e transformada continuamente”

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(HALL, 20005, p.13). Torna-se possível, portanto, umaidentificação temporária, múltipla, que a qualquer momentoé constantemente e rapidamente examinada e reformada.

Hall continua dizendo que a identidade do sujeitopós-moderno surgiu das mudanças conceituais advindas dopensamento filosófico do final do séc. XIX e das primeirasdécadas do séc. XX. As ideias marxistas, o pensamentofreudiano, os conceitos de Saussure a respeito dainstabilidade dos significados; o trabalho de Foucaut, queprovoca a noção de sujeito individualizado, e, por fim, osurgimento dos grupos minoritários da sociedade, são fatosque contribuem para consolidar o descentramento do sujeito,negando toda a concepção cartesiana. Esse estado de coisascoloca em colapso todas as identidades culturais,provocando uma fragmentação de códigos culturais,multiplicidade de estilos, ênfase no efêmero, no flutuante,no impermanente e no pluralismo.

As influências externas advindas da globalizaçãoquebram as noções de unidade cultural e enfraquecem opróprio conceito do indivíduo pós-moderno. O consumismoé um dos grandes responsáveis por essa dissolução dasociedade. A ideia de globalizar o mundo desaloja oindivíduo da sua identidade e coloca-o em situação de umprofundo sentimento de perda subjetiva.

A descentralização do sujeito de sua coletividade otorna um sujeito agônico, alienado, perdido nas multidõesformadas por indivíduos “individualizados”, em busca de suaprópria identidade. Desta forma, as estruturas que suportama tradição são estilhaçadas pela sociedade pós-moderna.Estas não têm nenhum centro, não se mobilizam em favorde uma única causa ou lei.

Por essas vias caminha o panorama da pós-modernidade. Sabemos que o fim de século deflagra ummomento de trânsito, em que o espaço e o tempo se cruzame produzem figuras complexas, como os paradoxos (interiore exterior, passado e presente). No entanto, tais paradoxosnão se fazem de forma negativa, mas produzem, segundoHomi Bhabha, “não uma negação, mas uma negociaçãodas instâncias contraditórias e antagônicas que abremlugares e objetivos híbridos de luta e destroem as polaridadesnegativas” (BHABHA, 1998, p.51).

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A concepção dialógica entre as fronteiras da arteacaba por produzir uma revisão da história, da teoria, dacultura, da crítica e da produção literária. Dado a esse fato,a arte poética se instaura no mundo das inscrições duplas;a poesia passa a dar voz a vários sujeitos que se entrecruzamno espaço da enunciação, no qual surge toda a problemáticada sujeição e da identificação.

Dentre essas várias inscrições da produção artísticacontemporânea estão os versos de Manoel de Barros.Amparados pela amplitude semântica da linguagem, suapoesia cria um mundo que leva a refletir sobre o sentido daidentidade artística e da existência humana. Se fizermos aleitura de alguns de seus poemas voltando nossa direçãopara fora do texto e tentando associar nosso pensamento àrealidade externa, teremos a impressão de que eles secaracterizam exclusivamente por instalarem-se num universoespacial da região pantaneira, afinal, esse é o habitat deManoel de Barros. No entanto, esse fato biográfico nosleva a refletir sobre a natureza de sua poesia, vista pelacrítica como obra de grande valor representativo da culturae dos costumes do Pantanal. Ela é, assim, comumenteassociada, por alguns críticos, ao universo regionalista,dando ao poeta a definição de “poeta das planícies”, “poetado pantanal”, entre outros. Entretanto, veremos que sua obra“não se reduz ao pitoresco, ao referente”, no caso, oPantanal, mas vai além da relação associativa superficialdo “ecologista ingênuo” (BARBOSA, 1990). O próprioManoel de Barros não aceita a ideia de ser rotulado aqualquer tipo ou epíteto: “eu criei um estilo próprio, já mechamaram de poeta da geração de 45, mas não aceitoisso” (BARROS, apud BRASIL; AZEVEDO, 1998). Emborasuas obras se instalem num espaço regionalista pantaneiro,veremos que há uma desespacialização desse universo. Suapoesia pinça elementos regionais e os envolve nasingularidade de um discurso provocativo que brinca comseu leitor. O leitor menos atento diria que sua obra é umasimples apologia ao Pantanal, pela forte presença, em seustextos, dos elementos da natureza. No entanto, veremos quea obra de Barros não tem como alvo enaltecer o espaçopantaneiro e nem pretende ser idílica. Ela alcança umadimensão maior: procura construir uma visão de mundo que,

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em vez de apenas individual, torna-se universalizada pormeio da construção própria de sua linguagem. Diante de tais reflexões, pretendemos delinear nesteartigo alguns sentidos apontados pela poesia de Manoel deBarros do ponto de vista da deslocalização do individuo eda busca de identidade. Veremos que a produção do sentidode lócus em Barros se faz de maneira muito singular. Inseridana visão de poesia na qual o fenômeno significativo, paralembrar o pensamento de Barthes, aparece “suspenso”,“fugidio”, a poesia de Barros vale-se de uma visão extrínsecado objeto, no caso, a realidade pantaneira, para buscar asignificação poética, partindo da conotação dessa realidadeque, ao representar-se, deixa de ser ela mesma, adquirindoduplicidade de sentidos. O sentido que Barthes chama dereal é aquele que aparece nomeado. A poética de Barrosbusca transformar esse sentido para torná-lo referênciaambígua, possibilitando o surgimento de uma realidadetransfeita, que recupera sentidos perdidos da linguagem.Assim, o discurso de sua poesia instaura-se, conformeBarthes, por meio de uma técnica decepcionante do sentido:“Isso quer dizer que o escritor se aplica em multiplicarsignificações, sem as preencher, nem fechar” (BARTHES,1999, p.173).

No poema a seguir, percebemos que o poeta elaboraseu discurso a partir de situações e fatos que, à primeiravista, podem ser observados como representação referencialde um simples motivo desencadeador de todo discurso:

XIV

De 1940 a 1946 vivi em lugares deca-dentes onde omato e a fome tomavam conta das casas,dosseus loucos, de suas crianças e de seus bêba-dos.Ali me anonimei de árvore.Me agarrei por beiradas de muros cariadosdesdePuerto Suarez, Chiquitos e Santa Cruzde La Sierra, na Bolívia.Depois em Barranco, Tango Maria (onde co-nheci o

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Poeta César Valejo), Orellana, e Mocomonco– no Peru.Achava que a partir de ser inseto o homempoderiaentender melhor a metafísica.Eu precisava ficar pregado nas coisasvegetalmentee achar o que não procurava.Naqueles relentos de pedras e lagartos gos-tava deconversar com idiotas de estrada emaluquinhosde mosca.Caminhei sobre grotas e lajes de urubus.Vi outonos mantidos por cigarras.Vi lamas fascinando borboletas.E aquelas permanências nos relentos faziam-mealcançar os deslimites do Ser.Meu verbo adquiriu espessura de gosma.Fui adotado em lodo.Já se viam vestígios de mim nos lagartos.Todas as minhas palavras já estavam consa-gradas depedras.Dobravam-se lírios para os meus tropos.Penso que essa viagem me socorreu a pássa-ros.Não era a denúncia das palavras que meimportava, mas a parte selvagem dela, os seusrefolhos, as suas entraduras.Foi então que comecei a lecionar andorinhas.

(BARROS, O livro das ignorãças)

Notamos neste poema que o poeta estabelecerelações de proximidade entre horizontes de um mundo “real”e a construção de um outro mundo: o do poema. Parecehaver indicação de uma realidade aparentementereferencial, com tempo e espaço bem definidos, nosprimeiros versos. Entretanto, a partir dessa realidadeespacial, o poeta já vai engendrando o seu discurso. Asdatas expressas referencialmente no primeiro versocontrapõem-se à noção de espaço presente no segundo eterceiro versos. Os “lugares decadentes” expressam traçospróprios de lugares onde vivem “loucos” e “bêbados” emestado de abandono, tomados pelo “mato”. Essa dimensão

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temporal e espacial colabora para uma diluição gradativada referência e faz com que a linguagem possa atingir umestado propício para o “delírio do verbo”, metaforizando,assim, marcas próprias de uma poesia que, por meio dadesconstrução de traços da linguagem pré-estabelecida pelanomeação gasta, busca fixar-se num grau de cumplicidadecom o universo vegetal: “Ali me anonimei de árvore.” Nesseponto, o poeta, ao identificar-se com as coisas que nomeia,e “anonimando-se” assim à maneira da árvore, passa poruma espécie de perda da identidade humana, graças a umalinguagem que vai se deslocando de seus índices dereferência.

Podemos notar que no poema a cumplicidade entreo eu lírico e o espaço descrito acaba por tornar ambíguo oaparente aspecto referencial que expressa, utilizando essereferente como simulação de uma estrutura discursiva quese prende aos procedimentos artísticos: “Me agarrei porbeiradas de muros cariados desde / Puerto Suarez, Chiquitose Santa Cruz / de La Sierra, na Bolívia”. Esses versos nãoquerem representar simplesmente elementos da vida inseridosnuma realidade externa comum, nem tampouco abandoná-los. Antes, procuram unificá-los num mesmo sentido,expressando uma realidade que vai aos poucos perdendo acapacidade de situar o sujeito lírico em um tempo e umespaço definidos. O espaço descrito acaba sendo um lugarpróprio para a unificação do sujeito lírico com os objetosque descreve: “Eu precisava ficar pregado nas coisasvegetalmente / e achar o que não procurava”.

Essa relação de cumplicidade entre o ser humano eos seres da natureza traz à tona o espaço natural, no qualos versos de Barros se instalam. A ideia de espaço expressapor essa relação pretende ser apenas uma simulação davisão contemplativa da natureza. O poeta não quer ressaltara exuberância provinda de uma visão idealizada das coisasnaturais, porque não adere, em seus versos, ingenuamenteà ideia paradisíaca de uma natureza. Antes, os elementosmineral, vegetal e animal, ao apresentarem-se unificados,configuram a possibilidade de uma reflexão a respeito dosentido da existência humana: “Achava que a partir de serinseto o homem poderia/ entender melhor a metafísica”. Opoeta busca aproximar realidades aparentemente distintas

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e, por meio dessa junção, vê a possibilidade de se chegar auma reflexão sobre os limites humanos, transformando anatureza em ser primordial da existência. Nela, na naturezaem harmonia com o homem, torna-se possível para o poeta“achar o que não procurava”, através das “permanênciasnos relentos”, que o levariam a “alcançar os deslimites doSer”. Daí se pode pensar que o Ser só se faz por intermédiodesse processo de aproximação entre os reinos da natureza.Notamos também que há uma unificação do humano como vegetal, que se unifica com o ser da poesia:

[...]

Meu verbo adquiriu espessura de gosma.Fui adotado em lodo.

Já se viam vestígios de mim nos lagartos.Todas as minhas palavras já estavam consagradas de

pedras.Dobravam-se lírios para os meus tropos.

Penso que essa viagem me socorreu a pássaros.Não era a denúncia das palavras que me

importava, mas a parte selvagem dela, os seusrefolhos, as suas entraduras.

Foi então que comecei a lecionar andorinhas.

O processo de desespacialização se unifica com oprocesso de construção poética, que nasce da unidade dopoeta com a natureza: “Já se viam vestígios de mim noslagartos./ Todas as minhas palavras já estavam consagradasde / pedras.”. Esse movimento relacional entre os reinos da natureza faznascer também transformações semânticas, a partir dessas“permanências” das palavras “nos relentos”: “Meu verboadquiriu espessura de gosma”. Nesse espaço seria possívelsurgir um novo ser “adotado em lodo”, o Ser, que seconfunde com o ser da poesia. Ao representar um movimentode cumplicidade do homem com a natureza, o sujeito líricoconstrói um discurso baseado em elementos da linguagem,esquecidos pelos usos corriqueiros. Assim, o discurso dopoeta leva-nos a refletir sobre a noção representativa eapresentativa da realidade exterior das coisas. O poeta buscanas palavras a parte “selvagem delas”, para traçar sentidos

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aos seus versos. Vemos que procura priorizar as reentrânciasda palavra, nas quais a realidade extrínseca provoca umamudança de funções de sentidos, dissolvendo-se quase quetotalmente em detrimento dos elementos intrínsecos dopoema. “Não era mais a denúncia das palavras que me /importava, mas a parte selvagem delas, os seus / refolhos,as suas entraduras.”.

Esses procedimentos que o poeta utiliza para darsentidos ao discurso é que acabam dando ao poema umcaráter ambíguo: ao desreferencializar as coisas, o sujeitolírico passa a ser as coisas que desreferencializar, assumindouma outra identidade, na qual o ser dos “entes intra-mundanos, para aprender a expressar suas vozes, sendo ascoisas, dirá suas palavras. Ele está em completa ecompromissada promiscuidade com os animais, com osvegetais e com os minerais, bem como com todos osprocessos de metamorfoses neles existentes” (CASTRO, 1991,p.137).

As transformações pelas quais passam as naturezasanimal, vegetal, mineral e humana acontecem de maneiraordenada, de forma conjunta. Dizendo de outra forma, paraa poesia de Barros, todas as coisas da natureza, cada reino,têm a sua especificidade, mas ordenam-se por meio derelações mútuas, cuja finalidade é a unificação de pontosaparentemente opostos que se harmonizam.

Nesse sentido, o discurso de Barros leva a umprocesso simultâneo de desumanização e deslocalização,provocado pela tensão entre os diferentes universos naturais.Ao unificar os reinos da natureza, o homem se (des)humaniza,ao mesmo tempo que busca sua humanização plena, nodeslocamento da dimensão extrínseca para a intrínseca. Issosó é possível de se atingir, segundo o poeta, por meio doprocesso de apropriação homem / mineral / vegetal / animal,em que no universo descrito, o sujeito e a própria linguagemganham transcendência pelo processo de (des)localizaçãode seu universo de origem: “Já se viam vestígios de mim noslagartos / todas as minhas palavras já estavam carregadasde / pedras.”.

Estamos diante de uma produção poética queabsorve resíduos da realidade, deforma conteúdos, fazendocom que a ordem de espaço e tempo se desprenda da sua

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realidade de origem. Isso provoca o que podemos chamarde deslocalização das coisas e dos elementos de sentidosextrínsecos do poema. O espaço pantaneiro se deslocaliza,subordinando-se à voz do sujeito lírico que dela se vale paraconstruir a realidade da linguagem poética. Todo esseprocesso leva o discurso a uma aproximação com as váriassignificações das palavras que se cruzam e se (des)realizamna elaboração da linguagem: “Eu precisava ficar pregadonas coisas vegetalmente / e achar o que não procurava.”.

O mesmo acontece com a realidade dos diferentesmundos da natureza, que deixam de ser opostos, masconservam sua singularidade numa espécie de contínuatransfusão de um ser para outro: do homem ao animal, aovegetal, ao mineral, simultaneamente: “Todas as minhaspalavras já estavam consagradas de / pedras. / Dobravam-se lírios para os meus tropos.”. As palavras do poeta,“consagradas de pedras”, expressam a mobilidade de sualinguagem, representada pelos estados mineral “pedras” evegetal “lírios”, que configuram um estado próprio para osurgimento do universo poético barreano. Essa mobilidaderepresenta, também, o deslocamento do próprio sujeito lírico,numa viagem “socorrida a pássaros”.

