Transcript
  • Federico Garca Lorca

    Pequeno Poema Infinito

    Garcia Lorca miolo.indd 1 14/7/2009 10:25:52

  • Garcia Lorca miolo.indd 2 14/7/2009 10:25:52

  • Federico Garca Lorca

    Pequeno Poema Infinito

    Palavras de

    Federico Garca Lorca

    Roteiro de

    Jos Mauro Brant e Antonio Gilberto

    Traduo de

    Roseana Murray

    So Paulo, 2009

    Garcia Lorca miolo.indd 3 14/7/2009 10:25:52

  • Coleo Aplauso

    Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

    Governador Jos Serra

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

    Diretor-presidente Hubert Alqures

    Garcia Lorca miolo.indd 4 14/7/2009 10:25:53

  • Apresentao

    Segundo o catalo Gaud, No se deve erguer monumentos aos artistas porque eles j o fize-ram com suas obras. De fato, muitos artistas so imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas.

    Mas como reconhecer o trabalho de artistas ge niais de outrora, que para exercer seu ofcio muniram-se simplesmente de suas prprias emo-es, de seu prprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram mais voltil das artes, escrevendo, dirigindo e interpretan-do obras-primas, que tm a efmera durao de um ato?

    Mesmo artistas da TV ps-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou so muitas vezes inacessveis ao grande pblico.

    A Coleo Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memria de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participao na histria recente do Pas, tanto dentro quanto fora de cena.

    Ao contar suas histrias pessoais, esses artistas do-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a conscincia crtica da sociedade. Suas histrias tratam do contexto

    Garcia Lorca miolo.indd 5 14/7/2009 10:25:53

  • social no qual estavam inseridos e seu inevit-vel reflexo na arte. Falam do seu engajamento poltico em pocas adversas livre expresso e as conseqncias disso em suas prprias vidas e no destino da nao.

    Paralelamente, as histrias de seus familiares se en tre la am, quase que invariavelmente, saga dos milhares de imigrantes do comeo do sculo pas sado no Brasil, vindos das mais va-riadas origens. En fim, o mosaico formado pelos depoimentos com pe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo poltico e cultural pelo qual passou o pas nas ltimas dcadas.

    Ao perpetuar a voz daqueles que j foram a pr-pria voz da sociedade, a Coleo Aplauso cumpre um dever de gratido a esses grandes smbo-los da cultura nacional. Publicar suas histrias e personagens, trazendo-os de volta cena, tambm cumpre funo social, pois garante a preservao de parte de uma memria artstica genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem queles que merecem ser aplaudidos de p.

    Jos SerraGovernador do Estado de So Paulo

    Garcia Lorca miolo.indd 6 14/7/2009 10:25:53

  • Coleo Aplauso

    O que lembro, tenho.Guimares Rosa

    A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi cial, visa resgatar a memria da cultura nacio nal, biografando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas de cine ma, teatro e televiso. Foram selecionados escritores com largo currculo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a histria cnica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituda de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato en tre bigrafos e bio gra fados. Arquivos de documentos e imagens so pesquisados, e o universo que se recons-titui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetria.

    A deciso sobre o depoimento de cada um na pri-meira pessoa mantm o aspecto de tradio oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como seo biografado falasse diretamente ao leitor .

    Um aspecto importante da Coleo que os resul -ta dos obtidos ultrapassam simples registros bio-gr ficos, revelando ao leitor facetas que tambm caracterizam o artista e seu ofcio. Bi grafo e bio-gra fado se colocaram em reflexes que se esten-de ram sobre a formao intelectual e ideo l gica do artista, contex tua li zada na histria brasileira.

    So inmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua

    Garcia Lorca miolo.indd 7 14/7/2009 10:25:53

  • vida, deixando transparecer a firmeza do pen-samento crtico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso pas. Muitos mostraram a importncia para a sua formao terem atua do tanto no teatro quanto no cinema e na televiso, adquirindo, linguagens diferenciadas analisando-as com suas particularidades.

    Muitos ttulos exploram o universo ntimo e psicolgico do artista, revelando as circunstncias que o conduziram arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens.

    So livros que, alm de atrair o grande pblico, inte ressaro igualmente aos estudiosos das artes cnicas, pois na Coleo Aplauso foi discutido o processo de criao que concerne ao teatro, ao cinema e televiso. Foram abordadas a construo dos personagens, a anlise, a histria, a importncia e a atua lidade de alguns deles. Tambm foram exami nados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferena entre esses veculos e a expresso de suas linguagens.

    Se algum fator especfico conduziu ao sucesso da Coleo Aplauso e merece ser destacado , o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas.

    Garcia Lorca miolo.indd 8 14/7/2009 10:25:53

  • Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficcia a pesquisa documental e iconogrfica e contar com a disposio e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleo em curso, configurada e com identida-de consolidada, constatamos que os sorti lgios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filma-gem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais que neste universo transi tam, transmutam e vivem tambm nos tomaram e sensibilizaram.

    esse material cultural e de reflexo que pode ser agora compartilhado com os leitores de to do o Brasil.

    Hubert AlquresDiretor-presidente

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

    Garcia Lorca miolo.indd 9 14/7/2009 10:25:53

  • Garcia Lorca miolo.indd 10 14/7/2009 10:25:53

  • 11

    Introduo

    Revelar a alma de Federico Garca Lorca foi o nosso objetivo. Para realizarmos essa difcil misso foi necessrio um mergulho profundo em sua vida e obra. Cada um de ns, viajantes, chegou com sua prpria bagagem de leituras e vivncias em torno do poeta. J estvamos pron-tos para iniciar o mergulho no potico universo lorquiano.

    A primeira escolha nesse caminho foi a de uti-lizar somente palavras do prprio Garca Lorca. Apesar da nossa paixo pela sua obra dramtica e potica descobrimos que no era esse o cami-nho e sim o de seus textos mais pessoais: cartas, entrevistas, conferncias, memrias de infncia e fragmentos esparsos nos quais o autor revela um pouco de sua viso ntima do mundo.

    Durante meses trilhamos pelos caminhos abertos pelas suas obras completas e por todas as outras leituras que nos chegaram ao longo da busca. Um vasto material foi reunido, o suficiente para realizarmos vrios roteiros sobre o poeta. Preci-svamos de uma ideia que fosse o nosso cho, o mapa da nossa viagem. Granada. Nada poderia ser melhor do que a terra natal do nosso per-sonagem como ponto de partida do espetculo que desejvamos construir.

    Descobrimos uma conferncia do autor nos anos 30 chamada Como Canta Uma Cidade de Novem-

    Garcia Lorca miolo.indd 11 14/7/2009 10:25:53

  • 12

    bro a Novembro em que Granada contada por meio das estaes do ano. Era o que faltava para traarmos o itinerrio de nossa viagem.

    Conclumos que a conferncia seria a situao dramtica perfeita para que a voz do poeta surgisse de uma forma direta sem quarta pare-de. Agora precisvamos construir um discurso que tocasse as diversas faces da alma de nosso personagem. Comeamos a tecer uma colcha composta pelos retalhos de sua vida, fundamen-tais sua obra.

    E assim chegamos a este roteiro, sempre com a preocupao de convidar o pblico a uma via-gem literria pelo imaginrio potico de Lorca. Espectadores se transformando em leitores. E agora, leitores virando espectadores.

    Boa viagem!

    Jos Mauro Brant

    Antonio Gilberto

    Garcia Lorca miolo.indd 12 14/7/2009 10:25:53

  • Garcia Lorca miolo.indd 13 14/7/2009 10:25:54

  • Garcia Lorca miolo.indd 14 14/7/2009 10:25:54

  • 15

    Federico Garca Lorca

    Pequeno Poema Infinito

    Prlogo

    Senhoras e senhores:

    Desde o ano de 1918, quando ingressei na Re-

    sidncia dos Estudantes de Madri, at 1928 ano

    em que a abandonei, terminados meus estudos

    de Filosofia e Letras, ouvi naquele refinado sa-

    lo onde a velha aristocracia espanhola ia para

    corrigir sua frivolidade de praia francesa , cerca

    de mil conferncias.

    Com desejo de ar e de sol, eu me entediei tanto

    que ao sair me senti coberto por uma leve cinza

    quase a ponto de converter-se em pimenta de

    tanta irritao.

    No. No quero que entre nesta sala a terrvel

    mosca do tdio que une todas as cabeas por um

    tnue fio de sono e pe nos olhos dos ouvintes

    uns grupos diminutos de pontas de alfinete.

    De modo simples, com o registro que em minha

    voz potica no tem luzes de madeiras nem n-

    Garcia Lorca miolo.indd 15 14/7/2009 10:25:55

  • 16

    gulos de cicuta, nem ovelhas que subitamente

    so facas de ironias, vou ver se posso lhes dar

    uma simples lio sobre o esprito oculto da

    dolorida Espanha.

    (...) Como uma criana que mostra cheia de as-

    sombro a sua me vestida de cor viva para uma

    festa, assim quero lhes mostrar hoje a minha

    cidade natal. A cidade de Granada. Para isso

    tenho que usar exemplos de msica e os tenho

    que cantar. Isso difcil porque eu no canto

    como cantor mas como poeta, ou melhor, como

    um moo simples que vai guiando os seus bois.

    Tenho pouca voz e a garganta delicada. Assim,

    no h nada de estranho se me acontecer de

    desafinar como um galo. Mas se isso acontecer

    tenho certeza de que no ser o galo corrosivo

    dos cantores, que lhes pica os olhos e destri sua

    glria, mas eu o transformarei em um pequeno

    galinho de prata que porei amorosamente sobre

    o doce colo da garota (...) mais melanclica que

    exista neste salo.

    Um granadino cego de nascimento e ausente

    muitos anos da cidade saberia a estao do ano

    pelo que ouve cantar nas ruas.

    Garcia Lorca miolo.indd 16 14/7/2009 10:25:55

  • 17

    Hoje, no vamos levar nossos olhos na visita.

    Vamos deix-los sobre um prato de neve para

    que Santa Luzia no fique vaidosa.

    Todos os viajantes so distrados. Por que empre-

    gar sempre a vista e no o olfato ou o paladar

    para estudar uma cidade? (...)

    (...) Em todos os passeios que dei pela Espanha,

    um pouco cansado de catedrais, de pedras mor-

    tas, de paisagens com alma, me pus a buscar os

    elementos vivos, perdurveis, onde o minuto

    no se congela, que vivem num presente tr-

    mulo. Entre os infinitos que existem, segui dois:

    as canes e os doces. Enquanto uma catedral

    permanece cravada em sua poca, dando uma

    expresso contnua de ontem paisagem sempre

    movedia, uma cano salta de repente desse

    ontem para o nosso instante, viva e pulsante

    como uma r, com sua alegria e sua melancolia

    recentes, incorporada ao panorama como arbus-

    to novo, trazendo a luz viva das horas velhas,

    graas ao sopro da melodia.

    Para conhecer o palcio de Alhambra em Grana-

    da, por exemplo, antes de percorrer seus ptios

    e suas salas, muito mais til, mais pedaggico,

    Garcia Lorca miolo.indd 17 14/7/2009 10:25:55

  • 18

    comer o delicioso alfajor de Zafra ou as tortas

    Alaj das freiras, que do com seu aroma e sa-

    bor, a temperatura autntica do palcio quando

    estava vivo, assim como a luz antiga e os pontos

    cardeais do temperamento de sua corte.

