o significado do botequim

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REPUBLICAÇÃO - O Significado do Botequim 1 Luiz Antonio Machado da Silva 2 RESUMO O artigo descreve a organização social e o funcionamento cotidiano do botequim, com o objetivo de entender o que ele representa – e para quem – na sociedade urbana (no caso específico do Brasil). A conclusão geral é que nem as organizações tradicionais de sustentação do indivíduo, nem as criadas no bojo do sistema urbano-industrial têm condições concretas de funcionar satisfatoriamente para ponderáveis parcelas da população urbana, uma fração das quais se apoia na sociabilidade construída no botequim. ABSTRACT The article describes the social organization and the daily functioning of the botequim, a typical popular bar for lower class people. The aim is to understand what it means, and to whom, as part of the Brazilian urban society. The general conclusion is that neither the traditional institutions that support people’s life, nor the modern institutions built as part of the urban industrial system, work well for large portions of the poor population. The sociability built within the botequim would work as a sort of functional equivalent. 1 Este artigo foi originalmente publicado na Revista América Latina, Ano 12, número 3, julho-setembro de 1969, pp.160-182 editada pelo antigo Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais posteriormente em Kovarick, Lúcio (org.): Cidades: usos e abusos, São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, pp. 77-113. 2 Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos/Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador executivo do UrbanData/Brasil, membro do INCT/Observatório das Metrópoles e líder do grupo de pesquisa do CNPq "Territórios da pobreza: segregação social, vida cotidiana e direitos humanos" (IESP/UERJ). Seu último livro (2008) é a coletânea Vida sob cerco – violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro (Faperj/Nova Fronteira) com resultados de pesquisa coletiva por ele coordenada. É bolsista do CNPq.

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REPUBLICAÇÃO - O Significado do Botequim1

Luiz Antonio Machado da Silva2

RESUMO !O artigo descreve a organização social e o funcionamento cotidiano do botequim, com o objetivo de entender o que ele representa – e para quem – na sociedade urbana (no caso específico do Brasil). A conclusão geral é que nem as organizações tradicionais de sustentação do indivíduo, nem as criadas no bojo do sistema urbano-industrial têm condições concretas de funcionar satisfatoriamente para ponderáveis parcelas da população urbana, uma fração das quais se apoia na sociabilidade construída no botequim.

ABSTRACT

The article describes the social organization and the daily functioning of the botequim, a typical popular bar for lower class people. The aim is to understand what it means, and to whom, as part of the Brazilian urban society. The general conclusion is that neither the traditional institutions that support people’s life, nor the modern institutions built as part of the urban industrial system, work well for large portions of the poor population. The sociability built within the botequim would work as a sort of functional equivalent.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Este artigo foi originalmente publicado na Revista América Latina, Ano 12, número 3, julho-setembro de 1969, pp.160-182 editada pelo antigo Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais posteriormente em Kovarick, Lúcio (org.): Cidades: usos e abusos, São Paulo: Editora Brasiliense, 1978, pp. 77-113. 2 Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos/Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador executivo do UrbanData/Brasil, membro do INCT/Observatório das Metrópoles e líder do grupo de pesquisa do CNPq "Territórios da pobreza: segregação social, vida cotidiana e direitos humanos" (IESP/UERJ). Seu último livro (2008) é a coletânea Vida sob cerco – violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro (Faperj/Nova Fronteira) com resultados de pesquisa coletiva por ele coordenada. É bolsista do CNPq.

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1. Introdução

O presente artigo estuda o botequim. Este é um tema que pode ser considerado, até

certo ponto com razão, como irrelevante. De fato, com a variedade de desafios que se

apresentam ao sociólogo, estudar o botequim por si só não apenas carece inteiramente de

sentido, como chega mesmo a ser risível.

Porém, o que este trabalho pretende não é apenas analisar a organização social e o

funcionamento do botequim, mas principalmente entender o que ele representa – e para quem

– na sociedade urbana (no caso específico do Brasil). Acredito que ficará demonstrado que o

botequim desempenha importante papel na vida de ponderável parcela do que se costuma

chamar "a massa". É justamente esse papel que procuro explicar – ou apreender, melhor

dizendo.

Até onde estou informado, o botequim nunca foi considerado objeto relevante de

estudo. Por isso, a ausência de literatura a respeito é quase total.2 Além disso, se nas três

primeiras partes procuro apresentar uma descrição sistemática de observações empíricas, o

capítulo final está mais próximo do ensaio (embora baseado em reflexões sobre uma realidade

concreta bastante imediata).

Tudo isso contribui para conferir ao artigo uma natureza pouco ortodoxa, motivo pelo

qual evitei o mais possível empregar o estilo e a terminologia próprios dos trabalhos

sociológicos “tradicionais”.

Finalmente, cumpre uma palavra a respeito da metodologia utilizada. Não lancei mão

de nenhum instrumento formal de coleta de dados. As informações foram obtidas através da

frequência do autor, durante cerca de dois anos, a dois botequins. Um deles situava-se em

uma favela da cidade de Fortaleza, outro num bairro da zona sul do Rio de Janeiro, nas

proximidades de uma favela. As informações foram complementadas e controladas por visitas

a diversos outros estabelecimentos do gênero. Se bem que a maior parte do material

provenha daqueles dois casos, é provável que o controle realizado através da observação dos

demais botequins ofereça razoável margem de segurança para uma generalização mais ampla.

2. O botequim no quadro geral das casas de bebida

Entendendo-se por “casas de bebidas” toda aquela que vende bebidas alcoólicas (sem

necessariamente constituir-se na principal atração do estabelecimento), sua variedade é

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 O único trabalho semelhante que conheço, embora com ambições bastante diversas, é o artigo de Cara E. Richards: City Taverns, Human Organization, 22(4):260-269, Winter 1963/64.

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enorme. Abrange desde a mais sofisticada boite até a menor “birosca”3 de favela. Os motivos

que levam os consumidores a procurar cada um desses estabelecimentos são diferentes, de

modo que as funções que desempenham – isto é, o “significado” que têm para os

frequentadores – também variam muito.

Como aqui se analisará um gênero particular de casa de bebidas, o botequim, é

necessário defini-lo, indicando algumas das variáveis que mais influem na diferenciação das

casas de bebidas.4

A mais importante é a classe social dos freqentadores. Em primeiro lugar, porque lhes

afeta o poder aquisitivo, condicionando em decorrência as próprias características físicas do

estabelecimento e o tipo e a qualidade das mercadorias vendidas.

Existem estabelecimentos mistos, isto é, servindo a grupos diferentes de consumidores

e/ou funcionando com diferentes classes de produtos. Este é o caso, por exemplo, de muitas

biroscas de favela que, ao lado de bebidas alcoólicas servidas no balcão, vendem gêneros

alimentícios, artigos de toucador, bijuterias etc. Até recentemente, no centro da cidade de

Salvador, existia um velho armazém em cujo interior havia um conjunto de mesas

frequentadas pela classe média nos fins de semana. Um dos dois botequins estudados mais

profundamente, a par da venda de bebidas de qualidade inferior, tem grande freguesia de alto

poder aquisitivo para produtos importados (vinhos, enlatados etc.). Mas em todos esses casos

a distinção é tão flagrante que se diria haver dois estabelecimentos na mesma loja.

Em segundo lugar, a classe social afeta o estilo de vida e a mundivisão dos

consumidores, condicionando a estabilidade e o modo de organização interna, além dos

motivos da frequência ao estabelecimento. Por exemplo, num bar de classe média, a

organização social tende a ser muito frágil. Funcionando como apenas um dos modos de

utilização do lazer, e possuindo grande flutuação de consumidores com interesses muito

variados, a interação entre eles é geralmente reduzida. Além disso, a distância entre os

fregueses, de um lado, e os empregados e donos de botequim, do outro, dificulta uma

organização interna que envolva estas duas categorias.

