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  • Drogas e Governamentalidade: uma anlise crtica da recente poltica criminal legislativa uruguaia

    Drugs and governmentality: a critical analysis of the recent legislative Uruguayan criminal policy

    Gustavo Noronha de vila1 Vera Maria Guilherme2

    RESUMO

    Os autores pretendem, a partir da recente legislao uruguaia, que criou o primeiro mercado oficial de drogas da Amrica Latina, discutir as premissas, comandos e suas possveis repercusses tambm para a poltica criminal brasileira. Permeada pela poltica da reduo de danos, a norma vizinha traz uma srie de novos espaos e situaes cuja especializao do controle estatal se concretiza em relao cannabis sativa. A partir de uma perspectiva crtica, mostramos como a lgica proibicionista continua perpetuada e fazendo com que um novo paradoxo esteja mostra: o Estado, legalmente, poderia at mesmo exportar o entorpecente, enquanto o comerciante ilegal segue sujeito s penas que podem levar priso. No s: a lei demonstra como os controles da governamentalizao e suas modulaes podem atuar. dentro da perspectiva antiproibicionista e tambm de achados de setores crticos da psiquiatria que propomos a abolio do controle formal do Estado em favor de uma autorregulao promovida desde e legitimada pelos maiores interessados, os usurios, e cujos efeitos desencarcerizantes seriam saudveis em tempos de expanso punitiva e grande encarceramento.

    Palavras-chave: poltica criminal de drogas; governamentalidade; criminalizao; Lei uruguaia 19.172/2013.

    ABSTRACT

    The authors analyze the recent Uruguayan legislation that created the first official drug market in Latin America. Since this framework, they discuss the assumptions, 1 Doutor e Mestre em Cincias Criminais pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Professor da Graduao e Ps-Graduao em Direito do Centro Universitrio Ritter dos Reis/Laureate International Universities. Professor da Especializao em Cincias Penais da Universidade Estadual de Maring. Advogado. 2 Graduada em Educao pela PUC Rio (1987.1) ,bacharel em Direito (2012.2), ps-graduanda em Direito Penal e Processual Penal no Uniritter (POA) e mestranda em Cincias Criminais na PUCRS. Autora do livro Quem tem medo do lobo mau? A descriminalizao do trfico de drogas no Brasil por uma abordagem abolicionista (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013).

  • commands and their possible repercussions for the Brazilian criminal policy. Permeated by the harm reduction policy, the neighbor standard brings a lot of new spaces and situations where specialization of state control is realized in relation to cannabis sativa. From a critical perspective, we show how the prohibitionist logic continues perpetuated and making a new paradox is conspicuous: the state could legally even export the narcotic, while the illegal trader follows subject to the penalties that may lead to arrest. Not only: the law demonstrates how the controls of governmentality and its modulations can act. It is within the anti-prohibitionist perspective and also findings of critical sectors of psychiatry that propose the abolition of the formal control of the state in favor of a self-regulation since promoted and legitimized by major stakeholders, the users. Thinking beyond solutions like prison would be healthy in times of punitive expansion and extensive incarceration.

    Key-words: criminal drug policy; governmentality; criminalization; Uruguayan Law 19.172/2013.

    1. Introduo

    No final do ano de 2013 a comunidade internacional assistiu aprovao da lei

    uruguaia nmero 19.172, que autorizou o comrcio de "cannabis sativa" (maconha)

    em nosso pas vizinho. A partir da e com base em premissas estabelecidas desde

    muito, notadamente da criminologia crtica latino-americana, iniciou-se uma onda de

    entusiasmo em relao aos possveis efeitos.

    Quando o assunto direito penal, no possvel fazer uma leitura imediatista das

    leis apresentadas sociedade civil. Em geral, as leis so introduzidas no ordenamento

    como resposta aos anseios sociais, priorizando o interesse pblico e objetivando

    prevenir a criminalidade de alguma forma. Ou seja, as leis penais, de acordo com o

    discurso estatal, visam a nossa proteo dos riscos que a vida em sociedade

    apresenta. Por serem eles inevitveis, que ao menos sejam minimizados.

    No caso brasileiro, a lei 11.343/06 trouxe uma novidade quanto ao usurio: a

    partir de ento, no mais seria esse personagem penalizado. E, por ser a

    criminalizao uma ideia associada a de priso para a maioria das pessoas, a pena a

    cu aberto que a nova legislao trouxe passou despercebida. Era como se o pior

    tivesse passado: a cadeia no mais faria parte das possibilidades do usurio. Essa

    proposta era menos pior que a realidade anterior.

    A noo de menos pior figura recorrente no imaginrio e nas prticas

    polticas nacionais. Costumamos pegar um exemplo histrico que se torna parmetro

  • do que seria o pior, e oferecemos como desculpa s prticas polticas no mnimo

    questionveis o argumento de que realmente h problemas, mas poderia ser pior se o

    modelo anterior retomasse suas foras. E, assim, temos nos contentado com pequenas

    modificaes, pequenas adaptaes rotuladas como avanos significativos.

    Nesse sentido, noticiou-se iniciativa semelhante uruguaia em nosso pas3.

    Uma poltica criminal fundada em uma ideia de reduo de danos.

    Este artigo pretende analisar os principais aspectos da legislao uruguaia para,

    em um segundo momento, problematizar o controle social que permeia a medida e

    sua leitura desde um marco da governamentalidade e sua anlise desde Foucault.

    Existe possibilidade de conciliar controle legal das substncias entorpecentes pelo

    Estado e respeito integral autonomia individual?

    2. A Poltica criminal (?) legislativa uruguaia Tratar de drogas no um tema simples. Sem dvidas, estamos diante de um

    problema complexo, onde o consenso parece ser somente utopia no horizonte. Por ser

    de difcil consenso, ato contnuo, torna-se de problemtica cooptao pela regulao

    ou controle. Isto por que a tradio jurdica romano-germnica, que tem como veculo

    principal de realizao de suas promessas a norma, est sustentada justamente em um

    consenso mnimo como contedo da diretiva.

