dois casos dramáticos de adoção internacional

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Dois casos dramáticos de adoção internacional: João Herbert e Fabiano do Carmo Apresentamos abaixo três matérias publicadas na FSP há alguns anos. As três matérias giram em torno dos casos João Herbert e Fabiano do Carmo. Ambos os casos ilustram à perfeição não só a diferença que pode existir entre haver ou não segurança jurídica no que se refere à adoção, mas também esse ponto preciso em que norma e lei tocam diretamente qualquer discussão sobre produção de subjetividade. A título de esclarecimento, deve ser mencionado que hoje os EUA são signatários da Convenção de Haia. Mesmo antes disso, os EUA haviam ajustado sua legislação para oferecer maior segurança aos adotados no exterior quanto à aquisição da cidadania americana. ---- FSP, COTIDIANO Página: C4, Edição: São Paulo Aug 1, 2004 Sem emprego e sem família, Fabiano do Carmo Oliveira diz estar tentando entender o país em que nasceu Brasileiro é adotado e abandonado nos EUA FERNANDA FERNANDES

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Apresentamos abaixo três matérias publicadas na FSP há alguns anos. As três matérias giram em torno dos casos João Herbert e Fabiano do Carmo. Ambos os casos ilustram à perfeição não só a diferença entre haver ou não segurança jurídica no que se refere à adoção, mas também esse ponto preciso em que norma e lei tocam diretamente qualquer discussão sobre produção de subjetividade.

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Dois casos dramáticos de adoção internacional: João Herbert e Fabiano do Carmo

Apresentamos abaixo três matérias publicadas na FSP há alguns anos. As três matérias giram em torno dos casos João Herbert e Fabiano do Carmo. Ambos os casos ilustram à perfeição não só a diferença que pode existir entre haver ou não segurança jurídica no que se refere à adoção, mas também esse ponto preciso em que norma e lei tocam diretamente qualquer discussão sobre produção de subjetividade.

A título de esclarecimento, deve ser mencionado que hoje os EUA são signatários da Convenção de Haia. Mesmo antes disso, os EUA haviam ajustado sua legislação para oferecer maior segurança aos adotados no exterior quanto à aquisição da cidadania americana.

----

FSP, COTIDIANO Página: C4, Edição: São Paulo Aug 1, 2004

Sem emprego e sem família, Fabiano do Carmo Oliveira diz estar tentando entender o país em que nasceu

Brasileiro é adotado e abandonado nos EUA

FERNANDA FERNANDES

Fabiano do Carmo Oliveira, 29, é brasileiro, mas voltou ao país onde nasceu há apenas oito meses, depois de viver por 18 anos nos Estados Unidos. Em novembro do ano passado, ele foi pego pela polícia norte-americana usando drogas. Como já havia cometido outros crimes, foi deportado, apesar de ser filho adotivo de uma família norte-americana.

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Hoje, Oliveira é abrigado por uma ONG que tem sede no Brás (zona central de São Paulo), não fala português, não tem emprego e tentou morar com seu irmão biológico, mas não se adaptou.

Carrega na mochila várias fotos do filho de cinco anos e espera poder reencontrá-lo um dia.

Quando tinham nove anos, ele e sua irmã gêmea viviam em um orfanato em São Paulo e foram adotados por um casal de norte-americanos. Ele conta que as pessoas do orfanato em que vivia no Brasil diziam: "A América é tudo".

Na verdade, a família queria adotar apenas a menina, mas a Justiça brasileira só permitiu a adoção dos irmãos juntos.

Por "problemas de adaptação", Oliveira não ficou com o casal que o adotara. Em vez disso, viveu em instituições e com mais duas famílias até ser definitivamente adotado aos 14 anos.

Nessa família, o brasileiro conviveu com mais três irmãos_ também adotados. Ele estudou e conseguiu se formar no ensino médio norte-americano.

Em 1996, Oliveira se envolveu numa briga por ciúmes de uma ex-namorada _a mãe de seu filho_ e acabou sendo preso.

Quando saiu da prisão, tentou voltar a viver na casa dos pais, do irmão adotivo e da irmã gêmea. Em todas as tentativas, no entanto, a convivência tornou-se difícil, segundo ele contou.