Desta forma, é concedido ao poeta o poder de nãoprender-se aos elementos extrínsecos e criar em sua obrauma terceira margem, que surge do mecanismo de uniãoentre os seres da natureza. O poeta passa a (des)construir asignificação e a ordenação das palavras sem seus versos,criando uma outra realidade, que possui os traços de suaprópria existência: “Foi então que eu comecei a lecionarandorinhas”.

A forma como a poesia de Barros se insere nouniverso fragmentário da pós-modernidade nos permitevisualizar de maneira singular o deslocamento das estruturasnas quais o sujeito se dessubstancializa e vira pedra, bichoe planta ao mesmo tempo.

Vemos, portanto, que a poesia de Manoel de Barrosnão se enquadra em nenhum rótulo regionalista ou outroqualquer que seja; não se mostra engajada na única funçãode representar o Pantanal por suas belezas naturais. Umapoesia que enaltece os bichos, as pedras e as plantas semquerer ter tal função e ao representar esses elementos, ela

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os desreferencializa e os desloca. Uma poesia que desmentea simples praticidade dos outros discursos dacontemporaneidade, que desvela e resgata os rumos da arte.

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Eduardo Guimarães1

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este texto tem como objetivo analisar o poema“Andorinha”, de Manuel Bandeira, a partir de umdispositivo de análise semântica do texto. Para isso,apresenta uma posição a respeito do que é texto e busca,nos estudos de crítica literária, um procedimento deanálise que é transformado pela posição da semânticada enunciação e pela consideração da noção de recorte.Com este dispositivo é feita a análise do texto deBandeira.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: texto; poesia; recorte; enunciação;Manuel Bandeira.

RésuméRésuméRésuméRésuméRésumé: L’objectif de ce texte est analyser le poème“Andorinha” de Manuel Bandeira, à partir d’un dispositifd’analyse sémantique du texte. Pour cela il présente uneconception de ce qui est un texte et cherche, dans lesétudes de critique littéraire, une procédure d’analyse quiest transformée par la position de la sémantique del’énonciation et par la considération de la notion de“recorte” [découpage]. Le résultat de l’analyse montrequ’un abordage non segmental du texte produit desrésultats importants.

MotsMotsMotsMotsMots-----clécléclécléclé: texte; poésie; “recorte” [découpage];énonciation; Manuel Bandeira.

1 Professor da Universidade Estadual de Campinas DL – IEL/LabeurbUnicamp. E-mail: [email protected]

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Vou me propor aqui a fazer uma pequena análisede um muito conhecido poema de M. Bandeira. Aprimeira coisa que gostaria de dizer é que não vou mereportar à fortuna crítica do texto, pois o meu interessenão é me colocar no espaço da crítica literáriaespecificamente, mas mostrar como procedimentos deanálise semântica podem ser muito interessantes nasustentação das interpretações que se podem fazer sobreos textos em geral e, em particular, dos textos literários.Para sustentar minha análise, vou apresentarsumariamente o que venho utilizando como meuprocedimento de análise de texto2.

TTTTTexto: unidade de significaçãoexto: unidade de significaçãoexto: unidade de significaçãoexto: unidade de significaçãoexto: unidade de significação

Começo por retomar minha definição de texto: otexto é uma unidade de significação que integraenunciados. Assim, trata-se de uma unidade linguísticaque se caracteriza, como em geral se reconhece, porproduzir sentido. E produz sentido na medida em queintegra enunciados, ou, dito de outro modo, o texto éintegrado por enunciados. Nesta medida, ressalto quenão se trata, portanto, de pensar o texto como formadoou composto de enunciados, mas integrado porenunciados. Isso coloca a questão da significação dotexto como não afetada diretamente por suasegmentalidade.

Os estudos atuais sobre texto na linguística nãoprocuram dizer o que um texto significa; procuram dizercomo um texto se constitui enquanto tal e como háfuncionamentos linguísticos próprios para isso. É istoque podemos encontrar em Cohesion in English(HALLIDAY; HASAN, 1976). Mas desse trabalho ressaltoque os autores consideram o texto como uma unidadesemântica3, tal como faço. E eles dizem também que otexto é uma unidade de uma espécie diferente dasentença (eu diria enunciado). Não há no texto umarelação estrutural do tipo da que há entre o enunciadoe seus elementos (sujeito e predicado, por exemplo).2 A este respeito, estou publicando um livro onde esses aspectos estão mais desen-volvidos.3 “A text is best regarded as a SEMANTIC unit: a unit noto f form but of meaning”(HALLIDAY; HASAN, 1976, p.2).

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Feita essa distinção, os autores vão definir textura (quevou chamar textualidade) como um conceito apropriadopara expressar a propriedade de “ser um texto”(HALLIDAY; HASAN, 1976, p.2). Para mim, atextualidade é exatamente constituída pela relação deintegração (enunciados integram texto e assim produzemsentido).

Deste modo, o texto é uma unidade no sentido deser algo finito e que se caracteriza por integrarenunciados. Ou seja, que se caracteriza porque temuma relação com outras unidades de linguagem, osenunciados, que são enunciados e que significam emvirtude dessa relação.

Um aspecto que precisa ser considerado aqui éque essa relação de integração se dá porque ela éconstituída pela relação de enunciação, porque umfalante, no sentido que dou a esse termo (GUIMARÃES,2002), preenche a distância que se instalaria entre ossegmentos, já que eles não se combinam nem mecânicanem segmentalmente.

Assim, o texto é uma unidade e se apresenta porum engajamento do falante, num certo espaço deenunciação, como texto. Essa relação de engajamentoé o que vou chamar de relação de autor4. E é essarelação de autor que significa a relação de integraçãodos enunciados com a unidade texto. Essa relação deautor apresenta como uno o que é disperso.

Dispositivo de análiseDispositivo de análiseDispositivo de análiseDispositivo de análiseDispositivo de análise

Para começar, especifiquemos o sentido daexpressão “análise de texto”. Trata-se, para mim, deinterpretar e compreender o processo de produção desentido de textos, para deste modo se poder dizer quesentidos podemos reconhecer num certo texto particular.

Para avançar naquilo que nos interessa, voubuscar, no âmbito dos estudos da literatura, um espaçoem que o texto é diretamente objeto de análise, algunselementos que me levaram ao estabelecimento de meudispositivo de análise. Vou me valer da posição de um

4 Esses aspectos, nos termos de um momento anterior de minha posição na semân-tica da enunciação, estão em Texto e enunciação (GUIMARÃES, 1995).

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conhecido crítico, Leo Spitzer (1948)5, que se dedicoua pensar procedimentos linguísticos de análise einterpretação de textos literários.

O procedimento de análise textual queprocuramos desenvolver no decorrer da prática deanálise se inspira, de modo livre, no procedimento“filológico” de Sptizer presente em um texto com o qualtive meu primeiro contato no início dos anos 1970(SPITZER, 1948).

As posições de Spitzer (assim como de outroscríticos como Rifaterre6 (1979)) têm a característica, talcomo para mim, de considerar o texto como umaunidade que interessa porque significa. Por outro lado,ambos, embora de modos diferentes, consideram quea questão do sentido do texto não pode reduzir-se aum tratamento referencial.

Esse aspecto me interessa particularmente, poiso sentido das expressões linguísticas têm a ver com ostextos em que estão7.

O que fundamentalmente me interessa nopensamento de Spitzer é o que ele chamou de o gostopelo detalhe: “Meu método pessoal consiste em passarda observação do detalhe a unidades cada vez maisamplas, que descansam em grande medida naespeculação” (p.42). Esse gosto pelo detalhe aparecebem caracterizado no parágrafo que segue:

Evidentemente que procuro descobrira significação no detalhe, o hábito detomar um detalhe lingüístico com amesma seriedade que o significado deuma obra de arte, ou, em outras pala-vras, a atitude que considera todas asmanifestações do homem como igual-mente sérias, é uma conseqüência dafirme convicção preestabelecida – do“axioma” do filólogo – de que os de-talhes não são uma reunião casual de

5 Léo Spitzer nasceu em Viena em 1887 e faleceu em 1960 nos Estados Unidos,onde trabalhava na Johns Hopkins University. A obra aqui citada é de 1948; teveuma edição em espanhol em 1955, pelo Gredos. Utilizo a edição de 1974.6 Michel Rifaterre nasceu em 20 de novembro de 1924 em Bourganeuf, na França,e faleceu em 2006, em Nova Iorque, onde trabalhou na Columbia University.Utilizo aqui a tradução para o português de 1989.7 Em virtude do procedimento de análise que utilizo, preciso deixar entre parênteseso caráter estrutural da análise de Riffaterre.

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material disperso que nenhuma luz dei-xa mostrar. (p.42-43).

Assim, o que vemos é que, para Spitzer, a entrada,para se compreender um texto, não é pelo começo,mas por algum detalhe que deve ser considerado, emseguida, na relação com o texto que o faz significar.Como ele diz, o primeiro passo se faz “pela consciênciade um detalhe que nos chama a atenção junto com aconvicção de que esse detalhe mantém uma relaçãofundamental com o conjunto da obra artística” (p.49).

Transponho agora a atitude básica doprocedimento de análise de Spitzer para uma posiçãonão idealista, nem humanista, como a que venhoapresentando. Há em tudo que ele diz que o que fazum detalhe significar é sua relação com a obra enquantounidade. Podemos dizer isso de outra maneira. E essaposição, vamos tomá-la a partir de nossa concepçãosemântica, segundo a qual o sentido de uma expressãolinguística se constitui pelo acontecimento de enunciação(GUIMARÃES, 2002).

Por outro lado, enquanto semanticista,consideramos que a unidade de análise semântica é oenunciado. E consideramos que o enunciado é umelemento linguístico que integra texto. Ou seja, paraque um certo tipo de sequência linguística8 sejaenunciado, é necessário que integre texto. Como se vê,desse ponto de vista, o próprio modo de conceber atarefa da semântica leva a uma certa concepção detexto, que já apresentada.

Como disse, texto é uma unidade de sentidointegrada por enunciados. Ou seja, um texto não é umconjunto de enunciados, nem é uma unidade compostade enunciados. A relação de integração é aquela queconstitui sentido; ela se caracteriza por ser a relação deum elemento linguístico de um nível com elemento denível superior. E não se trata de uma relaçãocaracterizada pela segmentalidade. A integração se fazpor uma relação transversal entre elementos diversos e

8 Para mim, um enunciado é uma sequência linguística que tem como característi-cas ter consistência interna e, ao mesmo tempo, independência relativa. Sobre isso,ver, por exemplo, Guimarães (2006a, p.121-123).

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a unidade à qual se reportam. A relação entre oselementos não é de contiguidade, não se marca peladireção da segmentalidade.

Para a posição que aqui assumimos, aconcepção de funcionamento do texto diz respeito aprocedimentos de constituição de sentido que não ésegmental. E a compreensão disso pode ser melhorapresentada na medida em que apresentarmos osprocedimentos de análise. Para a análise considero,reportando-me ao movimento do dispositivo de análisede Spitzer9, considerando que não se pode pensar emseguir a linearidade textual. Antes de apresentar oprocedimento, retomo uma definição de recorte10 deanálise, que será fundamental aqui. Do ponto de vistade nossa análise enunciativa, o recorte é um fragmentodo acontecimento da enunciação. Não se tratasimplesmente de uma sequência, mas de formaslinguísticas que aparecem como correlacionadas emvirtude de terem uma mesma relação com oacontecimento, independentemente da posição nasequência (GUIMARÃES, 2008).....

Podemos, assim, estabelecer o seguinteprocedimento:

1) toma-se um recorte qualquer, a partir de umaleitura atenta e mesma repetida do texto, e produz-se,considerando uma posição teórica, uma descrição deseu funcionamento;

2) interpreta-se seu sentido na relação com otexto em que está integrado;

3) chega-se a, ou toma-se, outro recorte e faz-se dele uma descrição;

9 Seria interessante lembrar aqui as análises que encontramos em Zancarini e ou-tros (2008), ao trabalharem com o que os autores chamam “filologia política”.Nesse caso, o interesse é trabalhar com a constituição dos sentidos de palavras emtextos políticos do século XVI.10 A noção de recorte com a qual opero vem da seguinte conceituação, feita nointerior da análise de discurso (ORLANDI, 1984, p.14) e tal como a utilizo desdeTexto e argumentação (GUIMARÃES, 1987, p.13-14): “o recorte é uma unidadediscursiva. Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de lin-guagem-e-situação. Assim um recorte é um fragmento da situação discursiva”(ORLANDI, 1984, p.14).

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4) interpreta-se seu sentido na relação com otexto em que está integrado, tendo em vista ainterpretação feita do primeiro recorte;

5) busca-se um novo recorte etc, até que acompreensão produzida pelas análises se mostresuficiente para o objetivo específico da análise.

Aqui é preciso reiterar que tanto os recortes comoa interpretação de seu funcionamento se fazem a partirda posição teórica específica. É essa posição que nosindica a pertinência do que recortar. A isso se junta aleitura atenta e reiterada do texto a ser analisado.

E para esse procedimento tem particular interesseos dois funcionamentos gerais próprios doacontecimento, do texto: a articulação (predicação,determinação, aposição, argumentação etc) e areescrituração (GUIMARÃES, 2002, 2004, 2007,2009). Essa última consiste em se redizer o que já foidito. Ou seja, uma expressão linguística reporta-se auma outra por algum procedimento que as relacionano texto integrado pelos enunciados em que ambasestão. É o caso de pré-candidata, a senadora e Marinano exemplo (1) dado no início. Este procedimento secaracteriza por fazer interpretar uma forma(reescriturada) como diferente de si (em virtude dareescrituração). E, nessa medida, a reescrituração é umprocedimento que coloca em funcionamento umaoperação enunciativa fundamental na constituição dosentido pelo acontecimento.

Uma análise de “Uma análise de “Uma análise de “Uma análise de “Uma análise de “AndorinhaAndorinhaAndorinhaAndorinhaAndorinha”””””

Retomemos o poema:

AndorinhaAndorinhaAndorinhaAndorinhaAndorinha

Andorinha lá fora está dizendo:— “Passei o dia à toa, à toa!”

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Andorinha, andorinha, minha cantiga é maistriste!Passei a vida à toa, à toa . . .