    Todos so iguais perante a lei, logo nossa (des)naturalizada igualdade pode

    ser justamente a fora legitimadora/legitimante da norma. A maior questo a ser

    enfrentada por essas premissas reside nas especificidades no apenas do caso

    concreto. Estamos falando das pessoas concretas envolvidas em uma situao cuja

    densidade est muito para alm de qualquer conjunto de caracteres atribuvel a uma

    lei.

    A partir destas premissas, precisamos colocar em evidncia as dificuldades de

    um instrumento herdeiro da tradio moderna (Direito), pensar um problema muito 3 BURANI, Antnio. Exclusivo: deputado Jean Wyllys vai colocar legalizao da maconha na pauta do Congresso. Disponvel em: Acesso em 04 de Fev. De 2014.

  • para alm da lgica binria: legal/ilegal e constitucional/inconstitucional. Utilizar

    estas categorias, como o caso da legalizao, pode intensificar o trato incompleto do

    problema, pois elas pressupe universais (formas de tratamento precisas e aplicveis a

    todos indistintamente):

    A proibio, medida cristalizada em lei, deveria, assim, ser combatida e superada por um novo corpo legal. Uma universalidade por outra, uma busca de soluo total e totalizadora por outra4.

    Esta a primeira referncia a adotarmos neste escrito: o paradigma da

    complexidade5 como forma de negar alternativas redutoras/simplificadoras da

    situao-problema6. Tendo exposto nossa premissa inicial, passaremos descrio e

    posterior discusso dos principais dispositivos da nvel normativa uruguaia.

    preciso levar em considerao a realidade local uruguaias, prximas

    brasileira. Frequentemente as comparaes com as polticas de drogas holandesas, de

    cunho liberal, eram rechaadas justamente com base nas diferenas culturais. Por

    outro lado, no devemos desprezar que:

    No estamos diante de fenmenos apenas locais, nacionais, estaduais, nem municipais, mas sim diante de problemas que podemos resolver apenas em parte nesses nveis, e que integram uma trama mundial. Insisto. Se no compreendemos essa trama, moveremos sempre mal as peas, perderemos partida aps partida. Devemos fazer o maior esforo para impedir que isso acontea, porque, no fundo, estamos diante de uma encruzilhada civilizatria, uma opo de sobreviviencia, de tolerncia, de coexistncia humana.7

    Aps ao menos 30 anos de polticas criminais latino-americanas pautadas pela

    4 RODRIGUES, Thiago. Drogas, proibio e abolio das penas. In: PASSETTI, Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 145. 5 Utilizamos aqui a noo de Edgar Morin acerca da complexidade: A um primeiro olhar, a complexidade um tecido (complexus: o que tecido junto) de constituintes heterogneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do mltiplo. Num segundo momento, a complexidade efetivamente o tecido de acontecimentos, aes, interaes, retroaes, determinaes, acasos, que constituem nosso mundo fenomnico. Mas ento a complexidade se apresenta com os traos inquietantes, do inextricvel, da desordem, da ambigidade, da incerteza... (MORIN, Edgar. Introduo ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 13) 6 No sentido trabalhado por Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis. (HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas Perdidas O Sistema Penal em Questo. 2a ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997.) 7 ZAFFARONI, Eugenio Ral. A questo criminal. Trad. Srgio Lamaro. 1a edio. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 7.

  • guerra s drogas promovida, notadamente, pelos Estados Unidos da Amrica8, o

    limiar do sculo XXI iniciou com a tnica da reviso proibicionista. Tais reformas se

    materializaram, inclusive, em nosso pas com a edio da Lei 11.343/2006 e o

    abrandamento penal nas condutas em relao ao usurio. Ainda assim, era possvel

    avanar.

    Thiago Rodrigues bem define o contexto de demonizao de entorpecentes

    vivido especialmente nos anos 1970 e cujos rastros ainda se revelam em nossa

    cultura:

    Como tnica da Proibio, a guerra s drogas jamais se aproximou da meta em erradicar o negcio e o consumo de psicoativos no mundo. O carter militar assumido pela luta internacional contra as drogas ilcitas deve ser encarado no como uma inovao completa do proibicionismo, mas sim como a transposio para o plano internacional da lgica coercitiva e policial de controle social consolidada localmente pela via da represso a consumidores e negociantes de substncias psicoativas. Com isso, afirma-se que a dimenso diplomtico-militar assumida pela Proibio um desdobrar das tticas de controle social brotadas no incio do sculo XX que forja uma inusitada modalidade de preveno geral internacional. Questionado como soluo universal para a questo do comrcio e uso de psicoativos, o proibicionismo vem sendo alvo de crticas que procuram apontar sadas alternativas e novos percursos que prescindam da condenao e da criminalizao como caminho para lidar com as drogas, substncias envoltas em hbitos e prticas que se apresentam, aos olhos de cada vez mais observadores, como no suprimveis ou incontornveis9.

    Dos questionamentos ao proibicionismo, surgiram olhares diferentes para a

    questo. Isto por que, empiricamente, a beligerncia s drogas ainda traz uma srie de

    problemas impossveis de serem ignorados. No Brasil, possvel citar como exemplo

    as estonteantes taxas de encarceramento10 e os homcios de policiais e traficantes11.