    Na melodia, como no doce, se refugia a emoo

    da histria, sua luz permanente sem datas nem

    feitos. O amor e a brisa do nosso pas chegam

    nas toadas ou na rica pasta do torrone, trazendo

    a vida viva das pocas mortas, ao contrrio das

    pedras, dos sinos, das grandes personalidades e

    ainda da linguagem.

    Assim, pois, vamos ouvir a cidade de Granada.

    Garcia Lorca miolo.indd 18 14/7/2009 10:25:55

  • 19

    Granada

    O ano tem quatro estaes: inverno, primavera,

    vero e outono.

    Granada tem dois rios, oitenta campanrios,

    quatro mil canais, cinquenta nascentes, mil e

    uma fontes e cem mil habitantes. Tem uma f-

    brica de construir violes e bandolins, uma loja

    onde vendem pianos e acordees e armnicas

    e sobretudo tambores. Tem dois passeios para

    cantar, o Salo e a Alhambra e um para chorar, a

    Alameda dos Tristes, verdadeiro vrtice de todo

    o romantismo europeu. (...)

    A serra pe um fundo de pedra ou um fundo

    de neve ou um fundo de verde-sonho sobre as

    canes que no podem voar, que se deixam

    cair sobre os telhados onde queimam sua escalas

    na luz ou se afogam nas secas espigas de julho.

    Estas cantigas so a fisionomia da cidade e nelas

    vamos ver seu ritmo e sua temperatura.

    Vamos nos aproximando com os ouvidos e o

    olfato e a primeira sensao que temos um

    cheiro de junco, hortel, de mundo vegetal su-

    Garcia Lorca miolo.indd 19 14/7/2009 10:25:55

  • 20

    avemente amassado pelas patas das mulas e ca-

    valos e bois que vo e vm em todas as direes

    pela vrzea. Em seguida o ritmo da gua. Mas

    no uma gua louca que vai aonde quer. gua

    com ritmo e no com rumor, gua medida, justa,

    seguindo um canal geomtrico e executado a

    compasso em uma obra de irrigao. gua que

    rega e canta aqui embaixo e gua que sofre e

    geme cheia de diminutos violinos brancos l no

    alto da Alhambra.

    No h jogo de gua em Granada. Isso fica para

    Versalhes, onde a gua um espetculo, onde

    abundante como o mar, orgulhosa arquitetura

    mecnica e no tem o sentido do canto. A gua

    de Granada serve para apagar a sede. gua

    viva que se une a quem a bebe ou quele que a

    ouve , ou a quem deseja morrer nela.(...)

    Depois h dois vales. Dois rios. Neles a gua j

    no canta, um surdo rumor, uma nvoa mistu-

    rada com os sopros de vento que a serra envia.

    Mas tudo justo, com sua proporo humana. Ar

    e gua em pouca quantidade, o necessrio para

    nossos ouvidos. Essa a distino e o encanto

    de Granada. Coisas para dentro de casa, ptio

    Garcia Lorca miolo.indd 20 14/7/2009 10:25:55

  • 21

    pequeno, msica pequena, gua pequena, ar

    para que baile sobre nossos dedos.(...)

    Granada ama o diminuto. A linguagem do povo

    pe os verbos no diminutivo. Nada to inci-

    tante para a confidncia e o amor. Diminutivo

    assustado como um pssaro, que abre cmaras

    secretas de sentimento e revela o mais definido

    matiz da cidade.

    O diminutivo no tem maior misso do que limi-

    tar, apertar, trazer para o quarto e pr em nossa

    mo os objetos ou ideias de grande perspectiva.

    Se limita o tempo, o espao, o mar, a lua, as

    distncias e at o prodigioso: a ao.

    No queremos que o mundo seja to grande

    nem o mar to fundo. H necessidade de limitar,

    de domesticar os termos imensos.

    (...) O granadino v as coisas com os binculos ao

    contrrio. Por isso Granada nunca produziu he-

    ris, por isso Boabdil, o mais ilustre granadino de

    todos os tempos, a entregou aos castelhanos. (...)

    Granada est feita para a msica porque uma

    cidade encerrada, uma cidade entre serras onde

    Garcia Lorca miolo.indd 21 14/7/2009 10:25:55

  • 22

    a melodia devolvida e lapidada e retida por

    paredes e pedras. Granada no pode sair da sua

    casa. No como as outras cidades que esto

    margem do mar ou dos grandes rios, que viajam

    e voltam enriquecidas com o que viram. Sevilha

    e Mlaga e Cdiz escapam por seus portos e Gra-

    nada no tem mais sada do que seu alto porto

    natural de estrelas. Est recolhida, apta para o

    ritmo e o eco, medula da msica.

    Sua expresso mais alta no a potica mas a

    musical. (...) Por isso Granada no tem como

    Sevilha, cidade de D.Juan, cidade do amor, uma

    expresso dramtica, mas sim lrica. (...) E se em

    Sevilha o elemento humano domina a paisagem

    e entre quatro paredes passeiam Don Pedro e

    D.Alonso e o Duque Otvio de Npoles e Fgaro

    e Maara, em Granada passeiam os fantasmas

    por seus dois palcios vazios e a espora se con-

    verte numa formiga lenta que corre por um piso

    infinito de mrmore e a carta de amor em um

    punhado de grama e a espada num bandolim

    delicado que s aranhas e rouxinis se atrevem

    a tocar.

    Garcia Lorca miolo.indd 22 14/7/2009 10:25:55

  • Garcia Lorca miolo.indd 23 14/7/2009 10:25:55

  • Garcia Lorca miolo.indd 24 14/7/2009 10:25:56

  • 25

    Outono

    Chegamos a Granada l pelo final de novembro.

    H um cheiro de palha queimada e as folhas,

    aos montes, comeam a apodrecer. Chove e as

    pessoas esto em suas casas. Mas no meio da

    Porta Real h vrias lojinhas de tambores. (...)

    Uma Menina de Armilla ou de Santa F ou de

    Atarve, empregada, compra uma zambomba e

    canta esta cano:

    Los Cuatro Muleros Os Quatro Muleiros

    1 1

    De los cuatro muleros Dos quatro muleiros

    que van al campo, que vo ao campo,

    el de la mula torda, o da mula malhada,

    moreno y alto. moreno e alto.

    2 2

    De los cuatro muleros Dos quatro muleiros

    que van al agua, que vo buscar gua,

    el de la mula torda o da mula malhada

    me roba el alma. me rouba a alma.

    Garcia Lorca miolo.indd 25 14/7/2009 10:25:56

  • 26

    3 3

    De los cuatro muleros Dos quatro muleiros

    que van al ro, que vo ao rio

    el de la mula torda o da mula malhada

    es mi maro. meu marido.

    4 4

    A qu buscas la lumbre Por que buscas o lume

    la calle arriba, na rua de cima,

    si de tu cara sale se da tua cara

    la brasa viva? sai a brasa viva?

    Estes quatro muleiros so cantados por toda a

    multido de povoados que rodeiam a cidade,

    na coroa de povos que sobem pela serra. Can-

    o que os mouros levaram de Granada para a

    frica, onde ainda hoje em Tnis se ouve assim:

    (msica de Mouros ao piano)

    Garcia Lorca miolo.indd 26 14/7/2009 10:25:56

  • 27

    Minha Aldeia

    Nasci em Fuente Vaqueros, uma aldeia muito

    quieta e perfumada na vrzea de Granada. Tudo

    o que nela acontecia e todos os seus sentimentos

    e sensaes passam hoje por mim velados pela

    nostalgia da infncia e pelo tempo.

    O casario pequeno e branco e est todo beijado

    de umidade. A gua dos rios, pelas manhs ao

    evaporar-se, o cobre de gases frias, to de prata e

    nquel, que quando sai o sol, de longe, parece uma

    grande pedra preciosa. Logo, ao meio dia, as n-

    voas se dissipam e se v o casario dormindo sobre

    uma manta verde. A torre da igreja to baixa que

    no se destaca das casas e quando soam os sinos,

    parece que o fazem desde o corao da terra.

    Ao aproximar-se h um cheiro imenso de erva-

    doce e aipo silvestre que vivem nas noites. Com

    a lua, as estrelas e as roseiras em flor, formam

    uma essncia divina que faz pensar no esprito

    que as criou. Nestas noites os homens sentem

    mais os bordes sangrentos de um violo...

    A aldeia est formada por uma grande praa

    bordeada de bancos e lamos e vrias ruelas

    Garcia Lorca miolo.indd 27 14/7/2009 10:25:56

  • 28

    escuras e medrosas onde o inverno pe os fan-

    tasmas e aparies. A praa larga e de um lado

    est a igreja com seus frisos de ninhos e vespei-

    ros. Na porta h uma cruz de madeira com um

    lampio coberto de teias de aranha e cercada de

    louros e trepadeiras. Coroando a fachada est a

    Virgem das Paridas com o seu menino nos braos,

    carcomida de umidade e carregada de exvotos

    e medalhas ..

    Na frente da igreja est a casa onde eu nasci.

    grande, pesada, majestosa em sua velhi-

    ce... Tem um escudo no portal e umas gra-

    des que soam como sinos. Quando criana,

    meus amiguinhos e eu tocvamos nelas com

    uma barra de ferro e seu som nos deixava

    loucos de alegria (...) e fingamos tocar pelo

    fogo, pelos mortos, pelos batizados... Por

    dentro a casa fria e baixa. Nos seus bal-

    ces as professoras diziam versos e cantares

    quando passava a Virgem do Amor Formo-

    so e eu era o rei com uma bengala na mo.

    Nessa aldeia tive a minha primeira fantasia de

    distncia. Nesta aldeia serei terra e flores... Suas

    ruas, suas gentes, seus costumes, sua poesia e

    Garcia Lorca miolo.indd 28 14/7/2009 10:25:56

  • sua maldade sero como o andaime onde se

    aninharo minhas ideias de menino fundidas no

    cadinho da puberdade.

    Garcia Lorca miolo.indd 29 14/7/2009 10:25:56

  • Garcia Lorca miolo.indd 30 14/7/2009 10:25:57

  • 31

    Inverno

    Mas dezembro avana, o cu fica limpo, che-

    gam as manadas de perus e um som de pan-

    deiros, chocalhos e zambombas se apodera da

    cidade. Pelas noites dentro das casas fechadas

    se continua ouvindo o mesmo ritmo, que sai

    pelas janelas e chamins como se nascessem

    diretamente da terra. As vozes vo subindo de

    tom, as ruas se enchem de quiosques ilumina-

    dos, de grandes montes de mas, os sinos da

    meia-noite se unen com os sininhos que as

    freiras tocam ao nascer do dia, a Alhambra est

    mais escura do que nunca.

    (...) J esto as freiras Tomasas colocando em So

    Jos um chapu de cor amarela e na Virgem uma

    mantilha com seu pente de prender o cabelo. J

    esto as ovelhas de barro e os cachorrinhos de

    l subindo pelas escadas em direo ao musgo

    artificial. Comeam a soar os raladores e tampas

    de panelas e todos os utenslios de cobre cantam

    o alegrssimo romance dos peregrinitos:

    Garcia Lorca miolo.indd 31 14/7/2009 10:25:57

  • 32

    Romance de los Peregrinitos

    Hacia Roma caminan

    dos pelegrinos,

    a que los casa el Papa

    porue son primos.

