UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
WILLIAM PANICCIA LOUREIRO JUNIOR
A CRÍTICA HEGELIANA ÀS TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL DE HOBBES E DE
KANT
São Paulo
2015
WILLIAM PANICCIA LOUREIRO JUNIOR
A CRÍTICA HEGELIANA ÀS TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL DE HOBBES E DE KANT
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do grau de Licenciado em Filosofia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Roger Fernandes Campato
São Paulo
2015
WILLIAM PANICCIA LOUREIRO JUNIOR
A CRÍTICA HEGELIANA ÀS TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL DE HOBBES E DE KANT
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do grau de Licenciado em Filosofia.
APROVADA EM
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Roger Fernandes Campato
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________
Prof. Dr. Orlando Bruno Linhares
Universidade Presbiteriana Mackenzie
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Roger Fernandes Campato, por suas excelentes aulas, sua inesgotável
solicitude e paciência.
Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular
a um mundo já a anoitecer, é quando uma
manifestação de vida está prestes a findar. Não
vem a filosofia para rejuvenescer, mas apenas
reconhecê-la. Quando as sombras da noite
começaram a cair é que levanta voo o pássaro de
Minerva (G. W. F. Hegel)
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é levar a efeito a análise das críticas hegelianas às teorias
contratualistas de Hobbes e de Kant. Em primeiro lugar, será abordada a concepção de
filosofia de Hegel, destacando suas divergências no tocante à razão teórica kantiana, por
esta representar o melhor modelo do conceito hegeliano de Esclarecimento negativo.
Posteriormente, nos capítulos subsequentes, será apresentado o contratualismo em duas
versões distintas: em primeiro lugar, o de Hobbes, seu modelo empirista e seu método
dedutivo, em especial a abstração ficcional do estado de natureza que não alcança o
domínio do real; em segundo lugar, o contratualismo na visão de Kant, fundamentado por
sua ética formal. Para levar a efeito tal análise, será preciso, em determinado momento do
trabalho, abordar a concepção Estado em Hegel como o detentor máximo da liberdade e da
eticidade, ou seja, como a síntese das determinidades dos particulares (família e sociedade
civil) que se concretizam nessa figura universal, afim de que, assim, possam ser elucidadas
das divergências entre a liberdade hegeliana e hobbesiana e, concomitantemente, as
divergências entre a ética hegeliana e a ética kantiana.
Palavras-chave: Hobbes. Kant. Hegel. Contratualismo.
ABSTRACT
The purpose of this work is to present the review carried out by Hegel to the contratualism
theory of Hobbes and Kant. In the first place, will be addressed the philosophical view of
Hegel, highlighting his disagreement to the kantian theoretical reason in order to present his
concept of negative Enlightenment. Then, in the subsequent chapters, will be presented two
distinct versions of the contratualism: in the first place, Hobbes and his empiricist model and
deductive method, specially the fictional abstraction of the state of nature that does not reach
the domain of the reality; in the second place, the contratualism version of Kant, guided by
his formal ethics. In order to conclude this analysis will be addressed the hegelian conception
of state as the provider of freedom and ethics, in other words, as the performer of the
synthesis of his predecessor moments (family and civil society) that materialize in his
universal figure, in order to better elucidate the disagreement between the hegelian and
hobbesian conception freedom and the disagreement between the hegelian and kantian
conception of ethics.
Keyword: Hobbes. Kant. Hegel. Contratualism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8
1. RAZÃO TEÓRICA E ESCLARECIMENTO NEGATIVO ........................................ 11
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTRATUALISMO DE HOBBES
................................................................................................................................. 19
3. O CONTRATUALISMO DE KANT ......................................................................... 23
4. A CRÍTICA HEGELIANA ÀS TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL DE HOBBES E DE
KANT ......................................................................................................................... 36
4.1. O ESTADO CIVIL COMO PRESSUPOSTO DA ETICIDADE ............................... 36
4.2. AS CRÍTICAS AO CONTRATUALISMO PROPRIAMENTE DITAS ..................... 42
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 54
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 55
8
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo principal analisar a crítica levada a feito por Hegel às
teorias do contrato social propostas por Hobbes e Kant. Para tanto, antes de nos determos
especificamente nos argumentos hegelianos, abordaremos, num primeiro momento, as
características constitutivas da concepção de filosofia em Hegel, como consta no Capítulo 1.
De tal maneira, para uma melhor elucidação, optamos pela comparação entre a razão
teórica kantiana e o conceito de Esclarecimento negativo hegeliano com base na tentativa,
já presente nos escritos de juventude de Hegel, de reconduzir para o seio da tradição
filosófica a razão especulativa.
No Capítulo 2, explicitaremos, de modo sucinto, o contratualismo hobbesiano, enfatizando
suas concepções sobre o estado de natureza e o estado civil; posteriormente, no capítulo 3,
discorremos sobre as mudanças e inovações teóricas formuladas por Kant, especialmente
no que diz respeito ao seu formalismo ético.
Em linhas gerais, no Capítulo 4, em sua primeira seção (4.1), interpretamos de maneira
bastante específica um texto de maturidade de Hegel: Princípios de filosofia do direito, de
1821, com a intenção de melhor explicar sua relação com o pressuposto do Estado
universal como aquele que assegura a vida ética e a liberdade. Assim, será tematizada,
paralelamente à crítica hegeliana ao contrato formal kantiano, a contraposição entre a ética
em Hegel e em Kant e, a seguir, a contraposição entre o conceito de liberdade em Hobbes e
em Hegel, no tocante ao contratualismo empirista.
Por fim, convém ressaltar que tanto Hobbes quanto Kant serão apresentados sob a
perspectiva crítica de Hegel, em especial aquela construída em dois textos: Fé e saber,
artigo publicado em 1802, no Jornal Crítico de Filosofia, com a intenção de explicitar sua
concepção filosófica e principiar uma análise sobre a epistemologia kantiana – trata-se de
um artigo de fundamental importância para o objetivo do presente trabalho, sobretudo no
que tange ao desenvolvimento da dicotomia entre razão especulativa e entendimento –; e
Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, também de 1802, no qual vem à
tona a primeira crítica hegeliana às teorias do contratualistas, apresentada na seção 4.2.
O contratualismo é uma doutrina que prioriza, no cerne de sua teoria, a origem e o
fundamento do Estado (da sociedade civil) através de uma convenção ou pacto entre seus
membros. Tais membros estariam circunscritos a uma posição inicial pré-social, ahistórica,
concebida como um estado natural do homem: o estado de natureza. Na modernidade, o
contratualismo surge em consonância com o jusnaturalismo, isto é, a concepção que
defende que o homem, por si só, já nasce com direitos que lhe são intrinsecamente
fundamentais.
9
Como veremos, em Hobbes e em Kant o contrato assume formulações variadas e
concepções distintas. O primeiro, por exemplo, defende a existência de um estado de
natureza no qual o homem seria irrefreável e livre. Neste caso, a figura do estado civil é a
responsável por remover esta liberdade, expressando-se em um Estado absoluto, cuja
finalidade consiste em promover a segurança e a paz entre os cidadãos. No entanto, em
Kant, o contrato assume roupagem distinta. O contrato é elevado a um nível mais alto de
abstração, no qual a lei da razão, por si só, determina o significado do Estado como valor
absoluto, objetivo e universal. A inovação kantiana concernente ao contrato, se comparada
com a concepção dos empiristas, reside no fato de que ele não advém da natureza humana
empiricamente considerada, mas sim do a priori da razão pura. O contratualismo kantiano
desenvolve-se puramente no plano lógico, independentemente da realidade histórica ou da
ficção do estado de natureza.
A atenção que Hegel dedica em seus escritos políticos às questões referentes ao
contratualismo, em especial ao de Hobbes e ao de Kant, criticando neles, respectivamente,
o suposto estado de natureza e o imperativo categórico como lei ética universal, constitui o
tema do presente trabalho.
De antemão, é imprescindível afirmar que em Hegel o modelo de Estado não se assenta
sobre um contrato:
Corria no sangue do século XVIII a ansiedade por déspotas
esclarecidos. Todavia, o pensamento de Hegel se diferencia destes
modelos, do qual está aparentemente próximo, a partir de sua
situação histórica. Esta torna-se explícita quando se recorda que,
alguns anos mais tarde, Hegel recorre ainda a esta mesma
concepção para se opor a um estado fundado sobre o contrato. É
necessário conceber a prevalência, ao longo de todo o século XVIII,
da ideia de contrato [...] é necessário igualmente recordar que tanto
Kant quanto Fichte recorrem igualmente ao contrato no fundamento
de suas filosofias do Estado (ROSENZWEIG, 2008, p. 202)
Os fundamentos de um modelo de Estado não contratual que, em virtude disto, caracteriza-
se como o domínio ético universal – isto é, uma concepção de Estado cujas raízes não se
amparam exclusivamente no interesse privado –, advêm inexoravelmente do
desenvolvimento da razão na teoria hegeliana. A figura do Estado universal é assumida
como algo que é em si mesmo racional – o objetivo da obra hegeliana é ensinar como
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conhecer este Estado – e não um Estado ideal, uma ficção de como ele deveria ser. No
prefácio da obra Princípios de filosofia do direito, Hegel afirma que:
Este nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais quer
representar senão uma tentativa para conceber o Estado como algo
racional em si. É um escrito filosófico e, portanto, nada lhe pode ser
mais alheio do que a construção ideal de um Estado como deve ser.
Se nele está contida uma lição, não se dirige ela ao Estado, mas
antes ensina como o Estado, que é o universo moral, deve ser
conhecido (HEGEL, 2009, p. XXXVII)
O trabalho da filosofia consiste em formular e expor aquilo que é, “porque o que é é a razão”
(HEGEL, 2009, p. XXXVII). Ou seja, como veremos no presente trabalho, o Estado possui
uma racionalidade própria, imanente. Por isso, é necessário que nos apropriemos de seu
estatuto lógico. A apreensão das determinações lógico-racionais expressa, na teoria
hegeliana, a compreensão dos desdobramentos das figuras que compõem os momentos do
devir do Estado. O Estado não é um produto artificial – uma abstração, como no caso das
teorias do contrato – mas algo concreto em seu vir-a-ser histórico.
Assim, primeiramente, é de especial importância termos em mente a concepção de filosofia
com a qual Hegel trabalha, por esta ser indissociável dos fundamentos de sua concepção de
Estado.
11
1. RAZÃO TEÓRICA E ESCLARECIMENTO NEGATIVO
O meio pelo qual optamos para a elucidação da concepção hegeliana de filosofia assenta-se
sobre os escritos de juventude do autor, que, no caso, serão abordados à luz do conceito de
Esclarecimento Negativo com o intuito de demonstrar as divergências epistêmicas
existentes entre o pensamento de Hegel e a razão teórica kantiana.
Kant, ao investigar os limites do conhecimento racional – seu intuito é uma crítica da razão
sobre si mesma –, assevera de maneira cética a impossibilidade de se conhecer a coisa em
si. Sua análise da faculdade cognitiva do homem resulta na concepção de que o
conhecimento da essência extrapolaria nossa faculdade teórica, dependente
fundamentalmente dos dados dos sentidos. Como não poderia deixar de ser, Kant conceitua
negativamente esta tentativa de conhecimento – conhecimento para além dos fenômenos –
levada a efeito pela razão especulativa. A razão especulativa constitui aqui naturalmente um
equívoco. Para Kant, como o mesmo afirma na Crítica da razão pura, todo conhecimento
principia pela experiência. Nenhum conhecimento que se pretenda científico pode
fundamentar-se exclusivamente a priori:
Que todo o nosso conhecimento começa com a experiência, não há
dúvida alguma, pois, do contrário, por meio do que a faculdade de
conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através
de objetos que tocam nossos sentidos e em parte produzem por si
próprios representações (KANT, 1996, p. 53)
A razão é a faculdade do conhecimento por excelência. A proposta de Kant é justamente a
de depurar esta razão, estabelecendo limites seguros para aquilo que podemos conhecer. O
uso teórico da razão é uma tentativa de organizar e analisar nossa faculdade de conhecer
dentro de um sistema lógico, para que, deste modo, possamos evitar erros.
Assim, Kant propõe duas distinções da faculdade de conhecer na Crítica da razão pura: a
primeira distinção expressa-se entre o conhecimento empírico (a posteriori) e o
conhecimento puro (a priori); a segunda entre juízos sintéticos e juízos analíticos.
O conhecimento puro independe de qualquer experiência sensível e, por isso, distingue-se
do empírico por sua característica de universalidade e necessidade. O a posteriori, por sua
vez, encontra-se impossibilitado de produzir juízos necessários e universais, permanecendo
no plano do contingente.
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Partindo da relação existente entre os termos sujeito e predicado, Kant define juízos
analíticos como juízos em que o predicado já está necessariamente contido no conceito de
sujeito. Trata-se de uma inferência lógica, por exemplo, o fato de que, ao falarmos de
corpos, o conceito de extensão já esteja implícito. Tal asserção é independente da
experiência sensível. Os juízos analíticos, por si só, não são naturalmente informativos: ao
pensarmos no sujeito, conhecemos em sua concepção seu próprio predicado. Por
conseguinte, não são afetados por nenhum tipo de contingência, caracterizando-se como
enunciados verdadeiros exclusivamente em função de seu significado:
Juízos analíticos (os afirmativos) são, portanto, aqueles em que a
conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidade [...]
