o poder em perspectiva (org.)
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ORGANIZAÇÃO:PROGRAMA DE ENSINO TUTORIAL – CIÊNCIAS SOCIAIS – UFMG.
MEMBROS DO PROGRAMA:ANA LÚCIA MODESTO (TUTORA DO PET-CS)
CAMILA GOMES CORDEIRO CAROLINE FERREIRA ROSA
FERNANDO SALUMFERNANDO VIEIRA FREITAS
ISABELA VILELA CHIMELIJÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHO
MÁRCIO TADEU MAIA DE ALMEIDA MALTAMATHEUS DE SÁ MORAIVA
MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHONATHÁLIA DE ÁVILA DUARTE
RICARDO BERNARDES PEREIRAROBERTO ROMEROSOFIA RODRIGUES
VIVIANE RIBEIRO CUNHA
EDITORES:FERNANDO VIEIRA FREITAS
JÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHOMÁRCIO TADEU MAIA DE ALMEIDA MALTA
MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHO
REVISORES:JÚLIO CÉSAR RUAS ABREU FILHO
MAURÍCIO MACHADO SIQUEIRA FILHO
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:MARCOS DE OLIVEIRA LARA
CAPA:????????????????
IMPRESSÃO:SOGRAFE - EDITORA E GRÁFICA LTDA
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Agradecemos o apoio do departamento de Sociologia e Antropologia
da UFMG (SOA), do departamento de Ciência Política da UFMG (DCP), da
Diretoria da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, assim como dos
autores que contribuíram com nosso projeto através do envio dos textos
aqui reunidos e publicados. Prestamos especial agradecimento à professo-
ra Ana Lúcia Modesto, tutora do Programa de Ensino Tutorial das Ciên-
cias Sociais da UFMG (PET-CS), pela atenção e dedicação que tornaram
possível a concretização da presente obra, bem como a todos os colegas
do PET-CS que se interessaram e contribuíram de alguma maneira para a
realização deste livro.
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A Jornada de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), que acontece anualmente, é o maior evento realizado pelo
grupo PET – Ciências Sociais da UFMG (PET-CS). A Jornada reúne profes-
sores, pesquisadores e estudantes das ciências humanas com o intuito de
discutir temas caros à Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Realizada
há quase uma década, nossa Jornada já está firmemente ancorada no ca-
lendário acadêmico do curso de ciências sociais.
Os textos apresentados na terceira edição da Jornada, que se dedi-
cou ao pensamento de Claude Lévi-Strauss, foram organizados para publi-
cação. O resultado foi o livro Lévi-Strauss: Leituras Brasileiras. Tal iniciati-
va do PET-CS foi muito bem recebida pelo meio acadêmico.
Mais recentemente, no segundo semestre de 2010, ocorreu a VII
Jornada de Ciências Sociais que abordou o tema “poder”. Com o título O
Poder em Perspectiva, o evento reuniu docentes de várias áreas, como Fi-
losofia e Psicologia, além das ciências sociais. Durante três semanas foram
realizados minicursos e conferências, que abriram espaço para uma am-
pla discussão sobre o assunto. O evento O Poder em Perspectiva ocorreu
em plena época de eleições presidenciais, e teve relevância e repercussão
tamanhas que o grupo PET-CS decidiu por reunir em um livro os textos
apresentados pelos pesquisadores, que são os seguintes: Alcida Rita Ramos
– professora titular emérita da Universidade de Brasília; Vera Alice Cardo-
so da Silva – professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); Izabel Friche Passos – professora associada do Departamento de
Psicologia e membro permanente do Programa de Pós-graduação em Psi-
cologia (Mestrado e Doutorado) da UFMG; Helton Machado Adverse - pro-
fessor adjunto do Departamento de Filosofia da UFMG; Renato Sztutman –
professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo;
Guilherme Castelo Branco – professor associado da Universidade Federal
do Rio de Janeiro; Fernando Filgueiras – professor adjunto da UFMG, no
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Departamento de Ciência Política; Renarde Freire Nobre – professor ad-
junto da UFMG, no Departamento de Sociologia e Antropologia (SOA); Ka-
renina Vieira Andrade – Professora Adjunta da UFMG, no SOA; Rogério
Duarte do Pateo – Professor adjunto da UFMG, também no SOA.
A VII Jornada de Ciências Sociais – O Poder em Perspectiva aconte-
ceu ao longo de três meses – setembro, outubro e novembro. Em setembro,
foram realizadas mesas de discussão sobre o pensamento de Michel Fou-
cault. Os pesquisadores convidados para esta primeira fase do nosso evento
discutiram a respeito dos instrumentos teóricos que o autor francês propõe
para análise das técnicas de poder. Em função do caráter transdisciplinar
do pensamento foucaultiano, foram realizados debates que não se ativeram
apenas ao campo das ciências sociais.
A conferência de abertura foi ministrada pelo professor do departa-
mento de filosofia da UFMG Helton Adverse. Intitulada Foucault e as ge-
nealogias, a conferência, e agora texto publicado neste livro, tratou de uma
mudança importante no percurso intelectual de Foucault: a passagem da
arqueologia do saber para a genealogia do poder.
Após a conferência de abertura, o professor do departamento de fi-
losofia da UFRJ Guilherme Castelo Branco ministrou o minicurso Michel
Foucault: Técnicas de Poder e Biopolítica. Branco discute, no texto apre-
sentado aqui, como Foucault analisou as técnicas de controle do corpo e o
agenciamento entre o saber-poder médico e o saber-poder jurídico.
A conferência de encerramento contou com a participação da pro-
fessora do departamento de psicologia da UFMG Izabel Friche Passos. Na
ocasião, Passos discutiu sobre as noções utilizadas por Foucault de gene-
alogia, arqueologia e arquivo, centrais para a compreensão do modo fou-
caultiano de análise histórica.
O professor do departamento de sociologia da UFMG Renarde Freire
Nobre – embora não tenha sido conferencista da VII Jornada de Ciências
Sociais – muito gentilmente aceitou participar da elaboração do presente
livro enviando o texto Foucault, as ciências sociais e o problema do sujeito.
Neste texto, Nobre investiga as controvérsias suscitadas pela perspectiva
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“prática histórico-filosófica” de Foucault em relação aos paradigmas da an-
tropologia, da sociologia e da ciência política, apontando os contrastes mais
significativos. Por fim, o autor procurar demonstrar o incômodo das ciên-
cias sociais com o “problema do sujeito” e os seus modos de subjetivação.
A Segunda fase da VII Jornada de Ciências Sociais se ateve ao campo
da ciência política, o que nos rendeu dois textos que temos o prazer de incluir
nesta publicação. O primeiro deles tem como autora a professora do depar-
tamento de Ciência Política da UFMG, Vera Alice Cardoso da Silva, que mi-
nistrou a conferência intitulada “A Natureza e as Formas de Manifestação do
Poder político”. Silva busca tecer em seu ensaio uma sistematização dos pon-
tos mais relevantes do debate acerca da natureza do poder político, relacio-
nando-o aos temas da liberdade individual e do controle social. Resgatando
importantes pensadores do século passado, Silva aponta suas divergências e
convergências teóricas, indicando como estas diferenças afetaram o desen-
volvimento das discussões modernas sobre a natureza do poder político.
O segundo trabalho de ciência política aqui publicado é de autoria
do Professor Fernando Filgueiras. Seu texto é um exercício de análise das
relações entre o poder democrático e a corrupção. A partir de uma análise
da interação entre os desenhos institucionais da democracia representati-
va e a moralidade política inerente a uma sociedade democrática, o autor
procurou problematizar a intrincada relação entre instituição e valores. O
texto nos sugere que uma compreensão mais clara do fenômeno da corrup-
ção deve ser pensada a partir de uma perspectiva que consiga conjugar de
um lado a problemática da ação individual e de outro as falhas institucio-
nais que favorecem a emergência da corrupção. Na segunda seção do texto,
têm-se ainda um afunilamento da discussão para uma análise do caso bra-
sileiro onde o paradoxo entre uma participação política crescente após o re-
gime de exceção, e uma também crescente onda de denúncias de corrupção
nas três esferas permite perceber a maneira como o presidencialismo de
coalização no Brasil, apesar de ter assegurado uma maior governabilidade,
acabou por determinar um enfraquecimento da legitimidade dos mecanis-
mos de representação política.
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A terceira e última etapa da VII Jornada de Ciências Sociais, O Poder
em Perspectiva, se dedicou à Antropologia. O poder sob perspectiva antro-
pológica teve como foco o mundo ameríndio das terras baixas da América
do Sul. Alcida Rita Ramos demonstra em seu texto a maneira como Brasil,
Argentina e Colômbia construíram suas ideologias nacionais sobre “escom-
bros indígenas” pautados em específicas visões ideais do Índio, retiradas de
um determinado “imaginário cultural” nacional. A partir dos mitos de ori-
gem das Nações e de sua literatura bem como de uma análise da legislação e
aplicação da política indigenista, a autora demonstra a variedade e contraste
de visões sobre os indígenas, conformando um determinado ethos estatal.
Passando das relações com o Estado chegamos àquelas contra o Es-
tado. Renato Sztutman procurou sublinhar, aqui, a atualidade das proposi-
ções de Pierre Clastres a partir de exemplos etnográficos recentes. Com isso
o autor buscou apontar para uma filosofia política “contra o Estado” que
pode ser vista nos mitos, ritos e exegeses de sábios indígenas, nas práticas
da chefia, na guerra ou ainda nas acusações de feitiçaria. Sztutman ressalta
ainda a potência do caráter paradoxal e abertura ensaística dos escritos de
Clastres, virtudes a serem atualizadas nos estudos etnológicos atuais.
A contribuição de Rogério Duarte do Pateo destinou-se a discutir os
conflitos intercomunitários entre os grupos indígenas Yanomami a partir
da recapitulação de uma extensa discussão dos modelos analíticos empre-
gados para compreendê-los desde os anos de 1960. A partir dos dados co-
letados em sua pesquisa com os Yanomami da Serra das Surucucus (RR/
Brasil), o autor pretendeu mostrar as variações na dinâmica sociopolítica
entre grupos quando observados a partir de uma perspectiva diacrônica.
Para tanto, o autor vale-se de uma descrição densa dos princípios que re-
gem as relações intercomunitárias entre eles, com vista a demonstrar a ma-
neira como os reides massivos a que se geralmente se identifica a guerra Ya-
nomami constituem apenas uma parte de um universo sócio-cosmológico
muito mais amplo, permeado pelo idioma da predação.
Karenina Vieira Andrade – a partir de sua pesquisa entre os ye’kuana
localizados na aldeia de Fuduwaaduinha (RR/Brasil), situada no alto Rio
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Auaris – abordará o conceito de ädhajö, ligado à chefatura ye’kuana. Seu
texto tem como objetivo realizar uma análise da estrutura política Ye’kuana
levando em consideração a epistemologia nativa revelada no corpo das
narrativas wätunnä. Tem-se ainda uma descrição da ättä, tradicional casa
ye’kuana que replicaria em sua estrutura a configuração do cosmos invisí-
vel. Assim, a autora irá buscar correlações cosmológicas entre chefe e casa,
ädhajö e ättä, um representando a totalidade do corpo social, a outra fun-
cionando como uma expressão codificada do cosmos.
Andrade aponta ainda para uma análise do papel dos cantores e histo-
riadores Ye’kuana. Esses funcionariam como elo entre as unidades (aldeias)
ye’kuana, criando uma rede onde as histórias, canções e idioma seriam com-
partilhados. Na pista clastreana, Andrade aponta historiadores e cantores
como espécies de contrapeso à tendência à centralização do poder nas mãos
do chefe de aldeia, levando a ideia de uma oscilação entre forças centrípetas
e centrífugas; a uma perpétua tensão entre a autonomia das unidades que
compõem a rede e a força conectiva engendrada pela própria rede.
A VII Jornada de Ciências Sociais – O poder em Perspectiva – e,
agora, esta coletânea de textos representam o interesse dos alunos do PET-
-CS pela investigação e pela crítica de um dos objetos cruciais das ciências
humanas: o “poder”. Buscando conhecer e explorar as diversas perspecti-
vas sobre o assunto, o evento e o livro não poderiam possuir outro caráter
que não o da transdisciplinaridade, imprescindível para a abordagem de
tal objeto. A oportunidade de ter acesso e poder trabalhar com textos diver-
sos que, sem dúvida alguma, contribuem muito para o avanço dos estudos
sobre o poder, muito nos lisonjeia. É com enorme satisfação que o grupo
PET-CS realiza este projeto.
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SUMÁRIO
FOUCAULT, AS CIÊNCIAS SOCIAIS E O PROBLEMA DO SUJEITO ..........................15
Renarde Freire Nobre
FOUCAULT E A GENEALOGIA DO PODER .................................................................37
Helton Adverse
MICHEL FOUCAULT: TÉCNICAS DE PODER E BIOPOLÍTICA ..................................65
Guilherme Castelo Branco
A NOÇÃO DE DISCURSO EM MICHEL FOUCAULT. ...................................................79
Izabel Friche Passos
A NATUREZA E AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO
DO PODER POLÍTICO: DEBATES TEÓRICOS ..............................................................89
Vera Alice Cardoso Silva
A CORRUPÇÃO DO PODER DEMOCRÁTICO .............................................................. 111
Fernando Filgueiras
CHEFIA E REPRESENTAÇÃO ENTRE OS YE’KUANA ............................................... 133
Karenina Vieira Andrade
OS INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO
DAS NAÇÕES SUL-AMERICANAS .............................................................................. 153
Alcida Rita Ramos
O CONTRA O ESTADO E AS POLÍTICAS AMERÍNDIAS
ALGUMAS MEDITAÇÕES CLASTREANAS .................................................................. 183
Renato Sztutman
ANTAGONISMO EM PROCESSO:
UMA APROXIMAÇÃO À GUERRA YANOMAMI ......................................................... 215
Rogerio Duarte do Pateo
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FOUCAULT, AS CIÊNCIAS SOCIAIS
E O PROBLEMA DO SUJEITO
Renarde Freire Nobre1
Intróito
Certa ocasião Foucault situou o seu pensamento numa perspectiva
por ele denominada de “prática histórico-filosófica”.2 Esta se encontraria
na esteira do “movimento” da Aufklãrung alemã, apropriada de forma par-
ticular e conforme os direcionamentos que o pensador francês dá às suas
pesquisas. A região de enlace entre a filosofia e a história é uma encruzi-
lhada com diferentes interseções, pondo em jogo dinâmico homem e acon-
tecimento, indivíduo e poder, sujeito e verdade. À história pertencem as
estruturas de poderes e os regimes de discursos, o que a filosofia e sua alma
inquieta vêm fustigar para verificar o estatuto do sujeito em face do regime
das verdades.
Foucault procura elaborar uma crítica da nossa contemporaneida-
de pelo reconhecimento do inevitável enredamento dos sujeitos em con-
dições históricas, tratando-as como relações entre poder e saber. Ele real-
ça as duas dimensões da trama filosófica de Nietzsche com originalidade
e de modo ainda mais incisivo, lançando-se radicalmente para a história.
A “vontade de verdade” – expressão nietzschiana para a “vontade de po-
tência” na cultura ocidental – é, então, investigada conforme referências
práticas e efeitos de subjetivação.3
Postando-se na encruzilhada das conexões decisivas entre dispositi-
vos de poder e regimes de verdade, Foucault faz um pacto com o daimon do
1 Professor adjunto de Ciências Sociais da UFMG
2 Foucault, M.. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung). Disponível em www.vsites.unb.br/fe/tef/filoes-co/iluminismo.pdf. No original: “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklãrung”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, vol.82, número 2, pp.35-64, avril/juin 1990.
3 Foucault, M. A ordem do discurso, p.14-21.
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pensamento. Ele o faz como pensador-prático, aquele que, pela esgrima de
uma escrita ensaística, embaralha os significados e subverte problemáticas
de modo a: por um lado, manipular fontes documentais e realizar associa-
ções desprezadas por conhecimentos científicos e propagandas ideológicas,
e, por outro lado, pôr em tensão a relação do sujeito com a verdade ao se
atentar para o lastro dos discursos com as práticas sociais e os artefatos de
poder. Assim é que, da historia, se recolhe peças para a ficção do pensa-
mento; da filosofia, se retira a criticidade do pensamento; e, da escrita, se
obtém os recursos para a montagem da intriga.
O pensamento fluindo nas asas da escrita como ensaio teórico, fa-
zendo da objetividade um problema de inteligência, profundidade, crítica
e provocação, em vez de método, testabilidade, neutralidade e verdade. A
“prática histórico-filosófica” de Foucault não se coaduna com os compro-
missos da teoria racional. A objetividade não é entendida como correta
averiguação histórico-empírica nem fidelidade aos fatos, mas como a capa-
cidade de levar o pensamento a regiões insondáveis, liberar olhares, atra-
vessar a muralha formada pelas imagens e designações dominantes, para
melhor detectar os artifícios dos jogos de poder e saber.
Compreender os artifícios é um modo de desmascarar a própria pre-
tensão à neutralidade, pois se põe em cheque a crença cultivada no Ociden-
te de que poder e saber seriam dimensões de ordens distintas, contami-
nando-se o campo das verdades de justificativas metafísicas e racionalistas,
condenando o poder a certa cegueira, castigo de Édipo por querer acumular
tirania e verdade.4 Mas o poder é tudo menos cego. Aliás, enxerga muito
bem, com requinte de detalhes panópticos. A marca distintiva e indigesta
da intriga histórica foucaultiana é mostrar que o saber não vinga sem se su-
jar no poder e o poder não se perpetua sem o suporte do saber. A Foucault
interessa o saber enquanto referido ao poder. É por isso que, em relação aos
discursos dominantes, o que ele procura realizar é uma
4 Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, pp.50-51.
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(...) insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos,
os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurrei-
ção, sobretudo, contra os efeitos centralizadores de poder que são
vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso cientí-
fico organizado no interior de uma sociedade como a nossa.5
O melhor flanco de Foucault não é epistemológico, mas o da crítica
histórica. O papel da crítica consiste em analisar e expor os arranjos entre
poder, verdade e sujeito, dando, assim, a sua contribuição para a “ontologia
de nós mesmos”, o que Foucault julgava ser o propósito maior da Aufk-
lãrung.6
A partir do pensamento “insurreto” e “de fora” do campo da objeti-
vidade racionalista, é que Foucault será posto em relação com as ciências
sociais, sem o intuito de confrontação diante do racionalismo ou da cien-
tificidade. E não se trata sequer de colocar os conhecimentos em diálogo.
De fato, seria de surdos. A relação com as ciências sociais não é de com-
plementaridade nem concorrência. Há, sim, diferenças inconciliáveis. Uma
aproximação demasiada é uma artificialidade à custa da deturpação de
pressupostos. São dois, então, os propósitos deste texto Na primeira seção,
analisar os desajustes da “prática histórico-filosófica” com os enunciados
da antropologia, da sociologia e da política, procurando contrastes signifi-
cativos. Na sequência, explorar uma consequência mais geral dos contras-
tes: o estranhamento nas ciências sociais do “problema do sujeito”, ponto
nevrálgico das conexões entre pode e saber. O que estará em pauta não é
o status de “ciências”, mas a qualificação “social”, com a qual a sociologia,
a antropologia e a ciência política não podem a percepção e o tratamento
devidamente crítico do tema do sujeito e os seus modos de subjetivação.
5 Foucault, M. Em defesa da sociedade, p.14.
6 Foucault, M. O que é o Iluminismo. Disponível em: www.vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/iluminismo.pdf. No original: “Qu’est-ce que la lumière”, p.688. In Dits écrits – Vol. IV. Paris: Gallimard, 1994.
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18 -
Foucault e as ciências sociais
Foucault não tratou exaustivamente de nenhuma das disciplinas
que compõem as ciências sociais. Elas nunca foram objetos diletos de suas
interpretações. Porém, quando são consideradas, aparecem atreladas a
paradigmas conforme suas filiações: a antropologia associada à etnologia
francesa; a ciência política associada à teoria política moderna; e a socio-
logia associada à da economia clássica. O fato de haver versões específicas
para cada disciplina – quando elas carregam desmembramentos internos e
agregaram filiações diversas, exprimindo um pluralismo - não constitui um
impeditivo para os propósitos deste texto. E isso por duas razões.
A primeira é a de que as versões apresentadas por Foucault, por mais
estereotipadas que possam parecer, ocupam um lugar efetivamente cativo
e, com variações, recobrem a diversidade de cada disciplina, ao menos se se
pensa nas teorias mais robustas e típicas. Assim, sem desconsiderar as sóli-
das distinções e mesmo oposições na fauna teórica que são a antropologia,
a ciência política e a sociologia, pode-se dizer que cada uma preserva uma
imagem fundamental, como a última palavra a ser mantida, mesmo que si-
lenciosa ou disfarçadamente; cada uma tem a sua viga intocável, ainda que
o edifício a encubra e siga a crescer e se descaracterizar. Assim é que, em
Foucault: as teorias antropológicas, por sua deferência ao trabalho etnoló-
gico, abrigam a imagem das formações culturais como consensos simbóli-
cos e ritualísticos, mais visíveis no contexto das comunidades primitivas,
sociedades “cruas”; as teorias políticas abrigam a imagem da soberania le-
gal incrustada na formação e racionalização do Estado, conforme a moder-
na filosofia política; e as teorias sociológicas abrigam a imagem da ordem
como integração de conflitos através de regras, em franca similaridade com
os parâmetros das sociedades capitalistas.
A segunda razão de não haver inconvenientes para os contrastes está
precisamente no fato decisivo de que um melhor resultado exige a apro-
priação de outros elementos do pensamento de Foucault para além da ca-
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- 19
racterização específica de cada disciplina. Portanto, pelas razões expostas,
este texto não se interessará pela diversidade e as querelas nas ciências so-
ciais nem se limitará às considerações de Foucault a respeito delas, mas
procurará pensá-las em relação ao caráter do empreendimento foucaultia-
no como “prática histórico-filosófica”.
Comecemos pela antropologia. Foucault tratou da disciplina via re-
flexão sobre a etnologia de extração francesa e matriz estruturalista.7 Toda e
qualquer teoria, quer estruturalista ou não, só se justifica plenamente antro-
pológica na condição do fazer etnológico, o que significa pensar “as formas
singulares de cada cultura, as diferenças que a opõe às outras, os limites
pelos quais se define e se fecha sobre sua própria coerência (...)”.8 Lastreada
no método etnológico, a antropologia carrega a imagem da unidade cultural,
quer esta se apresente como estruturas míticas, regras de aliança, valores
compartilhados ou linguagens grupais. O importante é o motivo de fundo:
as formações coletivas como identidades simbólicas. Essa perspectiva pri-
mária faz com que a antropologia se incline fortemente para o princípio do
“relativismo cultural”, precisamente porque opera a partir da ideia de que
toda associação humana é um universo simbólico específico, no interior do
qual se definem sentidos como os de unidade, reciprocidade, pertinência.
Em contraponto à antropologia e suas unidades simbolicamente
sustentadas e autojustificadas, destaca-se em Foucault a tessitura histórica
das visibilidades do poder e dos enunciados do saber, configurando uma
“acontecimentalização” [événementalisation]. Com essa expressão, um
tanto bisonha, Foucault reivindica que as realidades culturais sejam anali-
sadas em sua historicidade entendida como “as condições que tornam acei-
tável uma singularidade cuja inteligibilidade se estabelece pelo reconheci-
mento das interações e das estratégias às quais ela se integra”.9 A noção de
“singularidade” não reporta a um estatuto de autonomia ou coesão cultural,
7 Não se considera neste texto o sentido filosófico com que Foucault usa o termo “antropologia”, referindo-se notadamente ao empreendimento kantiano de restituição da transcendência a parir da assimilação do empírico.
8 Foucault, M. As palavras e as coisas, p.523.
9 Foucault, M. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung).
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mas à lógica da acontecimentalização, cabendo ao trabalho “genealógico”
verificar as conjunções de emergência e amarração de uma singularidade
cultural ligada a múltiplos fatores.
Há uma passagem em que Foucault sintetiza o essencial na ideia da
história como espaço de acontecimentos:
A questão seria antes essa: como a indissociabilidade do sa-
ber e do poder no jogo das interações e das estratégias múltiplas
pode induzir ao mesmo tempo singularidades que se fixam a partir
de suas condições de aceitabilidade, e um campo de possíveis, de
aberturas, de indecisões, de retornos e de deslocamentos eventu-
ais que os tornam frágeis, que os tornam impermanentes, que fa-
zem desses efeitos dos acontecimentos nada mais, nada menos que
acontecimentos?10
A antropologia tende a conceber a atualização ou multiplicação da
estrutura comunal humana em diversidades irredutíveis a qualquer deno-
minador comum, a não ser a noção última e afim à disciplina que é a do
“relativismo cultural”, xodó da alma etnológica. Diferentemente, para Fou-
cault, é a acontecimentalização que se apresenta como matéria e símbolo,
ou, mais precisamente, como estratégias de poder e arranjos discursivos.
Não o homem como ser codificado conforme o compartilhar de realidades
simbólicas, mas, sim, o homem envolto em um plano de recursos estraté-
gicos de poder e uma grade de matrizes discursivas, produtoras, não de
coesão ou do “nós”, mas de normalidade.
Talvez o olhar de Foucault esteja demasiado colado às formações so-
ciais modernas, ao passo que a antropologia nasceu e vicejou voltada para
o mais antigo, daí diálogo de surdos. Na modernidade é que se verifica a
proliferação de mecanismos que ligam os indivíduos a aparelhos sociais –
normativos, institucionais, burocráticos. Pelos aparelhos, os indivíduos são
sequestrados, corrigidos, normatizados, direcionados, incluídos, por isso
Foucault chama-os de “aparelhos de normalização de homens”, reunidos
na famosa noção de “poder disciplinar”. Contrariamente ao regime de con-
10 Foucault, M. Idem.
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- 21
trole primitivo, o poder não marca na carne e nem se mantém na posição
de signo soberano, mas qualifica o corpo como alma “dócil” e “produtiva”.
Se essa projeção do poder para o núcleo da cena não desautoriza as antro-
pologias e suas codificações culturais, parece julgá-las mais adequadas ao
tradicional.
Tomemos os pensamentos, porém, não pela referência histórica,
mas a partir dos pressupostos ou pontos de vista últimos. Bem esquema-
ticamente, enquanto Foucault reconhece disposições efetivas de governo
dos homens e seus agenciamentos com as discursividades, o ponto de vista
antropológico reconhece códigos e ritualísticas com os quais se amalgama
uma determinada comunidade – o que se replica também nas pesquisas so-
bre “tribos” urbanas. Ao considerar que mais valem as estratégicas discur-
sivamente legitimadas do que as codificações, e que mais valem os regimes
de verdade apoiados em instrumentos práticos do que as crenças e os ritos,
Foucault crava uma distância intransponível para com a antropologia. Se
se pensa na etnologia mais original, a homeostase do sistema de alianças -
estruturado como corpo de regras sobre o sagrado e o profano, o permitido
e o proibido - é quebrada quando dispositivos de controle e governo se im-
põem como “táticas móveis, polimorfas e conjunturais”.11
Imagens caras à antropologia/etnologia – como as de “integração”,
“unidade”, “signos”, “comunidade” - não encontram guarita em um pen-
samento que, em vez de conceber o que é “comum”, pensa em relações,
estratégias e resistências, e que, ao conceber as relações, não as pensa como
sinônimo de regras de aliança ou como unidade mítica ou agenciamento
simbólico, mas como interações de homens relacionados às teias de pode-
res e saberes. Consequentemente, não é possível extrair da matriz analítica
foucaultiana o acolhimento do homem como um ser codificado, envolto em
uma variedade de signos e designações emblemáticas, cujos conjuntos se-
riam irredutíveis entre si e igualmente dignos de respeito. Ao desconsiderar
o relativismo cultural, Foucault fere fundo na alma antropológica.
11 Foucault, M. A história da sexualidade - Vol.I, p.101.
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22 -
Passemos para a ciência política, que recebe da teoria política mo-
derna o postulado da soberania e seu sentido de legitimidade. Por este se
destaca a visão das instâncias e dos agentes da Lei como constituindo os
mecanismos principais de exercício do poder e a visão do Estado moderno
como centro da soberania. Mais esquematicamente, a noção de soberania
agrega as concepções de um “sujeito” do poder (o Chefe, o Principie, o
Rei, os governantes), de uma “estrutura” de poder (a Tribo, o Estado), de
um sentido de “Legitimidade” (a tradição, a lei) e do poder como “pro-
priedade” (algo que se possuiu ou não). E quando a Teoria Política, de
base filosófica e moral, especificou-se em ciência política, as concepções se
mantiveram firmes.
Contrariamente à teoria (ou ciência) política, Foucault vai propor
uma analítica política que substitui o sujeito pelos dispositivos práticos e
dinâmicos de poder, os quais provêm de todos os lugares, sem um centro
definido, dispersos em micropolíticas, algo, portanto, que não se pode pos-
suir, uma vez que é eminentemente operatório e delgado, e que se mantém,
não por ser legítimo, mas porque designa a situação estratégica de domina-
ção que estrutura as sociedades de controle. Há uma passagem síntese do
autor sobre o tema:
Onipresença do poder: (...) porque se produz a cada instan-
te, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto
e outro. O poder está em toda parte (...) porque provém de todos os
lugares (...) o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não
é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.12
Como se viu, essa imagem se aplica melhor às sociedades modernas,
onde se verifica a proliferação de mecanismos de normalização e de gover-
no por diferentes campos sociais. As situações de poder são “relações”, mas
estas concebidas como integrações dinâmicas, correlações de forças, com
acordos e tensões, encontros entre “pontos”. As relações de poder são ditas
“uma situação estratégica complexa”, o que significa que o poder é eminen-
12 Foucault, M. História da sexualidade – Vol.I, p.89.
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temente ativo, o seu modus operandi são os dispositivos através dos quais
homens governam homens, normas moldam sujeitos, discursos infiltram
enunciados. Os arranjos que se formam parecem impor aos homens o des-
tino de seguirem um mote único de dominação, o qual, contudo, está longe
de ser homogêneo, fechado, totalitário.
O poder não tem a forma de um centro soberano, mas a de um fei-
xe de forças, uma rede de dispositivos, que articulam pontos – indivíduos,
interesses, produtos, conhecimentos – pela condução de ações. O “centro”
partido em um emaranhado de tendências racionalizantes, que disciplinam,
dividem, controlam e gerenciam corpos e almas. As emergências históricas,
inicialmente arbitrárias ou prosaicas, vão ganhando corpo e se cristalizan-
do aos serem apropriadas por perspectivas de forças, práticas e discursivas,
anelando-se em arranjos extensos e de mais longa duração, tendências que,
no entanto, não contam com garantias lógicas ou transcendentais e nem
com horizontes definidos, por mais maciço e maquínico que se apresentem.
No contraste com a visão tradicional do poder e seu exercício, pode-
-se dizer que Foucault relevou a dominação sobre a soberania, a sujeição
sobre a legitimação, o funcionamento sobre o fundamento, a relação sobre
a posse, a norma disciplinar sobre os ritos coercitivos e, assim, a produção
sobre a repressão. O poder não é soberano, não possui um fundamento.
É essencialmente dinâmico e produtivo. No cômputo de uma dada situa-
ção de poder, as forças se atritam, impõem sujeições, geram contradições
e deslocamentos, abrindo-se possibilidades de luta e de “linhas de fuga”. E
se o poder designa uma rede de instrumentos atrelados a enunciados com
efeitos de subjetivação é porque ele é eminentemente operativo, ou, no ter-
mo de Foucault, “produtivo”. “Positividade” do poder, no sentido que ele
opera, organiza, direciona, produz, conduz, partindo de baixo para cima,
dos microagenciamentos às grandes formações institucionais e sistemas
de legalidades. Desse modo Foucault vai de encontro a uma das imagens
mais caras à teoria da soberania lastreada na Lei, na medida em que esta
consagra o caráter coercitivo e repressivo do exercício do poder. Hobbes é
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exímio mentor do modelo. A imagem repressiva fez-se, de certa maneira,
arquetípica, pois, dificilmente conseguimos imaginar o poder sem as faces
do obrigatório e do proibido. Porém, para Foucault, a repressão é, antes,
decorrência secundária do que direção primária, meio e não fim.
O poder representa uma rede de ações e efeitos. O mote da domina-
ção não é a soberania e a contenção, mas a eficácia tática na disciplina de
corpos e mentes para deles extrair mais, gerenciando e canalizando forças
humanas em ambientes planejados, procedimentos padrões e rotinas orga-
nizadas. Longe de dizer “sim”, o poder diz, no âmbito objetivo e represen-
tacional: faz acontecer, dispõe competência, conforma individualizações,
aplica saberes. Não há Soberania, há uma situação estratégica complexa
baseada em ações que estabelecem, com os discursos, pontos de apoio e
disjunções, produzindo-se efeitos de normalização e verdade.
O postulado da soberania poderia ter reaparecido no momento em
que Foucault veio a acentuar o papel do Estado, quando do tratamento de
uma nova modalidade de poder que se acresce ao poder disciplinar, o “bio-
poder”. Porém, o que se tem é até mesmo uma inversão do sentido clássico
de soberania, uma vez que não se trata mais do poder de “fazer morrer”,
mas, ao contrário, “fazer viver”.13 Associado ao “biopoder”, o Estado não é
pensado como unidade institucional, mas complexo de dispositivos políti-
cos que se dedicam, não a marcar corpos nem disciplinar indivíduos, mas a
estratificar e regulamentar populações. As políticas se voltam para eventos
naturais – nascimento, procriação, doença e morte – a fim de promover
ações que visam mensurar, controlar e regulamentar comportamentos e
tendências macro. E quantos agenciamentos não persistem e são recriados
entre o poder de Estado e os saberes científicos quando a vida torna-se ob-
jeto das políticas públicas em razão de produtividade, segurança e duração?
O principal segue inalterado: a dispersão e a promiscuidade dos contatos
entre poder e saber.
Quanto à sociologia, Foucault a situa no âmbito das ciências huma-
nas, juntamente com a psicologia e a linguística, todas desenvolvidas no sé-
13 Foucault, M. Em defesa da sociedade, p. 287.
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culo XIX. Elas retiram das epistemes do século anterior - ligadas à economia
clássica, à biologia e a filologia, respectivamente - os elementos aos quais
darão novos direcionamentos.14 As epistemes do século XVIII vinculavam os
homens a três grandes positividades empíricas: o trabalho, a vida e a lingua-
gem. Como um “acontecimento da ordem do saber”, as ciências humanas,
por sua vez, herdam essas empiricidades, mas não de modo à delas extrair
as leis próprias de funcionamento, como antes, mas com o objetivo de pro-
blematizarem a condição ambígua do homem como produto e sujeito das
relações de trabalho, do mundo da vida e dos contextos linguísticos.
No caso, somente nos interessa a sociologia. Foucault a define “fun-
damentalmente [como] um estudo do homem em termos de regras e confli-
tos”, vinculando-a ao mundo do trabalho, primeiramente tematizado pela
economia clássica, pois,
Na superfície de projeção da economia o homem aparece
enquanto tem necessidades e desejos, enquanto busca satisfazê-
-los, enquanto, pois, tem interesses, visa a lucros, opõe-se a outros
homens; em suma, ele aparece numa irredutível situação de con-
flito; a esses conflitos ele se esquiva, dele foge ou chega a dominá-
-los (...) instaura um conjunto de regras que são, ao mesmo tempo,
limitação e dilatação do conflito.15
A sociologia herda a índole interessada e conflituosa das relações de
produção, aplicando-a, replicando-a e diferenciando-a na vasta dimensão
do social, mas sempre com o empenho de decifrar, quando não ajudar a
fundar e manter, as regras através das quais instituições e agentes inter-
cambiam interesses e, assim, a ordem se estabelece.
Para Foucault, a sociologia é tributária da economia, mas não como
resposta intelectual ou representação ideológica. Os conhecimentos, em
geral, com sua filiação primária a uma cadeia de formulações epistêmicas,
não se reduzem à epifenômenos ou ideologias. Diferentemente de uma lei-
tura marxista ou uma visão determinista qualquer, para Foucault a socio-
14 Foucault, M. As palavras e as coisas, pp.475-536.
15 Foucault, M. Idem, p.494.
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logia se desenvolve influenciada, não pelo capitalismo diretamente, mas
pelo pensamento econômico clássico. Mesmo considerando-se a depen-
dência para com as mudanças estruturais porque passavam as sociedades
europeias, que tinham no par industrialização-urbanização a locomotiva de
todo o processo, deve-se respeitar o estatuto da sociologia como um “acon-
tecimento da ordem do saber”.
A alternativa ao determinismo não é conferir aos saberes uma sus-
tentação predominantemente especulativa ou puramente teórica. Foucault
insistiu no apontamento de uma a variedade de ganchos significativos entre
as teorias e as práticas sociais de diferentes matizes (jurídica, econômica,
sexual, etc.). A sua obra é mais um esforço para desacreditar a autonomia
do conhecimento, demonstrando como a emergência e o domínio de dife-
rentes ciências dependeram de vínculos práticos e participação ativa em
realidades configuradas como situações de poder. Um caso expressivo é a
substituição, no século XIX, dos procedimentos prático-jurídicos do “in-
quérito” pelo “exame”, com o que puderam ser edificados instrumentos dis-
ciplinares, aplicados a diferentes contextos sociais, como o manicômio, a
prisão e a família, ao mesmo tempo em que se favoreceu o desenvolvimento
de técnicas de intervenção e abordagem como a psicanálise, a criminologia
e a sociologia, dentre outros saberes.16 No mesmo espírito, o confinamento
do louco serviu de terreno fértil para emergência e aplicação da psiquiatria.
O essencial é a ideia de que os conhecimentos não reportam ao uso
correto de categorias lógicas nem brotam da mente do sujeito do conheci-
mento nem se sustentam na história do pensamento. Todo saber precisa,
acima de tudo, de condições de possibilidade práticas e antecessores epistê-
micos para se abastecer e se legitimar. Em relação a tais condições, o saber
representa, a um só tempo, apropriação, desdobramento e reorientação, ou
seja, guarda dívidas, mas ousa acontecer como discurso particular. Não é
um “produto” conforme causas, mas um “efeito” disforme com os referentes.
A insistência de Foucault na “emergência” dos saberes – assim como
o faz para as modalidades de poder – confirma as marcas da arbitrariedade
16 Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, p.12.
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e da descontinuidade nos jogos das forças, com o que ele descarta a tenta-
ção de se fixar o sentido primordial ou as causalidades fundamentais dos
fenômenos. A sociologia – e qualquer ciência - não é nem um empreendi-
mento de validade interior nem um mero efeito ideológico de forças históri-
cas. Ela é uma emergência, efeito de múltiplos determinantes, em especial
as condições epistêmicas de possibilidades e os enredamentos constituídos
com as práticas e as instituições sociais para edificação e garantia de “acei-
tabilidade”. Por isso é que Foucault não se interessa por abordar um saber
conforme o grau de coerência com a realidade, não pergunta pela verdade
do saber; ele se interessa por pensar o saber em relação ao campo das epis-
temes e às imbricações efetivas, perguntando pelas verdades sobre o saber.