    Sombrierito de hule

    Lleva el mozuelo,

    Y la pelegrinita,

    De terciopelo

    Al passar por el puente

    De la Victoria,

    Tropez la madrina,

    Cay la novia.

    (...)

    Cantam as pessoas nas ruas em grupos alegres,

    cantam as crianas com as criadas, cantam as

    rameiras bbadas nessas carruagens com as

    cortinas fechadas, cantam os soldados quando

    se lembram de suas aldeias enquanto se deixam

    pintar nas margens dos rios.

    a alegria da rua e a humor andaluz e a sutileza

    inteira de um povo cultssimo.

    Garcia Lorca miolo.indd 32 14/7/2009 10:25:57

  • Las campanas de Roma

    ya repicaron,

    Porque los pelegrinos

    Ya se han casado.

    Garcia Lorca miolo.indd 33 14/7/2009 10:25:57

  • Garcia Lorca miolo.indd 34 14/7/2009 10:25:58

  • 35

    Infncia

    As emoes da infncia esto em mim. Ainda

    no sa delas. (...)

    Sou um pobre garoto apaixonado e silencioso

    que, quase como o maravilhoso Verlaine, tenho

    dentro uma aucena impossvel de regar e apre-

    sento aos olhos bobos dos que me olham uma

    rosa muito encarnada, que no a verdade do

    meu corao. (...) Meu tipo e meus versos do a

    impresso de algo formidavelmente passional...

    entretanto, no mais fundo da minha alma h um

    desejo enorme de ser bem menino, bem pobre,

    bem escondido.

    Minha vida? Ser que eu tenho uma vida?

    Contar minha vida seria falar do que sou e a

    vida de uma pessoa o relato do que se foi. As

    lembranas, at da minha mais longnqua infn-

    cia, so em mim, apaixonado tempo presente.

    E vou contar. a primeira vez que falo disso, que

    sempre foi s meu, ntimo, to privado, que nem

    eu mesmo nunca quis analisar. Quando eu era

    criana, vivia em pleno ambiente de natureza.

    Garcia Lorca miolo.indd 35 14/7/2009 10:25:58

  • 36

    Como todas as crianas, conferia a cada coisa,

    mvel, objeto, rvore, pedra, a sua persona-

    lidade. Conversava com elas e as amava. (...)

    No quintal da minha casa havia umas rvores,

    uns choupos. Uma tarde imaginei que os chou-

    pos cantavam para mim. O vento, ao passar por

    seus ramos, produzia um rudo que variava de

    tom e que a mim me pareceu musical . E eu cos-

    tumava passar as horas acompanhando com a

    minha voz a cano dos choupos...Outro dia me

    detive assombrado. Algum pronunciava meu

    nome, separando as slabas como se soletrasse:

    Fe...de...ri...co... Olhei para todos os lados e

    no v ningum. Entretanto, em meus ouvidos

    seguiam sussurrando o meu nome. Depois de

    escutar por um longo tempo, encontrei a razo.

    Eram os ramos de um velho salgueiro que ao

    roar-se produziam um rudo montono, quei-

    xoso, que parecia meu nome. (...)

    A criao potica um mistrio indecifrvel,

    como o mistrio do nascimento do homem.

    Se ouvem vozes no se sabe de onde e intil

    preocupar-se de onde elas vm. Como no me

    preocupei em nascer, no me preocupo em mor-

    Garcia Lorca miolo.indd 36 14/7/2009 10:25:58

  • 37

    rer. Escuto a Natureza e ao homem com assom-

    bro, e copio o que me ensinam sem pedantismo

    e sem dar s coisas um sentido que no sei se elas

    tm. Nem o poeta nem ningum tem a chave e

    o segredo do mundo. (...)

    Amo a Terra. Me sinto ligado a ela em todas as

    minhas emoes. Minhas mais longnquas lem-

    branas de criana tm sabor de terra. A terra, o

    campo, fizeram grandes coisas na minha vida. Os

    bichos da terra, os animais, a gente camponesa,

    tm ideias que chegam a muito poucas pessoas.

    Eu as capto agora com o mesmo esprito dos

    meus anos infantis. Caso contrrio no teria

    podido escrever Bodas de Sangue e no teria co-

    meado minha prxima obra Yerma. Este Amor

    a Terra me fez conhecer a primeira manifestao

    artstica. uma breve histria digna de se contar.

    Foi l pelo ano de 1906. Minha terra de agricul-

    tores havia sido sempre arada por velhos arados

    de madeira que apenas arranhavam a superfcie.

    E naquele ano, alguns lavradores compraram os

    novos arados Bravant o nome ficou para sem-

    pre em minha lembrana. Eu, menino curioso,

    seguia por todo o campo o vigoroso arado da

    Garcia Lorca miolo.indd 37 14/7/2009 10:25:58

  • 38

    minha casa. Eu gostava de ver como a enorme

    p de ao abria um talho na terra, talho de onde

    saiam razes em lugar de sangue. Uma vez o

    arado se deteve. Havia tropeado em algo consis-

    tente. Um segundo mais tarde, a folha brilhante

    de ao tirava da terra um mosaico romano. (...)

    Esse meu primeiro assombro artstico est unido

    a terra. (...) Minhas primeiras emoes esto li-

    gadas a terra e aos trabalhos do campo. Por isso

    h na minha vida um complexo agrrio, como

    chamariam os psicanalistas.

    Garcia Lorca miolo.indd 38 14/7/2009 10:25:58

  • Garcia Lorca miolo.indd 39 14/7/2009 10:25:58

  • Garcia Lorca miolo.indd 40 14/7/2009 10:25:59

  • 41

    Pobreza

    Na terra encontro uma profunda sugesto de

    pobreza. E amo a pobreza por sobre todas as

    coisas. No a pobreza srdida e faminta, mas

    a pobreza bem-aventurada, simples, humilde

    como o po moreno.

    Faz alguns anos, passeando pelas imediaes

    de Granada, ouvi uma mulher do povo cantar

    enquanto adormecia o seu menino. Uma cano

    cheia de uma melancolia oculta. Sempre havia

    notado a aguda tristeza das canes de ninar do

    nosso pas; mas nunca senti essa verdade to con-

    creta. Ao me aproximar da cantora para anotar

    a cano observei que era uma andaluza bonita,

    alegre, sem o menor trao de melancolia; mas

    uma tradio viva trabalhava nela e executava

    o seu mandado fielmente, como se escutassem

    as velhas vozes imperiosas que patinavam por

    seu sangue.

    Quem a canta? Esta a voz mais pura de Gra-

    nada, a voz elegaca, o choque do Oriente com

    o Ocidente em dois palcios quebrados e cheios

    de fantasmas. O de Carlos V e a Alhambra.

    Garcia Lorca miolo.indd 41 14/7/2009 10:25:59

  • 42

    Nana de Sevilla

    Este galagaguito

    no tiene mare.

    lo pari una serrana,

    lo ech a la calle.

    Acalanto de Sevilha

    Este nenenzinho

    No tem me

    O pariu uma cigana

    E o deixou na rua

    No povoado vivia uma menina loura, queimada

    pelo sol. Em sua boca tinha sangue e brilho de

    lua e seus olhos eram muito pequenos, com pon-

    tinhos de ouro e prado... Duas longas tranas que

    lhe chegavam at os ps, um vestido vermelho

    com bolinhas brancas... Uma flor no cabelo e as

    mos cortadas de tanto lavar as roupas de seus

    irmos nas guas da vrzea. Seu pai era um po-

    bre diarista que estava reumtico pelo trabalho

    e pela umidade, e a me, que tinha trinta anos,

    parecia que tinha cinquenta por causa das dores

    e da fecundidade de suas entranhas. E ento a

    me ia at a minha casa suplicar que, pelo amor

    de Deus, a ama que estava criando o meu irmo

    Garcia Lorca miolo.indd 42 14/7/2009 10:25:59

  • 43

    fosse at a sua casa para que seu beb mamasse

    um pouquinho porque seno morreria de fome.

    Minha me ordenava que fosse imediatamente

    e quando a ama chegava e botava o menino

    em seus joelhos, enquanto tirava suas grandes

    tetas brancas com veias azuis, o beb suspirava

    ofegante, rindo e chorando. Como isso acontecia

    com muita frequncia, fiz uma grande amizade

    com a menina e pelas tardes ia at l para levar

    esmolas da minha me, para ver a nascente que

    tinha no terreno e recolher pedrinhas brancas

    que pareciam cristal. Me dava tanta pena ver

    aquela casa toda escura e cheia de sujeira!...

    O cho era de terra e o teto de bambus... Os

    nicos mveis que possuam eram uma mesa do-

    brvel, umas quantas cadeiras desencontradas,

    um candeeiro enferrujado e um quadro muito

    grande da Virgem que estava entre nuvens es-

    curas, cuja umidade e poeira haviam convertido

    num monstruoso borro. Quando chegava na-

    quele antro de misria e honradez, a me, com

    os cabelos duros e desgrenhados, se levantava

    como um espectro e limpando a boca, me beijava

    com temor... Aquela mrtir da vida e do traba-

    lho tinha uma suavidade na voz e um olhar to

    Garcia Lorca miolo.indd 43 14/7/2009 10:25:59

  • 44

    doce que teramos que ser como ces raivosos

    para no nos compadecermos e chorarmos o

    seu calvrio... Aquela mulher, cujo ventre havia

    guardado tantas vidas para logo v-las morrer de

    fome e de misria, aquela santa destroada por

    um homem e sacrificada por seus filhos era to

    grande, to majestosa e to resignada que eu

    sentia diante dela temor por sua figura e amor

    por sua vida de tantas dores.

    Muitas vezes me dizia: Menino, amanh no ve-

    nha, porque temos que lavar a roupa... E eu no

    ia. Que tragdias to fundas e to caladas! No

    podia ir porque estavam desnudas e tremendo

    de frio, lavando os seus farrapos, os nicos que

    tinham...

    (...) Quando voltava para minha casa e olhava o

    armrio cheio de roupas limpas e perfumadas,

    sentia uma grande inquietude e um peso frio

    no corao... (...)

    Por muito tempo que passe, por muitas coi-

    sas que passem pela minha alma, nunca se

    apagar, nunca se borrar da minha alma a

    imagem daquela me. Os ossos rompendo-

    -lhe a roupa e seu olhar vindo do alm...

    Garcia Lorca miolo.indd 44 14/7/2009 10:25:59

  • 45

    sobretudo o seu olhar estar como uma

    lembrana eterna por ser a primeira impres-

    so trgica que tive da misria... Na Anda-

    luzia, nestes povoados carregados de cheiro

    e som, todas as mulheres pobres morrem

    da mesma coisa, de dar vidas e mais vidas.

    (...) Digo isso porque me criei entre essas vidas de

    dor. (...) Quantas vezes vi o enterro de uma me

    com o filho entre suas pernas, ambos mortos de

    misria e falta de assistncia... (...) Os enterros

    que de pequeno me entusiasmavam por suas

    caixas brancas e suas gases e flores, hoje eu vejo

    passar e fecho os olhos espantado, porque den-

    tro daquele corpo frio, quem sabe que corao

    haveria? (...) Todas estas lembranas tristes me

    vm ao pensar na casa da minha amiguinha

    loura, porque nela todos os anos nascia um e

    morria outro... (...)