Com efeito, por meio do predicado aqueles nada acrescentam ao
conceito de sujeito, mas somente o dividem por desmembramento
em seus conceitos parciais que já eram (embora confusamente)
pensado nele [...] Se por exemplo digo: todos os corpos são
extensos, então este é um juízo analítico. De fato, não preciso ir além
do conceito que ligo ao corpo para encontrar a extensão enquanto
conexa com tal conceito, mas apenas desmembrar aquele conceito,
quer dizer, tornar-me apenas consciente do múltiplo que sempre
penso nele, para encontrar aí esse predicado; é pois, um juízo
analítico (KANT, 1996, p. 58)
Os juízos analíticos, assim, são juízos de elucidação: possuem a função de explicar um
conceito, antes confuso, sem adicionar nada ao nosso conhecimento propriamente dito.
Por outro lado, juízos sintéticos são naturalmente informativos: neles, o predicado não se
encontra necessariamente contido no conceito de sujeito. O predicado é contingente,
variável de acordo com os dados sensíveis. Por exemplo, afirmar que um corpo é pesado.
Ora, analiticamente, todo corpo tem extensão, mas seu peso é contingente, isto é, não há
uma identidade necessária na relação sujeito e predicado. Os juízos sintéticos são juízos de
ampliação, por serem promotores de conhecimento. Assim
Acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que de modo
algum era pensado nele nem poderia ter sido extraído dele por
desmembramento algum [...] quando digo: todos os corpos são
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pesados, então o predicado é algo bem diverso daquilo que penso no
mero conceito de um corpo em geral. O acréscimo de um tal fornece,
portanto, um juízo sintético (KANT, 1996, p. 58)
Levando em consideração unicamente a tradição empirista, o conhecimento só é possível
no plano da experiência sensível, ou seja, o plano dos juízos sintéticos por excelência. No
entanto, a filosofia kantiana diverge desta tradição ao investigar a possibilidade da razão
teórica de formular juízos que sejam sintéticos e a priori.
Juízos sintéticos a posteriori, isto é, que dependem dos dados dos sentidos, embora
possam ser verdadeiros, não garantem a universalidade. A experiência nos mostra como as
coisas se apresentam no plano fenomênico, mas não implica necessariamente em uma
verdade universal. Segundo exemplo do próprio autor, embora a experiência possa afirmar
que os corvos são pretos, não pode inferir disto que todos os corvos sejam necessariamente
pretos. A sensibilidade não pode sustentar esta afirmação da realidade empiricamente
considerada:
Juízos de experiência são todos sintéticos. Com efeito, seria um
absurdo fundar um juízo analítico sobre a experiência, pois para
formar o juízo de modo algum preciso sair do meu conceito nem
portanto, de testemunho algum da experiência. Que um corpo seja
extenso, é uma proposição certa a priori e não um juízo de
experiência. Pois antes de recorrer à experiência já possuo todas as
condições para meu juízo [...] Do contrário, embora já não inclua no
conceito de um copo em geral o predicado peso, esse conceito
designa um objeto da experiência mediante uma das partes da
mesma, à qual posso acrescentar ainda outras partes da mesma
experiência como pertencentes ao primeiro conceito (KANT, 1996, p.
58)
A priori temos os juízos analíticos, mas, por serem analíticos, não geram efetivamente
conhecimento, pois não são informativos. Logo, só nos resta, para afirmarmos um
conhecimento universalmente válido, juízos sintéticos puros que sejam a priori.
Neste momento, Kant alega que as ciências da razão teórica, na verdade, utilizam juízos
sintéticos a priori tanto na matemática quanto na física. Mas, para efeito do presente
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trabalho, o que nos interesse aqui é o terceiro exemplo presente na introdução da Crítica da
razão pura, ou seja, o uso de juízos sintéticos a priori na investigação metafísica.
A natureza da razão teórica é tal que, pela tradição filosófica, extrapola seus limites,
afirmando possível o conhecimento do absoluto. Kant, em vias de limitar o uso equivocado
da razão teórica, desvaloriza a razão especulativa, na qual os conhecimentos sintéticos a
priori também são utilizados. Embora o método seja o mesmo, isto é, ampliar o nosso
conhecimento a priori, de tal modo que “a própria experiência não pode nos seguir até tal
ponto, por exemplo na proposição: o mundo tem de ter um primeiro começo” (KANT, 1996,
p. 62), a razão progride, pela tradição da filosofia, “irreversivelmente até perguntas que não
podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência [...] e assim alguma
metafísica sempre existiu e continuará a existir realmente em todos os homens, tão logo a
razão se estende neles até a especulação” (KANT, 1996, p. 63).
Em resumo, se Kant, na Crítica da razão pura - abordada brevemente no trabalho ora
apresentado - defende a possibilidade de um conhecimento que não seja unicamente
empírico, mas que possua características sintéticas a priori, ele não delega à razão teórica o
uso especulativo – metafísico – do conhecimento. As faculdades da razão teórica operam
com a complementaridade entre sensibilidade e entendimento, evitando, assim, que a razão
progrida a tal ponto que se proponha questões impossíveis de solução. Daí a necessidade
de uma Crítica da razão pura, uma vez que:
De tudo isso resulta a ideia de uma ciência especial que pode
denominar-se Crítica da razão pura. Pois a razão é a faculdade que
fornece os princípios do conhecimento a priori. Por isso a razão pura
é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente
a priori. Um órganon da razão pura seria um conjunto daqueles
princípios segundo os quais todos os conhecimentos puros a priori
podem ser adquiridos e efetivamente realizados [...] e sua utilidade
seria realmente apenas negativa com respeito à especulação,
servindo não para a ampliação, mas apenas para a purificação da
nossa razão e para mantê-la livre de erros (KANT, 1996, p. 65)
Consequentemente, o modelo de razão teórica proposto por Kant assume a razão
especulativa como contradição, como extrapolação dos limites da faculdade do conhecer, ao
passo que Hegel, tendo plena consciência que os limites da razão perpetrados por Kant
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representam uma real ameaça à razão especulativa, busca superar tais limites
determinados e reconduzir o absoluto para o âmbito filosófico.
Para tal finalidade, Hegel, no artigo de juventude Fé e Saber, adota uma concepção de
filosofia que pode ser expressa como poder de unificação. A filosofia deve superar as
contradições existentes na modernidade, tendo como fim último reconciliá-las. Superar as
contradições significa superar aquilo o autor denomina de filosofias da reflexão, ou seja,
filosofias que se caracterizam por ratificar conceitualmente as cisões presentes na
modernidade: sujeito X objeto, subjetivo X objetivo, fé X saber, entre outras.
Ora, pela exposição da faculdade de conhecer kantiana, torna-se visível o que, para Hegel,
deve ser problematizado: a separação entre sujeito e objeto, da qual resulta, no âmbito da
Crítica da razão pura , a concepção de objeto como algo incognoscível em si mesmo.
Habermas, ao analisar este período da obra hegeliana em O discurso filosófico da
modernidade, sustenta a tese de que esta posição de Hegel “apóia-se tacitamente no seu
diagnóstico da época do Iluminismo; apenas este o autoriza a pressupor o absoluto e,
portanto, a colocar a razão (ao contrário do que se passa na filosofia da reflexão) como
poder de unificação” (HABERMAS, 2000, p. 35).
Unificar as oposições representa também a possibilidade de se conhecer o absoluto pela
razão e de se formular sua exposição sistemática. É no conflito necessário entre as
oposições determinadas – a negação da negação – que o universal é posto como afirmação
verdadeira. Superar oposições particulares é afirmar o universal como síntese.
A proposta de Hegel – após asseverar que, em sua época, a filosofia havia se afastado do
absoluto, citando especificamente o pensamento de Kant, Fichte e Jacobi, afirmando que,
para todos eles, o absoluto não é “contra e tampouco para a razão, mas está acima da
razão” (HEGEL, 2009, p. 20) – consiste em uma ideia de filosofia que busca conceber uma
unidade na mutiplicidade, identificando a necessidade lógica de todas as determinações dos
particulares. Essa concepção de filosofia só pode ser apreendida se tomada a partir da
perspectiva do Absoluto formulada por Hegel: o Absoluto está acima das disputas imanentes
das determinidades, expressando-se em cada um desses momentos e preservando-os.
Tal figura é em si e para si o resultado das etapas essenciais presentes no espírito:
entendimento, dialética e especulação. Nestes termos, Hegel afirma que “deve ser visto
como tarefa da verdadeira filosofia resolver as oposições que se apresentam e que ora são
apreendidas como espírito e mundo, como corpo e alma, como eu e natureza etc.” (HEGEL,
2009, p. 36) e complementa que a “sua única ideia, que tem realidade e objetividade
verdadeira para ela, é o ser suprassumido da oposição” (Idem).
16
Assim, é imprescindível a negação, compreendida como oposição entre as figuras do
entendimento. Para a formulação de seu sistema, já presente em seus escritos de
juventude, a relação com a categoria do entendimento não se pauta apenas negativamente.
É o entendimento que engendra em si mesmo, em suas relações conceituais, a
possibilidade de alcançar o domínio do universal. O idealismo transcedental kantiano, por
exemplo, embora tenha descreditado a razão especulativa, é essencial como figura: nele
encontramos a capacidade de superação daquilo que é finito. É deste modo que Hegel
busca negar o pensamento cético, mas, ao mesmo tempo, conservar e elevar o
entendimento ao nível da razão especulativa. Em outras palavras, no momento dialético
(primeira negação), todas as determinações fixas (particulares) são dissolvidas e esta
negatividade constitui para o entendimento sua própria aniquilação. Entretanto, isto consiste
novamente em uma crítica puramente negativa, inteiramente destrutiva do entendimento.
Todavia, se o resultado dessa negação for apreendido pela filosofia especulativa como
apenas uma negação determinada, ele passa a ser positivo: passa a estabelecer uma
unidade ou conexão racional daquilo que é negado com sua negação, agora, expressa na
figura universal do ser suprassumido. O entendimento, então, não pode descartado, mas
sim conservado e elevado dentro deste processo racional. Assim, o pensamento passa a ser
entendido sob o viés de um processo de constante superação das determinidades
particulares, no qual sua etapa final é a superação do entendimento pela metafísica
especulativa.
Tal movimento, segundo o autor, é imanente à razão e, por isso, não pode permanecer,
como acontece com as filosofias da reflexão, restrito ao saber finito.
Sobre esta passagem, Habermas comenta que:
Na verdade, o infinito da filosofia da reflexão é algo racional
simplesmente posto pelo entendimento e que se esgota na negação
do finito [...] Entretanto, como mostra esse discurso pouco
circunstanciado sobre o "declínio", Hegel introduz aqui, de maneira
sub-reptícia, o que visa demonstrar: primeiro teria de mostrar, e não
simplesmente pressupor, que uma razão, que é mais do que o
entendimento absolutizado, também pode reunificar de modo
igualmente indispensável aquelas oposições que tem de desenvolver
discursivamente (HABERMAS, 2000, p. 36)
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De posse dessa perspectiva, Hegel diz que “filosofias imperfeitas, por serem imperfeitas,
pertencem em geral imediatamente a uma necessidade empírica e, por isso, é possível
compreender a face da sua imperfeição a partir delas e nelas mesmas” (HEGEL, 2009, p.
21). Esta imperfeição se expressa exatamente na incompletude dessas filosofias que se
restringem ao finito: “acima das mesmas, para além do conceito e do empírico, está o
eterno, mas a faculdade de conhecer e a razão são tão-somente esta esfera. Em
semelhante razão, que apenas pensa finitamente, revela-se sem dúvida que ela pensa
apenas o finito” (HEGEL, 2009, p. 30). Ora, essas filosofias que permanecem restritas ao
conhecimento do que é finito tendem, segundo Hegel, a absolutizar sua própria finitude, não
reconhecendo os opostos – de um lado, a absolutização dos dados empíricos como fins
últimos e, de outro, a absolutização da infinitude vazia – e a se determinarem como
verdades atemporais:
O princípio firme deste sistema da cultura [Bildung], de que o finito é
em si, para si, absoluto e é a realidade única, encontra-se, portanto,
de um lado o finito e o singular, eles mesmos na forma da
multiplicidade [...] porque o finito é capaz de ser apreendido pelo
entendimento como um singular; do outro lado está justamente essa
finitude absoluta na forma do infinito (HEGEL, 2009, p. 25)
Se as filosofias da reflexão absolutizam sua finitude, isto é, não ascendem à Ideia, elas não
penetram no domínio da realidade. Permanecem circunscritas à imediatidade do saber, não
reconhecendo a si mesmas como figuras da unidade do espírito, pois tal domínio da
realidade somente é alcançado pelo curso que o Absoluto empreende na história.