No caso da sociologia, o mais sintomático no seu saber é a incon-
tornável relação com o problema da ordem e da integração, relacionado
aos referentes do conflito e da regra. Nessa diretriz a análise contrasta com
o pensamento de Foucault. Pode-se dizer que a “ordem” foucaultiana não
é feita de indivíduos e coletividades ou ação e estruturas – elementos que
levaram a sociologia à obsessiva discussão sobre qual dos termos tem a pri-
mazia da integração. A “ordem” é composta de dispositivos agenciadores
e enunciados discursivos, conexões e descolamentos entre poder e verda-
de. A “ordem” assemelha-se a um campo de forças em que as posições são
sempre planos de ações e as ações recebem resistências, de modo que os
acontecimentos históricos sofrem abalos e dispersões periódicas e guar-
dam um sentido agônico. O social é mais precisamente uma situação de
fixações, deslocamentos resistências do que integração funcional, domina-
ção estrutural ou intercâmbio racional. Nele, os homens figuram não como
“membros”, “funções” ou sequer “agentes racionais”, mas como pontos de
ancoragem e efeitos ativos de práticas e de saberes com forças de inclusão,
correção, significação, modelagem, governo. 17
17 Versões sociológicas mais contemporâneas, notadamente de extração anglo-saxão, procuraram “recuperar” o sujeito na forma de agente, que faz escolhas e toma decisões, mas, assim, decididamente, a sociologia (e também a política) perdeu o prumo e se tornou refém de modelos oriundos da economia, quando não da matemática. De todo modo, esse deslocamento e essa mistura talvez só confirmem o insight de Foucault quanto à ascendência da economia e sua lógica da troca de produtos sobre a sociologia. As tentativas sofisticadas de se substituir o agente pela idéia de “agência” pode ser um
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Foucault não compartilha o modelo da troca como visão adequada
das relações sociais, quer quando supõe “sujeitos racionais” (contratualis-
mo) quer quando supõe uma “estrutura lógica” (estruturalismo, funciona-
lismo). Mais expressivo do que os agentes e os sistemas, são os jogos de
forças, seus mecanismos, estratégias e também as resistências. As relações
sociais não são relações de troca, são relações de poder, ou seja, não são
relações baseadas em ações com lógica comunal ou cooperativa, mas ações
e instrumentos de codificação e marcação, como prescreve a tradição, ou de
condução, normalização e racionalização técnica, típicos da modernidade.
Voltado para o “histórico”, não para a “social”, Foucault desinteres-
sa-se da questão da integração dos indivíduos e dos interesses a uma ordem
estatuída conforme uma determinada lógica de relações e de regulamenta-
ções, realçando, ao contrário, o quanto há de arbitrariedade, mobilidade,
descontinuidade e deslocamento na trajetória das ações e representações.
Na “encruzilhada” dissolvem-se identidades e domínios fixos, e passa a va-
ler o corpo móvel das táticas e das resistências. Substitui-se a imagem da
integração pela imagem do jogo móvel das forças, denunciam-se as regras
e os conflitos como reféns da operação de artefatos práticos, da produção
de discursos verdadeiros e da demarcação de legalismos. E o homem, em
relação à “ordem” encontra-se em condição ambígua, pois ele é, simultane-
amente, o indivíduo enredado nas estruturas de poder e o sujeito capaz de
pensar a sua situação e, assim, potencialmente recolocar-se, quer isso se
faça solitária ou coletivamente.
Foucault pode, então, inverter e lançar uma suspeição sobre a in-
dagação sociológica básica, presa ao “problema da ordem” – como se dá
a regulamentação e a sustentação dos interesses e dos conflitos humanos
numa orquestração qualquer-, enveredando-a para o “problema do sujeito”
- como é possível aos indivíduos a crítica das verdades instituídas que re-
forçam o assujeitamento às regras e a consequente domesticação e desper-
sonalização da subjetividade. Contra a obliteração ou a redução do homem
a agente de conflitos sob a cobertura das regras, Foucault vai propor outra
refinamento analítico, mas não mexe no primado da ordem e da integração.
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imagem, a qual não é antisociológica – como se tratasse de resgatar a auto-
nomia ou a antecedência do indivíduo em relação às ações e as estruturas
sociais -, mas também e fundamentalmente não é sociológica, porque se
trata de produzir um pensamento que tome como tarefa superior – de es-
tirpe filosófica – questionar e provocar o sujeito em sua familiaridade com
as práticas e as verdades estabelecidas.
Sujeito e verdade
A sequência de diferenciações em relação aos campos das ciências
sociais se apoiou na importância que tem para Foucault a tríade poder-sa-
ber-sujeito. Agora, é o caso de se projetar o terceiro termo para o primeiro
plano.18 Se o maior legado do olhar histórico é o da destruição da crença em
qualquer metafísica do sujeito, ligando-o aos diagramas históricos dos dis-
positivos de forças, é o olhar filosófico quem faculta a reposição do sujeito
no centro da trama, não por ser mais forte ou importante, mas por ser mais
profundo e decisivo para o pensamento como “prática histórico-filosófica”.
O problema do sujeito não viceja nas ciências que têm como referen-
te o “social”, seja enfatizado como cultura, ordem ou soberania. Cada um
dessas referências congrega, enquadra e reduz o sujeito à sua maneira. A
problematização do sujeito depende, então, de uma radical fragmentação
do social, para além da ideia de grupos, setores e instituições, o que Fou-
cault faz através de uma análise das afetações do homem pelos conectivos
entre poder e saber. É no ensejo desses jogos que o sujeito vem a ser pro-
blematizado como assunto de governo e estatuto de verdade, o que corres-
ponde à pergunta pelos modos de subjetivação, questão que, nas ciências
sociais, está de antemão excluída.
O pensamento sobre os modos de subjetivação vê-se levado a con-
siderar o homem a partir do problema da verdade. Isso não apenas por-
que o sujeito acontece necessariamente dentro da ordem da linguagem e
da representação, mas pelo quanto os discursos incidem sobre os sujeitos
18 Gros, Frédéric. “Situação do curso”, in Foucault, M. A Hermenêutica do sujeito, pág.620.
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com poder de verdade. Foucault rejeita a crítica como “analítica da verda-
de” – o que significaria manter-se na metafísica ou no idealismo -, mas,
igualmente, rejeita a analítica como estudo objetivo das relações de poder
numa dada sociedade – o que significara deixar a matéria do poder separa-
da do problema da verdade e, por conseguinte, incapaz de atingir o âmago
“existencial” da questão, ou seja, os modos de subjetivação. Na contramão
da tendência do “poder do discurso” como regência objetiva das verdades,
a intervenção filosófica de Foucault esboça firmemente outro plano de re-
flexão da verdade, que passa pela investigação crítica da posição do sujeito
nas práticas sociais e históricas. O sujeito posicionado e interrogado em
face das coerções e subjugações concretas, implicando-se em relação à sua
história. Nesta, ele figura como um estranho duplo: o assujeitado, efeito
de táticas e de verdades, e o sujeito, propriamente dito, como perplexida-
de e dobra do efeito, por assim dizer, aquele que pode interrogar sobre o
problema do governo de si, o que implica o problema de como não se quer
ser governado. Mas, trata-se rigorosamente da formação histórica de uma
problemática.
O modelo tradicional e soberano de poder não favorece a percepção
do sujeito como problema. Na tradição, o poder é a fidelidade ao local, que
não é o espaço mundano, mas a plenitude da significação da vida. Embo-
ra haja domínio territorial, o local é, antes de tudo, a inscrição no ser no
eterno mesmo, na forma da fidelidade às leis e aos costumes tradicionais,
do que sempre foi e será assim. O ser repousado na fixidez dos sentidos
absolutos, a rigor, fora do tempo, a eternidade do círculo, na qual o sujeito
está contido, não governado, está significado como “nós”, não individuali-
zado. Como diz Max Weber, na tradição se morre saciado da vida, pois não
há desencaixe entre a experiência pessoal e a totalidade da significação da
existência.
No mundo racionalizado, por sua vez, o poder não é mais da ordem
da codificação moral, manifestação dos costumes compactos e imutáveis,
que se apresentavam como um bloco sólido representado pelo Soberano. O
poder deixa de ser o eixo de uma circularidade. O poder faz-se um feixe de
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forças, uma rede de dispositivos e táticas aos quais se acoplam enunciados,
rede em relação à qual os sujeitos estão, a um só tempo, emaranhados e
esquivados. É deste não-local e da ausência de fixidez e significação que se
valida o problema do sujeito.
O sujeitos não pode se constituir “fora”, exterior ou anterior às co-
nexões de poder e saber, mas também não se encontra nelas contido como
parte ou objeto. O sujeito não está posto antes, como substância, mas tam-
bém não é reificação. Sua condição nem é de senhorio nem de escravidão,
muito menos um contradito de ambos. O sujeito é um acontecimento pos-
sível e uma possibilidade flexível, cujas identidades socialmente consigna-
das ou as posições estabelecidas são mais apropriadamente roupagens para
demarcar enquadramentos sociais. E mesmo onde há totalizações opera-
cionais, na forma de denominadores comuns – leis, dinheiro, método – o
sujeito nunca está de todo incluído. Ele é, sim, induzido.
A condição do sujeito diverge dos status de identidade ou pertinên-
cia. O sujeito é um problema de subjetivação. À medida que as linhas co-
ercitivas se afirmam eles atiçam a questão da subjetivação, não somente
pelo quanto produzem e dizem dos sujeitos, mas também, e, sobretudo, ao
provocarem resistências e aberturas. Os mesmos dispositivos que “seqües-
tram” e “normatizam”, instigam o sujeito, possibilitando descolamentos.
De maneira similar, enquanto os discursos racionais afirmam o seu pode-
rio, imiscuindo-se nas práticas, abre-se um campo de possibilidade para
rir-se de suas pretensões e suas ingenuidades tardias. Indo mais fundo nos
enredamentos e dispersões históricas, aproximando a política e o poder da
carne e da cotidianidade dos homens, Foucault encara com extremo realis-
mo o grau de pertinência e as determinações, mas também vislumbra com
ousadia as brechas, as resistências e as possibilidades de subjetivações.
O sujeito não é um produto, um mero fantoche ou uma reificação,
mas também não lhe cabe nem a imagem de uma substancialidade anímica
imaterial, de destino imortal, nem o velho heroísmo do espírito universal
acima do mundo vulgar. A história dos poderes e dos saberes faz pilhéria
do dogmatismo, do determinismo e do magnânimo. A problemática do su-
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jeito se impõe na conjuntura das injunções históricas e não lança nenhuma
esperança que rompa a certeza da finitude. As revoluções, por seu turno,
anseiam inverter os polos da dominação ou construir relações desprovidas
de poder. Os seus proponentes, por mais bem intencionados, acabam por
se revelarem superficiais e ingênuos, quando não hipócritas. Partidários da
crença na soberania, eles anseiam alterar os proprietários e a direção da
dominação. Mas a dominação não se define pela posse ou direção; ela se
define por estratégicas e saberes, os quais podem ser deformados e subver-
tidos por táticas localizadas, voltadas para a desativação dos dispositivos
e a denúncia das discursividades que engessam o sentido da dominação.
As lutas frequentemente operam na superfície das conexões entre
poder e saber, reféns que são de problemas, horizontes e mecanismos dis-
poníveis, contidas no plano das sedimentações legais. É o que se vê em lu-
tas de “minorias” pelo reconhecimento “formal” da igualdade, refletindo as
identificações e consignando os meios inerentes aos jogos de poder e saber,
notadamente relativos ao campo político-jurídico. Contidas no raio de efi-
cácia de uma arqueologia de dispositivos legais e discursos verdadeiros, as
lutas podem ser bem conservadoras. Contrariamente, conhecendo-se as ar-
ticulações eficazes da intricada rede de práticas e discursos pode-se empre-
ender lutas em que se desrespeite as margens do estabelecido, classificado,
normatizado, legalizado, isso em nome de uma aproximação entre verdade
e subjetividade.
Ao procurar obstinadamente escapar da metafísica e da ciência por
meio de uma atividade do pensamento que situasse e incomodasse o ho-
mem face ao par poder-saber, Foucault conduziu o seu pensamento para
o terreno em que as lutas não visam simplesmente significação ou contes-
tação, mas aprofundarem-se no âmbito das subjetivações. Isso, nas condi-
ções da modernidade racionalizada, exige que o pensamento vá à luta, ouse
a intriga, assuma uma posição transgressora e denunciante, instigue os su-
jeitos a pensarem o que são e também o que querem fazer com o que são. O
pensamento crítico pode provocar os sujeitos a qualificarem as suas lutas.
Para tanto, não basta querer negar os efeitos coercitivos das cumplicidades
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seladas entre saber e poder através de novas verdades ou novo fundamento
para o homem, mas urge atuar sobre os efeitos no sentido de denunciá-los
e desfazê-los sob a determinação de não ser governado (subjetivado) de tal
maneira.
De todo modo, a opção de Foucault não é por um pensamento que
diga que caminho se deve seguir, assim como não se prende a nenhum mé-
todo padrão. O seu pensamento não é político, não milita por nenhuma
causa específica, não indica ou mesmo sugere direções para as lutas.19 To-
davia, há a política do pensamento insurreto. Foucault pode ser apresen-
tado como um dos raros “mestres da suspeita” – ao lado de nomes que ele
admirava como Marx, Freud e Nietzsche. Como exercício de suspeição, o
pensamento intromete-se para desmascarar arranjos e embaralhar signi-
ficados, desonerando-se da adesão ideológica ou pedagógica para ser ins-
trumento livre e sem outro compromisso que não o aprofundamento e pro-
vocação no inesgotável conflito das interpretações. A maior contribuição
que o pensamento pode dar é, então, arriscar as suas forças, o que reporta
à capacidade de se indignar e se traduz em uma entrega à escrita. E o que
não pode o pensamento ao tragar e estilizar a seriedade do mundo em jogos
de palavras e sentidos?
Após as ciências humanas tentarem fazer do homem o fundamen-
to da sua finitude, relacionando-o às empiricidades e à condição de ser da
ordem do saber, relativo ao mundo e a si, centrando-o em suas próprias
representações, o homem e seu sonho de domínio e justificação entram
em uma região sombria. Isso ocorre, em parte, pelo quanto as suas posi-
tividades empíricas se desdobram em dispositivos que produzem o sujeito
normal, assujeitado e alienado, mas também porque o pensamento pôde a
conclusão sobre o arbítrio e a impostura última de toda verdade, inclusive
a verdade do homem dormindo em si. O homem “desaparece” ao se dobrar
sobre um campo de positividades que lhe revelou os limites, não somente
do seu saber, mas do seu saber sobre si mesmo. Torna-se irônico mantê-
19 Isso em nada desmente ou diminui o engajamento prático-intelectual de Foucault em lutas, como o movimento de humanização das prisões ou a revolução islâmica iraniana.
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34 -
-lo como objeto de uma razão objetiva posto apresentar-se como “domínio
positivo do saber”, ao passo que o impensado e a desrazão não indicarem o
limite do saber, mas o seu ponto de partida. 20
Dessa feita, mais do que dizer que tudo é finito – as empiricidades,
os discursos e, por conseguinte, o próprio homem concebido como arranjo
móvel entre referentes empíricos e representações - Foucault é daqueles
que preferem lançar a finitude, com o vazio que lhe parece sustentar, no
campo do arbitrário, da incerteza, do ilimitado, da abertura. O sujeito per-
dido e indefinido, mas também sem limitação absoluta e sem ingenuidades,
uma fenda ontológica sobre a qual podem se inscrever novas perspectivas
de subjetivação. Assim, por mais que realce as contingências mundanas so-
bre os sonhos espirituais, Foucault acolhe o princípio nietzschiano de a ex-
perimentação como legado superior do homem, daí a certeza de que o vazio
que acompanha o sentimento de finitude “não escava uma carência; não
prescreve uma lacuna a ser preenchida. Não é mais nem menos que o desa-
brochar de um espaço onde, enfim, de novo é possível pensar”.21 O sujeito é
efeito de multiplicidades, um ponto que reluz na encruzilhada das linhas de
forças, onde também se insere o seu pensamento. É um brilho móvel, que
lampeja na intensidade do jogo e brilha na proporção da liberdade de dizer
suas verdades e ousar as rédeas da condução da sua vida.
A possibilidade de subjetivação relembra o convite de se ir além
do homem. Para tanto, pouca valia têm as ciências sociais, tão atreladas
parecem estar à morte do homem, dispostas à tarefa de enterrá-lo inces-
santemente na cultura, na sociedade, no Estado. Mas Foucault não quer
ressuscitá-lo, uma vez o encontro com as potências do pensamento crítico
ratifica a dissolução das figuras de Deus, do Homem e da Verdade. O desa-
fio, agora, está em manter-se o pensamento desperto. Quem sabe, assim,
ele ajude a fazer com que o homem – desvanecido ao se dobrar sobre suas
positividades – se desdobre de si mesmo, descarregando-se das carcaças,
explorando a finitude e liberando subjetivações de vida, trabalho e lingua-
20 Foucault, M. Foucault, M. Idem, pp.472-473.
21 Foucault, M. Foucault, M. Idem, p.473.
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gem.22 Pois, se é verdade que as ciências humanas chegaram à conclusão
de que o homem só é histórico enquanto participa de outras histórias – dos
seres (vida), das coisas (trabalho), das palavras (linguagem) -, o que lhe sela
determinações e finitudes, também é verdade que a “morte do homem” é
uma curiosa permissividade à experimentação na modelagem dos seres, na
apropriação dos objetos e na cadeia dos sentidos.
A “prática histórico-filosófica” de Foucault, ao direcionar-se para o
“problema do sujeito”, extraído das confluências movediças entre os planos
do “poder” e da “verdade”, realiza-se como uma espécie de avesso do avesso
do platonismo e sua famosa divisão em mundo sensível e mundo supra-
sensível. Não se trata de uma simples rivalidade a respeito de que plano
tem primazia sobre a condição humana, se a finitude ou a transcendência.
Foucault invalida a tese platônica afirmando a transcendência como um
problema de subjetivação, o qual, por sua vez, repousa sobre uma inesca-
pável finitude. Também se diferencia de Kant, que não engolia a finitude e
cadastrou a verdade e o juízo num registro transcendental. Os gregos anti-
gos, ao contrário, propiciaram a Foucault um exemplo vivo da experiência
da verdade.
Foucault religa pensamento e espiritualidade, vínculo comprometi-
do na trajetória racionalista da cultura ocidental. Como outros, retorna aos
gregos, dedicando os últimos estudos às éticas da Antiguidade Clássica, em
que se manifestam as condições favoráveis à “subjetivação de um discurso
verdadeiro em uma prática e um exercício de si sobre si”, na modalidade
estóica,23 ou a disposição transgressora de viver uma vida verdadeira “mu-
dando o valor da moeda”, na posição cínica em relação a toda ordem.24 No
contato com as éticas antigas, Foucault melhor compreendeu o quanto a
relação com a verdade é uma questão de governo.
Por certo não seria viável reeditar os gregos e fazer do processo de
subjetivação um princípio de ascendência cósmica e significação integral.
22 Deleuze, G. Foucault, pp.139-142.
23 Foucault, M. A Hermenêutica do sujeito, p.401.
24 Foucault, M. Foucault, M. Le courage de la vérité, p.208.
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Não há mais lugar para o “outro mundo”, a moeda perdeu o “valor” e há
saberes objetivados por todos os cantos, infiltrados no cerne da vida. Os
exemplos antigos são evocados não para serem reproduzidos, mas porque
podem ajudar, com sua radical conexão entre vida e verdade, a entender
que não é possível instaurar verdades e encarná-las espiritualmente sem
uma “posição essencial de alteridade” [altérité].25 Neste sentido, o desafio
à subjetivação atualiza-se com um curioso atestado de humildade e de pre-
tensão: o sujeito não tem como escapar da consciência da sua finitude, sua
fragmentação e sua indefinição, mas, precisamente na impossibilidade de se
fixar e se determinar, abrem-se brechas para invenção de novas alteridades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
__________. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
__________. A história da sexualidade - Vol.I. São Paulo: Editora Graal, 2003.
__________. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
__________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins fontes, 2005.
__________. Le courace de la vérité. Paris: Gallimard/Seuil, 2009.
__________. O que é a crítica (crítica e Aufklãrung). (“Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklãrung”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, vol.82, número 2, pp.35-64, avril/juin 1990).
___________. O que é o Iluminismo. www.vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/iluminismo.pdf. (“Qu’est-ce que la lumière”, p.688. In Dits et écrits – Vol. IV. Paris: Gallimard, 1994).
25 Foucault, M. Idem, p.311.
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FOUCAULT
E A GENEALOGIA DO PODER
Helton Adverse1
1- A ORDEM DO DISCURSO:
A aula inaugural pronunciada por Foucault por ocasião de seu in-
gresso no Collège de France é, via de regra, identificada como o momento
de inflexão de seu trabalho intelectual: da arqueologia desenvolvida nos
anos 1960, Foucault parte agora para uma investigação genealógica que de-
verá privilegiar as relações de poder que articulam a formação dos saberes.
Em outros termos, aquilo que até então era meticulosamente relegado ao
domínio do extra-discursivo torna-se objeto de interesse. Como entender
essa mudança?
Diversas são as referências do próprio Foucault a essa mudança em
seu percurso intelectual. Vou reter apenas uma que acredito expressar de
modo bastante eloquente o que motivou a passagem da arqueologia do sa-
ber à genealogia do poder. Em uma entrevista de 1975, Foucault coloca o
problema nos seguintes termos: o corte epistêmico identificado e descrito
em Les mots et les choses é um grande quebra-cabeça cuja solução tem de
ser buscada nas condições históricas que o ensejaram.
“Era, finalmente, nas tecnologias de poder e em suas transforma-
ções, do século XVII até agora, que era necessário ver a base a partir da
qual a mudança seria possível. As palavras e as coisas situava-se no nível
da constatação do corte e da necessidade de ir buscar uma explicação. Vi-
giar e punir é a genealogia, a análise das condições históricas que tornaram
possível esse corte.”2
1 Departamento de FilosofiaUFMG
2 M. Foucault, “Eu sou um Pirotécnico”. Entrevista a R. Pol-Droit gravada em junho de 1975. In: R. Pol-Droit, Michel Foucault. Entrevistas. Trad. de Vera Portocarrero e Gilda G. Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 92.
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O que gostaria de sugerir, contudo, é que a aula inaugural nos ajuda
a entender como Foucault foi levado a colocar a questão das relações entre
saber e poder. O tratamento dessa “questão de método” requer, então o
acompanhamento da gênese de um problema em seu pensamento. Para
isso, é preciso levar em conta o status do discurso: ele passa a ser tomado
no interior de relações de poder e práticas sociais. Esgotamento, portanto,
dos recursos de uma análise formal e reconhecimento da necessidade de
uma politização do discurso. Essa alteração, claro está, não pode ser tri-
butada a um tardio desenvolvimento da consciência histórica e política de
Foucault, mas ao fato de que o próprio discurso exige, para compreender-
mos a historicidade de sua formação, ser tomado como um elemento das
relações de poder, isto é, de acordo com a aula inaugural, o discurso é um
elemento perigoso.
“Eu suponho [diz Foucault] que em toda sociedade a produção do
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistri-
buída por um certo número de procedimentos que têm por papel conjurar-
-lhe os poderes e os perigos, dominar-lhe o evento aleatório, esquivar-lhe o
peso, a temível materialidade.”3
Para tanto, são necessários mecanismos, “procedimentos de exclu-
são” que possam, senão neutralizar essa periculosidade, ao menos contê-la
dentro de determinados limites. Desses procedimentos, o mais familiar é a
interdição, que recai sobre o objeto de que se fala, sobre as circunstâncias
em que tal coisa é falada, ou sobre o sujeito que fala. Estamos diante de três
formas de interdição que compõem, segundo Foucault, um “grade comple-
xa” que se modifica constantemente4. Em nossos dias, diz ele, as regiões
em que essa grade se torna “mais cerrada” são aquelas da sexualidade e da
política: “como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou
neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um
dos lugares onde elas exercem, de maneira privilegiada, algumas de suas
3 M. Foucault, L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971, pp. 10-11.
4 Ibidem, p. 11.
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mais temíveis potências”5. O que importa ressaltar é o laço que o discurso
estabelece com o desejo e com o poder, podendo ele mesmo ser considera-
do objeto de desejo e instrumento de poder: o discurso não é simplesmente
o meio no qual o desejo vem a ser expresso nem apenas a tradução das lutas
e dos sistemas de dominação, mas igualmente isso que desejamos ao falar
e aquilo pelo que lutamos.
Ao enfatizar essa politização do discurso, Foucault se vê obrigado
a destacar sua dimensão pragmática: dizer é fazer. Esse fazer elimina de
vez a possibilidade de neutralidade do discurso, pois ele opera na forma da
partilha, segundo procedimento dos “sistemas de exclusão”. Por exemplo,
a oposição entre razão e loucura instaura o mecanismo de partilha com o
qual um discurso pode ser neutralizado, anulado ou, ao contrário, recebido
e reconhecido como pleno de sentido. O discurso do louco, desde a Idade
Média, é esvaziado de sentido próprio e reduzido ao puro balbucio, ao puro
ruído de uma linguagem que é incapaz de enunciar uma verdade própria.
A medicalização da loucura não alterou essa situação, uma vez que o sen-
tido do discurso delirante ainda deve ser buscado do lado de quem o escu-
ta: no silêncio do psiquiatra (e também do psicanalista) a razão aguarda o
momento em que irá articular o fragmentado e desconexo palavreado do
paciente em uma cadeia discursiva plena de sentido.
O terceiro sistema de exclusão que Foucault assinala (e é sobre ele
que gostaria de me deter) é aquele que opera com a oposição do verdadeiro
e do falso. À primeira vista, tomar essa oposição como um procedimento de
exclusão ao lado dos listados acima soa paradoxal. Com efeito, eles não se
referem, abertamente ou não, às práticas sociais de coerção? Ora, a exclu-
são pela verdade não parece possível, então, a não ser como atualização de
uma potência da própria verdade; logo, não teria nada de arbitrário, mas
é precisamente isso que se trata de colocar em questão. Se nos colocarmos
no nível de uma proposição, afirma Foucault, a partilha entre o verdadeiro
e o falso nada tem de impositivo ou violento. Porém, se nos colocarmos em
uma outra escala, ou seja, “se colocamos a questão de saber qual foi, qual
5 Ibidem, pp. 11-2.
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40 -
é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade
que atravessou tantos séculos de história, ou qual é, em sua forma geral, o
tipo de partilha que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como
um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente
coercitivo) que vemos se desenhar.”6
O funcionamento desse procedimento de exclusão deve ser compre-
endido à luz do estudo genealógico de nossa vontade de saber, ou melhor,
da genealogia da configuração de nossa vontade de verdade. Isso impli-
ca uma história do modo pelo qual passamos a reconhecer determinados
enunciados como verdadeiros. Esse reconhecimento não pode ser reduzido
à identificação de critérios internos de verdade, mas tem de ser referido às
condições históricas e políticas que definem as regras para que um discurso
possa ser concebido como verdadeiro. Assim, na Grécia arcaica, o discurso
tido por verdadeiro era aquele do poeta. Esse “mestre da verdade” anuncia-
va em seu canto a memória viva dos deuses e dos homens. Mais especifica-
mente, mantinha longe da “noite do esquecimento” os feitos dos mortais,
assim como atualizava a linhagem nobre dos deuses, graças a sua “palavra
eficaz”, instauradora da verdade:
“Sua ‘Verdade’ [a do poeta] é uma ‘Verdade’ assertórica: ninguém a
contesta, ninguém a contradiz. ‘Verdade’ fundamental, diferente de nossa
concepção tradicional, Alétheia não é a concordância da preposição e de
seu objeto, nem a concordância de um juízo com os outros juízos; ela não
se opõe à ‘mentira’; não há o ‘verdadeiro’ frente ao ‘falso’. A única oposição
significativa é a de Alétheia e de Léthe.”7
Essa palavra instaurada da verdade/memória cede lugar, a partir
do século V a.C., a uma concepção de verdade que a localiza não mais no
campo poético e sim no domínio propriamente lógico em que o conteúdo
do enunciado tem privilégio sobre o ato de enunciação: a verdade estará
naquilo que é dito. Estabeleceu-se aí, nesse período que vai de Hesíodo a
6 M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., p. 16.
7 M. Detienne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Trad. de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 23.
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Platão, uma nova partilha em que o “discurso verdadeiro não é mais o dis-
curso precioso e desejável, pois que não é mais o discurso ligado ao exercí-
cio do poder. O sofista é expulso.”8 Para Foucault, é precisamente essa nova
partilha que dará a “forma geral de nossa vontade de saber.”9
Um dos traços distintivos dessa forma geral é que a verdade exer-
ce, porém mascarando-a (ou sob a condição mesma desse mascaramen-
to), uma força coercitiva sobre o discurso. Assim, a chancela do verdadeiro
tornou-se obrigatória para que um discurso possa circular e encontrar al-
gum acolhimento em nossa cultura. Isso não significa que todos devem ser
tidos como verdadeiros, mas que sem a referência à verdade eles carecem
de credibilidade e são desprovidos de toda eficácia. Por esse motivo, nossas
práticas econômicas, para serem reconhecidas como racionais, têm de ser
justificadas por uma teoria das riquezas e da produção; nosso sistema pe-
nal não pode dispensar os fundamentos e bases de uma teoria do direito a
qual, a partir do século XIX, se apoiará, por sua vez, em um conhecimento
sociológico, psicológico, médico, “como se a palavra mesma da lei apenas
pudesse ser autorizada, em nossa sociedade, por um discurso de verdade.”10
Mesmo a literatura se vê constrangida a buscar suporte no natural, no cien-
tífico, enfim, no verdadeiro.
Foucault observa que essa vontade de verdade, que anima nossa
vontade de saber, não deixa de se reforçar desde Platão, a ponto de se tor-
nar “incontornável.” Contudo, é dela que sabemos menos, pois que é de sua
natureza furtar-se a si mesma na medida em que impele a conhecer. Com
efeito, o discurso verdadeiro é, a partir dos gregos, precisamente “aquele
que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder.”11 Mas, diz Foucault,
8 M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., pp. 17-8. Como podemos ver, Foucault amalgama a poesia arcaica e a sofística por causa da similaridade do regime de verdade em que se inscrevem.
9 Ibidem, p. 18.
10 Ibidem, p. 21.
11 Ibidem.
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42 -
“o discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma des-
poja do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade
de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, aquela que se
impôs a nós já há muito tempo, é tal que a verdade que ela quer não
pode não a mascarar.”12
O desejo de verdade revela-se como um procedimento de exclusão
duplamente insidioso. Ao mesmo tempo em que faz esquecer a “origem bai-
xa” de toda verdade, faz a promessa de nos restituir um discurso pleno, pura
coincidência da verdade consigo mesma. São aqueles que denunciam essa
promessa, são aqueles que “tentaram contornar essa vontade de verdade
e colocá-la novamente em questão contra a verdade”, como Nietzsche, Ar-
taud e Bataille, que devem “servir de signo no trabalho de todos os dias.”13
E o trabalho que Foucault irá realizar nos próximos anos pode cer-
tamente ser inscrito no quadro geral de uma “genealogia” da vontade de
verdade, cuja inspiração, como acabamos de ver, é abertamente nietzschia-
na. Vale notar que o primeiro curso ministrado no Collège de France terá
por título “A Vontade de Saber” e pretendeu realizar “uma série de análises”
em vista de uma “morfologia da vontade de saber.”14 Nessa “morfologia”,
são as transformações das “praticas discursivas” que devem ser examinadas
com o recurso não de uma teoria do conhecimento, mas com a referência a
uma “anônima e polimorfa vontade de saber” que sofreria “transformações
regulares.”15 Essas transformações, por sua vez, podem ser identificadas tan-
to no campo dos “estudos empíricos” (a psicopatologia, a medicina clínica,
mas também a história natural, isto é, todos aqueles saberes que permitiam
“isolar o nível das práticas discursivas”16 em que atuava a arqueologia) quan-
12 Ibidem. Ibidem.
13 M. Foucault, M. Foucault, L’ordre du discours, op. cit., pp. 22-3.
14 M. Foucault, “La Volonté de Savoir”. Trata-se do resumo de curso do ano de 1970-1971 reeditado no M. Foucault, “La Volonté de Savoir”. Trata-se do resumo de curso do ano de 1970-1971 reeditado no Trata-se do resumo de curso do ano de 1970-1971 reeditado no segundo volume dos Dits et écrits (texto 101), op. cit., p. 240. Este curso foi publicado recentemente (Leçons sur la volonté de savoir : Cours au Collège de France (1970-1971) suivi de Le savoir d’Oedipe. Paris: Gallimard/Seuil, 2011). Infelizmente, não foi possível consultá-lo antes do término deste texto.
15 Ibidem, p. 241.
16 Ibidem.
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- 43
to no âmbito de suas “justificações teóricas” e aí torna-se necessária a análi-
se dos sistemas filosóficos que fornecem os modelos teóricos para a vontade
de saber. Foucault destacou dois deles, por causa de sua oposição acentua-
da: Aristóteles e Nietzsche. No que concerne a Aristóteles, estava em ques-
tão a relação estabelecida entre o conhecimento, a verdade e o prazer (como
fica evidente nas primeiras linhas da Metafísica). Por outro lado, Nietzsche
define um conjunto de relações muito diferente que permite compreender a
verdade como um efeito, como uma falsificação motivada pelos interesses
e necessidades. Creio que valha a pena me deter um pouco sobre esse pro-
blema tomando como referência dois textos. O primeiro é de 1971 e trata da
noção de genealogia em Nietzsche e suas relações com a história. O segundo
é uma conferência pronunciada no Rio de Janeiro em 1973 que retoma o
problema da vontade de verdade inserindo-o (como Foucault havia feito no
curso de 1971) no contexto de uma investigação acerca das formas de justiça.
Concedendo atenção a esses textos, deixo de lado a aula inaugural para re-
alizar a tentativa de compreender os problemas maiores de uma genealogia
do poder tal como Foucault a entende no início dos anos 197017.
2- NIETZSCHE E A GENEALOGIA:
Em “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire” (1971), Foucault enfatiza a
diferença entre a pesquisa genealógica e a pesquisa histórica tradicional: ao
contrário da história, a Genealogia se opõe à busca da “origem”. Ele explica
que em Nietzsche o termo “origem” (Ursprung) tem dois empregos. O pri-
meiro não é marcado, podendo ser encontrado em alternância com outros
termos como Entstehung, Herkunft, Abkunft, Geburt. Por outro lado, há
um emprego da palavra que é marcado. Nesse caso, a origem “(Ursprung)
é utilizada em contraposição a um outro termo. Por exemplo, na introdu-
17 Isso significa que enfatizo a vinculação entre a genealogia e os procedimentos externos de exclusão. A sequência da aula inaugural irá destacar os procedimentos internos, igualmente responsáveis pela rarefação, seleção e controle dos discursos (como o “comentário”, a figura do “autor”, as “disciplinas”), e um terceiro tipo de procedimento concernente ao “sujeito falante”. Significa também que das tarefas que Foucault lista como constituindo o trabalho a ser realizado nos anos seguintes – colocar em questão a vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de evento; suspender a soberania do significante (p. 53) – considero as duas últimas subsidiárias da primeira.
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ção de Zur Genealogie der Moral (1887), Nietzsche define o objeto de sua
pesquisa genealógica como sendo a origem (Herkunft) dos preconceitos
morais, ao passo que o trabalho e tratados dos “historiadores da moral”
(como P. Rée) pauta-se por uma busca da origem (Ursprung)18. Em segui-
da, Nietzsche se refere às pesquisas sobre a moral realizadas em seus li-
vros anteriores [Menschliches Allzumenschiliches (1878-80), Morgenröte
(1880-1)], caracterizando-as - assim como as análises de Zur Genealogie
der Moral - como “hipóteses sobre a origem” (Herkunfthypothesen). Fou-
cault faz notar que o emprego do termo Herkunft não é arbitrário aí, “como
se na época de Para Genealogia da Moral, e nessa altura do texto, Niet-
zsche quisesse acentuar uma oposição entre Herkunft e Ursprung com a
qual não trabalhava dez anos antes”19. A genealogia nietzschiana pode, as-
sim, ser caracterizada por uma recusa da origem (Ursprung). Tal recusa
encontra seus motivos no seguinte: buscar a origem (Usprung) consiste no
esforço de “recolher nela a essência exata das coisas”, isto é, “sua identida-
de cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a
tudo o que é externo, acidental e sucessivo”20. A esperança de encontrar a
identidade verdadeira das coisas anima a busca das origens, ao passo que
o genealogista trata de escutar a história antes do que dar fé à metafísica.
Foucault pergunta: o que o genealogista aprende com esse procedimento?
“Que atrás das coisas não há ‘algo inteiramente diferente’:
não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são
sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a
partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu
de uma maneira inteiramente ‘razoável’ (raisonnable) - do acaso. A
dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão
dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas
18 Ver F. Nietzsche, Genealogia da moral. Trad. de P. C. Souza. São Paulo: Brasiliense, 1988, 2ª edição, pp. 8-12. A respeito de Nietzsche e P. Rée, ver P. L. Assoun, “Nietzsche et le Réalisme”, prefácio a P. Rée, De l’origine des sentiments moraux. Trad. de F. Demet. Paris: PUF, 1982.
19 M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire” in M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire” in Dits et écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994, p. 138. Esse texto foi publicado em português em M. Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, 10ª edição.
20 M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 138. M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 138.
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e sempre retomadas, da necessidade de dominar - das armas len-
tamente forjadas ao longo das lutas pessoais. E a liberdade, seria
ela, na raiz do homem, o que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é
apenas uma ‘invenção das classes dirigentes’. O que se encontra no
começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem - é a discórdia das outras coisas, é o disparate”21.
A esse postulado segundo o qual poderíamos encontrar uma iden-
tidade primeira na origem, Nietzsche, de acordo com Foucault, acrescenta
outros dois, que caracterizam igualmente a “história tradicional”: o que diz
respeito à “solenidade” da origem – quer dizer, o “exagero” metafísico que
faz enxergar no começo de todas as coisas “o que há demais precioso e es-
sencial” – e o que afirma ser a origem o lugar da verdade. Nietzsche rejeita
a “solenidade” dizendo que o começo histórico de todas as coisas é “baixo”,
“não no sentido de modesto, ou de discreto como o passo da pomba, mas
derrisório, irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações”. Quanto ao úl-
timo postulado, para Nietzsche “atrás da verdade, sempre recente, avara
e comedida, há a proliferação milenar dos erros”. Em outras palavras, “a
verdade e seu reino originário tiveram sua história na história”22; ela é um
erro que se impõe a nós e se fixa através do tempo.
O genealogista não deverá partir em busca dessa origem, mas deter-
-se nas “meticulosidades e nos acasos dos começos”. Ele deverá “prestar
uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade, esperar vê-los surgir,
máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro”. Finalmente, o genealo-
gista deixará aos começos “o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhu-
ma verdade jamais os manteve sob sua guarda”23. Para a Genealogia não
há, portanto, “essências fixas, nem leis de base, nem finalidades metafí-
sicas”. Diferentemente, ela tenta “colocar em evidência as descontinuida-
des aí onde os outros perceberam uma evolução contínua”24. Abandonada
21 Ibidem.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique [1982]. Trad. de F. Durand-Bo-gaert. Paris: Gallimard, 1984, p. 158.