Vejamos o que nos parece proeminente nessetexto. Como reescrituração, temos a repetição dapalavra andorinha no título, no primeiro e no terceiroversos. Por outro lado, temos uma apresentação emdiscurso direto das palavras da andorinha, o que jácoloca a andorinha como personagem do poema, aquem o poeta fala na segunda estrofe. Isso nos leva àcaracterização das cenas enunciativas do texto. Ou seja,de que lugar e como fala o locutor a seu interlocutor. Atudo isso podemos, ainda, relacionar a própriaorganização das estrofes (são dois dísticos) e pensar nasua métrica, já que claramente se trata de um poemaem versos brancos, sem rima. Tomemos o primeirorecorte:

1) A reescrituração por repetição1) A reescrituração por repetição1) A reescrituração por repetição1) A reescrituração por repetição1) A reescrituração por repetição

“Andorinha” aparece no título. Esse é o nomedo poema. Nesta medida, “Andorinha” é um nomepróprio. Esse nome é retomado em seguida na palavraseguinte, a primeira do primeiro verso que tomaandorinha como uma forma de referir a algo, aandorinha (o pássaro) do título do poema. E aqui temosum aspecto importante, andorinha está no singular. Enão se trata de uma referência genérica a um conjuntode andorinhas, que teríamos, por exemplo, em“andorinha é um pássaro que anda em bando”, pois,na sequência, a palavra é mais uma vez retomada, numvocativo, que toma a andorinha na sua singularidade,uma andorinha a quem o poeta fala. Isso nos leva auma conexão com um dizer popular: “uma andorinhanão faz verão”. Essa é uma andorinha que normalmenteanda em bandos. Essa andorinha está só. Solidão daqual o poeta compartilha. E aqui toma relevo um outrosentido que se poderia dar, em outras condições, aodizer popular. “Uma andorinha não faz verão” podesignificar “a união faz a força” etc. Deste modo, o sentido

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da solidão se configura como oposta ao sentido daunião, do conjunto, das relações com os demais.

2) As cenas enunciativas2) As cenas enunciativas2) As cenas enunciativas2) As cenas enunciativas2) As cenas enunciativas

A primeira coisa a observar é que temos duascenas distintas, a da primeira estrofe, e a da segundaestrofe. Na primeira estrofe, temos uma cena seguinte:

O LO LO LO LO Locutorocutorocutorocutorocutor, enquanto locutor poeta, nos narra:, enquanto locutor poeta, nos narra:, enquanto locutor poeta, nos narra:, enquanto locutor poeta, nos narra:, enquanto locutor poeta, nos narra:há lá fora uma andorinha dizendo: “passei o dia à toahá lá fora uma andorinha dizendo: “passei o dia à toahá lá fora uma andorinha dizendo: “passei o dia à toahá lá fora uma andorinha dizendo: “passei o dia à toahá lá fora uma andorinha dizendo: “passei o dia à toaà toaà toaà toaà toaà toa”.”.”.”.”.

Trata-se então de uma narrativa, da narrativa deum dizer de outro, da andorinha.

Na segunda estrofe, temos um dizer diferente:O LO LO LO LO Locutorocutorocutorocutorocutor, enquanto locutor poeta, diz à, enquanto locutor poeta, diz à, enquanto locutor poeta, diz à, enquanto locutor poeta, diz à, enquanto locutor poeta, diz à

andorinha: “passei a vida à toa à toaandorinha: “passei a vida à toa à toaandorinha: “passei a vida à toa à toaandorinha: “passei a vida à toa à toaandorinha: “passei a vida à toa à toa”.”.”.”.”.E ele qualifica este seu dizer; é como a da

andorinha, uma cantiga, só que mais triste. Assim asolidão do poeta; esse sentido nós o encontramos naanálise de primeiro recorte, é maior que a solidão daandorinha.

E na configuração dessas cenas temos aconfiguração do espaço do poema. Ele está marcadopelo lá fora da narrativa da primeira cena. Aquilo quese narra está “lá fora”. E o dentro é significado não porter sido dito, mas por oposição ao “lá fora” da narrativasobre a andorinha. Assim, o poeta que narra e que falacom a andorinha está dentro, está na sua casa, o lugarda sua solidão. Desta forma, o sentido da solidão secombina ao do lugar íntimo da casa, da vida pessoal.Deste modo, isso reforça o sentido da solidão pela vidatoda.

3) As estrofes e os versos3) As estrofes e os versos3) As estrofes e os versos3) As estrofes e os versos3) As estrofes e os versos

Vemos que o poema é organizado em doisdísticos, dando tanto à narrativa sobre a andorinha,quanto ao dizer do poeta a ela, um paralelismocompleto. E esse paralelismo se acentua se observamosque podemos considerar alguns aspectos da métrica:o primeiro verso do primeiro dístico é de 10 sílabas e

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o segundo, de 8. E é interessante que essa métricaexige a pronúncia do vocativo de modo integral, sema junção do final de andorinha com o início deandorinha (ambos com a) e, por outro lado, exigeuma pronúncia bem ao tipo do cotidiano entre cantigae é, que se diz, então, [minha “cantigémais” triste].De um lado, a presença proeminente da andorinha;de outro, a linguagem do cotidiano, a intimidade comela. Quanto ao primeiro verso da segunda estrofe,podemos considerar que ele é divido em doissegmentos de 7 sílabas cada um e que o segundoverso da segunda estrofe tem também 8 sílabas. Assim,vemos que a narração do poeta se dá com umamétrica e sua fala para a andorinha com outra.

No primeiro caso, o caráter mais solene eneutro do decassílabo; no segundo, a maior intimidadeda redondilha menor, tão própria das quadraspopulares, entre outras coisas. Desse modo, vemoscomo toda a edificação do poema vai sobrepondoelementos que distingue, de um lado, uma narrativa,e, de outro, o dizer do poeta para a andorinha, assimcomo ele, solitária. E a isso se junta um importanteaspecto: o dizer do poeta tem tal como o dizer daandorinha 8 sílabas; são dizeres com o mesmo ritmo,são dizeres da mesma solidão.

Desta maneira, vemos como o poema vai dizendode modo consistente, de um lado, uma narração, umaafirmação objetiva, de outro, um dizer íntimo, umarevelação da alma do poeta. E esse dizer da alma dopoeta tem a ver com aquilo mesmo que ele vê e nosconta. Ele já vê no mundo a sua própria tristeza, a suaprópria solidão.

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José Leonildo Lima1

Cássia Regina Tomanin²Valéria Faria Cardoso³

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este breve texto pretende mostrar a importância dotrabalho de coleta de material linguístico, tendo como baseo Atlas Linguístico do Estado de Mato Grosso – ALiMAT - eapresentar alguns problemas com sua respectiva solução,baseados em nossa experiência e nos relatórios de trabalhosde campo de linguistas e antropólogos. PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: pesquisa; coleta; dado. AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This brief paper intends to shows the relevance ofthe linguistic material collection work, based in the “AtlasLinguístico do Estado de Mato Grosso” – ALiMAT [LinguisticAtlas of Mato Grosso State] and to show some problems withits solution based in our experience and in papers of linguisticand anthropologists´ fieldwork. KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: research; collection; data.

1 Professor do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de Pontese Lacerda. Doutor em Lingüística. E-mail: [email protected]² Professora do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de deAlto Araguaia. E-mail: [email protected]³ Professora do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário de AltoAraguaia. E-mail: [email protected]

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Falar em pesquisa linguística no Brasil lembra aopesquisador, antes de mais nada, as grandes dificuldadesque se encontra para a realização desse tipo de trabalho,sobretudo por causa da dimensão territorial de nosso país.Assim, para esse problema, a solução mais viável encontradaé a fragmentação dos trabalhos e a divisão regional. Dessaforma, os atlas estão sendo feitos por regiões ou Estados. Éassim que está se fazendo o Atlas Linguístico do Estado deMato Grosso – doravante ALiMAT.

Não se pode falar em atlas sem, contudo, deixar defalar em coleta de dados. Este é, sem dúvida, o ponto altoda pesquisa linguística ora empreendida. É por meio de umaentrevista bem articulada que os pesquisadores do AtlasLinguístico do Estado de Mato Grosso – ALiMAT - poderãoanalisar questões relevantes do português falado no Estadode Mato Grosso. Nesse sentido, vale destacar a preocupaçãoquanto à coleta dos dados, não só do ponto de vista dosdados em si, mas também sobre o rigor científico com quese deve proceder, o que envolve, principalmente, a questãoética na abordagem dos informantes.

Todo o cuidado é justificado porque o materialrecolhido e, posteriormente publicado, pode servir paramuitos outros trabalhos científicos, conforme já previaSamarin (1967) há mais de cinco décadas. O estudiosoelenca alguns fatores que justificam a ascendência dapesquisa de campo, são eles:

1. levantam o que e como as línguas realmentesão;

2. são indispensáveis para o desenvolvimentoda linguística, já que fornecem dados paraa formulação de conceitos;

3. fornecem dados, experienciação e formulaçãodos problemas, o que é de fundamentalimportância para as ciências humanas comoa Linguística e a Antropologia;

4. são necessárias porque a Linguística éaplicada aos assuntos humanos, podendo-se falar em “engenharia da linguagem”, por

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causa da necessidade de comunicação entreos povos;

5. podem fornecer material para a elaboraçãode dicionários e afins.

Assim, considerando a relevância de uma boa coletade dados, antes de iniciarmos o trabalho de campopropriamente dito, foram realizadas muitas discussões edebates. Nas primeiras discussões que fizemos acerca dapesquisa um dos temas foi a atitude do inquiridor diante doinformante. Nesse momento é que retomamos o conceitoclássico de Labov (1972): o paradoxo do observador. Ouseja, o pesquisador precisa estar presente para obter umaboa quantidade (e com qualidade) de amostra de línguavernácula. Mas como fazer com que o informante faleespontaneamente diante de um pesquisador que estáinvestigando a sua língua? Levando em consideração essaquestão teórica, colocamos em discussão o procedimentodo documentador. Assim, surgiram questões como: o quedevemos dizer ao informante sobre o objetivo da entrevista?Qual é o estudo que estamos fazendo? É um estudo históricosobre o município? Desse modo, muitas outras perguntasvieram à tona.

Diante do impasse, o que decidimos é que jamaisdeveríamos dizer que se tratava de uma pesquisa linguística.Isso porque, se assim o fizéssemos, a maioria dos dadosseriam falseados, isto é, teríamos dados linguísticos nãocondizentes com a realidade linguística do informante. Noentanto, o tipo de entrevista sugerido pela Dialetologia, quesão perguntas diretas, impede que sigamos as orientaçõesde Labov e/ou Tarallo, no sentido de minimizar o paradoxodo observador, já que a cada questão o informante élembrando que está sendo tratada a forma “como se fala”.Assim, no momento em que falávamos sobre o objetivo denossa pesquisa, deixamos claro que havia um interesse pelonome das coisas do lugar, bem como pelo seu modo deviver, dados sobre a localidade, informações acerca decomidas e bebidas regionais etc.; portanto, o informante sevolta para as questões culturais locais e a “forma linguística”parece ficar em segundo plano.

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Para a boa aplicação do questionário, um pontoconsiderado foi o estilo coloquial da linguagem a seradotado pelo documentador, a fim de proporcionar umambiente informal, proporcionando, assim, uma relação deconfiança entre o documentador e o informante. Sobre esseponto, Samarin (1967) lembra que tão importante quanto odomínio teórico que o pesquisador deve ter é de fundamentalimportância sua habilidade e sensibilidade; para isso, éindispensável o conhecimento da cultura local e da relaçãoque se formará, ainda que efêmera, entre entrevistador eentrevistado.

Para travar o tão necessário contato humano, Martín(1972) apresenta algumas regras, mas a que consideramosa principal é que o investigador deve ir a campo disposto amodificar seu padrão cultural e incorporar temporariamentea cultura da região e mesmo do informante; caso contrário,poderá ser gerada uma situação de desconforto,desconfiança e distanciamento, o que acarretará em reservae falta de colaboração por parte do informante.

Outro ponto levado em conta foi se o informanteenquadrava-se nos requisitos previstos na metodologia doprojeto (faixa etária, se era natural da localidade, bem comoseus pais, se tinha boa dentição etc.) e se ele se dispunha aser entrevistado. É importante lembrar que o questionário élongo e o informante deve ser previamente informado quedeverá dispor de, no mínimo, duas horas de trabalho; assim,evita-se de iniciar a entrevista e ter de interrompê-la algumtempo depois porque o informante não sabia que iriademorar tanto. No caso de uma resposta negativa, oprocedimento era buscar outro informante que preenchesseos requisitos exigidos.

Antes da realização da pesquisa propriamente dita,fizemos primeiro uma testagem do questionário, ou seja,realizamos alguns inquéritos experimentais. Foi o momentoem que pudemos observar, ouvidas as gravações, o queestava dentro do previsto na metodologia e quais eram osproblemas na aplicação do questionário. Feito esseprocedimento, a equipe estava preparada para ir a campo.

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O inquéritoO inquéritoO inquéritoO inquéritoO inquérito

Uma das primeiras atividades do projeto foi adiscussão sobre a seleção dos pontos de inquérito.Inicialmente escolhemos 23 pontos, de forma aleatória, como objetivo de ser o mais abrangente, isto é, atingir a maiorárea possível do Estado. Os pontos escolhidos foram: AltaFloresta, Alto Araguaia, Alto Garças, Aripuanã, Barra doBugres, Barra do Garças, Cáceres, Canabrava, Comodoro,Cuiabá, Diamantino, Juruena, Lucas do Rio Verde, NovaXavantina, Paranatinga, Porto dos Gaúchos, Rondonópolis,São Félix do Araguaia, São José do Xingu, Sinop, Tangaráda Serra, Terra Nova do Norte e Vila Bela da SantíssimaTrindade. Numa revisão feita sobre essa primeira seleção, aequipe resolveu adotar a mesma meto dologia do AtlasLinguístico do Brasil, bem como de outros já concluídos ouem andamento. Dessa forma, o critério adotado para aseleção dos informantes é que a cidade tivesse acima de 60anos de existência. Isso se justifica levando em conta o fatorgeração, ou seja, num período de 60 anos, temos duasgerações: os pais e os filhos nascidos na região. É um critérioque dá confiabilidade aos dados linguísticos que se querpesquisar. Isso posto, alguns pontos foram excluídos, poisalguns deles tinham em média 30 anos de existência. Assim,foram excluídos os municípios de Alta Floresta, Alto Garças,Canabrava, Comodoro, Juruena, Lucas do Rio Verde, Portodos Gaúchos, São José do Xingu, Sinop, Tangará da Serrae Terra Nova do Norte.

No segundo momento de seleção dos pontos deinquérito, estudamos um pouco da história dos 141municípios de Mato Grosso para sabermos quais foramcriados há mais de 60 anos. Dos contemplados nesse critério,selecionamos 16 pontos de inquérito, a saber: Alto Garças,Aripuanã, Barra do Bugres, Barra do Garças, Cáceres,Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Diamantino, Itiquira,Paranatinga, Poconé, Rondonópolis, Rosário Oeste, São Félixdo Araguaia, Tesouro, Vila Bela da Santíssima Trindade.