A concepção de filosofia de Hegel, então, resumidamente, se dá nos seguintes termos:
O conhecimento finito é tal conhecimento de uma parte e de um
singular; se o absoluto fosse composto de finito e infinito, então a
abstração do finito seria sobretudo uma perda, mas na ideia o finito e
o infinito são um só e, por isso, desapareceu a finitude como tal, na
medida em que ela deveria ter em si e por si verdade e realidade;
mas só foi negado o que é negação e, portanto, foi posta a
verdadeira afirmação (HEGEL, 2009, p. 33)
18
A absolutidade produzida pela finitude é absoluta também em sua relação de oposição,
“porque se um é absoluto em seu ser para si, também é o outro” (HEGEL, 2009, p. 25) e
“essa absolutidade da essência empírica e finita se contrapõe tão imediatamente o conceito
ou a infinitude, que um é condicionado pelo outro e um com o outro” (Idem). Por isso, é
preciso, para salvar o absoluto das cisões da modernidade, uma razão que se mostre
superior ao entendimento absolutizado pela tradição filosófica analisada.
Consequentemente, o pensamento que não perpassa as etapas constitutivas do Espírito, na
verdade, não passa de abstração formal.
Neste contexto, o conceito hegeliano de Esclarecimento (Aufklärung) negativo deve ser
compreendido como uma espécie de diagnóstico da decadência da filosofia, perpetuada
pela separação entre sujeito e objeto, responsável impedir à razão o conhecimento do
absoluto. Por isso, como vimos, somente o saber limitado restou para o conhecer:
O procedimento negativo do Esclarecimento, cujo lado positivo era
infrutífero na sua afetação presunçosa, forneceu para si uma
semente, pois apreendeu a sua negatividade ela mesma e, em parte,
se livrou da vanidade mediante a pureza e a infinitude do negativo e,
em parte, justamente por isso pode ter o saber positivo apenas algo
infinito e empírico, mas pode ter o eterno apenas como um para
além; de modo que o eterno é vazio para o conhecer (HEGEL, 2009,
p. 21)
Portanto, filosofia assim concebida por Hegel não poderá pautar-se nem por conceitos
empíricos nem por conceito formais exclusivos. Não optando nem pelo sensível nem pelo
abstrato, ficará mais fácil entendermos a divergência da filosofia hegeliana com as teorias
que versam sobre o contrato social.
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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTRATUALISMO DE HOBBES
Para o filósofo inglês, os homens, quando considerados em conjunto, são semelhantes uns
aos outros tanto em relação à força corporal quanto às faculdades mentais. Essa igualdade
é aplicável aos homens indistintamente. As variações, na verdade, são poucas e
perfeitamente balanceadas.
No texto Os Elementos da Lei Natural e Política, Hobbes sustenta que:
Se considerarmos como são pequenas as diferenças de força ou de
conhecimento entre os homens maduros e como é muito fácil para
aquele que é mais fraco, em força ou inteligência, ou em ambas,
destruir inteiramente o poder do mais forte – uma vez que necessita
de pouca força para tirar a vida de um homem –, podemos concluir
que os homens, considerados na mera natureza, deveriam
reconhecer-se em situação de igualdade (HOBBES, 2010, p. 67)
É inexorável à condição de igualdade humana que os indivíduos tendam a desejar a mesma
coisa. Contudo, não podendo desfrutá-la por igual, esta situação tem como consequência a
competição.
Para Hobbes, a natureza humana possui três elementos essenciais: a) Competência: é o
que faz os homens competentes o bastante para se atacarem e lograrem algum bem,
mediada pela violência para tomar posse das coisas; b) Desconfiança: que gera a
preocupação com a vigília, a segurança das coisas das quais se tomou posse; c) Glória: que
lhes dá fama, reputação.
O homem, para Hobbes, não é concebido necessariamente como alguém que incessamente
busca riquezas, mas sim como alguém que busca reputação. Seguindo a lógica hobbesiana
da natureza do homem, pode-se concluir que, quando não existe um poder comum capaz
de manter os homens em uma situação de respeito recíproco, temos a condição que se
denomina guerra, uma guerra de todos contra todos. A guerra, nesses termos, não se
resume apenas ao ato concreto de lutar, mas à constante possibilidade da necessidade de
lutar, isto é, à constante insegurança, responsável por gerar um clima de desconfiança.
Em uma passagem do Leviatã, Hobbes explica sua concepção acerca da igualdade do
homem natural:
20
Dessa igualdade de capacidade entre os homens resulta a igualdade
de esperança quando ao nosso Fim (que é, principalmente, sua
sobrevivência e, algumas vezes, apenas seu prazer) tratam de
eliminar ou subjugar uns aos outros. Um agressor teme somente o
simples poder de outro homem; se alguém semeia, constrói ou
possui uma área conveniente, pode estar certo de que chegarão
outro que, unindo suas forças, procuração despojá-lo e privá-lo do
fruto de seu trabalho e até de sua vida ou liberdade. O Invasor, por
seu turno, assumirá o mesmo perigo que o enfrentado por aquele
que invadiu e subjugou (HOBBES, 2008, p. 95)
No meio dessa desconfiança, não há como se sentir plenamente seguro, não há nenhuma
forma de autoproteção constante. Portanto, é permitido ao homem natural aumentar seu
domínio sobre seus semelhantes, uma vez que isso é necessário para sua sobrevivência.
Ora, na verdade, não é preciso que haja realmente uma guerra generalizada para que o
homem se previna contra o próximo: basta supor o que o outro o fará, afinal, todos os
homens são iguais, racionais – o estado de natureza não implica em nenhuma
desvinculação com a razão –, e as diferenças são tão poucas que nenhum conseguirá
realmente triunfar sobre todos. Por isso, se não há um Estado forte, controlador e
dominador, a fim de reprimir este homem, a guerra perpétua é a atitude mais racional:
proteger-se contra as intenções do outro.
Isto fica evidente em uma outra passagem do Leviatã:
O FIM último, Fim ou Desígneo dos homens (que apreciam,
naturalmente, a Liberdade e o Domínio sobre os outros), ao introduzir
aquela restrição sobre si para viver nos Estados, é a preocupação
com sua própria preservação e garantia de uma vida mais feliz. Ou
seja, a vontade de abandonar a mísera condição de Guerra,
consequência necessária (conforme dito anteriormente) das Paixões
naturais dos homens, se não houver um Poder visível que os
mantenha em respeito, forçando-os, por temor à punição, a cumprir
seus Pactos (HOBBES, 2008, p. 123)
21
Em consonância com o exposto acima, consideraremos outros dois conceitos da teoria
contratualista de Hobbes: o de liberdade e o de razão.
A liberdade, para Hobbes, é explicada de maneira simples: é a ausência de empecilhos
externos que possam impedir qualquer um de agir como bem quiser. O estado de natureza,
embora admitidamente ficcional, é o espaço em que o homem pode ser verdadeiramente
livre. Não há lei e não há poder comum; justiça e injustiça só existem entre os homens em
sociedade, nunca no isolamento. Não há propriedade, domínio, o meu ou o seu. Cada um
só possui o que pode pegar e guardar. Seria papel do Estado estabelecer a resistência a
este movimento inteiramente livre.
Desse modo, a Liberdade é algo que cada homem tem para usar sua astúcia e sua força
como lhe convier na intenção de preservar sua vida. Esta noção de liberdade integra aquilo
que Hobbes chama de Direito de Natureza ou Jus Naturale. Em contrapartida, temos a Lei
de Natureza ou Lex Naturalis, que é uma norma absoluta da razão, responsável por não
permitir que o homem aja de tal forma que possa vir a destruir a si mesmo ou omitir os
meios necessários à sua preservação. Em Hobbes, Lei e Direito são coisas distintas. No
estado de natureza, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. O esforço para se
obter a paz não é um Direito, mas uma Lei (Lex) imposta pela razão.
A razão proporcionaria ao homem a capacidade intrínseca de agir para alcançar a paz
através de um suposto pacto, de um acordo mútuo entres seus iguais: o contrato. Assim, da
mesma lei da razão que demanda que o homem busque a paz deriva outra lei: o homem
deve querer o fim de seu direito natural sobre todas as coisas, contentando-se com uma
liberdade reduzida, equânime à dos demais, na medida em que isso lhe assegure a paz.
Renunciar ao direito natural significa privar-se de sua liberdade natural por meio de um
gesto de transferência: transferir o poder de todos a uma pessoa ou a um colegiado de
pessoas. Cabe ressaltar que é interdito anular o acordo comum. O contrato seria
irrevogável.
A transferência do direito constitui um ato voluntário. Todo homem pratica-o buscando
algum benefício próprio. Se não houvesse qualquer benefício ao homem natural, este
estaria fazendo não uma transferência de direito, mas uma doação. Não se renuncia ao
direito – segundo exemplo do próprio autor – de revidar algum ataque de outrem. A
possibilidade da prisão como forma substitutiva de punição é reconhecida em virtude de
suas vantagens gerais.
Resumidamente, o Estado hobbesiano é assumido como aquele que cerceará a liberdade
natural do homem, tirando-o das mazelas do caos do estado de natureza, concedendo-lhe
proteção e segurança internamente – contra si mesmo – e contra ameaças externas.
22
Quando um homem se priva e abre mãos de seu direito, ele
simplesmente renuncia a este ou o transfere para outro homem.
Renunciar ao direito é declarar, por meio de sinais suficientes, que é
sua vontade não praticar mais aquela ação que, de direito, ele podia
fazer antes. Transferir o direito para outrem é declarar, por meio de
sinais suficientes, àquele que o aceita, que a sua vontade é não lhe
resistir nem o impedir, em conformidade com o direito, àquilo que ele
tinha antes de tê-lo transferido. Ora, visto que todo homem por
natureza tem direito a todas as coisas, não é possível que um
homem transfira a outrem um direito que ele não tinha anteriormente.
E, portanto, tudo que o homem faz, ao transferir um direito, nada
mais é do que declarar sua intenção de permitir que aquele a quem
transferiu seu direito possa beneficiar-se dele sem incômodo
(HOBBES, 2010, p. 72)
Devido a esta transferência, o direito natural – a liberdade irrestrita – não pode mais ser
utilizado em benefício próprio: ele é delegado ao soberano, aquele que se beneficia sem
restrições, mas com a finalidade de assegurar a paz e a segurança no Estado civil.
A teoria hobbesiana do contrato, se estudada sob os preceitos do método especulativo,
assume outro caráter: o de uma ficcção do entendimento que se passa por uma verdade
atemporal, por ciência verdadeira. Ao provar a gênese do Estado, Hobbes põe sua filosofia
política na condição de universal absoluto, livre das contingências históricas. Porém, tal
exposição será feita mais adiante.
23
3. O CONTRATUALISMO DE KANT
Neste capítulo, o contratualismo kantiano será abordado em dois momentos: de início, nos
concentraremos em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, para uma
exposição detalhada da ética formal kantiana, e deste modo esclarecer, posteriormente, os
conceitos concernentes ao contrato kantiano formulados no texto Princípios metafísicos da
doutrina do direito.
O contratualismo em Kant assume características inovadoras se comparada à tradição
empirista hobbesiana. A teoria do contrato social é absorvida pelo filósofo alemão e
reformulada tendo, como base, a concepção kantiana de razão pura prática. De tal modo,
antes de nos debruçarmos sobre o contratualismo em Kant, é preciso explicar brevemente
suas concepções acerca da moralidade. Contrariamente ao que vemos na razão teórica, o
agir moral significa subordinar a nossa vontade à nossa própria razão. A razão, em Kant, é a
fonte par excellence da moralidade. Enquanto a razão teórica coaduna dados sensíveis com
formas a priori do entendimento, a razão prática é em si pura.
Passemos agora à exposição da ética formal kantiana. No texto Fundamentação da
metafísica dos costumes, Kant defende que o princípio supremo da moralidade deve ser
necessariamente sintético a priori. Isto constitui o fundamento da metafísica dos costumes,
ou seja, o princípio supremo da moralidade. Esta moralidade é concebida, em seu rigor,
como necessária e universal.
No prefácio do livro, Kant afirma que:
Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer
moralmente, isto é como fundamento duma obrigação, tem de ter em
si uma necessidade absoluta; que o mandamento: “não deves
mentir”, não é válido somente para os homens e que outro seres
racionais se não teriam que importar com ele, e assim todas as
restantes leis propriamente morais (KANT, 2014, p. 15)
Complementando que
O princípio da obrigação não se há-de buscar aqui na natureza do
homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está
posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura,
24
e que qualquer outro preceito baseado em princípios da experiência
[...] poderá chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma
lei moral (KANT, 2014, p. 16)
Ora, pela experiência não podemos asseverar – como explicado na seção da razão teórica –
nada que seja estritamente universal, então, em função disto, é delegada à razão pura o
princípio da moralidade.
O primeiro ponto a se ressaltar no tocante à Fundamentação é a inovação kantiana no
quesito ético: resumidamente: a moralidade não é algo que é imposto ao homem por
qualquer autoridade que lhe seja exterior. A fonte da moralidade não reside fora do homem,
mas é um imperativo - uma coação – cuja fonte é a própria razão.