    Uma das recrudescncias trazidas pela lei 11.343/06 irrelevante para o

    universo de autores preocupados com os usurios: por trs de seu discurso

    universalista, esconde a questo social envolvida na determinao de quem sero os

    encarcerados12. Os encarcerados sero os traficantes, marcados por uma definio de 8 DEL OLMO, Rosa. A Amrica Latina e sua Criminologia. Rio de janeiro: Revan, 2004; DE CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da Libertao. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 171-173. 9 RODRIGUES, Thiago. Drogas, proibio e abolio das penas. In: PASSETTI, Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 141. 10 BATISTA, Vera Malaguti. Introduo crtica criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 102. 11 MENEGAT, Marildo. Estudos sobre runas. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 80-81. 12 Cf. GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalizao do trfico de drogas no Brasil por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

  • classe social e de sua incapacidade ou pouca capacidade para consumo de bens. A

    princpio, a questo do usurio estaria resolvida no que se refere ao seu pior medo o

    encarceramento.

    Mas novas questes aparecem, como o projeto do deputado federal Osmar

    Terra13 que, em nome da sade pblica expande o controle e a represso sobre

    usurios, estabelecendo inclusive a possibilidade de internao e tratamento

    contrrios vontade dos usurios/pacientes ou mesmo de seus familiares.

    nesse contexto de possibilidade de uma poltica mais incisiva em relao aos

    usurios (pouco importando se usam as substncias de forma recreacional -sem a

    caracterizao de dependncia qumica- , ritual ou medicinal) que o projeto uruguaio

    relativo ao uso de cannabis acabou ganhando uma maior popularidade no Brasil,

    chegando a ser citado por militantes pela legalizao da maconha como algo a ser

    seguido. O governo uruguaio estaria, assim, em uma postura vanguardista no que se

    refere questo das drogas. Postura a ser seguida pelo Brasil.

    Se as chamadas polticas de reduo de danos eram utilizadas para prevenir

    usurios de drogas invejtveis que tivessem ainda mais prejuzos com sua sade

    advinda de seus hbitos (exemplo da contrao de doenas como o HIV/AIDS), no

    hoje passam a refletir formas de atenuar os vrios efeitos colaterais do

    proibicionismo. a partir desse giro que surgem os projetos de legalizao de drogas,

    inspirados, ideologicamente, pelas orientaes estatizante e a liberal14.

    Os projetos possuem em comum o fato de a produo, venda e consumo de

    drogas psicoativas deixarem de ser consideradas ilegais, sendo reguladas por

    legislaes especficas. Na regulamentao de cunho estatal, o mercado estaria sob o

    controle total do Estado, que monopolizaria todo o processo: do cultivo/sntese das

    substncias psicoativas at a comercializao final do agora produto15.

    Ao falarmos de um modelo liberal, estaramos designando situao na qual o

    Estado teria atuao somente regulatria em um mercado semelhante ao que temos

    nas drogas lcitas como tabaco, medicamentos, lcool e cafena. Este modelo teria 13 BRASIL. Cmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 7663/2010. Altera a Lei 11.343/2006, que Institui o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para preveno do uso indevido, ateno e reinsero social de usurios e dependentes de drogas; estabelece normas para represso produo no autorizada e ao trfico ilcito de drogas; define crimes e d outras providncias. Disponvel em Acesso em: 04 fev. 2014. 14 RODRIGUES, Thiago., op. cit., p. 145. 15 Idem, ibidem.

  • como vantagem justamente o fato de o prprio usurio, agora consumidor, tomar suas

    prprias decises quanto ao objeto de sua recreao.

    As vantagens principais da legalizao estatizante estariam na preveno ao uso

    e s mortes por overdose possivelmente provenientes do fim do proibicionismo.

    Tambm citado o narcotrfico, que seria desmobilizado enquanto poderosa

    economia que se alimenta de sua prpria proibio16.

    Esse o paradigma adotado pelo nosso vizinho. A proposta uruguaia se

    apresenta justificada a partir de uma preocupao em proteger o bem jurdico sade

    pblica, utilizando o Estado (seja via rgos estatais como Ministrio da Sade, seja

    atravs de pessoas jurdicas de direito pblico no estatal17 para implementao da

    poltica quanto cannabis). So objetivos da proposta minimizar riscos e reduzir

    danos, fornecendo informao, educao e preveno sobre as consequncias e os

    efeitos associados ao consumo de drogas em geral, inclusive estabelecendo regras

    quanto ao tratamento, reabilitao, reinsero dos usurios problemticos de

    drogas. Os habitantes do pas so os destinatrios do texto legal, em que pese a

    possibilidade da regulamentao do comrcio a estrangeiros a partir de futuro decreto.

    Essa formulao do texto legal, ora falando em cannabis, ora em drogas em

    sentido geral, no fortuita; expressa a noo de ser a cannabis o ponto de partida do

    usurio rumo a outras drogas consideradas ilcitas. Ou seja, evitando que o usurio

    necessite adquirir a cannabis de um traficante de drogas.

    A premissa ser a cannabis a porta de entrada para outras drogas consideradas

    ilcitas tem sido questionada por elaboradores de polticas antidrogas em diversos

    pases18, principalmente pelo fato de, muito antes de qualquer contato com a

    cannabis, a maioria das pessoas j ter conhecido e talvez usado outras drogas

    (consideradas lcitas), como a cafena, o tabaco e o lcool (para citarmos alguns

    exemplos).

    H insistncia na vinculao da cannabis a outras substncias consideradas

    ilcitas reaparece em outro ponto da proposta: o Sistema Nacional de Educao

    Pblica (SNEP) ter como uma de suas atribuies debater o uso problemtico de 16 RODRIGUES, Thiago. Drogas, proibio e abolio das penas. In: PASSETTI, Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 145. 17 Instituto de Regulao e Controle da Cannabis (IRCC), uma espcie de agncia reguladora. 18 QUEBRANDO o tabu. Um filme em busca de solues para o fracasso da Guerra s drogas. Direo: Fernando Grostein Andrade. Produo: Fernando Menocci. Silvana Tinelli. Luciano Huck. Elenco: Fernando Henrique Cardoso; Drauzio Varela; Bill Clinton; Jimmy Carter e outros. SP, 2010. (80 minutos).