Depois disso, o brasileiro mudou-se do Estado de Minnesota para a Califórnia, onde foi preso e enviado de volta para o Brasil.

Desenraizado

Segundo a assistente social da ONG Arsenal da Esperança _entidade que acolheu Oliveira_ Maria Isabel Del Pozo, falta um apoio psicológico para ele tentar reestruturar a vida aqui no país.

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"Isso que foi feito com ele é muito perverso. O Estado devolve as pessoas num estado de confusão cultural", afirmou Del Pozo.

Oliveira disse que está tentando aprender o português e entender como o Brasil funciona. "Sou brasileiro, nasci no Brasil, mas também sou norte-americano. Foram 18 anos da minha vida."

Ele tem dificuldade em compreender como tudo isso aconteceu. "Eu sou filho adotivo de uma família norte-americana, não tem lógica eu não ficar nos Estados Unidos. Eu não entendo", disse.

Uma fonte diplomática acha muito difícil Oliveira voltar para os Estados Unidos, e o governo brasileiro não pode, nesse caso, interferir na soberania do Estado norte-americano.

A história, porém, não é única. A ONG que acolhe Oliveira recebeu, desde 2000, outras três pessoas na mesma situação, duas vindas da Itália e uma dos EUA. O caso mais conhecido foi o de João Herbert, que havia sido adotado por norte-americanos aos sete anos, foi deportado em 2000 por tentar vender maconha a um policial disfarçado e, depois de quatro anos no Brasil, foi assassinado, em Campinas, em junho, aos 26.

Antes e depois de Haia

Até 1993, não havia nada que regulasse a adoção internacional de crianças e adolescentes. Com a Convenção de Haia sobre Adoções entre Países, a situação jurídica dos adotados por estrangeiros se tornou mais segura.

Antes se aplicava apenas a lei do país onde o adotado ia viver. A Convenção de Haia prevê regras comuns de adoção entre os países que a ratificaram. Ela passou a ser válida no Brasil a partir de 1999. Atualmente 40 países utilizam essa lei como base para a adoção internacional.

Pela convenção, toda criança ou adolescente adotado por um estrangeiro terá, automaticamente, a nacionalidade do pai ou mãe

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adotante. O brasileiro adotado por um estrangeiro não perde, porém, a nacionalidade brasileira.

Segundo o juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, secretário da Cejai (Comissão Judiciária de Adoção Internacional_responsável pela habilitação dos casais estrangeiros), a convenção representa um avanço na proteção internacional dos direitos humanos das crianças e adolescentes.

Além disso, ele lembra que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção por família estrangeira é a última opção e, quando realizada, prevê um período de adaptação de até 30 dias entre o casal e a pessoa adotada.

Gabriela Scheiner, diretora-executiva do CeCif, entidade que prepara casais para a adoção, afirma que, apesar das conquistas, é necessário ter cuidado.

"Quando as pessoas dizem que é maravilhosa a adoção internacional, é preciso ver o que se diz nas entrelinhas. Precisamos parar com esse neocolonialismo e construir possibilidades reais para as famílias brasileiras", disse.

As leis norte-americanas 

Motauri Ciochetti de Souza, promotor da Vara da Infância e da Juventude do Ministério Público de São Paulo, afirma que antes da Convenção de Haia havia limitações aos adotados.

"Alguns países davam a condição de cidadãos, mas até completarem a maioridade ou se não cometessem delitos. Criavam limites à plenitude da adoção, que acabaram gerando essas situações que vemos hoje", disse.

Os Estados Unidos, apesar de terem assinado a convenção, não a ratificaram. Dessa forma, ela não produz efeitos jurídicos dentro do país.

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De acordo com o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, há duas situações possíveis naquele país para os estrangeiros adotados por casais norte-americanos.

Duas leis se combinam para interpretar casos como o de Oliveira. A primeira, válida até fevereiro de 2001, estabelecia que os pais deveriam pedir a naturalização do adotado até ele completar 18 anos.

A segunda, de 1996, prevê que, se um estrangeiro legal residente no país cometer um crime e for condenado a pena igual ou superior a um ano, ao sair da prisão, ele terá seu visto de permanência cancelado e será deportado para o seu país de origem.