Em oposição ao próprio Hobbes - que sustenta, em sua versão do contratualismo, uma
concepção ética pautada pelo acordo entre agentes racionais, motivados por interesses
pessoais, no qual cada um dos agentes compactua e promete respeito a certas regras de
conduta em prol de preservação de seus próprios interesses, isto é, a segurança pessoal –,
Kant, crítica este tipo de concepção ética: a moralidade não pode ser reduzida a um acordo
meramente vantajoso aos interesses pessoais. Na verdade, qualquer espécie de empiria,
seja uma que gere vantagem ao sujeito ou gere prejuízo, é independente de sua concepção
acerca da moralidade. A proposta moral kantiana é sustentada pela razão pura e não pelos
efeitos positivos ou negativos do agir propriamente dito. A moralidade não pode guiar-se por
interesses condicionados do mundo sensível, como em Hobbes.
Das duas funções que atribui à razão - a teórica, quanto ao conhecimento, e a prática,
quanto à moralidade, Kant defende que a última não é, como no empirismo tradicional,
meramente instrumental. A razão prática é a fonte do princípio supremo da moralidade: agir
moralmente é proceder de acordo com tal imperativo, respeitando estes princípios puros, o
que difere do agir de acordo com qualquer inclinação empírica. A vontade é conceituada
como fim em si mesma e não como meio. Assim, para melhor conceituarmos a vontade
kantiana, iremos, em primeiro lugar, explicar a distinção entre conforme o dever e por dever.
A título de exemplo, o próprio autor, na Fundamentação, afirma:
É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os
preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do
negócio é grande, o comerciante esperto também não faz
semelhante coisa, mas mantém um preço fixo geral para toda a
25
gente, de forma que uma criança pode comprar em sua tão bem
como qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas
isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha
assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse
assim o exigia (KANT, 2014, p. 28)
Os motivos que levaram o comerciante a não subir os preços constituem objeto de
investigação. Deve-se, para Kant, investigar as intenções do sujeito. O comerciante pode
não subir os preços conforme seu dever, isto é, por medo de represália social ou de ser
descoberto pelo público. Assim, agiu conforme o dever, mas por intenções que são
inadequadas às especificações da lei moral. Por outro lado, se o fez em detrimento de
qualquer móbil empírico, mas por puro respeito ao dever, o comerciante agiu moralmente:
sua ação tem valor moral.
O valor moral, em Kant, é válido quanto ao agir por princípios e não no tocante ao respeito a
fins, ou seja, uma ação praticada por dever. A ação que é “praticada por dever tem o seu
valor moral não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina”
(KANT, 2014, p. 31).
O agir moralmente é o agir que se pauta pela lei imposta pela nossa própria razão a nós
mesmos, à nossa vontade, pois, afinal, o homem é um ser racional e, por isso, livre.
O conceito de liberdade em Kant já se encontra parcialmente presente no âmbito da razão
teórica. A liberdade está presente no sentido de impelir a razão ao erro, isto é, no uso
especulativo da razão. No que diz respeito à razão prática, no entanto, a liberdade é a ratio
essendi da lei moral.
Enquanto na primeira, a liberdade aponta para uma possibilidade transcendental vazia e
geradora de problemas epistemológicos, na segunda ela passa a ser o conteúdo que se
torna objetivo pela lei universal do imperativo categórico.
A razão pura se efetiva por meio da liberdade. Para Kant, nem sequer podemos pensar em
razão sem vinculá-la necessariamente ao conceito de liberdade. Kant concebe a moralidade
como qualquer ação possível em conexão com esta liberdade. O prático, em Kant, é
entendido como o que é possível por meio da liberdade transcendental.
Ora, sendo o homem um ser racional e, por isso, necessariamente livre, toda a ação moral,
não sendo empírica, mas sintética a priori, é obrigatoriamente uma lei universal possível de
ser aplicar a qualquer ser racional:
26
A menos que se queira recusar ao conceito de moralidade toda a
verdade e toda a relação com qualquer obecto possível, se não pode
contestar que a sua lei é tão extensa significação que tem de valer
não só para os homens mas para todos os seres racionais em geral,
não só sob condições contingentes e com excepções, mas sim
absoluta e necessariamente (KANT, 2014, p. 44)
O imperativo categórico é uma ordem da razão que se aplica incondicionalmente,
justamente pelo fato de ser racional. Assim, não está sujeita às condições empíricas que
variam conforme as circunstâncias do sujeito. Sendo pura, é delegável a todos, sendo
empírica, seria subjetiva e relativa:
Os conceitos morais têm sua sede e origem completamente a priori
na razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar como na
especulativa em mais alta medida; que não podem ser abstraídos de
nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente
contingente; que exatamente nesta pureza da sua origem reside a
sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos;
que cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico
diminuímos em igual medida a sua pura influência e o valor ilimitado
das acções (KANT, 2014, p. 48)
A objetividade da razão pura prática, expressa na lei do imperativo categórico, impõe
deveres morais específicos, universalizáveis e formais. Tais deveres são explicitados no
Kant na seguinte fórmula: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne uma lei universal“ (Idem, p. 62).
Note-se o uso do termo apenas na fórmula kantiana. Isto é, a liberdade, inata aos seres
racionais, é apenas exercida moralmente quando a lei que coage a vontade do sujeito é
respeitada. A liberdade se efetiva no agir por dever – apenas por dever.
Nesta fórmula, o sujeito assume a função de um legislador universal. Sua vontade
desvincula-se do condicionado e exprime sua autonomia sobre o agir em conformidade com
uma lei que o sujeito impõe a si mesmo. Tal lei deve, assim, ser aplicada a todos os seres
racionais e, por isso, universalizável.
27
Para melhor elucidar o conceito, Kant propõe exemplos na segunda seção da
Fundamentação:
Uma pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro
emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também
que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar
em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas
tem ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é
proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira?
Admitindo que se decidia a fazê-lo, a sua máxima de acção seria:
Quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e
prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá [...] Converto
assim esta exigência do amor de si mesmo em lei universal e ponho
assim a questão: Que aconteceria se a minha máxima se
transformasse em leu universal? (KANT, 2014, p. 64)
A solução, segundo o próprio Kant, é a de que a ação de pedir dinheiro emprestado na
intenção de não pagar nunca poderia valer como lei universal da moralidade. Esta ação
contradiria a si mesma. Ora, a própria noção de promessa se deturparia: “ninguém
acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem” (Idem). Este é o teste do imperativo
categórico: no instante do agir, é preciso analisar a possibilidade de universalização da
máxima do sujeito.
Em resumo, a vontade em Kant deve ser governada pela lei racional que se universaliza
como legisladora, preservando-a dos móbiles empíricos. Assim, a existência vinculada à
possibilidade de objetividade e de realização se dá por seu caráter estritamente formal,
plenamente abstrato e, por isso – mais tarde dirá Hegel –, vazio.
O que Kant tem em vista, na formulação de sua razão prática, não é explicar como as coisas
são – isto no caso, refere-se às ciências da natureza –, mas sim como as coisas devem ser.
Sua deontologia instrui o sujeito a reconhecer determinados deveres absolutos.
A inovação kantiana no tocante à moralidade, no que diz respeito à tradição filosófica, é
tema de interesse para o jovem Hegel. Kant, por exemplo, diz a respeito da tradição que:
Se agora lançarmos um olhar para trás sobre os esforços até agora
empreendidos para descobrir o princípio da moralidade, não nos
28
admiraremos ao ver que todos tinham necessariamente de falhar.
Via-se o homem ligado a leis pelo seu dever, mas não vinha à ideia
de ninguém que ele estava sujeito só à sua própria legislação,
embora esta legislação seja universal, e que ele estava somente
obrigado a agir conforme a sua própria vontade (KANT, 2014, p. 79)
O problema apontado por Hegel quanto à passagem acima - de agir conforme sua própria
vontade, uma vontade autônoma – é o de que a moralidade nunca chega a ser
concretizada, a se efetivar no mundo. A solução de Hegel para não restringir a moralidade à
uma infinitude vazia, por exemplo, efetiva-se na figura do Estado (que será abordado mais
adiante no trabalho). A pureza da razão kantiana, se determinada na realidade concreta,
que é inúmera e infinitamente diversa, torna-se uma lei moral incapaz de determinar este
multiforme. Esta aplicação pura da legislação é a aplicação de uma única determinidade ao
todo.
Tal crítica hegeliana se estende da ética formal ao contratualismo kantiano. Constituía uma
necessidade explicar a faculdade da razão prática para o melhor entendimento da inovação
kantiana quanto à teoria do contrato social de Hobbes. Tendo isto em mente, passemos
agora para a versão formal do contratualismo em Kant.
Comparativamente, se em Hobbes os indivíduos livres eram concebidos como sujeitos do
estado de natureza e, depois, presos pelo dever ao seu governante num estado absoluto,
agora nos deparamos, no contratualismo kantiano, com um acordo que vai além da
sociedade como mera união de sujeitos.
O contrato social é derivado da concepção kantiana de imperativo categórico, isto é, não
recebe sua validade do consentimento expresso dos agentes no acordo contratual. Segundo
Kant, a ordem jurídica não resulta do pacto entre um conjunto de sujeitos – o que seria
computar um fundamento empírico ao direito –, mas é uma construção a priori da razão pura
e, por isso, tem uma validade objetiva e universal que independe do fato puramente histórico
ou ficcional do estado de natureza da tradição filosófica. Em outras palavras, o
contratualismo de Kant, como em sua moralidade, desenvolve-se, de fato, exclusivamente
no plano lógico, sem pautar-se pela realidade concreta, histórica.
Ora, concebida exclusivamente no plano lógico, a ideia do contrato adquire na filosofia de
Kant um valor absoluto: vale exclusivamente por si, por ser a expressão do supremo
imperativo categórico.
29
O contrato kantiano assume uma posição aparentemente contraditória: se para Kant os
homens jamais se uniram mediante um contrato expresso, como seria ele um contratualista?
Quando Kant diz que o Estado não se fundamenta num contrato tácito, sua solução se
expressa do seguinte modo: o Estado deve ser (não que tenha efetivamente sido)
constituído segundo a ideia de um contrato social. Assim, a sociedade deve,
necessariamente, ser concebida como se tivesse sido resultado do consentimento de todos,
mesmo que a rigor não o seja. Tal modelo jurídico do imperativo da razão prática é superior
às vontades individuais dos sujeitos e, sendo pura, é independente delas.
A inovação kantiana quanto ao contrato se fundamenta, pois, na ideia pura do contrato
social que, em Kant, assume novas proporções: o contrato não é estabelecido propriamente
por livre consentimento dos agentes, não resulta de um contrato propriamente dito, mas ao
contrário tem o seu fundamento na organização mesma da razão. Explicando melhor: há
uma lei que impõe o acordo das vontades no todo social. Esta lei é um princípio a priori e
como tal não é válido pela convenção, mas é objetiva, universal e, consequentemente,
necessária.
Devemos agora ressaltar as diferenças entre lei e moral - presentes no texto Princípios
metafísicos da doutrina do direito, publicado em 1797 - com as quais Kant opera.
Segundo o autor, existem duas legislações sobre o indivíduo: uma legislação interna e uma
legislação externa. A interna é a moral. Obedecendo à lei do dever explicada acima, a razão
pura prática expressa-se na figura do legislador universal. A externa formaliza-se no direito
positivo, ou seja, as leis que regulam ações externas. Logo, partindo da separação
estabelecida, na ação interna o homem age por dever, ao passo que, na ação externa,
conforme o dever.
A ação externa exprime-se como heterônoma, na medida em que é condicionada por fatores
externos, diferentemente da vontade moral, que, a rigor, é autônoma, em virtude de ser
conduzida unicamente pelo dever. Kant desenvolve os conceitos de direito e de moral
concomitantemente: somos forçados a atuar de acordo com a lei pela moralidade. A ideia da
coerção ganha um sentido duplo.
Não podemos, porém, perder de vista que a moral deriva de valores e vontades que são
internos ao sujeito. Seus princípios são universais e instituídos separadamente de
interferências externas. A moral, como fim em si mesma, se autodetermina como vontade
pura e autônoma, oriunda do próprio indivíduo. Assim, um dever moral não deve existir
como algo dependente do dever jurídico. O dever moral é dever por dever. A norma jurídica,
no caso, segundo o autor, é uma reguladora daquilo que é externo, imbuída do poder
coercitivo.
30
O direito se direciona, então, às ações exteriorizadas, ou seja, que existem fora do sujeito.
Mas, para Kant, o dever moral e o dever jurídico não se diferenciam quanto a sua
substancialidade. Ambos só cumprem seu dever, pois derivam da vontade como razão pura
prática, sob o imperativo categórico. A diferença efetiva entre moral e direito reside no
seguinte: a força coercitiva da moral é interna e oriunda da própria razão do indivíduo,
enquanto no direito a força coercitiva externa visa à garantia da liberdade do outro.
A liberdade do outro é entendida no contratualismo kantiano como aquilo que pode
assegurar e proteger a distinção entre o “meu e o teu”. Ao nos referirmos ao direito em Kant,
no tocante ao tema do contratualismo, é imprescindível que abordemos, ainda que
superficialmente, o tema da posse.
A ideia de estado de natureza na doutrina do direito kantiana é indispensável à
compreensão do direito privado de Kant. O estado de natureza não é um conceito empírico,
nem depende dos dados históricos: trata-se, ao contrário, de um conceito racional prático
que contém a noção da propriedade privada, assentada na ideia de que inicialmente
nenhuma vontade estava excluída da posse de algo.