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a Ursprung, o objeto da Genealogia consiste naquilo que será designado
mais propriamente com os termos Herkunft e Entstehung. Ambos podem
ser traduzidos por “origem”, mas Foucault explora as nuances que eles
apresentam com relação à Usprung. Herkunft designa a “proveniência”,
ao passo que Entstehung significa a “emergência”, o ponto de surgimento.
Tomando-as, portanto, como objeto de pesquisa, o genealogista evitará os
erros e ilusões (metafísicas) da história tradicional, ou seja, a crença na uni-
dade de um “eu”, em uma consciência sempre idêntica a si mesma no de-
senrolar dos acontecimentos históricos, na existência de uma alma eterna,
na fixidez de nossos sentimentos e valores e no sentido teleológico da his-
tória. A Genealogia consiste assim na prática do que Nietzsche denomina
de wirkliche Historie (história efetiva). A wirkliche Historie é a retomada
do “sentido histórico” que, como diz Foucault, “reintroduz no devir o que se
acreditava imortal no homem”25. Isso significa que a “história efetiva” não
se apóia em nenhuma “constância”:
“Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção
à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite re-
traçá-la como um paciente movimento contínuo; tudo isso, trata-se
de destruir sistematicamente. É preciso despedaçar o que permitia
o jogo consolador dos reconhecimentos... Saber, mesmo na ordem
histórica, não significa ‘reencontrar-nos’, A história será ‘efetiva’ na
medida em que ela introduzir o descontínuo em nosso próprio ser”26.
A história efetiva nos mostra que o saber não é o resultado da la-
boriosa atividade dos homens em seu esforço de entenderem a si mesmos
e o mundo que os cerca, atividade essa que seria contínua e caminharia
sempre em direção progressiva. Antes, ela explicita que o saber “não é feito
para compreender, ele é feito para cortar”27. O saber não é a decodificação
do segredo escondido no âmago das coisas. O saber não é nem mesmo um
dado objetivo: ele é efeito e, ao mesmo tempo, instrumento da tentativa
25 M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 147 M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 147
26 Ibidem. Grifo nosso.
27 Ibidem, p. 148.
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de dominar a realidade e os outros homens. Ele é sempre “interessado” e
por esse motivo, está sempre ligado ao momento histórico em que surge. A
wirkliche Historie termina por nos reenviar ao caráter “perspectivista” do
conhecimento28.
Revelar o caráter perspectivista do conhecimento – ao mesmo tem-
po em que consiste em destruir a crença em uma unidade da verdade, da
identidade e da própria realidade – significa, para Foucault, compreendê-
-lo como “injustiça”29, como violência que fazemos às coisas, movidos que
somos pela “vontade de saber”. O texto de uma conferência realizada no
Brasil, em 1973, vem complementar essa análise do saber que desemboca
em uma Genealogia do poder. Nessa conferência, Foucault comenta mais
uma vez a obra de Nietzsche, abordando especificamente o problema do
conhecimento. Foucault inicia citando o parágrafo de abertura de “Verda-
de e Mentira no Sentido Extramoral”30, destacando o seguinte: Nietzsche
declara que o conhecimento constitui uma invenção (Erfindung). Quando
Nietzsche utiliza Erfindung, é para fazer oposição à “origem”: “quando ele
28 Foucault declara, aqui, que pode distinguir os traços próprios da wirkliche Historie, em oposição à história tradicional. O primeiro é que a “história efetiva” faz ressurgir o evento “no que ele tem de único e agudo”. Ela destaca o acontecimento que, por sua vez, não consiste em “uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha”, mas antes em “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se disten-de, se envenena, uma outra que faz sua entrada, mascarada”. Dessa forma, diz Foucault, “as forças que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica, mas antes ao acaso da luta”. Por outro lado, a “história efetiva” não dirige seu olhar para as “alturas”, para o longín-quo. Ela lança, ao contrário, seu olhar ao que está próximo: “o corpo, o sistema nervoso, os alimentos, a digestão, as energias; ela perscruta as decadências; e se afronta outras épocas é com a suspeita -não rancorosa, mas alegre- de uma agitação bárbara e inconfessável. Ela não teme olhar embaixo. Mas olha do alto, mergulhando para apreender as perspectivas, desdobrar as dispersões e as diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua intensidade”. Por fim, Foucault atribuirá à “história efetiva” a capacidade de reconhecer-se perspectiva. Para Nietzsche, o “sentido histórico” sabe-se “perspectivo e não recusa o sistema de sua própria injustiça”. Nesse sentido, a “história efetiva” abre a possibilidade de realizar sua própria genealogia” (Ibidem, pp. 148-50).
29 M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 150. M. Foucault, “Nietzsche, la Généalogie, l’Histoire”, art. cit., p. 150.
30 “Em algum canto afastado do universo espalhado no cintilar de inumeráveis sistemas solares, havia uma vez uma estrela sobre a qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o momento mais arrogante e mentiroso da ‘história universal’: mas foi apenas um minuto. Após alguns suspiros (Atemzugen) da natureza, congelou-se a estrela, e os animais inteligentes tiveram de morrer”. (“Erken-(“Erken-ntinistheorische Einleitung uber Warheit und Luge im Aussermoralischen Sinne”. In: Das Philosophen-buch (1873). Le livre du philosophe. Paris: Aubier-Flammarion, 1969, edição bilíngue com a tradução de A. K. Marietti, p. 170. Grifo nosso).
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diz Erfindung, é para não dizer Ursprung”31. Foucault mais uma vez começa
com a questão da Ursprung, mas seu objetivo agora não é o de examinar
particularmente a história, mas a verdade, ou melhor, a constituição da
verdade. Na formação do conhecimento não há Ursprung, mas Erfindung.
Esta, ao mesmo tempo em que consiste em uma ruptura, é também algo
que possui um “começo pequeno, baixo, mesquinho, inconfessável”, em vez
da origem alta, nobre. O que a Erfindung revela então é que encontramos
na formação do conhecimento “obscuras relações de poder”.
Por outro lado, dizer que o conhecimento é uma invenção signifi-
ca dizer que ele não está “absolutamente inscrito na natureza humana”32.
Dessa forma, o conhecimento não é um instinto presente no homem. Para
Nietzsche, de acordo com Foucault, o conhecimento tem relação com os
instintos, mas não constitui ele próprio um instinto: “o conhecimento é
simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e
do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se reencontram,
se batem e chegam, ao fim de suas batalhas, a um compromisso que algo se
produz. Esse algo é o conhecimento”33.
O conhecimento tem por “fundamento” os instintos, mas deles se
diferencia: ele é como “uma faísca entre duas espadas, mas que não é feita
com o mesmo ferro”34. Não fazendo parte da natureza humana, ele é no
fundo contra-instintivo, contranatural.
De acordo com Foucault, esse é o primeiro sentido que podemos dar
à ideia de que o conhecimento é uma Erfindung. O outro é o de que não há
semelhança entre o conhecimento e as coisas. Para Nietzsche, diz Foucault,
há tanta diferença entre o mundo a conhecer e o conhecimento quanto há
entre o conhecimento e a natureza humana: “temos então uma natureza
humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento,
31 M. Foucault, “La Vérité et les Formes Juridiques” (Conferências apresentadas na P.U.C. do Rio de Janeiro em maio de 1973 e publicadas em português com a tradução de R. Machado e E. J. Morais nos Cadernos da P.U.C., nº 16, junho de 1974, e reeditadas em francês em Dits et Écrits , vol. II, op. cit., pp. 538-646. A citação é da p. 543.
32 Ibidem, p. 544.
33 Ibidem, p. 545. Ibidem, p. 545.
34 M. Foucault, “La Vérité et les Formes Juridiques”, art. cit., p. 545. M. Foucault, “La Vérité et les Formes Juridiques”, art. cit., p. 545.
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sem que haja entre eles qualquer afinidade, semelhança nem mesmo laço
de natureza”. Daí decorre que o conhecimento só pode ser uma “violação
das coisas a conhecer”35.
Na análise de Foucault, Nietzsche investiga ainda o mecanismo atra-
vés do qual os instintos “inventam” o conhecimento. No aforismo 333 de
Die fröliche Wissenschaft (1881-2), Nietzsche comenta o famoso texto de
Spinoza que opunha intellegere (compreender) à ridere, lugere e detestari
(rir, deplorar, detestar)36. Segundo Spinoza, para que possamos compreen-
der as coisas é necessário que nos poupemos de “rir delas, de deplorá-las
ou de detestá-las. Somente quando essas paixões se apaziguam nós pode-
mos enfim compreender”. Para Nietzsche, ocorre exatamente o inverso,
de modo que intelligere consiste no “resultado de um certo jogo, de uma
certa composição entre ridere, rir; lugere, deplorar; e detestari, detestar”.
Do ponto de vista de Nietzsche, afirma Foucault, podemos compreender
apenas porque há o conflito, o combate entre essas paixões que, por sua
vez, não constituem maneiras de nos aproximar dos objetos, nem de nos
identificar a eles, mas antes de “manter o objeto à distância, de se diferen-
ciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se proteger dele pelo riso,
de desvalorizá-lo pela queixa, de afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo
ódio”37. Há, Foucault conclui, na invenção do conhecimento uma vontade
de afastar e destruir o objeto:
35 Ibidem. Para Foucault, a concepção de que o conhecimento é Erfindung inaugura uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental: “A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas. O que, efetivamente, na filosofia ocidental, assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de co-nhecer verdadeiramente as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbítrio? O que garantia isso na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além, e ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimen-to e as coisas a conhecer”. A outra ruptura é que, junto com Deus, desaparece a soberania do sujeito: “Se é verdade que há, por um lado, os mecanismos do instinto, os jogos do desejo, os afrontamentos da mecânica do corpo e da vontade e, por outro, a um nível da natureza totalmente diferente, o conheci-mento, então não temos mais necessidade da unidade do sujeito humano. Podemos admitir sujeitos ou podemos admitir que o sujeito não existe” (Ibidem, pp. 546-7).
36 Em duas passagens do capítulo I do Tratado político Spinoza estabelece essa oposição: no primeiro e no quarto parágrafos. A leitura de Nietzsche, acatada por Foucault, centra-se nas oposições “pensamen-to consciente”/ “pensamento absoluto”, repouso/conflito, sempre valorizando o segundo elemento do par como aquele que expressa mais autenticamente a natureza do conhecimento. (Ver F. Nietzsche, A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 220-1.)
37 Ibidem, p. 548.
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“Atrás do conhecimento, na raiz do conhecimento, Nietzs-
che não coloca um tipo de afeição, de pulsão ou de paixão que nos
faria amar o objeto a conhecer, mas antes pulsões que nos colocam
em posição de ódio, de desprezo ou de temor diante das coisas que
são ameaçadoras e presunçosas”38.
Na leitura de Foucault, Nietzsche não encara o conhecimento como
uma “adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas antes uma re-
lação de distância e de dominação”39. Em suma, Nietzsche coloca no funda-
mento do conhecimento a relação de poder. Em sua raiz, o conhecimento
não é amor, harmonia, adequação, mas luta, conflito. Por isso, diz Fou-
cault, o melhor meio de apreendê-lo não é aproximar-se dos filósofos, mas
sim dos políticos40. Portanto, o conhecimento, a verdade, o saber sempre
são o “resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem
do conhecimento”41, isto é, o saber sempre é constituído, atravessado pelas
relações de poder que se estabelecem em uma época dada.
*Até agora me detive em considerações “metodológicas” acerca da ge-
nealogia do poder. Precisamos avançar em direção aos trabalhos que Fou-
cault realiza nos anos 1970 com o intuito de apreender in concreto as diver-
sas configurações das relações de poder na contemporaneidade. Isso porque
a genealogia do poder não deve ser tomada como uma simples extensão ou
retificação, um simples prolongamento ou aprofundamento da arqueologia
do saber. É todo um novo campo de investigação que se abre na reflexão de
Foucault e que, a meu ver, toca o coração da política na modernidade. O que
quero fazer, a partir de agora, é explicitar o sentido daquilo que ele chama
da uma “analítica do poder” em contraposição a uma “teoria do poder” (seu
objetivo não é apresentar do poder uma visão global, mas investigar os pon-
tos em que ele é exercido em nossa prática cotidiana). Para tanto, vou dar
destaque a um dos textos centrais de sua genealogia: Vigiar e punir.
38 M. Foucault, “La Vérité...”, art. cit., p. 549.
39 Ibidem.
40 Ibidem, pp. 549-50.
41 Ibidem, p. 551.
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- 51
3- VIGIAR E PUNIR:
Publicado em 1975, Vigiar e punir – Nascimento da prisão analisa
a história de uma mudança notável em nossa economia punitiva: de uma
prática do suplício ao sistema de encarceramento. A “história” dessa alte-
ração não deve, contudo, ser entendida no sentido que comumente atri-
buímos a um trabalho historiográfico. A preocupação maior de Foucault é
fazer uma “genealogia da alma moderna”, a qual requer um estudo porme-
norizado das práticas sociais em se cristalizam as relações de poder e de sa-
ber. A “alma moderna” é, portanto, uma “invenção” de nossa modernidade
política, ao invés de um extrato metafísico deduzido da história do espírito
ou uma criação da teologia.
Mas qual é a história da invenção dessa alma? Para contá-la, é preci-
so investigar a história política do corpo. Melhor dizendo, é preciso contar a
história de como o corpo foi capturado nas relações de poder. A exemplo do
que havia feito no período arqueológico, Foucault identifica na passagem
dos séculos XVIII e XIX o momento privilegiado em que nossa modernida-
de ganhou seus contornos. Com efeito, é a partir da segunda metade do sé-
culo XVIII que se inicia uma mudança profunda em nosso “estilo punitivo”,
atrelada a uma nova configuração do dispositivo de poder e saber.
Antes de entrarmos no conteúdo das análises históricas de Foucault,
valeria a pena destacar que o começo de seu livro nos apresenta uma pers-
pectiva crítica a respeito das concepções tradicionalmente aceitas do poder,
especialmente aquelas vazadas na forma do pensamento jurídico-político.
Em outras palavras, a concepção de poder que Foucault apresenta no pri-
meiro capítulo de Vigiar e punir coloca em xeque a capacidade explicativa
de termos como “soberania” e “Estado”, via de regra mobilizados para se
pensar a estrutura de nossa realidade política. É certo que Foucault não é o
primeiro a colocar em questão o alcance epistêmico dessas noções (autores
como Carl Schmitt e Hannah Arendt já o haviam nas décadas anteriores),
mas o percurso que segue para evidenciar suas limitações é inegavelmen-
te original. Como quer que seja, Vigiar e punir, assim como os cursos do
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Collège de France cronologicamente próximos à publicação do livro (em
especial Il faut défendre la sociéte´42), nos oferecem uma visão do poder
pouco compatível com o vocabulário jurídico que parece entendê-lo como
um “direito” ou uma “propriedade” que poderiam ser cedidos ou transferi-
dos. O poder, assim, não consiste em um privilégio que alguém pode deter;
o seu modelo é o da perpétua batalha antes que o do contrato “que opera
uma cessão ou a conquista de um domínio”. E Foucault declara que deve-
mos “admitir que esse poder se exerce antes do que se possui; que ele não é
o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas – efeito que manifesta e por vezes
reconduz a posição daqueles que são dominados”43.
Por outro lado, o poder não se aplica pura e simplesmente aos que
dele estão desprovidos. Na verdade, esse poder os atravessa e os investe,
apoia-se neles do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apoiam-se no ponto em que esse poder os toca44. Por conseguinte, as relações
de poder “aprofundam-se na sociedade”, o que significa dizer que a concep-
ção de poder como exercício próprio do Estado não capta a complexidade
dessas relações; em segundo lugar, “se há continuidade... não há analogia
nem homologia, mas especificidade de mecanismos e modalidades”; por fim,
essas relações não são unívocas, isto é, “definem inúmeros pontos de luta”45.
O poder se espalha, portanto, por sobre toda a estrutura social.
Essa “politização do social” não pode se efetivar sem que se revel o
caráter “produtivo” do poder. Mais uma vez, nos deparamos com a recusa
do modelo jurídico, segundo o qual ele seria um fenômeno que diz respeito
exclusivamente à lei e à repressão46, sendo essencialmente negativo, fun-
cionando na forma da coerção, da violência que o Estado exerce sobre o
42 M. Foucault, M. Foucault, Il faut défendre la société. Cours su Collège de France. 1975-1976. Paris: Gallimard/Seuil, 1997.
43 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 35.
44 Ibidem, pp. 35-6.
45 Ibidem.
46 Ver a esse respeito R. Machado, “Por uma genealogia do poder”, introdução a M. Foucault, Microfí-sica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. XV.
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cidadão para assegurar a manutenção da sociedade ou a perpetuação da
dominação. Para Foucault, essa concepção de poder é insuficiente para ex-
plicar a existência da própria sociedade capitalista: se o poder fosse exclu-
sivamente repressivo, como entender a obstinada submissão das pessoas
a ele? O poder antes incita, molda, conduz, possui uma eficácia produtiva.
Em Vigiar e punir, Foucault tenta demonstrar que o poder punitivo não
é algo que simplesmente castiga: ele também produz, tanto saber quanto
individualidades.
As práticas punitivas dão origem a uma série de conhecimentos so-
bre o homem no século XIX 47. O poder punitivo que emerge por volta do
século XVIII é responsável pelo nascimento das “ciências” que pretendem
delimitar, analisar, controlar o comportamento humano. Além do mais,
essa nova configuração da relação poder-saber apresenta como resultado a
produção de novos tipos de “sujeitos humanos”48. Esta última consideração
irá nos permitir retomar o problema central de Vigiar e punir, isto é, a his-
tória dos sistemas punitivos.
Foucault destaca, em sua análise do poder punitivo, duas transfor-
mações distintas: a primeira diz respeito à passagem de uma tecnologia
de poder construída sobre a figura do “corpo supliciado” a uma outra que
incide sobre “a alma e suas representações”; a segunda é a passagem desta
última a uma modalidade do poder punitivo construída em torno da figura
do corpo sujeito ao adestramento.
Até meados do século XVIII, o direito de punir concentrava-se na
pessoa do soberano. Cabia a ele, por intermédio de seus encarregados, co-
locar em prática as investigações e as sanções dos crimes. De acordo com
47 Diferentemente de Les mots et les choses, Foucault liga, aqui, o surgimento das ciências humanas à mudança na configuração do poder. Como afirma J. Rouse, “Vigiar e punir expandiu o escopo das investigações de Foucault sobre esta reconfiguração moderna do saber. Seus primeiros estudos tinham frequentemente associado a reconfiguração dos campos discursivos com a organização de novas insti-tuições, por exemplo, os asilos, as clínicas e os hospitais. No entanto, sua ênfase sempre incidiu sobre a estrutura do discurso. Em Vigiar e punir, contudo, a transformação das ciências humanas nos séculos XVIII e XIX foi explicitamente estabelecida no contexto de práticas de disciplina, vigilância e coerção que tornaram possível novos tipos de saber sobre o ser humano enquanto criavam novas formas de controle social” (J. Rouse, “Power/Knowledge”. In: J. Bernauer e M. Mahon (org.), The Cambridge Companion to Foucault. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 94).
48 Ibidem, p. 97.
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Foucault, a punição consistia, nessa época, em um espetáculo a ser presen-
ciado pelos súditos e que era, ao mesmo tempo, uma demonstração de força
do rei. Todo crime era, em última instância, um crime de “lesa-majestade”,
ou seja, representava um dano feito à pessoa do soberano do qual este exi-
gia a reparação. Tal reparação somente era obtida por uma punição que
recaía sobre o corpo do condenado (suplício). Era o corpo, portanto, que
deveria reparar o mal feito ao corpo do próprio rei que se estendia por toda
a sociedade. Daí esses rituais, hoje abolidos, do suplício que caracterizava a
punição: por seu intermédio, era a majestade do poder que se reafirmava.
Mas se reafirmava, Foucault não pode deixar de notar, pelo excesso. O su-
plício é uma forma de espetáculo no qual a intransponível distância entre
o súdito e seu soberano ganhava materialidade no sofrimento infligido ao
corpo do sentenciado. Nessa “política do horror”, diz Foucault, o que se tor-
na visível a todos sobre o corpo do criminoso é “a presença desencadeada
(déchaînée) do soberano. O suplício não restabelecia a justiça; ele reativava
o poder” 49. Logo adiante em seu texto, Foucault dá mais precisão a esse
aspecto da relação entre o suplício, o poder e a justiça: a execução pública
não deixa de ser uma obra de justiça, mas “é a justiça como força física,
material e temível do soberano que aí se desdobra. A cerimônia do suplício
faz brilhar em plena luz a relação de força que dá seu poder à lei”50. Chamo
a atenção sobre este último ponto porque ele concerne a um problema que
está no cerne da reflexão política moderna: o da relação entre força e lei.
A análise de Foucault permite compreender que o aporte material da vio-
lência que assegura a força da lei, que faz a lei valer em sua força, não pode
ser transposto sem mais para o âmbito da realidade política contemporâ-
nea. Assim como o Estado não pode ser considerado o ponto privilegiado a
partir do qual (por meio do qual) as relações políticas irão se desdobrar na
modernidade, a lei não pode mais reivindicar a prerrogativa de se constituir
como o princípio universalizante, unificador, regulador que confere forma
às associações políticas. Se a microfísica do poder coloca em perspectiva a
49 M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 60.
50 Ibidem, p. 61.
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- 55
função do Estado (ou coloca ainda o Estado como função), mostrando que
na modernidade o político (as relações de poder) o antecede, a lei deixa de
ser o princípio jurídico estabilizador das tensões e conflitos que atravessam
o corpo social para ser integrada nas estratégias políticas; não sob a forma
da ideologia, mas sob a forma da norma. Infelizmente não tenho tempo de
desenvolver esse tema aqui51. Mais adequado a nossos interesses é retomar
ao problema da relação entre corpo e poder e ver como a economia do su-
plício dará lugar a uma “tecnologia política do corpo”.
A prática punitiva sofre uma alteração por volta das últimas décadas
do século XVIII. Começa a surgir uma “tecnologia da punição ‘humana’ ”.
Assim, “no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada
quando punimos: ‘sua humanidade’ (...) O castigo deve ter a ‘humanidade’
como medida”52. É a época dos “grandes reformadores” do direito penal e é
quando a punição deixará de visar o corpo do condenado para se ocupar de
sua alma: ela deverá atuar ao nível da representação.
Para compreender melhor esse processo, é preciso ter em mente que
a transformação na prática punitiva se deve, inicialmente, ao fato de que o
espetáculo do suplício acabava por ser um princípio de desordem. A execu-
ção pública, em vez de imprimir no espírito da população o temor, o respeito
à força e à onipotência do soberano, podia transformar-se em uma ocasião
em que essa força mesma fosse rejeitada. Os súditos que tomavam parte
no espetáculo sentiam-se às vezes mais próximos daqueles que sofriam a
punição do que daqueles que a aplicavam. A tirania, assim, através do su-
plício, involuntariamente gerava rebelião: ineficácia do poder punitivo que
será corrigida quando for compreendido que o castigo deve pagar o dano, a
injúria, não a afronta. A proposta dos reformadores foi a de eliminar essa
“falha” na punição, desenvolvendo uma “economia” da prática punitiva na
qual o poder de castigar podia se inserir mais profundamente na sociedade
e, ao mesmo tempo, nela se distribuir melhor. A primeira preocupação da
reforma punitiva era, portanto, “não punir menos, mas punir melhor”53.
51 A respeito, ver o livro de Márcio A. Fonseca, Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.
52 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 89.
53 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 96.
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Por outro lado, havia o problema econômico das ilegalidades. Quando
estas passaram a ter como alvo principal não mais os direitos, mas os bens,
tornou-se urgente uma reforma no direito penal. Durante o Antigo Regime,
as ilegalidades eram aceitas e se constituíam até mesmo como meio de so-
brevivência das classes menos favorecidas. Elas iam de encontro, às vezes,
às ilegalidade das classes altas. Ao mesmo tempo em que mantinham rela-
ções de rivalidade, de concorrência, essas ilegalidades de classes diferentes
se apoiavam mutuamente, como na recusa camponesa a pagar certos “foros”
estatais ou eclesiásticos que era bem vista pelos proprietários de terras, de
modo que o “jogo recíproco das ilegalidades fazia parte da vida política e
econômica da sociedade”54. Porém, com o aumento geral da riqueza, por um
lado, e com o crescimento demográfico, por outro, a ilegalidade passou a
se incidir sobre os bens, o que exigiu uma mudança de postura frente a ela:
“a ilegalidade dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos
mais despojados tende, com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se uma
ilegalidade de bens”55. Como consequência, tornou-se necessário puni-la.
Essa necessidade de punir as ilegalidades teve de alcançar a instân-
cia controladora das penalidades, ou seja, o soberano. Foi preciso também
combater o excesso de poder, o “sobrepoder”, que lhe cabia:
“A forma da soberania monárquica, ao mesmo tempo em
que colocava do lado do soberano a sobrecarga de um poder bri-
lhante, ilimitado, pessoal, irregular e descontínuo, deixava do lado
dos súditos o lugar livre para uma ilegalidade constante; esta era
como a correlata daquele tipo de poder”56.
Portanto, a reforma penal visava, de uma parte, limitar o excesso de
poder do soberano e, de outra, controlar as ilegalidades conquistadas e tole-
radas. O “homem” que se pretende fazer respeitar na pena é, assim, afirma
Foucault, “a forma jurídica e moral que se dá a essa dupla delimitação”57.
54 Ibidem, p. 100. Ibidem, p. 100.
55 Ibidem , p. 101. Ibidem , p. 101.
56 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 104.
57 Ibidem, p. 105.
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Para alcançar o controle das ilegalidades desenvolveu-se um sistema
penal que funcionava como um aparelho capaz de geri-las. Decorreu daí
uma nova tecnologia do poder de punir que levava em conta, sobretudo, os
efeitos desse poder. Para Foucault, o que se chama de “humanidade” dessa
reforma consistia apenas no “nome respeitoso dado a essa economia e a
seus cálculos minuciosos”58. A prática punitiva passou a ser cálculo, uma
“arte dos efeitos” na qual o castigo não visava tanto a reparação do dano
feito quanto a não repetição do dano futuro. O castigo, portanto, devia atin-
gir a alma, seja do condenado, seja dos possíveis infratores. Mas de quais
técnicas essa “arte” se valeu? Foucault destaca seis regras que caracterizam
o que ele chama de “semiotécnica” penal. Todas elas (regra da quantidade
mínima; da idealidade suficiente; dos efeitos laterais; da certeza perfeita;
da verdade comum; da especificação ótima) buscavam imprimir na alma
das pessoas uma certa ideia da penalidade: a ideia de que não é vantajoso
cometer um crime; de que, caso alguém o cometa, será punido; de que para
cada crime há um castigo correspondente etc. Essas regras deviam atuar,
portanto, ao nível da representação, não do corpo:
“... que não seja mais o corpo, com o jogo ritual dos sofrimentos ex-
cessivos, das marcas ostensivas no ritual dos suplícios; que seja o espírito
ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente
mas com a necessidade e evidência no espírito de todos”59.
Mas esta “semiotécnica” foi rapidamente substituída pela universa-
lização da prática de detenção: a “cidade punitiva” cede lugar ao “reforma-
tório” como um laboratório de disciplina fechado. A prisão representa o
surgimento de uma nova “tecnologia” punitiva, uma nova anatomia política
que se ocupa dos corpos dos condenados com vistas a produzir “indivíduos
submetidos”. E a prisão será, assim, a figura máxima dessa nova forma de
organização social: a “sociedade disciplinar”.
Chegamos, então, ao ponto que queríamos, isto é, ao conceito de
“disciplina”. Segundo Foucault, as disciplinas são “métodos que permitem o
58 Ibidem, p. 109.
59 Ibidem, p. 120.
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58 -
controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição cons-
tante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”60.
Elas representam todos esses procedimentos que estão na base de uma
nova política do corpo, uma “política das coerções”, coerções estas que po-
dem ser consideradas como um “trabalho sobre o corpo, uma manipulação
calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos”61.
O corpo humano entra assim, diz Foucault, “em uma maquinaria de poder
que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”. Essa mecânica é também,
diz ele, uma “anatomia política” que “define como se pode ter domínio so-
bre o corpo dos outros” para que estes operem como se quer, com as técni-
cas e “segundo a rapidez e a eficácia que se determina”62.
O poder disciplinar produz, através desse controle dos corpos, uma
individualidade dotada de quatro características: ela é celular (pelo jogo
da repartição espacial); orgânica (pela codificação das atividades); genéti-
ca (pela seriação do tempo) e combinatória (pela composição das forças).
Para ter essa eficácia produtiva, a disciplina utiliza quatro “grandes técni-
cas”: “ela constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim,
para realizar a combinação das forças, organiza ‘táticas’ ”63. A disciplina
usa ainda três instrumentos: a “vigilância hierárquica”, a “sanção normali-
zadora” e o “exame”, que combina os traços dos dois primeiros, sendo “um
olhar normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e pu-
nir”; o exame acaba por estabelecer “sobre os indivíduos uma visibilidade
através da qual eles são diferenciados e sancionados”. No centro mesmo
dos procedimentos disciplinares, o exame manifesta, para Foucault, “a su-
jeição daqueles que são percebidos como objetos e a objetivação daqueles
que são assujeitados”64. Podemos perceber mais claramente, com esse ins-
trumento simples, o entrelaçamento de poder e saber. A prática do exame
60 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p.
61 Ibidem. Ibidem.
62 Ibidem. Ibidem.
63 Ibidem. Ibidem.
64 Ibidem. Ibidem.
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“traz consigo todo um mecanismo que liga a uma certa forma de exercí-
cio do poder um tipo de formação de saber”. Foucault demonstra então,
como a instauração de uma medicina “examinatória”, que observa com
regularidade o doente, deu ensejo à renovação do conhecimento médico,
ou como o surgimento do hospital “disciplinado” (com suas hierarquias e
regulamentos) está na origem da “disciplina” médica. A prática do exame
constitui um procedimento de individualização segundo três aspectos: 1)
“o exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder”, isto
é, com o exame aqueles que exercem o poder ficam na sombra, ao passo
que aqueles que sofrem a objetivação do exame recebem toda a luminosi-
dade, ganham plena visibilidade; 2) “o exame faz a individualidade entrar
em um campo documentário”, ou seja, o exame, ao colocar os indivíduos
em um campo de vigilância, também os situa em uma rede de anotações
escritas onde serão inteiramente “codificados”, “documentados”, o que re-
presenta, para Foucault, “a primeira formalização do individual no inte-
rior das relações de poder”; 3) “o exame, cercado de todas suas técnicas
documentárias, faz de cada indivíduo um ‘caso’ ”: o indivíduo pode ser
agora descrito, avaliado, medido, comparado a outros e isso em sua pró-
pria individualidade. O “caso”, aqui, é também “o indivíduo que tem que
ser treinado (dresser) ou retreinado (redresser), tem que ser classificado,
normalizado, excluído etc”65. Em resumo, o exame, combinando vigilância
hierárquica e sanção normalizadora, realiza
“as grandes funções disciplinares de repartição e classifi-
cação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação
genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de
fabricação da individualidade celular orgânica, genética e combi-
natória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode ca-
racterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de
poder para o qual a diferença individual é pertinente”66.
65 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p.
66 Ibidem. Ibidem.
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O exame, como instrumento da disciplina, está na origem do que Fou-
cault chama de “inversão do eixo político da individualização”, o que quer
dizer que em uma sociedade disciplinar a individualização é “descendente”:
“à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles so-
bre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados”67. A
“individualização” é feita por observações, fiscalizações, por medidas com-
parativas e por “desvios”. Para Foucault, o indivíduo é o efeito dessas re-
lações de poder e saber; ele é, portanto, “uma realidade fabricada por essa
tecnologia específica de poder que se chama a ‘disciplina’ ” e ele conclui:
“Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder
em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abs-
trai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz re-
alidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e
o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção”68.
E é precisamente nesse contexto que devemos compreender a prisão.
Ela é um local privilegiado para a produção de individualidade. A forma es-
pecífica desta individualidade será a “delinquência”. O verdadeiro papel da
prisão não é o de eliminar as infrações, de corrigir os criminosos, pois se as-
sim fosse teríamos de reconhecer um enorme fracasso que, por sua vez, per-
maneceria inexplicável. Por que uma instituição como a prisão, que sabida-
mente é ineficaz na correção e diminuição da criminalidade, permanece por
tanto tempo como a forma privilegiada de punição? A resposta de Foucault
é que esse fracasso é apenas aparente; na verdade, ele tem sua razão de ser.
Na sociedade disciplinar a punição não visa a eliminação das infrações, mas
sim seu controle, seu gerenciamento. A prisão, na medida em que é lugar de
aplicação da tecnologia disciplinar, desincumbe-se dessa tarefa. Nesse senti-
do, o “fracasso” da prisão oferece um objeto para um tipo de saber ao mesmo
tempo em que fornece “um solo para a expansão do poder normalizador no
governo do indivíduo considerado como um objeto do olho disciplinar”69.
67 Ibidem. Ibidem.
68 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p.
69 Ibidem.
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Mas é preciso agora seguir na direção inversa dessa especificação da
disciplina e fazer notar que o poder normalizador, que Foucault denomina
de poder disciplinar, não tem seu campo de aplicação restrito às institui-
ções carcerárias. Na verdade, ele se estende pelas mais diversas camadas
sociais, o mesmo valendo para seu efeito de subjetivação. Essa subjetivação
não pode ser efetivada sem a presença de um conhecimento individualiza-
dor (como as ciências humanas), um conhecimento que, sendo em si mes-
mo geral e universal, é capaz de produzir individualidades porque é norma-
lizador. A norma é o que permite a articulação entre a necessária formaliza-
ção que toda ciência deve possuir (sua universalidade) e a singularidade de
cada subjetividade. Por isso ela tem um importante papel a desempenhar
no domínio das relações de poder. Em certa ocasião, Foucault disse o se-
guinte a seu respeito: “a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A
norma não é simplesmente um princípio de inteligibilidade; é um elemento
a partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado”70.
Contudo, ela apenas pode legitimá-lo porque é capaz de responder à disper-
são e recalcitrância daquilo que é por natureza único identificando um ele-
mento comum, ou que possa ser o suporte de uma verdade comum. (Essa
identificação não opera a partir da exterioridade. A norma não deve ser
tomada aqui em seu sentido jurídico e sim em sua acepção biológica, o que
significa que ela é imanente ao objeto que ela mesma constitui71) Eis aí a
noção de alma, sua função própria e como ela permite capturar o corpo. E é
por essa razão que Foucault afirma que não devemos ver nela os “restos re-
ativados de uma ideologia”, mas sim “o correlativo atual de certa tecnologia
do poder sobre o corpo”, ou seja:
“Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito
ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que
é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior
70 M. Foucault. Os anormais. Curso no Collège de France. 1974-1975. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 62.
71 A respeito, ver P. Macherey, ”Pour une Histoire Naturelle des Normes”. Publicado originalmente em A respeito, ver P. Macherey, ”Pour une Histoire Naturelle des Normes”. Publicado originalmente em Publicado originalmente em Michel Foucault Philosophe e reeditado em De Canguilhem à Foucault. La force des normes. Paris: La Fabrique Éditions, 2009, pp. 71-97.
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do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os
que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são
vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os es-
colares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de
produção e controlados durante toda a existência. Realidade histó-
rica dessa alma que, diferentemente da alma representada pela te-
ologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce
antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de
coação. Esta alma real e incorpórea não é de modo algum substân-
cia; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de
poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as rela-
ções de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e
reforça os efeitos de poder”72.
Como podemos ver, a genealogia do poder levada a cabo em Vigiar
e punir lança uma luz completamente nova sobre as relações de poder: 1) A
crítica às teorias da soberania, sugere a exaustão das concepção jurídica do
poder; 2) O estudo da passagem do poder soberano para o poder disciplinar
opera uma dessubstancialização do poder em favor de sua difusão nos mais
diferentes registros sociais; 3) A lei e a concepção jurídica de norma dão lu-
gar a uma acepção natural, biológica da norma que, em vez de impor da ex-
terioridade um sistema de coerção, regularia “de dentro” o comportamento
dos indivíduos73. Este é o sentido fundamental da concepção produtiva e
positiva do poder.
No trabalho que desenvolverá nos anos seguintes, Foucault irá re-
finar, aprofundar, sofisticar essas concepções, as quais estarão sujeitas a
modificações e algumas revisões, mas também a uma ampliação. Já em seu
livro seguinte, A vontade de saber, primeiro volume de uma História da
Sexualidade, o escopo investigativo se alarga com a introdução da temáti-
ca do biopoder, modalidade de exercício do poder político na modernidade
que articula a anatomia política dos corpos individuais a uma política dos
72 M. Foucault, M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., p. 38.
73 Convém notar, porém, que essa acepção biológica da norma afeta a concepção jurídica na medida em que ficam ligados direito e subjetivação. Dizendo de outra forma, na modernidade não há direito sem disciplina. O sujeito de direito, nas análises de Foucault, está longe de se reduzir a uma entidade jurídica abstrata.
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corpos coletivos, isto é, a população. Essa política em “larga escala” colo-
ca em funcionamento um conjunto de mecanismos de gênero diferente das
disciplinas (embora não as dispense). São os dispositivos de segurança e
controle populacional que permitirão a prática de um poder cuja preocupa-
ção maior é o gerenciamento da vida e cujo agente privilegiado é o Estado.
Contudo, essa proeminência do Estado não significa um recuo nas análises
de Foucault em direção a um estatismo do qual já havia feito a crítica. Trata-
-se de inserir o próprio Estado em uma tecnologia de governo que dará as
diretrizes de uma biopolítica. Ao processo que está na origem da formação e
instauração dessa tecnologia Foucault chamará de “governamentalização”.
Para encerrar esta breve análise da genealogia do poder, gostaria de
observar, mais uma vez, que encontramos no trabalho de Foucault uma
concepção do político bastante original, capaz de colocar em xeque muitas
das categorias que usualmente aplicamos para compreender a realidade
política. O interesse desse pensamento, contudo, não se esgota em sua for-
ça epistêmica: a ele é inerente uma potência crítica que nos libera da ilusão
de que há verdade sem vontade de verdade, subjetividade sem técnicas de
subjetivação, liberdade sem relações de poder.
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FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.
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64 -
―------------------------- “La Vérité et les Formes Juridiques”. In: Dits et écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994, pp. 538-646.
―------------------------ Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975.
―------------------------ Il faut défendre la société. Cours su Collège de France. 1975-1976. Paris: Gallimard/Seuil, 1997.
―----------------------- Os anormais. Curso no Collège de France. 1974-1975. Trad. de Eduardo Bran-dão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MACHADO, Roberto. “Por uma genealogia do poder”, introdução a M. Foucault, Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
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NIETZSCHE, Friedrich. “Erkenntinistheorische Einleitung uber Warheit und Luge im Aussermoralischen Sinne”. In: Das Philosophenbuch (1873). Le livre du philosophe. Paris: Aubier-Flammarion, 1969.