    No faz muito tempo eu vi minha amiguinha

    loura... e quase comecei a chorar... Porque em

    seus olhos j existe a expresso de sua me e

    caminhava com duas crianas, uma mamando

    e outra descala, levada pela mo. Ah minha

    amiguinha loura! Voc ser como sua me. Suas

    Garcia Lorca miolo.indd 45 14/7/2009 10:25:59

  • filhas sero como voc. E quando eu penso nisso,

    mergulho num grande caos espiritual...

    Este nio chiquito Esse pequenininho

    no tiene cuna. No tem bero

    Su padre es carpintero Seu pai carpinteiro

    y le har una E far um

    46

    Garcia Lorca miolo.indd 46 14/7/2009 10:25:59

  • 47

    Primavera

    O ltimo estribilho escapa e a cidade fica ador-

    mecida nos gelos de janeiro.

    Para fevereiro, como o sol brilha e tira o mofo,

    as pessoas saem ao sol e levam merendas e pen-

    duram redes nas oliveiras onde se ouve o mesmo

    ui-ui das montanhas do norte.

    Os meninos crescidos se abaixam para ver as

    pernas das meninas que esto no balano, os

    maiores com o rabo do olho. O ar ainda est frio.

    Agora as ruas dos arrabaldes esto tranquilas.

    Alguns cachorros, o ar das oliveiras e de repente,

    plas! Um balde de gua suja que jogam de uma

    porta. Mas os olivais esto carregados.

    O povo canta nos arredores de Granada com a

    gua oculta sob um leve tempero de gelo.

    A los olivaritos s oliveiras

    Voy por las tardes vou pelas tardes

    A ver cmo menea para ver como se move

    Garcia Lorca miolo.indd 47 14/7/2009 10:25:59

  • 48

    la hoja el aire, a folha o ar,

    la hoja el aire, a folha o ar,

    A los olivaritos s oliveiras

    Voy por las tardes vou pelas tardes

    A mais pura sobrevivncia clssica anima esses

    cantos dos olivais.

    Ao anoitecer voltam as pessoas das plantaes

    e em muitos lugares prossegue a reunio com

    timidez.

    Mas ao chegar a primavera e os brotos verdes

    das rvores, comeam a abrir-se as varandas e a

    paisagem se transforma de um modo insuspei-

    tado. Chegamos da neve para cair (...) em todos

    os perfis do sul.

    E as meninas comeam a estar nas ruas e na

    minha infncia um poeta vulgar a quem chama-

    vam Miracu ia sempre sentar-se em um banco

    dos jardins:

    Garcia Lorca miolo.indd 48 14/7/2009 10:25:59

  • 49

    A Poesia

    Se encheu de luzes

    Meu corao de seda,

    De sinos perdidos

    De lrios e de abelhas,

    E eu irei muito longe

    Para alm destas serras,

    Para alm dos mares

    Perto das estrelas

    Para pedir a Cristo

    Senhor que me devolva

    Minha alma antiga de menino,

    Madura de lendas,

    Com gorro de plumas

    E o sabre de madeira

    Mas o que vou dizer da poesia? O que vou dizer

    destas nuvens, deste cu? Olhar, olhar, olh-las,

    olh-lo e nada mais. Compreenders que um poeta

    no pode dizer nada da poesia. Isso a gente deixa

    para os crticos e professores. Mas nem voc nem

    eu nem nenhum poeta sabemos o que a poesia.

    Aqui est: olha. Tenho o fogo em minhas mos.

    Eu o entendo e trabalho com ele perfeitamente,

    mas no posso falar dele sem literatura.

    Garcia Lorca miolo.indd 49 14/7/2009 10:25:59

  • 50

    A literatura a literatura e aquele que se em-

    penhe visceralmente em ser literato demonstra

    ser completamente bobo. A vida est cheia de

    caminhos e em todos h coisas amargas e doces

    para a gente encontrar.

    A poesia algo que anda pelas ruas. Que se

    move, que passa ao nosso lado. Todas as coisas

    tm o seu mistrio e a poesia o mistrio que

    contm todas as coisas. Se passamos junto de um

    homem, se olhamos uma mulher, se adivinhamos

    a marcha oblqua de um co, em cada um desses

    objetos humanos est a poesia.

    Por isso no concebo a poesia como abstrao,

    mas sim como uma coisa real existente, que

    passou junto de mim. Todas as pessoas dos meus

    poemas existiram. O principal encontrar a

    chave da poesia. Quando se est mais tranquilo,

    ento, zs, se abre a chave e o poema aparece

    com sua forma brilhante.

    (...) A poesia no tem limites. Pode nos esperar

    sentada na soleira da porta, nas madrugadas

    frias quando se volta com os ps cansados e a

    gola do casaco levantada. Pode estar nos espe-

    rando na gua de uma fonte, trepada na flor de

    Garcia Lorca miolo.indd 50 14/7/2009 10:25:59

  • 51

    uma oliveira, posta para secar no pano branco

    estendido no terrao da casa. O que no se pode

    fazer propor uma poesia com rigor matem-

    tico. Daquele que vai comprar um litro e meio

    de azeite. (...) Estamos num lago asfixiante de

    vulgaridade e sobre ele quero que minha ca-

    ravela fantstica v at o templo do magnfico

    com as velas infladas de neve e de sol. Eu sou

    como uma iluso antiga feita carne e ainda que

    meu horizonte se perca em crepsculos formi-

    dveis de enamoramentos, tenho uma corrente

    como Prometeu e me custa muito trabalho

    arrast-la... em vez de guia, uma coruja me ri

    o corao. (...)

    Porque no sou um homem, nem um poeta, nem

    uma folha, mas sim um pulso ferido que sonda

    as coisas do outro lado.(...)

    Sou um grande romntico e este o meu maior

    orgulho. Num sculo de zepelins e de mortes

    estpidas, soluo diante do meu piano sonhan-

    do na bruma Haendeliana e fao versos muito

    pessoais cantando tanto para Cristo quanto

    para Buda, Maom ou Pan. Por lira tenho meu

    piano e em vez de tinta, suor de desejo, p-

    Garcia Lorca miolo.indd 51 14/7/2009 10:25:59

  • 52

    len amarelo da minha aucena interior e meu

    grande amor.

    (...)

    H que ser religioso e profano. Reunir o mis-

    ticismo de uma severa catedral gtica com a

    maravilha da Grcia pag. Ver tudo, sentir tudo.

    Na eternidade teremos o prmio por no haver

    tido horizontes. (...)

    Temos que amar a lua sobre o lago da nossa

    alma e fazer nossas meditaes religiosas sobre

    o abismo magnfico dos crepsculos abertos...

    porque a cor a msica dos olhos...

    H que sonhar. Pobre daquele que no sonha,

    pois nunca ver a luz..

    Compreendo que tudo isso muito lrico, de-

    masiadamente lrico, mas o lirismo o que me

    salvar diante da eternidade

    Me sinto cheio de poesia, poesia forte, simples,

    fantstica, religiosa, m, funda, canalha, mstica.

    Tudo, tudo. Quero ser todas as coisas. Bem sei

    que a aurora tem a chave escondida em bosques

    raros, mas eu a saberei encontrar.

    Garcia Lorca miolo.indd 52 14/7/2009 10:25:59

  • Garcia Lorca miolo.indd 53 14/7/2009 10:26:00

  • 54

    Vero

    De maio a junho Granada um tocar de sinos

    incessante. Os estudantes no podem estudar.

    Duas comadres se encontram na sada do Hu-

    milladero, por onde entraram os reis catlicos:

    Comadre, de dnde vienes?

    Comadre, vengo de Granada.

    Comadre, qu passa all?

    Comadre, no pasa nada,

    estn haciendo cestillos

    y repicando las campanas.

    Comadre, de onde vens?

    Comadre, venho de Granada.

    Comadre, o que passa a?

    Comadre, no passa nada,

    Esto fazendo cestinhos

    E repicando os sinos.

    Na praa de Bibarrambla os sinos da cate-

    dral, sinos submarinos com algas e nuvens,

    no deixam falar os camponeses. Os sinos de

    San Juan de Dios lanam no ar um retbulo

    bar ro co de lamentos e socos de bronze e no

    en tan to a Alhambra est mais sozinha do

    Garcia Lorca miolo.indd 54 14/7/2009 10:26:00

  • 55

    que nunca, mais vazia do que nunca, esfola-

    da, morta, alheia cidade, mais longnqua

    do que nunca. Mas nas ruas h carrocinhas

    de sorvete, barracas de po de azeite com

    passas e gergelim e homens que vendem

    quebra-queixos de mel com gro-de-bico.

    Logo as granadinas com seus formosos braos

    desnudos e seus ventres como magnlias escuras

    abrem na rua guarda-sis verdes, laranjas, azuis,

    entre o frenesi das iluminaes e dos violinos e

    dos carros enfeitados...

    Pelo lado da rua da Elvira, da Velhssima:

    Rua da Elvira

    Onde vivem as manolas

    As que sobem a Alhambra

    As trs e as quatro sozinhas,

    Calle de Elvira

    donde viven las manolas,

    las que suben a la Alhambra

    las tres y las cuatro solas,

    Ali, cantam essa cano:

    Garcia Lorca miolo.indd 55 14/7/2009 10:26:00

  • 56

    Cancin de otoo en Castilla

    A los boles altos

    Los lleva el viento

    Y a los enamorados

    El pensamiento.

    Me digam vocs se isso no de uma grande beleza.

    Quer mais poesia que isso? J podemos nos calar, to-

    dos que escrevemos e pensamos poesia diante dessa

    magnfica poesia que fizeram os camponeses.

    Mas j no lhes disse que as canes vivem? Pois

    esta viveu nos lbios do povo e o povo a embe-

    lezou, a completou, a depurou at chegar a essa

    maravilha que temos hoje diante de ns. Porque

    isso cantam os camponeses. Nas casas da cidade

    no se canta isso.

    Neste momento dramtico do mundo, o artista

    deve chorar e rir com o seu povo. H que deixar

    o ramo de aucenas e se enfiar na lama at a

    cintura para ajudar os que buscam as aucenas.

    Particularmente tenho uma nsia verdadeira

    em comunicar-me com os demais. Por isso bati

    nas portas do teatro e ao teatro consagro toda

    a minha sensibilidade.

    Garcia Lorca miolo.indd 56 14/7/2009 10:26:00

  • Garcia Lorca miolo.indd 57 14/7/2009 10:26:00

  • 58

    O Teatro

    O teatro foi sempre a minha vocao. Dei ao

    teatro muitas horas da minha vida. Tenho um

    conceito de teatro de certa forma pessoal e re-

    sistente. O teatro a poesia que se levanta do

    livro e que se faz humana. E ao fazer isso, fala

    e grita, chora e se desespera. O teatro necessita

    que os personagens que aparecem em cena

    levem um traje de poesia e ao mesmo tempo

    preciso que se vejam seus ossos, o sangue. Ho de

    ser to humanos, to horrorosamente trgicos

    e ligados vida e ao dia com uma tal fora, que

    lhes mostrem as traies, que se lhes apreciem os

    cheiros e que lhes saiam dos lbios toda a valen-

    tia de suas palavras cheias de amor ou de asco.