No texto Princípios metafísicos da doutrina do direito, ao tratar do direito natural, Kant afirma
que:
A divisão suprema do direito natural não pode ser (como acontece às
vezes) aquela entre o direito no estado de natureza e o direito social,
dos quais primeiro é chamado direito privado, o segundo, direito
público. Pois ao estado de natureza se contrapõe, não o estado
social, mas o estado civil, porque naquele bem pode existir
sociedade, mas não uma sociedade civil (assegurando o meu e o teu
através de leis públicas), chamando-se o direito, por isso, no
primeiro, o direito privado (KANT, 2014, p. 47)
O que Kant quer dizer por estado civil é justamente o direito positivo, direito inerente ao
Estado civil, estado que seria o único capaz, pelo direito público, de garantir a justiça em
assegurar a posse – o meu e o teu – e, desse modo, embora hajam leis no estado de
natureza, restringem-se a leis privadas. Desse modo, Kant assume o estado de natureza
como o âmbito de um direito provisório.
Assim, passamos a entender melhor a liberdade do outro em consonância com a coação
externa da lei que Kant formula como a administração do direito positivo quanto à posse.
31
No texto Princípios metafísicos da doutrina do direito, Kant comenta primeiramente que
O meu de direito (meum juris) é aquilo a que estou ligado de tal
maneira que o uso de um outro quisesse dele fazer sem meu
consentimento haveria de me lesar. A condição subjetiva da
possibilidade do uso em geral é a posse [...] Pois um objeto de meu
arbítrio é algo cujo uso está fisicamente em meu poder. Mas, se
porventura fazer uso do mesmo simplesmente não estiver
juridicamente em meu poder, i. e., não puder coexistir com a
liberdade de qualquer segundo uma lei universal (for injusto), então a
liberdade se privaria a si mesmo (KANT, 2014, p. 52)
Ora, a própria noção de posse apresenta-se neste texto de forma dupla. No estado de
natureza, nada pode garantir justamente essa lei universal sobre o objeto que é externo ao
sujeito. Tal garantia se efetiva no direito positivo.
Esta formulação se torna mais clara com o seguinte exemplo de Kant:
Essa comunidade originária da terra (communio fundi originaria), e
com isso também das coisas sobre ela, é uma ideia que possui
realidade objetiva (juridicamente prática), sendo bem diferente da
comunidade primitiva (communio primaeva), que é uma ficção,
porque essa deveria ter sido uma comunidade instituída e resultante
de um contrato pelo qual todos teriam renunciado à posse privada e
a transformado numa posse comum através da união de sua posse
com a de todos os demais, do que a história deveria nos dar uma
demonstração. Mas é uma contradição considerar tal procedimento
como tomada de posse originária e que a posse particular de cada
homem pudesse e devesse ter sido fundada nele (Idem, p. 57)
Assim como a noção de comunhão originária de posse (communio fundi originaria), relativa
àquilo que seria o estado de natureza – porém como uma realidade prática e não mera
ficção –, justifica o conceito de propriedade privada em Kant, apresentando-se como
característica essencial do direito privado, da mesma forma a noção de contrato social
condiciona — sempre como um conceito formal e lógico — o seu sistema de direito público.
32
É importante conceituarmos brevemente as noções de direito privado e de direito público.
Essa dicotomia privado/público será apresentada à luz do estudo formulado por Norberto
Bobbio em Estado, governo e sociedade. Para o filósofo italiano, a dicotomia entre direito
privado e público se dá “na distinção de dois tipos de relações sociais: entre iguais e
desiguais” (2012, p. 15). Explicando melhor: nas relações desiguais, o Estado caracteriza-se
essencialmente por elaborações de subordinação, de hierarquização entre governantes e
governados. Ou, nas palavras de Bobbio, “entre detentores do poder de comando e
destinatários do dever de obediência” (Idem, p. 16). Afinal, o Estado é o detentor legítimo do
poder coercitivo. Em seu oposto, ou seja, a relação entre iguais, que é o modelo dos
contratualistas, apresentam-se os cidadãos (os singulares); esta é a definição de direito
privado. No entanto, o direito público/privado ainda carece de maiores determinações. Uma
segunda distinção possível é a existente entre lei e contrato:
O direito público é tal enquanto posto pela autoridade política, e
assume a forma específica, sempre mais predominante com o passar
do tempo, da ‘lei’ no sentido moderno da palavra, isto é, de uma
norma que é vinculatória porque posta pelo detentor do supremo
poder (o soberano) e habitualmente reforçada pela coação (cujo
exercício exclusivo pertence exatamente ao soberano) (BOBBIO,
2012, p. 18)
Nessa relação entre desiguais, o direito público assume também para si a noção de ser lei.
Enquanto o direito privado, contrariamente, assume para si a noção de pacto (ou contrato):
O direito privado ou, como seria mais exato dizer, o direito dos
privados, é o conjunto das normas que os singulares estabelecem
para regular suas recíprocas relações, as mais importantes das quais
são as relações patrimoniais, mediante acordos bilaterais, cuja força
vinculatória repousa primeiramente, e naturaliter, isto é,
independentemente da regulamentação pública, sobre o princípio da
reciprocidade (Idem, p. 18)
Na teoria do jusnaturalismo de Hobbes, por exemplo, o direito privado é o direito do estado
de natureza, cuja fundamentação apoia-se no contrato; o direito público é o direito que
33
emana do Estado, da instituição soberana, do governante – é o direito positivo estrito – em
seu pleno poder coercitivo.
Em Kant, o direito provisório do estado de natureza – direito privado – cede lugar ao direito
peremptório do Estado civil (o direito público). O Estado civil é necessário como garantia da
propriedade. A posse de uma coisa externa pressupõe uma formalização jurídica de
aquisição, na qual se mostra necessária a existência do Estado civil, seja provisória, como
no caso estado de natureza – que é um passo ao Estado civil, ou definitivamente.
Por isso, para o sujeito, que tem a necessidade de fazer uso do mundo que lhe é externo,
põe-se a obrigação de abandonar a comunidade primitiva e assentar-se sobre o Estado:
Não sou, portanto, obrigado a deixar intocado o seu externo do outro
se em contrapartida cada um dos outros não me assegura que se
portará em vista do meu de acordo com o mesmo princípio [...] Ora, a
vontade unilateral não pode servir de lei coercitiva para todos em
vista de uma posse externa, portanto contingente, porque isso
prejudicaria a liberdade segundo leis universais. Por conseguinte,
somente uma vontade universal (comum) coletiva e detentora do
poder, é uma vontade que pode dar aquela garantia a cada um
(KANT, 2014, p. 63)
Tal vontade coletiva é a legislação externa ao indivíduo, pública e coercitiva:
Mas o estado sob uma legislação universal externa (i. é, pública)
acompanhada de poder é o estado civil. Logo, somente poder haver
um meu e teu externo no estado civil.
Corolário: Se deve ser juridicamente possível ter um objeto externo
como o seu, então tem de ser também permitido ao sujeito obrigar
cada um dos outros, com quem se chega a uma disputa do meu e
teu a respeito de um tal objeto, a entrar juntamente com ele numa
constituição civil (Idem)
Contrato social e estado natural são dois conceitos fundamentais na concepção jurídica de
Kant, cujo direito não foge da noção de pacto, mas o considera um conjunto de condições
34
mediante as quais o arbítrio de cada um pode compactuar com o de todos segundo uma lei
geral da liberdade.
Com efeito, o contratualismo é, para Kant, o fundamento da vida social e política. Porém,
não podemos perder de vista que a concepção de estado de natureza e de contrato não tem
realidade empírica. É “o ato pelo qual o próprio povo se constitui em um Estado, aliás,
propriamente apenas a ideia dele de acordo com a qual apenas pode ser pensada em sua
legitimidade, é o contrato originário” (KANT, 2014, p. 130). Ou seja, não necessariamente o
ato explícito ou ficcional, mas a ideia do ato da realização de um contrato é basilar para o
princípio da organização político-jurídica. A pura ideia de razão, que, expressa no estado de
natureza e no contrato, e que em virtude disto não contém nenhum elemento empírico, se
afasta da teoria contratual de Hobbes. Para Kant, basta demonstrar o caráter puramente
racional que o contrato social assume.
Por fim, o contratualismo na teoria do direito kantiano é uma ideia a priori, um princípio
racional prático: a unidade crítica para a justa avaliação da ordem jurídica e social. Em
outros termos, o caráter deontológico do contrato social kantiano espelha sua concepção de
ética formal, o que resulta assim em medidas que implicam em imperativos da razão prática.
35
4. A CRÍTICA HEGELIANA ÀS TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL DE HOBBES E DE
KANT
Para melhor elucidação das críticas levadas a efeito por Hegel no que tange às teorias do
contrato social, este Capítulo foi organizado em dois itens complementares. No tocante ao
primeiro, será abordada a concepção de Estado civil hegeliano com a finalidade de
sustentar a tese segundo a qual a solução proposta por Hegel no que diz respeito,
respectivamente, à ética kantiana e à liberdade hobbesiana expressa-se na síntese do
Espírito em si e para si, efetivada na figura do Estado. Em seguida, no segundo, serão
abordadas às críticas hegelianas ao contratualismo de Hobbes e de Kant à luz de sua
concepção de estado civil universal e de suas críticas às figuras do entendimento.
4.1. O ESTADO CIVIL HEGELIANO COMO PRESSUPOSTO DA ETICIDADE
Antes de abordarmos a concepção e os fundamentos do Estado civil em Hegel, é preciso
advertir que faremos uso de um texto de maturidade: Princípios de filosofia do direito, escrito
em 1821. Embora seja possível encontrar certas ideias semelhantes desde sua juventude,
optamos por esta obra a fim de aclarar certos conceitos para que, então, possamos adentrar
nas críticas ao contratualismo propriamente ditas.
Em oposição a Kant e Hobbes, a filosofia hegeliana do Estado assume características
distintas das teorias do contrato. De início, não há, para o filósofo alemão, uma relação
diática como estabelece Hobbes por exemplo. Sobrepõe-se sobre o raciocínio dualista da
teoria contratualista hobbesiana – sociedade civil, de um lado, e estado de natureza. de
outro – o modelo triádico do desenvolvimento do espírito. O Estado não é um pressuposto
abstrato, mas o conceito universal em sua concretude real, personificando a suprassunção e
a conservação de seus dois momentos precedentes: a família e a sociedade civil.
Torna-se visível as primeiras diferenças básicas: em Hobbes, Estado e sociedade civil se
coadunam como uma só coisa indiferentemente: a passagem à sociedade civil é a
transferência de poder ao soberano absoluto. Hegel, por sua vez, vincula o Estado –
compreendido como o terceiro momento do movimento dialético – à suprassunção de seus
momentos precedentes.
Um bom exemplo para se abordar mais acuradamente esta teoria encontra-se em Bobbio,
mais especificamente em uma passagem em que o autor elucida a categoria hegeliana da
sociedade civil como um
36
Momento intermediário da eticidade posto entre a família e o Estado,
permite a construção de um esquema triádico que se contrapõe aos
dois modelos diádicos precedentes: o aristotélico, baseado na
dicotomia família/Estado (societas domestica/societa civilis, onde
civilis de civitas corresponde exatamente a politikós de pólis), e o
jusnaturalista, baseado na dicotomia estado de natureza/estado civil.
Com respeito à família, ela já é uma forma incompleta de Estado, o
“Estado do intelecto”, com respeito ao Estado, não é ainda o Estado
em seu conceito e em sua plena realização histórica (BOBBIO, 2012,
p. 41)
Rompendo com as tradições da história da filosofia, o Estado foi reelaborado por Hegel
como o resultado de um processo de formação do espírito (formação da eticidade e da
liberdade), da mediação da família (primeiro momento) com as corporações e instituições
presentes na sociedade civil (segundo momento), constituindo as figuras necessárias em
que se expressa a figura universal do Estado.
No primeiro momento, o sujeito encontra-se apartado, no sentido de estar ainda
desvinculado de relações intersubjetivas, sociais e políticas. Ele é uma vontade livre,
embora abstrata; para o velho Hegel, substância imediata do espírito em sua individualidade
própria e que apresenta uma relação apenas consigo mesmo: “a vontade do sujeito, vontade
individual, encerrada em si mesma” (2009, p. 39). Em suma, a família, no âmbito do
processo dialético, constitui uma determinação formal do universal, vazia de experiência e,
portanto, desprovida de plenitude: “enquanto abstrata, é precisamente o que ainda não se
particularizou e situou nas determinações que a diferenciam” (Idem, p. 50). Ora, o indivíduo
é um membro indiferenciado no todo familiar. A família não distingue os membros; não
existe nela a consciência de si como um não-membro, um indivíduo independente:
Como substancialidade imediata do espírito, a família determina-se
pela sensibilidade de que é uma, pelo amor, de tal modo que a
disposição de espírito correspondente é a consciência de si e para si
e de nela existir como membro, não como pessoa para si [...] quando
a família começa a se decompor e aqueles que devem ser os seus
membros se tornam, psicológica e realmente, pessoas
independentes (HEGEL, 2009, p. 149)
37
É preciso situar a vontade pura imediata no mundo, aliená-la em seu oposto. A figura
correspondente a esta mediação se encontra na concepção de sociedade civil, na qual a
vontade abstrata individual está “em relação com a análoga particularidade de outrem, de tal
forma que cada uma se afirma e se satisfaz por meio da outra” (Idem, p. 168).