  • cannabis e outras substncias psicoativas, na educao fundamental, mdia e no

    ensino tcnico. A legislao menciona, inclusive, uma disciplina chamada Preveno

    do Uso Problemtico de Drogas, enfatizando a relao entre uso de drogas e

    acidentes de trnsito.

    A onipresena do Estado no texto um elemento importante. O controle estatal

    abrange a importao, a exportao, o plantio, o cultivo, a colheita, a produo, a

    aquisio, o armazenamento, a comercializao e a distribuio de cannabis e seus

    derivados, sendo permitido o uso para fins medicinais e de pesquisa, mediante

    autorizao e controle do Ministrio de Sade Pblica. Outros usos de cannabis sero

    regulados pelo Instituto de Regulao e Controle de Cannabis (IRCCA). J o

    cnhamo, cannabis de uso no psicoativo (teor inferior a 1% de THC) fica a cargo do

    Ministrio de Pecuria, Agricultura e Pesca.

    Desde o primeiro artigo da Lei, portanto, est a ideia de de adotar aes

    tendentes a proteger, promover e melhorar a sade pblica da populao mediante

    uma poltica orientada a minimizar os riscos19 e reduzir os danos do uso da cannabis.

    (destaque nosso), em nome do mais alto nvel de sade20.

    Esse aspecto fica claro da leitura dos autos do Projeto de Lei aprovado, onde l-

    se das justificativas de sua proposio:

    A separao do mercado de cannabis ao de outras drogas potencialmente mais danosas sade pode ajudar a diminuir o ingresso de novos consumidores de Pasta Base de Cocana - com maior capacidade de gerar dependncia fsica e com efeitos mais graves sobre a sade pessoal e

    19 O artigo 4o deixa bastante clara a preocupao com o usurio que se arrisca para obter a droga: A presente lei tem por objeto proteger os habitantes do pas dos riscos envolvidos no comrcio ilegal e o narcotrfico buscando, mediante a interveno do Estado, atacar as devastadoras conseqncias sanitrias, sociais e econmicas do uso problemtico de substncias psicoativas, assim como reduzir a incidncia do narcotrfico e o crime organizado. A tais efeitos, se dispe as medidas tendentes ao controle e regulao da cannabis psicopatia e suas derivaes, assim como aquelas que buscam educar, conscientizar e prevenir a sociedade dos riscos para a sade do uso da cannabis, particularmente as que tem a ver com desenvolvimento de adies. Se periodizar a promoo de atitudes vitais, os hbitos saudveis e o bem-estar da comunidade, tendo em conta as recomendaes da Organizao Mundial da Sade a respeito do consumo dos distintos tipos de substncias psicoativas. (Traduo livre dos autores) 20 Neste sentido, a ntegra do artigo 3o: Todas as pessoas tm direito a disfrutar o mais alto nvel possvel de sade, a desfrutar dos espaos pblicos em condies seguras e s melhores condies de convivncia, assim como preveno, tratamento e reabilitao de de enfermidades, em conformidade com o disposto em diversos acordos, pactos, declaraes, protocolos e convenes internacionais ratificados por lei, garantindo ao pleno exerccio de seus direitos e liberdades consagradas na Constituio da Repblica, sujeitas s limitaes emanadas do artigo 10 da mesma.

  • pblica21.

    Alm disso, o fundo teraputico dos defensores dos argumentos estatizantes se

    revela logo a seguir: que promova a devida informao, educao e preveno

    sobre as conseqncias e efeitos prejudiciais vinculados ao consumo assim como o

    tratamento, reabilitao e reinsero social dos usurios problemticos de drogas.

    (grifos nossos, artigo primeiro)

    Desde o incio possvel observar a linha no s teraputica como tambm

    reabilitadora. So explicitadas finalidades bastante controversas como a da

    reinsero social22, pois muitas vezes o usurio, ainda que exceda a utilizao das

    quantias do entorpecente fixadas em lei, pode estar realizando todas as suas atividades

    sem maiores percalos. Para alm, a figura das pessoas problemticas tambm

    representa fator de alerta aos criminologistas de perspectiva crtica23.

    Inexistem critrios claros para definir quem seriam os rotulveis de

    problemticos e, a histria nos ensina24, tais categorias, demasiadamente abertas,

    podem levar a catstrofes humanitrias irremediveis. Certa, apesar disto, a previso

    de penas para quem descumprir as estritas condies do artigo 5, podendo chegar a

    at 10 anos de recluso.

    Se permite a plantao, cultivo e a colheita domsticas da cannabis psicoativa

    destinadas para consumo pessoal ou compartilhamento em casa. Ser admitido,

    anualmente, o cultivo e a colheita domsticas de at seis plantas de cannabis de efeito

    psicoativo e o produto da colheita daquela plantao at um mximo de 480 gramas

    anuais.

    As modalidades acima tambm esto permitidas por clubes de membros, que

    devero ser autorizados a funcionar pelo Poder Executivo, possuindo um mnimo de

    quinze e um mximo de quarenta e cinco scios. Podero plantar at noventa e nove 21 URUGUAI. Projeto de Lei 1288/2013. Disponvel em Acesso em: 04 de fev. 2014. 22 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. Aproximao ao Direito Penal Contemporneo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 52-58. 23 BARATTA, Alessandro. Ressocializao ou Controle Social: uma abordagem crtica da reintegrao social do sentenciado. Disponvel em: Acesso em 02 Fev. 2014. 24 Talvez o maior exemplo brasileiro dos perigos das categorias permeveis ao arbtrio, est justamente nas 60 mil mortes ocorridas na colnia penal de Barbacena, Minas Gerais relatadas por Daniela Arbex. (ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. So Paulo: Gerao Editorial, 2013)

  • plantas de cannabis psicoativa e obter como colheita um mximo de produo

    proporcional ao nmero de scios e conforme a quantidade que se estabelece para o

    uso no medicinal de cannabis psicoativa.

    o IRCCA quem ir alcanar licenas para a venda de cannabis psicoativa para

    as farmcias, cujas condies sero definidas por decreto a ser editado aps 120 dias

    da promulgao da norma (13 de dezembro de 2013). Para adquirir a substncia nas

    farmcias, com finalidade de consumo pessoal e em quantidade no superior a 40

    gramas mensais por pessoa, os usurios, maiores de 18 anos e capazes, devero estar

    previamente cadastrados.