Em alguns casos existe certa “especialização” do estabelecimento, que pode ou não

transcender a barreira de classe. Excelente exemplo de “especialização” dentro da mesma

classe é o bar existente ao lado do cinema Paissandu, no Rio de Janeiro, que ficou famoso

como símbolo de jovens intelectuais de classe média. Lembremos também o conhecido caso

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 "Birosca" é a denominação dada pelos favelados ao botequim situado dentro da favela. Algumas vezes, a birosca é um misto de armazém e botequim. O termo possui diversos sinônimos, como "tendinha", bodega etc. 4 Para conceituar precisamente o botequim, seria necessária a elaboração de uma tipologia completa das casas de bebidas. Esta tarefa, porém, é impossível no momento, não só devido aos limites deste artigo, como também ao meu reduzido conhecimento de outros tipos de casas de bebidas. Espero que a indicação de algumas variáveis que deveriam ser consideradas possa conduzir o leitor a uma primeira compreensão do que entendo seja o botequim. Optei por definir essas variáveis em termos das características da freguesia. Mas é perfeitamente possível fazê-lo de modo simétrico, isto é, considerando as características do estabelecimento em si.

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de certas casas de bebidas frequentadas pela boemia – compositores, cantores etc. – que

podem apresentar uma frequência com alto grau de integração, porém com grande

diferenciação de classe.

Também a duração e a intensidade de permanência no local são extremamente

importantes. Primeiro, porque toda caracterização das casas de bebidas em termos dos

consumidores tem que considerar o grupo de fregueses permanentes, quando existe.

Segundo, porque, especialmente no caso dos botequins, esta variável é responsável pela

formação de dois subtipos. Existem alguns botequins que não possuem freguesia fixa ou, pelo

menos, esta é muito reduzida. Em geral situam-se em vias muito movimentadas, em locais

visíveis e de fácil acesso. Costumam vender cigarros, café, lanches rápidos, refrigerantes etc.

Devido à heterogeneidade e à aleatoriedade dos consumidores, e à consequente ausência ou

fragilidade da organização interna, este subtipo de botequim não será considerado.

Pode-se dizer que o outro subtipo é o botequim “por excelência”. É justamente esta

categoria de casas de bebidas que o artigo analisa, e suas características são as seguintes:

A maioria dos frequentadores assíduos pertence aos estratos que se costuma

denominar “classe baixa” – trabalhadores em construção civil, biscateiros, pequenos

funcionários públicos, ambulantes e outros, todos com baixo nível de instrução e reduzido

poder aquisitivo.

Quanto ao polo de unidade entre os frequentadores, este deriva, na maioria das vezes,

antes da semelhança da situação de classe do que da existência de um interesse específico

comum que a transcenda. Quando há “especialização” nos botequins, ela tende a ser em torno

da música popular, e nesses casos pode haver diferenciação de classe social entre os

fregueses. Mas o maior número de casos de “especialização” ocorre nas casas de bebidas de

“classe média”. Os casos são tão flagrantes que a opinião pública chega a lhes consagrar

termos específicos – bares da “esquerda festiva” (grupos que discutiriam a “revolução

brasileira” em bares e reuniões sociais), “juventude coca-cola” (jovens orientados para

símbolos de consumo de massa importados dos países desenvolvidos), “badalação” (reuniões

de intelectuais inconsequentes, mais preocupados com a “moda” dos assuntos do que com seu

conteúdo) e assim por diante.

No que se refere à duração e à intensidade de frequência, é o botequim que apresenta

maior número de fregueses constantes. Em alguns estabelecimentos de outro tipo, é comum

que os consumidores se demorem mais que os frequentadores de botequim – durante toda

uma noite, por exemplo – mas a intensidade da frequência (o número de vezes que o

estabelecimento é frequentado pela mesma pessoa) é muito menor. No botequim, a

assiduidade dos fregueses é de tal ordem que em muitos casos o botequim depende deles para

sobreviver, tal é a sua participação na renda do estabelecimento.

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Finalmente, é preciso repetir que as características do botequim aqui apresentadas se

referem à maioria dos frequentadores constantes. Assim, por exemplo, podem acontecer casos

isolados de fregueses de classe média no botequim. É comum haver entre os fregueses certo

número com um interesse específico quase obsessivo (em geral compositores que não

conseguem ascender ao profissionalismo). E há um sem-número de operários que, ao

regressarem do trabalho, passam invariavelmente pelo botequim, permanecendo apenas o

tempo necessário para ingerir um cálice de bebida. Mas todos esses casos não chegam a

influenciar o ethos do estabelecimento, que é sempre moldado pela e para a maioria dos

fregueses constantes.

3. A organização social do botequim

3.1 Formação de grupos e hierarquização

A rede de relações sociais que se forma no interior do botequim é altamente informal.

Apesar disso, tende a ser muito estável, e o grau de rotinizacão a que pode chegar é

impressionante. Por isso, é possível identificar padrões de frequência, formação de subgrupos

e certos critérios de hierarquização.

É muito raro haver fregueses exclusivos de um único botequim. Em geral, o consumidor

frequenta assiduamente dois ou três, embora tenda a permanecer mais tempo num deles. É o

caso, por exemplo, da maioria dos favelados, que “param” em um ou dois botequins nas

imediações da favela, e daí vão para uma birosca dentro dela. Aos domingos e feriados, alguns

fregueses não “descem” – isto é, não saem da favela – para os botequins. Esse procedimento,

muito generalizado, sugere uma complementaridade entre o botequim de dentro e o de fora

da favela. Parece haver uma relação estreita entre “ir ao botequim” e “ir lá embaixo”, “lá fora”

(sair da favela). Maiores referências sobre isto serão feitas no final do artigo.

A maioria dos consumidores escolhe botequins próximos da residência (ou da favela em

que moram) e/ou do local de trabalho. A esse respeito, os fregueses podem ser divididos em

duas categorias: os “de depois do trabalho” e os “de antes de ir para a casa”. Por razões

óbvias, os primeiros tendem a ser mais comedidos, tanto no que se refere à duração da

permanência, quanto à quantidade de álcool ingerido. Mas isto não impede que os subgrupos

existentes no interior do botequim sejam compostos indistintamente pelas duas categorias de

frequentadores. Apenas, como o local de trabalho é muito mais variável que a moradia, a

frequência daqueles que moram perto do botequim é mais duradoura.5

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 Existem pessoas que mudaram de local de trabalho ou moradia e continuam frequentando o mesmo botequim, mas são relativamente poucos os casos. O mais comum são as visitas periódicas, cada vez mais espaçadas, até o

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Na formação dos subgrupos de fregueses, o horário de frequência é fundamental.

Diversos subgrupos se sucedem com precisão quase cronométrica, embora muitas vezes –

principalmente do meio da tarde até o cair da noite – exista mais de um subgrupo no mesmo

período. Alguns deles só se dissolvem quando o botequim fecha. Mas quanto mais tarde,

menor é o número de fregueses.

Apesar de haver horários mais ou menos constantes para os diversos subgrupos, quase

todos os fregueses se conhecem mutuamente, seja porque os limites dos respectivos horários

coincidem, seja devido aos constantes adiantamentos e atrasos dos frequentadores (Estes

últimos são mais comuns, pois acompanham o estado etílico do freguês).

O período de maior frequência é entre 16 e 20 horas. A partir daí, o número de

frequentadores reduz-se muito, porque este é o horário em que a polícia começa a fazer a

ronda noturna. Desse momento em diante, poucos fregueses que não possuem carteira

assinada (cuja proporção é alta) permanecem no botequim. Isto porque a polícia costuma

fazer visitas de surpresa aos botequins – denominadas “batidas” – ocasião em que exige a

exibição da carteira profissional como prova de trabalho. Em certas ocasiões, quem não a

possui é “preso para averiguações”, podendo ser processado “por vadiagem” (contravenção

prevista no Código Penal).

Embora quase todos os fregueses se cumprimentem e troquem algumas palavras,

raramente um membro de algum subgrupo participa da conversa de outro. Mesmo um

frequentador dos mais assíduos fica isolado, até que chegue um membro do seu grupo. De

fato, ele não está impedido de participar de outro grupo. Mas a distinção entre os subgrupos é

tão flagrante, apesar de certos disfarces sutis, que a própria pessoa não tem vontade de

entrar em outra “rodinha” (isto é, um outro subgrupo).

Estas “rodinhas” formam-se à base da percepção pelos fregueses do status do

indivíduo. O símbolo de status mais valorizado é a carteira funcional ou profissional. Ela indica

que o portador tem certa estabilidade no emprego, realmente grande quando se trata de

funcionários públicos. A frase “fulano é funcionário” tem uma conotação ao mesmo tempo

elogiosa e reconhecedora da posição de superioridade do outro. Isto se explica não só por

causa da maior facilidade em obter crédito dos proprietários do botequim (de que se falará

mais adiante), como também pela proteção que o documento representa diante da polícia.