A liberdade subjetiva e individual do sujeito no âmbito da família agora se determina como
vontade livre em contraposição às outras vontades; constitui-se assim a negação do sujeito
em Princípios de Filosofia do Direito: a particularidade do outro que se opõe à minha. A
vontade alienada do sujeito depara-se com outras determinidades na sociedade civil e,
então, é reinteriorizada novamente pelo sujeito, assegurando a reflexão dialética no âmbito
social.
Quanto ao Estado, este apresenta-se como a etapa suprema que garante a coesão,
estrutura e organização das etapas que o antecederam. Tal figura não tem, em nenhum
momento, a função de suprimir, como em Hobbes, as vontades individuais para manter a
ordem e coesão, ou como, em Kant, a de uma ideia que nunca chega a obter realidade
efetiva, mas sim a de administrar e mediar as contradições inerentes à sociedade.
Administrar conflitos significa suprassumi-los.
O Estado, como sabemos, representa a instância absoluta da universalidade, na qual o
“destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva” (HEGEL, 2009, p. 216). Ou
seja, o velho Hegel assume o Estado como o momento em que as vontades individuais,
longe de desaparecem, mas passando pelo processo necessário da família e da sociedade
civil, se universalizam:
O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade
que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o
racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio do
absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e
assim este último fim possui um direito soberano perante os
indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais
elevado dever. (Idem, p. 217)
O Estado pressupõe instâncias de organização que assegurem os interesses dos indivíduos
e dos grupos, para que, nesse contexto, ele possa integrar em uníssono as individualidades
e interesses particulares nos fins universais que o definem. Logo, o Estado não pode ser
38
totalitário, isto é, não pode assumir o caráter de órgão repressor, mas de administração dos
conflitos dos indivíduos.
Franz Rosenzweig, em Hegel e o Estado, assevera que a solução inédita de Hegel no que
concerne ao Estado “é a seguinte: o grande homem que é obedecido à força por todos, em
lugar do estabelecimento livre do contrato, é obedecido exatamente porque tem em si a
vontade inconsciente de todos, a vontade que um dia terão” (2008, p. 203).
A integração das individualidades dos sujeitos – pessoais – com o todo é a plena efetivação
do conceito de liberdade, da ideia de eticidade: sua alienação concreta na realidade.
Ora, se podemos assumir essa mediação do todo universal com as partes, é fácil entender
que, para Hegel, desde o jovem até o velho, o Estado opera analogamente a um organismo
vivo em que suas relações estruturam-se de tal maneira que o todo depende das partes
para funcionar corretamente. Nesta coesão, o representante da vontade de todos e os
próprios indivíduos são interdependentes.
Esta característica organicista – no sentido de que as partes não podem ser apreendidas
separadamente, mas em sua conexão íntima com a totalidade –, que perdurou por toda a
vida intelectual de Hegel, é uma concepção inspirada em seus estudos sobre a pólis grega,
onde o cidadão se vê representado na cidade-estado como algo uno com o todo.
Sobre a relação hegeliana com a pólis, comenta Habermas que:
O jovem Hegel elucida as relações de vida coaguladas na
positividade mediante a correspondência que estabelece entre a sua
época e a decadência do período helenístico. Ele espelha seu
presente em uma época de dissolução dos modelos clássicos. Com
isso, para a fatal reconciliação da modernidade em conflito, Hegel
pressupõe uma totalidade ética que não nasceu do solo da
modernidade, mas que retirou de um passado idealizado da
comunidade religiosa do cristianismo primitivo e da polis grega
(HABERMAS, 2000, p. 44)
A dissolução dos modelos clássicos e a necessidade de reconciliação da modernidade
cindida são os motivos que, de acordo com Habermas, levam Hegel a pressupor o Estado
como assegurador da totalidade ética e da liberdade.
39
Em uma passagem de Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, Hegel, ao
citar Aristóteles, explica que a vida ética
Não pode, em primeiro lugar, expressar-se no [indivíduo] singular se
ela não é sua alma, e ela não o é senão na medida em que ela é um
universal e o espírito puro de um povo; o positivo é, por natureza,
anterior ao negativo; ou, como diz Aristóteles, o povo é, por natureza,
anterior ao [indivíduo] singular – pois, se o [indivíduo] singular,
tomado à parte, não é nada de subsistente-por-si, é necessário,
igualmente em todas as partes, estar numa única unidade com o
todo –, mas este que não pode estar num comunidade, ou que, por
[ser] subsistente-por-si, não tem necessidade de nada, não é uma
parte de um povo e, por esta razão, é ou [um] animal ou [um] deus
(HEGEL, 2007, p. 108).
Todo indivíduo nasce e se desenvolve dentro de uma cultura determinada, uma construção
histórica expressa em uma comunidade que antecede e determina o sujeito particular. Essa
percepção vai novamente de encontro às teorias do contrato social: nem no empirismo, nem
no formalismo a comunidade antecede o indivíduo. Este é o ponto nevrálgico em que Hegel
situa sua concepção de ética. O ético reside nessa totalidade orgânica. Com efeito, em
Sobre as maneira científicas de tratar o direito natural, a “totalidade ética absoluta não é,
senão, que um povo” (Idem, p. 83). Ora, isto fundamenta a eticidade: a fusão do infinito e do
finito, real e ideal, uno e múltiplo, do conceito e sua efetivação.
Nesse modelo trifásico, ninguém pode ser naturalmente ético, assim como ninguém pode
ser naturalmente livre. Para o filósofo alemão, é no Estado que se apoiam as condições
mínimas para a efetivação de tal conceito. O Estado, desse modo, é a figura par excellence
da liberdade.
Tanto a eticidade quanto a liberdade dependem, para sua realização, deste complexo
movimento enredado pelo espírito absoluto, isto é, não se fundamentam exclusivamente na
figura do entendimento, fixado meramente como oposição absoluta.
Em resumo, para que o contrato hobbesiano se realize, basta um consentimento de
vontades individuais, que, se forem comparadas com a ideia da vontade racional hegeliana,
não passam de uma unilateralidade abstrata, um livre-arbítrio da vontade, como mero
momento “da ideia da vontade racional que só é verdadeiramente ela mesma quando em si
40
também é o que é para si” (HEGEL, 2009, p. 219). Ou seja, o Estado, na história da filosofia,
deixa de ser visto como nas teorias empiristas do contrato social algo que existe baseado no
arbítrio do indivíduo natural. Para o filósofo alemão, não há eticidade como dado natural e o
Estado é, assim, a essência que engendra os conceitos universais em si e para si,
caracterizando-se como figura necessária para que eles se efetivem. Ora, o mesmo é válido
para o conceito de imperativo da Razão Pura Prática – embora, em sua própria
especificidade –, isto é, o projeto ético kantiano, para Hegel, nunca chega a se efetivar, mas
permanece restrito ao infinito incapaz de efetivamente alcançar o real.
A solução encontrada por Hegel é a de um Estado racional constituído como a síntese do
Espírito em si e para si.
Analisando outro texto de juventude de Hegel, no qual encontramos uma formulação ética
importante, Franz Rosenzweig sustenta a tese de que:
No poder do “povo” por sobre toda “existência, propriedade e vida”, a
tutela do Estado sobre os indivíduos cessa de ser inconsciente; a lei
é aqui “vida autoconsciente”, notando-se, porém, que se trata da lei
em relação ao indivíduo, e não do indivíduo através da lei – nós nos
encontramos ainda no reino do “Espírito efetivo”, ou seja, da
cessação da vontade individual no poder do todo. Esta esfera do
“povo” havia tido para Hegel, em 1802, o significado ético mais alto
(ROSENZWEIG, 2008, p. 419)
A concepção hegeliana de Estado, como provedor e articulador universal da eticidade,
expressa-se como a tutela do Estado sobre os indivíduos. É imprescindível que os
indivíduos tomem consciência da necessidade desta tutela. Em Hegel, é claro o modo como
o clamor por liberdade passa, no caso, pela concretização de um governo forte. Sem um
corpo representativo forte, a liberdade não pode sequer ser concebida.
Pensando assim, podemos nos debruçar sobre sua crítica ao contrato propriamente dito. De
um lado, o contrato empírico não enxerga na síntese das particularidades o fundamento
ético; de outro lado, embora Kant tenha concebido o infinito, é um infinito puramente formal.
Em Fé e saber, o jovem Hegel já comentava que “a filosofia kantiana e fichteana se
elevaram ao conceito, mas não à ideia; e o conceito puro é a idealidade e vacuidade
absolutas” (HEGEL, 2009, p. 29).
41
A lei moral kantiana é indiferente à experiência sensível, abstraindo-se do mundo e
centrando-se em si mesma como vacuidade absoluta. Ambas as perspectivas – a formal e a
empírica -, segundo Hegel, pecam no mesmo sentido: negam o movimento; não concebem
a Ideia como resultado do processo dialético; não enxergam o Estado como provedor da
eticidade, mas, absolutizadas na finitude, prendem-se apenas ao resultado negativo do
Esclarecimento. Como sustenta Habermas, “esse resultado negativo mostra-se ainda mais
nítido na construção da ‘superação’ da sociedade civil burguesa no Estado” (HABERMAS,
2000, p. 53) hegeliano.
Assim, a figura do entendimento das filosofias da reflexão, que operam com a cisão entre
sujeito e objeto, não pode conceber uma ética concreta. A comunidade, como um corpo uno,
como uma totalidade orgânica assumida como síntese, expressa a ideia de que o
contratualismo não ultrapassa a figura do entendimento, que, fixado em sua universalidade
vazia, faz-se de verdade atemporal e absoluta, mas sem perpassar as etapas essenciais da
razão.
Tendo a concepção de filosofia e de Estado em Hegel sido abordada de modo resumido,
passemos à sua crítica às teorias contratualistas. É obviamente também nos termos de sua
Aufhebung (suprassumir ou superar-conservando), concomitante com sua crítica às figuras
do entendimento, que Hegel a levará a efeito.
4.2. AS CRÍTICAS AO CONTRATUALISMO PROPRIAMENTE DITAS
Na primeira página do texto Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, o jovem
Hegel afirma que a ciência do direito natural, como as outras ciências – a física, por exemplo
–, é uma ciência essencialmente filosófica e, assim, uma vez que a filosofia deve
necessariamente ter partes e subdividir-se – não perdendo de vista aquilo que Hegel afirma:
cada parte que pode compor a filosofia como um todo, em sua singularidade, é uma ciência
por si só –, ao longo da história o direito natural compõe umas dessas partes da filosofia,
devendo ser analisada como tal.
De início, o autor mostra certo incômodo ao notar que a discussão sobre o direito natural,
em sua época, havia afastado-se da filosofia, mesmo sendo essencialmente filosófica:
As ciências mencionadas como exemplo têm sido, finalmente,
forçadas a confessar seu distanciamento da filosofia, de forma que
elas acabam reconhecendo por seu princípio científico o que se
costuma chamar experiência, o que, por isto, favorece a que elas
42
renunciem às pretensões de ser ciências verdadeiras e se contentem
de ser compostas de uma coleção de noções empíricas (HEGEL,
2007, p. 35)
O jovem Hegel se esforça em trazer o debate, atual em sua época, sobre o direito natural de
volta para o âmbito filosófico. Aos poucos, ao longo do texto, descortina os erros das teorias
precedentes. De um lado, o empirismo; do outro, o formalismo.
No texto ora em discussão, Hegel proporá a adoção do método especulativo, fruto de sua
concepção de filosofia, que, em suma, consistirá em dissolver as teses dos sistemas
antagônicos, apontando suas inconsistências e inadequações, mas, ao mesmo tempo,
guardando aquilo que delas deve ser conservado:
Da mesma forma, não é porque elas seriam prontamente empíricas
que é preciso recusar toda realidade às ciências que são constituídas
como aquelas que foram citadas acima; pois, da mesma forma que
cada parte ou cada lado da filosofia é capaz de ser uma ciência
subsistente-por-si, da mesma forma cada uma é, imediatamente, ao
mesmo tempo, também uma imagem subsistente-por-si e completa,
e ele pode ser acolhido (HEGEL, 2007, p. 35)
Devemos ter em mente uma negação apenas parcial – isto é, determinada – do direito
natural. Portanto, é imprescindível acolhermos as teorias do direito natural, conservá-las em
sua singularidade, já que estas subsistem-por-si, para somente então suprassumi-las. O
jovem Hegel se empenha em evidenciar as contradições presentes tanto no empirismo
quanto no formalismo. No tocante ao primeiro, assevera que seu erro consiste em tomar a
realidade observada, que é múltipla e plural, como princípio último das coisas. Além disso,
Hegel afirma que o empirismo não é capaz de distinguir o acidental do necessário, optando,
ao acaso, por um momento e lhe conferindo caráter de conteúdo de uma ciência verdadeira.