    O cadastro exigvel no apenas para quem pretender adquirir a cannabis em

    farmcias, como tambm realizar o plantio e colheita em sua residncia. A forma

    desse cadastro tambm matria a ser tratada em futuro decreto, apesar de o artigo

    oitavo da Lei deixar claro tratar-se dados protegidos por sigilo.

    Quanto ao monoplio estatal, a previso est contida no artigo 2:

    () o Estado assumir o controle e a regulao das atividades de importao, exportao, plantao, cultivo, colheita, produo, aquisio a qualquer ttulo, armazenamento, comercializao e distribuio de cannabis e seus derivados, o cnhamo quando corresponda, atravs das instituies s quais outorgue mandato legal, conforme com o disposto na presente lei e nos termos e condies que a respeito fixe a regulamentao.

    Interessante percebermos no somente o anunciado monoplio, como tambm a

    possibilidade de exportao da cannabis, tambm a ser realizada pelo Estado. Tal

    previso pode suscitar uma srie de questes, inclusive sobre os possveis interesses

    econmicos na produo da substncia psicoativa e seus derivados.

    Portanto, apesar da transmutao de algumas figuras e reconhecimento de dados

    importantes da realidade, ainda possvel dizer que existe uma poltica criminal

    advinda da legislao uruguaia. No somente em relao ao usurio, sujeito a penas

    para o caso de descumprimento das condies impostas, como tambm ao grande

    esquecido da norma: o traficante.

  • 3. Anlise crtica da legislao uruguaia: o Estado assumindo o lugar traficante? So inegveis os avanos da poltica criminal vizinha. A tentativa no s de

    entregar ao usurio entorpecente de qualidade, buscando evitar problemas muito

    maiores do que o seu (aparente) vcio, como tambm de mostrar-se enquanto

    alternativa concreta ao proibicionismo motivo de saudao.

    Por outro lado, existe um ator social importantssimo cujo tratamento segue

    rigorosamente o mesmo, inclusive, com a manuteno dos quantuns de pena. Estamos

    falando do traficante. Alm disso, necessrio discutir os novos controles impostos

    pelo Estado e a aparente contradio entre a legalidade da compra e a restrio da

    venda:

    Em um Estado que reforma seu proibicionismo no sentido da descriminalizao, novas condutas assumem o posto de perigos segurana pblica e sade social. As drogas antes proibidas no deixam de s-lo, mas ganham um novo status; seus negociantes mantm-se como criminosos e devem, como tais, ser presos, punidos, apartados do convvio social. Num hipottico caso de legalizao, liberal ou estatizante, os indivduos no so libertados, em suas conexes e amarras com os dispossitivos punitivos do Estado, pelo simples fato de que esses instrumentos continuam vistos como meios fundamentais para a manuteno da ordem e da regulao das relaes entre as pessoas. Sem eles, impera o caos. Os estutos legais universais progressistas no superam a noo de que a norma homogeneamente aplicada o pilar da sociabilidade.25

    Se, antes, o Leviat no chegava a determinados aspectos da vida social que,

    apesar de regulados em norma, acavabam por se tornar mais uma cifra oculta, agora

    existem condies mais concretas de acompanhamento. Tambm devemos considerar

    as demais substncias psicoativas que, certamente, seguiro fazendo parte da cifra

    obscura, ou seja: ter seguimento o curso de criminalizaes.

    O usurio, entre as variedades de cannabis, ter de escolher aquela

    comercializada pelo Estado. Caso queira, ele mesmo, cultiv-la, ter de submeter-se

    fiscalizao de rgo especialmente criado para tanto e estar inserido em um cadastro.

    Liberdade paradoxal: enquanto descriminaliza, amplia os tentculos de controle.

    A onipresena do Estado uruguaio no controle sobre a cannabis evita um

    enfrentamento direto com a poltica antidrogas da chamada comunidade internacional 25 RODRIGUES, Thiago. Drogas, proibio e abolio das penas. In: PASSETTI, Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 145-146.

  • (interesses norteamericanos, majoritariamente) e desperdia a oportunidade de colocar

    o debate na esfera da sociedade civil, sem interferncia governamental. Os clubes, por

    exemplo, seriam um espao privilegiado para que seus membros definissem o que

    cultivar e a quantidade necessria para o consumo. Por que no um controle social do

    uso de substncias psicoativas, em vez de um controle estatal 26? Ou seriam esses

    clubes uma forma de facilitar o controle do uso da cannabis pelo Estado?

    O fato que importantes setores da sociedade j toleram o uso da "cannabis

    sativa". Tal situao pode ser observada, inclusive, a partir da indstria de cinema

    norte-americana (Hollywood), que tem cada vez mais inserido o entorpecente nas

    cenas de seus Blockbusters. Nem por isso os filmes deixam de ser grande sucesso de

    bilheteria, o que poderia indicar um menor nvel de moralismo.