Mas o documento de trabalho não é o único valorizado: qualquer documento, por mais

duvidoso que seja – declarações ou requerimentos em papel timbrado, por exemplo – é

altamente considerado. Toda “conversa séria” começa ou termina pela apresentação de um

sem-número de documentos, muitos deles sem nada a ver com o assunto abordado. Uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!abandono completo. Normalmente, a redução paulatina na frequência das visitas corresponde à integração num grupo de fregueses de outro(s) botequim(ns).

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possível explicação para isto é que esses documentos são uma espécie de prova da

“intimidade” do portador com pessoas, órgãos, instituições, agremiações, enfim, da sua

“importância”.

Outro símbolo de status, embora de menor prestígio que a carteira de trabalho, é o

nível de instrução. Este é uma espécie de subcritério de prestígio, com ampla vigência entre as

pessoas menos qualificadas profissionalmente. A instrução não é medida apenas em termos do

nível de escolaridade (pois as diferenças não são grandes), mas também no modo de se

expressar: falar errado ou dizer muito palavrão é quase tão desprestigiador quanto ser

analfabeto. “Eu não gosto de falar muito com fulano, porque senão perco a pouca leitura que

tenho”, é uma frase muito comum, que implica a exclusão do “fulano” do grupo que a disse.

Esta exclusão nunca é violenta, mas pode ser bastante rígida.

Embora a maioria dos subgrupos seja muito homogênea do ponto de vista do status do

membro, existem exceções. Baseiam-se no conhecimento pessoal anterior e independem do

relacionamento no botequim. Vizinhos, colegas de trabalho, antigos conhecidos etc. podem

participar do mesmo subgrupo, apesar das diferenças de status. Nesses casos, porém, o

comportamento dos outros membros em relação ao “intruso” é diferente. Quando o novo

membro tem status superior, tende a ser tratado com maior consideração que os demais. Por

exemplo, as brincadeiras de que é vítima são menos espontâneas, nunca ultrapassando certos

limites. Quando ocorre o inverso, o novo membro fica, de certa forma, relegado a um segundo

plano, como ser interrompido sempre que conta um caso mais longo.

Assim, ocorre certa marginalização do membro do subgrupo com status diferente dos

demais — o que contribui para reforçar os critérios expostos acima de formação de subgrupos.

Mas poucas vezes essa marginalização chega a provocar antagonismo, porque a percepção do

status é altamente homogênea e consensual. O próprio interessado assume, por sua própria

vontade, a posição e a atitude que o grupo requer e espera: o membro com status mais alto

exige respeito, o de status mais baixo assume uma atitude serviçal.

Existe um tipo de frequentador, este sim, bastante marginalizado. Trata-se do indivíduo

nos últimos estágios do alcoolismo, que está invariavelmente muito embriagado.6 Nesses

casos, o freguês é de tal modo ridicularizado, as brincadeiras de que é vítima são tão ofensivas

que na maioria das vezes o indivíduo permanece no botequim apenas o tempo necessário para

consumir em cachaça o pouco dinheiro que tem. E mesmo isto, quando a embriaguez não é

total, pois neste caso o proprietário ou gerente se recusa a lhe vender qualquer bebida.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 Um estado de semiembriaguez, ou mesmo uma embriaguez completa eventual, pouca influência tem no conceito do indivíduo entre os demais fregueses. Esta atitude é muito diferente do procedimento da “classe média” que, quando aceita a embriaguez, não leva a sério a pessoa que se encontra nesse estado. “Não liga para o que o fulano diz, ele está bêbado” é uma frase muito ouvida nos bares de “classe média”. No botequim, só a muito custo se pode aceitar que a pessoa embriagada não seja responsável por seus atos e palavras.

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A diferenciação e a hierarquização entre os subgrupos são reforçadas e validadas pelo

comportamento dos proprietários (ou gerentes), responsáveis pela discriminação entre os

fregueses que podem e os que não podem “beber fiado” (isto é, pagando mais tarde).

Se bem que a concessão de crédito dependa fundamentalmente da confiança do

proprietário no freguês, esta tende a variar segundo a percepção do status do consumidor pelo

proprietário. Tal atitude é lógica: o frequentador com emprego regular recebe uma quantia

certa em dia determinado, de modo que nesse dia pode saldar suas dívidas. Portanto, se bem

que o empregado regular só possa “comprar fiado” se gozar da confiança do proprietário, seu

regime de trabalho já lhe confere uma vantagem para isso.

Outro ponto em que o comportamento do proprietário reforça a hierarquia é o limite de

crédito, que varia com a capacidade de endividamento. Assim, mesmo quando o biscateiro

logra conseguir suficiente confiança do proprietário, o limite de seu crédito normalmente é

inferior ao do empregado regular.

O proprietário pode manifestar de várias maneiras ao freguês que seu crédito atingiu o

limite: desde as alusões veladas até a recusa a servir-lhe bebida, passando por interpelações

diretas cada vez mais frequentes. Pode acontecer também que o freguês, digamos, beba fiado

durante uma semana e depois volte a pagar normalmente a bebida, sem saldar a dívida

anterior. Nesses casos, após um período de espera – em geral 30 dias – verifica-se um

processo semelhante ao da indicação de que o crédito chegou ao limite.!

A condição de devedor pode perdurar indefinidamente, pois o freguês costuma, depois

de interpelado, saldar apenas parte da dívida. Após certo período sem beber fiado, volta a

comprar a crédito, até novamente atingir o limite. Quase todos os frequentadores que têm

crédito estão sempre “pendurados” (devendo ao proprietário), salvo durante períodos muito

curtos.

À primeira vista, esta situação parece negativa para o proprietário. Acontece que, para

sobreviver, normalmente o botequim depende de sua freguesia, e esta é a melhor maneira de

“prender” o freguês (Não se trata, obviamente de pressão moral, mas sim das vantagens

financeiras oferecidas ao frequentador). Além disso, o proprietário, na grande maioria dos

casos, “inflaciona” as dívidas, isto é, acrescenta despesas que não foram realizadas,

principalmente nos “espetos” (dívidas) mais antigos. Por isso, o atraso no pagamento das

dívidas nem sempre corresponde a uma descapitalização do estabelecimento.

Algumas vezes o botequim é lesado. Há casos em que o freguês, chegando ao seu

limite de crédito, desaparece: transfere-se para outro botequim sem saldar a dívida. Mas, no

cômputo geral, isto não chega a afetar o botequim (apesar da invariável irritação do

proprietário quando percebe o fato), porque o volume dos créditos individuais é pequeno.7

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!7 Casos de dívidas de Cr$ 150,00 (US$ 12), por exemplo, são muito raros.

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Estes casos ocorrem porque as formas de determinação da confiabilidade e da

capacidade de endividamento do freguês, apesar de muito variadas, nem sempre são seguras.

Volume médio de despesas, modo de vestir, a “rodinha” frequentada, a simpatia pessoal, o

bom relacionamento com outros fregueses de “confiança” – eis alguns exemplos. É

principalmente através das decisões sobre o crédito que os proprietários monopolizam o poder

no botequim.8 Sendo baixo o poder aquisitivo da quase totalidade dos fregueses, é comum

necessitarem “fiar” as bebidas. Para isso, dependem de uma vontade soberana, situada numa

instância em que não têm nenhum (ou muito pouco) controle.

Além disso, o proprietário possui também certo “poder de polícia”: proibir (ou não)

jogos, instrumentos musicais, expulsar consumidores “inconvenientes” etc. Embora de modo

geral esse controle seja feito de maneira discreta, com muito tato, condiciona um respeito da

parte dos fregueses, que detestam ser chamados à atenção.

3.2 Alguns padrões básicos de relacionamento

A posição de superioridade do proprietário tende a fazer com que nas relações entre

este e o freguês exista sempre um antagonismo latente. Nem sempre esse antagonismo é

explicitado, e às vezes é difícil percebê-lo numa análise superficial. Mas uma observação

atenta das conversas no botequim, entre o proprietário e os fregueses, demonstra que as

relações não são tão amistosas quanto parecem. Principalmente durante as brincadeiras, há

sempre uma ironia ferina do dono, que indica um nítido desprezo pelos fregueses. Estes, por

sua vez, reagem, demonstrando considerar que o proprietário os rouba.