―------------------------------- Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasi-liense, 1988, 2ª edição.
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ROUSE, J. “Power/Knowledge”. In: J. Bernauer e M. Mahon (org.), The Cambridge Companion to
Foucault. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
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MICHEL FOUCAULT:
TÉCNICAS DE PODER E BIOPOLÍTICA
Guilherme Castelo Branco1
No começo dos anos setenta do século XX, Michel Fou-
cault(1926-1984) forjou todo um instrumental metodológico para analisar
as diversas tecnologias de poder que foram sucessivamente elaboradas no
mundo ocidental, nos últimos quatro séculos, sobretudo a partir do que
ele denomina por ‘governamentalidade’. A princípio, Foucault se interes-
sa por saber como o poder acontece nas práticas cotidianas, em lugares
aparentemente cinzentos e periféricos da vida social; neste particular, o
filósofo francês mostra que certas técnicas de poder estão centradas no cor-
po, como as disciplinas, que procuram exercer uma pressão detalhada e
contínua sobre os corpos dos operários, trabalhadores, e todos os internos
subjugados em instituições que aglomeravam pessoas, como órfãos, viúvas,
loucos(uma vez que todos eram submetidos a uma rotina de trabalho) a
partir dos séculos XV e XVI. Livros, manuais e manifestos foram escritos,
no período, para divulgar o enorme potencial daquelas técnicas de controle
do corpo e de sua regulação temporal. A obsessão com estas técnicas de
controle do uso do corpo levou autores da época a apresentarem imagens
e gravuras nos seus opúsculos e livros, para ilustrarem suas técnicas e me-
tas de gestão dos corpos, e algumas destas imagens foram apresentadas
por Foucault no Vigiar e Punir(1976), a título de exemplo. Com o sucesso
do poder disciplinar enquanto instrumento de controle social, esta técnica
de poder vai se disseminar no campo social e converter-se em modalidade
real de exercício de poder até hoje: da escola ao exército, do hospital ao
acampamento de refugiados, todos nós, consciente ou inconscientemente,
obedecemos a uma regulação e disposição corporal pelos quais seguimos e
cumprimos regras de convívio social, profissional e político.
1 Professor Associado III da UFRJ.
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Mesmo sem contornos históricos bem definida na analítica do poder
de Foucault, uma noção necessária e complementar à de disciplina foi a de
normalização. Deslizando entre o campo da norma jurídica e o da produção
social e histórica de alguma modalidade de normalização, Foucault chama
a atenção para o fato de que a normalização tem por foco a vida subjetiva
dos indivíduos, e fascinou, a partir dos séculos XVII e XVIII, um conjunto
significativo de filósofos, educadores e toda uma gama de escritores vol-
tados para este aspecto da vida social. O problema central da normaliza-
ção, em outras palavras, é o cuidado com a alma dos seres humanos, com
o conhecimento possível da subjetividade humana, e, por consequência,
com a questão de como dominá-la. A escola e a família seriam agentes por
excelência, mas não os únicos, das técnicas de normalização. Os objetivos
mais importantes dos procedimentos de normalização seriam a produção
de subjetividades assujeitadas, a criação de trabalhares honestos, cidadãos
cumpridores dos deveres, bons pais de família, pessoas feitas em série e
mais ou menos padronizadas nos seus modos de viver, nos seus gostos,
nos seus estilos e gostos, até mesmo no seu modo de morrer. As Ciências
Humanas, que surgem depois desta época, decorrem do interesse em se co-
nhecer o que se passa na cabeça das pessoas para melhor dominá-las, e são
um efeito inegável das técnicas de poder em sua vertente de constituição do
controle subjetivo, também denominado poder normalizador.
Segundo Foucault, os saberes e poderes que visam à normalização e
ao controle social, todavia, não seriam a única novidade na gestão política
dos países ocidentais a partir da idade clássica. Do agenciamento do saber-
-poder médico com o saber-poder jurídico, surgem diversos modos novos
de exercícios do poder, visando ao “assujeitamento dos corpos e contro-
le das populações” (FOUCAULT, 1976, p. 184). O efeito político massivo
que daí resulta é a entrada na “era do biopoder.” (FOUCAULT, 1976, p.
184). Como define Foucault, no início do Segurança, território, popula-
ção, o biopoder pode ser caracterizado pelo “.... conjunto de mecanismos
pelos quais o que constitui, na espécie humana, seus traços biológicos fun-
damentais, vai poder entrar no interior de uma política, de uma estratégia
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- 67
política, de uma estratégia geral de poder; ou, dizendo de outra maneira,
como as sociedades, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século
XVIII, passaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o
ser humano constitui uma espécie humana.” ( FOUCAULT, 2004b, p. 3), O
tempo de biopoder, que é por excelência o nosso tempo, caracteriza-se pela
ampliação crescente das articulações dos saberes biológicos e biomédicos
com os dispositivos jurídico-institucionais, com grandes efeitos no cam-
po da macropolítica, seja nas relações entre os Estados, seja no interior de
cada Estado, indo até mesmo à interferência micropolítica no modo de vida
das pessoas, no interior de suas próprias casas.. As técnicas de poder, as
tecnologias de segurança postas em ação, de grande complexidade, em nos-
sas sociedades, vai se fazer “....seja por mecanismos que são propriamente
mecanismos de controle social, como é o caso da punição penal, seja meca-
nismos que tem por função modificar alguma coisa no destino biológico da
espécie.” ( FOUCAULT, 2004b, p. 12).
Michel Foucault, quando analisa os conflitos entre as nações, o con-
fronto dos interesses econômicos dos países, a partir do século XX, dá-se
conta de que eles passaram a produzir guerras cada vez mais sanguiná-
rias, nas quais os combatentes passaram a ser eliminados em escalas nunca
antes imaginadas (na época, não foram poucos os que perceberam que as
guerras eram também uma maneira de eliminar parcela da população do
próprio país, deliberadamente escolhida nas camadas menos desejáveis do
povo, segundo o governo ou suas elites). Todavia, para Foucault, o mais
aterrador é um fato totalmente novo e singular, fora de situação de guerra
interna ou externa, onde “[...] guardadas todas as proporções, até então,
os regimes nunca tinham praticado tais holocaustos sobre sua própria po-
pulação.” (FOUCAULT, 1976, p. 179). Sob as mais diversas justificativas e
também com as mais diversas estratégias, os Estados, no decorrer do sécu-
lo XX, eliminaram grandes contingentes humanos dentre os membros de
suas próprias nações. O que perturba Foucault é que o biopoder, que em
tese deveria ser uma modalidade de gestão do poder que teria por finali-
dade gerir a vida e fazer viver, tenha se convertido, sobretudo, num poder
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de morte, exercendo a função prioritária de acarretar a morte das pessoas.
Com indignação, o filósofo pergunta: “como é possível que um poder polí-
tico mate, reivindique a morte, exija a morte, faça matar, dê a ordem para
matar, exponha à morte não apenas seus inimigos, mas também seus cida-
dãos?” (FOUCAULT, 1996, p. 205).2
As três técnicas de poder estudadas por Foucault, a disciplinarização
(tecnologia de controle, sobretudo, dos corpos adestrados), a normalização
(ou educação, isto, é controle positivo do comportamento e do pensamento,
de maneira sobretudo individualizante), o biopoder (controle da população,
tanto em seu fluxo quanto em tamanho), mantém entre si, malgrado seus
diferentes tempos de emergência históricos e seu modo de funcionamento,
relações circulares e interdependentes. No que diz respeito ao biopoder, a
hipótese de Foucault é a de que o genocídio da própria população, um dos
aspectos desta forma de gestão política da população, resulta de uma nova
modalidade de racismo, de caráter estatal, sustentada por princípios cien-
tíficos e técnicos: “o que permitiu a inscrição do racismo nos mecanismos
do Estado foi, conjuntamente, a emergência do biopoder. Este é o momento
em que o racismo é introduzido como mecanismo fundamental do poder e
segundo as modalidades exercidas pelos Estados modernos.” (FOUCAULT,
1996, p. 205).
O neo-racismo que se inicia na era do biopoder, por um lado, se
exerce segundo uma crescente e renovável divisão da população em gru-
pos e sub-grupos, em raças e sub-raças, numa escalada virtual sem fim, de
modo a que seja sempre possível, no interior de uma sociedade ou coleti-
vidade, apontar para grupos potencialmente inferiores, patológicos, doen-
tes, anormais, em oposição a grupos saudáveis, superiores, viçosos. Outro
aspecto relevante do exercício do neo-racismo é fazer com que as pessoas
pensem que suas vidas somente são possíveis às custas da exclusão e/ou da
eliminação de outras. Trata-se da justificativa da manutenção da vida de
2 Utilizo-me da edição em espanhol do curso do Collège de France que recebeu por título Em defesa da sociedade. Esta escolha deve-se à importância da edição espanhola, pirata, que recebeu por título Genealogia del racismo, e que publicou apenas as lições finais do curso. O fato é que esta edição pirata obrigou o Centre Michel Foucault a providenciar a rápida publicação dos cursos de Foucault, com gran-des benefícios para os estudiosos de sua obra.
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um povo ou de uma coletividade social pela deliberada eliminação de outra
coletividade qualquer. Frases como “se queres viver, o outro deve morrer”
converte-se num slogan político e é, a todo momento, utilizado nas chan-
tagens a respeito do direito à riqueza e ao bem-estar social. A grande chan-
tagem está na associação possível da eliminação do outro( que pode ser,
a qualquer momento, qualquer e qualquer segmento da sociedade) com a
purificação da sociedade como um todo. Como alerta Foucault: “a morte do
outro, a morte da raça má, da raça inferior(degenerada, inferior), é isto que
tornará a vida mais sã e mais pura”(FOUCAULT, 1996, p. 206). O biopoder
utiliza-se, sem dúvida, de uma articulação política entre segurança e poten-
cial de eliminação de parcela da população.
Nossos tempos, assim, têm alicerçado muitas relações hegemônicas
de poder fundamentando-as em justificativas e metáforas de caráter bioló-
gico e médico, nas quais o que está em jogo é a defesa da ordem social e da
vida, contra os perigos biológicos, desagregadores e desordenadores, que
certos grupos carregam consigo. Toda uma tática política que assegura o
modo pelo qual o Estado opera, a partir do final do século XIX, vem deste
tipo de funcionamento: “a partir do momento em que o Estado passa a
funcionar baseado no biopoder, a função homicida do Estado passa a ser
assegurada pelo racismo” (FOUCAULT, 1996, 207). O processo de trans-
formação do direito ao genocídio numa necessidade social e política já ti-
nha suas origens no genocídio colonizador, que perdura, sem diminuir, até
o momento presente. Todavia, o fato novo no processo político contem-
porâneo está no discurso legitimador do genocídio tanto dos estrangeiros
como de seus próprios cidadãos, alegação apresentada pelos Estados como
sendo imprescindível para levar a cabo a regeneração da própria raça:
“quanto mais morrem os outros, mais pura será nossa raça”(FOUCAULT,
1996, p. 209).
O neo-racismo é extremante eficaz nos seus efeitos, e tem sido um
instrumento de crescentes e sucessivas medidas de ação política e de inter-
venção médica. O racismo de Estado é desenvolvido segundo as competên-
cias técnicas, científicas e jurídicas postos à disposição no seu tempo: “[...]
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estamos longe de um racismo como simples ou tradicional desprezo ou ódio
entre raças. Porém, também estamos longe do racismo entendido como uma
operação ideológica com a qual o Estado ou uma classe{social} cuidariam
de voltar contra um adversário mítico as hostilidades que outros fariam
voltar contra eles, ou que poderiam trabalhar no corpo social”(FOUCAULT,
1996, p. 209). Por exemplo, a possibilidade de matar ou eliminar um crimi-
noso é um dos resultados do biopoder, e pode ser estendida, com o passar
do tempo, a outros personagens tornados indesejáveis conforme os ventos
sociais, como os loucos ou portadores de outras patologias, ou mesmo com
características físicas ou psíquicas sem importância no momento presente.
Para Foucault, o exemplo mais marcante e radical de exercício do
biopoder ainda é o caso do nazismo: “[...] o regime nazista não terá como
único objetivo a destruição das outras raças. Este é apenas um de seus as-
pectos. O outro {aspecto} é o de expor a própria raça ao perigo absoluto e
universal da morte. O risco de morrer, a exposição à destruição total é um
princípio inscrito entre os deveres fundamentais da obediência nazista e
entre os objetivos essenciais da política “(FOUCAULT, 1996, p. 210). O que
está em jogo, portanto é o sacrifício da própria vida como dever perante o
regime e os demais membros da sociedade, chegando ao caso extremo da
auto-eliminação da própria população, quando esta se revela incapaz de
cumprir com os mandamentos políticos de sua nação; ou, mais precisa-
mente, tal possibilidade de auto-destruição obedece à seguinte lógica: se
uma sociedade não é capaz de se impor como raça superior, ele não me-
rece o direito à vida, e deve se auto-eliminar pelo fato de que se converteu
uma raça inferior, logo passível de ser destruída. Foucault conclui; “com os
nazistas [...] assistimos à emergência de um Estado absolutamente racis-
ta, absolutamente homicida, absolutamente suicida (FOUCAULT, 1996, p.
210). Na Alemanha nazista, na verdade houve a superposição da “solução
final”, de 1942 em diante, com a “solução” de abril de 1945.3
Foucault chega a indicar que esta junção no Estado moderno, do ra-
3 Esta “solução” aparece no Telegrama 71. O teor do telegrama é assustador: nele, Hitler dá a ordem de se eliminar as condições que mantinham o povo alemão com vida.
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cismo com o suicídio, não é uma fórmula que se encerrou no episódio do re-
gime nazista. Tal articulação acontece, em maior ou menor magnitude, em
todos os Estados, capitalistas ou socialistas. O processo que leva à aposta
entre a vida e a morte de toda uma população, está em pleno vigor na atu-
alidade, se levamos em conta o arsenal bélico disponível a inúmeros países
do mundo. O pensador faz um alerta, a propósito dos arsenais militares
gigantescos, aliados à potência genocida dos Estados: “a situação atômica é
hoje o ponto culminante deste processo: o poder de expor uma população a
uma morte geral é o inverso de garantir à outra {população} sua manuten-
ção na existência”. (FOUCAULT, 1976, p. 180).
O caráter genocida do Estado tem várias faces e manifestações: “[...]
quando falo de homicídio, não penso somente no assassinato político dire-
to, mas em tudo que pode ser, também, morte indireta: o direito de expor
à morte, ou de multiplicar para alguns o risco de morte, ou – mais simples-
mente – a morte política, a expulsão” (FOUCAULT, 1996, p. 207). Nem
sempre o que está em jogo, portanto, é o mero trabalho de eliminação, mas
também o potencial afastamento de cidadãos por motivos econômicos(
pois nos países para onde os exilados vão não está garantido, quase nunca,
nenhum direito, seja trabalhista ou cobertura médica e/ou previdenciária).
Por outro lado, os nômades, os que circulam em demasia, mesmo no inte-
rior de um país, assim como todos aqueles que tem trabalho ocasional e de
natureza temporária estão mais expostos a riscos que todos os trabalhado-
res sedimentados, e são objeto de rejeição das instituições e das políticas
governamentais.
O racismo e o genocídio inerentes ao Estado e às sociedades con-
temporâneas, certamente, não são realizados sem lutas de resistência. Mas
não deixa de ser um fato notável que tantos assassinatos em massa tenham
ocorrido, na modernidade, em escala tão gigantesca, sem enfrentar uma
contestação generalizada e sistemática de grupos organizados e mesmo da
maioria das sociedades. Segundo Foucault, poderia existir uma explicação,
ao menos parcial para esta omissão social diante da exclusão e do racismo:
os procedimentos normalizadores constituíram um assujeitamento indis-
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sociável do individualismo burguês, e que foram o fermento inicial para a
posterior intervenção do Estado sobre o direito de vida e morte das popu-
lações. Datados dos primeiros anos da década de setenta, os artigos, en-
trevistas e cursos do filósofo francês sempre tiveram como tema decisivo a
questão do individualismo, assim como o da formação da individualidade,
a mesmo título que a constituição de uma subjetividade assujeitada, sub-
missa aos poderes.4
Primeiro dado a ser considerado: os proletários e os pequeno-bur-
gueses no século XIX, malgrado suas diferenças sociais, tinham reivindica-
ções e aspirações que foram objeto de progressiva conquista histórica, mas
a um preço que não foi pequeno. A luta pelo direito ao ensino e ao atendi-
mento hospitalar, por exemplo, se revelam uma combatividade por direi-
tos, mostram, por outro lado , que sua conquista leva a um modo de vida
sedentário e conformado. Trata-se do fim do ciclo das constantes migra-
ções e do gosto pela vida” livre e nômade,” em nome de certas conquistas
de bem-estar social para a família. Associado a estas aspirações, criam-se
caixas de poupança, para que as pessoas possam comprar suas casas, ain-
da que simples, e fixar residência, às custas de enorme esforço da família,
que tudo deve poupar e suportar para não perder sua única propriedade
potencial, conquistada com o assujeitamento das pessoas e com o estabele-
cimento de uma vida regrada e sem prodigalidade de nenhuma espécie. A
organização da família, sua estrutura interna no cotidiano, torna-se rígida,
totalmente em conformidade com uma moral da restrição e do controle
pessoal e familiar do padrão de consumo (ao contrário da incitação ao con-
sumo na atualidade, mesmo para as classes populares). Na verdade, alerta
Foucault, a respeito destas lutas populares por direitos no século XIX, que
se prolongam no século XX: “dizendo de outra maneira, a moralidade im-
posta de cima converte-se numa arma em sentido inverso”(FOUCAULT,
1994, v. 2, p. 664).
4 A este respeito, a passagem entre as páginas 226 e 227 do Dits et Écrits, v. 2, n. 98, 1994 é um exem-plo irrefutável do anti-individualismo de Foucault.
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Outro componente que contou para a quebra dos vínculos comu-
nitários foi o desenvolvimento do sistema de seguridade e de previdência
social, na medida em que para se conceder direito a um possível ‘benefício’
ou direito à assistência, o sistema previdenciário passa a exigir uma vida de
trabalho regular e constante, e também uma maneira apropriada de seus
afiliados e assegurados conduzirem suas vidas (regradas e sem riscos), as-
sim como pede hábitos e rotinas que não levem ao aumento de gastos no
orçamento global(por sinal quase sempre deficitários). As pessoas são se-
paradas entre as cobertas pela seguridade social e as sem direito a ela, e es-
tas segundas são logo vistas pelos demais como quase-párias e indesejáveis
socialmente, uma vez que têm um modo de vida inconsequente e perigoso.
A aspiração ao direito à previdência social, portanto, se faz às custas de
uma vida assujeitada, submissa a padrões de controle e de governabilidade,
avessa a todo risco, intensidade e forma de vida desarrazoáveis.
A própria estrutura familiar passou por um extraordinário proces-
so de transformação e tornou-se suscetível de sofrer intervenções tanto de
instituições quanto de profissionais na sua vida íntima. Foucault descreve,
no seu curso do Collége de France de 1974-75,5 que ao longo do séc. XIX,
o desenvolvimento da família nuclear burguesa se fez com o envolvimen-
to dela com outras práticas institucionais. Ao contrario da família aristo-
crática, muita extensa, com primos, amigos e parentes distantes morando
nas residências, com escasso envolvimento dos pais na vida cotidiana das
crianças, a nova família burguesa e pequeno-burguesa passa a ser nuclear e
pouco numerosa e realiza um escrupuloso cuidado parental sobre as crian-
ças no seu ambiente interno ou doméstico. O cuidado dos pais, todavia,
não é a única exigência social nova; deve ser prolongado e supervisionado
por um controle externo, supostamente mais especializado e preparado,
feito por profissionais dotados de conhecimentos e técnicas de intervenção,
como seriam os educadores assistentes sociais, e, sobretudo, os médicos.
Ocorre, neste caso, uma certa inversão: a relação pais-filhos prolonga a re-
lação médico-paciente. Ao menor sinal de alguma perturbação no interior
5 Publicado sob o título Os anormais.
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da família, o médico deve ser chamado a intervir, realizando uma mediação
entre os familiares. O novo grupo familiar, celular, não deixa de se caracte-
rizar por uma irônica subordinação do convívio a um saber-poder externo,
o que faz dessa nova família, além ser uma instituição afetiva, sexual e eco-
nômica, uma família medicalizada. Entre uma pessoa ‘doente’ e o restante
da família, é o médico o principal ator e interveniente. Outro ator: o psicó-
logo. Mais um ator externo: o assistente social; em certos casos e condições,
a polícia e, advogados e auxiliares credenciados da justiça podem também
intervir na vida familiar. A família, como um todo, vê-se envolvida por tra-
tamentos e intervenções, de modo direto, mas não é ela apenas que toma
as decisões sobre o que fazer e como fazer na condução de seus problemas
e de suas vicissitudes.
Além do mais, a nova família pequeno-burguesa e burguesa recebe
do Estado republicano em vias de se constituir uma função educativa que
não possuía anteriormente. Os pais devem cuidar dos filhos, não devem
deixá-los morrer, devem educá-los para entregá-los, mais tarde, prepara-
dos e prontos para exercerem a cidadania, o civismo, a vida laboral. Os
pais passam a ser responsabilizados pelo desempenho dos filhos na escola.
Passam a competir com os outros pais pelo bom desempenho de seus filhos,
de preferência com desempenhos melhores do que os outros. Para ter êxito
nesta tarefa educativa os pais passam a solicitar e a obedecer a uma série de
regras fundadas em ‘padrões’ de racionalidade prescritos por médicos, edu-
cadores, guias morais. E estes agentes do bom desempenho escolar cons-
tituem um discurso bastante paradoxal: pedem, chegam mesmo a exigir a
total abnegação dos pais na educação de seus filhos, para depois, com total
desprendimento, deixá-los partir, jovens adultos, para cumprirem, por sua
vez, as suas ‘obrigações’ sociais, econômicas, políticas.
Ordem médica, sistema educacional, sistema judiciário, enfim todo
um complexo de saberes é crescentemente chamado a atuar onde anterior-
mente o bom senso e a experiência comunitária ou coletiva faziam valer
suas lições. A partir do século XIX, os saberes, em especial as Ciências
Humanas, criam uma complexa rede de instituições, multi-causal e hete-
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- 75
rogênea, que trabalha em prol da defesa da sociedade boa, sensata e sau-
dável. O resultado deste processo complexo de gestão da vida humana são
indivíduos condicionados e constituídos pelos poderes e técnicas de poder.
O poder, entendido no plural, deste modo, não apenas adestra corpos e
normaliza comportamentos e atitudes, mas constitui as próprias individu-
alidades. Mais ainda, produz as formas de vida e o dia-a-dia dos indivíduos,
voltados para si e distanciados das demais pessoas, centrados quase que ex-
clusivamente para seu próprio mundo e para seus pequenos rendimentos e
recursos, o que Foucault chama de ‘individualismo’. O individualismo, con-
siderado como um modo de viver e de pensar a vida, passa a estar centrado
na ‘moral do interesse”(FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 629) que foi inculcada
na pequeno-burguesia, e que foi estendida às classes populares a partir do
século XIX. Um modo de vida egoísta, desvinculado dos demais, esta é a ca-
racterística do modo de vida dos indivíduos assujeitados na modernidade.
Tal comportamento apartado das outras pessoas, expressão da vida subme-
tida ao poder, lembra Foucault, é produto de um processo histórico voltado
para o controle da vida pessoal: “esta forma de poder se exerce na vida
quotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, os designa
em sua individualidade própria, os adstringe às suas individualidades, lhes
impõem uma lei de verdade que eles devem aceitar e que os outros devem
reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em
sujeitos.” (FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 227).
O individualismo, para Foucault, ocorre na contramão da vida co-
munitária. Decorre de práticas divisórias que separam, crescentemente,
as pessoas umas das outras, que levam a uma vida solitária, que incita os
indivíduos a cuidarem dos outros apenas segundo a dimensão do controle,
da denúncia, do chamamento à ordem e à obediência das normas. Cria-se,
assim, uma ‘polícia da cidadania’, onde todos são convocados a controlar
os demais. Simultaneamente, tais práticas divisórias já contêm elementos
do racismo, de acordo com a concepção de Foucault, pois fazem do indi-
víduo um mero objeto, como no exemplo da “separação entre o louco e o
homem são, entre o doente e o indivíduo sadio, entre o criminoso e o ‘bom
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moço’”(FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 227). Os excessos de poder praticados
pelos Estados contemporâneos, por consequência, tem na despolitização
vinculada ao individualismo um forte auxiliar de suas tendências radicais
na condução das populações.
Quando, na fase final de sua obra, Foucault dá relevo às relações
de poder e às resistências ao poder, não pode deixar de conceder um lu-
gar importante, dentre as lutas de resistência relevantes da atualidade, às
lutas em torno da individuação e contrárias ao individualismo, como “as
que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo. E assegura, deste
modo, sua submissão aos outros (lutas contra o assujeitamento, contra as
diversas formas subjetividade e de submissão” (FOUCAULT, 1994, vol. 4,
p. 227).). O que não significa dizer que as lutas contra o assujeitamento des-
mereçam as demais tradicionais formas de luta; mas que elas, na verdade,
são as mais incisivas do tempo presente: “[...] hoje, na atualidade, é a luta
contra as formas de assujeitamento – contra a submissão de subjetividade
– que prevalece cada vez mais, ainda mais porque as lutas contra a domina-
ção e a exploração não desapareceram, bem pelo contrário”(FOUCAULT,
1994, v. 4, p 228). Ao fim e ao cabo, nós também temos que recusar, se
tivermos ainda capacidade de reação aos instrumentos e tecnologias do po-
der, o tipo de individualidade com a qual fomos forjados, e sermos capazes
de inventar e criar novas formas de vida e novas relações conosco mesmos,
e, neste segundo caso, temos que ultrapassar constantemente os nossos li-
mites subjetivos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sécurité, territoire, population. Paris: Ed. du Seuil, 2004b.
Genealogia del racismo. La Plata: Altamira, 1996
Guilherme Castelo Branco coordena o Laboratório de Filosofia
Contemporânea da Universidade Federal do Rio Janeiro. É Professor do
Departamento de Filosofia da UFRJ. Pesquisador do CNPq. Pesquisador
da FAPERJ. Membro do Centre Michel Foucault, França. Coordenador no
Brasil do acordo internacional apoiado pelo Ministério de Educação argen-
tina ( RSPU 1070/10 ) na área de Filosofia Política, que integra Argentina,
Brasil e México. E-mail:[email protected]
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A NOÇÃO DE DISCURSO EM
MICHEL FOUCAULT.
Izabel Friche Passos1
Introdução
A noção de discurso, desdobrada nas ideias de arquivo e de práticas
discursivas, é central na forma de problematização da história por Fou-
cault. Percorre toda sua obra, passando por transformações sucessivas, se-
gundo se trate da história dos saberes (das ciências humanas e medicina),
da história de práticas sociais concretas e locais, como aquelas em torno da
loucura e dos sistemas de punição, ou da história de práticas de subjetiva-
ção, como aquelas do cuidado de si na antiguidade.
A história que sempre interessou a Foucault não foi exatamente a
história tradicional produzida pelos historiadores, mas aquela que lhe
permitisse uma interrogação sobre as transformações e os acontecimen-
tos cuja trama genealógica poderia, ou deveria, ser explicitada a partir do
trabalho paciente de perseguição de detalhes, por vezes insignificantes, de
narrativas menores (ao modo como Deleuze se referiu a certa literatura),
de fragmentos de existência. Acontecimentos cuja “escavação” arqueológi-
ca seria feita através da análise da formação dos discursos, materializada
nos arquivos acumulados. Nesse modo foucaultiano de abordar a história e
de pensar os acontecimentos, encontramos noções transmutadas de outros
campos de saber, tais como: genealogia, arqueologia, arquivo.
A genealogia, inspirada no uso que desse conceito fez Nietzsche, já
se encontra, hoje, em “estado de dicionário”, como diria Drummond de
Andrade. O Houaiss traz na última Rubrica: Filosofia, para o termo, a se-
guinte definição, sucinta e precisa: “em Nietzsche (1844-1900) e Foucault
1 Professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Fafich/UFMG
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80 -
(1926-1984), investigação da história com o objetivo de identificar as re-
lações de poder que deram origem a ideias, valores ou crenças” (Houaiss,
versão eletrônica).
A arqueologia foucaultiana só tem com a ciência da qual empresta o
nome uma aproximação metafórica, mas muito importante. Remete para a
materialidade dos discursos, à semelhança dos fósseis e artefatos colecio-
nados pelo arqueólogo como traços a partir dos quais reconstrói a história
dos costumes e da vida cultural de povos há muito desaparecidos.
Por fim, arquivo, conceito aparentemente mais apropriado, uma vez
que se trata de todo modo de se fazer uma história, entretanto, muito mais
sutilmente transmutado de seu sentido originário e, portanto, talvez de
mais difícil compreensão. Heliana Conde Rodrigues (2009) em seu belo e
elaborado artigo “Sobre arquivos e tumbas: uma análise da expressão ‘do-
cumento como monumento’”, traz densa reflexão sobre o equívoco de se
pensar o arquivo, e nele o documento, como um conjunto do que se pôde
ordenar, organizar, estabelecer através de uma inscrição ou fixação em do-
cumentos escritos. Arquivo na análise foucaultiana do discurso é o conjun-
to de todos os enunciados, de tudo o que se pôde dizer e, no que se disse,
elidir, num determinado campo de práticas. Neste sentido, os arquivos são
formados antes pelo que se encontra disperso, emaranhado, esquecido ou
transformado e não apenas pelos textos e os testemunhos ordenados, cui-
dadosamente preservados, criteriosamente classificados.
A história para, ou melhor, em Foucault, não sendo uma memoria-
lística nem, muito menos, uma história “monumental” (modo como ele
qualificou a história que busca reconstruir as séries de continuidades, as
razões históricas dos acontecimentos, ou as grandes narrativas), busca res-
saltar a singularidade de acontecimentos e neles o lugar da singularidade
subjetiva, produzida no jogo discursivo do saber/poder, responsáveis por
um modo específico de existência, de relação com o conhecimento e de go-
verno de si e dos outros. Ou seja, modos de subjetivação que perpetuam,
alteram ou transformam o passado no presente em que se vive. Daí Fou-
cault autodefinir-se, quando instado, a contra-gosto, a fazê-lo, como um
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- 81
jornalista ou um comentador do presente, mais que como um filósofo da
história ou um historiador.
O que trago para compartilhar com vocês nesse seminário não é um
comentário sobre a obra de Foucault a propósito do tema do discurso e da
história. Será antes a proposição de um diálogo sobre o uso que tenho feito
dela em minhas pesquisas empíricas, etnográficas e cartográficas. Uso que,
como queria o próprio filósofo, a obra mais que autoriza, incita a fazer. A
tarefa não é nada fácil, porque uma coisa é usar, outra, muito mais difícil é
tomar distância para poder enxergar o modo como se está usando. Vou ten-
tar. Certamente não é como especialista que tomo a palavra. Não me consi-
dero mais que uma amante utilitária da obra do filósofo e uma admiradora
da biografia de um homem cuja mente inquieta e brilhante nos ampliou os
horizontes do pensamento e cuja existência nos legou uma vida bela.
História e memória
Participei, em 2009, do VI Encontro Sudeste de História Oral, pro-
movido pela Sociedade Brasileira de História Oral, no qual coordenei um
simpósio sobre Memória e saúde. História oral, história escrita – nunca
entendi como se poderia separá-las. No entanto, foi preciso que se criassem
várias associações e um verdadeiro movimento, muito recente, aliás, em
prol da história oral para que as estórias narradas pelos viventes contem-
porâneos pudessem ser incorporadas à historiografia do mundo ocidental,
isto é, fossem levadas a sério e deixassem de ser desqualificadas como rela-
tos suspeitos de distorção dos fatos pela subjetividade do narrador.
Não sou profissional da disciplina, minha inserção como psicóloga
social é no campo da saúde mental em sua interface com a saúde coletiva.
Esta incursão pela história, no meu caso, se dá pela via do levantamento
de relatos de histórias de vida e muito uso de entrevistas nas pesquisas
que faço. Mas as entrevistas tem menos propriamente uma perspectiva
histórica que etnográfica, o que produz certas inflexões próprias às inda-
gações históricas no meio de um conjunto complexo e imbricado de práti-
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cas e discursos que nossas descrições, chamadas densas, pretendem fazer
do cotidiano de uma comunidade ou grupo. A identificação dos elementos
históricos está muito mais comprometida com a proliferação de narrativas
que povoam a memória coletiva e o imaginário da comunidade que com o
estabelecimento de linhas de continuidade entre o passado e o presente.
Como diz Alessandro Portelli, concordando com Pietro Clemente, há sim
distinção
“entre os ‘fatos’ do historiador [aspas no original] e as ‘re-
presentações’ do antropólogo (...). Porém só considerando-as jun-
tas é que se pode distingui-las. Representações e ‘fatos’ não existem
em esferas isoladas. (...) Talvez essa interação seja o campo espe-
cífico da história oral, que é contabilizada como história com fatos
reconstruídos, mas também aprende, em sua prática de trabalho de
campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade dos nar-
radores, a entender representações”. (Portelli in Ferreira e Amado,
2005: 111)
Foucault nunca se apresentou como historiador. Não constitui ne-
nhuma novidade que Foucault tenha explicitamente se afastado da histo-
riografia oficial, seja aquela baseada no recenseamento de heróis e grandes
feitos, seja aquela que se apresenta como ciência e pretende alcançar o sen-
tido último dos acontecimentos. Foi crítico contumaz dessa história-ciência
que trata os acontecimentos como se fossem resultantes de uma cadeia ne-
cessária de fatos determinantes que o historiador buscaria restituir, e não
frutos de acasos ou efeitos de jogos de força que poderiam ter dado em uma
outra história totalmente diferente se o resultado dessas lutas e embates
fosse outro. Seguindo as pegadas de Nietzsche, Foucault chamou esta histó-
ria, pejorativamente de história monumental (ver especialmente seu texto
de 1971, “Nietzsche, a genealogia e a história”, em Microfísica do Poder).
Nesse mesmo texto, Foucault também se levanta contra a memória tout
court e contra o culto da memória. Interpretando suas palavras, penso que
está nos dizendo que talvez tiremos mais proveito do desmantelamento da
memória do que do seu culto. Ouçamos Foucault:
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“O sentido histórico comporta três usos que se opõem, pa-
lavra por palavra, às três modalidades platônicas da história. Um
é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da
historia-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo
e destruidor da identidade que se opõe à história-continuidade ou
tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade que se
opõe à história-conhecimento. De qualquer modo se trata de fazer
da história uma contra-memória e de deslocar consequentemente
toda uma outra forma do tempo.” (Foucault, 1995: 33)
Voltando ao texto de Portelli, esse historiador também está interes-
sado em dessacralizar as memórias e quando se trata de uma memória co-
letiva carregada de dores e sofrimento como é o caso do massacre ocorrido
na cidadezinha italiana de Civitella Val di Chiana perpetrado pelos nazis-
tas, que o autor retoma para análise, ou, ainda, no nosso caso, dos loucos
exterminados no manicômio público de Barbacena por décadas a fio (há
suposição de que foram 60 mil mortos, muitos deles vendidos como peças
anatômicas para as faculdades de medicina, ou enterrados anonimamente
como indigentes), a tarefa se torna ainda mais árdua. Diz Portelli: “a tarefa
do especialista, após recebido o impacto, é se afastar, respirar fundo, e vol-
tar a pensar” (idem:106).
Penso que Foucault, que foi um verdadeiro rato de arquivo, nunca
colocou o documento contra a narração. Algumas vezes preferiu se definir
como jornalista de seu tempo, precisamente porque sua volta ao passado
sempre teve como motivo a preocupação com o que nos tornamos o que
somos na atualidade.
No seu belo livro intitulado Foucault, Deleuze dirá que o enunciado
é primordial na obra do amigo filósofo. Mas aí, precisamos entender o sen-
tido deste termo e junto com ele os de arquivo, discurso e formações dis-
cursivas, e sua importância para o arqueologista. Também temos de consi-
derar a noção de formações não-discursivas que o primado do enunciado
não apagará, mas, ao contrário, se associará e ganhará ainda maior relevo
no Foucault genealogista. Segundo Deleuze, o primado do enunciado nun-
ca será sinônimo de reducionismo à dimensão discursiva. “Do princípio
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ao fim da obra de Foucault, as visibilidades permanecerão irredutíveis aos
enunciados, ainda mais irredutíveis porque parecem formar uma paixão
em comparação com a ação dos enunciados” (Deleuze, 1995: 59).
Nos livros da fase arqueológica, “o primado do enunciado sobre as
formas do ver e do perceber”, é, segundo Deleuze “uma reação contra a
fenomenologia”. O enunciado é um primado pois incide sobre algo que lhe
é irredutível: a visibilidade. Gosto particularmente desta frase de Deleuze:
“Foucault deixava-se fascinar tanto pelo que via, quanto pelo que ouvia e
lia, e a arqueologia concebida por ele é um arquivo audiovisual” (idem: 60).
Foucault redefiniu arquivo contra o conceito corrente de um lugar
específico onde são preservadas palavras e coisas como testemunhos da e
para a memória. Foucault expande a noção de arquivo, que para ele é pro-
duzido segundo regras anônimas que comandam tanto a dispersão quanto
a possibilidade e necessidade dos enunciados. Neste sentido, o arquivo é o
conjunto de todos os enunciados que puderam ser expressos em palavras,
imagens e sons, ou seja, em alguma materialidade, e as regras históricas
que tornam alguns dizíveis, repetíveis, memoráveis e outros indizíveis, de-
vendo desaparecer, serem esquecidos, renegados.
Também contra a linguística tradicional, o enunciado não é definido
como frase, proposição, ato de fala ou performance verbal, mas como um
acontecimento que merece análise pois vai mais além de uma manifestação
expressiva, possibilitada pelo uso da linguagem. Como bem lembra Edgar-
do Castro em seu Vocabulário de Foucault, recém-traduzido pela Autêntica
(2009), o enunciado é mais que um simples conjunto de marcas materiais,
pois refere-se a um domínio de objetos, implica posições de sujeito, rela-
ciona-se com outros enunciados, encerra a possibilidade de sua repetição.
O enunciado é produzido por condições históricas que demandam análise
para sua elucidação. Não é aparente ou visível, mas tampouco está escondi-
do pelos atos de linguagem.
Deleuze irá nos propor rachar as coisas e as palavras, frases e proposi-
ções para extrairmos delas os enunciados. Entre coisas ou visibilidades, como
prefere nomear Deleuze, e os discursos dos quais os enunciados são como
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átomos, não há nem correspondência ou conformidade, nem total indepen-
dência. “Há diferença entre falar e ver, entre o visível e o enunciável”, mas há
também constante remissão de um a outro. Cito mais longamente Deleuze:
“Enquanto nos atemos às coisas e às palavras, podemos
acreditar que falamos do que vemos, que vemos aquilo de que fa-
lamos e de que os dois se encadeiam: é que permanecemos num
exercício empírico. Mas assim que abrimos as palavras e as coisas,
assim que descobrimos os enunciados e as visibilidades, a fala e a
visão se alçam a um exercício superior, a priori, de forma a cada
uma atingir seu próprio limite que a separa da outra, um visível que
tudo o que pode é ser visto, um enunciado que tudo que pode é ser
falado. (Deleuze, 1995:74).