Em 2001, entrou em vigor uma terceira lei que concede automaticamente a nacionalidade a crianças estrangeiras adotadas por pais norte-americanos. Essa lei é válida também para aqueles que foram adotados antes de 2001, mas que ainda não completaram 18 anos. Para quem é maior de 18 não há essa possibilidade.

"Um dado expressivo é que nos Estados Unidos estão as maiores associações defensoras dos direitos humanos que vivem nos acusando. É uma incoerência absurda", completa Ciochetti de Souza.

A Folha procurou o Consulado dos Estados Unidos em São Paulo, mas até a conclusão desta edição não havia recebido retorno.

FSP, MARCIO AITH, OPINIÃO Página: A2, São Paulo Jun 1, 2004

As três mortes de João

SÃO PAULO - João Herbert vestia um uniforme laranja de presidiário quando o entrevistei pela primeira vez, em fevereiro de 2000, numa cadeia na cidade de Medina, no Estado de Ohio. Ele

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tinha 21 anos. Nascera no Brasil e chegara aos EUA aos sete, adotado por uma família dos arredores da cidade de Cleveland.

Herbert não falava português, não tinha contatos no Brasil e sua única memória do país de nascimento eram flashes. "Vivia num orfanato em São Paulo, num lugar com um nome esquisito [bairro de Carapicuíba]. Me lembro de algumas imagens, da quadra de futebol, dos arranha-céus e de uma piscina sem água", disse ele na ocasião. Nos EUA, ainda menor de idade, fora preso por tentar vender maconha a um policial disfarçado. Por isso, estava sob ameaça de deportação, pois caíra no lodaçal de duas aberrações legais. Os EUA, à época, não concediam automaticamente a nacionalidade americana a adotados. Além disso, a lei de imigração mudara após o atentado que tinha destruído um prédio federal em Oklahoma em 1995. Estrangeiros condenados por quaisquer crimes passaram a ser deportados depois de cumprirem suas penas. Ou seja, uma criança adotada e infratora equiparava-se a um terrorista estrangeiro.

"É como se eu não tivesse país, não pertencesse a lugar nenhum", disse ele naquela conversa. "Nasci brasileiro, me transformei em americano e querem que vire brasileiro de novo."

Herbert foi deportado, depois de mofar na cadeia por 28 meses, durante os quais me telefonava com freqüência. Demonstrava medo. Também perguntava como eram as mulheres e os empregos brasileiros. Ao chegar ao Brasil, foi morar em Campinas, a convite de um pastor batista. Deu aulas de inglês, casou-se e separou-se. Na semana passada, foi assassinado com seis tiros perto de sua casa, no bairro Jardim São Pedro de Viracopos. A polícia credita o crime a dívidas com traficantes, mas ninguém sabe ao certo o que ocorreu.

Herbert viveu o pior dos mundos _no Brasil e nos EUA. Estou para conhecer uma história mais inacreditável que essa.

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15/04/1999

CONTARDO CALLIGARIS, ILUSTRADA Página: 4-8, FSP 15.04.1999

Desculpem o politicamente incorreto

Desculpem o politicamente incorreto Nos próximos dias, um jovem de 20 anos que já foi brasileiro virá dos Estados Unidos sem carregar passaporte. Estará munido de uma autorização de retorno da autoridade consular brasileira.O jovem não é um imigrante ilegal expulso. Ele era residente permanente nos EUA.Segundo a nova lei de imigração de 1996, o residente que se torne réu de um crime dito de torpeza moral é indesejável e, portanto, deportado. Isso depois de cumprir pena. Para a lei é moralmente torpe qualquer crime passível, em princípio, de mais de um ano de prisão.Todos os crimes relativos a drogas também caem na categoria. Certo, cada criminoso pode vir a ser recidivista e os recidivistas custam caro. A lei parece emanar do mesmo espírito que quis privar os imigrantes residentes nos EUA do direito a subsídios sociais. Em suma, imigrantes tudo bem, mas de graça, por favor.Pior ainda, a lei é retroativa, ou seja, se aplica até para crimes cometidos antes de sua instituição. Enfim, é uma lei curiosa para um país que gosta (com razão) de gargarejar direitos humanos. De fato, nosso jovem teve uma adolescência problemática: furtos, histórias de droga, embora nada de violência. Tendo cumprido sua pena, ele deveria agora voltar ao Brasil nativo.Parece ordinária administração consular, se não fosse um detalhe: o jovem, descido do avião, estará em terra, para ele, estrangeira. Ele não conhece ninguém no Brasil _nem amigos nem família. Não fala português, e Deus sabe quais lembranças ele tem de sua infância brasileira.O rapaz veio para os Estados Unidos ainda criança. Aos 9, 10 anos de idade, foi adotado por uma família norte-americana. A adoção, de novo segundo a lei americana, não implica a naturalização da criança adotada. Só garante à criança uma autorização de residência no país. A naturalização pode intervir, a pedido, depois de cinco anos de residência.Os pais do rapaz não pediram. Será que esqueceram? Será que não quiseram? Algo deve ter tornado a