Tal antagonismo, entretanto, poucas vezes se manifesta de forma clara. Só

ocasionalmente surge um desentendimento declarado, sempre a respeito de dívidas. E, mesmo

quando isto acontece, há quase sempre um grande cuidado no encaminhamento da discussão,

tanto por parte do proprietário quanto do freguês. Os contendores reservam um caminho para

a reconciliação, evitando o mais possível uma ruptura definitiva, da qual não possam voltar

atrás. Existe até certo consenso no sentido de silenciar sobre qualquer discussão mais

violenta. Tanto a tensão quanto o medo da ruptura são facilmente explicáveis: se existe, de

um lado, uma relação de dominação-subordinação (portanto antagônica), de outro, há uma

dependência mútua muito grande, como já foi explicado acima. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!8 Somente em sentido figurado se pode falar em poder no botequim, embora exista certo vínculo de dominação-subordinacão entre patrão e freguês. Para isso concorrem diversos fatores. Frequentar um botequim é importante para a pessoa. Além disso, nos botequins de que é freguês, o indivíduo já “fez ambiente” (já estabeleceu relações relevantes com outros frequentadores). Acresce que o número dos botequins de que é freguês não é grande: no máximo três ou quatro. Por outro lado, um único freguês pouco representa para o proprietário. Assim, a possibilidade que o frequentador tem de enfrentá-lo em pé de igualdade é muito reduzida: as vantagens que recebe são maiores do que as que tem a oferecer. Prova do poder do dono do botequim está no fato de que é comum, após uma discussão com o proprietário, um freguês anunciar que não volta mais ao estabelecimento; quase invariavelmente, no dia seguinte, à mesma hora, pode-se encontrá-lo lá. Ninguém se espanta, e raramente se toca no assunto.

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Tudo isso não impede, entretanto, certos momentos de harmonia e cooperação entre

proprietários e fregueses. Assim, por exemplo, às vezes o proprietário e alguns fregueses mais

constantes vão beber juntos em outro botequim, depois de fechado o estabelecimento. É

muito comum, também, que os fregueses prestem pequenos favores ao proprietário, pelos

quais são retribuídos com um número de doses de bebida correspondente à importância do

favor prestado. Num dos botequins estudados, um dos fregueses bebia a noite inteira

gratuitamente, em troca da limpeza do local; mas, quando bebia demais, o proprietário fazia

uma brincadeira, demonstrando que o freguês estava se excedendo.

Se o relacionamento entre proprietários e fregueses se processa num clima de tensão,

pontilhado de momentos de harmonia, o oposto acontece com os fregueses. A cooperação

entre eles atinge o clímax com a existência de uma espécie de “caixa comum” para pagar as

bebidas. Não é, porém, algo formalizado e explícito. Ao contrário, funciona como regra tácita e

às vezes não percebida por muitos frequentadores. Seu funcionamento pode ser

esquematizado como se segue.

Sempre que algum freguês tem dinheiro disponível, paga bebidas até que este acabe.

Dependendo do montante, até alguns membros de outros subgrupos são convidados a beber

(É interessante notar que, mesmo nesses casos, só ocasionalmente participantes de subgrupos

diferentes bebem juntos. O mais comum é o freguês que está pagando mandar o proprietário

ou o empregado servir uma ou mais doses da bebida que o outro costuma pedir, sem sequer

perguntar-lhe se quer beber. Considera-se o máximo da gentileza o freguês que está pagando

não se identificar, embora quase sempre acabe sendo descoberto).

Esse modo de proceder pode ser considerado “esbanjamento”.9 Na realidade, porém,

funciona – embora nem sempre conscientemente – como uma espécie de proteção contra os

dias em que o freguês está sem dinheiro, em especial para os que não têm crédito ou quando

este é muito pequeno. É bastante sintomático que justamente entre os subgrupos mais pobres

esta prática seja mais intensa. Há casos de biscateiros, que em geral lutam com grandes

dificuldades financeiras, gastarem Cr$ 62,00 (US$ 5) em duas ou três horas. Depois de uma

“noitada” dessas, porém, continuam frequentando o botequim sem nenhum dinheiro, e sempre

conseguem alguém que lhes pague uma ou outra bebida. E note-se que só se bebe “de graça”

recebendo convite, porque é considerado “feio” pedir para pagar.

Existem certas regras tácitas para impedir que alguns fregueses sejam prejudicados.

Por exemplo: quando alguém fica muito tempo sem pagar nada para os outros, acaba não

sendo mais convidado para beber. Há gradações muito sutis nesse controle: aqueles que são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Num dos botequins estudados, um dos fregueses recebeu CR$ 5.875,00 (cerca de US$ 470) como indenização por 11 anos de trabalho em um armazém que fechou. Toda essa importância – quase igual ao que um operário recebendo salário-mínimo ganha em um ano de trabalho – foi gasta em dois ou três meses, quase exclusivamente em bebida para si e para os demais fregueses. É óbvio que um caso como este é excepcional, mas serve para indicar até que ponto pode chegar esta prática.

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reconhecidamente muito pobres podem ficar longa temporada sem oferecer bebida a ninguém;

em compensação, quando pagarem, têm que gastar mais dinheiro. Há também certa noção de

proporcionalidade, pois espera-se que quanto mais alto for o poder aquisitivo do freguês,

maior quantidade de bebidas ele deverá oferecer.

Para os frequentadores, o botequim se reveste da maior importância. Primeiro, porque

lá podem realizar transações de mercadorias usadas. Móveis, roupas, madeira, relógios,

isqueiros etc. são regularmente comerciados. Em geral, essas mercadorias são presentes de

patrões, ou retribuição por algum serviço ou favor prestado.10

Os pequenos objetos têm circulação muito grande, havendo casos de o primeiro

proprietário comprar o mesmo objeto algum tempo depois de tê-lo vendido. O comércio desse

tipo de mercadoria depende mais da possibilidade de “fazer um bom negócio” e das condições

financeiras de momento do que propriamente de sua utilidade ou valor. Havendo perspectiva

de lucro, o objeto é vendido; do contrário, apenas se o dono estiver sem dinheiro no

momento. É comum alguém comprar um objeto apenas para “fazer negócio”, isto é, revendê-

lo mais tarde com lucro.

Existe um compromisso tácito, de que o freguês que vende a mercadoria tem que pagar

certo número de doses de bebida, que varia segundo o preço de venda. Assim, os proprietários

do botequim têm uma participação indireta no lucro de quase todas essas transações.

Também em relação à possibilidade de obter dinheiro emprestado, o botequim é muito

importante. Em certos casos – principalmente nas “biroscas” de favelas – o próprio dono é

também agiota. Em outros, algum frequentador pode emprestar pequenas quantias,

geralmente sem cobrar juros. Ou então algum freguês pede dinheiro a um agiota seu

conhecido para um terceiro. Essas práticas são extremamente difundidas entre os habitués de

botequim porque, auferindo remuneração quase sempre baixa, a disponibilidade financeira é

reduzida. Para enfrentar momentos de crise ou acontecimentos imprevistos, o único meio é

contrair uma dívida, caso a pessoa não consiga nenhum biscate “extra”. Como exemplos

dessas situações, podem-se citar doenças, nascimentos e mortes, aniversários, reformas na

residência, viagens etc.

O botequim funciona também como “ponto” para os biscateiros. Sempre que estes não

estão executando algum serviço, permanecem no botequim à espera de que “apareça

trabalho”, isto é, de que alguém o procure para contratar seus serviços. Existe uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 Recentemente presenciei a venda de um conjunto – sofá e duas poltronas de couro – por Cr$ 250,00 (US$ 20) e mais um anel. O conjunto tinha sido recebido por um freguês de uma família que estava se mudando e não o queria mais. Como o presente não cabia em seu barraco, o favorecido “torrou” (vendeu muito barato) a mercadoria, cujo valor deveria ser três ou quatro vezes maior em qualquer loja de móveis usados. E o freguês que vendeu ainda pagou três copos de vinho ao outro, para “comemorar” a transação.

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colaboração íntima entre os frequentadores, que se indicam mutuamente para fazer biscates

quando não podem ou não sabem executá-los.11

Todos estes fatores – o interesse em conseguir biscates e empréstimos, a perspectiva

de realização de negócios vantajosos, o antagonismo em face do proprietário – provocam um

clima de cooperação entre os fregueses. É o caso, por exemplo, dos que trabalham em dupla.