Depois de uma discussão com a Profa. Dra.Aparecida Isquerdo Negri, uma das coordenadoras do AtlasLinguístico de Mato Grosso do Sul e participante do projetoAtlas Linguístico do Brasil - ALIB, resolvemos fazer um

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redimensionamento dos pontos de inquérito. Tal alteraçãodeve-se ao fato de Antenor Nascentes (1958), um dosprecursores do primeiro atlas linguístico do Brasil, ao elencaros pontos de pesquisa, a partir de seu livro Bases para aBases para aBases para aBases para aBases para aelaboração do atlas linguístico do Brasil (1958, 1961)elaboração do atlas linguístico do Brasil (1958, 1961)elaboração do atlas linguístico do Brasil (1958, 1961)elaboração do atlas linguístico do Brasil (1958, 1961)elaboração do atlas linguístico do Brasil (1958, 1961),,,,,delimitou os pontos de inquérito de todos os Estados dafederação. Assim, muitos dos pontos do estado de MatoGrosso por ele selecionados são também objeto de pesquisado ALIB. Desse modo, preservando a metodologia de cadaprojeto, resolvemos manter alguns dos pontos já previstospor Nascentes, bem como de alguns que constam no ALIB.No novo redimensionamento, os pontos definidos ficaramassim, após a substituição dos municípios de Alto Garças eParanatinga: Alto Araguaia (NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT),Aripuanã (ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Barra do Bugres (ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Barrado Garças (ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Cáceres (NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Chapada dos Guimarães (ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Cuiabá(NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Diamantino (NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Itiquira (ALiMA (ALiMA (ALiMA (ALiMA (ALiMATTTTT), Poconé (NASCENTES/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Poxoréo (NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Rondonópolis(ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMAT)T)T)T)T), Rosário Oeste (NASCENTES/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), São Félixdo Araguaia (ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT), Tesouro (ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMAT)T)T)T)T) e Vila Belada Santíssima Trindade (NASCENTES/ALIB/ALiMAALiMAALiMAALiMAALiMATTTTT).

Resolvida essa questão, passamos à elaboração/adequação do questionário. Dizemos elaboração/adequação porque tomamos como referência oQuestionário do Atlas Linguístico do Brasil - ALIB, com adevida autorização do Comitê Nacional, sob a coordenaçãoda Profa. Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso. A eleacrescentamos outras perguntas relacionadas a questõeslocais e rurais. O questionário é composto de três partes:um questionário fonético-fonológico (QFF), com 149perguntas; um morfossintático (QMS), com 46 perguntas;um semântico-lexical (QSL), com 285 perguntas, e 6perguntas para uma parte denominada de Discurso Livre,totalizando 486 perguntas. Além dessas perguntas, foramelaboradas também algumas fichas, em que é possívelobtermos dados significativos da localidade do inquérito,bem como do informante.

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Os informantes e a preparação da entrevistaOs informantes e a preparação da entrevistaOs informantes e a preparação da entrevistaOs informantes e a preparação da entrevistaOs informantes e a preparação da entrevista

Ir a campo para realizar uma pesquisa não é umatarefa fácil. Dizemos isso porque, quando se trata de umapesquisa de campo, as situações peculiares são sempreconstitutivas do evento. As situações peculiares com as quaiso documentador pode deparar-se podem ser: o informantepode manifestar-se arredio e não querer dar a entrevista,comportamentos grupais distintos dos do grupo em quevivemos, desconfiança por parte do informante, entre outras.São situações que colocam o entrevistador como umelemento estranho ao informante. Isso causa desconfiançae até mesmo a não aceitação em participar da entrevista,mas, como já dito acima, esses problemas podem sercontornados com a habilidade e perícia do inquiridor bemtreinado.

Para que o contato com o informante não acontecessecomo a manifestação de uma atividade sem planejamento,fez-se necessário que alguns procedimentos fossem adotadospara a condução dos trabalhos com esmero. Numa pesquisade campo, o documentador necessita de algunsequipamentos e materiais para a boa condução dostrabalhos. Um equipamento imprescindível é o gravador. Nasdécadas de 1980 e 1990, muito se usou o gravador de fita.No início do século XXI, o substituto do gravador de fita foi oMini Disk – MD. E, atualmente, o que está muito em uso é ogravador digital. É o que estamos usando no projeto. Assim,alguns cuidados foram tomados. Fizemos a testagem dosgravadores, verificando se todos estavam com pilhascarregadas e, de preferência, pilhas recarregáveis. Na ida acampo foi necessário levar também alguns jogos de pilhas,bem como um carregador de pilhas.

Outro cuidado que tivemos foi o de levar osequipamentos dentro de uma sacola térmica para protegê-lo da umidade e do calor. A ida a campo requer que selevem blocos para anotações, canetas e lapiseiras. Levandoem conta a questão pessoal de cada documentador, paramelhor condução dos trabalhos, fez-se necessário o uso deroupa e calçado confortáveis e adequados ao lugar e aoclima. Em decorrência dos fatores climáticos, foi necessáriotambém portar guarda-chuva ou capa de chuva. Além disso,

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para atender as necessidades pessoais, foi de sumaimportância portar vasilha com água potável, biscoito, frutas,canivete, papel higiênico, alguns medicamentos para dorde cabeça, indisposição estomacal ou intestinal e tambémrepelente.

Por fim, um outro procedimento importante foi o decontar com o auxílio de pessoas da comunidade estudada,para atuar como facilitadoras do contato entre odocumentador e o informante. Lembremos que nos trabalhosde JØrgen Rischel com os Mla?bri? (apud KIBRIK, 1972)ele utiliza um informante auxiliar, pois os informantes,principalmente os mais velhos, às vezes precisam de um fatoque os faça lembrar os nomes das coisas. Embora nossapesquisa seja diferente da de Rischel, convém considerar apossibilidade de alguma ajuda, até para o informante sesentir mais confortável com a presença de alguém maisíntimo seu.

A abordagem do informante pelo documentadorA abordagem do informante pelo documentadorA abordagem do informante pelo documentadorA abordagem do informante pelo documentadorA abordagem do informante pelo documentador

Abordar uma pessoa não é um ato tão simplesquanto parece. Numa situação de mais informalidade, como,por exemplo, quando transitamos por uma rua e queremosuma informação, usamos de alguns artifícios para abordara pessoa. Não é simplesmente perguntar o que se quer saber.Em se tratando de um inquérito, os procedimentos são maisrigorosos. Dessa maneira, é importante utilizar um discursoinformal e procurar um local adequado à entrevista, paraevitar interrupções e garantir um espaço de tranquilidade edescontração.

Mas para chegar até o informante de forma aleatórianão é tarefa fácil. Para resolvermos essa questão, a saídafoi contatar pessoas da localidade para encontrar osinformantes dentro do perfil estabelecido. Um procedimentoque foi muito produtivo foi contatar com pessoas com maiorrelacionamento na cidade, como, por exemplo, professores,secretário de educação, moradores antigos da cidade oualgum morador que pudesse servir de interlocutor. Assim,ao estabelecer o contato com uma pessoa conhecida dacidade, ela, por sua vez, desempenhou um papel facilitador:contatava antecipadamente com as pessoas que se

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enquadravam no perfil estabelecido. Ao chegarmos àcomunidade, essa pessoa já nos colocava em contato comprováveis informantes.

Uma atitude básica e elementar que adotamos foi ade sermos atenciosos para com o informante. Nuncadesconsideramos que o informante tem uma história de vidae conhecimento de mundo totalmente diferentes dodocumentador. Assim, durante a entrevista, estivemos atentosa questões que pudessem ser contrárias à ideologia, aosprincípios religiosos ou tabus do informante. Se isso viesse aacontecer, reservamos um espaço de tempo no final daentrevista para conversar sobre a questão que esteve emdiscussão.

Quando o informante era abordado e concordavaem conceder a entrevista, tivemos uma conversa informalcom ele, para depois falar sobre o objetivo da pesquisa.Não nos referíamos à pesquisa como “estudo de linguagem”.A conversa sempre foi encaminhada no sentido de não “sabercomo as pessoas falam”, mas “como um estudo sobre osnomes das coisas do lugar, dados sobre a localidade,informações acerca de comidas e bebidas regionais”.

Ao entrevistá-lo, procuramos sempre passar umaimagem de tranquilidade, fazendo com que a impaciênciaou a pressa nunca aflorassem. Uma outra atitude relevantefoi a de evitar comentários ou brincadeiras que pudessemmagoar o entrevistado, além de estar sempre atento à posturado informante como impaciência, cansaço, irritação etc.

É importante lembrar que o inquiridor deve estarbastante familiarizado com o questionário, pois, às vezes,ele deve descrever o objeto, dar detalhes de suascaracterísticas, enfim, deve conhecer todos os itens que iráquestionar.

O material coletadoO material coletadoO material coletadoO material coletadoO material coletado

Após a realização de cada entrevista, odocumentador ainda não pode considerar a entrevistaterminada. Após deixarmos a casa do entrevistado, inclusivetendo tirado as fotos, que fazem parte da pesquisadialetológica, adotávamos o procedimento de ouvir agravação feita, verificar a boa qualidade do som e conferir

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o preenchimento das fichas dos informantes e daslocalidades. Foi um cuidado que tivemos, haja vista que sepor ventura algum problema tivesse ocorrido com agravação, estando ainda o documentador na localidade doentrevistado, era possível saná-lo. Outro cuidado que tivemosfoi com o material coletado e seu armazenamento, tendoem vista que as entrevistas foram feitas em gravador digital.Nesse sentido, cabe lembrar que além das entrevistas seremarmazenadas em um computador, foi necessário tambémque elas fossem gravadas em CD ou DVD, com as devidasidentificações.

Agora, de posse do material empírico, estamos nafase de audição e transcrição dos dados, com a finalidadeda criação de um banco de dados geolinguísticos e apreparação do material para a edição de um atlas linguístico.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Com esse pequeno texto, esperamos ter sugeridoalguns pontos importantes que um pesquisador deveconsiderar antes de ir a campo, além de, mais uma vez,reforçar a questão da seriedade e do rigor científico comque se devem realizar as pesquisas linguísticas.

Lembramos aqui que os trabalhos de confecção deatlas linguísticos são considerados, por muitos, uma pesquisaultrapassada, já que em 1900 Gilliéron já lançava o AtlasLinguístico da França – ALF; no entanto, justificamos que seo trabalho de confecção de atlas no Brasil ainda não foirealizado é porque está atrasado, e não dispensado.Pretendemos, desta forma, organizar um material que estáfazendo falta em nosso país e, assim, fornecer dados paravários ramos da Linguística.

As considerações aqui feitas são o resultado daparticipação dos integrantes do projeto em três workshopssobre técnicas de preparação de inquiridores para o AtlasLinguístico do Brasil, coordenado pela professora SuzanaAlice Marcelino Cardoso, da Universidade Federal da Bahia,e discussões feitas pela equipe para melhor condução dostrabalhos. Esse texto foi uma tentativa de apresentar umasíntese de alguns procedimentos metodológicos para amelhor condução de trabalhos de natureza dialetológica e

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geolinguística. Evidentemente que as questões aquiabordadas não se esgotam, tendo em vista que numaatividade de pesquisa nada se apresenta pronto e acabado.

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas CARUSO, Pedro. Metodologia da pesquisa dialetológica. In:AGUILERA, Vanderci de Andrade. (Org.). A geolinguísticano Brasil: caminhos e perspectivas. Londrina: Ed. UEL, 1998.p. 371-389.COMITÊ NACIONAL DO ALiB. Atlas linguístico do Brasil.Questionários. Londrina: Ed. UEL, 1999.KIBRIK, A. E. The methodology of field investigation inlinguistic. Paris: Mounton, 1977.LABOV, Wiliam. Modelos sociolinguísticos. Tradução deMarcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2008.MARTÍN, Eusébia. Que és la investigación linguística. España:Ediciones Colégio de Espana, 1972.SAMARIN, Willian. Field linguistic: a guide to linguistic fieldwork. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967.TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo:Ática, 1997.

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Roziner Guimarães1

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: Este artigo tem por objetivo discutir o perfil doprofessor e do aluno no ensino superior. Para tanto, asdiscussões são efetivadas a partir de experiências pessoaisocorridas em sala de aula. Essas experiências revelam que amaioria dos alunos, no ensino superior, desconhece seu papelde educando e o professor, seu papel de educador, o queacaba gerando insatisfações, angústia e, consequentemente,no caso do professor, vontade de desistir da profissão; nocaso do aluno, apatia e pseudoaprendizagem.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: ensino superior; perfil do professor; perfildo aluno.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This paper aims to discuss the profile of the teacherand student in Higher Education. Thus, the discussions arecarried out through personal experience occurred inclassroom. These experiments show that the majority ofstudents and teachers in Higher Education do not know theirroles as students and as educators, thereby generatingdissatisfaction and distress. It may lead teachers to have adesire to quit the profession and students to show apathy orhave pseudo-learning.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: higher education; teacher´s profile; student´sprofile.

1 Professora das Faculdades Unidas do Vale do Araguaia, em Barra do Garças-MT.Mestre em Educação. E-mail: [email protected]

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Hoje, domingo, estou aqui, sentada no computadorpreparando minhas aulas para a próxima semana. Leio umtexto. Leio outro. Procuro eslaides, músicas, algo diferenteque me possibilite tornar mais claro e mais significativo parameus alunos os conteúdos que devo ministrar. De repente,dou de cara com o texto “Só de sacanagem”, escrito porElisa Lucinda e lido por Ana Carolina em um de seus shows.O texto começa assim: “Meu coração está aos pulos!Quantas vezes minha esperança será posta à prova? Porquantas provas terá ela que passar?” Embora conhecessejá o texto, aquelas perguntas, naquele momento, ganharamum novo tom e me fisgaram como se eu fosse um peixedesavisado caindo no anzol. Nem percebi mais o texto deLucinda. Fiquei imaginando minhas salas de aula. E meucoração ficou aos pulos. Lembrei-me de que, apesar dapaixão que sempre senti pela sala de aula, senti desejo dedesistir de ser professora. Culpa do texto de Lucinda? Não.Culpa, se é que existe um culpado, ou melhor, se é que sepode falar em culpa pelo não prazer de alguém, a culpaera de minha insensatez. Sim, repito: culpa de minhainsensatez.

Parei de preparar as aulas e comecei a redigir esteartigo. E, mesmo que pareça estranho à primeira vista, meuobjetivo é trazer à tona, já que estou me sentindo um peixefisgado, palavras como insensatez, desejo e paixão. Por ora,não sei bem quem é o pescador: se eu ou se você, que, pordesaviso, poderá ser fisgado também. Mas isso, nestemomento, pouco importa. O que verdadeiramente importaé fazer caber em palavras o sentimento que vem aflorandoem mim há algum tempo e que talvez só agora, ao medeparar novamente com o texto de Lucinda, eu o tenhapercebido em sua inteireza. Preciso falar de minha agonia...Preciso falar de minha esperança... E essa agoniaesperançosa me leva a pensar que ela não é só minha.Penso: ela é “nossa”. Minha e sua. Mas não pense, carocolega professor, que escolhi você como meu leitor. Demaneira nenhuma. Entretanto, sei bem esse artigo tambémcairá em suas mãos e aí você poderá buscar, junto comigo,alternativas para essa agonia. Na verdade, se eu pudesse

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escolher, meus leitores seriam os alunos. Delongo, pois,porque objetivo fisgá-los. E nada mais funcionaria como isca,sem anzol, do que um relato recheado de conscientesubjetividade. Nunca escrevo à toa.