Agora citando o próprio Foucault, Deleuze irá pinçar algumas frases
esclarecedoras:
“por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se alo-
ja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está
dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas
resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas o que as
sucessões das sintaxes definem...” de outro lado, “é preciso admitir,
entre a figura e o texto, toda uma série de entrecruzamentos, ou
antes ataques lançados de um ao outro, flechas dirigidas contra o
alvo adversário, operações de solapamento e de destruição ... uma
batalha” “invasão do discurso na forma das coisas”. (Frases citadas
por Deleuze, p.75, a partir de Foucault, PC:25 e INP: 30, 48 e 50).
Essa forma de se posicionar diante da realidade implica em per-
manentes jogos de resistência entre discursos e práticas, ou entre práticas
discursivas e não-discursivas, mais que em complementaridade de parte a
parte, daí a possibilidade de multiplicação, germinação, proliferação dos
enunciados na tessitura da história.
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As pesquisas sobre discursos,
práticas e significações da loucura
Venho trabalhando há alguns anos sobre o problema da significação
social da loucura dentro dessa perspectiva foucaultiana de análise do dis-
curso. O trabalho pode ser conferido especialmente no livro recentemente
publicado, em parceria com muitos colaboradores (Passos, 2009). Parti-
cularmente, o terceiro capítulo do livro é dedicado a uma longa discussão
teórica sobre a definição, ou, melhor seria dizer indefinição, do objeto que
nos ocupa: o conceito de loucura.
Na problematização de um objeto, para além das condições epistê-
micas de possibilidade de seu aparecimento e das relações discursivas in-
ternas ao discurso que lhe dá sustentação, isto é, no qual o objeto se situa,
Foucault nos alerta para a fundamental consideração das “relações estabe-
lecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de com-
portamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos
de caracterização que o tornam possível” (Foucault, 1987: 51).
Essas relações não seriam condições imanentes ao objeto, nem
definiriam uma suposta essencialidade do mesmo, mas seriam as condi-
ções “que lhe permitem aparecer na história, justapor-se a outros objetos,
situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e,
eventualmente, sua heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo
de exterioridade” (1987: 51). Isto significa dizer que, para se compreender
a doença mental
como um novo objeto, precisamos ir além de uma discussão pura-
mente teórica, epistemológica ou histórica da noção no interior do corpo
de saber que lhe deu origem – a psiquiatria. O que está em jogo é a pró-
pria emergência de determinado tipo de formação discursiva como tota-
lidade, isto é, os enunciados e dispositivos de poder que dão sustentação
ao objeto.
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Como diz Foucault a propósito de sua análise do campo discursivo:
(...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singulari-
dade de sua situação, de determinar as condições de sua existência, de fixar
seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os
outros enunciados a que pode está ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-
-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser
outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e rela-
cionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. (...) A questão
pertinente [seria]: que singular existência é esta que vem à tona no que se
diz e em nenhuma outra parte? (Foucault, 1987: 31-3).
Na concepção de Foucault, “não se trata de interpretar o discurso
para fazer através dele uma história do referente” (1987: 54), ou uma rede-
finição de sua essência. Neste sentido, não partimos de, nem perseguimos,
uma suposta essência da loucura como fenômeno. Muito menos conside-
ramos que o conteúdo adquirido com o aparecimento das formações dis-
cursivas médico-psiquiátricas e psicológicas corresponda a uma suposta
essencialidade, finalmente encontrada por esses saberes. A experiência da
loucura se apresenta como acontecimentos diversificados e mutuamente ir-
redutíveis na história humana. A hibris grega, ou a possessão medieval não
são outros modos de nomear o mesmo fenômeno da doença mental, são,
isto sim, outros modos de experiência e de subjetivação daquilo que escapa
aos modos de ser, normalizados por cada uma dessas épocas históricas.
Pesquisas realizadas em diferentes contextos sócio-culturais, mais
que nos dar respostas tranquilizadoras para a barulhenta polifonia de uma
experiência limite, a que convencionamos chamar loucura, tem nos permi-
tido uma compreensão problematizadora da emergência de discursos que
cercam ou que procuram abarcar essa experiência, tanto quanto daqueles,
muitas vezes silenciados, que a ela se abandonam. Menos ou mais que nos
afirmarmos como seguidores de um brilhante maître à penser, a compa-
nhia de Foucault tem nos instigado a tensionar nossos modos convencio-
nais de pensar e de ler a nossa história.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 11ª. Reimpres-são. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Objetiva.
PASSOS, Izabel C F. Loucura e sociedade. Discursos, práticas e significações sociais. Belo Horizon-te: Argvmentvm, 2009.
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RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Sobre arquivos tumbas: uma análise da expressão “docu-mento como monumento”. In: Lourenço, É.; Guedes, M.C.&Campos, R.H.F.(orgs.). Patrimônio cul-tural, museus, psicologia e educação: diálogos. Coleção Encontros Anuais Helena Antipoff. Belo Horizonte: PUC Minas, 2009.
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A NATUREZA E AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO
DO PODER POLÍTICO: DEBATES TEÓRICOS
Vera Alice Cardoso Silva1
Resumo
O ensaio tem por objetivo sistematizar pontos relevantes do debate
relativo à natureza do poder político, tomando como referência pensadores
que fixaram o contorno conceitual para a discussão moderna do tema. São
destacadas as teses relativas à natureza do poder político que constituem as
referências para as críticas e concepções inovadoras elaboradas por pensa-
dores do século XX.
Palavras-chave: poder político; ordem social; legitimação; autorida-
de; liberdade individual.
Introdução
O poder político torna-se objeto de debate teórico a partir do mo-
mento em que se procura determinar o que está implicado na relação de
comando-obediência, que é sua expressão mais visível no convívio social.
Tal relação exprime uma assimetria de posições, referida a comportamen-
tos que vinculam indivíduos em diferentes esferas interativas, nas quais é
possível distinguir quem comanda e quem é comandado. Esse tipo de inte-
ração é caracterizado por algum grau de previsibilidade dos atos e reações
que nela ocorrem.
No âmbito da discussão mais geral sobre a ordem social, a noção
de controle denota a operação de formas variadas de disciplinamento do
convívio, a partir das quais se tornam compartilhados os valores, práticas
e costumes dos quais deriva a estabilidade social. Esse compartilhamento
1 Professora Titular do Departamento de Ciência Política / UFMG
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inclui os princípios de reconhecimento da assimetria que distingue o po-
der político, assimetria esta legitimada pelo acatamento da autoridade à
qual cabe a determinação do conteúdo do comportamento a ser seguido,
bem como a sanção previamente definida como aplicável em caso de de-
sobediência.
A ordem social, quando investigada na perspectiva da estabilidade
de complexos sistemas de interações, expressa a amplitude e a eficácia dos
mecanismos de controle do comportamento individual e coletivo. Quando
se admite que os que obedecem são seres livres e autônomos, capazes de
escolher suas preferências e, portanto, de se insurgir contra barreiras que
tolham sua liberdade de ação, coloca-se como tema pertinente para o pen-
samento político e social a pergunta sobre a natureza do poder político.
Há muitas abordagens para organizar a reflexão sobre o poder políti-
co. É possível procurar identificar as razões que levam à obediência. É pos-
sível buscar determinar as condições sociais que levam à configuração de
formas de convivência que dão origem e reforçam a desigualdade no acesso
e controle de recursos a partir da qual se destaca um grupo que passa a
comandar, impondo a obediência dos demais. É possível focalizar a própria
relação comando-obediência, buscando entender o sentido atribuído por
cada uma das partes à interação que as vincula. No estudo do poder político
há, então, diferentes possibilidades de focalização, o que dá lugar a debates
entre pensadores que se ocupam do assunto.
Este ensaio tem por objetivo apresentar as linhas gerais do debate
sobre a natureza do poder político e suas formas de manifestação, tomando
como referência os pensadores que abordam o tema a partir do conceito de
ação social, dentro da qual se observa a assimetria que separa quem manda
de quem obedece a comandos políticos.
Precedendo a apresentação desse debate, é conveniente esclarecer o
que distingue duas outras manifestações de poder no âmbito social, identi-
ficadas como poder econômico e poder ideológico. A referência para a dis-
tinção relevante no estudo da ação social é o quadro analítico proposto por
Max Weber, que buscou diferenciar as formas de interações entre indiví-
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duos e grupos em sociedades modernas, caracterizadas pela complexidade
da divisão social do trabalho e pelo pluralismo. Weber identifica o campo
de dominação estruturado pelo que denominou de constelação de interes-
ses, no qual a assimetria de posições resulta do padrão de distribuição de
recursos essenciais para a realização de determinado modo de produção e
de distribuição de bens e serviços. Nesse âmbito, a posição de comando e
a de obediência depende do tipo de recurso que é referência para o cálculo
do interesse das partes que entram em acordos relativos à fixação de nor-
mas e procedimentos que disciplinam o mercado. Este é entendido como
esfera de trocas expressas em equivalentes monetários, que incluem desde
as relações contratuais do assalariamento até o cálculo de riscos em que
incorrem pequenos e grandes empresários ao tomarem decisões de investir
na produção ou na distribuição de algum bem ou serviço. Outro âmbito
de dominação distinguido por Weber configura-se no campo da formação
das mentalidades. Este pensador identifica nas instituições religiosas e nas
estruturas de produção e circulação de idéias o lugar social do controle ide-
ológico, que molda comportamentos e inspira movimentos de opinião de
alcance e eficácia variados, dependendo da sociedade e do momento his-
tórico em que ocorrem. Tais formas de controle têm impacto na política,
isto é, na esfera de exercício do tipo de poder do qual depende o disciplina-
mento do convívio social que estabelecerá as condições de estabilidade e de
previsibilidade na vida coletiva.
Na perspectiva de Weber, um determinado padrão de organização
social se perpetua justamente porque é garantido pela operação dos contro-
les que decorrem de regras fixadas na negociação de interesses (econômi-
cos), que constitui um âmbito privado das relações sociais, do compartilha-
mento de conjuntos de valores que criam elementos de coesão e comunica-
ção entre os indivíduos e estratos sociais que compõem uma sociedade e,
por fim, do reconhecimento coletivo de uma esfera de autoridade política,
que produz e aplica a regulamentação que tem alcance geral e universal, à
qual o coletivo deve lealdade .
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Como tema do pensamento político moderno, Maquiavel foi o pri-
meiro pensador a tratar o poder político como capacidade de controle
deliberado de comportamentos, expressão de certo tipo de racionalidade
dirigida à obtenção de um fim específico, a saber, o disciplinamento de
uma coletividade territorialmente definida. Maquiavel identificou esta
capacidade como sendo atributo de indivíduos diferenciados justamente
por sua vontade de poder que, para transformá-la em efetivo instrumento
de controle, empreendem as tarefas de construção do Estado, ou seja, de
estruturas especializadas na execução das diretrizes do governante e de
fiscalização do comportamento dos governados. Tal visão do poder políti-
co foi também endossada por Weber, que definiu o Estado como empresa
institucional, cujos funcionários reivindicam a prerrogativa de definir o
conteúdo regulamentador da ordem coletiva em territórios determinados
e a de deter o monopólio do uso legítimo de meios de coerção para preve-
nir a desobediência.
A natureza complexa da relação entre governante e governado foi
tratada por Maquiavel e por Weber, que nisto não inovaram, pois o tema
do governo justo já tinha sido objeto de reflexão do pensamento político
medieval. O governo justo era aquele que não oprimia o governado com
tributos escorchantes e com leis contrárias a costumes e tradições consoli-
dados e legitimados nas relações sociais rotineiras. Pensadores católicos ar-
gumentaram a favor do tiranicídio, considerando-o forma legítima de criar
as condições políticas para a refundação de uma ordem social justa, mesmo
que fortemente hierarquizada.
A abordagem moderna coloca o tema predominantemente na pers-
pectiva da legitimidade e não da justiça. Trata-se de reconhecer que o poder
do governante só é efetivo se o governado o reconhece e o acata, o que se
revela nos atos de obediência e na ausência de movimentos de contestação
e rebelião. Segundo Maquiavel, o bom governante é o que consegue ser si-
multaneamente amado e temido pelos governados. O amor proviria de leis
boas, que beneficiem o maior número possível, alienando poucos. O temor
proviria da convicção de que o governante exercerá a autoridade com firme-
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za, aplicando com rigor a lei que garanta a ordem e, por esta via, a paz social,
que é o bem maior que o governado espera que o governante assegure.
Weber, por sua vez, para explicar as motivações que levam o gover-
nado a obedecer, de maneira voluntária, reconheceu ser necessário levar em
conta as condições sociais dentro das quais se institui a cadeia comando-
-obediência. Ao distinguir três modalidades de legitimação – a tradicional,
a racional-legal e a carismática – partiu da premissa analítica de que repou-
sa nas relações sociais o fundamento da possibilidade, da eficácia, alcance e
continuidade do poder político . À medida que avança a modernidade, com
seu componente de racionalização das formas de organização das diversas
esferas de interação entre indivíduos e grupos de indivíduos, as tradições
e os costumes deixam de ser a referência dominante para a obediência. A
legitimação da autoridade do governante pelo princípio do governo das leis
expressaria a vitória ideológica dos valores do liberalismo político, fundado
na visão do individuo autônomo, racional, portador de direitos civis e po-
líticos que as leis e o governo constituído devem proteger. Já a legitimação
fundada no carisma do líder político reflete a necessidade de se reconhecer,
no campo teórico, a complexa dinâmica política de sociedades modernas,
que podem passar por crises institucionais, e de sociedades tradicionais nas
etapas de transição para a modernidade. Em tais contextos, ficam abalados
os fundamentos sociais e ideológicos do liberalismo político ou os mesmos
ainda não foram constituídos. Trata-se de momentos em que se coloca o de-
safio da refundação da ordem social. Os embates entre indivíduos e grupos
podem levar à instauração ou à restauração da ordem liberal ou a alguma
forma de autoritarismo. Segundo Weber, os desdobramentos de crises po-
líticas e a força do poder carismático dependem dos valores e dos interesses
dos contendores e dos modos de sua vinculação com os diferentes estratos
sociais, diversamente afetados pelas crises e pelas mudanças na economia
e nos seus lugares sociais.
Note-se que Weber, ao tratar da natureza do poder político, introduz
a perspectiva do movimento histórico, da mudança que altera os funda-
mentos propriamente sociais da obediência ao governante. Para este pen-
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sador, a mudança tem um sentido definido, que é o da expansão do compo-
nente racional nas relações sociais, expresso na tendência à organização, à
burocratização dos procedimentos, ao planejamento das ações, particular-
mente nas esferas da economia e da política. Esta tendência, vista por ele
como irreversível, é genericamente chamada de modernização.
É no campo analítico configurado pela análise weberiana da ordem
social na modernidade que se constitui o debate sobre a natureza do poder
político, relevante para a teoria política contemporânea.
TEORIAS DA AÇÃO E A NATUREZA DO PODER POLÍTICO
A reflexão sobre o poder político, configurada a partir de premissas
de uma teoria da ação social, funda-se em concepções diferenciadas do que
é a política como componente da ordem social. Na teoria social moderna,
prevalece a visão sistêmica sobre a natureza do fenômeno social, entendido
este como forma de convivência regulamentada, previsível, que incorpora
mudanças adaptativas, portanto de modo incrementa,l ao longo do tempo
e da sequência de gerações. Esta visão não parte do individuo isolado para
explicar a coesão e racionalidade do coletivo. Pressupõe que o fenômeno
social é uma trama complexa e inter-dependente de relações que vinculam
os indivíduos em estruturas interativas, que são modos de fazer o que é
visto como necessário para a continuidade do coletivo. Tais estruturas rea-
lizam tarefas, cumprem funções nos âmbitos essenciais para a reprodução
de determinada concepção de sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de
sociedade denota uma modalidade de articulação das relações sociais con-
dicionada por elementos de distinta natureza, destacando-se entre eles o
grau de desenvolvimento tecnológico e o universo de valores que serve de
referência para a distribuição dos bens socialmente produzidos e para o
reconhecimento de direitos e deveres dos indivíduos e de grupos dotados
de atributos coletivos que os distinguem, para diferentes efeitos, nas estru-
turas e tramas sociais.
A visão sistêmica permite identificar e diferenciar estruturas e fun-
ções especializadas, cujo funcionamento rotineiro e integrado converge
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para manter a continuidade de uma coletividade, segundo padrões previsí-
veis de reprodução social.
Esta é a referência teórica mais ampla para a construção de teorias
da ação social. O foco da curiosidade intelectual nesta perspectiva pode ser
assim resumido: qual é o sentido de que se revestem as interações que vin-
culam indivíduos nas práticas rotineiras normatizadas? Assim colocado o
tema de reflexão, afirma-se a premissa de que a ação individual é sempre
dotada de intencionalidade e que o sentido atribuído a cada ato decorre da
própria interação, isto é, incorpora a reação ou avaliação do outro. Admite-
-se a racionalidade do indivíduo, isto é, sua capacidade de escolher e de
hierarquizar preferências em situações específicas. Mas, assume-se que os
elementos sobre os quais ela se aplica derivam das circunstâncias particu-
larizadas dos indivíduos.
A partir dessas premissas gerais, delimita-se a reflexão sobre a po-
lítica e o poder político no campo das teorias da ação social. Max Weber e
Hannah Arendt exemplificam bem o impacto da interpretação que se dá ao
sentido da ação social sobre a definição da política e a identificação do lugar
e natureza do poder político. Para Weber, o sentido da ação relevante no
âmbito do controle social é o resultado que se quer alcançar. Nessa perspec-
tiva, ganha relevância o foco na cadeia comando-obediência. O que se quer,
por meio do exercício do poder político, é garantir a efetividade de determi-
nada forma de disciplina social. O processo deliberativo está essencialmen-
te vinculado às estruturas de coerção; a ação dos governantes é vista como
instrumental, como meio de se atingir fins por eles desejados. Pressupõe-se
o conflito de opiniões, mas o poder político não está aí. Desse modo, torna-
-se necessário reconhecer na política duas dimensões distintas, a saber,
o momento decisório, associado a conflitos de opiniões, projetos e visões
da ordem social, e o momento do poder, quando um grupo prevaleceu e
assumiu o controle das estruturas que vão executar suas diretivas. Nessa
perspectiva, afirma-se que a racionalidade própria da política é a estraté-
gica, isto é, a que se expressa no processo de fixação de objetivos e metas,
na identificação clara dos interesses que se quer realizar, no planejamento
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das ações visando aos fins desejados, planejamento este que leva em conta
a situação, recursos e capacidade de reação do(s) adversário(s). Em tal con-
texto, o poder político é definido como capacidade de obter obediência para
os comandos fixados pelo governante por meio de atitudes do governado
que passa a se comportar como se as normas que segue tivessem derivado
de decisão sua. Trata-se aqui de reconhecer que a violência, que é atributo
próprio do poder político, significa, essencialmente, auto-contenção; só em
última instância realiza-se como alguma forma de coerção física.
Hannah Arendt identifica a política em outro tipo de interação so-
cial, cujas características descreve em sua teoria da ação comunicativa.
Para ela, é o diálogo, a capacidade de troca de idéias, apresentadas em falas
destinadas a persuadir, o elemento distintivo da política. O seu objetivo é
a criação de consenso relativo ao conteúdo das regras que servirão de re-
ferência para os processos deliberativos referidos a aspectos específicos do
convívio de homens livres e iguais quanto à capacidade de exprimir opini-
ões e preferências. Logo, o campo da política é o do exercício da liberdade
de crítica, de proposição, de vigilância das instituições de controle social
para que não percam sua vinculação originária com o processo de produ-
ção de consenso do qual se originaram. Nessa perspectiva, o Estado é visto
como estrutura que pode produzir o bem ou o mal para os governados. Sua
função administrativa, que Jurgen Habermas depois chamou de violência
estruturada, só se tornaria legítima quando baseada em processos de deli-
beração com a participação ativa dos governados, organizados segundo re-
gras que garantissem a efetividade do diálogo entre todos os interessados,
diálogo livre de qualquer manipulação, quer no plano do direito à fala, quer
no da obtenção e circulação das informações a ele pertinentes. A política,
então, só se encontra nos movimentos de resistência ao domínio violento,
que nega o direito à livre expressão de idéias e à crítica às formas sociais de
domínio. Por via de consequência, realiza-se plenamente como experiência
humana nos momentos de fundação das liberdades, quando se discutem e
se reconhecem direitos que só existem de fato quando constituem a refe-
rência ética para o convívio rotineiro nos diversos âmbitos da vida social.
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Para Hannah Arendt, o modelo perfeito da esfera política encontra-se na
assembléia dos cidadãos atenienses, na qual todos tinham direito ilimitado
à fala e a unanimidade era a regra dominante para a votação de leis. Nessa
perspectiva, a estrutura organizada do Estado, que realiza a o governo roti-
neiro, por meio dasregras e procedimentos das burocracias especializadas,
é vista como forma de violência, isto é, como campo interativo caracteriza-
do por cadeias de comando-obediência. Trata-se de comportamento con-
figurado por normas, que não são contestadas pelos indivíduos “amarra-
dos” nas hierarquias. Nesse âmbito, na melhor das hipóteses, prevaleceria
o principio da competência e da eficiência no fazer, em tudo diverso da
racionalidade discursiva que caracteriza a política. Na pior hipótese, é o
campo da ação arbitrária.
A visão da política construída por Hannah Arendt, fundada na pre-
missa de que é no campo da fala, do diálogo, que os homens exprimem
o que há de distintivo em seu modo de inserção social, certamente não é
sistêmica, pois não leva em conta o substrato material, econômico de qual-
quer sociedade. Mesmo a democracia ateniense, por ela vista como modelo
perfeito de instituição capaz de garantir a liberdade de cada um e de afastar
a arbitrariedade, dependia da divisão entre trabalhadores e cidadãos livres,
que podiam dedicar-se inteiramente ao debate porque outros cuidavam das
tarefas de sustentação material da sociedade.
Jurgen Habermas buscou superar o debate que coloca o poder po-
lítico ou no campo da racionalidade instrumental, estratégica ou no cam-
po da racionalidade discursiva, do diálogo, da persuasão. A síntese que
propõe lança mão de elementos da teoria do sistema social elaborada por
Talcott Parsons.
Para este pensador, o poder político é um atributo das relações so-
ciais fundadas na divisão do trabalho social e em valores compartilhados
pelos indivíduos a partir dos lugares sociais que ocupam. Pode ser definido
como capacidade de vincular indivíduos e grupos nas ações e orientações de
comportamento requeridas para a realização de objetivos coletivos. Parte-se
da premissa de que a ordem social resulta da convergência de variados tipos
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de ações realizadas por indivíduos que cumprem tarefas específicas – iden-
tificadas como papeis – dentro de estruturas socialmente acatadas como
responsáveis pela execução de funções necessárias para a continuidade da
sociedade. As funções essenciais, que se desdobram em tarefas articuladas
em algum padrão de divisão do trabalho, são as que organizam a economia,
a reprodução dos valores e a educação dos indivíduos de modo a criar os
estímulos para a adoção dos papeis requeridos para a continuidade de dado
modelo de organização social, e a esfera de coordenação e direção do cole-
tivo. Nessa perspectiva, a gestão do coletivo é vista primordialmente como
administração, ou seja, como monitoramento das diversas estruturas que
cumprem as tarefas de reprodução da ordem social, de modo a garantir que
modificações sejam planejadas sempre que houver mudanças no ambiente
de alguma estrutura que indiquem a necessidade de adaptações. A noção
de política fica, então, subsumida à de planejamento. A política como ma-
nifestação de divergências e âmbito de expressão de conflitos regulatórios e
distributivos é associada à estrutura de instituições que cumprem a função
de vincular os indivíduos, a partir de seus papeis sociais, às instituições en-
carregadas do governo, isto é, da administração e coordenação do coletivo.
Nessa perspectiva, a política passa a ser vista como esfera fragmentada de
discussões e deliberações, pois os indivíduos, em seus papeis políticos, têm
como referência os contextos estruturados nos quais se encontram rotinei-
ramente e a partir dos quais vivenciam problemas, que querem ver resolvi-
dos pela autoridade política pertinente, e visualizam formas novas de fazer
as coisas ou de distribuir bens e serviços, que, para se efetivar, demandam
intervenção da esfera de regulação que administra o coletivo.
Tal concepção da dinâmica social não fornece elementos para o es-
tudo dos conflitos entre grupos configurados a partir de identidades exclu-
dentes, como é o caso dos nacionalismos e das lutas de classes. Funda-se
na premissa das relações sociais estruturadas a partir da divisão social do
trabalho, que se torna a referência para que o indivíduo identifique seus in-
teresses e valores, que lhe permitem reconhecer o(s) grupo(s) com o(s) qual
(quais) faria sentido se associar na esfera política. Nessa perspectiva, o po-
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der político não está no plano da dominação coercitiva, mas nos processos
de socialização, que educam o indivíduo para a disciplina social. Por meio
desta, os papeis sociais são assumidos com grau adequado de disposição
por parte dos indivíduos, sendo residual a incidência de disfunção social,
isto é, de rejeição ou contestação deliberada da disciplina social.
Jurgen Habermas apropria-se de algumas premissas dessa teoria do
sistema social para rever os termos do debate sobre a natureza do poder
político. Reconhece que a ordem social só se mantém e tem continuidade
por causa da existência de estruturas estáveis e previsíveis de convivência ,
que se reproduzem rotineiramente. Este é o mundo sistêmico. Mas, há que
reconhecer, também, o mundo da vida, no qual se manifesta a liberdade de
cada um, aí incluída a possibilidade de crítica e de resistência à disciplina
social, no seu todo – âmbito dos projetos de revolução – ou em parte dela
– âmbito de reformas sociais. Cada âmbito tem sua racionalidade própria,
isto é, a instrumental, inevitável nas formas rotineiras das organizações,
aí incluída a estatal, e a comunicativa, necessária para que se institua e
se efetive a política como confronto de vontades livres, reunidas em deba-
tes públicos com o objetivo de construir consensos sobre modos de fazer
as coisas e sobre formas justas de distribuição de bens e serviços sociais,
debate este que sempre se refere ao reconhecimento político de direitos
de indivíduos e de grupos específicos. Ao propor tal distinção, Habermas
concluiu que, no estudo do poder político, entendido este como capacida-
de de comando que requer compulsoriamente obediência, dois momentos
devem ser distinguidos, a saber, o de sua gestação e o de seu exercício. A
burocratização dos comandos, que se revela em hierarquias de autoridade
institucionalizada, não poderia ser caracterizada como forma de violência
contra o indivíduo desde que as regras de procedimento para a produção
e aplicação das normas tivessem resultado de consenso obtido em esferas
públicas de debate e de participação livre de todos os interessados e afe-
tados pela rotina das organizações. O Estado é, então, identificado como
organização especializada na função de coordenar a coesão do todo, o que
faz por meio de estruturas especializadas, referidas a partes desse todo.
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A síntese teórica proposta por Habermas conduz naturalmente ao
tema das instituições. Ao ressaltar o momento da gestação do poder e asso-
ciá-lo à manifestação da liberdade de expressão e de crítica, este pensador
impôs a necessidade de se reconhecer a dinâmica política da esfera pública,
que não se confundiria com a esfera estatal. A primeira é o lugar da liber-
dade, a segunda, o lugar da disciplina. Mas, ambas realizam-se por meio de
formas acatadas de vinculação dos indivíduos, ou seja, são institucionaliza-
das. Assim sendo, na luta pela afirmação da liberdade, coloca-se o desafio
de conceber instituições que efetivamente realizem as condições da ação
comunicativa identificadas por Hannah Arendt, isto é, as que assegurem
o diálogo livre de qualquer tipo de impedimentos. Constitui-se, assim, o
horizonte das inovações institucionais que têm modificado as formas de
organização e de funcionamento de muitas democracias liberais contem-
porâneas. Os dois tipos de racionalidade política, isto é, a instrumental e
a comunicativa, acabam realizando-se em instituições distintas, mas cada
vez mais inter-dependentes.
ABORDAGENS RECENTES NO DEBATE SOBRE A NATUREZA DO PODER POLÍTICO
A discussão atual sobre o poder político caracteriza-se por colocar
o tema na perspectiva mais abrangente da modernização, vista esta como
processo de transformações que altera constantemente a divisão social do
trabalho e o universo dos valores de convivência a partir dos quais os indi-
víduos constroem sua identidade nas tramas das relações interpessoais e
por referência à suas posições nas múltiplas instituições que os vinculam. A
produção teórica de Niklas Luhmann e de Michel Foucault sobre a natureza
do controle social exemplifica adequadamente esta tendência.
A modernização é sempre associada ao processo de racionalização
das relações sociais, decorrente da revolução industrial e de mudanças cor-
relatas, a saber, a urbanização, a profissionalização das habilidades requeri-
das pelas mudanças impostas por inovações tecnológicas e a multiplicação
de hierarquias sociais não mais baseadas exclusivamente em critérios tradi-
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cionais, tais como família, a propriedade da terra ou o prestígio de estamen-
tos. A noção de pluralismo, utilizada para denotar um atributo essencial da
sociedade moderna, indica justamente a multiplicidade de focos de interes-
se e de princípios de identidade a partir dos quais os indivíduos definem
seus compromissos políticos. Os projetos e conflitos propriamente políticos,
isto é, que devem ser resolvidos por meio de leis e de diretivas de governos,
não mais se configuram como lutas que dividem campos antagônicos, em
que o lado vencido perde quase tudo pelo que lutava. As lutas da modernida-
de em sociedades industriais e urbanas raramente se configuram como con-
frontos de posições inegociáveis. Pelo contrário, distribuem-se por esferas
de interesses específicos, em geral associados a campos bem especializados
de interação política, que induzem a formação de comunicação em redes
que vinculam grupos específicos a ramos especializados do aparato estatal.
Chega-se a falar de comunidades epistêmicas , que formatam as agendas e
conduzem os processos deliberativos no âmbito das estruturas políticas es-
pecializadas. Nessa perspectiva, o Estado continua a ser visto como aparato
burocrático, mas não mais como campo homogêneo e coeso de exercício
do poder político. Pelo contrário, destaca-se sua natureza conflituosa e o
papel que cada uma de suas estruturas componentes cumpre no sentido de
proceder à filtragem dos temas , projetos e concepções normativas que pre-
valecerão como referências para a definição dos comandos disciplinadores
de diferentes aspectos da vida coletiva. No plano propriamente político, a
sociedade não é mais vista como realidade única e integrada. Passa a ser
vista como objeto de agenda governamental. Esta é seletiva e os critérios de
seleção resultam de decisões políticas. Nesse contexto, o poder político é a
capacidade de influir na agenda; logo, é atributo de indivíduos e grupos em
posições que permitem o exercício da influência nessas decisões.
Para destacar a dinâmica da política em sociedades pluralistas, Luh-
mann destaca o que chama de contingência das formas sociais. O conceito
denota, simultaneamente, a variabilidade possível da organização social –
o que é demonstrado pela variedade dos arranjos institucionais entre as so-
ciedades modernas – e o princípio que explica a “vitória” de um arranjo ou
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modelo institucional, que é a atribuição de um sentido que lhe é dado pelo
grupo que ele deve vincular. Esta visão destaca a complexidade própria de
ambientes pluralistas, nos quais prevalece a circulação de informações e
que admitem o experimentalismo institucional sem grandes restrições nor-
mativas ou técnicas. Este é o contexto que leva Luhmann a definir o poder
político como capacidade de definir os conteúdos de informação que irão
circular dentro e fora de ambientes especializados e que servirão de refe-
rência para a formação de opiniões. Para ele, a democracia como forma de
organização da política é menos um conjunto de regras que definem como
escolher os governantes e como estes de relacionarão com os governados,
do que a garantia de espaços institucionalizados que garantam a vigência
de um modo de controle social sobre os processos deliberativos, que ele
denomina de sociedade mental. Trata-se de assegurar e estimular a auto-
-reflexão permanente sobre o sentido das leis, dos padrões de distribuição
de bens sociais, dos conteúdos e prioridades das agendas governamentais,
de modo a tornar sempre mais inteligentes as estruturas de gestão da vida
coletiva. Nessa perspectiva, a inteligência social denota a capacidade de
aprendizagem coletiva, processo que, ao ver de Luhmann, contribui para
aumentar a adesão ao interesse coletivo e para diminuir o espaço para con-
frontos redistributivos baseados em referências identitárias que fragmen-
tem o todo, como é o caso da classe social, etnia, religião, língua, sexo ou
outra que venha a ser proposta pelo principio da exclusão.
Luhmann retoma a teoria do sistema social nela introduzindo o ele-
mento dinâmico da modernização, que é, justamente, a alteração no com-
ponente da ordem social referido à função da coordenação e direção dos
objetivos coletivos. Ao destacar a gradual impossibilidade de uma direção
única e coesa, mostrou a importância dos grupos de pressão e de interesse
em processos de apropriação do Estado que contam com a colaboração de
indivíduos que ocupam posições dotadas de poder deliberativo real, mas
circunscrito a aspectos específicos da ordem social, referidos a setores bem
delimitados da organização social. Assim sendo, destaca a pulverização das
esferas deliberativas e o aumento do componente de negociação entre as
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autoridades estatais e agentes privados. Sob este prisma, ampliou-se a par-
ticipação dos governados na política e, portanto, o poder de controle dos
governados sobre o Estado. Mas, tal controle permanece restrito a setores
bem delimitados, o que impede o monitoramento social efetivo sobre a mo-
delagem integral da ordem social. É esta lacuna que fundamenta a crítica de
Luhmann ao Estado do Bem Estar. Para este pensador, ao se transferir para
o âmbito político a responsabilidade de compensar indivíduos e famílias
por falhas decorrentes do modo de organização da economia, restaura-se o
campo para tipos de dirigismo que emasculam a capacidade crítica dos que
são classificados como não integrados no convívio de seres autônomos. As
políticas sociais, então, representariam formas de reconhecimento social
de discriminação da liberdade. Sua aceitação diminuiria a inteligência da
democracia e restauraria condições para o exercício mais ou menos abusivo
do poder de domínio da sociedade pelo Estado.
Encontra-se em Michel Foucault outra perspectiva de discussão so-
bre a natureza e modos de manifestação do poder político que tem como
referência a configuração das relações sociais a partir da divisão do trabalho
e das hierarquias próprias de sociedades complexas, constituídas a partir
do domínio de conhecimentos especializados. Foucault introduz a noção de
sociedade disciplinar para denotar a característica dos processos de socia-
lização dirigidos à educação dos indivíduos para que assumam os papeis
sociais necessários à reprodução de um modelo dominante de convívio e
de distribuição dos bens sociais, aí incluído o prestígio e o reconhecimen-
to público de valor e importância. O sucesso da socialização é a expressão
máxima do poder de dominação dos grupos que definem os conteúdos nor-
mativos congruentes com a concepção de organização das instituições que
se torna hegemônica em cada etapa de evolução da modernidade, tal como
ela se realiza em cada sociedade. Para Foucault, o componente repressivo
do poder político é residual; o poder efetivo reside na capacidade de uns
homens formarem as mentes e personalidades de outros. Nessa perspec-
tiva, para Foucault, não faz sentido propor uma teoria do poder, dado que
o conceito de dominação, entendida esta como capacidade de controle de
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comportamentos cuja característica distintiva é a prerrogativa de aplicação
de sanção definida em norma formal, não contempla a dinâmica essencial
das relações de poder, que se constituem, primordialmente, na trama das
relações sociais institucionalizadas. Para este pensador da ordem social, as
instituições existem para vigiar e punir. A partir desta interpretação, o tipo
de reflexão relevante sobre o poder político funda-se, justamente, no estudo
do funcionamento das instituições sociais, configurando um campo espe-
cializado de saber crítico, que Foucault denomina de analítica das relações
de poder. Esta é organizada a partir de uma premissa teórica inspirada em
Maquiavel, para quem a estabilidade de um coletivo decorre de relações de
força, isto é, da ação deliberada de indivíduos que afirmam sua vontade de
poder por meio da criação de instituições disciplinadoras da convivência
coletiva que realizam os desejos dos que ocupam as posições de comando.
Para Foucault, toda e qualquer forma de convívio social se dão em campos
de força, dentro dos quais há manipulação das vontades e sistemática emas-
culação da liberdade individual. Tanto o dominador, quanto o dominado
estão presos em tramas interativas que impedem a experiência da autono-
mia. De fato, esta só se expressa como resistência a alguma forma de disci-
plina do comportamento. Quando tal resistência torna-se organizada e im-
põe mudanças em concepções de disciplina social configura-se o campo do
poder político. Retoma-se- aqui, por outra via teórica, a tese defendida por
Hannah Arendt, para quem o poder político reside na fala, no discurso, no
diálogo entre iguais, que leva à rediscussão coletiva dos princípios e valores
que vinculam os indivíduos num universo ético amplamente compartilhado.
Para estes pensadores, a política como componente da vida social é um pro-
cesso constante de reconstrução dos termos da convivência justa. Não se
trata tanto de manifestação da sociedade inteligente, lidando com desafios
de adaptação a desarranjos provenientes de diferentes origens – demográfi-
cas, tecnológicas, ambientais, culturais – preconizada como ideal democrá-
tico por N. Luhmann, mas de efetiva experiência de liberdade humana. Esta
é identificada no plano das aspirações por reconhecimento social, no desejo
de realização a partir de diferenças de identidade social, na vontade de re-
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constituir lugares e formas de convívio que o progresso da civilização tec-
nológica marginaliza ou exclui como tradicionais, anacrônicos, atrasados.
Esta modalidade de pensamento social institui o campo de crítica
abrangente ao racionalismo ocidental como referência hegemônica para a
organização das instituições. Na perspectiva proposta por Foucault, o en-
tendimento da natureza do poder político exige que seja ultrapassada a tese
que o associa exclusivamente a uma estrutura instituída por princípios ju-
rídicos, por meio da qual fica determinada a posição do soberano, visto este
como fonte da prerrogativa normativa legítima de definir leis que fixam os
âmbitos de igualdade e de desigualdade entre os indivíduos. O soberano –
nas democracias liberais localizado no poder legislativo, por definição cons-
titucional – nada mais é do que a expressão de algum modelo de dominação
social. No que se refere à dinâmica da liberdade (individual) e da domina-
ção (social), o sentido real das formas jurídicas expressas em contratos, em
mandatos, em delegações de autoridade, nas hierarquias organizacionais
deve ser “destrinchado” por meio de descrições críticas das tramas rotinei-
ras das relações sociais. É assim que se torna possível desnudar os campos
de força dentro dos quais os indivíduos se defrontam, na sua concretude
cotidiana. Segundo Foucault, só nesses espaços seria possível experimentar
as condições da resistência e da emancipação, ou seja, a liberdade.