Certos tipos de biscates – carpintaria, mudanças etc. – são difíceis de serem executados por

uma só pessoa. Assim, um dos fregueses convida outro para ajudá-lo. A iniciativa é, em geral,

tomada por aquele que possui as ferramentas e o know-how mais desenvolvido. A renda é

dividida, às vezes igualmente, às vezes com pequena desvantagem para o ajudante.

Mas essa colaboração não está livre de antagonismos. As disputas entre duplas de

biscateiros, por exemplo, podem provocar rupturas tão violentas que por vezes conduzem ao

próprio afastamento do botequim por parte de um ou de ambos os envolvidos. É verdade que

essas brigas são normalmente “a prazo fixo”. O processo é o seguinte: dois trabalhadores

começam a trabalhar em dupla. Passam então a andar sempre juntos, até que algum

problema, quase sempre relacionado com a repartição do dinheiro ganho em algum biscate, os

separe. Em seguida, formam nova dupla com outro conhecido, até que haja novo rompimento,

quando uma nova dupla com um dos antigos parceiros pode ser formada.12

Também quanto ao pagamento de bebidas, as relações amistosas são entremeadas de

uma competição velada, no sentido de pagar o menos possível e obter o maior número de

convites para beber de graça. Alguns acontecimentos alheios ao botequim – casos com

mulheres, brigas de família, questões de trabalho etc. – também provocam às vezes fortes

inimizades entre os frequentadores.

Nesta seção, procurei descrever rapidamente a dinâmica das relações sociais no

botequim, salientando as formas e os motivos em que se manifestam o conflito e a cooperação

entre os fregueses e entre estes e os proprietários. Espero ter deixado claro que existem

importantes mecanismos informais de controle das tensões, mantendo-as em níveis

relativamente baixos e limitando-as a situações muito definidas e ocasionais.

A existência de condições de “harmonia” (pelo menos aparente) é, pode-se dizer,

indispensável para os fregueses, como procurarei demonstrar na última parte do artigo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!11 Cabe aqui um parêntese. Até agora tenho contraposto os termos “biscateiro” e “empregado regular” para indicar dois tipos distintos de regime de trabalho. Acontece que a grande maioria dos empregados regulares também faz biscates nas horas vagas, como forma de aumentar a receita. A diferença está no fato de que os biscateiros dependem exclusivamente de pequenas tarefas, mais ou menos aleatórias. Para os empregados regulares, o biscate é apenas um “bico” (isto é, uma fonte de renda secundária e, no caso, intermitente). Como ambas as categorias costumam fazer biscates, o botequim pode ser considerado como uma espécie de “agência de empregos” para quase todos os fregueses. 12 Num dos botequins estudados, dois fregueses eram inseparáveis. A amizade era tal que se diziam “compadres”. Um dia, encontrando um deles sozinho, perguntei pelo outro. Respondeu-me dizendo que o outro era ladrão, que não era bom amigo, e assim por diante. Tempos depois, vim a saber que os dois haviam brigado por questões de dinheiro. Ainda mais tarde – cerca de seis meses após o rompimento – encontrei-os novamente muito amigos e trabalhando juntos.

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4. Aspectos do sistema de valores e da mundivisão do freguês13

Para o freguês constante do botequim, o álcool faz parte da vida diária, assim como o

fumo. Até certo ponto, todos são “viciados”, na medida em que bebem praticamente todos os

dias. Existem até mesmo algumas superstições, como a de que parar de beber de uma só vez

faz mal. Mas, salvo os alcoólatras de último grau, quase todos os frequentadores podem

passar temporadas sem beber. Isto acontece, normalmente, quando estão tomando algum

remédio, muitas vezes sem que, na realidade, o álcool tenha qualquer contraindicação. Ou

então quando não têm dinheiro, e ninguém lhes oferece uma dose. Mesmo nessas ocasiões,

continuam frequentando o botequim no horário costumeiro.

Para o freguês, a bebida está ligada a uma atividade “social”, à rotina diária. Por isso, o

alcoolismo não é visto propriamente como um “defeito”. É antes considerado uma

característica a mais da pessoa, sem qualquer conotação negativa especial.14

Essa atitude diante da bebida se estende a amplas parcelas dos estratos de onde

provêm os frequentadores de botequim. “Fulano bebe muito”, “ele já está bebendo

novamente” etc. são frases muito ouvidas entre as camadas mais pobres, e pouco afetam a

posição da pessoa a respeito de quem as disse. O indivíduo meio embriagado é tratado de

modo idêntico ao do que está sóbrio. Espera-se que ele não altere seu comportamento e, em

troca, permite-se que participe normalmente do “bate-papo”, isto é, da conversa. Este gira

quase sempre em torno de um número relativamente limitado de temas. A natureza e o modo

de tratar tais assuntos são da mais alta importância para a compreensão do botequim. Em

certos casos, elucidam muito claramente aspectos que, através da mera observação de

comportamentos e do conhecimento de particularidades da vida dos fregueses, ficam

obscuros.

Um dos assuntos principais de conversa é o trabalho. Intermináveis descrições das

tarefas realizadas durante o dia se sucedem. É verdade que quase sempre a plateia conhece

os rudimentos da especialidade – em geral são serviços de eletricista, bombeiro, pedreiro,

carpinteiro etc. Mas, em outros ambientes, tal requinte de detalhes seria considerado

cansativo. Via de regra, as descrições são entremeadas de pequenas disputas sobre o melhor

modo de assentar um ladrilho, a maior ou menor dificuldade de determinada profissão, a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Não pretendo, em absoluto, defender a tese de que existe um sistema de valores e uma mundivisão exclusivos dos fregueses de botequim. Embora existam, obviamente, certos aspectos particulares, seu universo cultural é o mesmo dos estratos de onde provêm. Neste capítulo, procuro apenas descrever as características desse universo cultural que considero mais importantes para apreender o significado do botequim, indicando sempre que possível as particularidades de que se revestem no caso em estudo. 14 Convém recordar o que já foi dito a respeito do indivíduo que está sistematicamente muito embriagado.

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habilidade técnica do narrador, entre outras. Tais interregnos, por sua constância, indicam que

existe uma grande valorização da capacidade técnica do indivíduo. Mas acontece também que

o know how seja cotejado com a força física, e muitas vezes se acaba conferindo maior mérito

a esta.15 A noção de “trabalho” está associada à habilidade técnica e à resistência física. Toda

atividade não-manual não é considerada propriamente um trabalho, apesar de extremamente

valorizada – ou talvez mesmo por causa disso.

Se bem que o trabalho em si seja muito comentado, o que está por trás de tudo é o

dinheiro. Na realidade, é este que importa, e que torna interessantes os detalhes técnicos ou o

esforço despendido. As disputas sobre a capacidade profissional e a resistência física só têm

sentido porque são meios de avaliar o dinheiro que a pessoa pode ganhar.

Interessante também é que, no caso dos biscateiros, nenhuma tarefa tem preço

determinado. O serviço é cobrado em função de uma série de imponderáveis. Se a “madame é

legal” (se o biscateiro gosta dela), cobra-se menos; se é “otária” (se se deixa enganar

facilmente), aumenta-se o preço. Se o indivíduo está sem dinheiro, faz-se “um preço

camarada”, isto é, mais baixo. Se tem encontrado muitos biscates, cobra-se mais. Podem

ocorrer intermináveis discussões entre o eventual empregador e o biscateiro para ajustar o

preço de uma tarefa. Às vezes, só depois de terminado o serviço é que o preço é definido.

Nas conversas sobre trabalho-dinheiro, quase sempre os fregueses se vangloriam de

haver cobrado um preço exorbitante por um pequeno serviço. Isto nem sempre é verdade,

pois em alguns casos o ocasional patrão demora a pagar, ou dá menos dinheiro do que o

estipulado.

Institutos (órgãos de previdência social), legislação trabalhista, cálculo de indenizações

(importância recebida pelo empregado quando demitido sem justa causa) são também

assuntos de conversa. Mas este tema fica restrito aos subgrupos de fregueses que têm

empregos regulares. Sintomático das precárias condições gerais de trabalho é o fato de o

desemprego despertar relativamente pouco interesse.16

Outro tema muito abordado é o futebol, sobre o qual todos têm sempre algo a dizer.