Talvez eu não saiba, por isso, como fazer caber empalavras o que eu aqui preciso escrever, afinal, este textodeveria ser puramente científico, mas estou certa de queessas três palavrinhas: insensatez, esperança e desejo(paixão), embora traduzam simplesmente emoção, servemde emblema para meu discurso. Não tenho dúvidas do queirei escrever, afinal, tenho estudado o assunto e o vividodiariamente. Todavia, como tenho consciência de que, emtodo relato, o redator pode ser traído pela sua subjetividade,pode ser que algumas das discussões aqui feitas sejamcolocadas à prova. Entretanto, se essas ideias servirem, pelomenos, para abrir uma discussão acerca do tema, terá validoo risco. É então como um peixe fisgado que adentro as águasturvas da minha insensatez.

A INSENSAA INSENSAA INSENSAA INSENSAA INSENSATEZ - retrospectiva em busca de respostasTEZ - retrospectiva em busca de respostasTEZ - retrospectiva em busca de respostasTEZ - retrospectiva em busca de respostasTEZ - retrospectiva em busca de respostas

Houve um tempo em que eu, professora especialista,não conseguia entender o porquê de alguns alunos dizerem:“Português é uma matéria chata” ou então “OdeioPortuguês”. Procurei respostas para essas afirmações quetanto me inquietavam. Li, refleti, escrevi. Não satisfeita, saípara o mestrado em 2002 e voltei minha pesquisa para ocotidiano de aulas de Português no cenário de quatro salasde aulas do ensino médio regular em Barra do Garças. Emminha pesquisa, constatei que o aluno realmente tinha razãoem dizer que “Português é uma matéria chata”, afinal, se otexto deve ser o centro do ensino de Língua Portuguesa, comopreconiza a nova crítica ao ensino da língua materna, e se amaioria dos professores de português ainda insiste emtrabalhar a língua de forma descontextualizada, como quererque o aluno passe a gostar dessa disciplina? Realmente“Português é uma matéria chata”, porque é “chato” debruçar-se sobre paradigmas verbais ou outros paradigmas fora demoda.

Agora, depois de sete anos do término do mestrado,encontrei-me, além de inquieta, com vontade de desistir da

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sala de aula. Não porque alguns alunos continuem comaquele antigo discurso, isso eu sei como sanar. Mas porqueme deparo com alunos que, apesar de perceberem as suasdificuldades com a leitura e a escrita, não leem nem os textosque o professor leva para a sala de aula. Não reconhecemseu papel de sujeito da aprendizagem e pensam que, numpasse de mágica, o professor será capaz de “abrir a cabeça”deles e colocar ali dentro o conteúdo. Demonstram totalfalta de entusiasmo para com os estudos. Totaldescompromisso com a educação formal e informal. Oprofessor Moisés José Bueno, em Diálogos e conflitos:professor-aluno no ensino superior, discute que existem algunsconflitos para que o diálogo entre professores e alunos noensino superior possa ser efetivado. Dentre eles, ressaltouma questão que entendo fundamental: a falta deembasamento teórico e a não vontade de aprender dosalunos. Diz ele:

o professor imagina aprofundar umdeterminado tema. Ao tentar fazer essaperipécia ele se esbarra com pelo me-nos três situações: 1) Os alunos nãoestão embasados o suficiente. Então emvez de aprofundamento, o professortem de iniciar dando conceitos bási-cos, os quais deveriam ter sido lapida-dos no ensino médio, mas ali tambémnão foi possível porque a educaçãofundamental e básica foi ineficaz; 2)Os alunos não gostam, não querem,não sabem e não conseguem ler. Co-meça com a falta de livro, vai para afalta de tempo, passa pela dificuldadede compreender a leitura e ajunta-sena ojeriza à leitura. Não há ensino su-perior que consiga deslanchar-se sembom embasamento teórico do qual aleitura é um dos pilares essenciais; 3)O salunos não querem aprender. (http://br.monografias.com/trabalhos908/dialogos-e-conflitos/dialogos-e-conflitos.shtml)

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Essa ausência de embasamento teórico e de desejode aprender faz com que surja outra situação conflitante,que é a questão do diálogo. Sobre esse ponto, Buenoassevera que:

O professor tem intenção de promo-ver o diálogo. Entretanto, as concep-ções e experiências de diálogo pare-cem ser tão diferentes entre alunos eprofessores que parecem ser idéias in-conciliáveis. O professor pode até teruma noção de diálogo como fala, es-cuta e busca comum de soluções. Oaluno pode estar querendo uma espé-cie de diálogo onde ele seja ouvido,mas de uma forma que as coisas lhesejam bem mais favoráveis e cômodas.O diálogo do acadêmico ainda estámuito imbuído da “lei de Gérson”. Nãoque a idéia de diálogo do professortambém seja sempre democrática. Mas,em geral, está ficando difícil implantaralgum tipo de diálogo em sala de aula.O professor tem que ter muita habili-dade porque ou ele parte para oautoritarismo ou ele abraça o laxismoacadêmico, onde prevalecem as exi-gências acadêmicas de facilidades ecomodidades. Ficar no meio não estánada fácil. (http://br.monografias.com/trabalhos908/dialogos-e-conflitos/dialogos-e-conflitos.shtml).

Como se vê, essa preocupação com o aluno noensino superior não é só minha; alguns pesquisadores, natentativa de orientar a ação do docente para melhorar aqualidade do processo educacional, têm investigado a razãodo desinteresse dos alunos. Diz Costa, no resumo de suadissertação de mestrado, intitulada As concepções dos alunosdo ensino superior sobre o processo de ensino eaprendizagem:

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O interesse por pesquisar o aluno sur-giu da constatação de que alguns de-notavam uma postura aparentementepassiva frente à sua formação intelec-tual e profissional e que não lhes pos-sibilitava uma concepção de aprendi-zagem diferente e capaz de oportunizarmelhores relações entre o jáconhecido e o dado a conhecer. (http://www.biblioteca.pucpr.br/tede//t d e _ b u s c a /arquivo.php?codArquivo=365).

Como se percebe, diferente são os desafiosenfrentados pelos professores no ensino superior e, ao ladodesses desafios, existem outros, por exemplo: muitos talveznem saibam o valor de um sorriso... Palavras como “muitoobrigado”, “por favor” ou “dá licença” não fazem parte dodicionário de muitos deles. Ademais, há um total desrespeitopelo professor, o qual, para alguns, não passa de umfuncionário pago para lhe “dar conteúdos e boa nota”. Pelomenos é o que me leva a pensar quando ouço frases assim:“Professora, eu pago caro por este curso e tiro uma notadessa?”, “Professora, não posso ficar de dependência, vocêtem que me ajudar”. Todavia, em sala de aula, eles poucoaparecem e, quando estão presentes, distraem-se comconversas com os colegas, copiam os trabalhos e entregamcom a “cara mais deslavada” para o professor “corrigir”.Que consciência esses alunos têm de educação? Esse é umponto que, em minhas buscas, não consigo parar de pensar.Mas há outros.

Há poucos dias, antes da prova, um aluno meperguntou: “Professora, você não vai fazer um resumo pragente estudar pra prova?” Meu Deus! Resumos? Para alunosdo ensino superior? Que educação é esta que estamostrabalhando em sala de aula? Que noção de faculdadetem esses alunos? Isso me decepciona. Desilude-me. Deixa-me triste. Ensimesmada... Com vontade de desistir da salade aula, que sempre me encantou. Entretanto, apesar dadecepção, tenho procurado estratégias que viabilizem umaaprendizagem significativa. Tento despertar neles o gostopelo estudo. Levo piadas, crônicas, poemas... Isto é, sirvo-me também de textos literários para ver se meu aluno se

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interessa pelas práticas de leitura e escrita, afinal, comoafirma Morin (2000, p.54):

Cada qual contém em si galáxias desonhos e de fantasmas, impulsos dedesejos e amores insatisfeitos, abismosde desgraças, imensidões de indiferen-ça gélida, queimações de astro emfogo, acessos de ódio, desregramentos,lampejos de lucidez, tormentas demen-tes [...].

Em outras palavras, o texto literário talvez evoque noaluno o desejo de ser criador ou criatura do que lê. Mas,por mais que eu busque, para alguns alunos, tem sido emvão essas tentativas. O texto grita por eles, clama, reclamae eles ali inertes, sem perceber as malícias, a sedução quedo texto emana. Raros são os que verdadeiramente sedebruçam sobre ele e conseguem “fazer amor com aspalavras”. E aí vai nascendo em mim um desassossego, umaangústia sem fim ... que acabou culminando em insensatez2.Abandonar a sala de aula era minha única vontade. Eu, quesempre busquei novos rumos, novos horizontes, tentandouma aprendizagem mais significativa, via-me sem vontadealguma de estar ali.

Esses e outros motivos me tornaram insensata aponto de eu querer desistir da minha profissão. Mas comoabandonar a sala de aula? E meu encantamento por ela?Quando eu percebi minha insensatez, eu me perguntei:“O que fazer?” Não obtive resposta naquele momento; aúnica coisa que eu percebia era meu desencantamento.Mas, assim como “o amor pode nascer de uma simplesmetáfora” (KUNDERA, 1985, p.16), eu esperava que essedesencantamento um dia pudesse se dissipar...

A ESPERANÇA - vivendo o presente em busca deA ESPERANÇA - vivendo o presente em busca deA ESPERANÇA - vivendo o presente em busca deA ESPERANÇA - vivendo o presente em busca deA ESPERANÇA - vivendo o presente em busca derespostasrespostasrespostasrespostasrespostas

E, agora, ao me deparar com o texto de Lucinda, sóde sacanagem decidi escrever este artigo. Só para sacanearcom esses alunos descompromissados e, quiçá, mostrar a

2 “Insensatez” deve ser lida aqui como sinônimo de delírio, alucinação, loucura.

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eles que é preciso e urgente adquirir o perfil de acadêmicos,do contrário, eles não terão, no futuro, sobre o que conversarnem do que rir. Preciso mostrar que meu desejo “de ensinar”não será apagado pelo descompromisso deles em aprender.Só de sacanagem vou corrigir com mais afinco os textos eprovas deles. Não para atribuir uma nota baixa, mas paraque eles percebam que tenho compromisso com a educaçãoe que eles precisam, de fato, assumirem-se como alunosque são. Que não me deixo abater pelo desrespeito deles.Nem me quedo na indiferença com que eles veem a vidaprofissional que os aguarda fora dos muros da faculdade.

Só de sacanagem, meu olhar, contrastando com oolhar indiferente de alguns deles, ganhará um novo brilho.Só de sacanagem, ele poderá até dizer que não entendeu orecado ou que não está nem aí para mim. Só de sacanagem,vou rir de sua ignorância. Foi mesmo só de sacanagem queresolvi escrever este texto, porque, como bem escreveuLucinda, “com o tempo a gente consegue ser livre, ético e oescambau”. Se eles ainda não aprenderam, deverãoaprender.

Alguns alunos (ou mesmo meus colegas de profissão)podem até dizer: “É inútil, esse tipo de aluno é assim mesmo:acha que pagou passou. Ou que, se está pagando, oprofessor tem obrigação de dar a ele uma nota alta”. Denovo, o texto de Lucinda ecoa em meus ouvidos: “todo omundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veiode Portugal”. Será? Assim como ela, “Eu direi: Não admito,minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? IMORTAL!Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gentequiser, vai dar para mudar o final!”.

Por isso, aqui estou eu, em pleno domingo de sol,preparando aulas para a próxima semana. Minha paixãopela educação é maior do que o olhar vazio daquele alunono canto da sala. Minha voz é mais eufônica do que aalgazarra daquele grupinho de alunos que teima em nãoperceber que está prejudicando a si mesmo e aos colegasconversando em alto e mau som no instante em que estouexplicando. Meu compromisso há de se contrastar com odescompromisso deles.

Se, por um instante, eu quis desistir da sala de aula,foi porque foquei minha atenção apenas na imagem

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daqueles pobres alunos: Vi, num canto da sala, um deles deolhar agressivo olhando para mim como se olhasse paraum inimigo. Numa outra sala, um grupo depseudoadolescentes que nem ouvia o que eu dizia.Conversava tão alto e embora eu cruzasse os braços eolhasse firme para eles, continuava indiferente ao meu olharangustiado. E o que eles diziam nada tinha a ver com oconteúdo daquela aula. Falavam todos ao mesmo tempo.

Perdi a esperança porque eu só via eu, em plenodomingo de sol, presa à tela de um computador com livrose mais livros espalhados pela mesa, nos quais, um por um,eu ia buscando novos textos, que me possibilitassem não sóuma aula mais prazerosa, mas também que minimizassemas dificuldades de meus alunos com os conteúdos, com aleitura e com escrita. E o que meu aluno estava fazendo?Quando eu, depois de uma semana, perguntava: “Vocêsleram o texto?”. Meia dúzia deles afirmava que sim. Orestante sempre arrumava uma desculpa. Um deles me disse:“Professora, não vim na última aula e não sabia que era praler esse texto”. Como se isso justificasse a não leitura. Seráque ele não sabe que aluno, quando falta à aula, deverecorrer ao colega e pegar com ele o que foi ministradonaquela aula e colocar assim em dia suas atividades? Seráque o professor pode ter esse total descompromisso com asala de aula?

Um outro disse: “Professora, num tive tempo” econtinuou se desculpando com afirmações vazias de quetrabalha o dia todo e “patati patatá”. E eu, em tom debrincadeira, mas tentando fazê-lo compreender que tempoa gente arruma, perguntei: “O que você faz da meia noiteàs seis?”. Ele, simplesmente, sem querer entender o que eudizia, respondeu: “Durmo!” E eu, insistente, mas educada,retruquei: “Então, durma menos e estude mais. Tire um tempopara estudar. Nós fazemos nosso tempo quando sentimosque temos necessidade dele”.

Será que esses alunos não sabem que:

O professor tem a obrigação ética eprofissional (para isso inclusive é for-mado, contratado e constituído comoprofessor) de ensinar aos alunos, o quesupõe maior convívio com o saber, com

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a razão. A ele cabe a produção e aseleção do saber existente em funçãodos problemas que a prática [...] apre-senta, a definição dos conceitos comos quais irá trabalhar, dos métodos deinvestigação e de ensino, dos progra-mas, da seqüência dos conteúdos, doprocesso de avaliação.O aluno, por sua vez, é alguém queestá iniciando seus passos nos cami-nhos do saber. Embora não seja umneófito por completo, no nível em quea investigação e a reflexão se impõemna universidade, ele não deixa de serum iniciante, alguém que precisa deorientação firme e segura do ponto devista da razão. Essa situação confereao aluno o direito a um ensino real-mente universitário, a uma aula dequalidade, a uma formação rigorosasob todos os pontos de vista e lhe im-põe o dever do estudo, da busca, dainterrogação; ao professor confere odireito e o dever do ensino. (COÊLHO,1999, p.89).