Nessa perspectiva, recupera-se, de certo modo, a visão sistêmica
da ordem social. De fato, esta só poder ser interpretada como resultado
da reiteração de uma miríade de atos e interações rotineiras por meio da
qual se dá a reprodução de uma dada concepção de convívio de indivíduos
moldados para os papeis que cumprem nos lugares que ocupam na trama
social. O Estado seria uma idealização dessa ordem, traduzida nas ações
dos governos. Na grande trama sistêmica, estes seriam os aparatos da ad-
ministração pública nos seus atos burocráticos por meio dos quais bens co-
letivos seriam processados, aí incluídas as instituições de disciplinamento
especializado, como escolas e cárceres. Nessa interpretação, não há lugar
para a política entendida como atividade própria de homens livres, tendo
por objetivo resolver conflitos coletivos e produzir a regulamentação que
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assegure a estabilidade e a vida boa com o máximo de espaço para a au-
tonomia individual. Também deixa de ter sentido analítico a reflexão so-
bre o fundamento da legitimidade da assimetria que é própria da cadeia
comando-obediência.
CONCLUSÃO
O debate sobre a natureza do poder político, tal como se desenvolve
no pensamento ocidental do século XX, centra-se no tema da liberdade do
indivíduo. Na formulação moderna do problema, destaca-se a assimetria
que separa governante e governado, ressaltando-se o impacto dessa con-
dição na liberdade do governado. A ideologia liberal foi a solução moder-
na para a legitimação de instituições acatadas como capazes de garantir a
ordem e a eficácia do governo e, ao mesmo tempo, preservar o âmbito da
liberdade do governado. A tradução liberal desse âmbito levou, em um pri-
meiro momento, ao reconhecimento de liberdades, regulamentadas como
direitos de cidadania civil e política. O constitucionalismo passou a ser o
principio legítimo para a definição do modo aceitável de interferência do
poder público na esfera da vida privada dos indivíduos, agora identifica-
dos como cidadãos, sujeitos de direitos inalienáveis, isto é, que o governan-
te não podia desconhecer e devia proteger.
Por esta fórmula política ficava bem clara a separação entre a estru-
tura do Estado – poder político organizado em órgãos e cargos especializa-
dos, formatados segundo diretivas constitucionais – e o mundo variado dos
governados, isto é, a sociedade. Por meio da associação visando à represen-
tação de interesses privados na esfera estatal , os cidadãos configuravam a
sociedade civil. O Estado era visto como estrutura racional, coesa, o lugar
por excelência das negociações e deliberações políticas civilizadas.
Este modelo ideal de delimitação de fronteiras – o espaço do públi-
co, entendido como esfera estatal, e o espaço do privado, entendido como
âmbito dos negócios e transações sociais diversas nas quais se empenham
os indivíduos – foi sendo gradualmente afetado pela modernização social.
A cidade passou a ser o lugar dominante da vida privada, ampliou-se e se
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tornou mais complexa a divisão social do trabalho, a monetarização das
trocas inviabilizou a economia de subsistência e as formas tradicionais de
escambo. A família extensa deu lugar à família nuclear e ao que tem sido
chamado de novos arranjos familiares, termo que denota formas de asso-
ciação de indivíduos para garantir a sobrevivência material e certo grau
de apoio afetivo aos membros do grupo. Tais mudanças criaram o clima
político propício para a aceitação da idéia de que cabe ao poder público
também a tarefa de proteger indivíduos e grupos em situação de vulnera-
bilidade social. Esta idéia traduziu-se na configuração da função social do
Estado , da qual decorreu um processo que os estudiosos desta alteração
da democracia liberal clássica identificam como “penetração” da sociedade
no Estado. Esta mudança ampliou a participação política e diversificou os
foros de deliberação referidos à tarefa de identificação de áreas de inter-
venção dos governos na vida social. Esta foi uma via de modificação da tese
da autonomia do governado e de revisão da noção liberal de liberdade do
governado face ao governante.
Outra via de modificação da organização do Estado Liberal foi a ex-
pansão do pluralismo social. A sociedade moderna é muito mais uma so-
ciedade de grupos do que uma sociedade de indivíduos. O que se ressalta
é a multiplicação e a diversificação dos focos de referência que motivam
os indivíduos à associação política. A consequência desta condição da vida
em sociedades modernas é a fragmentação das arenas deliberativas, o que
dá nova configuração à relação entre os poderes executivo, legislativo e ju-
diciário, definidos pelo liberalismo clássico como forma de garantir a pre-
dominância da presença do governado na regulamentação. Um ramo de
estudos promissor na teoria política contemporânea dedica-se, justamente,
a mostrar que não vigora mais a lógica hipotético-dedutiva própria da ra-
cionalidade da democracia liberal clássica. Esta prevê que a eleição dos le-
gisladores preceda a aprovação de leis que serão aplicadas pelos ocupantes
dos cargos executivos. A lógica do Estado Contemporâneo é a da dispersão
dos centros de poder e a da fragmentação das agendas governamentais.
Os indivíduos são livres para se associar, mas dificilmente haverá um gru-
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po que seja bem sucedido em impor como pauta a discussão de grandes
temas da liberdade, como, por exemplo, a noção de cidadania no âmbito
internacional ou a reflexão sistemática e abrangente sobre justiça social. O
máximo que se pede, no plano da utopia, é que se criem as condições para
a sociedade mental, como propõe N. Luhmann, a saber, aquela aberta e re-
ceptiva à inovação. Nesta, certamente, o exercício do poder político tenderá
a estar associado ao domínio de conhecimentos especializados, consistin-
do na capacidade de escolher entre opções de organização que assegurem
mais conforto e segurança na vida privada, segundo certo preço a pagar em
termos de restrições à liberdade individual, decorrente da necessidade de
coordenação racional do todo.
Atualmente, é no âmbito da filosofia política que ainda se coloca o
debate sobre o poder político na perspectiva das tensões entre liberdade
individual e ordem social. Destacam-se dois tipos de abordagem, a saber,
a que propõe a reflexão sobre a justiça e a que busca superar o enfoque
individualista na análise da ordem social, que destaca a intencionalidade
dirigida pelos interesses, reintroduzindo a noção de comunidade como es-
fera de convivência instituída no plano ético. Mas, em ambas as aborda-
gens, presume-se que as relações de assimetria , próprias da manifestação
do poder político, diluem-se nas diferentes esferas da vida social, não mais
se configurando como atributo restrito ao domínio do Estado.
A teorização moderna sobre o poder político superou definitivamen-
te as concepções que o restringiam ao âmbito exclusivo da ação de sobera-
nos, isto é, de ocupantes de posições de autoridade formal. Dessa maneira,
o estudo do controle social passou a ser objeto de diferentes ciências do
social, além da ciência política e da filosofia política. Ganhou ressonância
na sociologia, na antropologia e na psicologia social em um processo de
ampliação do conhecimento que muito enriqueceu a reflexão sobre aspecto
tão crucial para a ordem social e para a realização das potencialidades de
cada membro dela. Nesse novo ambiente teórico, a política deixa de ser
tema especializado de cientistas e filósofos políticos e passa a ser objeto
de preocupação de outros campos do saber e, de modo dramático, de todo
indivíduo preocupado com o destino da humanidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A CORRUPÇÃO DO PODER
DEMOCRÁTICO
Fernando Filgueiras1
Introdução
Tem sido recorrente nas democracias o diagnóstico de uma crise do
sistema convencional de representação política. Um dos elementos que cer-
tamente contribuem para esse diagnóstico é uma maior percepção da cor-
rupção como um mal inerente da política contemporânea, que acompanha
partidos e sistemas políticos, tanto em países do centro quanto da periferia
do capitalismo. O diagnóstico de uma crise do sistema de representação
opera com a ideia de que a atuação das instituições políticas não coincide
com o interesse dos representados, não produzindo uma concepção forte
de bem comum. O descontentamento com as instituições políticas tem sido
uma tônica das democracias, criando dificuldades para a legitimidade polí-
tica. A corrupção, nesse quadro, contribui para esse descontentamento da
cidadania frente às instituições.
Esta concepção do problema das crises do sistema representativo
tem suscitado a preocupação com a qualidade da democracia, em que a cor-
rupção, certamente, é um elemento corriqueiro na sua degeneração. A qua-
lidade da democracia refere-se a elementos procedimentais, de conteúdo
e de resultado de políticas constituídas pela vontade geral, tendo em vista
regras institucionais e valores fundamentais que organizam e estruturam
uma sociedade democrática.2 A corrupção, nesse caso, afeta a qualidade
da democracia por degenerar os procedimentos, o conteúdo e os resulta-
dos relacionados às políticas. No que tange aos procedimentos, a corrupção
1 Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Cen-tro de Referência do Interesse Público (CRIP), dessa mesma instituição. Autor do livro Corrupção, Demo-cracia e Legitimidade (Editora da UFMG, 2008).
2 Larry Diamond, Leonardo Morlino. “Introduction”, in: Assessing the quality of democracy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2005.
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corrói as regras institucionais básicas de decisão e implementação de polí-
ticas a favor de interesses privados. Nesta acepção, a corrupção enfraquece
o Estado de direito e o sistema de responsabilização política em detrimento
da participação da sociedade e dos valores fundamentais da ordem pública.
Quanto ao conteúdo, a corrupção degenera a igualdade de direitos e, por
consequência, a liberdade. A corrupção torna alguns indivíduos mais iguais
do que outros, esvaecendo o princípio da igualdade política como o prin-
cípio de uma sociedade democrática. E, por fim, a corrupção prejudica os
resultados das políticas e da ação das instituições democráticas, diminuin-
do a eficiência na aplicação dos recursos públicos e o resultado das políticas
públicas, reforçando a perpetuação da pobreza e da desigualdade.
Em uma democracia, portanto, a corrupção degenera o próprio fun-
damento de legitimidade do poder, corroendo as regras e princípios funda-
mentais da ordem política para favorecer interesses privados. Nesse caso, a
corrupção não se resume a uma relação econômica de apropriação indevida
de recursos públicos, mas um processo social mais amplo de patogenia ins-
titucional.
O objetivo desse texto é perquirir a relação entre corrupção e demo-
cracia observando a interação entre a importância dos desenhos institucio-
nais da representação democrática e os valores políticos fundamentais de
uma moralidade política de uma sociedade democrática. Com este objetivo
em vista, pretendemos, na primeira seção, interrogar a relação entre corrup-
ção e representação. Na segunda seção tratamos o modo como a corrupção
afeta a qualidade da democracia, com foco na experiência brasileira recente.
CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DA CORRUPÇÃO: ELEMENTOS PARA A DEFESA DA QUALIDADE DA DEMOCRACIA
O governo democrático é instituído mediante representação. Essa
é uma afirmação categórica da teoria democrática, que busca um critério
de legitimidade política na questão dos interesses. O problema do gover-
no democrático é a consolidação do imperativo da representação mediante
a articulação da justificação e reconhecimento dos interesses como válido
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para a ação política. De imediato, a passagem do privado ao público é cons-
truída pela ação política, em que o indivíduo busca o reconhecimento de
seus interesses na civitas mediante a participação nos negócios públicos.
Esta participação é mediada por regras e procedimentos que instituem uma
sociedade democrática. A característica de uma sociedade democrática é a
virtude da construção institucional associada a valores de fundo, principal-
mente o valor da igualdade.
O conceito de interesses representou um momento de ruptura reali-
zado pelo pensamento político moderno, sem que a política estivesse presa
a uma concepção de virtudes.3 A democracia, por outro lado, é um arranjo
institucional em que a ideia de interesse é central para a construção da legi-
timidade. Como se trata de uma vida institucional, a democracia separa os
correlatos funcionais do interesse privado e do interesse público, fazendo
com que a construção da legitimidade esteja assentada no segundo como
princípio heurístico. Ou seja, o interesse público é a construção de um prin-
cípio de legitimidade, porquanto envolva o consentimento que indivídu-
os morais dão para a origem da autoridade política. O interesse público
não trata de uma concepção unívoca ou empiricamente assentada. Ele é
um princípio normativo que estipula o fato de que os interesses dos cida-
dãos, em uma democracia, podem ser identificados com um valor público
fundamental que valida e legitima a ação das instituições políticas, desde
que estes mesmos cidadãos sejam tratados em condições de igualdade. O
interesse público, portanto, surge da interação entre instituições e valores,
representando um consentimento em torno de políticas e ações de gover-
no balizadas no princípio da igualdade. O interesse público, a partir disso,
pode assumir diferentes significados a partir de uma construção democrá-
tica de valores.4
3 Albert O. Hirschman. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
4 John Dewey. The public and its problems. Athens: Ohio University Press; Swallow Press, 1988. Barry Bozeman. Public interest and public values. Counterbalancing the economic individualism. Washington: Georgetown University Press, 2007.
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O consentimento é um princípio de legitimação, o qual permite a
passagem do privado ao público, de acordo com uma separação radical en-
tre a vida institucional e o cotidiano dos cidadãos. Para Locke, o governo
é legítimo à medida que sua autoridade emane das leis com as quais os
cidadãos consentiram seus termos a partir de seus interesses.5 O interesse,
como indica Hirschman, é um domesticador das paixões e permite a cons-
trução de um critério de legitimidade, visto que moraliza as concepções po-
líticas de sociedades comerciais e marcadas pela divisão do trabalho.6 O
consentimento é a capacidade de construção de um acordo motivado por
regras, sendo a representação a capacidade do indivíduo de vocalizar suas
preferências no âmbito dos sistemas administrativos da sociedade, tendo
em vista a formação de uma autoridade política. A representação, nesse
sentido, é um imperativo da vida democrática moderna, sendo a política
uma esfera de articulação legítima dos interesses.
Pressupõe-se que o cotidiano não opera na política enquanto espaço
de disputa dos interesses. Fundamental é que a política, na modernidade,
opera por fora do cotidiano dos indivíduos, de acordo com o imperativo da
representação. A atividade política é realizada por profissionais, que agem
de acordo com uma ética de responsabilidade que afasta as convicções mo-
rais. Sendo uma esfera da vida social dotada de certa autonomia, a política,
nas democracias representativas, procura seu princípio de legitimação na
ideia de uma racionalidade orientada para os interesses, importando à ação
política mais a realização dos fins do que o respeito às convicções éticas. A
responsabilidade política, nesse sentido, é derivada de uma vida institucio-
nal em que o cotidiano não se encontra presente nas estruturas de exercício
do poder. Ao contrário disso, a política é uma atividade profissional, em
que seus agentes no Estado moderno agem motivados por seus interesses e
limitados por uma legalidade que legitima a ação política.7
5 John Locke. Dois tratados sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
6 Albert O. Hirschman, op. cit.
7 Max Weber. “A política como vocação”, in: C. Wright Mills e H.H. Gerth (eds.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002.
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A corrupção, nessa chave do pensamento político moderno, é quando
a passagem do privado ao público ocorre de maneira ilegal. Ou seja, quando
o interesse privado se sobrepõe ao interesse público. Como o conceito de
interesse está relacionado à construção de sociedades comerciais, a vida
institucional está balizada no imperativo da representação e na capacidade
do indivíduo de ver reconhecido seu interesse no âmbito da civitas. O direi-
to, nesse sentido, cumpre o papel, na modernidade, de garantir os equiva-
lentes funcionais do interesse privado e do interesse público, diferenciando
esferas de juridificação dos interesses e sobrepondo barreiras que separem
ambas as dimensões do mundo político.8 A proteção do Estado contra a
corrupção demanda a repartição de papéis entre a administração pública e
a sociedade, implicando um inevitável distanciamento formatado pela en-
genharia jurídica, de modo a tutelar, judicialmente, os interesses privados
e o interesse público.
É a categoria interesse que se torna, portanto, chave para se pensar
os termos da representação e da corrupção na política. Uma vez que o con-
ceito de interesse surge em conjunto com a divisão social do trabalho, sua
centralidade faz com que a abordagem da política ocorra mediante a eco-
nomia. Tomando a ideia de interesse como constitutiva da representação, a
teoria democrática configura-se em torno da economia política, que produz,
por sua vez, uma interpretação funcionalista do Estado, de acordo com a
qual seu papel é a manutenção do sistema de produção através de um sis-
tema de administração racional da vida social.9 Acredita-se, dessa forma,
que a corrupção esteja ligada ao problema dos interesses e que seu controle
depende de sistemas racionais de administração da sociedade, no sentido
de distribuir papéis, funções e direitos. Esta concepção teórica da política
possibilitou constituir dois pressupostos de análise. Em primeiro lugar, que
a ação é uma atividade individual e balizada em uma racionalidade movida
pelos interesses. Em segundo lugar, é fundamental à democracia a presença
de instituições concebidas como regras que regulam a ação dos indivíduos.
8 Max Weber. “Sociologia do direito”, in: Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999, vol. II.
9 Joseph Schumpeter. Capitalism, socialism, and democracy. New York: Perennial Books, 2008.
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O agente político é visto por esta perspectiva econômica da polí-
tica como um indivíduo egoísta, que age no sentido da maximização de
seus interesses.10 Os atores buscam os fins e percebem o mundo a partir
de seu auto-interesse, sendo seu comportamento o resultado de uma es-
colha consciente e intencional, para a qual, diante de um leque de opções,
a alternativa escolhida será aquela que trouxer a maior utilidade esperada.
Instituições, por outro lado, são compreendidas como constrangimentos
interpostos entre os atores políticos, criando formas de controle ao com-
portamento naturalmente egoísta, mediante coerção. O comportamento
político é análogo ao comportamento dos agentes no mercado, uma vez que
o ato privado é auto-interessado e o resultado político é a congruência das
preferências dadas em condições obtidas contextualmente11.
Esta concepção da teoria democrática esvaziou o conteúdo ético da
política em nome de uma concepção técnica de intervenção do Estado na
sociedade. O resultado é que a corrupção deixa de ser pensada na lógica
dos processos de degeneração institucional para ser pensada como ação
individual. Tomando essa premissa dos interesses por meio da economia
política, a corrupção é analisada a partir de três ângulos diferentes: (1) a
corrupção realizada pelos políticos profissionais, na dimensão da repre-
sentação, envolvendo, especialmente, governantes e parlamentares; (2) a
corrupção de funcionários públicos, que usam seu poder e prestígio para
auferir vantagens indevidas. É a corrupção da burocracia e do aparato ad-
ministrativo do Estado; (3) a corrupção de membros de instituições cen-
trais do Estado, como a polícia e o Judiciário. O ponto de partida destes três
ângulos diferentes de análise da corrupção na modernidade é a contestação
da eficiência do Estado como produtor de bens públicos, sendo a corrupção
um fenômeno natural à existência estatal.
10 Anthony Downs. Anthony Downs. An economic theory of democracy. New York: Harper and Row.
11 É importante salientar que o desenvolvimento da vertente neo-institucionalista da ciência política surge como complementação das teorias da escolha racional, as quais tomavam o indivíduo racional como ahistórico e cuja ação ocorre independentemente de contextos políticos, sociais ou econômicos. A esse respeito, conferir Fábio Wanderley Reis. Política e racionalidade. Problemas de teoria e método de uma sociologia crítica da política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.
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Há uma característica central da corrupção na modernidade: ela
corresponde à ação ilegal praticada por agentes individuais, de acordo
com a sobreposição de interesses individuais ao interesse público. Se na
antiguidade a corrupção correspondida à degeneração do corpo político, na
modernidade ela corresponde a uma ação individual movida pelo egoísmo
auto-interessado.12 Nesse sentido, o enfrentamento da corrupção envolve a
discussão sobre o papel das instituições como organizações voltadas para a
socialização do poder. As burocracias públicas, no mundo moderno, cum-
prem a tarefa de socialização do poder, tendo em vista uma ética pública
procedimental balizada na ideia de responsabilidade.13 Para a compreen-
são da corrupção nas sociedades modernas, portanto, é necessário conjugar
uma teoria que a compreenda como ação, de um lado, e como falhas insti-
tucionais, de outro lado.
Como ação, a corrupção é vista como a concretização do egoísmo
auto-interessado dos agentes, que buscam a maximização de sua renda
burlando as regras do sistema. A corrupção na política, de acordo com Su-
san Rose-Ackerman, ocorre justamente na interface dos interesses público
e privado.14 Os esquemas de corrupção dependem do modo como a orga-
nização institucional permite o uso de recursos públicos para a satisfação
de interesses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional
produz ação discricionária por parte das autoridades políticas. Esta discri-
cionariedade ensejada pelo arranjo institucional incentiva o uso de paga-
mento de propinas e de suborno e reforçam a corrupção, no âmbito do setor
público e do setor privado.
O enfrentamento da corrupção passa pelas reformas institucionais,
com o objetivo de equilibrar representação e eficiência das políticas públi-
cas. O objetivo das reformas institucionais é aumentar a eficiência redu-
zindo os sistemas de incentivo para a corrupção. Por outras palavras, não
12 Fernando Filgueiras. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
13 Max Weber. “Burocracia”, in: C. Wright Mills e H.H. Gerth (eds.). Max Weber. “Burocracia”, in: C. Wright Mills e H.H. Gerth (eds.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002.
14 Susan Rose-Ackerman. Corruption and government. Causes, consequences and reform. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
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cabe às reformas institucionais reforçar o poder da burocracia, uma vez
que estas reformas resultariam em maior discricionariedade e em maior
incentivo para o pagamento de propina e de suborno, ou seja, em amplia-
ção das práticas de corrupção. Por outro lado, é necessário um mecanismo
de agregação de vontades particulares em decisões coletivizadas, visando
a assegurar a consecução de uma ordem estável e produtora de cooperação
entre os indivíduos. No aspecto formal, que representa um consenso entre
analistas ligados a teorias neo-institucionalistas, a prática de corrupção
não é coibida mediante reforço do poder burocrático, mas pelo fomento
do mercado.15
Paralelo às reformas das instituições políticas, cabe ao arranjo ins-
titucional da democracia fomentar a existência de um mercado enquanto
arena constante de negociação e de catalisação dos interesses por parte de
agentes econômicos e políticos. Os esquemas de corrupção dependem dos
recursos disponíveis — políticos ou materiais — para que as autoridades
ajam discricionariamente, redundando na criação de incentivos para o uso
de pagamentos de propinas e de suborno. Todavia, a corrupção, de acordo
com Rose-Ackerman, é uma ação que encontra motivação na proporção em
que as falhas de mercado estão presentes na cena política, fazendo com que
os agentes públicos se comportem de maneira rent-seeking, ou seja, maxi-
mizando seu bem-estar econômico, seja seguindo as regras do sistema, seja
não as seguindo.16
Em essência, a economia política da corrupção trabalha com a ideia
de que os esquemas de corrupção representam modelos de múltiplos equi-
líbrios. Ou seja, a corrupção assume dimensões sistêmicas quando as estra-
tégias adotadas pelos atores resultam em eventual sucesso das práticas cor-
ruptoras. A corrupção é permanente, mesmo em contextos de liberalização
do mercado, à medida que ela representa um custo menor do que os custos
impostos pela burocracia e pela ordem social. As estratégias bem sucedidas
15 Douglass North. Douglass North. Institutions, institutional change, and economic performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
16 Gordon Tullock. “The welfare costs of tariff s, monopolies, and the� ”, Gordon Tullock. “The welfare costs of tariffs, monopolies, and the�”, Western Economic Journal, nº 5, 1967; Anne O. Krueger. “The political economy of rent-seeking”, American Economic Review, nº 64, 1974.
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de corrupção tendem a ser adotadas pelos atores, caso não haja elementos
competitivos que inibam sua prática.17
Deste modo, o único modelo de equilíbrio possível para o contro-
le da corrupção é a construção de instituições competitivas através de re-
formas que mantenham a liberalização do mercado intacta. Apesar de a
corrupção representar custos para o próprio mercado, a adoção de uma
estratégia corruptora por parte dos atores é preferida em relação a estra-
tégias conducentes à obediência das normas. Neste sentido, as reformas
devem optar pela construção de instituições competitivas, que trabalhem
com a ideia de controle externo, sobreposição de jurisdições, ombudsman
e múltiplos “veto powers”, tendo em vista uma pressuposta ineficiência do
Estado como produtor de bens públicos.18
O ponto comum a essa visão econômica da democracia e da polí-
tica é considerar a ação que leva à corrupção, bem como os sistemas de
incentivo que propiciam uma ação corrupta ou corruptora. A corrupção é
compreendida como uma ação individual que surge da interação entre cor-
rupto e corruptor, com base em padrões normativos estabelecidos na lei.
Racionalidade e intencionalidade da ação constituem o manancial teórico e
empírico, desconsiderando a moralidade, os contextos históricos e os pro-
cessos sociais envolvidos na prática da corrupção. O que é comum à abor-
dagem da economia política da corrupção é a presença de uma metateoria
que assenta a construção do problema na relação entre interesses privados
e interesse público. A compreensão da política e das crises de legitimidade
derivadas da corrupção está subordinada a uma visão comum, ou a uma
metateoria tributária de uma naturalização dos interesses e de sua diferen-
ciação no âmbito das sociedades mercantis. O fato é que o imperativo da
representação, como imperativo de análise da política, implica a desconsi-
deração da moralidade e da construção de valores na ordem pública.
17 Ajit Mishra. “Persistence of corrupti on”, Some theoreti cal perspecti ves, Ajit Mishra. “Persistence of corruption”, Some theoretical perspectives, World Development, 34 (2), 2006.
18 Pranab Bhardan. “The economist’s approach, to the problem of corrupti on”, Pranab Bhardan. “The economist’s approach, to the problem of corruption”, World Development, 34 (2), 2006.
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A economia política da corrupção não proporciona uma concepção
normativa de interesse público, com a qual pudesse derivar um sentido va-
lorativo da política. O conceito de interesse público é apresentado de ma-
neira pouco amena, no que se refere às disputas por seu sentido, envolven-
do mais o aspecto mercantil do que propriamente a discussão de valores
e normas. Como o conceito de interesse público é desprovido de um viés
empírico, é fundamental discutir a corrupção a partir de uma abordagem
normativa, em que pesem os valores e normas de sociedades democráticas
e o modo de acordo com o qual as instituições podem secretar estes valores.
Ou seja, quando lidamos com o tema da corrupção, estamos lidando com
um conceito normativamente dependente.19
A corrupção é um conceito fugidio na política, porque depende de
concepções normativas a respeito das próprias instituições sociais e polí-
ticas, em que pesem, dessa forma, os valores que definem a própria noção
do que vem a ser o interesse público. A corrupção é um fenômeno forte-
mente abstrato, que depende não apenas do enquadramento legal da ação,
mas também do julgamento moral estabelecido pela cidadania. A economia
política não dá conta de estabelecer uma agenda de enfrentamento da cor-
rupção porque não compreende a relação entre instituições e valores. Além
disso, as crises de legitimidade da democracia, derivadas da corrupção na
política, estão relacionadas a um descontentamento com as instituições, o
qual leva em consideração aspectos de uma moralidade pressuposta. Pen-
sar a moralidade política, contudo, não significa pensar sua moralização.
Pensar a moralidade política, nesse contexto, significa abordar os valores
fundamentais da política, de acordo com noções representativas do inte-
resse público, o qual não se resume a uma concepção mercantil de uma ra-
cionalidade instrumental, mas a uma concepção de valores fundamentais.
Assim sendo, a corrupção deve ser pensada como um juízo moral, transcen-
dendo a mera relação monetária entre corrupto e corruptor.
A noção de interesse público está implicada em sua contraparte nor-
mativa que é a corrupção. Só se pode compreender o que vem a ser o inte-
19 Fernando Filgueiras. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
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resse público quando se toma uma noção de corrupção como guia, e vice e
versa. O descontentamento é gerado à medida que falta ao discurso político
um pano de fundo moral, sustentado em consensos de natureza normativa,
que especificam os juízos que permitem identificar a corrupção. No caso
das democracias representativas, isso fica claro quando a corrupção afeta
sua legitimidade, em especial quando ela motiva momentos de desconstru-
ção das instituições.20
É importante destacar que as crises de legitimidade derivadas da cor-
rupção apenas podem ser compreendidas com a possibilidade de uma crítica
moral da política. Muito especialmente quando se trata das democracias re-
presentativas, que apresentam outras modalidades de compreensão linguís-
tica da corrupção, que não apenas a da economia política. A linguagem dos
interesses ofuscou outras linguagens que circulam na esfera pública e que
podem ser explicativas da corrupção e das crises de legitimidade. Não se tra-
ta apenas da compreensão da racionalidade e da intencionalidade do indiví-
duo egoísta da modernidade, mas de diferentes modalidades de valores que
estão pressupostos na construção do conceito e da prática da corrupção. A
possibilidade de uma crítica moral da corrupção e da política ocorre apenas
com a delimitação de outras modalidades de ação política, que não o desvelo
das patologias institucionais por meio da racionalidade dos agentes políticos.
Devemos entender a corrupção, não apenas como uma ação indivi-
dual realizada por agentes públicos que eleve o interesse privado ao inte-
resse público, mas também como um processo mais amplo de degeneração
de valores e corrosão institucional da democracia. A corrupção afeta a pu-
blicidade das instituições democráticas e o universalismo de procedimen-
tos fundamentais para a decisão e implementação de políticas públicas,
tendo por efeito não apenas a distorção na aplicação de recursos públicos,
como mostra a economia política da corrupção, mas também a corrosão de
valores centrais da democracia, em particular o valor da igualdade.21 Por
uma perspectiva de interesse público, que leve em consideração o conteúdo
20 Fernando Filgueiras, op. cit.
21 Fernando Filgueiras, op. cit.
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dos valores de uma sociedade democrática, fica evidente que o processo
de degeneração afeta os procedimentos, conteúdos e resultados das políti-
cas configuradas pelas instituições democráticas. O problema da corrupção
não se restringe aos aspectos inerentes à economia política, representando
um processo político mais amplo que afeta a própria composição da socie-
dade e do regime político. Falar no termo qualidade da democracia, nesse
caso, significa pensar os elementos centrais que permitam sua avaliação do
sistema político e da qualidade das instituições na consecução do interes-
se público. Por qualidade da democracia devemos entender o processo de
avaliação da atuação do sistema político frente a padrões normativos confi-
gurados em torno de valores fundamentais que orientam a constituição das
instituições. Significa pensar o fato de que as instituições estão envolvidas
em valores fundamentais que permitem configurar uma moralidade de fun-
do, que orienta o desenho institucional.22 Tal como o conceito de corrup-
ção, o conceito de qualidade da democracia é normativamente dependente.
De acordo com Morlino, a qualidade da democracia refere-se aos
padrões estabelecidos em torno dos procedimentos, do conteúdo e dos re-
sultados das políticas. Significa pensar nos termos valorativos centrais que
permitam avaliar a qualidade das instituições democráticas e, por consequ-
ência, o suporte dos cidadãos a estas instituições. Significa, de acordo com
o autor, avaliar os processos de decisão e implementação de políticas tendo
em vista direitos e deveres fundamentais que constituem uma sociedade
democrática.23
No que tange à questão procedimental, a qualidade da democracia
refere-se à efetividade de regras e procedimentos centrais para a efetividade
da ação das instituições políticas. A qualidade, nesse primeiro quesito, refe-
re-se ao resultado alcançado a partir de processos políticos controlados por
regras constitucionais, as quais dão forma ao corpo político e permitem aos
cidadãos satisfazerem seus interesses de forma legítima. As instituições e
22 Russel Hardin. “Insti tuti onal morality”, in: Robert E. Goodin (ed.). “Institutional morality”, in: Robert E. Goodin (ed.). The theory of institutional design. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
23 Leonardo Morlino. “Legiti macy and the quality of democracy”. Leonardo Morlino. “Legitimacy and the quality of democracy”. International social sciences journal, vol. 60, nº 196.
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os mecanismos da democracia funcionam sobre um aparato procedimental
que regula a ação dos agentes públicos e delimita a validade dela por meio
de normas antepostas aos interesses. Significa uma concepção de acordo
com a qual a democracia demanda regras de funcionamento institucional
que permitam atingir o bem comum, mesmo em sociedades marcadas pelas
diferenças. Do ponto de vista do elemento procedimental, as democracias
devem assegurar que a autoridade política legítima seja aquela que surgiu
de eleições limpas e competitivas, em que os cidadãos possam exercer o seu
direito de voto e possam disputar os cargos eletivos em pé de igualdade,
que haja liberdade de expressão e fontes alternativas de informação, que os
líderes possam disputar o voto dos eleitores e que haja direitos de partici-
pação dos eleitores.24
O segundo elemento que define a qualidade da democracia é o
conteúdo das decisões e políticas implementadas pelo Estado e pela so-
ciedade. Refere-se, de acordo com o autor, às características estruturais
que asseguram o design e o funcionamento das instituições. Basicamente,
refere-se ao modo como as instituições da democracia asseguram que suas
decisões e políticas tomem como conteúdo básico a liberdade e igualdade
dos cidadãos.25
Finalmente, o terceiro elemento que define a qualidade da democra-
cia refere-se aos resultados de políticas e decisões de governo. Significa que
em uma democracia, os cidadãos devem ter o poder de avaliar e controlar
a ação do Estado, com o objetivo de perseguir os ideais normativos de li-
berdade e igualdade. A dimensão dos resultados significa o monitoramento
das instituições e dos próprios cidadãos quanto à eficiência na aplicação
dos recursos públicos, na responsividade do governo frente aos cidadãos e
na concretização da accountability. A legitimidade de decisões e políticas
estabelecidas em uma democracia depende de uma concepção de respon-
sabilidade frente ao interesse público, tendo em vista uma noção forte de
publicidade que perpassa as instituições. A conjunção destes três elemen-
24 Robert Dahl. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997.
25 Leonardo Morlino, op. cit.
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tos, de acordo com Morlino, explica a legitimidade da ordem política demo-
crática, tendo em vista a interação entre valores e instituições.26 As insti-
tuições democráticas estão calcadas em valores normativos sólidos, tendo
em vista uma organização que se espreita em uma moralidade de fundo. A
corrupção, ao contrário, esvaece o conteúdo desses valores, afetando di-
retamente a qualidade da democracia. Se tomarmos o conceito de quali-
dade da democracia como fundamental para a compreensão dos valores
normativos de fundo, percebe-se que a corrupção pode afetar de maneiras
distintas as três dimensões de avaliação das instituições e também tomar
diferentes formas que não são, necessariamente, congruentes.
A próxima seção tratará das asserções levantadas nesse plano ana-
lítico para a compreensão do caso brasileiro, tendo em vista uma crítica ao
presidencialismo de coalizão.
BRASIL: INTANGIBILIDADE E ENFRENTAMENTO DA CORRUPÇÃO
O processo de democratização no Brasil implicou o reconhecimento
das condições da poliarquia e proporcionou a universalização de direitos
dos cidadãos tendo em vista uma orientação normativa forte de justiça so-
cial.27 Nesse contexto, o processo de democratização brasileiro permitiu
a liberalização política, a ampliação da competição política e fortaleceu as
demandas em relação ao Estado e à sociedade. Ao mesmo tempo, o proces-
so de democratização conviveu com o esmaecimento da burocracia pública,
uma vez que a crise fiscal e a globalização impuseram limites à interven-
ção do Estado na sociedade. Em um contexto de demandas ampliadas, o
enfraquecimento da burocracia pública implicou um contexto de reformas
que se estenderam pelo reconhecimento da responsabilidade fiscal, em mu-
danças da máquina administrativa estatal e valorização de parcerias entre
Estado e sociedade na consecução das políticas públicas.
26 Leonardo Morlino, op. cit.
27 Wanderley Guilherme dos Santos. “Estado, instituições e democracia”, in: José Celso Pereira Cardoso Jr. (org). Desafios ao desenvolvimento brasileiro. Brasília: IPEA, 2009.
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No que diz respeito aos avanços na relação entre Estado e sociedade,
podemos apontar, de imediato, a representatividade da sociedade civil nos
processos decisórios das políticas públicas, por meio de uma participação
ampliada em instituições híbridas, que representam governo e sociedade
civil no momento da formulação das políticas públicas. Dessa maneira, a
gestão das políticas públicas no Brasil reconheceu a importância de instân-
cias decisórias ampliadas, que funcionam como fóruns de deliberação que
levam em consideração uma construção interativa do bem comum.
A representatividade foi conquistada pela ampliação de direitos dos
cidadãos e a constituição de desenhos institucionais participativos, os quais
reconhecem tanto os desenhos de partilha de poder entre Estado e socie-
dade, quanto desenhos institucionais em que o processo decisório flui de
baixo para cima.28 Exemplo do modelo de partilha do poder está nos con-
selhos de políticas públicas nas três esferas da Federação, que asseguram
a representação da sociedade civil nos processos de deliberação das finali-
dades das políticas públicas e poder de veto à sociedade civil por meio de
autonomia para fiscalização e acompanhamento das políticas. Modelos em
que o processo decisório das políticas públicas flui de baixo para cima po-
dem ser considerados aqueles em que a institucionalização da participação
considere a vontade popular e os diferentes interesses dos atores envolvi-
dos na deliberação. Dessa forma, os orçamentos participativos, especial-
mente na esfera municipal, representam um modelo de institucionalização
da participação que considera a vontade popular e os interesses dos dife-
rentes atores nos processos de decisão.29
Avanços na representatividade por meio de processos de participa-
ção e deliberação na configuração das políticas públicas também podem ser
reconhecidos na institucionalização das conferências nacionais de políticas
públicas. As conferências, que representam fóruns ampliados de participa-
ção e influenciam a agenda do Congresso Nacional, são instâncias de deli-
28 Leonardo Avritzer. “Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático”, Opinião Pública, vol. 14, n° 1, 2008, pp. 43-64.
29 Leonardo Avritzer, op. cit.
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beração que fixam metas e objetivos para as diferentes áreas de políticas
públicas, tais como saúde, direitos humanos, educação, e outras. As con-
ferências foram sendo ampliadas ao longo dos anos, iniciando sua prática
no governo Fernando Henrique Cardoso e tornando-se rotina no governo
Lula. O resultado das conferências foi constituir, por meio da participação
ampliada da sociedade na deliberação das políticas, uma influência sobre a
agenda do Congresso Nacional e do governo, de modo a constituir em leis
as metas e objetivos pactuados.30
O curioso das inovações institucionais da democracia brasileira é que
elas passam ao largo das instituições convencionais da representação. A Cons-
tituição de 1988 produziu a liberalização política e a inclusão de estratos so-
ciais até então excluídos do processo político. Mas, apesar disso, a Constitui-
ção não produziu um sistema partidário forte, nem uma Congresso Nacional
realmente forte, capaz de sustentar a legitimidade democrática. Ao contrário
disso, os legislativos são instituições impopulares, apesar de ter o papel cen-
tral de garantia da governabilidade. O processo de transição para a democra-
cia e a Constituinte de 1988 centralizaram o processo de governabilidade em
detrimento de uma preocupação mais central com a questão da legitimidade.
Isto é, no momento do fim do regime autoritário e da emergência da democra-
cia, a preocupação foi com a construção de instituições que assegurassem ao
presidente da República as condições necessárias para o exercício do governo,
sem que isso implicasse novo processo de paralisia decisória. A fórmula do
presidencialismo de coalizão significa um processo de delegação de poder ao
presidente da República por meio da constituição, dentro de um sistema pre-
sidencialista, de uma coalizão de sustentação política no Congresso.
As condições de governabilidade no sistema político brasileiro hoje
são sólidas, especialmente se considerarmos um desenho institucional
que assegura prerrogativas institucionais ao Poder Executivo tais como a
capacidade de iniciar o processo legislativo, o poder de decreto por meio
das medidas provisórias e o controle do orçamento da União. O presiden-
30 Thamy Pogrebinschi; Fabiano Santos. Entre representação e participação. As conferências nacionais e o experimentalismo democrático brasileiro. Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: IUPERJ; Brasília: PNUD; Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, 2010.