Este é um dos poucos assuntos constantes que dão margem a conversas demoradas entre

membros de subgrupos diferentes, e permite a participação até mesmo de “estranhos”. O

interessante – já que futebol é assunto de conversa em quase todas as camadas sociais no !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 Certa vez presenciei uma acalorada discussão entre um bombeiro e um encarregado da limpeza das tubulações de esgoto. O primeiro brincava com o outro, dizendo que qualquer pessoa podia fazer aquele trabalho, enquanto para ser bombeiro eram precisos muitos anos de prática. Resposta do que trabalha nos esgotos: “Aquilo é que é serviço de macho. Nem você nem o doutor (o pesquisador) aguentavam um dia daquele trabalho. Ficavam logo doentes”. 16 Em certo sentido, poucos são, de fato, os desempregados. A maioria dos frequentadores vive de biscates. Uma pequena minoria tem estabilidade no emprego ou dispõe de um know how que lhe permita conseguir colocação em pouco tempo. Alguns, que conseguem empregos regulares, situam-se numa faixa intermediária entre os dois tipos de regime de trabalho: quando são despedidos de um emprego, custam tanto a conseguir outro que, nesse meio tempo, passam a viver como biscateiros. A passagem de uma situação para outra não é nenhuma novidade (É interessante notar que, perdendo o emprego, o freguês após algum tempo muda de subgrupo. Isto porque seu prestígio no antigo subgrupo cai, passa a frequentar mais tempo o botequim etc. O oposto também acontece).

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Brasil – é que poucos são aqueles que vão pessoalmente a algum jogo, e raríssimos são os

frequentadores assíduos dos estádios. Toda informação sobre o tema provém dos jornais, do

rádio (principalmente) e da televisão.

Um assunto também muito ventilado – embora menos do que nas casas de bebidas

frequentadas pela “classe média” – são os casos amorosos. Apesar de ser de “interesse geral”,

a maneira de abordá-lo parece bastante particular. Primeiro, porque essas aventuras

costumam ser relatadas como parte de uma “farra”, que normalmente engloba muita bebida e,

em geral, música. Segundo, porque existe um “pudor” (certa discrição) muito maior do que o

demonstrado pela maioria dos outros grupos.17

O crime polariza a atenção dos fregueses. Na maior parte das vezes, comentam-se os

fatos – em especial, as motivações e o caráter dos autores mais notórios, aqueles que chegam

a constar das crônicas policiais.18 Mas também os acontecimentos “domésticos” são criticados:

a conduta desviada dos amigos e conhecidos, a prisão de um vizinho, a morte de um bandido

que já esteve no local etc.

Crime e mulher: duas facetas do que se poderia chamar de “complexo cultural do

machismo”, importante no sistema de valores de boa parte dos brasileiros, mas que apresenta

certos aspectos particulares entre os frequentadores de botequim.

A maioria dos membros dos demais grupos procura, na medida do possível, agir como

“macho”. No botequim, embora sua orientação cultural seja muito semelhante à do resto da

sociedade, os fregueses se percebem muito distantes do “macho ideal”. Seu comportamento

concreto, salvo em ocasiões excepcionais, poucas vezes pretende reproduzir aqueles valores

que compõem a idealização da figura do “macho” (Todas as verbalizações, porém, dariam a

entender justo o oposto: pelas conversas no botequim, dir-se-ia que o “machismo” é

importante marco de referência na conduta concreta dos fregueses. Tal aparência decorre do

fato de que existe um acordo tácito entre eles, no sentido de não duvidar das afirmações dos

demais, embora haja uma consciência difusa de que, muitas vezes, trata-se de mentiras, ou

pelo menos de grande exagero).

A noção do grau de virilidade é diretamente proporcional à quantidade de mulheres das

quais o indivíduo é amante. Também o número de vezes em que o ato sexual é praticado num

mesmo encontro tem importância. Surgem algumas vezes acaloradas discussões em torno de

possíveis recordes que chegam a atingir as raias do absurdo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!17 Num bar de “classe média”, por exemplo, uma mulher bonita que passa na rua é objeto de olhares, longos comentários maliciosos, “piadas”, frases galantes etc. (Apesar de que nada disso indique necessariamente um interesse real de “conquista”. Em geral, trata-se mais de hábito e bravata). No botequim, quando a mulher realmente interessa, pode ser olhada e até mesmo abordada, mas existe um flagrante aparato de disfarce para estes gestos. 18 Grande parte dos jornais mais lidos se dedica a reportagens e a comentários sobre o tema. Um dos programas radiofônicos de maior audiência no Rio de Janeiro é exclusivamente dedicado a acontecimentos policiais.

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Mas ser “macho” está também associado à noção de força e resistência física. Um

criminoso que é preso e, sob coação física, dá indicações sobre o paradeiro de sua gang, é

considerado um “frouxo”, isto é, um covarde. Em caso de briga, por exemplo, o indivíduo

nunca reconhece que levou desvantagem, salvo se teve que enfrentar mais de um oponente.

Nesses casos, percebe-se outro componente do “machismo”: a coragem. Provavelmente por

isso o criminoso, se bem que temido e marginalizado, chega a ser muito valorizado. Apesar de

tudo, ele tem coragem suficiente para viver desafiando a sociedade e enfrentando a polícia.

A identificação do homem como “macho” está basicamente associada à da posição da

mulher. Esta deve cuidar da casa, dos filhos e dos afazeres domésticos. A fidelidade é uma

obrigação precípua e exclusiva da mulher, isto é, da “mulher honesta”.

Em torno destes dois polos – a fidelidade e as funções da mulher – são criadas três

categorias distintas: a esposa, a companheira e a “piranha”. As duas primeiras não têm

diferenças muito nítidas. A condição de esposa ou companheira quase só difere no que diz

respeito ao prestígio que confere ao homem (e, indiretamente, à mulher). Ser legalmente

casado proporciona um status superior ao do amasiamento, mas as obrigações – mais que os

direitos, sobre os quais poucas referências são feitas – são idênticas.

Se a esposa-companheira é cercada de todo o respeito, a “piranha”, isto é, a esposa-

companheira infiel ou a prostituta é tratada com o máximo desprezo. Ela é vista mais como

objeto de uso e fonte de renda (a gigolotagem é aceita e mesmo valorizada) do que como

“gente”.19 Pode até ser tratada com muito respeito, mas essa atitude do interlocutor é movida

apenas por interesse.

Apesar destas categorizações, não existe, ou só muito raramente, uma estereotipia da

mulher. Qualquer mulher pode ser enquadrada numa destas categorias e receber o tratamento

correspondente, dependendo da situação concreta em que ela esteja envolvida.

Outro aspecto muito importante: os fregueses têm uma nítida noção das mulheres que

eventualmente podem se interessar por eles. Apesar de todo o “machismo”, as “bacanas” (ou

seja, as mulheres que são, pelo menos na aparência, ricas) são percebidas como inacessíveis.

Em relação a elas existe um grande respeito, maior que o conferido à esposa-companheira.

Exemplo disto é que os fregueses costumam prestar pequenos serviços – carregar embrulhos,

por exemplo – às madames, sem que sejam solicitados. Basta que percebam haver alguma

expectativa nesse sentido. Além disso, uma mulher “bem vestida” só raramente é olhada com

malícia pelos fregueses de botequim.

E não é apenas em relação às mulheres que a percepção da situação de classe se

manifesta. Existe uma nítida noção de inferioridade em quase todos os aspectos da vida

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!19 É claro que a rigidez dessas categorias não é tão forte como esta descrição poderia dar a entender. Entre a “piranha” e a “mulher honesta”, por exemplo, existe a “neguinha”, aquela que tem diversos “homens” (amantes) ocasionais, que “topa uma farra”, “um programa”, mas que não “comercia” com o sexo.

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cotidiana. Para indicá-la, certos termos de gíria e o modo de utilizá-los podem ser muito

elucidativos.

Assim, por exemplo, “bacana” significa a pessoa em melhor condição financeira.

“Doutor” indica, de um lado, a pessoa “que tem estudo” e, de outro, aquela que ganha muito

dinheiro executando um trabalho “fácil” (veja-se a descrição do conceito de trabalho). Estes e

outros termos servem para designar genericamente as pessoas de classe social mais alta que

a dos fregueses; sua utilização depende do assunto que está sendo tratado no momento.