Assim, esta perspectiva que valoriza o empírico eleva a multiplicidade dos fenômenos
aleatoriamente à Ideia. Quanto ao segundo, este, de acordo com o autor, nega as
diferenças em nome de uma identidade vazia, autocentrada, abstraindo a noção de sujeito a
partir de um pressuposto imanente abstrato, sem efetivamente estabelecer contato direto
com ele.
43
Ao analisar o empirismo contratualista em seu texto de juventude, Hegel sustenta a tese de
que:
Falta, em primeiro lugar, de uma maneira geral, ao empirismo, todo
critério a respeito do lugar onde passaria o limite entre o contingente
e o necessário, [a respeito] disto que, assim, no caos do estado de
natureza ou na abstração do homem, deveria permanecer e do que
deveria deixado de lado (HEGEL, 2007, p. 46)
E, logo adiante, complementa:
Temos reprovado à empiria científica, na medida em que ela é
científica, o caráter-de-nada positivo e a não-verdade de seus
princípios, leis etc., porque ela consente às determinidades, pela
unidade formal na qual ela os faz passar, a absolutidade negativa do
conceito, e que ela os exprime como positivamente absolutos e
[como] sendo em si, como fim e destinação, princípio e lei, dever e
direito, formas que significam algo de absoluto (HEGEL, 2007, p. 50)
Há no empirismo científico um conflito insolúvel entre verdades incompletas, parciais, sem
vínculo, furtando-se a qualquer necessidade imanente. A noção de ciência do empirismo
encontra na multiplicidade dos fenômenos seu princípio e a essência da necessidade
consiste em algo que lhe é exterior. A teoria hobbesiana não assume a contradição como
etapa constitutiva essencial imanente ao Ser da razão. Ela encontra-se aquém desta
exigência.
Assim, a empiria não penetra no absoluto. Isto é, não penetra no domínio da realidade. Tal
domínio da realidade somente é alcançado pelo curso que o Absoluto empreende na
história: a suprassunção dos limites do entendimento pelos seus opostos. A teoria o contrato
de Hobbes não se reconhece como figura da marcha do espírito, ela está restrita à mera
abstração característica da imediatidade do entendimento1. O ser diverso e multiforme é seu
1 Pode parecer estranho que Hegel entenda uma teoria empirista como algo puramente abstrato, porém é válido
ressaltar que abstração para Hegel tem um sentido muito específico, podendo ser entendida como algo ainda não experienciado, ou seja, que ainda não perpassou as três etapas constitutivas essenciais da razão: entendimento, dialética e especulação.
44
ponto de partida e princípio último. Tal método, por isso, não consegue produzir nem
apropriar-se da coisa-mesma.
A abstração hobbesiana é limitada pelos princípios e método em que se fundamenta: a
dedução. Hobbes defende dedutivamente a necessidade do Estado Absoluto como o meio
para se sair da ficção da guerra de todos contra todos.
Sobre esta contradição, Hegel afirma que:
De um lado, este pressentimento turvo de uma unidade originária
absoluta, que se exterioriza no caos do estado de natureza e na
abstração de faculdades e tendências, não chega à unidade negativa
absoluta, mas ele apenas está dirigido a desaparecer numa grande
multidão de particularidades e de oposições [...] neste caos do
estado de natureza, uma multidão indeterminável de determinidades
qualitativas, que tem tão pouco, para elas, uma outra necessidade
quanto uma necessidade empírica, e não têm umas para as outras
nenhuma necessidade interior (HEGEL, 2007, p. 47)
O princípior norteador para o a priori do empirismo, conforme Hegel, é o a posteriori. Para
esta teoria, o que é levado em conta para se poder legitimar o Estado de direito visa
somente “provar” sua conexão com o postulado originário, provando assim e assim seu
caráter necessário.
A crítica hegeliana, num primeito momento, ataca este ponto hobbesiano. Esta intuição turva
do estado de natureza, posto como uma unidade originária e absolutizada que está
destinado a desaparecer na “grande multidão de particularidades e oposições” (HEGEL,
2007, p. 47). Toda teoria é, para o empirismo, tão real quanto qualquer outra: todas têm
direitos iguais e lhe é impossível determinar uma como a verdadeira. Sua razão pensa
somente a fininute e nela encontra-se totalmente presa, invinculável à Ideia. Esta restrição
força o empirismo, mediante o método dialético hegeliano, a aceitar qualquer teoria que se
lhe oponha. Não há uma necessidade verdadeira nessas teorias, que não chegam à
identidade da primeira negação, permanecendo determinadas enquanto múltiplo vazio e,
desse modo, são puramente ideais não podendo subsistir unicamente em sua idealidade. O
empirismo contratualista, em razão disto, há de se suprimir e se reduzir ao nada.
A teoria hobbesiana do contrato, se estudada sob os preceitos do método especulativo,
assume o caráter de uma ficcção do entendimento que se passa por uma verdade
45
atemporal, por ciência verdadeira: ao provar a gênese do Estado, põe sua filosofia política
na condição de universal absoluto, livre das contingencialidades históricas. Hegel, em
contrapartida, assume a teoria jusnaturalista de Hobbes como uma determinação vazia
querendo passar-se por universal, mas sem o expediente da razão. Ou seja, ainda que a
filosofia hobbesiana seja a expressão de seu tempo, o espírito de sua época, e não deve ser
descartada, não é, de modo algum a perspectiva do absoluto que se volta para si – a
filosofia de Hobbes não enxerga tanto. Carece de pensar o movimento, gerando, então, uma
imediatidade ainda não mediada; irreflexiva; incompleta; à espera do seu oposto que, ao
que entende o filósofo alemão, expressa-se no formalismo.
Tanto Hobbes quanto Hegel entendem o Estado como uma categoria racional. O que os
diferencia no tocante a esta questão consiste no fato de que para Hobbes o racional refere-
se a uma norma da razão que impede que o homem se volte contra si mesmo e atente
contra sua própria vida, sendo, por conseguinte, forçado imperiosamente ao contrato. Em
Hegel, pelo contrário, o racional demanda mediação, mediação das vontades individuais que
se coadunam com as instituições sociais. É justamente nas instituições do Estado que – o
velho Hegel diz – “a razão é verdadeiramente dada e real, pois no comportamento em
conformidade com essas instituições é que a razão adquire sua eficácia” (HEGEL, 2009, p.
230), resultando em uma universalidade superior. Por esta razão, o Estado não pode se
fundamentar no direito exclusivamente determinado por particulares: como contrato ele não
ultrapassa a condição supérflua de vontade. Nestas circunstâncias, o Estado restringe-se ao
indivíduo abstrato, por definição universalmente vazio, e, deste modo, o Estado não
passaria, para Hegel, de uma determinidade atomizada longe de ser mediado pelos
indivíduos do estado de natureza. À luz de tal perspectiva, o Estado do empirismo
contratualista não é representante concreto da eticidade e da liberdade, mas uma ficção
finita do entendimento que não alcança a etapa dialética, não concretiza-se no domínio do
real.
Explicada a crítica de Hegel ao método adotado por Hobbes e suas supostas inadequações,
passemos à breve análise do formalismo, em que a crítica agora recai sobre Kant.
Opondo-se ao empírico, está o princípio da aprioridade, em relação ao qual o jovem Hegel,
na segunda seção do texto Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, intitulado
O formalismo científico e o direito natural, diz:
A relação desta unidade pura com o ente multiforme que lhe faz face
é ele mesmo, por seu turno, também uma relação duplicata: ou a
relação positiva da subsistência dos dois [...] não devem
46
compreender-se a não ser como uma subsistência parcial [...], pois,
se esta subsistência dos dois [termos] fosse absoluta, não se teria
absolutamente a relação dos dois (HEGEL, 2007, p. 56)
A primeira crítica de Hegel ao formalismo está em mostrar sua incapacidade de pensar o
absoluto, cuja essência se revela no puro movimento. Kant teorizou o infinito como razão
pura, mas não desenvolveu a passagem ao seu oposto, “a oposição de um Eu divisível a um
não-Eu divisível no Eu, quer dizer na relação, precisamente por isso igualmente parcial –,
este é o princípio absoluto da filosofia” (HEGEL, 2007, p. 56). O princípio absoluto do
formalismo é, na verdade, parcial. Uma subsistência parcial, dependente do seu contrário.
Essa relação escapa ao formalismo, fixando apenas um lado da dialética, irreflexivo sobre
reconhecer o seu contrário como necessidade já contida em si mesmo. Semelhante ao
empirismo, o formalismo restringe-se à figura do entendimento, abstrata e confinada em si,
sem assumir a primeira negação como percurso inexorável da razão.
O formalismo, nesses termos, é universal, mas universal abstrato: parte de uma pura
abstração, contrária ao empirismo, e não de um fato presente na realidade.
Comparativamente, se o empirismo assumia como ponto de partida as determinações finitas
para dar unidade à realidade, abstraía, aleatoriamente, uma determinação e lhe conferia
caráter de fundamentação racional do todo existente. Por sua vez, o formalismo faz o
oposto: assume a infinitude pura (desprovida de experiência) e, generalizando-a, confere à
realidade um caráter de unidade, negando suas diferenças intrínsecas.
A ciência formalista do direito natural reconhece uma única lei e faz dessa lei seu ponto de
partida para superar a multiplicidade dos fenômenos. Tal multiplicidade é adotada pelo
empirismo como algo que paira acima da própria multiplicidade como verdade absoluta,
infinita:
Uma vez que a unidade pura constitui a essência da razão prática,
pode-se ter tão pouca consideração de um sistema da vida ética que
nem mesmo uma pluralidade de leis é possível – enquanto isso que
vai além do conceito puro, ou – porque este, na medida em que ele é
posto como negando o múltiplo, isto é como prático, é o dever – o
que vai além do conceito puro de dever, e da abstração de uma lei,
não pertence a esta razão pura, assim que Kant [...] reconhece muito
bem que toda a matéria da lei falta à razão prática (HEGEL, 2007, p.
60)
47
Já em Fé e saber, podemos encontrar esta crítica formulada ao transcendentalismo
kantiano. O jovem Hegel diz que “todavia, porque essa razão tem pura e simplesmente
apenas esta orientação contra o empírico, o infinito em si é apenas em relação ao finito,
então essas filosofias, na medida em que combatem o empírico, permanecerem
imediatamente em sua esfera” (HEGEL, 2009, p. 29). A razão pura, que é infinita, só o é na
medida em que se relaciona com o empirismo, isto é, na medida em que tenta superar a
multiplicidade empirista e, em consequência disto, não consegue se afastar de sua esfera: a
esfera fixa do entendimento.
Por meios diferentes, empirismo e formalismo estão reclusos às determinações absolutas
das oposições particulares. Tal consideração leva Hegel a asseverar o formalismo como
abstração inferior, isto é, um conceito que não ascendeu à Ideia. Ora, o entendimento, na
sua versão kantiana, apresenta a mesma arbitrariedade do empirismo: o imperativo
categórico como lei, para Hegel, deve necessariamente ter alguma matéria ou, de outro
modo, não pode pensar nada que seja concreto. A conclusão então é a de que, para o
formalismo, qualquer dado empírico vale indiferentemente como conteúdo à lei universal.
Uma vez que a unidade pura constitui a essência da razão prática,
pode-se ter tão pouca consideração de um sistema da vida ética que
nem mesmo uma pluralidade de leis é possível – enquanto isso que
vai além do conceito puro, ou – porque este, na medida em que ele é
posto como negando o múltiplo, isto é como prático, é o deve – este
que expôs esta abstração do conceito na sua pureza absoluta –
reconhece muito bem que toda matéria da lei falta à razão prática e
que esta não poder erigir em lei suprema nada mais que a forma da
aptidão da máxima do livre-arbítrio (HEGEL, 2007, p. 61)
Concluindo, como analisa o jovem Hegel em seu artigo sobre o direito natural, o contrato
não pode ser estritamente formal, pois
Um direito e dever determinado, sendo em si absoluto, é possível,
vem da [consideração da] indiferença formal ou do negativamente-
absoluto, o qual não tem lugar senão na realidade fixa desta esfera,
e o qual, seguramente é em si; mas, na medida em que é em si, é
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vazio, ou nele não há nada de absoluto se isto não é precisamente a
pura abstração, o pensamento completamente privado-de-conteúdo
da unidade (HEGEL, 2007, p. 88)
E complementa este raciocínio afirmando que justamente esta negatividade do pensamento
kantiano não é
Por exemplo, uma conclusão tirada da experiência [dada] até agora,
e não pode ser considerado como uma imperfeição contingente do
concreto e do desenvolvimento de uma Ideia verdadeira a priori, mas
é preciso conhecer que o que é aqui denominado Ideia e uma
esperança num porvir melhor concernente são em si nada, e que
uma legislação perfeita, assim como uma justiça verdadeira
correspondendo à determinidades das leis são, no concreto poder
judiciário, em si impossíveis (HEGEL, 2007, p. 88)
O contrato social não pode assim ser puramente um em si. Uma norma geral da razão
destituída de qualquer experiência. Tal pureza, se determinada no concreto poder judiciário,
é impossível. As instituições, para Hegel, são inúmeras e infinitamente diversas. Uma lei
moral que é pura não pode determinar este multiforme. Esta aplicação pura da legislação é
a aplicação de uma única determinidade ao todo. Esta ciência jurídica formal não pode
representar o ser-absoluto, pois sua concepção se pauta especificamente pela indiferença.