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cialismo de coalizão brasileiro faz com que o Executivo assegure apoio do
Congresso utilizando recursos disponíveis herdados do regime de exceção
de 1964 e mantidos pelo Constituinte em 1988. Contudo, a constituição de
maiorias no Legislativo passa pela disponibilização de recursos do orça-
mento da União e pela distribuição de ministérios aos partidos da base de
apoio. De imediato, o sistema político brasileiro, tal como organizado, pre-
judica a accountability horizontal e torna o Congresso uma massa de mano-
bra do presidente, sem formas de controle efetivo do Executivo.31
Some-se a isso a existência de um sistema de financiamento de cam-
panhas eleitorais misto, que permite que grandes corporações e agentes
financeiros financiem campanhas eleitorais, tornando as sobras de campa-
nhas sujeitas a pilhagem privada, bem como a presença constante de caixa
2. Ademais, o sistema de financiamento de campanhas eleitorais no Brasil
não permite um controle efetivo dos gastos eleitorais e um processo efetivo
de accountability. Somado ao processo de permanência de fenômenos como
compra de votos e clientelismo, percebe-se que as falhas institucionais se
tornaram crescentes à medida do processo de institucionalização política.
A democratização brasileira, nesse sentido, é contraditória. Ela pro-
porcionou uma série de inovações institucionais com a maior participação
da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, perpetuou formas institucionais her-
dadas do regime autoritário. O resultado é que imediatamente ao processo
de liberalização política com a transição e promulgação da Constituição de
1988, veio à arena política as demandas por reformas institucionais, agen-
da esta que ainda permanece na cena política brasileira. Ademais, some-se
a isso um processo contraditório da democratização. A institucionalização
da representação política veio seguida de uma sucessão de escândalos po-
líticos relacionados à corrupção. A democratização brasileira deflagrou
um processo de desvelamento da corrupção política. Portanto, apesar das
inovações institucionais, a corrupção passou a ser mais percebida pela so-
ciedade, deflagrando um processo crescente de descontentamento com re-
31 José Álvaro Moisés. “O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (1995-2006)”, in: O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer Sti�ung, 2011.
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lação às instituições da representação política, especialmente o Congresso
Nacional, os partidos políticos e o sistema de governo.
O sistema político brasileiro possibilita a governabilidade ao cus-
to de uma erosão gradativa da legitimidade política e da naturalização da
corrupção no próprio sistema político. No que tange à erosão gradativa da
legitimidade, devemos entendê-la como a erosão da capacidade das insti-
tuições representativas ecoarem as preferências dos cidadãos e terem apoio
destes para decidir e implementar políticas públicas. No que tange à na-
turalização da corrupção, devemos entender o processo mediante o qual
a opinião pública identifica e percebe a corrupção como um tipo de ação
permanente no bojo das instituições políticas. A corrupção tem passado
por esse processo de naturalização nas instituições do Estado brasileiro por
conta da ineficácia das instituições de accountability e controle democráti-
co, especialmente no que tange a um sentimento de impunidade da corrup-
ção que se reitera na opinião pública. Quando os cidadãos são inquiridos
a identificar quais as instituições em que a corrupção se faz mais presente,
eles de imediato a identificam nas instituições legislativas, no executivo e
no judiciário. O Estado brasileiro é visto como o espaço dos vícios, onde
a corrupção se faz presente de forma natural. O gráfico abaixo compara a
percepção dos cidadãos brasileiros quanto à presença média da corrupção
nas instituições políticas e sociais, bem como em grupos sociais distintos:
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Gráfico 1. A presença da corrupção em ambiente políticos e sociais32
Fonte: Centro de Referência do Interesse Público / Vox Populi, 2008 e 2009.
O caso brasileiro permite visualizar o impacto negativo da corrupção
na qualidade da democracia. Em primeiro lugar, a estrutura do presidencia-
lismo de coalizão faz com que os mecanismos de accountability horizontal
deixem de funcionar a contento. Instrumentos próprios do controle político
do Poder Executivo e das políticas públicas, como as Comissões Parlamen-
tares de Inquérito (CPI’s) e a atuação dos Tribunais de Contas, não resultam
em punição da corrupção. Além disso, apesar de inovações nas instituições
de controle interno do Poder Executivo e de uma atuação mais incisiva do
Ministério Público, a corrupção não é punida por conta da ineficácia do Poder
Judiciário e de uma legislação processual que não permitem que a corrupção
seja punida. Apenas em 2010 que houve a primeira punição de uma autori-
dade política na esfera federal, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.33
32 Este gráfico reproduz dados da pesquisa “Os brasileiros e a corrupção”, realizada pelo Centro de Re-ferência do Interesse Público da UFMG em parceria com o Instituto Vox Populi. A pesquisa baseou-se em um survey nacional de opinião pública, realizado nos anos de 2008 e 2009, com amostras de 2421 e 2400 indivíduos, respectivamente, estratificada por situação de domicílio, gênero, idade, escolaridade, renda familiar e situação perante o trabalho. Este processo de estratificação é calculado proporcionalmente de acordo com os dados do Censo Demográfico do IBGE, ano 2000, e pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio, ano 2006. A amostra proporciona um intervalo de confiança de 95% e uma margem de erro calculada em 2%.
33 O deputado federal Zé Gerardo foi condenado em 13/05/2010 a pena de dois anos e dois meses de prisão, que foi convertida no pagamento de cinquenta salários mínimos e prestação de serviços co-munitários. O deputado foi condenado pelo crime de responsabilidade por ter aplicado indevidamente os recursos de convênio federal com o município de Caucaia, no estado do Ceará, para a construção de açudes contra a seca. Os recursos foram utilizados na construção de pontes molhadas, desviando da finalidade estabelecida pelo convênio com o Ministério do Meio Ambiente.
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A existência do caixa 2 e a presença de grandes corporações no finan-
ciamento das campanhas eleitorais faz com que os interesses desses grupos
sejam privilegiados em detrimento do interesse público. Isto fica claro no
modo como contratos e convênios com o governo federal são geridos, bem
como na permanência de problemas de gestão das licitações e no sistema
de controle de convênios. A fraqueza dos partidos e a presença de partidos
sem uma base social mais sólida também contribuem para abrir flancos por
meio dos quais a corrupção possa surgir. A naturalização da corrupção no
Brasil ocorre por sua reprodução e permanência na agenda pública, em um
sentido mediante o qual ela se torna intangível para a opinião pública, que
não a consegue avaliar eficazmente, apesar de todos os esforços e inovações
institucionais que são feitos para o seu enfrentamento.
O paradoxo brasileiro com a corrupção ocorre pelo fato de a cor-
rupção se tornar uma prática corriqueira na dimensão do sistema políti-
co, apesar das inovações nas instituições de accountability. O Brasil, hoje,
tem um Ministério Público atuante, uma atuação autônoma do Tribunal de
Contas da União, novas instituições de controle como a Controladoria Ge-
ral da União e a atenção da sociedade civil para os escândalos de corrupção.
A explicação para isso, segundo Taylor e Buranelli, é o fosso que separa a
percepção da corrupção e a percepção da accountability.34 Isto ocorre por
conta de uma disjunção dos mecanismos de controle da corrupção e por
uma legislação processual ultrapassada que permite a impunidade.
O sentimento de impunidade da corrupção que hoje paira sobre a
opinião pública brasileira e a recorrência de escândalos impactam negati-
vamente a qualidade da democracia, não na esfera da governabilidade, mas
na esfera da legitimidade. E este impacto negativo da corrupção possibilita
a reprodução de um ciclo vicioso que afeta gravemente o apoio dos cidadãos
às instituições clássicas da representação política. O caso brasileiro, nesse
sentido, reforça a permanência da agenda da reforma política no contexto
de uma sociedade ainda em processo de democratização. Por um lado, a
34 Matt hew Taylor; Vinícius C. Buranelli. “Ending up in pizza: accountability as a problem of insti tuti onal Matthew Taylor; Vinícius C. Buranelli. “Ending up in pizza: accountability as a problem of institutional arrangement in Brazil”, Latin American Politics and Society, vol. 49, nº 1, 2007, p. 59-87.
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baixa legitimidade das instituições clássicas de representação é compensada
pelas inovações no âmbito das instituições participativas. Por outro lado, a
governabilidade compensa a agenda da legitimidade, no plano do discurso
político, enquanto for mantido um ciclo virtuoso do desenvolvimento eco-
nômico e de políticas que visem à solidificação da justiça social. No momen-
to em que ambas as agendas esmorecerem, não é possível prever qual será o
efeito da corrupção que assola as instituições da democracia representativa.
Assim, não se sabe se será possível manter esse ciclo vicioso da cor-
rupção se não houver a esperança de um Brasil melhor, que advenha das
inovações da democracia e da agenda de justiça social. Nesse caso, se per-
ceberá o modo como a corrupção prejudica a liberdade e a igualdade, à me-
dida que corrói não apenas a eficiência na aplicação dos recursos públicos,
mas também o próprio corpo político, que sem as amarras da representa-
ção, poderá decair em formas autoritárias ou delegativas do poder. O que se
deve temer não é a corrupção dos políticos e do uso dos recursos públicos,
mas a corrupção da igualdade e da liberdade, sem as quais não é possível
haver democracia.
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CHEFIA E REPRESENTAÇÃO ENTRE OS YE’KUANA1
Karenina Vieira Andrade2
Preâmbulo
– abertura em dois tempos –
Em dezembro de 2009 retornei a Fuduwaaduinha, aldeia ye’kuana
no alto Rio Auaris. Era meu segundo retorno a Auaris depois do período
inicial de 13 meses, em 2005-2006, durante minha pesquisa de doutorado,
e o primeiro depois de defendida a tese. A visita tinha dois objetivos: dar
continuidade a minha pesquisa, investigando uma temática pouco explo-
rada na tese, e discutir com os ye’kuana a possibilidade de desenvolver um
projeto de artesanato junto a uma ONG que atua na área. Minha estadia,
embora curta, fez com que me debruçasse, de maneira inesperada, sobre
a análise de alguns aspectos da organização política ye’kuana, tema que
não estava na minha pauta como pesquisadora nem como “assessora” da
associação ye’kuana.
Encontrei um cenário muito diferente do período em que vivera em
Auaris, marcado por dois eventos: a mudança da aldeia para a outra mar-
gem do rio (processo que se iniciara ainda em 2005 e que eu acompanhara
no seu estágio inicial) e a escolha de um novo chefe da comunidade, devido
à morte do chefe anterior no ano de 2008. Eu havia presenciado as primei-
ras reuniões do conselho de homens maduros da aldeia em que se discutiu
a mudança para um novo sítio; a escolha do novo local; a derrubada da
mata para o início da construção das casas; o desenho do “mapa” da nova
1 Os Ye’kuana são um povo de fala caribe cuja população está em parte no território brasileiro (04 aldeias, todas no estado de Roraima) e em parte no território venezuelano (59 aldeias). Realizei pesquisa etnográfica com os Ye’kuana que vivem na Terra Indígena Yanomami, no extremo norte do estado de Roraima, na aldeia Fuduwaaduinha, a maior aldeia ye’kuana do lado brasileiro, com cerca de 300 habitantes. Fuduwaaduinha estava então localizada na margem esquerda do Rio Auaris, a cerca de 280 milhas aéreas da cidade de Boa Vista, próximo à fronteira com a Venezuela.
2 Doutora em Antropologia Social (UnB), Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG.
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aldeia, com a disposição das futuras residências, o prédio da escola, a casa
comunal e a enfermaria. Não cheguei a ver o início efetivo da construção
das casas. No entanto, antes de pousar na pista de Auaris numa ensolarada
manhã de dezembro, eu já havia sido informada de que a mudança estava
praticamente finalizada. Não só a maioria das famílias já estava vivendo na
nova aldeia, em local muito próximo à aldeia antiga, mas outro processo
que eu também acompanhara de perto havia se efetivado: a fundação de
outra aldeia ye’kuana, composta por duas famílias extensas que deixaram
Fuduwaaduinha, desceram o rio e estavam agora vivendo na região conhe-
cida como Tucuxim, próximo ao ponto de confluência dos rios Auaris e Pa-
rima. Também tivera, em fins de 2005, a oportunidade de acompanhar a
expedição que levou à escolha do local da nova aldeia, numa viagem de vá-
rios dias rio abaixo. Naquele período, apenas um casal havia permanecido
no local escolhido e os outros membros da expedição retornaram a Auaris,
enquanto as roças plantadas no Tucuxim cresciam para alimentar as cerca
de 60 pessoas que planejavam viver lá. A mudança foi gradual.
Ao longo dos quase três anos de ausência, as notícias sobre os acon-
tecimentos em Auaris me chegavam através de mensagens eletrônicas e
telefonemas vindos de Boa Vista, principalmente dos professores ye’kuana
que iam periodicamente à cidade para ter aulas (alguns no magistério indí-
gena e outros na licenciatura intercultural da UFRR), e também nos meus
encontros com um dos mais proeminentes jovens ye’kuana, atual diretor da
Hutukara Associação Yanomami, entidade criada para representar os inte-
resses dos povos indígenas que vivem na Terra Indígena Yanomami. Este
jovem costumava ir a Brasília (onde eu então vivia) periodicamente para
participar de congressos e reuniões ligados a seu trabalho na Hutukara, e
nestas ocasiões, quando costumava hospedar-se na minha casa, tinha eu a
oportunidade de saber sobre a vida daqueles com os quais eu havia vivido e
das muitas mudanças que estavam ocorrendo em Fuduwaaduinha. Assim,
quando embarquei em Boa Vista junto com um jovem Sanumá e milhares de
alevinos que alimentariam as pisciculturas das aldeias ye’kuana e sanumá no
avião Caravan fretado pela ONG interessada em desenvolver o projeto com
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os ye’kuana, eu estava ansiosa por ver, já do alto, as duas novas aldeias. Man-
tive os olhos fixos no “mar” verde abaixo de nós, tentando identificar Kudatä-
nha, a aldeia do Tucuxim que eu vira em germe. Somente quando estávamos
a vinte minutos de vôo de Auaris finalmente pude vislumbrar a nova aldeia e
sua pista de pouso, recém-aberta, surpresa com a proximidade de Fuduwa-
aduinha – ao menos por via aérea, pois na viagem de 2005 levamos penosos
13 dias para completar o percurso pelas águas acidentadas do Rio Auaris.
Vinte minutos depois, sobrevoávamos a outra nova (velha) aldeia,
agora mais próxima da pista de pouso onde se localizavam as instalações
do 5º Pelotão Especial de Fronteira, da FUNAI e da FUNASA, bem como
uma das aldeias Sanumá. Após o pouso e reencontro com meus conhecidos,
embarquei na canoa de um dos ye’kuana e rumamos para a velha aldeia.
Tomada por um misto de saudosismo (acentuado pela visão da casa onde
eu vivera, agora abandonada e em ruínas) e curiosidade, fui aos poucos
vendo e sentindo as mudanças pelas quais Fuduwaduuinha passara naque-
le curto período de tempo. Antes de rumar para a aldeia, no entanto, uma
breve conversa na inevitável passagem pelo posto da FUNASA localizado
em uma das extremidades da pista de pouso seria determinante para pre-
sente a análise.
Coisa de índio ou coisa de branco?
Após o pouso da aeronave, na cabeceira da pista onde está o 5º PEF,
e o rotineiro procedimento de identificação ao soldado de prancheta em
punho que logo se acerca do avião, segui com os ye’kuana para o porto que
se localiza atrás das instalações da FUNAI e da FUNASA, na outra extremi-
dade da pista de pouso. O posto da FUNAI estava fechado, mas passamos
pelas instalações da FUNASA para cumprimentar os conhecidos – encon-
trei apenas um dos funcionários da época em que vivi em Auaris. Seguimos
para o porto e enquanto os Ye’kuana ajeitavam na canoa as encomendas
que haviam chegado de Boa Vista, tive uma breve conversa com um dos
novos funcionários. Ao saber que eu era a antropóloga que havia morado
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em Auaris, trabalhando com os Ye’kuana, o jovem rapaz fez uma série de
comentários que eu já escutara tantas outras vezes: “é bom trabalhar com
os Ye’kuana, eles são organizados, sérios, disciplinados. É muito difícil tra-
balhar com os Sanumá, mas com os Ye’kuana! É outra história! Eles, os
Ye’kuana, são muito parecidos com os brancos... quer dizer, eles já apren-
deram muitas coisas com os brancos”.
Durante o tempo em que vivi em Auaris, não foram poucas as vezes
em que ouvi discursos deste tipo a respeito dos ye’kuana, sempre em tom de
elogio. Aos olhos dos brancos que trabalhavam em Auaris, os ye’kuana eram
organizados, sérios, um tanto arrogantes e tinham hábitos “civilizados”3. Es-
sas falas apareciam em situações como os mutirões que eram regularmente
feitos para a limpeza da trilha dos postes de energia que ligavam a micro-
-usina, o pelotão, a aldeia ye’kuana, as instalações da FUNAI e da FUNASA
e a maior das aldeias sanumá de Auaris, localizada à beira da pista de pouso.
O trabalho era dividido entre os soldados e os homens ye’kuana e sanumá.
Os ye’kuana costumavam ser elogiados pela eficiência na execução do traba-
lho, sobretudo porque escolhiam um homem que se tornava o responsável
pela equipe de trabalhadores e negociava com o comandante do pelotão a
escala de trabalho e todos os demais detalhes referentes ao mutirão.
Dois dias depois da minha chegada a Auaris, eu havia combinado
uma entrevista com D., o novo chefe político da aldeia. Ele imediatamente
convidou outros homens para que se juntassem a nós, como era já costu-
me. A essa altura os ye’kuana conheciam bem meu interesse pelas histórias
wätunnä4 e a série de perguntas com as quais eu os bombardeava a cada
encontro. Talvez na tentativa de torná-las menos enfadonhas para si mes-
mos, eles costumavam transformar essas ocasiões em verdadeiras sessões
em que se discutiam histórias e trocavam-se idéias sobre diversos temas
trazidos à baila por minhas perguntas. E eu só tinha a lucrar com isso, e se
3 Este tipo de discurso sobre os ye’kuana, que tantas vezes ouvi em Auaris, não é novo. Koch-Grünberg, em sua viagem à bacia do Orinoco entre 1911-1913, afirmou sobre os Majonggóng [ye’kuana]: “Entre los índios (...) me llamó enseguida la atención um índio casi blanco (...) Al principio lo tomé por un blanco. Es un Majonggóng. (...) Tiene una manera de comportarse naturalmente fina, algo orgullosa.” (1979: 50-51).
4 Narrativas tradicionais ye’kuana.
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os provocava com questões iniciais, depois que o debate se iniciava eu cos-
tumava ouvir mais do que falar, deixando que decidissem o “rumo da pro-
sa”, fazendo perguntas aqui e ali quando o tema pedia, quando queria mais
detalhes sobre certos assuntos ou quando algo não estava claro para mim.
Logo cedo, após a refeição matinal, segui com H. para a nova aldeia
(na margem oposta do rio) onde nos encontraríamos com os demais. Eu
estava hospedada na casa de H., uma das poucas famílias que ainda não
havia se mudado para a aldeia nova – sua casa estava em construção. Atra-
vessamos de canoa para a outra margem e em poucos minutos entramos
na casa de D., onde os homens nos esperavam fumando tabaco e tomando
xibé. Depois de trocarmos cumprimentos, começamos uma conversa sem
muita importância. Digo a D.,
― D., sabe o que eu escutei ontem, lá do outro lado? Sabe o que um
branco da Funasa me disse?
― Não.
― Ele me disse que os ye’kuana são muito organizados. Você sabe,
nas coisas de trabalho. Que tem responsáveis para organizar o trabalho.
― É verdade. Nós pensamos antes de fazer as coisas. Nós planeja-
mos. Sempre fazemos assim. Quando a gente abre uma roça, pensamos o
tamanho da roça para durar o ano todo. Para não faltar comida. Pensamos
para a frente, não pensamos só no dia de hoje ou amanhã. Por isso tem os
responsáveis para ajudar a organizar o trabalho. Eles decidem como vai ser.
― Mas você sabe, os brancos acham que vocês aprenderam a ser orga-
nizados com eles. Por isso dizem que vocês são civilizados. Porque tem respon-
sável por cada coisa aqui. Tem até o tuxaua dos brancos, que é a pessoa que
conversa com os brancos quando é preciso resolver alguma coisa com a comu-
nidade. Eles acham que vocês inventaram isso porque aprenderam com eles.
― Isso não é verdade. Nós sempre fomos assim, organizados. Nas
wätunnä tinham os responsáveis pelos trabalhos. Os chefes, os adhajö.
Nós aprendemos assim. Nós já contamos as histórias para você. Não foram
os brancos que nos ensinaram. Então agora você vai escrever sobre isso.
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Este artigo tem como objetivo, portanto, pensar aspectos da estrutu-
ra política ye’kuana tendo como foco principal o conceito de ädhajö e alguns
dos usos deste termo, sem perder de vista a epistemologia ye’kuana que se
revela no corpo das narrativas wätunnä. Há um mundo infinitamente mais
complexo por trás de determinados aspectos da organização ye’kuana do
que mera incorporação de lições aprendidas com os brancos, como pensam
alguns dos atores que compõe o cenário interétnico em Auaris.
Chefes, xamãs e mestres
Idealmente ocupadas por dois irmãos, as posições de chefia não são
hereditárias. Um chefe de aldeia, ao adoecer e pressentir sua morte iminen-
te, pode indicar seu sucessor, e a indicação será discutida pelo conselho de
homens maduros da aldeia, que deve referendá-la. Em 2006 já circulavam
boatos em Fuduwaaduinha sobre quem seriam os futuros chefes da aldeia,
uma vez que N., já de idade avançada, estava bastante doente. Parecia ha-
ver certo consenso em torno do nome de D., que era o candidato indicado
por N. Com a morte de N. em 2008, D. assumiu efetivamente a chefia e
conduziu o processo de mudança da aldeia para a outra margem do rio.
Também neste período consolidou-se a mudança das duas famílias para a
nova aldeia do Tucuxim5. Perguntei aos Ye’kuana por que P., irmão mais
novo de N. que exercia a chefia com ele, não havia permanecido no cargo
(o novo vice-chefe é irmão classificatório de D.). Foi-me dito que P. não
quis permanecer no cargo de vice-chefe alegando que já estava velho, do-
ente e cansado, e que os jovens não escutavam mais suas palavras. Um dos
homens, no entanto, esclareceu: “ele era chefe junto com o irmão. Eram
os dois juntos, o irmão morreu, ele não quis mais. Não era mais a mesma
coisa, eles eram juntos. Um saiu, o outro ficou só.” Mais do que um simples
“cargo”, a posição de chefia é exercida dualmente pelo chefe e seu vice em
uma relação de natureza muito especial. Ambos encarnam a dupla face de
5 Arvelo-Jiménez (1974) apontou que após a morte do chefe da aldeia é comum a concretização de fissões de grupo, consolidando tensões latentes, nas aldeias ye’kuana.
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uma só coisa, e efetivamente os ye’kuana parecem não ver sentido na con-
tinuidade da liderança de P. sem N6.
Para ter legitimidade e prestígio um chefe deve ser generoso, pru-
dente, pacífico e persuasivo em situações de conflito interno. Segundo Ar-
velo-Jiménez (1974), o chefe ye’kuana é um líder sem poder. As decisões
são efetivamente tomadas pelo conselho de homens maduros da aldeia,
composto por todos os homens alçados a tal status, que está mais relacio-
nado à posição que ocupam no seio de suas unidades domésticas (casados,
chefes de família) do que à idade. Cabe ao chefe conduzir os processos de
tomada de decisões, escolher seus “responsáveis”, os homens que orga-
nizam trabalhos comunais (derrubada de roças, construção de casas, ati-
vidades rituais) e zelar pela harmonia entre seus pares. Há outra função
desempenhada pelo chefe, no entanto, que nos permite entender em pro-
fundidade a natureza da chefia ye’kuana: a mediação que ele exerce entre
o mundo da aldeia e o mundo exterior, o mundo “dos outros”. Esta função
pode ser melhor compreendida quando examinamos mais detidamente os
usos do termo que designa a chefia, ädhajo ou ayäjo7.
A exemplo de tantos outros povos indígenas amazônicos, os Ye’kuana
relatam que no passado remoto os animais viviam como vivem os huma-
nos, organizados em sociedade, em suas aldeias, celebrando seus rituais. As
histórias wätunnä, narrativas ye’kuana transmitidas oralmente através das
gerações, ilustram os conflitos entre humanos e animais quando comparti-
lhavam uma mesma essência de humanidade. Embora os animais vivessem
em sociedade como os humanos, apenas os xamãs eram capazes de enxer-
gar suas formas humanas sob a “roupagem” animal. Os animais, entretan-
to, tinham a capacidade de se despir deliberadamente dessa roupagem e as-
sumir forma humana; também somente xamãs podiam perceber o disfarce.
Lévi-Strauss, nas Mitológicas, ao analisar a simbologia animal nos
mitos sul-americanos, demonstrou como tais histórias, através da mani-
6 Esta mesma dualidade aparece de forma seminal nas wätunnä, não só encarnada nos gêmeos Iudeeke e Sichamöna, personagens centrais de várias narrativas, mas nas figuras do demiurgo Wanaadi e seu irmão, o anti-herói Odo’sha, nascido da placenta apodrecida de Wanaadi.
7 Outro termo usado para designar o chefe é kajichäna, um empréstimo do espanhol (referindo-se a capitán).
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pulação de metáforas animais, eram resultado de reflexões sobre temas
como a origem da culinária, a mortalidade humana, ou, em última ins-
tância, sobre as elaborações indígenas em torno da temática, tão cara à
antropologia, da relação entre as categorias natureza e cultura. Entretanto,
é Eduardo Viveiros de Castro (2006) quem analisa mais especificamente a
questão da “humanidade” compartilhada por humanos e animais em um
tempo mítico e os significados desse compartilhamento no contexto das
sociedades ameríndias (notadamente as sociedades amazônicas).
O que diferencia animais e humanos nessa concepção de uma con-
dição de humanidade compartilhada, ou, como afirma Viveiros de Castro,
de ser, são as “afecções corporais” de cada espécie, que lhes conferem de-
terminadas habilidades específicas. Para os indígenas sul-americanos que
partilham tais idéias, humanos e animais teriam em comum a própria con-
dição de humanidade - o que, em última instância, é a posse de cultura - ao
contrário do pensamento ocidental, de acordo com o qual o que nos une
aos animais é o fato de sermos também animais, ou seja, compartilharmos
com eles nossa condição de animalidade. Para o pensamento ameríndio, a
cultura seria a constante, e não a natureza.
Viveiros de Castro (2006) cunha o conceito de perspectivismo amerín-
dio a partir das noções indígenas de que cada espécie elabora sua percepção
em relação ao mundo e às outras espécies através de um ponto de vista pró-
prio, isto é, o modo como os humanos veem animais e outros seres que habi-
tam o universo é diferente do modo como estes seres veem os humanos e a si
mesmos. Embora esse perspectivismo esteja presente nas histórias wätunnä,
ele se manifesta de maneira própria, com uma marca nitidamente ye’kuana.
A simbologia animal é fonte, nas wätunnä, da reflexão sobre o
comportamento verdadeiramente humano, em narrativas que marcam a
diferenciação desse comportamento humano vis-à-vis o não-humano. No
tempo passado, a contigüidade com a natureza era a marca dos humanos:
não dominavam o fogo nem as plantas cultivadas, não conheciam rituais
nem adornos corporais. À medida que passam a ter tais coisas, que usur-
pam de outras espécies, se diferenciam dos animais.
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Um dos aspectos fundamentais na definição do comportamento
propriamente humano, na visão dos ye’kuana é a pacificidade, o compor-
tamento não-agressivo. A agressividade é típica dos animais e, no passado,
o comportamento agressivo justificava-se apenas frente à necessidade de
conquistar dos animais a posse de tais bens que marcam a condição de
humanidade. Os Ye’kuana afirmam que ainda hoje os animais apresentam
um comportamento hostil em relação aos humanos como resquício das
disputas do passado. Em duas ocasiões distintas relataram-me exemplos
da manifestação dessa hostilidade. Há muitos anos, A., importante líder
ye’kuana já falecido, quando ainda jovem saiu com outros Ye’kuana para
caçar um bando de queixadas. A. acabou mordido por uma delas e ficou
bastante ferido. Os outros caçadores carregaram-no até a aldeia, onde o
ferimento foi tratado e AP., seu pai e chefe da aldeia na época, fez um ritual
para curar o filho e aplacar a fúria das queixadas, espantando-as para longe
da aldeia. AP. reuniu os jovens para explicar-lhes o porquê da hostilidade
dos animais com relação aos humanos, contando-lhes como os humanos
venceram os animais na disputa pelo domínio da Terra. Disseram-me que
“os humanos, na verdade, estão abaixo dos animais, que vieram primei-
ro”. Por causa disso, AP. disse-lhes que eles deveriam guardar respeito
aos animais e compreender a razão de sua fúria. Na disputa pelo direito
de exercer a condição de humanidade neste mundo, os animais saíram
perdedores. Vencida a batalha, restou a eles experimentar tal condição em
outra oito dimensões do cosmos, cuja réplica visível (a dimensão em que
nos encontramos) é hoje dominada pelos humanos. Os animais que hoje
habitam a terra são meras réplicas corporais dos seus ancestrais, assim
como o mundo em que vivemos é uma mera réplica do cosmos invisível.
Os animais também têm seu próprio mundo invisível, onde estão seus an-
tepassados que um dia tiveram a capacidade de assumir forma humana no
plano visível. Foram eles que partiram deste mundo e deixaram aqui suas
formas corporais. Nos locais de origem de cada espécie animal vivem seus
chefes (ädhajö), mantendo relações de natureza especial com suas formas
corporais terrestres. O ädhajö e os demais “espíritos-animais” vivem em
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suas aldeias invisíveis, como fazem os humanos. A cachoeira do Tucuxim,
local próximo à nova aldeia ye’kuana fundada em 2008, é a morada dos
peixes, exemplo de um destes locais. Há que se respeitar locais como este,
onde vive um ädhajö8.
A conduta que deve marcar a relação dos ye’kuana com os ädhajö
dos animais torna-se explícita nas atividades de caça. Os caçadores devem
estabelecer com o ädhajo da espécie caçada uma negociação, sob pena de
provocar sua fúria. Quando um caçador mata um animal, ele deve fincar
uma vara no local onde o animal foi abatido com uma parte do corpo da
presa espetada – uma orelha, o rabo, etc., como forma de compensação. O
ädhajö é capaz de produzir um novo animal a partir da compensação dei-
xada pelo caçador. “Quando o espírito do chefe vê a vara fincada, pensa que
o animal morreu por causa dela e não sai atrás do caçador para se vingar”,
dizem os ye’kuana. Há ocasiões em que o caçador, ainda na mata, ao cortar
o animal e retirar-lhe as vísceras, ouve um grito estranho, não-humano, os
cachorros latem alvoroçados... é o chefe do animal chegando. O caçador
deve partir rapidamente.
O ädhajö dos animais encarna a essência de sua espécie, sua tota-
lidade. É ele o mediador entre aqueles que representa, seus duplos terres-
tres, e os demais seres. É o ädhajö o responsável por empreender a vingan-
ça contra aqueles que causam dano aos seus. Habitando o lugar de origem
da espécie, onde se situa sua aldeia, o ädhajo incorpora em si as forças que
compõem a dimensão invisível que corresponde àquele ponto do cosmos
visível, na concepção dual ye’kuana9.
A chefia ye’kuana é de natureza similar. Longe de estar associada à
noção de “poder” strictu senso, ela se aproxima da ideia de representação
8 Para uma análise da concepção de lugar ye’kuana e as prescrições em torno do trânsito dos humanos pelo território, ver Andrade, 2010.
9 A natureza dual da concepção ye’kuana do cosmos já foi apontada por dois de seus etnógrafos (Guss, 1989; Arvelo-Jiménez, 1974). De acordo com esta concepção, todos os seres têm um correspondente invisível, cujas forças podem se voltar contra determinados indivíduos, causando-lhes danos e até mesmo morte. É preciso aprender a manipular tais forças invisíveis, seja através do canto, do uso de plantas mágicas, da pintura corporal ou pela simples observância de algumas regras de etiqueta que marcam a realização de atividades da vida cotidiana. Essa natureza dual se reproduz em diversos aspectos do pensamento ye’kuana, constituindo-se uma marca de sua própria epistemologia (Andrade, 2010).
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e mediação entre a aldeia e o mundo externo. O ädhajo ye’kuana encarna
a totalidade da aldeia. O demiurgo Wanaadi, principal herói das histórias
wätunnä, construiu na Terra uma réplica do mundo celeste no formato da
casa tradicional, a ättä, que reproduz a estrutura cosmológica do mundo
invisível. A ättä, construção circular cujo teto cônico reproduz os oito pla-
nos celestes, é formada por círculos concêntricos e cortada em seu centro
por uma grande viga, réplica do eixo central da Terra. No centro da ättä
está a annaka, onde são realizadas as refeições comunais e os rituais, e ao
seu redor estão diversos compartimentos onde vivem as famílias. A annaka
é uma analogia a dama, o mar, que se situa no centro da Terra. Wannato,
cunhado de Wanaadi, foi o primeiro ye’kuana a construir uma casa redonda
em annachänha, no coração do território tradicional ye’kuana, em região
situada na Venezuela, onde hoje há uma grande formação rochosa. “Aquela
pedra grande, redonda, que está lá em annachänha, é a primeira ättä que
Wannato construiu, e nós aprendemos a fazer nossas casas da mesma ma-
neira”, dizem os Ye’kuana.
Os Ye’kuana de Auaris não vivem mais na ättä, a grande casa co-
munal redonda. A aldeia hoje é formada por um conjunto de residências
onde vivem as famílias extensas, e seus moradores atribuem a mudança do
padrão residencial ao aumento demográfico ocorrido nas últimas décadas.
Não obstante, a imagem exercida pela figura da grande casa comunal como
réplica do cosmos invisível não perdeu força e continua presente no discur-
so (e no imaginário) ye’kuana, a despeito de sua ausência física. Em alguma
medida, a casa onde hoje são realizadas reuniões e eventos rituais e festivos
na comunidade está associada à ättä. O ädhajö da aldeia encarna em si,
pois, a totalidade do macrocosmos cuja epítome é a ättä. Existe uma simi-
litude entre a concepção ye’kuana do cosmos e a maneira através da qual
as casas são construídas. De maneira simbólica, a casa redonda transmite
uma mensagem do universo em código, tal como os ye’kuana o entendem
e visualizam.
É esta qualidade da casa de gerar uma imagem que projeta externa-
mente tal unidade, incorporada no ädhajö, que desejo salientar aqui. Uma
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vez que a ättä representa a dimensão invisível do cosmos, codificando-a, o
ädhajö encarna em si esta totalidade composta pelo corpo social formado
pelos co-residentes, unificando-o a despeito das dualidades internas. Casa
e chefe estão em relação de equivalência, aquela codificando o cosmos, este
codificando os laços que vinculam os co-residentes, expressos também
através da linguagem do parentesco.
Cabe ao chefe de aldeia representar a totalidade constituída pelos
co-residentes frente ao mundo exterior. É o chefe quem recebe forastei-
ros, sejam visitantes não-ye’kuana ou ye’kuana vindos de outras aldeias. No
passado, o chefe da aldeia performava diálogos cerimoniais com visitantes
vindos de outras aldeias ye’kuanas, que se constituíam em verdadeiros due-
los por prestígio. Ainda hoje, é o chefe que recebe os visitantes, determina
onde devem ficar hospedados, exercendo ainda o papel de mediador nas
transações de bens e trocas comerciais. Pude ouvir as palavras do chefe
de Fuduwaaduinha logo após a chegada de visitantes ye’kuana vindos de
uma aldeia situada em território venezuelano, na costumeira reunião dos
homens à noite, na casa comunal, ressaltando que todos deveriam receber
os visitantes e trocar bens com estes, “mesmo que não tenham como pagar
o que eles querem, vocês devem aceitar as trocas10, depois, outro dia, você
paga o que ele deseja. Não podemos recusar, eles são nossos fömmä (nossa
gente, nossos parentes)11”.
Arvelo-Jiménez (1974) afirma que a estabilidade de uma aldeia
ye’kuana está vinculada ao estado emocional de seus habitantes e o que
se verifica, em largos períodos de tempo, é uma constante variância, um
constante movimento de integração e desintegração dos grupos familiares
que compõem a aldeia. A autora aponta que há quatro maneiras através das
quais é possível criar laços de pertença a uma aldeia, a saber: mediante ma-
trimônio; a convite do chefe da aldeia ou um de seus membros; por adoção,
no caso de crianças órfãs ou filhos de pais divorciados; através do mecanis-
10 Para uma análise das modalidades de troca entre os ye’kuana, ver Andrade, 2009a.
11 Em contrapartida, os ye’kuana utilizam o termo fömmä nee’ne (parentes ‘de verdade’) para se referirem ao kindred, a todos os parentes com os quais ego pode estabelecer laços genealogicamente.
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mo de paternidade extendida ou fictícia. A autora ressalta, no entanto, que
a única maneira que assegura o gozo completo dos direitos políticos e so-
ciais é a pertença a uma aldeia pelo nascimento. Ser membro de uma aldeia
significa ter o direito de sugerir, aprovar ou objetar decisões relacionadas às
atividades da aldeia; ter direitos preferenciais, por exemplo, de matrimô-
nio; solicitar colaboração e ajuda em atividades como a construção de uma
casa, abertura de novas roças, construção de caminho para transportar da
mata até o rio uma canoa recém-construída (no caso dos homens); na lim-
peza de uma roça (no caso das mulheres); no plantio de novas roças (para
ambos os sexos). Significa ainda ter prioridade na solicitação de serviços e
proteção dos especialistas em ritos da aldeia (cantores e pajés). Em última
instância, de acordo com Arvelo-Jiménez, ser membro de uma aldeia pro-
porciona ao indivíduo uma identidade política frente ao resto da “nação
ye’kuana”. A aldeia é apontada pela autora como a unidade política mais
significativa no mundo ye’kuana, e é justamente a autonomia da aldeia que
está representada na figura do ädhajö.
Em contraponto ao chefe de aldeia, os xamãs são figuras centrais nas
relações entre a coletividade constituída pela aldeia e outras coletividades
constituídas pelos “outros” que habitam dimensões distintas do cosmos.
Wanaadi foi o primeiro grande xamã, contam os ye’kuana. Apenas
com o poder de seu pensamento, criou e povoou o mundo. Os primeiros xa-
mãs ye’kuana, assim como Wanaadi, dotados de grande poder, eram capazes
de viajar pelo tempo e espaço, tendo revelado o destino dos ye’kuana, através
das histórias wätunnä. Estes grandes xamãs desapareceram, deixando aos
ye’kuana o uso de plantas alucinógenas, tabaco, widichö (pequenos cristais
mágicos utilizados no chocalho dos xamãs), cantos e espíritos auxiliares.