    No Brasil, setores da dogmtica penal27 j apresentaram contundente crtica

    lgica proibicionista, materializada em nossa lei de drogas, especialmente na

    denncia inconsistncia do seu declarado bem jurdico a ser objeto de tutela, a sade

    pblica. Dentro de uma perspectiva finalista, por exemplo, adotada por nosso Cdigo

    Penal, inexiste possibilidade de criminalizao quando o fim da norma inalcanvel.

    Quanto a quem busca a substncia entorpecente, existe, ainda um forte tom

    paternalista atribuvel legislao uruguaia. Ao dizer em quais condies, em que

    quantidades ser realizado o consumo e, pior, ao estabelecer penas para a

    inobservncia dessas regras, o discurso humanitrio absolutamente deslocado da

    perspectiva progressista para a autoritria. Neste contexto, importante destacar a

    anlise de Gerson Faustino da Rosa e Gisele Mendes de Carvalho:

    seria de se ter que, tradicionalmente, em se entendendo que a misso do Direito Penal reside na proteo a bens jurdicos contra ataques ou a colocaes em perigo deste, claro esto definidos os crimes de dano e de perigo concreto, onde se percebe, no caso especfico, sob uma anlise ex post, a potencialidade do risco imposto ao bem sob guarda. No perigo abstrato isso no se d. Assim sendo, justificar-se-ia a criminalizao do porte de drogas para consumo pessoal somente se admitssemos a construo feita por Gunther Jakobs quando tratou do Direito Penal do cidado e do inimigo, buscando a salvaguarda, no de bens jurdicos, mas da vigncia da norma, a pretexto de evitar a ocorrncia de fatos prejudiciais coletividade, trabalhando na defesa do prprio Estado em detrimento do cidado, esvaziado de sua dignidade humana quando eleito

    26 MACRAE, Edward. O Controle social do uso de substncias psicoativas. In: PASSETTI, Edson; SILVA, Roberto D. Dias da. Conversaes abolicionistas: uma crtica do sistema penal e da sociedade punitiva. So Paulo: IBCCrim, 1997, p. 111. 27 CARVALHO, rika Mendes de Carvalho. O bem jurdico-penal na Lei de Drogas. Palestra no Centro Universitrio Ritter dos Reis, em 11 de Jun. de 2013.

  • inimigo.28 A poltica criminal do inimigo tem sido reconhecida como tnica do discurso de

    nossa legislao de drogas. Especialmente na figura do traficante. Tais

    criminalizaes so uma das grandes responsveis pelo boom carcerrio nacional.

    Hoje, estima-se que tenhamos mais de 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil)

    presos29. E este nmero apenas cresce. Ainda que existam medidas poltico-criminais

    com fins declaradamente desencarcerizadores, as consequncias prticas de sua

    aplicao so bastante tmidas. Isto porque o subjetivismo30, em certas categorias-

    chave (como o requisito da ordem pblica em sede de priso cautelar), torna

    facilmente reversveis os objetivos originais.

    O Brasil o quarto pas do mundo em populao carcerria. Est atrs de EUA,

    Rssia e China. Dados trazidos pelo Instituto Avante Brasil31, apontaram o aumento

    de 508% na populao prisional brasileira entre 1990 e 2012, enquanto a populao

    nacional cresceu 31%. Christie considera o nmero de presos a cada 100.000

    habitantes como um importante dado para medir o nvel de punio de determinado

    pas32. No nosso, em 2012, a taxa de presos foi 283 para cada 100.000 habitantes,

    levando-se em considerao a populao de 193.946.886 habitantes estimada pelo

    IBGE para 2012. Enquanto a populao cresceu 1/3, a populao carcerria mais que

    sextuplicou33.

    Nos dizeres de Ral Zaffaroni preciso entender que na Amrica Latina quase

    todos os prisioneiros so tratados como inimigos no exerccio real do poder 28 ROSA, Gerson Faustino da; CARVALHO, Gisele Mendes de. Criminalizao do porte de drogas para consumo pessoal: paternalismo jurdico ou proteo da sade pblica? In: VILA, Gustavo Noronha de. Fraturas do Sistema Penal. Porto Alegre: Sulina, 2013, p. 238. 29 Veja-se: KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4a maior populao carcerria do mundo e dficit de 200 mil vagas. Disponvel em: . Acesso em: 02 fev. 2014. No mundo, estima-se que tenhamos mais de 10 milhes de pessoas presas: INTERNATIONAL CENTRE FOR PRISION STUDIES. World Prison Population List. Disponvel em: < http://www.prisonstudies.org/sites/prisonstudies.org/files/resources/downloads/wppl_10.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2014. 30 Ver especialmente LOPES JNIOR, Aury. O novo regime jurdico da priso processual, liberdade provisria e medidas cautelas diversas: Lei 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 31 INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitencirio em 2012. Disponvel em: Acesso em 01 de Fev. de 2014. 32 CHRISTIE, Nils. Indstria do Controle do Delito. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998, p. 40. 33 INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do Sistema Penitencirio em 2012. Disponvel em: Acesso em 01 de Fev. de 2014.

  • punitivo.34 Ainda, que o presente desastre autoritrio no responde a nenhuma

    ideologia, porque no regido por nenhuma ideia, e sim justamente pelo extremo

    oposto: o vazio do pensamento.35

    Considerando-se que uma boa parte da populao carcerria brasileira est presa

    em razo do trfico de drogas ou condutas a ele relacionadas, no seria ingenuidade

    perguntar sobre a razo da proibio. Normalmente, nos preocupamos com as

    repercusses para as famlias e perda de vidas de jovens para o vcio. Por outro lado,

    quantos policiais morrem todos os anos na represso droga? Quantas pessoas

    vinculadas ao trfico tambm?

    Certo que existem fortes razes para o avano em direo polticas

    descriminalizadoras. A grande questo o rumo a seguir. Para alm de uma

    concepo estatista ou liberal, ambas sujeitas ao controle e indissociveis do

    paternalismo, existe outra: a libertria. disto que trataremos a seguir.