Quando a conversa é sobre religião, o termo “macumbeiro” tem um sentido pejorativo:

o adepto da macumba seria uma pessoa ignorante, que acredita em superstições, como os

próprios fregueses. Mesmo que um “bacana” seja umbandista, dificilmente é chamado de

“macumbeiro”. É por isto que este termo indica, em sentido pejorativo, os membros dos

estratos inferiores.

Quase todos os fregueses acreditam na umbanda (e a praticam), apesar de todas as

valorizações negativas dessa religião.20 Ao contrário do que acontece com outros grupos – os

“crentes” ou “bíblias” (protestantes), por exemplo, para os quais a religião está ligada à

adoção de um código normativo muito rígido – no caso dos fregueses de botequim a adesão à

umbanda deriva de tentativas mágicas de enfrentar os problemas da vida diária.21

Vejamos agora algo sobre a atitude diante da polícia, que me parece um bom indicador

de importante aspecto da visão do mundo do freguês. Os policiais provocam extremo receio,

sobre o qual já foram feitas referências anteriormente. Esse medo gera uma raiva

generalizada contra a polícia: “não suporto farda” é uma expressão muito comum de defesa

das pessoas envolvidas com a “lei” (este é um termo de gíria para designar a polícia e, por

extensão, o policial). Quando há uma “batida” no botequim, por exemplo, todos os esforços

são envidados – inclusive pelos proprietários – para evitar que os presentes sem documentos

sejam levados para a delegacia.

Mas isto não significa, em primeiro lugar, “enfrentar” a polícia. Toda oposição a ela é

sub-reptícia, disfarçada, e só se realiza quando não ameaça a segurança do indivíduo. Em

segundo lugar, a polícia é vista como uma organização necessária, e ninguém lhe nega o

direito de agir da maneira como o faz.

Existe, pois, uma orientação autoritária da parte dos fregueses, no sentido de que há

uma expectativa de que a autoridade seja exercida de forma violenta, coercitiva. Isto se

manifesta nitidamente na atitude política: todas as medidas de caráter repressivo são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!20 Há pouco tempo, um freguês me fazia as piores referências aos “terreiros”, afirmando, entre outras coisas, “que todo pai de santo quer é tomar dinheiro do pessoal”. Mas acabou confessando que acreditava em um deles, “que era bom mesmo”. 21 Não pretendo afirmar que a religião, do ponto de vista sociocultural, resume-se apenas nisso. Este é simplesmente um de seus aspectos.

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aprovadas quase sem restrições. Além disso, as formas concretas de investimento da

autoridade jamais são discutidas.

O autoritarismo dos fregueses parece relacionado à percepção da própria situação de

classe (e de toda a estratificação) como inevitável. Assim, quase nunca se discute o “mundo

da política”, porque ele é visto como distante e inacessível. Só muito raramente as decisões

políticas são percebidas afetando a vida cotidiana, e não se vislumbra a menor possibilidade de

influência sobre elas. No máximo, desprezam-se os políticos como corruptos. Mas trata-se de

um moralismo um tanto cínico. Se um dos fregueses pudesse tornar-se um político, agiria da

mesma forma que qualquer outro, “adiantando seu lado”: trataria de enriquecer. Embora isto

seja “desonesto”, “imoral”, deve-se agir assim, desde que existam certas “imunidades”.

Para terminar esta seção, cumpre uma palavra sobre a noção de tempo entre os

fregueses. Há uma quase total ausência de planos e projetos. Exemplo disto podem ser as

grandes despesas feitas com os amigos, em condições financeiras muito precárias (veja-se a

parte referente à “caixa comum” de despesas). Outro exemplo é o fato de que os

investimentos na residência, muito comuns em favelas, são praticamente inexistentes entre os

fregueses favelados. Apesar de certa disponibilidade de tempo, eles só trabalham na própria

moradia quando isto é indispensável.

Essa ausência de planejamento do futuro não impede que haja grande rigidez de rotina.

A vida do frequentador resume-se no ciclo sempre repetido de trabalho-botequim e/ou

birosca-residência. Nessas condições, deixa de haver necessidade de elaboração de planos que

orientem a conduta diária, dando-lhe um “sentido”. A rotina cotidiana substitui, então, a

própria reflexão sobre o futuro.

5. O significado do botequim

Muito se tem discutido, nos meios técnicos, sobre as “comunidades marginais” (favelas,

por exemplo) e a necessidade de integrá-las à “comunidade urbana”. Pessoalmente, acredito

que não há como falar, desse ponto de vista, em “comunidades marginais”. No nível do

sistema, os grupos assim rotulados integram-se perfeitamente à sociedade global: ocupam um

lugar definido na hierarquia social, desempenham funções importantes etc. O que existe é que

alguns conjuntos de indivíduos que fazem parte desses grupos estão precariamente integrados

(ou “mal integrados”, ou “não integrados”). É o caso dos fregueses de botequim. Pode-se dizer

que eles são uma parcela da famosa “reserva de mão de obra”, que tem um papel muito

definido no funcionamento e na manutenção do sistema. Mas, justamente em razão desse

papel, as pessoas que o compõem estão precariamente integradas. São, portanto, como

indivíduos, “marginais”.

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Acontece que, para que tais pessoas desempenhem proficuamente o papel esperado, é

preciso que o próprio sistema crie certos mecanismos (“superestruturais”) de sustentação, isto

é, que orientem a ação segundo um esquema referencial que lhe empreste um “sentido”. A

função desses mecanismos é sustentar o comportamento individual em direções social e

culturalmente compatíveis com o sistema, pelo menos nos aspectos fundamentais.

5.1. A falência das organizações tradicionais de sustentação do indivíduo22

As duas principais organizações dessa categoria são a família e a comunidade.

A primeira tem sido cada vez menos eficiente como marco de referência para o

indivíduo. Algumas das mais importantes razões – a diminuição de sua importância econômica,

por exemplo – já estão amplamente exploradas. Por isso restringir-me-ei a duas causas, que

me parecem em geral desprezadas.

Surpreendida pelo processo de urbanização-industrialização, deslocada de seu contexto

“original”, a família passa a constituir-se em bases funcionais, pragmáticas, contratuais.

Marido e mulher desenvolvem relações superficiais, fundamentadas principalmente no

significado econômico que um tem para o outro. A divisão de funções, que antes contribuía

para a unificação do sistema familiar, agora tende a transformar as relações, tornando-as

impessoais, utilitárias, individualistas. O marido “compra” uma empregada, sustentando-a. A

mulher obtém uma “fonte de renda”, casando.

O processo esquematicamente descrito acima é muito generalizado, mas a explicitação

e o nível de consciência que atinge nos estratos inferiores são dignos de nota. Os exemplos se

multiplicam. A crescente instabilidade do casamento é fato mais que conhecido. Além disso, o

“objetivismo” dos contratos nupciais é impressionante. Prova disto é um conhecido programa

de televisão do Rio de Janeiro, organizado como uma espécie de agência matrimonial. Os que

procuram o programa, ao que tudo indica membros dos estratos inferiores, são chamados para

apresentar as características do parceiro ideal e, ao mesmo tempo, “identificarem-se” para os

eventuais interessados. Quase todas as referências limitam-se à “honestidade”, à “capacidade

de trabalho”, à “idade”, aos “recursos financeiros”, à “estabilidade de renda” etc. Reduzida à

sua dimensão de mera instrumentalidade econômica, a família não contribui para conferir um

sentido à vida do indivíduo.

Mas existe outro motivo pelo qual a família não funciona como mecanismo de

sustentação. Trata-se do fato de que, independente do processo de falência dessa instituição,

a imensa maioria dos fregueses enfrenta ou já enfrentou seriíssimos problemas familiares. Eis

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!22 O termo “falência”, neste subtítulo, precisa ser qualificado. Primeiro, refiro-me à ineficácia dessas organizações para os frequentadores de botequim, sem generalizá-la. Segundo, acredito que esta falência esteja em processo, não sendo, portanto, completa.