Quanto à questão do formalismo e da indiferença, Hegel, no mesmo artigo sobre o direito
natural, sustenta que:
O [aspecto] ético absoluto deve necessariamente se organizar
completamente como figura, pois a relação é a abstração do lado da
figura. Enquanto a relação é, na figura, absolutamente reduzida a
uma indiferença, ela não cessa de ter a natureza da relação,
permanece uma relação da natureza orgânica à natureza inorgânica
(HEGEL, 2007, p. 90).
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O lado da figura, no tocante à citação acima, é o formalismo puro, vazio e abstrato. Pela
perspectiva da figura unilateral, a relação é reduzida à mera indiferença – sua natureza
inorgânica –, não considerando, portanto, no seu em si as particularidades fenomênicas.
Porém, o absoluto, que é orgânico, é - em si e para si - contrário a si mesmo; aniquila a
fixidez do lado da figura. Mas é uma aniquilação parcial, pois também conserva o aniquilado
em sua unidade, Ou ainda, “o aniquilar põe algo que ele aniquilou, ou o real; e assim haverá
uma efetividade e diferença insuperável para a vida ética” (HEGEL, 2007, p. 91).
Semelhante às divergências entre Hegel e Hobbes no tocante ao conceito de liberdade,
põem-se as divergências entre Hegel e Kant quanto à moralidade. A proposta kantiana não
se reconhece, para Hegel, como princípio válido da vida ética concreta de um povo. O
imperativo categórico da razão prática assume, na ótica hegeliana, o papel de um pensador
solitário, que não se encontra no mundo e que, por si só, determina na unidade formal o
conteúdo moral. O formalismo reduz - a priori - o conteúdo do direito como conteúdo
exclusivamente moral, porém de uma moral que, apresentando-se independentemente da
empiria, subsiste sem conteúdo. Em consequência disto, a norma do direito é relegada à
arbitrariedade da vontade individual (como no contrato hobbesiano).
Portanto, cada determinidade é em si um particular e não um universal. Uma determinidade
somente é determinidade na medida em que outra determinidade se lhe opõe. Cada uma
das determinidades “é, igualmente, suscetível de ser pensada” (HEGEL, 2007, p. 63) e de
ser
Acolhida na unidade, ou pensada, de qual é que deve ser feita
abstração, isso é algo que é completamente indeterminado e livre; se
uma é fixada, como subsistente em si e por si, a outra não pode,
também, ser pensada e, uma vez que esta forma de pensamento é a
essência, [pode] ser expressa como uma lei moral absoluta (Idem)
Desse modo, a falta de conteúdo da razão prática, no tocante à multiplicidade de
determinidades possíveis à lei universal, segundo Hegel, acarreta – como no empirismo –
pura arbitrariedade. Uma determinidade singular prova-se tão indiferente quanto qualquer
outra.
O fato de o pensamento kantiano, na teorização da razão prática, elevar uma determinidade
qualquer à forma da unidade pura caracteriza-se como uma contradição: a determinidade,
guiada pela natureza dialética do ser, como Hegel a formula, deve constantemente mudar. A
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mudança de uma determinidade que, diante de si, naturalmente, tem outra determinidade,
deveria, no imperativo categórico, segundo Hegel, ser erigida como lei. Mas, em virtude de
seu caráter finito, a oposição de determinidades não pode ser absoluta. Por isso que, em
Kant, a determinidade singular, que é elevada à categoria de um em-si, representa “um
atentado à razão, e, relativamente ao elemento ético, uma negação da vida ética” (HEGEL,
2007, p. 65). A eticidade que em Hegel se apresenta na figura universal do Estado, em Kant
é singularizada por um indivíduo que, em suas determinidades abstratas, erige, partindo
apenas de si mesmo, uma lei universal. Por isso, como não há liberdade concreta em
Hobbes, não há eticidade concreta em Kant.
A conclusão formulada pelo jovem Hegel, no tocante ao seu esquema sistemático, se
comparada à sua crítica ao entendimento e ao fundamento do Estado se constitui nos
seguintes termos: o que falta ao formalismo é o empirismo e vice-versa. Hegel proporá,
então – após examinadas as doutrinas empirista e formalista –, uma síntese desses dois
momentos, de modo que o artigo já é, como de praxe do autor, a aplicação dessa proposta.
Interdependentes, estas duas perspectivas coadunam-se em uma conexão lógica e
necessária que resultará na realidade de um povo como relação. Em outras palavras, no
método especulativo é rejeitada a fixação do entendimento, isto é, a realidade total – a
realidade ética – só pode ser entendida como relação.
A ciência filosófica do direito, então, tem por objeto dar unidade e necessidade lógica às
determinações do jurídico, ou seja, conceber um sistema da realidade jurídica, o que é
impossível às determinações a priori e também às determinações empíricas.
Para tanto, Hegel, na terceira seção do texto Sobre as maneiras científicas de tratar o direito
natural, intitulada A ciência especulativa e o direito natural, estabelece um princípio básico –
formal - do direito natural. Depois, tenta mostrar como este princípio pode relacionar-se a
um sistema de direitos e deveres. Por fim, elucida como esses direitos e deveres se
apresentam historicamente tanto pelos costumes quanto pelas tradições da vida ética de
uma nação.
A teoria do direito natural, em Hegel encontra-se então primeiramente associada aos gregos
clássicos, em especial a Aristóteles. Como comentado anteriormente, há uma conexão
necessária que Hegel sustenta entre o direito natural e uma comunidade ética, representada
pela pólis. Esta conexão representa a unidade de um direito estritamente formal que se
vincula a direitos e deveres historicamente concretos.
Há, neste momento, a proposta de complementaridade entre forma e conteúdo na filosofia
hegeliana:
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Ora, a vida ética absoluta, a infinitude ou a forma, enquanto o
absolutamente negativo [...] acolhida em seu conceito absoluto, no
qual ela não se relaciona com as determinidades singulares, mas
com a inteira efetividade e suas possibilidades, isto é, a vida ela
mesma, [na qual,] então, a matéria é igual à forma infinita, – mas de
tal sorte que o positivo desta é o que é absolutamente ético, isto é, a
pertença a um povo (HEGEL, 2007, p. 83)
Este é o percurso já caracterizado do absoluto: o conceito e sua efetivação, o
desenvolvimento das figuras do espírito - determinados logicamente na história. O domínio
real do direito é infinito, alienando-se em diversos momentos. A eticidade consolida-se,
progressivamente, nas contingencialidades históricas como figuras concretas, o que, para
Hegel, constituem os povos. Cada povo é uma eticidade subsistente e, como matéria,
compõe a unidade formal da ciência jurídica.
O jovem Hegel formula novamente uma relação dialética: o momento ético não pode fixar-se
em apenas um dos lados da oposição.
A eticidade se efetiva na lógica determinada e apresentada pelos fatos históricos, de um
lado, sua matéria e, de outro, a realidade do direito é também infinita, concretizando-se
nesses diversos momentos. A ética é resultado dessa concretização, consolidada nas
figuras dos povos. Cada povo é uma particularidade da eticidade e, segundo Hegel, cada
povo também se caracteriza por sua própria unidade interna: há diferentes indivíduos que
compõem a vida de um povo e por esse povo são determinados.
Desta Ideia da natureza da vida ética absoluta libera-se como
resultado uma relação da qual novamente há de que se falar, a
relação da vida ética do indivíduo com a vida ética absoluta real, e a
relação das ciências que trama destas, da moral de do direito natural
(HEGEL, 2007, p. 106)
Ao mesmo tempo, a vida moral dos indivíduos fomenta a vida e os costumes de um povo, a
eticidade, que tem como uma de suas características o direito. Este, por sua vez, fomenta a
moral do indivíduo. O indivíduo, em suas virtudes particulares, contribui para a vida de seu
povo.
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Sobre a relação das partes com o todo, Franz Rosenzweig afirma que Hegel
Rechaça de saída, como Aristóteles e Cícero, o conceito de simples
“multidão”. O povo não é “uma multidão desarticulada nem uma
simples pluralidade”, mas “a relação de uma multidão de indivíduos”.
Como simples “multidão”, ele seria “estranho” aos indivíduos, em
lugar de “ter realidade para sua consciência, ser um entre eles, e ter
poder e coação sobre ele”; como mera “maioria”, ele seria apenas
uma multiplicidade que se perderia no indeterminado, em lugar de se
constitui um círculo fechado (ROSENZWEIG, 2008, p. 213)
O povo não se define simplesmente como maioria ou multidão. Mas sua articulação
orgânica se evidencia na consciência da particularidade que se diferencia de outra
particularidade e, ao mesmo tempo, une todos os indivíduos numa mesma e única
identidade. Neste sentido, Hegel denomina o povo de identidade da identidade da diferença:
Neste povo não há nenhuma igualdade entre os indivíduos,
“igualdade de cidadania (Bürgerlichkeit)”; a igualdade que aqui reina
propõe-se como unidade – “identidade” – de todos no todo articulado,
no qual não se perdem, mas se encontram. Esta igualdade se
evidencia exatamente na “consciência da particularidade” (Idem)
Como sabemos, o Estado significa para Hegel o momento concreto em que a vida ética
sintetiza o indivíduo particular em união com a totalidade da sociedade civil. Tal união
expressa-se como a identidade de um povo, que se sabe parte integrante da sociedade e,
ao mesmo tempo, como particular, diferente de outro integrante particular.
Em virtude de tal concepção, Franz Rosenzweig sustenta que:
Esta vida ética, “este Espírito vivo e autônomo, que aparece como
um Briareus a uma miríade de olhos, braços entre outros membros,
em que cada um é um indivíduo absoluto”, por conseguinte, é
realizada no Estado perfeito. Hegel agora casa o Estado e a alma
individual [...] Face à vida ética que se manifesta no Estado, as
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“virtudes” do indivíduo são algo transitório (ROSENZWEIG, 2008, p.
213)
O indivíduo é transitório para o Estado, embora essencial: o conjunto de indivíduos
representa uma etapa constitutiva do Estado. O Estado, então, na figura do universal, é o
espírito vivo e autônomo que rege os indivíduos. Ora, para o jovem Hegel, é por meio da
educação que a moral do indivíduo particular se integra à vida ética de um povo e o direito
se incorpora à vida dos indivíduos. O direito verdadeiro de um povo é a síntese dialética da
moralidade subjetiva e do direito natural objetivo:
Com efeito, a vida ética absoluta real compreende reunida nela a
infinitude, ou o conceito absoluto – a singularidade pura – [tomada]
sem reserva e em sua abstração suprema, ela é imediatamente vida
é tica [do indivíduo] singular, e, inversamente, a essência da vida
ética do [indivíduo] singular é, sem reserva, a vida ética absoluta real
e, por esta razão, universal; a vida ética do [indivíduo] singular é uma
pulsação do sistema inteiro, e o próprio sistema inteiro (HEGEL,
2007, p. 107)
O direito é uma determinidade da eticidade, mas uma determinidade apenas relativa: um
momento constituinte do universal ético. O direito é uma mediação necessária à vida social
na direção de uma vida plenamente ética. Aqui, mais uma vez, há outra diferença
fundamental entre as perspectivas de Kant e de Hegel: o primeiro reserva ao formalismo a
conotação de eticidade absoluta, enquanto o segundo a de um momento relativo que
constitui o todo.
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CONCLUSÃO
A ciência do direito hegeliana é a de um direito especulativo, isto é, um direito de natureza
ética. Para tal afirmação, primeiramente, foi apresentado no trabalho a concepção de
filosofia com a qual Hegel trabalha, elucidada em contraposição à razão teórica kantiana. O
objetivo de Hegel em redirecionar a filosofia para o âmbito do absoluto era imprescindível
para que pudéssemos nos apropriar de sua crítica às figuras do entendimento.
Nos Capítulos seguintes, foi realizada uma breve análise do contratualismo hobbesiano e,
em seguida, do contratualismo kantiano, ressaltando seus métodos e fundamentos.
Por fim, interpretou-se a concepção hegeliana de estado civil para que, ao apresentar tal
perspectiva, fosse, enfim, possível discorrermos sobre críticas propriamente ditas às teorias
do contrato social, em especial no que tange à liberdade em Hobbes e a ética em Kant. Para
que a teoria hegeliana não parecesse desprovida de solução, isto é, para que não se
pautasse exclusivamente pela crítica – anulando a etapa da síntese –, era preciso situar a
ética e a liberdade em Hegel.
Assim, concluindo, a suprassunção das contradições resulta no momento especulativo, que,
como mostra Hegel, deve apropriar-se de uma figura formal (conceito de infinitude da vida
ética), de um lado, e empírica (o indivíduo singular e as instituições múltiplas), de outro, na
intenção de conceber uma unidade universal da vida ética, buscando assim,
sistematicamente, a superação das oposições do entendimento presentes no contratualismo
de Hobbes e de Kant.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e
Terra, 2012.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins
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______. Os elementos da lei natural e política. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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______. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores)
ROSENZWEIG, F. Hegel e o estado. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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