    O que no pode continuar o que hoje sobe aos

    palcos levados pela mo dos seus autores. So

    personagens ocos, totalmente vazios, a quem s

    se pode ver atravs do colete um relgio parado,

    um osso falso ou um coc de gato, desses que se

    encontram por a. Hoje, na Espanha, a maioria

    dos autores e dos atores ocupam uma zona ape-

    nas intermediria. Escreve-se no teatro para os

    camarotes e no para o poleiro. Escrever para a

    plateia principal a coisa mais triste do mundo.

    Garcia Lorca miolo.indd 58 14/7/2009 10:26:00

  • 59

    O pblico que vai assistir fica frustrado . E o p-

    blico virgem, o pblico ingnuo, que o povo,

    no compreende por que se fala no teatro de

    problemas desprezados por ele nos ptios da sua

    vizinhana. Em parte os atores tm culpa. No

    que sejam ms pessoas, mas ... Oua, Fulano,

    quero que voc me faa uma comdia em que eu

    faa... eu mesmo. Sim, sim: eu quero fazer isso e

    aquilo. Quero estrear uma roupa de primavera.

    Adoraria ter vinte e trs anos. No se esquea.

    E, assim, no se pode fazer teatro. Assim, o que

    se faz perpetuar uma dama jovem atravs dos

    tempos e um gal apesar da arteriosclerose. (...)

    O teatro um dos mais expressivos e teis

    instrumentos para a edificao de um pas e o

    barmetro que marca sua grandeza ou a sua

    decadncia. Um teatro sensvel e bem-orientado

    (...) pode mudar em poucos anos a sensibilidade

    do povo; e um teatro destroado, no qual as

    patas substituem as asas, pode embrutecer e

    adormecer uma nao inteira.

    O teatro uma escola de pranto e riso e uma

    tribuna livre onde os homens podem colocar,

    em evidncia, morais velhas ou equivocadas e

    Garcia Lorca miolo.indd 59 14/7/2009 10:26:00

  • 60

    explicar com exemplos vivos normas eternas do

    corao e do sentimento do homem.

    Um povo que no ajuda e no fomenta o seu

    teatro, se no est morto est moribundo;

    como o teatro que no colhe a pulsao social,

    a pulsao histrica, o drama de suas gentes e a

    cor genuna de sua paisagem e de seu esprito,

    com riso ou com lgrimas, no tem o direito

    de chamar-se teatro. No me refiro a ningum

    nem quero machucar ningum; no falo da

    realidade viva, mas sim do problema levantado

    sem soluo.

    Escuto todos os dias, queridos amigos, falar da

    crise do teatro e sempre penso que o mal no

    est diante dos nossos olhos, mas sim no mais

    escuro de sua essncia: no um mal de flor

    atual, ou seja, de obra, mas sim de profunda

    raiz, que em suma, um mal de organizao. (...)

    O teatro deve se impor ao pblico e no o

    pblico ao teatro. Para isso, autores e atores

    devem revestir-se, a custa de sangue, de gran-

    de autoridade, porque um pblico de teatro

    como as crianas nas escolas; adora o professor

    srio e austero que exige e faz justia e enche

    Garcia Lorca miolo.indd 60 14/7/2009 10:26:00

  • 61

    de agulhas crueis as cadeiras em que se sentam

    os professores tmidos e aduladores que no

    ensinam nem deixam ensinar.

    H necessidade de fazer isso para o bem do tea-

    tro. H que manter atitudes dignas. O contrrio

    seria matar as fantasias, a imaginao e a graa

    do teatro, que sempre, sempre uma arte. Arte

    acima de tudo. Arte nobilssima. E vocs, queri-

    dos atores, artistas acima de tudo. Artistas dos

    ps cabea, j que por amor e vocao subiram

    ao mundo fingido e doloroso do palco. Artistas

    por ocupao e preocupao,desde o teatro mais

    modesto ao mais importante se deve escrever

    a palavra Arte em salas e camarins, porque

    seno vamos ter que pr a palavra Comrcio

    ou alguma outra que no me atrevo a dizer. E

    trabalho, disciplina, sacrifcio e amor.

    No quero dar-lhes uma lio porque me encon-

    tro em condio de receb-la. Minhas palavras

    so ditadas pelo entusiasmo e pela segurana.

    No sou um iludido. Pensei muito e com frieza,

    o que penso, e, como bom andaluz, possuo o

    segredo da frieza porque tenho sangue anti-

    go. Sei que no possui a verdade aquele que

    Garcia Lorca miolo.indd 61 14/7/2009 10:26:00

  • 62

    diz hoje, hoje, hoje, com os olhos postos nas

    pequenas goelas da bilheteria, mas sim o que

    serenamente olha l longe a primeira luz na

    alvorada do campo e diz amanh, amanh,

    amanh e sente chegar a nova vida que se

    derrama sobre o mundo.

    (...) Sabe outra coisa? Na arte no se deve nunca

    ficar quieto nem satisfeito. H que ter a coragem

    de quebrar a cabea contra as coisas e a vida... A

    cabeada... depois a gente v o que acontece...

    J veremos onde est o caminho . Uma coisa que

    tambm primordial respeitar os prprios ins-

    tintos. O dia em que se deixa de lutar contra seus

    instintos, esse dia em que se deixa de lutar contra

    seus instintos, nesse dia aprendemos a viver.

    Garcia Lorca miolo.indd 62 14/7/2009 10:26:00

  • Garcia Lorca miolo.indd 63 14/7/2009 10:26:01

  • 64

    A Morte

    Quero expressar o que passou por mim atravs

    de outro estado de esprito e revelar as longn-

    quas modulaes do meu outro corao. Isso

    que fao puro sentimento e vaga recordao

    da minha alma de cristal. (...)

    Cada dia que passa, tenho uma ideia e uma tris-

    teza a mais. Tristeza do enigma de mim mesmo!

    Existe em ns um desejo de no querer sofrer e

    de bondade inata, mas a fora exterior da ten-

    tao e a abrumadora tragdia da fisiologia se

    encarregam de destruir. Acredito que tudo que

    nos rodeia est cheio de almas que passaram,

    que so as que provocam nossas dores e so as

    que nos fazem entrar no reino onde vive essa

    virgem branca e azul que se chama Melancolia...

    ou seja, o reino da poesia.

    Vivo rodeado de morte! De morte, de morte

    fsica. Da minha morte, da tua e da morte dele.

    Compreende? Digam-me: por que a morte me

    ronda? (...) Vim para isso?

    A morte... Ah ! Em cada coisa h uma insinuao

    de morte. A morte est em todas as partes. a

    Garcia Lorca miolo.indd 64 14/7/2009 10:26:01

  • 65

    dominadora... A quietude, o silncio, a serenida-

    de so aprendizados. H um comeo de morte

    nos momentos em que estamos quietos. Quando

    estamos numa reunio, falando serenamente,

    olhe os sapatos dos presentes. Iro v-los quietos,

    horrivelmente quietos. So objetos sem gestos,

    mudos e sombrios, que nesses momentos no

    servem para nada, esto comeando a morrer...

    Os sapatos, os ps, quando esto quietos, tm

    um obsessivo aspecto de morte. Ao ver uns ps

    quietos, com essa quietude trgica que somen-

    te os ps sabem adquirir, a gente pensa : dez,

    vinte, quarenta anos mais e sua quietude ser

    absoluta. Talvez uns minutos. Talvez uma hora.

    A morte est neles.

    No posso me deitar de sapatos na cama, como

    costumam fazer os que tm as articulaes in-

    chadas quando se pem a descansar. Quando

    olho meus ps , a sensao da morte me afoga.

    Os ps, assim apoiados sobre seus calcanhares,

    com as plantas voltadas para a frente, me fa-

    zem recordar os ps dos mortos que vi quando

    criana. Todos estavam nessa posio. Com os

    ps quietos, juntos, com sapatos sem estrear...

    E isso a morte.

    Garcia Lorca miolo.indd 65 14/7/2009 10:26:01

  • 66

    Agora descobri uma coisa terrvel (mas no conte

    para ningum). Ainda no nasci. No outro dia,

    observava atentamente o meu passado (estava

    sentado na poltrona do meu av) e nenhuma das

    horas mortas me pertencia porque no fui eu

    quem as vivi, nem as horas de amor, nem as horas

    de dio, nem as horas de inspirao. Havia mil

    Federicos Garcas Lorcas estendidos para sempre

    no desvo do tempo; e no armazm do futuro,

    contemplei outros mil Federicos Garcas Lorcas

    muito bem-passadinhos, uns sobre os outros,

    esperando que os enchessem de gs para voar

    sem direo. Foi este momento um momento

    terrvel de medo, minha mezinha Dona Mor-

    te me havia dado a chave do tempo e por um

    instante compreendi tudo. Eu vivo emprestado,

    o que tenho dentro no meu, veremos se

    vou nascer.(...)

    Garcia Lorca miolo.indd 66 14/7/2009 10:26:01

  • Garcia Lorca miolo.indd 67 14/7/2009 10:26:02

  • 68

    O Outono Outra vez

    Temos que ir na ponta dos ps por este caminho

    de terra vermelha, bordeado de figueiras, a

    uma reunio agrupada numa curva do monte.

    Bailam e cantam. Acompanham-se com violo,

    castanhola e ainda tocam instrumentos pastoris,

    pandeiros e tringulos.

    So as pessoas que cantam as roas e as al-

    bores e as cachuchas e este zorongo que

    tanto influenciou a msica de Manuel de Falla.

    Zorongo

    Tengo los ojos azules

    Tengo los ojos azules

    Y el corazoncillo igual

    Que la cresta de la lumbre

    Las manos de mi cario

    te estn bordando una capa

    con agremn de alheles

    y con esclavina de agua.

    Cuando fuiste novio mo,

    por la primavera blanca,

    los cascos de tu caballo

    cuatro sollozos de plata.

    Garcia Lorca miolo.indd 68 14/7/2009 10:26:02

  • 69

    La luna es un pozo chico,

    las flores no valen nada,

    lo que valen son tus brazos

    cuando de noche me abrazan.

    Zorongo

    Eu tenho os olhos azuis

    Eu tenho os olhos azuis

    E o coraozinho igual

    A uma crista de luz

    As mos deste meu carinho

    Te vo bordar uma capa

    Com o ponto de aleri

    E com fios feitos dgua.

    E quem namorou comigo

    Numa primavera branca

    Os cascos de seu cavalo

    Quatro soluos de prata.

    A lua um poo triste

    As flores no valem nada

    O que valem so teus braos

    Quando de noite me abraam

    Garcia Lorca miolo.indd 69 14/7/2009 10:26:02

  • 70

    Chegamos ao ltimo raio da roda.

    A roda, que gire a roda.

    O outono surge pelas alamedas.

    E surgem as feiras com nozes, com aafro, com

    multido de marmelos, com torres de jalluyos e

    pes de acar da padaria do Corzo.

    (...) um canto confuso o que se ouve. todo o

    canto de Granada ao mesmo tempo: rios, vozes,

    cordas, ramagens, procisses, mar de frutas e

    tchamtchamtchim de balanos.

    Anda jaleo, jaleo; ya se acab el alboroto

    y ahora empieza el tiroteo.

    Mas acabada a alegria e o outono com rudo de

    gua vem tocando em todas as portas.

    Tam, tam.

    Quem ?

    O outono outra vez.

    O que quer de mim?

    O frescor da tua face.

    No quero te dar.

    Eu vou te tirar.