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apenas alguns exemplos. Um entrevistado tentou impedir que a filha namorasse determinado

rapaz que considerava “mau caráter”, no que foi obstado pela companheira; o rapaz acabou

por desvirginar a moça e agora, embora não tenha abandonado a família, o freguês não fala

com mais ninguém em casa. Outro tem um filho sabidamente homossexual, o que, no seu

ambiente, é talvez a maior desonra que um pai pode sofrer. Outro ainda tem um filho

“marginal” que, além de várias prisões, lhe roubava dinheiro, sempre defendido pela mãe;

esta, por sua vez, foi apanhada em flagrante de adultério pelo marido, que acabou por

abandoná-la. E óbvio que para essas pessoas a família não poderia funcionar como marco de

referência significativo, ainda que, como instituição, o fosse.

Também a “comunidade”, entendida em linhas gerais como um sistema de relações

pessoais muito definidas e baseadas na cooperação, tem pouca vigência no meio urbano.

Algumas vezes confunde-se “comunidade” com “grupo de vizinhança” – é o caso da definição

da favela como comunidade, por exemplo. Mas, nos estratos inferiores, esses grupos de

vizinhança não substituem a comunidade como organização capaz de servir de apoio na busca

de um sentido para a vida. Ele não envolve nem implica nenhum “sentimento comunitário”.

Com baixo nível de renda e grande instabilidade no emprego, a competição por oportunidades

de trabalho impede que as pessoas envolvidas estabeleçam relações sólidas, estáveis e

significativas. Apenas a título de rápido exemplo, podem ser citadas as duplas de biscateiros,

já vistas anteriormente.

5.2. A incapacidade de integração nas novas organizações de sustentação do indivíduo

O processo de urbanização-industrialização coloca à disposição do indivíduo esquemas

referenciais de natureza muito diferente dos que vimos no item anterior, em especial no que

diz respeito à impessoalidade. Estes esquemas, se bem que altamente complementares,

podem ser agrupados em torno de dois polos: “trabalho” (sindicatos, “política” etc.) e

“consumo” (símbolos que orientam o consumo de massa).

Quanto ao primeiro grupo, o frequentador de botequim (e diga-se de passagem, não

apenas ele) está, pode-se dizer, estruturalmente impedido de participar. A aleatoriedade e a

insegurança do trabalho impedem que ele se defina e se perceba de forma coerente como

“empregado”. O freguês se autorrotula um “marginal”, e este sentimento de exclusão – que

tem bases objetivas muito sólidas – produz uma sensação de impotência. Daí a fuga da luta,

da competição, justamente num sistema cada vez mais baseado na seleção por desempenho.

Em consequência, assume uma orientação passiva, que pode ser vista pela atitude política: a

consciência de “marginalidade” não provoca qualquer tipo de reação. O próprio trabalho não

tem nenhum sentido para ele, exceto como fonte de renda.

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Esta situação é a mesma no que se refere aos esquemas referenciais ligados ao

consumo. De início, vêm novamente à tona o baixo nível e a instabilidade de renda dos

frequentadores de botequim (e, mais uma vez, não apenas deles). Nessas condições, é óbvia a

dificuldade de participar do que os críticos da sociedade de massa têm chamado de “delírio de

consumo”.

Em segundo lugar, há fortes empecilhos de natureza cultural. O freguês é, em geral,

um homem maduro, cuja idade oscila entre os 40 e os 50 anos, muitas vezes de origem rural

e com baixo nível de instrução. Isto faz com que ele participe de um universo cultural que só

em casos excepcionais permite entender e aceitar os apelos da maioria dos símbolos que

orientam o consumo. Eles são percebidos como “loucuras da juventude” ou “coisa de

bacana”.23

6. Conclusão

Espero ter demonstrado que nem as organizações tradicionais de sustentação do

indivíduo, nem as criadas no bojo do sistema urbano-industrial têm condições concretas de

funcionar satisfatoriamente para ponderáveis parcelas da população urbana, entre as quais os

frequentadores de botequim.24

Como veremos em seguida, o botequim é uma das formas de preencher esta lacuna. A

alternativa representada pelo botequim parece ser escolhida principalmente por aquelas

pessoas com maiores dificuldades de aceitar o espírito competitivo que impregna a sociedade

urbana (Existem outros esquemas referenciais que não podem ser discutidos aqui, como as

escolas de samba, os grupos protestantes etc.).

Em primeiro lugar, o botequim pode ser um mecanismo de sustentação, porque tem

condições de conceder o sentimento perdido de comunidade. Ele cria profundos laços comuns

entre uma minoria: os componentes dos estratos inferiores que são “adeptos do álcool”.

Necessidades de natureza econômica tornam-no muito importante, além de provocarem

estreitas relações de cooperação. Os conflitos são controlados sem necessidade de fórmulas

impessoais e de modo quase sempre “pacífico e ameno”. A competição se mantém em nível

pouco explicitado e aceitável. E, finalmente, o álcool atua como fator de liberação da

“consciência de inferioridade”, isto é, da situação de classe.25

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!23 Acredito que entre os filhos dos frequentadores – a “nova geração” – os impedimentos desta ordem sejam muito mais tênues, embora em alguns casos a situação não pareça ter-se alterado muito. 24 Refiro-me, é claro, à população urbana do Brasil atual e, em especial, àquelas dos centros mais industrializados. 25 Apesar do longo contato com os fregueses dos dois botequins estudados mais profundamente, nunca deixou de me impressionar a diferença que o álcool provocava no modo de me tratarem. Durante todo o tempo da pesquisa, quanto mais pronunciado o estado de embriaguez, mais “livres”, isto é, íntimos, desembaraçados, se mostravam.

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Mas, em segundo lugar, é claro que as características “comunitárias” do botequim são

redefinidas, pois inserem-se num contexto novo. Pelo menos em termos ideais, a comunidade

tradicional basta-se a si mesma, é um sistema fechado. Neste sentido, ela se autojustifica: ela

é o mundo. O botequim, pelo contrário, está inserido no meio urbano, faz parte integrante do

sistema de mercado, relacionado à sociedade de consumo. Apesar disso, o tipo de relações

sociais que se desenvolvem no botequim permite que surja um “sentimento de comunidade”

entre os fregueses. Entretanto, é uma comunidade com roupagem nova: o “mundo” é a

cidade, o sistema urbano-industrial – muitíssimo mais amplo que ela. Assim, o botequim como

“comunidade” transforma-se numa “ótica” que contribui para dar sentido àquele mundo,

interpretando-o. Além disso, frequentar o botequim, na medida em que ele é parte do “novo

mundo”, é “conquistar” o sistema urbano-industrial. O freguês sente-se integrado e

participante de um todo mais amplo, enquanto parte de um microcosmo que é, ao mesmo

tempo, uma defesa contra o macrocosmo desconhecido e incompreensível.26

Em resumo, o botequim é o símbolo de um esforço no sentido de participar de um

universo novo (e uma “ponte” para isso) por parte de certos grupos desamparados pela

ruptura dos esquemas referenciais da “sociedade tradicional”.

Observação Final

É importante lembrar que este texto está claramente datado (sua primeira edição tem

quase meio século), como fica evidente pelo peso, na época de sua redação original, da

hegemonia parsoniana e sua influência no que ficou conhecido como teoria da modernização.

Esta reedição sofreu apenas mínimas alterações de forma, pois não faria sentido tentar

atualizá-lo, mesmo considerando que, ao longo desse tempo, minha perspectiva teórico-

metodológica tenha mudado consideravelmente. Desnecessário acrescentar que esta

observação procura tão somente contextualizar o artigo e não implica renegá-lo.

-- PARA CITAR ESSE ARTIGO SILVA, Luis Antonio Machado. O Significado do Botequim. Enfoques - revista dos alunos do PPGSA-UFRJ, v.10(1), maio 2011. Online. pp. 115-136. http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ ~enfoques/

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26 Os aspectos complementares da frequência ao botequim e à birosca, por parte do favelado, podem, por analogia, explicar melhor o exposto. O birosqueiro, na maioria das vezes, é também favelado, como faveladas são as pessoas que passam nas imediações e os demais fregueses. Isto confere à birosca um caráter “caseiro”, que coloca a ida ao botequim no nível de algo como uma participação ativa no macrocosmo social. Para ir ao botequim, as pessoas devem vestir-se melhor, prestar mais atenção ao modo de falar, observar melhor o ambiente etc. (Aos domingos, muitos fregueses não vão ao botequim. Seria uma forma de descansar da tensão provocada pela tentativa de assumir o mundo “supracomunitário”?).