    4. Governamentalidade, drogas e as polticas criminais de reduo de danos: continuismo e excluso (do controle) social A ideia sobre governamentalidade fundamental para discutirmos as

    possibilidades de um controle no apenas normativo e corporal, como tambm aquele

    introjetado pelos sujeitos. Foucault trabalha a governamentalidade como uma arte de

    governar, que passa do corpo alma, podendo traduzir-se em trs noes:

    1) o conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por instrumentos tcnicos essenciais os dispositivos de segurana. 2) a tendncia que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, preeminncia deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros soberania, disciplina etc. e levou a desenvolvimento de uma srie de aparelhos especficos de governo e de um conjunto de saberes. 3) o resultado do processo atravs do qual o Estado de justia da Idade Mdia, que se tornou nos sculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. 36

    34 ZAFFARONI, Eugnio Rul Zaffaroni. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 82. 35 Idem, ibidem. 36 FOUCAULT, Michel. A Microfsica do Poder. 25a ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012, p. 430.

  • Foi justamente esta sada do Estado de seus domnios formais para os corpos

    dos cidados que permitiu a sobrevivncia da abstrao estatal. Trata-se de um

    fenmeno particularmente astucioso37, que permitiu ao Estado sobreviver no espao

    real da luta poltica. Paulatinamente assimilada pelo corpo social, pode-se dizer que

    trata-se de estratgia interior e exterior ao Estado38. Por um lado, promovida por ele

    e, por outro, pelos prprios cidados que realizam demandas, cristalizadas atravs dos

    direitos, considerados, portanto, como formas de neutralizao do corpo social.

    Verdadeiras biopolticas.

    Nos dizeres de Passetti:

    Pela biopoltica se pretendia governar os corpos vivos, a populao, instituindo que a vida de cada um dependia da poltica. A biopoltica se constitui, portanto, tendo por alvo totalizante o corpo-espcie (populao e territrio) e funciona articulada com os poderes disciplinares individualizantes (utilidade e docilidade), atrelando o conjunto e o individual, e intimamente relacionada aos dispositivos de segurana. A biopoltica compe a srie populao processos biolgicos regulaes e regulamentaes relacionadas ao corpo-espcie como gesto calculista da vida; as disciplinas, por sua vez, esto vinculadas ao corpo- mquina como administrao dos corpos e esto compostas na srie corpo disciplina instituies. So tecnologias polticas que visam normalizaes39.

    Apenas ser possvel falarmos em autonomia do usurio desde o

    reconhecimento da realidade da biopoltica e seu governo da mentalidade. Existe uma

    dupla face aqui: o controle exercido e o esperado (pelos cidados em geral e pelos

    diretamente interessados).

    Este controle caracteriza e permeia as relaes sociais em sentido amplo.

    Transcendemos ideia de isolamento/confinamento das disciplinas do passado,

    materializadas por instituies como as prises, hospitais, escolas e a famlia. Hoje,

    esse controle caracterizado por controle contnuo e comunicao instantnea40, e

    expresso em monitoramentos. 37 FOUCAULT, Michel. A Microfsica do Poder. 25a ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012, p. 430. 38 Idem, ibidem. 39 PASSETTI, Edson. Transformaes da biopoltica e emergncia da ecopoltica. Disponvel em: Acesso em 04 de Fev. de 2014. 40 PASSETTI, Edson. Transformaes da biopoltica e emergncia da ecopoltica. Disponvel em: Acesso em 04 de Fev. de 2014.

  • A tecnologia do controle bastante mais avanada. Para transcender do corpo

    alma abandonamos os moldes confinantes para modulaes que so como uma

    moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como

    uma peneira cujas malhas mudasse de um ponto a outro.41 A proposta uruguaia tem sido questionada por usurios mais antigos42, que

    esperavam um maior avano por parte do governo. questionada a necessidade de

    registro dos usurios, ainda que se afirme ser sigiloso o fato que os usurios sero

    identificados, localizados geograficamente e mantidos sob vigilncia, indo contra a

    ideia de liberdade preconizada pelos movimentos favorveis chamada legalizao

    da maconha. Segundo alguns, direitos civis estariam sendo feridos por esse

    dispositivo legal. O uso, restrito a ambientes fechados particulares, tambm revela

    no ser a cannabis tratada de uma forma anloga ao lcool, ao tabaco ou cafena,

    por exemplo. Continua a questo do uso s escondidas- portanto, ao contrrio do

    que dizem alguns ativistas brasileiros, no se trata de legalizao da substncia,

    inclusive por constituir crime toda conduta que extrapole os limites legais, havendo

    sanes penais previstas para esses casos, variando de 20 meses a 10 anos de priso.

    Alm disso, seria atribuio do Estado estabelecer quantidade e qualidade da

    maconha a ser consumida ou deveria ele se preocupar com suas atribuies

    constitucionais e deixar aos usurios que definam suas necessidades e uso?

    E mais: se o prprio Estado reconhece uma relao entre o uso da cannabis e o

    trfico de drogas e suas consequncias nefastas, por que no regular tambm o

    mercado de outras substncias (dentro dessa perspectiva de controle estatal)

    descriminalizando o trfico das drogas consideradas ilcitas? Por que teria a cannabis

    recebido tratamento especial?

    Em uma poltica mais ousada, por que no descriminalizar o trfico de drogas

    consideradas ilcitas e deixar sociedade a tarefa de realizar um controle social das

    substncias?

    Justamente neste fluxo entre direitos e concesses que esto as chamadas

    polticas de reduo de danos, fundadas a partir da impossibilidade de eliminar a

    utilizao de substncias entorpecentes de nosso meio. A partir desta constatao, 41 DELEUZE, Gilles. Conversaes. 2a edio. So Paulo: Editora 34, 2010, p. 225. 42 FERRAZ, Lucas. Ativista que j foi presa por plantar maconha critica lei que legaliza erva no Uruguai. Disponvel em: Acesso em: 04 de Fev. 2014.