    Garcia Lorca miolo.indd 70 14/7/2009 10:26:02

  • 71

    Tam, tam.

    Quem ?

    O outono outra vez.

    Os canteiros de terra se enchem de mato com

    a primeira chuva. Como faz uma temperatura

    fresquinha as pessoas no vo aos jardins e Mi-

    racu est sentado na sua mesa com um braseiro

    embaixo . Mas os crepsculos enchem todo o

    cu; as enormes nuvens anulam a paisagem e as

    luzes mais raras patinam sobre os telhados ou

    dormem na torre da catedral. Outra vez ouvimos

    a voz da verdadeira melancolia:

    Acontece que as crianas no querem ir escola

    porque jogam pio.

    Acontece que nas salas comeam a acender lam-

    parinas para o finados.

    Acontece que estamos em novembro.

    H um cheiro de palha queimada e as folhas

    comeam a apodrecer aos montes, lembram?

    Chove e as pessoas esto nas suas casas.

    Mas no meio da Porta Real j se encontram vrias

    lojinhas de tambores.

    Garcia Lorca miolo.indd 71 14/7/2009 10:26:02

  • 72

    Uma menina de Armilla ou de Santa F ou de

    Atarfe, com um ano a mais, talvez vestida de

    luto, canta para os filhos de seus senhores:

    De los cuatro muleros Dos quatro muleiros

    que van al agua, que vo buscar gua,

    el de la mula torda o da mula malhada

    me roba el alma. me rouba a alma.

    A qu buscas la lumbre Por que buscas o lume

    la calle arriba, na rua de cima,

    si de tu cara sale se da tua cara

    la brasa viva? sai a brasa viva?

    Demos a volta ao ano. Assim ser sempre. Antes

    e agora. Ns vamos e Granada fica. Eterna no

    tempo e fugitiva nestas pobres mos do mais

    simples e pequeno de seus filhos.

    Fim

    Garcia Lorca miolo.indd 72 14/7/2009 10:26:02

  • 73

    Ficha Tcnica

    RoteiroJos Mauro Brant e Antonio Gilberto a partir de textos de Garca Lorca

    TraduoRoseana Murray

    InterpretaoJos Mauro Brant

    DireoAntonio Gilberto

    Cenografia e FigurinoRonald Teixeira

    IluminaoPaulo Csar Medeiros

    Direo musicalSacha Amback

    Arranjo e violo em ZorongoFbio Nin

    Assistncia de direoLeonardo Arantes

    Direo de cenaRicardo Malheiros

    Programao VisualMaurcio Grecco

    Assessoria de imprensaJoo Pontes e Stella Stephany

    Direo de Produo Rio de JaneiroPaulo Mattos

    Direo de Produo So Paulo e BrasilLlian Bertin

    Garcia Lorca miolo.indd 73 14/7/2009 10:26:02

  • Com 1 ano - 1899

    Garcia Lorca miolo.indd 74 14/7/2009 10:26:03

  • 75

    Cronologia

    1898

    Nasce na aldeia de Fuente Vaqueros, Granada,

    em 5 de junho. Filho de Federico Garca Rodri-

    guez, proprietrio agrcola, casado em segundas

    npcias com Vicenta Lorca Romero, professora

    primria.

    1900

    Entre 1900 e 1907 nascem dois irmos e duas

    irms de Federico: Lus, morto em pequeno,

    Francisco, Concepcin e Isabel. Aprende a ler

    com sua me.

    1908

    Vai morar em Almera onde ingressa no Instituto

    de Ensino Mdio daquela capital. Seus diverti-

    mentos favoritos so dizer a missa e improvisar

    sermes e cerimnias religiosas para os meninos

    de sua idade.

    1909

    A famlia Lorca se muda para o centro de Gra-

    nada, Federico volta de Almera e ingressa no

    Colgio do Sagrado Corao de Jesus.

    Garcia Lorca miolo.indd 75 14/7/2009 10:26:03

  • Porta da escola de Fuente Vaqueros, de chapu

    Garcia Lorca miolo.indd 76 14/7/2009 10:26:03

  • Com 6 anos - 1904

    Garcia Lorca miolo.indd 77 14/7/2009 10:26:04

  • 78

    Alterna os estudos secundrios com os de msica:

    violo, harmonia e piano. Comea a se interessar

    pelo folclore espanhol e pelos cancioneiros. Um

    dia, o menino Federico viu na praa do povoado,

    um espetculo de artistas mambembes. Aquilo

    transformou o menino, que chegando em casa

    construiu com sua imaginao e alguns trapos

    de papelo o seu prprio teatro. E ali, no seu

    palco de brinquedo, ele descobriu uma das suas

    paixes: o teatro de bonecos.

    1915

    Ingressa na Universidade de Granada estudando

    Filosofia, Direito e Letras. Conhece e trava rela-

    o pessoal com o catedrtico de Direito Poltico,

    Fernando de los Ros. Frequenta os meios arts-

    ticos e intelectuais da cidade.

    1916

    Excurses estudantis culturais pela Andaluzia e

    pelo resto da Espanha.

    1917

    Fantasia Simblica seu primeiro trabalho em

    prosa publicado, aparece no Boletin del Centro

    Artstico e Literrio de Granada.

    Garcia Lorca miolo.indd 78 14/7/2009 10:26:04

  • 79

    1918

    Impresses e Paisagens, primeiro livro em pro-

    sa, inspirado em parte pelas excurses de 1916.

    Viagem inicial capital da Espanha onde espera

    ingressar na Residencia de Estudiantes. Entra

    em contato com alguns dos poetas da futura

    gerao de 1927: Amado Alonso, Gerardo Diego,

    Pedro Salinas, Ciria, Guilhermo de Torre, etc.

    1919

    Granada, primeira composio potica impres-

    sa, conhecida, aparece na revista granadina

    Renovacin. Tem o subttulo de Elegia humilde.

    Instala-se na Residencia de Estudiantes de Madri,

    que ser seu domicilio na capital da Espanha at

    1928. Prossegue os estudos de Direito. Conhece

    Manuel de Falla que, a partir de 1920, se mudar

    em definitivo para Granada.

    1920

    O Sortilgio da Mariposa, primeira obra teatral

    de Federico, estreia em Madri, mas a pea fra-

    cassa. Durante os veres granadinos cultiva a

    amizade de Manuel de Falla e a de Fernando de

    los Ros, que anos depois promoveu sua viagem

    aos Estados Unidos, e aprovou, mais adiante,

    Garcia Lorca miolo.indd 79 14/7/2009 10:26:04

  • Anos 1920

    Garcia Lorca miolo.indd 80 14/7/2009 10:26:05

  • Anos 1920

    Garcia Lorca miolo.indd 81 14/7/2009 10:26:05

  • Anos 1920

    Garcia Lorca miolo.indd 82 14/7/2009 10:26:06

  • 83

    o projeto da La Barraca. Regressa a Madri e se

    matricula na Faculdade de Filosofia e Letras da

    Universidade Central.

    1921

    Livro de Poemas, seu primeiro livro de versos,

    editado em Madri. Colabora na revista ndice.

    No dirio El Sol, aparece o primeiro artigo de

    crtica sobre a poesia de Federico, assinado por

    Adolfo Salazar.

    1922

    Conferncia sobre o Cante Jondo, no Centro

    Artstico de Granada. Espetculo de marionetes,

    organizado por Federico no qual pretende son-

    dar a possibilidade de ser levado cena com o

    Retbulo de Mestre Pedro, de Falla.

    1923

    Continua interessado pelo teatro de bonecos.

    Forma-se em Direito. Compe e recita para os

    amigos os primeiros poemas do latente Roman-

    ceiro Gitano. Primeira leitura de Mariana Pineda.

    Reincorporado Resistncia madrilenha, conhe-

    ce e inicia amizade com Salvador Dal, ainda

    ignorado como pintor.

    Garcia Lorca miolo.indd 83 14/7/2009 10:26:06

  • Com sua irm Isabel

    Garcia Lorca miolo.indd 84 14/7/2009 10:26:07

  • Com Salvador Dali, Cadaqus - 1925

    Garcia Lorca miolo.indd 85 14/7/2009 10:26:08

  • Com Salvador Dali, Madri - 1927

    Garcia Lorca miolo.indd 86 14/7/2009 10:26:09

  • Com Salvador Dali, Cadaqus - 1927

    Garcia Lorca miolo.indd 87 14/7/2009 10:26:09

  • 88

    1924

    Prossegue a composio de Romanceiro Gitano

    e registra a ideia de Dona Rosita, a Solteira ou

    A Linguagem das Flores. Trabalha no livro Can-

    es. Conhece o pintor Gregrio Prieto e o poeta

    Rafael Alberti, que sero seus grandes amigos.

    1925

    Termina, em Granada, Mariana Pineda. Escreve

    vrias narrativas surrealistas: Passeio de Buster

    Keaton e A Donzela, o Marinheiro e o Estudante.

    Viaja em novembro Catalunha e se hospeda

    em casa da famlia Dal, em Cadequs.

    1926

    A Revista do Ocidente publica Ode a Salvador

    Dal. Passa o vero em Granada, empreende a

    redao de A Sapateira Prodigiosa.

    1927

    Publica Canes. Mariana Pineda estreia em

    Barcelona com figurinos e cenrios concebidos

    com a colaborao de Federico e Salvador Dal.

    Em outubro a pea estreia em Madri. Entre as

    duas estreias, Federico expe uma coleo de

    desenhos em Barcelona e veraneia em casa da

    famlia Dal. Replaneja e concretiza em Grana-

    Garcia Lorca miolo.indd 88 14/7/2009 10:26:09

  • 89

    da o projeto da revista literria de vanguarda

    Galo.

    1928

    Romanceiro Gitano, com poemas datados de

    1924 a 1927, publicado em Madri. Em feve-

    reiro, foi publicada em Granada a revista Galo,

    dirigida por Francisco Garca Lorca, irmo do

    poeta, futuro diplomata, ensasta e professor

    de literatura na Amrica do Norte: o nmero 2

    da revista aparece em abril e acaba.

    1929

    Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu

    Jardim. A pea teatral proibida pela censura.

    Federico desfruta a popularidade e a estima

    nos palcos da capital espanhola. O autor parte

    para os Estados Unidos onde permanece at

    meados do ano seguinte. Antes de incorporar-

    -se Universidade de Columbia passa por Paris,

    Londres, Oxford e Esccia. Comea O Poeta em

    Nova Iorque.

    1930

    A Sapateira Prodigiosa estreia em Madri. O po-

    eta havia regressado dos Estados Unidos e de

    Cuba onde esteve convidado pela Institucin

    Garcia Lorca miolo.indd 89 14/7/2009 10:26:09

  • 90

    Hispano-Cubana de Cultura para dar um ciclo de

    conferncias. L para amigos Assim que Passem

    Cinco Anos e O Pblico.

    1931

    Poema do Cante Jongo editado em Madri. O

    pas derrota a monarquia nas urnas e d vitria

    Republica. Federico participa de entusiastas

    e pacficas manifestaes populares que acla-

    mavam o novo regime. Trabalha no Div do

    Tamarit e, ao mesmo tempo, expe os primei-

    ros projetos para fundar o teatro universitrio

    ambulante La Barraca. Grava com a cantora e

    bailarina Encarnacin Lpez Julvez, La Argen-

    tinita, uma srie de discos de msica folclrica

    espanhola sendo este o nico registro de Lorca

    tocando piano.