Meus olhos perderam o brilho também por isso,porque, por mais que eu tenha discutido com eles as funçõesdo professor e do aluno no ensino superior, parece que elesou não se dão conta dessa função que cabe a eles ousimplesmente não “estão nem aí” para isso. Continuamdormindo.

Nesse sentido, fazendo um jogo com as palavras, oque proponho é muito simples: Acordar! Se alguns alunosnão conseguem abrir os olhos sozinhos, cabe a nós,professores-educadores, e a todos os envolvidos com aeducação superior, uma tomada de atitude urgente. Ou elesacordam ou, vou ser bem radical, sejam expulsos da salade aula. O que não pode é meia dúzia de alunosdescompromissados comprometerem a aprendizagem detoda uma turma. Nem torrarem a paciência do professor játão desgastado, embora apaixonado, pelo esforço com queconduz sua profissão. Se um desses alunos for convidado ase retirar da sala, ou até mesmo, se for o caso, da faculdade,

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creio eu, os demais pensarão antes de agirem assim de formadescompromissada e desrespeitosa.

Minha esperança foi, sim, posta à prova e quasesucumbiu às atitudes de alguns alunos numa e noutra sala,mas eu acordei a tempo de perceber que eu deveria soltar oanzol que me fisgara e mergulhar mais fundo em busca decompanhia e de novos rumos. Foi o que fiz. Meu coraçãodeu pulos de alegria ao lembrar que a maioria de meusalunos tem um carinho todo especial por mim e eu por eles.Pulou de felicidade ao relembrar as diferentes vezes em queum ou outro aluno chegou para mim e disse: “Professora,volta pra nossa turma”; “Professora, você nunca mais vaidar aulas pra nós?!” ou então: “Professora, agora sim tôcompreendendo este conteúdo”.

Meu coração deu saltos de alegria incontida quandose lembrou ainda de duas circunstâncias que consideroespeciais. Primeira, do olhar de uma aluna, no final do anode 2006, ao dizer para mim: “Professora, obrigada por teracreditado em mim, por ter me incentivado a escrever. Eununca pensei que eu fosse capaz e hoje eu vejo o quantomeu texto melhorou”. Segunda, do beijo de uma aluna3,quando eu disse que os equívocos que ela cometera no textonão representavam quase nada diante do avanço que elaestava apresentando.

Minha esperança foi posta à prova, sim, mas nãosucumbiu! Quando me vi mergulhada neste novo rio cheiode peixes de todas as cores, nem olhei mais os anzóis quequase me fisgaram. Meus olhos agora visualizavam aimagem de outros alunos em outras salas de aula. E é,também, por esses alunos, que estou aqui preparando minhasaulas em pleno domingo de sol. Sei que não estou perdendomeu tempo. Pelo contrário, se não concordo com esse tipode “educação”, devo tomar algumas atitudes, afinal, nãosou peixe ornamental... Estou acostumada com corredeirase vazantes... Portanto, não será um anzolzinho à toa que metirará deste rio e nem tirará o gosto pelo nado. Nestemomento, já nasce em mim um desejo...

3 Já relatei esse fato no artigo “Ressignificação da leitura, do leitor e do texto nocontexto da sala de aula”, publicado pela Revista Norteamentos em Sinop, MT,2008.

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DESEJO – pensando o futuroDESEJO – pensando o futuroDESEJO – pensando o futuroDESEJO – pensando o futuroDESEJO – pensando o futuro

Não sei como as pessoas conseguem viver, trabalhar,sem estarem apaixonadas. Eu não consigo. Em qualquerdireção, é a paixão que me move. Preciso estarentusiasmada4 com o que faço, senão desisto. E, se éverdade, como Freud preconizou, que “o sujeito constrói oobjeto do seu amor”, preciso “construir” a sala de aula queeu desejo, incentivando os acadêmicos a adquirirem já umnovo perfil. E já estou providenciando isso. Uma de minhasatitudes é a escritura deste artigo. Desejo que meu alunoleia-o sem precisar que eu “force” a leitura, levando o textopara a sala de aula, mas, se for necessário, assim o farei. Aoutra, irei escrever uma palestra para o início do ano de2010: “O perfil do aluno universitário”. Quero receber osnovos alunos dialogando com eles sobre o papel deles nauniversidade.

Escrevi, no início deste artigo, que não estavaescrevendo para meus colegas, professores, mas tambémsei que eles, muitos deles, peixes como eu, lerão este texto eé, pois, para eles, este desejo: Sei bem que, sozinhos, onado se torna difícil: às vezes encontramos águas turbulentase é necessário ficar em cardume para conseguir atravessá-las; às vezes a fome é tanta que podemos nos enganar,peixe que somos, e nos deixar fisgar por um anzol de umpescador desajuizado. Às vezes encontramos peixes maiorese, se não ficarmos juntinhos, em cardume, corremos o riscode sermos devorados... Sei bem, caros colegas professores,os riscos que corremos, por isso, o meu desejo é que todosnós, juntos, possamos dizer “Chega!”.

Chega de aceitar trabalhos copiados ou de,simplesmente, permitir que o aluno o refaça. Plágio é crime.Permitir que o aluno refizesse o trabalho até pode parecerque é uma forma de educá-lo. Mas não o é. Talvez o sejapara alguns, mas não será para muitos. Segundo Werneck(1997, p.17), “a construção do saber, o aprender a aprendere o aprender a ser fazem parte de um processo onde oaluno é ativo, o professor é animador, a avaliação ocorreem processo e o cidadão é construído na vivência com4 A palavra entusiasmo tem origem grega: enthusiasmo (Em – dentro; Thusi – Deus;Asmo – ar dentro) e significa: “Sopro divino movimentando dentro de mim”. Éacreditar no sentido da possibilidade: fé é o que fundamenta, é o que tem funda-mento.

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liberdade e responsabilidade”. É necessário que o alunoperceba “o crime” que cometeu e seja “punido” por ele. Docontrário, continuaremos com nossa fábrica de alunos-papagaios que só sabem copiar o que outros fizeram. Eutenho dito aos meus alunos que, numa faculdade, o alunodeve ser “cricri”, isto é, crítico e criativo. Competência críticae criativa se cria, não pode ser vista como dom. Entretanto,como criar essas competências copiando textos de outros?

Afirma Werneck, em “Tornei-me pessoa” (1997,p.65), que “nessas sociedades de terceira onda5, onde acriatividade é mais necessária, a educação personalizadoraé a mais adequada, porque permite ao educador facilitar ocrescimento do aluno. Não mais são estabelecidos oscaminhos a serem percorridos, mas será o aluno que abriráas próprias estradas, construindo-as com a sua criatividade”.Como o aluno conseguirá abrir as próprias estradas se seaceita trabalhos copiados, “colas”; se se perdoa o desrespeitodele com os colegas e com os próprios professores? Seráque alguém que não conhece (ou não valoriza) palavrascomo ética, cidadania, dever será capaz de construir suaprópria estrada? Não estaríamos nós, professores, andandona contramão dessa estrada?

Para Werneck (1997, p.66), nessas sociedades deterceira onda, é necessário estabelecer parcerias. Diz ele:“o elemento personalizador entra em cheio nesse processo,porque estabelece a parceria maior entre educador eeducando, criando em sala de aula uma equipe em parceria,uma célula de produção”. Será possível estabelecer parceriasem sala de aula com um grupo de alunos arruaceiros,descompromissados? Será que ainda continuaremos vestindonossos uniformes de super heróis e cuidando desses alunoscomo se eles fossem apenas vítimas de uma sociedadedesumana e cruel? E nós, professores? Quem olhará paranossos dramas pessoais? Para as nossas noites em clarocorrigindo provas, elaborando aulas, estudando? Com isso,não estou afirmando que devemos maltratar alunos, ir para

5 Hamilton Werneck, no capítulo 14 – Reconstruindo o equilíbrio dos lados docérebro – enfatiza, retomando Alvin Toffler, que, para uma educação substancial, énecessário perceber em que paradigma a sociedade está organizada. Diz ele queuma sociedade de primeira onda está voltada para o ato de sobreviver – plantar,colher – trabalha para poder continuar viva. Uma sociedade de segunda onda é ado fazer, das fábricas, da transformação, onde perpetua o paradigma mecanicista-dominador. A de terceira onda é própria da sociedade do lazer, da computação,onde os processos mecânicos são executados por robôs, cabendo ao ser humano acriatividade.

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a sala de aula com aquele olhar carregado, rancoroso. Pelocontrário, mas é preciso lembrar que amar também exigecrítica. Perdoar não significa dizer “eu perdoo”; o papel doeducador não é o de um deus. Não temos de perdoar.Podemos compreender sim, mas aceitar os transtornos quevim discutindo é contribuir, a meu ver, para maioresirregularidades vida afora.

Nessa perspectiva, entendo que “bronca” tambémnão resolve a questão. Portanto, chega de “dar bronca”! Àsvezes passamos toda uma aula pedindo silêncio e nada! Obarulho, a algazarra, o alarido sem sentido continua. Pensonaquele aluno, peixe como nós, querendo nadar e nãoconseguindo porque encontra um pescador engraçadinhoque não sabe (ou não se importa) que, em época depiracema, não se pode pescar e, ainda assim, fica alijogando o anzol, tentando iscar o peixinho desavisado coma piadinha fora de hora, com os casos do fim de semana oucom um pente e uma fitinha roxa para “arrumar” o cabeloda colega ou, ainda, com um gloss e um espelho parachamar a atenção para si. Sejamos “policiais” firmes: Querpescar? Que pesque na época certa! E que não jogue arede a torto e a direito.

Chega de ler textos com os alunos em sala de aula!A aula deve ser preparada em casa e nós a preparamos. Senós cumprimos nosso papel, por que eles não cumprem odeles? É certo que, como afirma Perrenoud, numa sociedadeem crise, a educação é um exercício de “equilibrista”, masnão podemos nos colocar em corda tão bamba e muitomenos nos fazer de missionários e “catequizar” os alunos.Portanto, chega também de dar “resumos”, “questionários”para os alunos estudarem para a prova. Resumir e interrogaro texto é papel deles. Não nosso! Nós já fizemos isso quandopreparamos as nossas aulas. Portanto, passar nossos eslaidespara os alunos é passar o resumo de todos os textos quetivemos de ler para fazer tais eslaides. Esclarece May (1999,p.101) que “um modo de defender-se contra os abusos dealguém é não realizar coisa alguma de que a outra pessoaconsiga apossar-se”. Precisamos criar, “forçar”, se for o caso,situações que facilitem verdadeiras aprendizagens, tomadasde consciência, construção de valores, de uma identidademoral e cívica (PERRENOUD, 2000, p.142).

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Chega de “levar desaforo pra casa”! Aluno “semeducação”, desrespeitoso deve ser punido. E, para isso,devemos falar com ele sobre a falta de respeito que elecometeu e, se não resolver, encaminhá-lo para a autoridadecompetente. Nunca “bater boca” com ele, mas jamais admitiro desrespeito, porque, de acordo com Werneck (1997, p.76),“a escola não é só um lugar para se ensinar, mas, sobretudo,para se educar, para se socializar a pessoa”, afinal,

[...] as escolas tem a necessidade deestabelecer algumas normas de convi-vência entre seus membros, sejam edu-cadores ou educandos. A isto podemoschamar de limites, ou seja, espaços fí-sicos e morais de dispersão das pesso-as enquanto participantes de um con-junto humano. A personalização nãosignifica fazer o que o aluno deseja,quando deseja, mas fazer quando ocoletivo permite e saber conjugar seusinteresses com os interesses comuns.(WERNECK, 1997, p.28).

E se existe a necessidade de se criar algumas normasde convivência entre educador e educando, é porque sãoessas normas que possibilitarão “construir a liberdade comresponsabilidade”. Entretanto, é necessário perceber que “éa formação para a cidadania que imprime no educando amarca de um ser consciente, participativo e muito menosvulnerável no século futuro, onde em cada espaço menorde tempo ele será levado a tomar decisões vitais” (1997,p.29).

Nesse sentido, é preciso perceber também que umaluno que não tem um perfil de universitário e que não querconstruí-lo prejudica o trabalho da equipe e, em sendo assim,é preciso que ele perceba a necessidade de respeitar o bemcomum. E isso se chama normalização, e não“domesticação”, como pode parecer.

Educar é comprometer-se com o educando,sobretudo com aqueles que desejam aprender,proporcionando todas as oportunidades para aaprendizagem e para a dominação de situações cada vezmais complexas. Educar não se reduz, como afirma Werneck

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(1997, p.20), a “dar show de sabedoria ante as platéias.Ser personalizador é considerar a pessoa de quem se educa,tratá-la como gente, com deveres e direitos [...]”. Portanto,chega de “doação” de conhecimento, chega de concessões,chega de tolerância. Como bem escreveu Morin (2000, p.102), “a tolerância vale para as ideias, não para os insultos,agressões ou atos homicidas.” Chega de insensatez! Énecessário perceber que:

Educar para compreender a matemá-tica ou uma disciplina determinada éuma coisa; educar para a compreen-são humana é outra. Nela encontra-sea missão propriamente espiritual daeducação: ensinar a compreensão en-tre as pessoas como condição e ga-rantia da solidariedade intelectual emoral da humanidade. (MORIN, 2000,p.93).

Ora, como educar para a compreensão humana senão há colaboração, espaço para o diálogo, para adiscussão? Morin explica que, para o desenvolvimento dacompreensão, é necessário uma “reforma planetária dasmentalidades” e que esta é a tarefa da educação do futuro,a qual “deve-se voltar para as incertezas ligadas aoconhecimento”6. Para tanto, a

[...] a sala de aula deve ser um localde aprendizagem do debate argumen-tado, das regras necessárias à discus-são, da tomada de consciência dasnecessidades e dos procedimentos decompreensão do pensamento do ou-tro, da escuta e do respeito às vozesminoritárias e marginalizadas. Por isso,a aprendizagem da compreensão devedesempenhar um papel capital noaprendizado democrático. (MORIN,2000, p.112-113).

6 Para mais esclarecimentos a esse respeito, sugiro a leitura dos capítulos III, IV e Vdo livro de Morin: Os sete saberes necessários à educação do futuro (2000) e,ainda, Pedagogia da Terra, de Moacir Gadotti (2000).

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Uma educação humanizadora, voltada para areforma planetária, implica “noção ética: o que deve serrealizado por todos e em cada um”. Por isso, a necessidadede fazer o aluno racionalizar seu estar numa faculdade, nomundo, mas “a verdadeira racionalidade não é apenasteórica, apenas crítica, mas também autocrítica” (MORIN,2000, p. 24), porque

é necessário aprender a “estar aqui” noplaneta. Aprender a estar aqui signifi-ca: aprender a viver, a dividir, a comu-nicar, a comungar [...] Precisamosdoravante aprender a ser, viver, dividire comunicar como humanos do plane-ta Terra, não mais somente pertencer auma cultura, mas também ser terrenos.Devemos nos dedicar não só a domi-nar, mas a condicionar, melhorar, com-preender. (MORIN, 2000, p.76).