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adoção um pouco diferente do cartão-postal com o qual os pais podiam sonhar. Por exemplo, neste meio tempo eles divorciaram.Assim um belo dia chega ao consulado do Brasil em Boston o pedido de viabilizar a deportação do jovem para o Brasil. Ele cumpriu sua pena e está agora sob custódia da imigração.Como me foi relatado pelo ministro Mário Vilalva, cônsul-geral do Brasil em Boston, foi sugerido à mãe adotiva do garoto (que luta hoje para guardá-lo nos EUA) apelar da sentença. A coisa não logrou por decurso de prazo. Foi pedida uma avaliação psiquiátrica.Afinal, nos anos formadores do garoto não faltaram traumas: um orfanato no Brasil (a Funabem, Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, segundo fontes não verificadas), a adoção tardia, o deslocamento para outra cultura e língua, uma família adotiva que se rompe etc.O laudo da prisão decretou tudo o.k. Surpreendente, sobretudo para uma cultura como a americana que, por assim dizer, tende a desculpar homicídios por resfriados infantis.Enfim, aqui estamos neste momento _o consulado negou a documentação de retorno. A razão é fácil de entender para os brasileiros (menos para os americanos). Eu perguntaria: o jovem está voltando como brasileiro deportado ou como americano degredado?Falei com Steve Weinberg, da Wildes & Weinberg, um dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de imigração de Nova York e dos EUA. Weinberg, além de me instruir sobre a lei de 1996, comentou que a atual posição brasileira forçaria os americanos a liberar o jovem cuja custódia só se justifica na espera de deportação. Mas acrescentou que será muito difícil evitar este desfecho.Se o rapaz tiver de voltar, seria bom que algum organismo da sociedade civil (e não a Polícia Federal) o esperasse naquele dia com um sorriso e uma mão. Seria bom que ele não voltasse para morrer na rua ou seguir na cadeia.De qualquer forma, as adoções deveriam ser recusadas para países cuja legislação não outorga estatuto de cidadão à criança adotada. Temos crianças para dar, é suficientemente doloroso assim. Não é preciso tolerar que as peguem para dar uma voltinha e devolvam se não gostarem.É curioso como podemos amar as crianças. Pais potenciais atravessam montes e mares para conseguir uma, apostam que diferenças de língua e cultura não importarão nem com um menino de 9 anos. Querem enfim ter seu rebento.É um amor perigoso: dura se a criança devolve a imagem feliz que os

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pais desejavam ver. Quando algo não dá certo, quando a criança faz careta em vez de sorrir, o amor se torna facilmente decepção, ódio, indiferença ou esquecimento da formalidade de naturalização.A sociedade americana respeita o consumidor. É sempre possível, durante duas semanas, devolver um objeto adquirido. Talvez fosse bom colocar, para as adoções, o mesmo limite de tempo.Sem isso, afinal, se a lei autoriza a devolução das crianças que acabaram desobedecendo depois de 8 anos, por que não devolver as que ficaram com asma ou alguma outra doença chata e cara? Ou, então, aquelas adotadas quando pareciam bem brancas e foram ficando escurinhas?Desculpe, estou ficando politicamente incorreto, mas há de quê. E-mail: [email protected]