    1933

    Estreia em Madri Bodas de Sangue. Trabalha em

    vrios livros de poesia, projeta uma trilogia dra-

    mtica da qual Yerma seria a segunda pea. Sua

    famlia transfere-se para Madri. Desembarca em

    Buenos Aires convidado para dar conferncias,

    recitais e dirigir as representaes de algumas de

    suas obras. Primeiro encontro com Pablo Neruda.

    Garcia Lorca miolo.indd 90 14/7/2009 10:26:09

  • Na Alhambra - 1927

    Garcia Lorca miolo.indd 91 14/7/2009 10:26:10

  • Em Cuba - 1930

    Garcia Lorca miolo.indd 92 14/7/2009 10:26:11

  • Em La Barraca

    Garcia Lorca miolo.indd 93 14/7/2009 10:26:11

  • 94

    1934

    Retbulo de Dom Cristvo, farsa de tteres, es-

    treia em Buenos Aires. Yerma estreia em Madri

    no Teatro Espanhol. A permanncia de Federico

    em Buenos Aires se dilata at final de maro.

    Antes de retornar, visita o Uruguai. O navio faz

    uma escala no Rio de Janeiro onde presenteado

    com uma bandeja de borboletas brasileiras por

    Alfonso Reyes, ento embaixador do Mxico.

    Em Madri, reencontro com Pablo Neruda; idas

    ao norte da Espanha com La Barraca.

    1935

    Pranto por Igncio Snchez Mejas publicado.

    Em Barcelona estreia de Dona Rosita no teatro

    Principal Palace. Estrondoso sucesso: persona-

    lidades, polticos, intelectuais, artistas, pblico

    acolhem e aplaudem o poeta granadino que

    triunfa em Barcelona. As vendedoras de flores

    das Ramblas o reconhecem e o rodeiam agra-

    decendo uma das representaes da comdia,

    dedicada ao sindicato delas. Durante o vera-

    neio em Granada pretende terminar Div do

    Tamarit.

    Garcia Lorca miolo.indd 94 14/7/2009 10:26:11

  • Com La Argentinita

    Garcia Lorca miolo.indd 95 14/7/2009 10:26:12

  • Em Montevidu - 1934

    Garcia Lorca miolo.indd 96 14/7/2009 10:26:12

  • Com sua me, Vicenta - 1935

    Garcia Lorca miolo.indd 97 14/7/2009 10:26:13

  • Madri, 17 de abril de 1936

    Garcia Lorca miolo.indd 98 14/7/2009 10:26:13

  • 99

    1936

    Primeiras Canes / Bodas de sangue (edio) /

    A Casa de Bernarda Alba (leitura).

    Em julho, poucos dias antes de rebentar a guerra

    civil, foi realizada nova leitura da pea em Madri.

    Na segunda quinzena de julho, estoura a guerra

    civil. Todos os artistas e intelectuais de esquerda

    deixam o pas. Quase no ltimo trem de Madri,

    o poeta recusa um convite de Margarita Xirgu

    para se refugiar no Mxico e escolhe voltar sua

    Granada. Instala-se na Huerta de San Vicente,

    casa de veraneio que a famlia possui nos arre-

    dores. Federico vive oculto, uma vez que estava

    sendo perseguido pelos fascistas.

    Em agosto, consegue fugir da casa de campo

    para se refugiar na cidade, na casa do poeta Luis

    Rosales. Em 16 de agosto, o poeta descoberto

    e preso. Horas, ou dias depois, conduziram o

    poeta ao p da Serra de Alfacar ao lado de uma

    fonte chamada pelos mouros de Ainadamar ou

    fonte de lgrimas. L, foi fuzilado e enterrado

    em uma fossa aberta em pleno campo, sob as

    oliveiras. Desconhece-se a data exata do crime.

    Garcia Lorca miolo.indd 99 14/7/2009 10:26:13

  • 100

    O atestado de bito, redigido quatro anos

    depois, em 1940, explica: ...faleceu no ms de

    agosto de 1936 em consequncia de feridas cau-

    sadas por ao de guerra... Seu corpo nunca foi

    encontrado. Em Granada, Federico Garca Lorca

    virou terra e flores.

    Garcia Lorca miolo.indd 100 14/7/2009 10:26:13

  • 101

    Fortuna Crtica

    O Triunfo da Simplicidade

    Brbara Heliodora O Globo

    Federico Garca Lorca: Pequeno Poema Infinito

    acerta ao focar na emoo.

    O espetculo Federico Garca Lorca: Pequeno

    Poema Infinito, em cartaz no Teatro de Arena

    da Caixa Econmica, o triunfo da simplicidade.

    Voltado para a vida e o pensamento de Lorca

    mais do que para sua obra mais conhecida,

    potica e dramtica, tudo focado na emoo

    bsica do amor de Lorca por Granada. O rotei-

    ro elaborado por Jos Mauro Brant e Antonio

    Gilberto pinou de dirios e outros escritos do

    poeta, um conjunto harmnico que condiz com

    a sinceridade e a simplicidade das palavras de

    Lorca.

    Reconhecendo as belezas naturais e arquitetni-

    cas de Granada, nestes textos Lorca fala de uma

    contnua redescoberta de sua cidade natal, em

    um roteiro que comea no outono e se estende

    pelas quatro estaes at voltar ao ponto no

    Garcia Lorca miolo.indd 101 14/7/2009 10:26:13

  • 102

    qual comeou. Para Lorca a cidade no vive

    pelo que a faz famosa, mas, por seus cheiros,

    seus gostos, seus cantos populares, sua trgica

    mortalidade infantil, sua compassiva afeio

    pelos que vivem em pobreza digna. Os palcios

    da cidade para ele so apenas fontes de evoca-

    o de mortos e tradies, e cada estao tem

    suas comemoraes e lembranas, com os sinos

    e tambores servindo de baixo contnuo para essa

    emocionante visita cidade. Colabora bem com

    o todo a traduo de Roseana Murray.

    Parte importante das lembranas e emoes de

    Lorca, a visita interrompida por suas grandes di-

    gresses, uma sobre o teatro e outra sobre a mor-

    te. com considervel habilidade que o roteiro

    trata esse assunto do texto, revelando partes fun-

    damentais da viso das coisas que tem o poeta,

    conseguindo mesclar bem o visitante e a visitada.

    A encenao exemplar; tanto o lindo cenrio

    de Ronald Teixeira, com seu tapete evocando

    uma terra quente e rica, quanto a discrio do

    figurino e a bonita luz de Paulo Csar Medei-

    ros seguem a mesma simplicidade dos textos,

    propiciando uma imensa empatia entre palco e

    Garcia Lorca miolo.indd 102 14/7/2009 10:26:13

  • 103

    plateia. O espetculo ideia por muito tempo

    acalentada e amadurecida, e a direo de Anto-

    nio Gilberto encontra o tom certo para que tome

    vida essa viagem sentimental de Garca Lorca

    sua terra, trazendo seu intrprete para perto

    do pblico, mas sem exageros, e deixando-o

    isolado em seus sentimentos quando necessrio.

    Jos Mauro Brant sorveu tudo o que podia a

    respeito de Federico Garca Lorca, e sua atuao

    parece toda empenhada em captar a sinceridade

    e a simplicidade do amor de Lorca por sua bela

    Granada, que lhe provoca na alma o desejo de

    ser bem menino, bem pobre, bem escondido.

    Um belo espetculo.

    Garcia Lorca miolo.indd 103 14/7/2009 10:26:13

  • 104

    Emocionado retrato do genial Lorca

    Federico Garca Lorca: pequeno poema

    infinito

    Lionel Fischer Tribuna da Imprensa

    Assassinado pelos fascistas, que temiam muito

    mais sua caneta do que a possibilidade de ele

    empunhar uma arma, Federico Garca Lorca

    (1898-1936) deixou uma obra potica extraordi-

    nria, e uma no menos brilhante obra teatral,

    na qual se incluem pelo menos trs obras-primas:

    Bodas de sangue, Yerma e A casa de Ber-

    narda Alba. Mas o presente espetculo tem

    por foco o homem, bem menos conhecido do

    que o fantstico legado artstico que nos deixou.

    Com roteiro assinado por Jos Mauro Brant e

    Antonio Gilberto, Federico Garca Lorca: pe-

    queno poema infinito exibe textos do genial

    artista andaluz, que abordam recordaes da

    infncia, sua amorosa relao com Granada e

    reflexes sobre a vida e o teatro, dentre outros

    temas. Em cartaz na Caixa Cultural, a montagem

    leva a assinatura de Antonio Gilberto, cabendo

    a Brant viver o protagonista.

    Garcia Lorca miolo.indd 104 14/7/2009 10:26:13

  • 105

    Estruturado como uma palestra, o espetculo

    nos mostra, inicialmente, a paixo de Lorca pela

    msica o personagem canta algumas canes

    tpicas de sua regio, acompanhando-se ao

    piano. Aos poucos, as recordaes da infncia

    se tornam dominantes e, mais adiante, o perso-

    nagem envereda por caminhos mais reflexivos,

    mas sempre impregnados do lirismo e paixo que

    caracterizam toda a sua obra. E como todos os

    textos so de Lorca, a plateia tem acesso a uma

    mente brilhante, de rara sensibilidade e vigo-

    rosa capacidade de refletir sobre o seu tempo.

    Quanto ao espetculo, este realizado de forma

    a valorizar ao mximo todos os contedos impl-

    citos. Impondo cena uma dinmica simples e

    austera, mas, ao mesmo tempo, impregnada de

    delicadeza e poesia, Antonio Gilberto consegue

    nos oferecer um retrato pertinente e emocio-

    nado daquele que todos incluem no seleto rol

    dos maiores poetas e dramaturgos de todos

    os tempos.

    No que se refere a Jos Mauro Brant, o ator

    exibe uma performance irretocvel, tanto nas

    passagens em que o personagem apenas con-

    Garcia Lorca miolo.indd 105 14/7/2009 10:26:13

  • 106

    versa com a plateia quanto naquelas em que,

    tomado de visvel emoo, aborda temas que o

    mobilizam de forma visceral. To eficiente nas

    partes cantadas como nos momentos em que o

    texto predomina, Brant ratifica seu enorme ta-

    lento, ainda no inteiramente reconhecido pelo

    grande pblico e pelos veculos de comunicao,

    o que desejamos sinceramente que mude a partir

    desta maravilhosa atuao.

    Na equipe tcnica, destacamos o timo trabalho

    de todos os profissionais envolvidos Roseana

    Murray (traduo), Paulo Csar Medeiros (ilu-

    minao), Ronald Teixeira (cenrio e figurino)

    e Sacha Amback (direo musical).

    Garcia Lorca miolo.indd 106 14/7/2009 10:26:14

  • 107

    Lorca em Sutil Composio

    Macksen Luiz Jornal do Brasil

    Federico Garca Lorca Pequeno Poema Infinito,

    em temporada na Caixa Cultural, no pretende

    analisar a obra do poeta e dramaturgo espanhol,

    mas captur-lo no voo libertrio do homem. No

    roteiro, assinado pelo diretor Antonio Gilberto

    e pelo ator Jos Mauro Brant, inclui-se palestra

    de Lorca sobre Granada, a cidade sntese de

    suas vivncias, sobretudo as da infncia, e mo-

    tor potico de sua obra, alm de entrevistas,

    poemas e canes, procurando fixar o presen-

    te trmulo e alcanar a medula da msica.