  • adotada a ideia de torn-lo mais seguro, impedindo transmisso de doenas e com um

    acompanhamento mais prximo aos usurios, pois mais vulnerveis do ponto de vista

    da sade pblica. Foi o que ocorreu em pases como Holanda, Sua, Inglaterra e

    Austrlia; e entrou na pauta de discusses de pases proibicionistas como os Estados

    Unidos da Amrica e o nosso43.

    importante considerarmos, porm, que as medidas de reduo de danos, por

    sua natureza paliativa possuem a potencialidade mxima de alcanar apenas parte do

    problema. Seu fundo permanece intacto. Mesmo regulamentando a obteno de

    substncias confiveis e de forma segura (do prprio Estado), ainda existe a

    possibilidade de ingresso do usurio no sistema penal a partir do momento em que

    existe uma zona nebulosa para diferenci-lo do traficante.

    Estamos tratando aqui do problema dos universais. A legislao, enquanto

    exemplo privilegiado daquela categoria, estabelece critrios aplicveis a todos. No

    entanto, desde muito, especialistas vm tratando do tema da droga de forma bastante

    diferente, para alm da ideia de senso comum da doena. o que nos diz Norman

    Zinberg:

    O ponto de vista em relao ao uso de drogas ilcitas expressado neste livro foi desenvolvido gradualmente, durante mais de 20 anos de experincia clnica com usurios. Inicialmente estava preocupado, como quase todas as pessoas, com o abuso, ou seja, com a perda de controle em relao substncia. Apenas depois de um longo perodo de investigao clnica, estudos sociais e reflexo, cheguei concluso de que ao invs de entender como e por qu certos usurios perderam controle, eu deveria focar na questo mais importante do por qu e como muitos outros usurios conseguem o controle e o mantm44.

    H muito se sabe sobre a tendncia de grupos de usurios a estabelecer seus

    prprios controles sobre o consumo45. Desta forma, definindo o que uso aceitvel e

    condenando os que fogem a esse padro, bem como limitando o uso a meios fsicos e

    sociais que propiciem experincias positivas e seguras identificando efeitos

    43 RODRIGUES, Thiago. Drogas, proibio e abolio das penas. In: PASSETTI, Edson (Coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 143. 44 ZINBERG, Norman E. Drug, Set, and Setting - The Basis for Controlled Intoxicant Use. Disponvel em: Acesso em 02 de Fev. de 2014. 45 ZINBERG, Norman E. Drug, Set, and Setting - The Basis for Controlled Intoxicant Use. Disponvel em: Acesso em 02 de Fev. de 2014.

  • potencialmente negativos.46

    relativamente recente a tentativa de enquadrar o consumo de substncias

    entorpecentes enquanto patologia. Fernandez refere que at 1914, nos EUA, as

    pessoas tinham direito a autodeterminao e automedicao quanto ao uso de drogas,

    medicamentos psicoativos ou no, como expresso dos direitos fundamentais da

    pessoa humana.47

    Certamente ser necessria uma anamnese sobre a necessidade de controle. A

    governamentalidade desnuda, mais do que nunca, que o Estado tambm somos ns.

    Tendo isto em mente, precisamos considerar: a mesma sociedade que apia o

    proibicionismo pode ser a mesma que autorize o Estado a produzir as substncias

    psicoativas? Esta dicotomia no pode deixar de ser considerada nos futuros debates

    poltico-criminais no Brasil.

    Discutir alternativas ao sistema penal no pode significar o afastamento da

    discusso acerca do seu prprio alicerce. Da a necessidade de identificarmos teorias

    que possam propiciar meios viveis de reduo dos processos de criminalizao a

    nveis drsticos. A reduo de danos insuficiente, na medida em que ela pressupe o

    sistema e a sua atuao prvia. necessrio (re)pensarmos a atuao anterior e os

    processos de criminalizao primria48.

    5. Consideraes Finais

    A poltica uruguaia traz novidades em relao s formas de tratamento dos

    entorpecentes. Novidades no necessariamente inditas, j que o proibicionismo

    fenmeno relativamente recente dentro de um panorama histrico.

    46 MACRAE, Edward. O Controle social do uso de substncias psicoativas. In: PASSETTI, Edson; SILVA, Roberto D. Dias da. Conversaes abolicionistas: uma crtica do sistema penal e da sociedade punitiva. So Paulo: IBCCrim, 1997, p. 111. 47 FERNANDEZ, Osvaldo. Drogas e o (Des)Controle Social. In: PASSETTI, Edson (Org.); SILVA, Roberto B. Dias da. Conversaes Abolicionistas: uma crtica do sistema penal e da sociedade punitiva. So Paulo: IBCCrim, 1997, p. 117-120. 48 VILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memrias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 72.

  • Segue sendo o tratamento benevolente com o usurio e a represso ao trfico a

    principal caracterstica enquanto poltica criminal. preciso pensarmos no paradoxo

    entre sustentar a legitimidade da venda de um produto que atenta sade pblica

    por parte do Estado, mas no por parte de um particular.

    Existe uma certa sensao de segurana a ser provida. A cultura proibicionista,

    apesar de ter sofrido uma pequena derrota, segue seu curso movida

    governamentalizaes, cujo contedo o medo. Medo do novo, medo da perda de

    sentidos. Medo, especialmente, da perda de controle.

    A priso que no reconhece limites espaciais, temporais ou de lugar

    justamente a da alma. Ser justamente do descolamento destas estruturas

    artificialmente introjetadas, a possibilidade de reconhecermos aquilo que os

    psiquiatras crticos j reconhecem: o nico controle possvel o social.

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