Nessa perspectiva, a sala de aula numa faculdadesurge como espaço do pensar e do fazer, do debate e dacrítica da produção social, do confronto de ideias, dasinterrogações e da busca de alternativas para o mundo daprodução e para a existência social e individual (COELHO,1999).

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Ser professor no ensino superior é um desafio, dadasas dificuldades que apresentei neste artigo. Entretanto, apesardos conflitos, devo dizer que é extremamente prazerosomergulhar neste rio e encontrar aqueles peixinhos de olhoscuriosos e ver que a curiosidade dos olhos deles ganha novobrilho quando descobrem que eles podem nadar e, emsegurança, descobrir nas águas, às vezes não tão claras elímpidas, o quanto o nado é gratificante.

Como eu tenho consciência de que “nenhum de nósescapa aos conflitos, de vez em quando, mas isto é diferentede ser compulsivamente impelido pelas emoções” (MAY,1999, p.93), vou continuar tentando encontrar novas formasde me encantar novamente pela educação. Se o artigo queescrevi “Será que o rei continua nu”, em que eu abordo a

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necessidade de o aluno vestir realmente a roupa deuniversitário para não sair depois por aí nu de conhecimentoe culpando os professores pelo seu fracasso profissional,não valeu para que alguns alunos “se vestissem” de acordocom a educação no ensino superior... Se a página que crieina internet7 não os motivou... Se adicionar os alunos nomeu espaço no orkut como uma forma de manter com elesum laço de afeto, que lhes possibilitasse se interessaremmais pelos estudos8... Se eles não perceberam que todas asminhas aulas são preparadas com responsabilidade... Seeles não perceberam que não fico lendo textos ou “colando”o que tento discutir para eles... Se eles também nãoperceberam a minha assiduidade... Se eles ainda nãoperceberam o respeito com que eu lido com cada um eles...Creio que é hora de mudar! E a mudança exige agora “pulsofirme”.

Não desistirei da sala de aula nem desses alunos.Continuarei buscando estratégias de ensino-aprendizagemque possam subsidiar, de fato, o conhecimento deles edespertar neles a responsabilidade e o desejo pelo aprender.

O que quero dizer é que “tornar-se pessoa” é umempreendimento interior, pode até começar por fora, coma educação, por exemplo, e eu continuarei fazendo asminhas tentativas, mas se não for sentido por dentro, nãoterá efeito no ser. É necessária a autoconsciência. Énecessária uma reorganização íntima. Cabe, portanto, aeles, aos alunos, perceberem-se como pessoa. Escreve Mayque

o homem deve fazer suas opções comoindivíduo, pois a individualidade é umadas facetas da autoconsciência [...] talconsciência é sempre um ato singular– nunca sei exatamente como você vêa si mesmo e você nunca sabe exata-mente como eu me relaciono comigopróprio. [...] precisamos encontrar emnós mesmos a força para permanecercomo indivíduos neste nosso santuárioíntimo. E isto significa que, uma vez quenão nos fundimos automaticamentecomo nossos semelhantes, precisamosaprender a amar-nos uns aos outrospor nossa própria decisão. (1999, p.78).

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O passo fundamental para a conquista daliberdade interior é “optar por si mesmo”. E é isso que eudesejo: que eles reconheçam-se como alunos do/no ensinosuperior, que consigam transpor a ponte entre o senso comume o conhecimento científico, mas que essa travessia seja nabase do estudo verdadeiro. Que eles se vejam como peixes,mas jamais sejam peixes em aquários ou que se deixem fisgarpor anzóis enferrujados ou por pescadores em época depiracema. Ainda é tempo!

RRRRReferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficaseferências Bibliográficas

BUENO, Moisés José. Diálogos e conflitos: professor/alunono ensino superior. Disponível em: <http://br.monografias.com/trabalhos908/dialogos-e-conflitos/dialogos-e-conflitos.shtml>. Acesso em: 03.fev.2009.COÊLHO, Ildeu Moreira. Realidade e utopia na construçãoda universidade. 2.ed. Goiânia: Ed. da UFG, 1999.COSTA, Ileana Cristina Pavelski. As concepções dos alunosdo ensino superior sobre o processo de ensino eaprendizagem. Disponível em: < http://w w w. b i b l i o t e c a . p u c p r. b r / t e d e / / t d e _ b u s c a /arquivo.php?codArquivo=365>. Acesso em: 12. jan.2009.GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo: Peirópolis,2000.KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Traduçãode Tereza B. Carvalho da Fonseca. 42. ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1985.MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. Tradução deÁurea Brito Weissenberg. 25. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999.MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação dofuturo. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e JeanneSawaya. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.PERRENOUD, Philippe. 10 novas competências para ensinar.Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: ArtesMédicas Sul, 2000.WERNECK, Hamilton. Tornei-me pessoa – – – – – as cicatrizes fazemparte do passado. Petrópolis- RJ: Vozes, 1997.

Aceito em: 03.06.2010

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Solange Maria de Barros1

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Neste trabalho discuto algumas abordagenstransdisciplinares para a análise crítica do discurso,destacando aspectos da gramática sistêmico-funcional e dorealismo crítico. Essas teorias são relevantes para os analistascríticos do discurso que desejam remover não somente ovéu ideológico das estruturas sociais do poder, opressão edominação, mas também agir nas práticas sociais, comobjetivo de transformação. Ao discutir essas abordagens,sugiro também o uso de narrativas de histórias de vida.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: análise crítica do discurso; gramáticasistêmico-funcional; realismo crítico.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: In this paper I discuss some transdisciplinaryapproaches for Critical Discourse Analysis, pointing outaspects of Systemic-Functional Grammar and Critical Realism.These theories are relevant for critical discourse analysts thatwish to remove not only the ideological veil of the socialstructures of power, oppression and domination, but also toact in the social practices in order to change them. Discussingthese approaches, I also suggest the use of narratives of lifehistories.

KKKKKeywords: eywords: eywords: eywords: eywords: critical discourse analysis, sistemic-functionalgrammar, critical realism

1 Professora do Departamento de Letras da UNEMAT, campus universitário deCáceres. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. E-mail:[email protected]

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Já é consenso entre os analistas críticos do discurso anecessidade de entender a linguagem como prática social(FAIRCLOUGH, 1989, 2001, 2003; KRESS, 1990; VANDIJK, 1993), entre outros. A linguagem contribui para a“produção, manutenção e mudança nas relações sociaisde poder”, bem como “amplia a consciência de como elacontribui para a dominação de umas pessoas sobre outras,já que a consciência é o primeiro passo para aemancipação” (FAIRCLOUGH, 1989, p.1). Para os analistascríticos do discurso, a linguagem não é algo puramenteindividual; ao contrário, é carregada de sentidos, a ela subjazuma ideologia. A linguagem como prática social implica,conforme Fairclough (2003, p.94), questões de ordemeconômica, política, cultural e ideológica.

Os estudiosos críticos do discurso consideram algumasabordagens de análise de textos (orais e escritos) necessáriaspara garantir uma dimensão mais crítica na pesquisa social.De acordo com Fairclough (2003), a abordagem daGramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994) contribuipara a análise linguística dos textos. Outros analistas críticosdo discurso têm se utilizado de estudos da pragmática paraanálise dos atos de fala (CHILTON, 1985; VAN DIJK, 1988)e de relatos de histórias de vida (PAPA, 2005, 2007, 2008),sendo esta considerada como uma rica ferramenta para umamelhor compreensão dos níveis micro e macrossocial. Há,ainda, os estudos da etnografia (CHOULIARAKI, 1995;RESENDE, 2008) e uma versão de análise crítica baseadana crítica explanatória, desenvolvida por Bhaskar (1986), econsiderada por Chouliaraki e Fairclough (1999) eFairclough (2003) como uma forma de linguagem crítica,visando à emancipação social. Conforme nos assegura Kress(1990), os analistas críticos do discurso buscam não apenasdesvelar o modo como as práticas linguístico-discursivasimbricam nas estruturas sociopolíticas de poder edominação, mas, principalmente, operar mudanças nessasmesmas práticas e estruturas sociais.

Neste artigo, apresento reflexões transdisciplinarespara a Análise Crítica do Discurso (ACD), ressaltandoaspectos da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) e do

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Realismo Crítico (RC), considerados de suma importânciapara os analistas críticos que desejam não apenas removero véu ideológico das estruturas sociais de poder, opressão edominação, mas também agir nas práticas sociais, de modoa transformá-las. Ao discutir os aspectos transdisciplinarespara a ACD, teço algumas considerações sobre a utilizaçãodos relatos de histórias de vida.

Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico Análise Crítica do Discurso e Gramática Sistêmico-----FFFFFuncionaluncionaluncionaluncionaluncional

A linguagem é elemento básico na vida social, sendo,portanto, parte da sociedade. A linguagem como processosocial deve, necessariamente, envolver o discurso, pois,segundo Fairclough (1989, p.25),

envolve condições sociais, que podemser especificadas como condições so-ciais de produção e condições sociaisde interpretações. Além disso, essascondições sociais se relacionam comtrês diferentes ‘níveis’ de organizaçãosocial: o nível da situação social, ou omeio social imediato, no qual o discur-so ocorre; o nível da instituição social,que constitui uma matriz mais amplapara o discurso; e o nível da sociedadecomo um todo. (tradução minha).

De acordo com Fairclough (2001, p.82), “discurso éuma prática, não de representação do mundo, mas designificação no mundo, constituindo e construindo o mundoem significado”. O discurso contribui para a construção deidentidades sociais, “relações sociais entre as pessoas” e“sistemas de conhecimento e crença” (FAIRCLOUGH, 2003,p.91).

Do ponto de vista metodológico, alguns aspectos dodiscurso são relevantes para a análise de textos. Ou seja, odiscurso é visto sob estas três dimensões, conforme(FAIRCLOUGH, 1989, 2001):

(i)Texto - descrição dos aspectos relevantes da estruturatextual (oral ou escrito);

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(ii) Prática discursiva - interpretação do texto, incluindoa produção, distribuição e consumo (leitura e interpretação);

(iii) Prática social - explanação da relação dos processosdiscursivos e sociais. Fazer uma análise crítica do discursoimplica, portanto, considerar esses três níveis tridimensionais.A seguir, explicitarei cada um deles.

No primeiro nível – o Textual -, o analista deveconsiderar a GSF, uma vez que essa abordagem propõe adescrição minuciosa e sistemática dos padrões linguísticos.A análise do texto (oral ou escrito) é vista sob a perspectivasociossemiótica, na qual os significados são entendidos apartir de escolhas linguísticas, estruturalmente organizadas(HALLIDAY, 1994). As escolhas que o falante/escritor faz,segundo Halliday (1994), operam em todos os níveis dodiscurso: lexical, sintático, modal e é por meio delas que sepode perceber o nível de expressividade presente numadeterminada situação comunicativa. O léxico utilizado numtexto carrega traços da identidade do falante/escritor, umavez que as escolhas feitas por ele podem estar transparentesou não, precisando, portanto, ser desveladas. A análiselinguística permite, dessa forma, interpretar os significadospresentes nos textos.

No segundo nível – prática discursiva –, o analistaconsidera a interpretação do texto, ou seja, questões inerentesà produção, à distribuição e ao consumo (leitura einterpretação). Nesse nível de análise, os aspectosintertextuais e interdiscursivos presentes no texto devem seravaliados. Fairclough (2001, p.115) explica que a práticadiscursiva deve combinar microanálise e macroanálise.Conforme o autor, é a natureza da prática social quedetermina a prática discursiva.

No terceiro nível – prática social –, o analista procurapela explicação macrossocial da prática discursiva. Nessenível de análise, busca-se compreender como as estruturassociais moldam os textos e como eles as refletem. A análiseda prática social traz à tona os efeitos ideológicos e políticospresentes nos textos. Fairclough (2001) assegura que aosermos capazes de identificar a natureza da prática social,

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seremos capazes de explicar os seus efeitos sobre a práticasocial.

A ACD tem procurado expandir seu modelo deanálise, na relação entre os níveis textual e social. Ela temapresentado, por exemplo, princípios metodológicos quepodem contribuir para o aprimoramento da análise de textosorais e escritos. A ênfase na análise interdiscursiva de textos(em termos de hibridade de gêneros, discursos e estilos) éuma tentativa, por exemplo, de suprir o espaço existente entretexto e contexto, isto é, entre linguagem e contexto social.

Nessa perspectiva, é relevante para o analista dediscurso crítico se utilizar da GSF, a fim de se investigar melhora linguagem do ponto de vista micro e macrossociais. AACD e a GSF podem proporcionar ao analista crítico dodiscurso uma visão mais holística do contexto socialinvestigado, estreitando cada vez mais o elo entre o texto eo contexto, entre o social e o linguístico. A convergênciadessas duas concepções teórico-analíticas é uma formadialética de olhar a linguagem sob vários prismas. Trata-sede diferentes modos de enxergar e sentir a realidade e omundo, para compreender melhor os mecanismos sociaisde dominação e resistência ou de emancipação etransformação social.

Análise Crítica do Discurso e RAnálise Crítica do Discurso e RAnálise Crítica do Discurso e RAnálise Crítica do Discurso e RAnálise Crítica do Discurso e Realismo Críticoealismo Críticoealismo Críticoealismo Críticoealismo Crítico

Para os analistas de discurso (cf. CHOULIARAKI;FAIRCLOUGH, 1999), o termo Realismo Crítico2 surge pelaprimeira vez para explicar a organização da vida social comoum sistema aberto. Esses autores (1999), em consonânciacom Bhaskar (1986, 1998), entendem que há váriasdimensões da vida social, incluindo os aspectos físico,químico, biológico, econômico, social, psicológico e

2 O Realismo Crítico refere-se à ideia de que existe uma realidade exterior, indepen-dente das concepções que se tenha dela. Bhaskar (1998) distingue não apenas omundo e a nossa experiência, mas a sua estratificação ontológica ¾ a questão doSer, representado pelos três domínios da realidade: o Real, o Realizável e o Empírico.O domínio do Real pode ser entendido como tudo que existe na natureza, sejameles objetos naturais (estruturas atômicas e estruturas químicas), sejam sociais (idéi-as, relações sociais, modos de produção etc.). O domínio do Realizável consiste emeventos ou atividades que são realizadas e, portanto, geram efeitos de poder, po-dendo ser observáveis ou não. O domínio do Empírico é entendido como o domínioda experiência. Se tomarmos o exemplo de qualquer trabalhador, seja ele professor,seja médico etc., sua capacidade física e mental se concentra no domínio do Real,enquanto seu trabalho como atividade que gera efeito de poder, se concentra nodomínio do Realizável.

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linguístico e que estes possuem estruturas distintas, comefeitos gerativos nos eventos, por meio de mecanismosparticulares. Inspirados no Realismo Crítico, Chouliaraki eFairclough (1999) conseguiram organizar um modeloanalítico que possibilitasse identificar problemas sociais,materializados em textos orais ou escritos. Essa abertura depossibilidades transdisciplinares fez com que a ADCganhasse cada vez mais espaço na ciência social crítica,permitindo aos analistas de discurso uma compreensão cadavez mais ampliada da vida social, principalmente em relaçãoaos elementos micro e macrossociais.