    A sonoridade que se extrai dessas palavras ad-

    quire tom onrico em que o odor da terra e as

    lembranas da morte e das injustias encharcam

    sua voz de melancolia e indignao. A fria

    contida, que se esconde por entre silncios de

    hipocrisia, e o atordoamento pelos mistrios

    das memrias surgem neste roteiro como uma

    elegia s frestas do que o poeta pressentia em si.

    O lago alucinante de vulgaridades em que

    estamos mergulhados se contrape aos dias

    Garcia Lorca miolo.indd 107 14/7/2009 10:26:14

  • 108

    que deixamos de lutar contra os instintos, para

    aprendermos a viver. Neste intervalo de senti-

    mentos, Lorca aparece na compilao cnica da

    dupla como um palestrante cheio de desejos e

    impelido por caudal de palavras que expressam

    um turbilho interior que se revela por desvos.

    O diretor Antnio Gilberto desenhou monta-

    gem sutil e delicada, sem procurar nfases ou

    destacar momentos, preferindo se concentrar

    nas palavras. A forma quase a de uma palestra

    ilustrada em que se estabelece a comunicao

    com o publico atravs do que se ouve. Mas nem

    por isso a direo deixa de encenar o que dito.

    O ator, um Lorca que transita pela conteno

    da fala para ressoar a exploso verbal, evita

    com o mesmo formalismo, to bem marcado

    pelo figurino, qualquer tentao de criar uma

    atmosfera andaluza. O despojamento, tanto do

    roteiro quanto da interpretao, se estende

    cenografia de Ronald Teixeira, que, usando cores

    terrosas e dispondo de poucos elementos cnicos

    (piso, painel e piano), preenche o espao com

    discretas projees que se complementam pela

    iluminao sensvel de Paulo Csar Medeiros.

    Garcia Lorca miolo.indd 108 14/7/2009 10:26:14

  • 109

    O diretor apenas no consegue resolver muito

    bem a disposio do espao da Caixa Cultural,

    concentrando as marcas com uma frontalidade

    que privilegia apenas uma das trs reas ocupa-

    das pelos espectadores.

    Jos Mauro Brant se mantm em linha de atu-

    ao quase expositiva assumindo o papel de

    palestrante , contrabalanada pela intensidade

    camuflada do poeta. O Lorca que o ator projeta

    no busca a dramaticidade, mas a tenso inte-

    rior, subjacente s palavras e, neste registro,

    Jos Mauro Brant afaga o que o poeta escreveu.

    Garcia Lorca miolo.indd 109 14/7/2009 10:26:14

  • 110

    Ns Vamos e Granada Fica

    Marcelo Mello, no site Aguarrs

    Federico Garca Lorca Pequeno Poema In-finito, em cartaz no Teatro de Arena da Caixa Cultural, uma homenagem ao poeta e dra-

    maturgo espanhol que d ttulo ao espetculo.

    No exatamente retratando sua vida e obra, mas

    tentando captar seu pensamento, seu esprito

    suas memrias e sonhos, a ligao ntima com

    sua gente, o seu amor s palavras, a admirao

    pela cultura popular, particularmente, a msica,

    e, antes de tudo, a relao visceral com Grana-

    da, sua terra natal. Federico Garca Lorca, autor

    de Romancero Gitano, livro de poemas, e de peas como Bodas de Sangue; Yerma; Dona Rosita, a Solteira; A Casa de Bernarda Alba; fundador do grupo La Barraca, nasceu em 1898

    e morreu precocemente em 1936, assassinado

    pela ditadura franquista durante a Guerra Civil

    Espanhola, o que torna ainda mais contundente

    sua contribuio humana e artstica.

    O roteiro (sobre textos de Lorca: uma confern-

    cia de 1933, fragmentos de entrevistas, poemas

    Garcia Lorca miolo.indd 110 14/7/2009 10:26:14

  • 111

    e canes) de Jos Mauro Brant e Antonio Gil-

    berto, respectivamente intrprete e diretor do

    espetculo, apresenta um Lorca sempre atento

    para o que o rodeia, seja a natureza, sejam os

    homens. Muito bem traduzido por Roseana

    Murray, o texto valoriza a sonoridade e o poder

    da linguagem, linha mestra da obra do poeta

    espanhol. Revela tambm, em primeira mo,

    alguns traos muito particulares de Lorca: o

    contato com aquilo que o emociona a pobreza

    de seu povo, a admirao pela bravura com que

    sua gente enfrenta a misria, o respeito pela

    arte popular, suas consideraes sobre a morte,

    reflexes sobre o teatro e a poesia. Lorca exigia

    do teatro uma grande fora vital e uma conexo

    com o povo. Alertava os atores a serem como al-

    guns professores, mantendo sempre uma atitude

    digna e severa com seu ofcio, a pensarem no

    apenas no hoje da bilheteria, mas no amanh,

    no amanh, no amanh.

    O espetculo um monlogo, no qual o nico

    ator interpreta, canta e toca piano. Jos Mauro

    tem domnio das palavras, sabe o que est fazen-

    do e falando. Nada se perde do que dito e as

    imagens sugeridas pelo texto se tornam concre-

    Garcia Lorca miolo.indd 111 14/7/2009 10:26:14

  • 112

    tas na interpretao de Brant. Talvez o grande

    amor do ator pelo texto, seu grande apreo ao

    autor, s vezes lhe deem um tom cerimonioso

    com as palavras, respeitoso demais, e falte uma

    maior embriaguez do intrprete, uma emoo

    flor da pele. Em vrios momentos, essa febre

    parece estar presente no ator, mas nem sempre

    atinge o pblico. Jos Mauro transmite maior

    carga dramtica quando canta e toca piano. Ali

    transparece com mais clareza o combate interior

    de uma alma emocionada que tem que se expres-

    sar artisticamente e, portanto, deve aprender a

    administrar seu excesso trgico. Como o prprio

    Lorca revela, o poeta no sabe o que poesia e a

    palavra deve se tornar carne viva. E viver deixar

    de lutar contra os instintos. A direo musical de

    Sacha Amback delicada, e as canes popula-

    res do um toque muito especial ao espetculo,

    facilitando o entendimento da alma do poeta e

    recuperando o ambiente de Granada.

    A cenografia e o figurino, assinados por Ronald

    Teixeira, trazem cena o essencial: um tapete

    de folhas, um tronco, um piano coberto por um

    pano bordado com desenho de Lorca. Destoa,

    no entanto, a presena de uma pequena rvore

    Garcia Lorca miolo.indd 112 14/7/2009 10:26:14

  • 113

    no canto da cena. Parece estranho um elemento

    real dentro de um ambiente que apenas sugere,

    nunca demonstra. Os olivais, j sugeridos pela

    iluminao, no precisavam de um exemplo

    to real como o vaso de planta. O ator veste

    um terno claro, inspirado em fotografias do

    prprio Lorca.

    A direo opta por um tom delicado, sensvel e

    sem estardalhaos. O grande mrito do roteiro

    e direo devolver o valor linguagem, fun-

    damental para as plateias de hoje que muitas

    vezes esto atentas apenas ao que veem e nem

    sempre ao que ouvem. O prlogo da pea traz

    um convite para preparar os ouvidos e espantar

    o tdio. Mesmo assim, ainda h uma dificuldade

    inicial de interao do pblico com o que est

    sendo dito no palco, mas o domnio do intrpre-

    te, o auxlio luxuoso da msica e a interveno

    expressiva da iluminao de Paulo Csar Medei-

    ros contribuem para que o contato se realize. A

    luz companheira de Jos Mauro em cena, com

    focos recortados que s vezes sugerem trilhas,

    projees que lembram os olivais, pequenas

    lmpadas representando as estrelas, o azul que

    traz a noite, as lamparinas que evocam a sim-

    Garcia Lorca miolo.indd 113 14/7/2009 10:26:14

  • 114

    plicidade, e um belo efeito que d uma sombra

    qudrupla de Jos Mauro, quando Lorca est se

    aproximando da morte, como se realmente

    esse homem fosse um pequeno poema infinito.

    O outono da morte roubou o frescor da sua face,

    mas no assassinou o grande homem que ele

    foi. Como o prprio poeta revela, vivemos nesse

    mundo emprestados. Ns vamos e Granada fica.

    Garcia Lorca miolo.indd 114 14/7/2009 10:26:14

  • 115

    A Conscincia Potica de Garca Lorca

    Latuf Isaias Mucci

    Sea prxima o lejana, espaola o sarracena,

    no hay ni una sola ciudad que se atreva con

    Granada, la bonita, el premio de la belleza. Ni

    ninguna que despliegue con ms gracia ms

    bellos destellos de oriente bajo esfera ms se-

    rena. (Vctor Hugo)

    Em maro de 1930, Federico Garca Lorca (1899-

    1936) vai a Cuba, a permanecendo at 13 de

    junho do mesmo ano, onde saudado por Rafael

    Surez Sols como o primeiro lrico da atualida-

    de espanhola, um contexto no qual fulguram,

    segundo o jornalista cubano, Alberti, Bergamn

    e Salinas. O espetculo Federico Garca Lorca,

    pequeno poema infinito, em cartaz, de 22 de

    maro a 10 de abril, no Caixa Cultural, do Rio

    de Janeiro, com direo de Antnio Gilberto e

    interpretado por Jos Mauro Brant, confirma o

    lirismo absoluto do dramaturgo do Romancero

    gitano (1928), bem como sua atualidade na

    cena da poesia universal. Artista plural dra-

    maturgo, poeta, artista plstico, musicista , o

    Garcia Lorca miolo.indd 115 14/7/2009 10:26:14

  • 116

    mais famoso filho de Granada desejou transferir

    para a literatura o mtodo musical de Manuel

    de Falla, traduzindo, em sua poesia e drama, o

    canto profundo do povo e fazendo convergir,

    numa sntese maravilhosa, as correntes lricas da

    Espanha, tanto na poesia popular de Lope de

    Vega quanto no lirismo precioso de Gngora.

    Fazendo feliz alquimia entre poesia, drama,

    msica, o espetculo carioca apresenta e repre-

    senta a arte visceral de Federico (nome como o

    poeta gostava de ser chamado). Em cena, um

    jovem ator, maduro na arte da representao

    teatral, encarna, esplendidamente, o artista gra-

    nadino, dando voz a seus poemas, fragmentos

    de conferncia, cantando canes populares de

    Espanha, executadas ao piano. Qual toureiro

    que dana na arena do teatro, Jos Mauro Brant,

    leitor inveterado de Mrio de Andrade, catalisa

    sobre si todos os olhares da plateia, atenta e

    atnita perante uma arte absoluta. Impossvel

    no se envolver, sem temer o risco de se perder

    para sempre, na corrente da poesia que emana

    do texto e das canes. Estruturado a partir da

    produo de Garca Lorca, o texto do espetculo

    constitui-se numa amlgama de poesia e prosa,

    teoria sobre o teatro, reflexes sobre a potica,

    Garcia Lorca miolo.indd 116 14/7/2009 10:26:14

  • 117

    teorizao sobre o fazer potico, narrativa em

    torno da cidade de Granada, configurando, ao

    fim e ao cabo, uma mandala que, alm de se-

    duzir, intensamente, o espectador, f-lo refletir

    sobr


Top Related