Chouliaraki e Fairclough (1999), em conformidadecom Bhaskar (1986, 1998), entendem que as pesquisas emADC devem estar voltadas para problemas práticos da vidasocial, vislumbrando, assim, uma crítica explanatória(BHASKAR, 1986, 1998, 2002), construída com base nasdescobertas dos problemas sociais, oriundos das práticassociais, e, a partir delas, buscar soluções para a suasuperação. E para alcançar o potencial explanatório, o pontode partida é a análise de como os significados sãoconstruídos na prática social. Para tanto, Fairclough (1989,2003) propõe uma abordagem de análise de discurso quepode contribuir para o crescimento da pesquisa social crítica,uma vez que a ADC enfatiza a relação dialética entre odiscurso e outros elementos das práticas sociais (outrasformas de semioses: linguagem corporal, imagens visuaisetc).

O modelo de análise proposto por Chouliaraki eFairclough (1999), baseado na crítica explantória de Bhaskar(1986, 1998, 2002), sugere cinco estágios:

1) Identificação do problema;2) Obstáculos a serem enfrentados;3) Função do problema na prática;4) Possíveis maneiras de superar os obstáculos;5) Reflexão da análise.

No primeiro estágio, conforme nos asseguramChouliaraki e Fairclough (1999), o analista crítico do discursodeve identificar o problema que pode estar em alguma parteda vida social (ex. educação, política, economia etc).

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No segundo estágio, o analista crítico do discurso devereconhecer os possíveis obstáculos a serem enfrentados.Precisa fazer uma análise denominada por Chouliaraki eFairclough (1999) de análise de conjuntura. Conforme osautores, a conjuntura a que eles se referem representa umtrajeto particular de uma rede de práticas que constituem asestruturas sociais. Ao proceder à análise de conjuntura, oanalista crítico de discurso deve atentar para a análise deuma prática em particular ou práticas sociais. Chouliaraki eFairclough (1999) identificam 04 (quatro) momentos daprática social: atividade material; relações sociais; fenômenosmentais e discurso.

Um aspecto relevante destacado por Chouliaraki eFairclough (1999) para a pesquisa analítica do discurso é otrabalho conjunto com outros métodos científicos sociais,particularmente a etnografia. Segundo os autores, aetnografia requer a presença do pesquisador por um períodode tempo, no contexto da prática social, assegurando,portanto, um conhecimento que pode ir além do texto.

No terceiro estágio, o analista crítico do discursoprocura olhar a função do problema na prática. Chouliarakie Fairclough (1999) ressaltam a necessidade de que sejaconsiderado o “se” e o “como” o aspecto problemático dodiscurso tem uma função particular dentro da prática social.Significa dizer que o analista deve se concentrar em apenasum aspecto da análise, acima dos obstáculos, para conseguirabordar o problema. Significa também mudar do “é” para“deve”, ou seja, passar da fase da explanação da práticaque conduz ao problema para a fase da avaliação da prática,em termos de resultados.

No quarto estágio, o analista crítico do discursoprocura as possíveis maneiras de superar os obstáculos.Deve-se também mudar do “é” para “deve”, isto é, se aspráticas estiverem problemáticas ou danificadas, o analistatem que procurar transformá-las. O analista crítico dodiscurso deve, portanto, investigar os efeitos reprodutivosdas práticas.

No quinto e último estágio, o analista crítico do discursodeve fazer uma reflexão da análise, isto é, manter-se comoum pesquisador reflexivo, tendo em vista ser a pesquisa socialuma pesquisa crítica. Nesse sentido, a reflexão feita pelo

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analista crítico do discurso deve levar em consideração se oque está sendo realizado é de fato uma pesquisa que visa aalgum tipo de mudança na prática social.

RRRRReflexões interdisciplinares: narrativas de histórias deeflexões interdisciplinares: narrativas de histórias deeflexões interdisciplinares: narrativas de histórias deeflexões interdisciplinares: narrativas de histórias deeflexões interdisciplinares: narrativas de histórias devidasvidasvidasvidasvidas

As considerações feitas por Chouliaraki e Fairclough(1999), com base no Realismo Crítico (Bhaskar, 1986, 1998,2002), sobre o modelo de análise de crítica explantória(BHASKAR, 1986, 1998, 2002), permitem uma reflexão maisprofunda sobre como nós, analistas críticos do discurso,realizamos pesquisas com base na ACD. O que se tem vistonos últimos congressos da ACD são trabalhos com apreocupação de desvelar relações de poder e ideologia,mas que nada têm de engajamento junto aos reais problemaspráticos da vida social. No meu entendimento, desvelarrelações de poder, hegemonia, opressão etc deve ser apenasuma parte da análise realizada pelo pesquisador socialcrítico. Para alcançar um potencial crítico, como desejaBhaskar (1986, 1998, 2002), em sua proposta de críticaexplanatória, e corroborado por Chouliaraki e Fairclough(1999), é preciso não apenas desvelar as relações de poder,ideologia, opressão etc, mas, a partir delas, buscar soluçõespráticas para a sua superação.

Bhaskar (1998), ao construir seu pensamento filosóficosobre emancipação e transformação social, apresenta umaproposta para a ciência social crítica, pois, segundo ele, osmecanismos geradores dos problemas podem ser removidos.Para esse autor, a emancipação não pode ser alcançadaapenas pela mudança da consciência; ao contrário, ela deveocorrer na prática, ou seja, deve passar pela transformaçãodos próprios agentes ou participantes.

As contribuições das teorias sociais críticas sãorelevantes para a ACD. Todavia, há ainda muitos caminhosa percorrer. Nada está pronto e acabado. Reflexões frutíferasainda estão por vir e certamente serão bem vindas. Doponto de vista da análise de significados apresentados nostextos, alguns caminhos transdisciplinares surgem como umatentativa de melhor compreender os níveis micro emacrossociais.

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A abordagem etnográfica defendida por Chouliarakie Fairclough (1999), bem como as narrativas de histórias devida, contribuem para melhor ampliar a visão do pesquisadorna análise de textos orais e escritos (cf. PAPA, 2005, 2007,2008).

As narrativas de histórias de vida podem contribuir coma ACD, uma vez que fornecem pistas ao analista sobre outrossignificados que podem ou não estar presentes nos textos.Enquanto instrumento de coleta para gerar dados, os relatosde histórias de vida podem ser utilizados pelo analista críticode discurso para uma compreensão mais profunda daestrutura social (BHASKAR, 1998, 2002).

As narrativas de histórias de vida são descrições deeventos em que são apreendidos os significados das açõesdos participantes, suas crenças, valores e experiências vividase como elas se desenvolvem. Conforme Clandinin e Connely(2004), as experiências são as histórias de vida das pessoase consistem não apenas de fatos, mas também de valores,emoções e memórias. Nessa mesma perspectiva, Goodsone Sike (2001) argumentam também que as histórias sãomemórias e que todas as memórias são histórias. Ou seja,quando falamos sobre nós mesmos, estamos nos referindoà nossa identidade, sentimentos, imagens e os relatos revelamo modo como experienciamos o mundo. Contudo, nemsempre o pesquisador consegue captar toda a história devida dos sujeitos, participantes da pesquisa. Quase semprehá um ocultamento de experiências tristes que foram poreles vivenciadas. Nesse caso, os elementos discursivos quepoderiam ser cruciais para a análise deixam de ser reveladose o analista acaba não conseguindo capturar outros discursosda vida desses sujeitos.

Sob a ótica da ACD e do RC, alguns estudos3 vêmsendo feitos desde 2006, na Escola Estadual ‘Meninos doFuturo’, localizada no Centro Sócio-Educativo do ComplexoPomeri4, na cidade de Cuiabá/MT (cf. PAPA, 2007, 2008,2009). Os professores da escola participam de grupos deestudos, nos quais são oportunizados momentos de

3 O projeto desenvolvido na escola tem como título: Formação Contínua do Profes-sor de Línguas: (Re) Construção da Prática Pedagógica.4 A Escola Meninos do Futuro está localizada no Centro Sócio-Educativo do Com-plexo Pomeri e atende crianças e adolescentes egressos de medidas socioeducativas,sob guarda judicial e em situação de risco.

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discussões e reflexões sobre temas concernentes àemancipação e à transformação social.

A experiência realizada com os professores dessaescola, particularmente, com a professora Keila (nomefictício), tem mostrado resultados significativos do ponto devista de mudança das práticas sociais.

Foram realizadas gravações de entrevistas5 com aprofessora e anotações de suas histórias de vida. Keila nãoautorizou que suas histórias de vida fossem gravadas. Elasforam registradas, etnograficamente, como anotações decampo. É importante ressaltar que as narrativas de vida deKeila serviram apenas como um instrumento para gerardados, contribuindo, positivamente, para ampliar a minhavisão enquanto analista crítica do discurso, a fim de obteruma melhor compreensão do contexto macrossocial, nomomento da análise das entrevistas.

Keila trabalha na escola desde 2003. É professora deespanhol. Diz nunca ter trabalhado com adolescentes ejovens em situação de risco. É a sua primeira experiênciacom essa clientela estudantil. Ao relatar-me suas históriasde vida, ela menciona a sua família. Diz não ter conhecidosua mãe biológica. Fora criada pelo pai biológico e suamadrasta desde tenra idade. Por não ter tido uma filhamulher, sua madrasta adotou-a como legítima, dando-lhetodo o amor e carinho. Keila relata também que vivenciou,ainda criança, o drama da sua madrasta com o filho legítimo,ao vê-lo se envolver com drogas. Afirma ter sofrido,juntamente com a mãe adotiva, o problema do irmão.

Em entrevista informal, Keila comenta sobre o esforçopara realizar o 1º Seminário de Literatura6 na escola, noano de 2006:

Esse Seminário de Literatura, desde2004 era pra acontecer [...] pra nósdesenvolvermos qualquer tipo deevento...nós temos que ter apoionós temos que ter apoionós temos que ter apoionós temos que ter apoionós temos que ter apoio...da

5 Uma versão da análise deste trabalho foi apresentada no IV GELCO (Grupo deEstudos de Linguagem do Centro-Oeste), em novembro de 2008, na UniversidadeFederal de Mato Grosso. Foram utilizadas reflexões teóricas do Realismo Críticosobre ‘causalidade’, ‘poderes causais’ e ‘agentes causais’ (cf. Revista Polifonia –IV GELCO, n° 17, p. 141-157, 2009).6 Desde 1996, os professores passaram a realizar, anualmente, Seminários com osalunos. A cada ano, novos temas são selecionados. Alunos e professores esco-lhem a temática e organizam o Seminário. Pais, professores e autoridades doCentro Sócio-Educativo do Pomeri são convidados a assistirem às apresentaçõesdos alunos. Drogas foi o tema escolhidos pelos alunos, no ano de 2009.

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segurança...quanto do financeiromesmo...por que? Porque se nós qui-sermos a sós não temos como. [...] nósnósnósnósnóstemos que tertemos que tertemos que tertemos que tertemos que ter autorização pros meni-nos levarem os livros pra ala7.

Nesse excerto, Keila mostra a dificuldade em realizarqualquer tipo de atividade na escola. Ao dizer “qualquertipo de evento nós temos que ter apoio da segurança”, Keilausa alto grau de modulação “temos que ter”, sinalizandoproibição da escola para esse tipo de evento. Percebe-seque a estrutura social do Centro Sócio-Educativo doComplexo do Pomeri, composta por chefes e subordinados“disciplinados”, impede que qualquer evento social sejarealizado no ambiente escolar.

Keila comenta também sobre a decisão tomada peloSuperintendente do Centro Sócio-Educativo do Pomeri, paraa realização do 1º Seminário de Literatura:

[...] tem que ter autorização...né?...porque? [...] este ano o CristianoCristianoCristianoCristianoCristiano8 acredi- acredi- acredi- acredi- acredi-tou e resolveu apoiartou e resolveu apoiartou e resolveu apoiartou e resolveu apoiartou e resolveu apoiar... a educação..eleviu a proposta ....a proposta veio doa proposta veio doa proposta veio doa proposta veio doa proposta veio doCristianoCristianoCristianoCristianoCristiano...nos envolvemos junto anos envolvemos junto anos envolvemos junto anos envolvemos junto anos envolvemos junto aele...sentamos juntoele...sentamos juntoele...sentamos juntoele...sentamos juntoele...sentamos junto....e ele falou...”sevocês acreditam eu vou apoiar.

Esse depoimento mostra de forma contundente o poderexercido pelo Superintendente Cristiano, o qual (des)autorizaqualquer atividade pedagógica na escola. Ao dizer: “oCristiano acreditou e resolveu apoiar”, Keila usa processomental acreditar para sinalizar uma atitude de decisão sobrea proposta de se realizar o Seminário. Percebe-se que aproposta de realização do Seminário surge a partir de Keila.É ela a responsável pela tentativa de negociação da propostajunto ao Superintendente. Enquanto detentor de poderes quelhe são atribuídos pelo Centro Sócio-Educativo do Pomeri,caberia somente ao Superintendente dar a voz de comandopara autorizar a realização do Seminário.

Percebe-se que o seu engajamento não se concentraapenas no cumprimento das atividades pedagógicas que

7 Possui também o significado de quarto (linguajar utilizado pelos alunos e profes-sora).8 Nome fictício.

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lhe são atribuídas. O interesse na realização de eventos comoo Seminário de Literatura está intimamente ligado tambémàs suas experiências de vida.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Neste artigo, apresentei algumas reflexões teórico-metodológicas da ACD, ressaltando aspectos da GSF e doRC considerados relevantes para analistas críticos dodiscurso que desejam agir com a finalidade de transformaras estruturas sociais de poder e opressão. As consideraçõesfeitas por Chouliaraki e Fairclough (1999), com base noRealismo Crítico de Bhaskar (1989), permitiram uma reflexãomais profunda sobre como nós, analistas críticos do discurso,estamos realizando pesquisas com base na ACD.

Assim como a etnografia, as narrativas de histórias devida podem ser também úteis para a ACD, contribuindo,significativamente, para a compreensão dos mecanismossociais de dominação e resistência ou de emancipação ede transformação social. Argumentei que as narrativas devida permitem que outros significados invisíveis sejaminterpretados. As experiências de vida da professora Keila,por exemplo, forneceram pistas para uma análise maisprofunda sobre outros significados que não puderam estarvisíveis nos textos. O interesse de Keila em realizar oSeminário de Literatura na escola revelou uma postura deeducadora crítica no processo de emancipação. Aoprivilegiar o desenvolvimento de práticas sociais libertadoras,Keila está também contribuindo para que a sua própriaprática pedagógica seja, de fato, transformadora.

Desvelar relações de poder, opressão etc deve serapenas uma parte da análise crítica do discurso. Paraalcançar um potencial crítico, como deseja Bhaskar (1986,1998), é preciso não apenas mostrar as relações de podere ideologia existentes, mas, a partir delas, buscar soluçõespráticas para a sua superação. Este trabalho é apenas oinício de uma longa caminhada a percorrer nas searas daACD e RC.

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Aceito em: 03.06.2010

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