Em Fuduwaaduinha, há muito não existem xamãs. Os ye’kuana afir-
mam que os jovens já não mais se interessam pelo duro aprendizado xa-
mânico, marcado por uma rígida dieta que envolve abstinência sexual em
longos períodos. Entretanto, assim como a mensagem codificada pela ättä,
a grande casa comunal, prescinde de sua existência física para continuar fa-
zendo parte do imaginário ye’kuana, o xamanismo em Auaris marca profun-
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damente a vida cotidiana, a despeito da ausência dos xamãs. Artifícios como
consultas xamânicas via rádio com alguns dos xamãs ye’kuana que vivem
em aldeias distantes, na Venezuela, e até mesmo a contratação dos serviços
dos vizinhos sanumá12, fazem parte do dia-a-dia de Auaris. Importantes de-
cisões, como a escolha do local onde seria fundada a nova aldeia, ou o melhor
período para iniciar o trabalho perigoso de derrubada da mata para abertura
de novas roças, nunca são tomadas sem consultar um destes especialistas13.
Apesar da inexistência, em Auaris, de xamãs reconhecidos, há vários
homens que detêm conhecimento de cantos e manipulação de plantas má-
gicas para curar doenças e atuar como cantores em eventos rituais14; ao me-
nos dois deles iniciaram a formação xamânica, que não foi concluída. Estes
homens, entretanto, não são capazes de enfrentar “desafios maiores”, que
exigem a atuação dos espíritos auxiliares dos xamãs, tais como defender a
comunidade do feitiço de outros xamãs inimigos ou resgatar um dos seis
äkattö (componentes vitais dos humanos) que tenha deixado o corpo de
alguém gravemente doente ou enfeitiçado. Os dados que obtive a respeito
das crenças xamânicas e da atuação dos xamãs ye’kuana vieram dos relatos
tanto daqueles que chegaram a iniciar a aprendizagem xamânica quanto de
tantos outros ye’kuana que conviveram com xamãs (sobretudo os morado-
res mais velhos de Auaris)15.
12 Esta feita com muitas reservas, devido ao medo que os ye’kuana têm do feitiço que os “instáveis sanumá” podem jogar sobre a comunidade. Tive a oportunidade, entretanto, de acompanhar, durante meu período de campo, a contratação dos serviços de xamãs sanumá em duas ocasiões.
13 Importante ressaltar que os xamãs sanumá são chamados apenas para realizar sessões de cura. Todas as outras consultas, que determinarão a tomada de decisões importantes, são realizadas apenas junto a xamãs ye’kuana de outras aldeias.
14 Acompanhei algumas destas performances, em situações tais como a reclusão da comunidade durante o período de resguardo iniciado após uma mulher ter sido picada por uma cobra, e que envolveu a preparação de banhos com plantas mágicas e cânticos não só para a vítima, mas para todos os moradores da aldeia; a inauguração de uma casa nova; a purificação, com cantos e sopros, de todos os alimentos a serem consumidos por meninas em período de reclusão após a primeira menarca e a cura de doenças diversas com o uso de plantas.
15 Também contei com valiosas informações de um dos homens que é apontado como o maior sábio ye’kuana ainda vivo, morador da aldeia de Waikás, no rio Urariocoera, durante sua estadia em Auaris como convidado para atuar como cantor em uma série de rituais, ao longo do meu período de campo. Este homem chega a ser apontado por alguns como sendo um xamã, mas não há consenso; outros limitam-se a dizer que ele é um grande cantor e sábio, mas não um föwai, xamã.
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O xamanismo ye’kuana é marcado por uma ética ascética e pelos
cuidados corporais. Barandiarán (1962b) analisou o xamanismo ye’kuana
e mostrou como, para que um jovem ye’kuana se tornasse xamã, o mérito
pessoal era fator decisivo. Segundo o autor, há indícios de que, no passado,
o xamanismo tenha sido hereditário, mas, já nos anos 60, quando fez sua
pesquisa entre os Ye’kuana da Venezuela, não era mais assim.
Os xamãs deviam adotar uma postura de contenção bastante marca-
da. No longo processo de aprendizagem com um xamã experiente, o neófito
tinha que observar abstinência sexual e sua alimentação seguia uma dieta
que excluía diversos tipos de carne, sal e pimenta. Os relatos dos homens
de Auaris sobre os mais poderosos xamãs traçam o perfil de homens que
assumiam uma postura ascética cuidadosamente cultivada, dedicando-se a
desenvolver seus poderes através da contenção alimentar, sexual e mesmo
social, como parte dos cuidados com o corpo.
Tal ética corporal é parte não só da ascese xamânica, mas do proces-
so de tornar-se uma pessoa de verdade, um Ye’kuana no pleno sentido do
termo. O rígido tratamento do corpo é necessário para atingir certo grau
de humanidade, sendo o corpo fabricado ao longo de todo o processo de
socialização e não apenas no ato de conceber uma criança. Ao analisar o
padrão ideal de comportamento ye’kuana, o valor do esforço e do traba-
lho sobressai como pilar fundante de sua ética. O valor do trabalho está na
construção da cultura material, na produção seja dos artefatos materiais,
seja do conhecimento – tanto o xamã quanto o historiador (especialista
em wätunnä) levam uma vida de dedicação e estudo, marcada por regras e
restrições. O valor do trabalho está na construção dos corpos, na formação
do ser ye’kuana – através dos rituais e da produção da boa alimentação e
aquisição de conhecimento tradicional16.
Utilizando o chocalho e três tipos de plantas alucinógenas, bem como
entoando os cantos, os xamãs ye’kuana entram em transe ritual, contando
com seus espíritos-onça auxiliares para travar batalhas com os espíritos-
16 Um homem ye’kuana contou-me que quando ainda era muito jovem, seu futuro sogro, ao discutir a potencial aliança, teria apalpado seus braços e dito em voz alta, diante de toda a parentela presente: “não, seu corpo ainda não está pronto, tem que trabalhar mais, ficar com o corpo mais forte para poder casar”.
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-auxiliares de um xamã inimigo, com ädhajös de outras espécies animais
responsáveis pela doença de um ye’kuana ou para viajar no tempo-espaço,
vislumbrando possíveis ameaças e perigos que rondam a comunidade. Ao
narrar um episódio ocorrido durante sua infância, um dos homens de Fu-
duwaaduinha nos dá pistas para melhor compreender a atuação do xamã.
Quando este homem, ainda criança, ficou gravemente doente, seu pai so-
licitou os serviços de um föwai. Ao fazer o transe xamânico, o especialista
descobriu que um dos äkatto do menino havia deixado seu corpo e estava
vivendo na aldeia das queixadas, como se um deles fosse. O xamã trouxe o
äkatto de volta, após convencer o ädhajö das queixadas a deixá-lo partir
e retornar ao corpo do seu dono. Atuando como mediador entre aqueles
que representa e outros ädhajö, os xamãs negociam os termos das relações
entre “nós” e os “outros” em esfera diversa daquela na qual atua o chefe
da aldeia. Verdadeiro conciliador das relações que se estabelecem entre as
dimensões visível e invisível, o xamã também exerce relações diplomáticas,
protegendo e defendendo o corpo social do qual fazem parte aqueles com
os quais compartilha a mesma condição de existência.
No tempo presente, são os xamãs os únicos capazes de estabelecer
um diálogo com os ädhajö dos animais. Mediadores por excelência, os xa-
mãs exercem no plano invisível o papel de diplomacia do chefe de aldeia,
embora não seja ele próprio um ädhajö. As histórias wätunnä, ao relatarem
eventos ocorridos em um tempo em que humanos e animais compartilha-
vam a condição de humanidade (i.e., exerciam sua socialidade no mesmo
plano, o terreno), apontam para a comunicação (ainda que perigosa) entre
as espécies, quando a mediação xamânica era desnecessária. Na medida em
que os animais retiraram-se do plano visível, da dimensão terrestre, após
perderem a batalha para os humanos, tornando-se senhores desta dimen-
são, tendo a primazia por exercer nela sua condição de humanidade, a co-
municação foi cortada. Entram em cena os xamãs, que detêm a capacidade
de viajar por entre as várias dimensões e estabelecer negociações com os
ädhajö dos animais. Assim como o chefe de aldeia, o xamã representa, nes-
te ofício, a totalidade do corpo social do qual faz parte. Configura-se assim
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uma relação de assimetria, em que os xamãs ye’kuana, ainda que não sejam
considerados ädhajö, comunicam-se com os ädhajö dos animais, que não
possuem xamãs.
Fausto (2008), analisando as relações de maestria na Amazônia
indígena, destacou que a ausência da propriedade privada sobre recursos
materiais importantes, neste contexto, nos impediu de entender a real di-
mensão de tais relações. Aqui, a posse de objetos, segundo o autor, é apenas
um caso possível. Em um “mundo de donos e inimigos, mas não necessa-
riamente de dominação e domínio privado” (:352), configuram-se relações
de assimetria, nas quais os donos/mestres controlam e protegem os seus,
tornando-se responsáveis por seu bem-estar, reprodução e mobilidade. Os
“donos” são mais do que meros representantes de uma coletividade: “o che-
fe-mestre é a forma pela qual um coletivo se constitui enquanto imagem;
é a forma de apresentação de uma singularidade para outros” (334, grifo
do autor).
Os ädhajö, ao representarem o corpo coletivo constituído por aque-
les com os quais compartilha forma corporal e sociabilidade particulares,
projetando tal imagem de singularidade ao exterior, à maneira como faz
a ättä, a grande casa comunal ye’kuana, transforma-se em mensageiro e
diplomata. Responsável pelo bem-estar dos seus, negocia os termos das
relações entre aqueles que representa e os outros coletivos que povoam
o mundo. O ädhajö de cada aldeia ye’kuana desempenha tais funções na
dimensão visível do cosmos, no entanto é o xamã o único capaz de estabe-
lecer tal comunicação com os ädhajö dos animais. Dessa forma, parte das
funções exercidas pelo xamã e pelo chefe de aldeia são muito semelhantes,
porém em distintas dimensões.
***
O atomismo e fechamento ao exterior, resultantes do “horror” à di-
ferença, apareceram durante muito tempo na literatura etnográfica como
marcas das sociedades guianenses (Rivière, 2001 [1984]). Tais caracterís-
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ticas levariam, no plano da organização social e política, a uma pronuncia-
da autonomia de aldeia, enfatizada pelo ideal de endogamia. No entanto,
pesquisas mais recentes com os povos guianenses tem apontado para a al-
ternância, ao longo do devir histórico, entre processos de fissão e fusão de
unidades sociais nas guianas. As intensas trocas de bens e construção de
alianças políticas, costuradas através das extensas redes de comércio entre
os povos indígenas situados na região, aliadas aos processos de fusão e fis-
são das unidades sociais, colocam em xeque o “fechamento” das sociedades
guianenses ao exterior (Gallois et all, 2005; Arvelo-Jiménez et all, 1989).
No caso ye’kuana, o ideal de autonomia, enfatizado pela aldeia en-
quanto réplica do cosmos, projetando uma imagem exterior de totalidade
através da casa e chefe, é matizada se consideramos os papéis exercidos por
outros dois ädhajö: cantores (ädemi eyajä/ädhajä e a’chudi eiyajä/ädha-
jö, “donos” das canções a’chudi e ädemi) e historiadores (wätunnä eyiajä
ädhajä, “donos” das histórias).
Analisar o papel exercido por cantores e historiadores ye’kuana de-
manda a produção de outro artigo. Optei por centrar minha análise, neste
texto, nas figuras do chefe de aldeia e do xamã, por razões contingenciais.
Minha hipótese é a de que se o chefe político da aldeia (dos humanos ou
dos animais) representa a totalidade do corpo social, enfatizando o ideal
de autonomia das unidades sociais máximas, cantores e historiadores são
o elo de ligação entre tais unidades, gerando o sentimento de pertença à
rede que une todas as aldeias ye’kuana, sentimento este que repousa no
compartilhamento de um só corpo de histórias e canções e um mesmo idio-
ma. Retomando a clássica análise de Pierre Clastres (2003 [1974]) sobre
a natureza da chefia ameríndia, cantores e historiadores são aqui o con-
trapeso do papel do chefe de aldeia. Temos, de um lado desta equação, a
representação da autonomia das unidades que compõem a rede e de outro,
a força da própria rede. As unidades, que tendem a colocar em questão a
totalidade do modelo, tem sua autonomia tolhida pela força que emana dos
laços que tecem a rede que as vincula umas às outras, na qual cantores e
historiadores são linha e agulha. Temos aqui forças centrípetas e centrífu-
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gas atuando; um movimento pendular, similar ao sugerido por Perrone-
-Moisés & Sztutman (2010) a partir da etnografia de povos tupi, que oscila
entre movimentos de dispersão e concentração perceptíveis numa análise
que leve em consideração a diacronia.
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OS INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DAS
NAÇÕES SUL-AMERICANAS
Alcida Rita Ramos1
Introdução2
O estudo do indigenismo comparado em países sul-americanos, do
qual me ocupo atualmente, pode trazer muitas surpresas sobre o papel que os
povos indígenas têm desempenhado na formação das novas nações do conti-
nente. Meu foco atual são três países cujas populações indígenas constituem
nítidas minorias demográficas e políticas: Brasil, Argentina e Colômbia.
Por indigenismo refiro-me ao vasto pano de fundo sobre o qual são
esculpidas as inúmeras imagens do Índio, criando um caleidoscópio sócio-
-político que contribui substancialmente para a elaboração de uma ideolo-
gia nacional do tipo descrito por Edward Said em seu influente livro Orien-
talism (1979). Neste sentido, o indigenismo representa um “Orientalismo
nacional”, seja ele elaborado no Brasil, na Argentina, na Colômbia ou em
qualquer outro país das Américas onde houver algum tipo de discurso in-
digenista; e, mesmo que não haja, tal ausência já é altamente significativa
para entendermos um ethos nacional.
Como concebo o indigenismo, ele não se restringe a políticas indi-
genistas de Estado, embora não as exclua, mas abrange toda e qualquer
manifestação do imaginário cultural a respeito do Índio, inclusive, pelos
próprios indígenas. Trata-se, em suma, “de um campo de forças gerado na
arena interétnica capaz de criar uma realidade prática e conceitual” (Ra-
mos 1998a: 6). Com maior ou menor intensidade, esse campo de forças é
1 Universidade de Brasília Pesquisadora 1A do CNPq
2 As seções sobre Brasil e Argentina estão fortemente calcadas em Ramos 2009. Devido à pouca fami-liaridade que em geral se tem no Brasil sobre nossos vizinhos de continente, as seções sobre a Argentina e a Colômbia são propositalmente mais extensas. Parte deste trabalho foi exposta preliminarmente na palestra “O trabalho simbólico e político das sociedades indígenas” apresentada durante a VII Jornada de Ciências Sociais da UFMG, em novembro de 2010.
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encontrado em grande parte dos países americanos, podendo emergir com
feições românticas, burocráticas (Cardoso de Oliveira 1972: 67-76), de re-
púdio e tantas outras, mas nunca com indiferença. Como todas as nações
americanas foram construídas sobre os escombros das sociedades indíge-
nas, seria de surpreender que tal indiferença, quando existe, vá além da
capa mais superficial das consciências nacionais.
Indigenismo no Brasil
Se tivéssemos que escolher uma única palavra para descrever a rela-
ção do Brasil com seus índios, essa palavra seria ambivalência. Desde sua
descoberta em 1500, a tendência de ver os índios como nobres filhos do
Paraíso ou como ignóbeis selvagens que devem ser civilizados só aumentou
ao longo dos séculos, desembocando numa verdadeira esquizofrenia na po-
lítica indigenista oficial. Por um lado, os legisladores, ao menos em décadas
passadas, mostraram uma sensibilidade razoável para proteger as diferen-
ças culturais e étnicas representadas pelos povos indígenas. Por outro, os
executores das políticas indigenistas, sejam funcionários da Funai, gover-
nadores ou ministros, têm se distinguido muitas vezes por atentarem con-
tra a legislação pró-indígena, incluindo aí a própria Constituição Federal.
Persiste o credo da unidade nacional que toma a nação como indi-
víduo coletivo – ao gosto do Estado tutelar – e não como a coletividade de
indivíduos de inclinação liberal (Reis 1988: 193, 194). Por diversas vezes,
autoridades brasileiras pronunciaram-se contra a presença de indígenas
em território nacional, pois eles representariam o atraso num país que al-
meja ser aceito no seleto clube dos países de “Primeiro Mundo” (ver, por
exemplo, os dizeres do cientista político Hélio Jaguaribe e do ex-ministro
do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves em Ramos 1998a: 46). Ao se
declararem avessos à diversidade cultural interna do país, esses senhores
desnudam o Brasil pela janela indiscreta da política indigenista. A questão
indígena, como um potente holofote, expõe as imperfeições da intimidade
do ethos brasileiro sem a generosidade de retoques. Se é que há alguma su-
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tileza no modo tutelar como o Estado trata os cidadãos em geral, essa finura
desaparece quando os sujeitos são indígenas.
No entanto, o Brasil seria inconcebível sem os seus índios, não como
coletividades concretas, mas como objetos do imaginário e da manipulação
nacionais. Como uma memória involuntária proustiana, a questão indíge-
na tem a potência de extrair da imagem autodeclarada do país aquilo em
que não se pensa ou não se quer admitir. Para usar uma figura freudiana, é
como se os índios representassem o id, o mais profundo subconsciente da
nação, um componente por vezes embaraçoso, mas necessário à sua pró-
pria constituição. A fábula das três raças nada mais é do que uma tentativa
de acomodar essa ambivalência entre uma ideologia humanista e o anseio
pela modernidade. Nesse jogo ideológico, os índios foram convertidos em
moeda de troca do capital simbólico do país, desde emblemas da cobiça
estrangeira até doadores de genes que, juntamente com negros e portugue-
ses, produziram esse ser único que é o brasileiro.
A ambivalência contamina tudo, criando um meio fértil para a pro-
pagação de tantas imagens do “índio” quantos forem os agentes envolvi-
dos na construção do indigenismo. Imagens da nação e do índio brotam da
ficção de escritores, da caneta de legisladores, das piedades missioneiras,
dos projetos de desenvolvimento, das colunas jornalísticas, das análises
antropológicas e das próprias demandas indígenas. Nesta Babel ideológica
transparece uma mensagem irrefutável: é impossível ao Brasil extirpar o
indígena de sua autoconsciência.
Indigenismo na Argentina
Tendo sempre o Brasil como ponto de partida e de referência, venho
investigando as ideologias e ações indigenistas na Argentina e como elas
têm contribuído para formar aquela nação (Ramos 2009). Embora a pesqui-
sa ainda esteja em curso, alguns temas começam a surgir como importantes
indicadores das trajetórias políticas e científicas em ambos os países que
afetaram e continuam afetando direta ou indiretamente os povos indígenas.
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Um dos pontos em comum entre a Argentina e o Brasil é o papel da
ideologia positivista. No entanto, os pressupostos e consequências políticas
diferem consideravelmente. Na Argentina, o positivismo de feição inglesa
prevaleceu tanto na política (por exemplo, na figura do General Roca, o
“conquistador do deserto” [Briones e Delrio 2009]) como na ciência (repre-
sentada, entre outros, pelo médico e criminologista José Ingenieros), ape-
sar de não ter sido unânime (Lenton 2001; Soler 1979; Terán 1986, 2008).
Já no Brasil, foi o positivismo comteano de origem francesa que assumiu
a liderança na política e, em especial, no indigenismo (tendo a figura do
Marechal Rondon como ícone), enquanto o spencerismo (ou darwinismo
social) inspirou cientistas como Nina Rodrigues e Arthur Ramos em seus
estudos sobre raça.
Outro contraste está nos “mitos de origem” brasileiro e argentino.
Enquanto o primeiro inclui os índios como formadores da nacionalidade,
o segundo nega peremptoriamente aos povos originários a participação na
formação da argentinidade. Como aponta Claudia Briones (2005: 42, 44),
ao contrário dos peruanos que vieram dos incas e dos mexicanos que vie-
ram dos astecas, os argentinos preferem dizer que vieram dos barcos. Re-
jeitam assim qualquer ascendência indígena e afirmam que o desenho de
sua nação tem traço unicamente europeu: “un difundido aserto del sentido
común, ‘nos recuerda’ que los argentinos ‘venimos de los barcos’, buscando
así convencernos de que la ‘bondad’ sociológica de nuestro ‘pueblo’ más
bien trendría un basamento exclusivamente ultramarino” (Briones 2002:
68). Embora em seus anos formativos o Estado argentino almejasse atrair
imigrantes do norte europeu, teve que se contentar com multidões de ita-
lianos e espanhóis. Foram eles, mais do que ingleses e alemães, que apare-
ceram nos barcos (Quijada et al 2000).
No campo da produção cultural, especialmente na literatura, o Bra-
sil teve no movimento indianista um grito de louvor às qualidades atribu-
ídas aos índios, cantadas em autores como José de Alencar e Gonçalves
Dias, entre outros. Mas os índios do indianismo brasileiro são os gentios
primevos de um passado que nunca foi. Vivendo na mesma época desses
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indianistas brasileiros, os argentinos Domingo Sarmiento, José Hernández
e Lucio Mansilla, por exemplo, trataram a problemática indígena do pon-
to de vista da construção da nação, porém num registro diametralmente
oposto ao nosso. Seus indígenas eram seus contemporâneos, competiam
por recursos com a sociedade nacional e por estes fizeram-lhes guerra. Sem
saudosismos, o que incomodava os formadores da nação argentina eram os
índios vivos, não os mortos. Assim o expressa Viñas: “’los magnos aztecas e
incas’ residían en un espacio retórico que no alarmaba a nadie; Calfucurá,
Pincén y Mariano Rosas, en cambio, estaban del outro lado, allí, ‘allí mis-
mo’, en la frontera limítrofe de los grandes latifundios en avance” (Viñas
[1982]2003: 70). Já não se tratava de índios extintos que o tempo trans-
formou em heróis, mas de obstáculos a um progresso que parecia aguar-
dar com impaciência que a Argentina os eliminasse para, enfim, florescer.
Eram eles, os ”diferentes” e os “impossíveis de assimilar”, que “no nos de-
jan hacer buenos negocios − comenta Pellegrini desde Londres −, los de
aquí se impacientan” (Viñas [1982]2003: 59).
Como para marcar a (des)importância dos índios para o destino do
nascente país, autores como Domingo Sarmiento atacam , por assim dizer,
o problema pelas bordas. O alvo privilegiado do seu tiro civilizador não é
exatamente um índio, mas um caudilho interiorano de Cuyo que mostra
sua força política no comando de um exército regional. Juan Facundo Qui-
roga emerge das páginas sarmentianas como um desgrenhado bandido que
recusa a elegância do fraque (a epítome de civilidade européia) e come-
te atos chamados de atrocidades, que em mãos de aliados seriam apenas
práticas inevitáveis de guerra. “Facundo es un tipo de la barbarie primiti-
va; no conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras; la
melena de sus renegridos y ensortijados cabellos caía sobre su frente y sus
ojos en guedejas, como las serpientes de la cabeza de Medusa” (Sarmiento
[1845]2004: 123). Não sendo índio, mimetiza-se em selvagem: “trafica des-
de Córdoba con los indios; y últimamente se casa con la hija de un cacique,
vive santamente con ella, se mezcla en las guerras de las tribus salvajes,
se habitúa a comer carne cruda y beber la sangre en la degolladera de los
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caballos, hasta que en cuatro años se hace un salvaje hecho y derecho” (Sar-
miento [1845]2004: 206). Atos imperdoáveis para o civilizador Sarmiento
para quem, pior do que nascer índio é fazer-se índio tendo nascido branco.
Facundo, originalmente publicado em 1845 durante o exílio de Sarmiento
no Chile, levava o título de Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo
Quiroga y aspecto físico, costumbres y hábitos de la República Argentina.
Na terceira edição, de 1868, o título se transforma em Facundo o civiliza-
ción y barbarie en las pampas argentinas. Essas oscilações de título indi-
cam que Sarmiento utilizou uma figura pública, um desafeto político, como
pretexto para lançar seu programa civilizatório para a Argentina (Pigna
2004: 269; Halperín Donghi 1997). Dele estavam excluídos todos aqueles
elementos criados à imagem dos costumes europeus e, já então, estadu-
nidenses. Índios, gaúchos, exércitos informais (as chamadas montoneras
às quais pertencia Facundo [Pigna 2004: 266]), compunham essa barbá-
rie ideologicamente antípoda da civilização. Porta-voz desse porvir civili-
zado, Sarmiento inaugurou um projeto cujo desfecho não deixava lugar a
meio-termo: “o se someten o se los elimina: se convierten o se los suprime.
‘El resto son suspiros de beatas’, llega a decir Eduardo Gutiérrez” (Viñas
[1982]2003: 59). Com essa plataforma negativa, mais a proposta positiva
de difundir um sistema exemplar de educação nacional, Sarmiento elegeu-
-se presidente da Argentina de 1868 a 1874.
No entanto, a aspiração de eliminar a barbárie, neutralizando a atu-
ação indígena, só começou a ser deveras satisfeita alguns anos depois, já
quase no final do século XIX, com a chamada Campanha do Deserto de
1879, a guerra armada do Estado argentino que destroçou os modos de vida
indígena nos Pampas e na Patagônia (Briones e Delrio 2009), seguida pelos
massacres que devastaram os povos do Chaco (Gordillo 2004).
Um cronotopo, duas nações
Como foi que os índios no Brasil adquiriram tanta visibilidade, en-
quanto seus congêneres argentinos, alquebrados pela Campanha do Deser-
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to, eram, a partir de 1880, submersos num silêncio sepulcral até a segunda
metade do século XX? Responder a esta pergunta requer algum esforço
analítico. Digamos que, no caso argentino, houve uma operação de apaga-
mento, uma obliteração, na verdade, mais virtual do que real, deixando em
sua esteira um rastro-testemunha, algo invisível que era necessário evocar
para que a própria operação de aniquilamento se tornasse plenamente vi-
sível. Seria um bom exemplo do que Derrida propõe quando fala de pôr
algo “sob rasura”: não se fala mais de índios em território argentino, mas,
sem se falar deles, a conquista daquele território não repercute na nação. A
palavra índio não deve ser pronunciada, mas é preciso evocá-la para afir-
mar o seu jugo. É como se um X lhe fosse sobreposto, num jogo semântico
de mostra-e-esconde, pois, sem ela, não é possível afiançar plenamente a
existência da nação: o índio está lá, mas riscado como um erro de ortografia
ou, melhor dizendo, de história. Porém, se for apagado totalmente, a frase-
-mestra da nacionalidade − “os índios estão todos mortos” (Grosso 1999) −
carece de sentido. Ou seja, é preciso haver o índio ocupando um lugar tran-
sitório na história pátria para que seja conquistado e, no seu lugar, surgir
a verdadeira civilização. Sem índio não haveria conquista e sem conquista
não haveria o heroísmo do qual germina o orgulho pátrio. O índio é, em
suma, a marca da presença de um ausência (Spivak 1976: xvii).
No caso brasileiro, o processo de substituição do índio pelo civilizado
seguiu outra lógica. Conquistam-se os índios e se reduz a sua influência a
imagens descarnadas: índio bom é índio do passado. Tendo cumprido seu pa-
pel de ancestral da nacionalidade, ele torna-se supérfluo e relegado aos con-
fins do território nacional. Passa a ser tão insignificante aos olhos nacionais
que lhe é permitido até continuar a existir, desde que não compita pelos bens
da nação e nem se mostre indigno da imagem de nobre selvagem que fizeram
dele (Ramos 1994). As reservas territoriais indígenas concretizam essa lógica
e ainda podem servir como demonstração viva de magnanimidade pluriét-
nica por parte dos governantes, como é o caso do Parque Indígena do Xingu
que há muito tempo atrai celebridades em busca de exotismo tropical. Assim,
enquanto na Argentina o índio está sob rasura, no Brasil, ele está na berlinda.
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Ambos os países fizeram grandes esforços para atrair imigrantes
europeus para colonizar e desenvolver o que consideravam terras férteis
e “vazias”, ou seja, os estados do sul no Brasil e os Pampas e a Patagônia
na Argentina. Aliás, os vazios demográficos são outro cronotopo não só no
Brasil (Ramos 2008) e na Argentina (na figura do ‘deserto’), mas no Novo
Mundo inteiro, sendo monotonamente repetido pelas Américas afora. Em
ambos os países, centenas de milhares de imigrantes (principalmente ale-
mães, italianos e holandeses no Brasil; italianos e espanhóis na Argenti-
na) passaram a ocupar o que eram os territórios tradicionais dos índios
Kaingang e Guarani no Brasil, e, na Argentina, dos Mapuche, Ranqueles,
Tehuelche e tantos outros povos, alguns considerados extintos. Em ambos
os países, os índios se rebelaram contra as invasões de colonos e o esgota-
mento de recursos naturais essenciais à sua existência e se engajaram no
que ficou conhecido na Argentina como malones (que poderíamos tomar
a liberdade de traduzir como arrastões, à imagem das atuais turbulências
urbanas no Brasil), incursões devastadoras que destruíam lavouras, ca-
sas e animais, matavam homens e capturavam mulheres e crianças. Em
ambos os países, esses conflitos sulistas provocaram debates em Buenos
Aires, Rio de Janeiro e São Paulo sobre o que fazer com os índios que per-
sistiam em bloquear o caminho do progresso e desenvolvimento da nação.
No entanto, o resultado desses debates não poderia ter sido mais diferente
em cada país.
A semântica da conquista
Na Argentina os debates parlamentares, especialmente depois de
consumada a campanha militar nos Pampas, na Patagônia e no Chaco,
forjaram uma série de discursos e interpretações da alteridade que, explo-
rando admiravelmente a ambiguidade da linguagem com extraordinários
malabarismos semânticos, conseguiram muitas vezes a façanha de trans-
formar índios em alienígenas e imigrantes em iguais: “la ‘argentinidad’ a
veces es expandida para incluir grupos antes marginalizados, y otras veces
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se restringe para excluir a sectores que parecían próximos al ‘nosotros’, en
relación con coyunturas políticas determinadas” (Lenton 1999: 8, 2001.
Ver também Briones e Delrio 2002: 46).
A vasta literatura sobre a “conquista do deserto” mostra que a inves-
tida de 1879 chefiada pelo Coronel Julio Argentino Roca, Ministro da Guer-
ra do Presidente Avellaneda, foi a última de uma série de ataques armados
contra os índios, só no século XIX. Foi o golpe de misericórdia há muito
anunciado. Uma lei de 1867 (número 215) já prefigurava a tomada dos ter-
ritórios e o despejo dos indígenas para o sul, ou seja, “buscaba limpiar de
indios el terreno entre la frontera y el río Negro, ya fuere quebrando su
moral, reduciendo sus efectivos o privándolos de sus haciendas” (Walther
[1948]1980: 431). Outra lei, de 1878 (número 947) reiterou e regulamen-
tou a anterior. No ano seguinte, começa a ofensiva final contra os índios
sulinos. Roca, o pacificador do “deserto”, “se convierte en el arquétipo de la
‘solución final’ en el ‘problema’ indígena, defensor de la tesis de la guerra
ofensiva sin concesiones” (Martínez Sarasola 2005: 254).
Houve um grande consenso unindo os governantes e os cidadãos co-
muns sob a crença de que era preciso remover os índios das terras do sul
e depois da região do Chaco, se o país quisesse cumprir “un mandato del
destino” (Viñas [1982]2003: 54) ou, talvez mais apropriadamente, o seu
“destino manifesto”, a exemplo dos construtores da nação estadunidense
(Turner 1921). (Aliás, uma comparação entre a Argentina e os Estados Uni-
dos seria, sem dúvida, um exercício em repetições e coincidências, muito
mais do que contrastes, incluindo o General Roca e seu dublê yankee, o
General Custer). Embora tenha havido divergências, o discurso da preser-
vação indígena foi o grande perdedor dessa batalha ideológica.
As campanhas bélicas que tornaram os índios argentinos invisíveis
para a nação e para o mundo conseguiram matar dois coelhos com uma
cajadada. Do ponto de vista econômico, o Estado convenceu o país de que
a solução era esvaziar de índios as terras férteis de modo a deslanchar um
plano de criação extensiva de gado destinada à bonança do mercado inter-
nacional de carne e derivados. Do ponto de vista ideológico, demonstrou
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que destruir os índios cumpria a profecia segundo a qual a Argentina era
uma nação de brancos para brancos vindos dos barcos.
Mas nem só de pastos vivia o país. Havia ainda que conquistar as ter-
ras quentes do nordeste, boas para produzir bens de troca como o algodão.
A região chaquenha foi o palco da guerra seguinte. “La Campaña de Victo-
rica de 1884, culminación también de una serie de esporádicas incursiones
militares que comienzan hacia 1870, no logra erradicar a todos los pueblos
del Chaco, pero desgasta a los grupos más organizados en torno de grandes
caciques” (Carrasco e Briones 1996: 14). Derrotados na guerra oficial já no
início do século XX, os índios do Chaco foram reduzidos a devastada mão
de obra nas plantações de algodão em condições subumanas tão extremas
que chocaram até mesmo agentes do governo e provocaram entre os Toba e
Mocoví um movimento milenarista que acabou desbaratado no que se cha-
mou o massacre de Napalpí (Gordillo e Hirsch 2003: 13, Gordillo 2005).
O grandioso desenho da nação argentina seguiu, passo a passo, um
plano cuidadoso e muito bem definido: 1º) eliminar os índios; 2º) povoar
o interior de imigrantes europeus; 3º) embranquecer o país; 4º) implantar
um programa de educação universal. A rigor, apenas este último ponto teve
o sucesso esperado: nem os índios foram eliminados − hoje são mais de um
milhão (Claudia Briones, comunicação pessoal) −, nem os ideais imigrantes
do norte europeu se apresentaram − a maioria veio da Espanha e da Itália
(Quijada et al 2000) − , nem o país saiu mais embranquecido, se formos além
das estatísticas censitárias (Andrews 1980). Um dos subprodutos das cam-
panhas anti-indígenas, aliadas ao despautério da Guerra do Paraguai (1865-
1870), foi o alarmante crescimento da dívida pública “que consumiu quase
metade do orçamento em 1978-1879” (Fausto e Devoto 2004: 97), ou seja,
esvaziam-se os campos e os cofres públicos em nome de uma hegemonia er-
guida a ferro e fogo, deixando atrás de si um rastro de míseros equívocos.
Tanto na Argentina como no Brasil o exército comandou o destino
dos índios, sendo que os principais vultos da empreitada foram profunda-
mente influenciados pelo positivismo. No entanto, os modelos de conquis-
ta foram diametralmente opostos. Na Argentina, às escaramuças militares
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relativamente tímidas para afugentar os índios dos Pampas seguiu-se a
estratégia de uma guerra para acabar com todas as guerras, comandada
pelo General Roca. No comando de seis mil soldados, Roca esvaziou aquela
terra, empurrando os índios derrotados para a fronteira com o Chile, fa-
zendo dos sobreviventes prisioneiros e despachando-os brutalmente para
lugares remotos. Por exemplo, índios da fria Patagônia foram jogados no
Chaco escaldante. No ano de 1879 começa a derrota definitiva de todos os
povos indígenas dos Pampas e da Patagônia. Nos anos seguintes, um nú-
mero ainda desconhecido de indígenas desapareceu vitimado por doenças,
fome, trabalhos e deslocamentos forçados e condições desumanas de vida.
Ao todo, estima-se que ao longo daquele século mais de 12 mil índios te-
nham sido mortos nas guerras que a República da Argentina empreendeu
contra eles (Martínez Sarasola 2005). No início dos anos 1880, já com Roca
como presidente do país, foi a vez dos índios chaquenhos provarem o poder
de fogo do exército argentino numa guerra que durou oficialmente até 1917.
A opinião pública lamentou tanta violência, mas, em geral, a nação ficou
aliviada com a notícia de que, por fim, não havia mais índios no território
pátrio. O fato de que talvez a grande maioria da população indígena ante-
rior à Conquista do Deserto continuava viva nunca chegou à consciência da
nação, informada como estava por discursos oficiais enganosos.
Outra questão de extrema importância para a análise comparativa
do Indigenismo liga-se à legislação indigenista. Entrevistas com jovens uni-
versitários da etnia Mapuche realizadas em novembro de 2008 em Buenos
Aires expuseram uma diferença crucial entre a situação argentina e a bra-
sileira: enquanto no Brasil a Constituição Federal de 1988 marcou o início
de uma nova era para as relações dos indígenas com o Estado nacional,
abrindo caminho para iniciativas inéditas de autodeterminação (Santilli
1993; Marés de Souza Filho 1998; Ramos 1998a), na Argentina, a reforma
constitucional de 1994, de modo geral, parece não passar de uma abstração
sem grandes repercussões na vida dos indígenas, uma vez que são as leis
provinciais que assumem o papel principal nas decisões sobre direitos in-
dígenas (Briones e Delrio 2002, Briones 2005, 2007). Tomando o contexto
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argentino como espelho, é possível perceber a real importância do fato de
no Brasil a questão indígena ser assunto da alçada federal.
Por último, o tema das representações sobre o Índio. Se no Bra-
sil essa figura emerge com grande força na construção da nação (Ramos
1998a), na Argentina, ela se dá ao revés, ou seja, pela contínua negação de
que haja índios no seu território. Tal negação tem sido tão forte que aca-
bou por acentuar a presença de sua potente ausência (Derrida 1976) que,
de tanto ser enfatizada, acabou por moldar o modo como a argentinida-
de se sedimentou. A nação argentina foi montada sobre a dicotomia entre
civilização e barbárie, a primeira exemplificada pela Europa ocidental, a
segunda, pelos povos indígenas que habitavam o solo argentino. Para que
a primeira germinasse, era preciso erradicar sumariamente os indígenas.
Enquanto no Brasil a ideologia que embasou a brasilidade sustentou-se na
imagem da conjunção de três “raças” (europeia, africana e indígena), na
Argentina, a ideologia que gerou o sentido e o sentimento de nacionalidade,
muito longe de se apoiar nos povos autóctones como alicerce de indepen-
dência contra o conquistador europeu, declarou que os argentinos “vieram
dos barcos” (Briones 2005, Lenton 1992, Svampa 1994), ou seja, foram ge-
rados unicamente por europeus, como se a terra “descoberta” fosse vazia,
só se realizando como ambiente humano com a vinda de imigrantes (Qui-
jada et al. 2000). Não só isso, mas as políticas estatais de remoção territo-
rial dos povos indígenas obedeciam ao ditame de que os argentinos tinham
a missão manifesta de recuperar as terras que, em sua convicção, haviam
sido usurpadas pelos indígenas (Briones, comunicação em sala de aula, pri-
meiro semestre de 2009). Em suma: enquanto no Brasil a imagem do índio
serviu aos brasileiros para criar uma identidade própria, na Argentina, a
noção de que “os índios estão todos mortos” (Grosso 1999) serviu aos ar-
gentinos para criar a autopercepção de viverem uma Europa na América.
No início do século XX, também o Brasil assistiu a acaloradas dis-
cussões que dividiram aqueles que propunham algum tipo de solução final
para o problema indígena e aqueles que adotavam uma posição humanitá-
ria segundo a qual o estado precisava proteger fisicamente os índios para
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que pudessem ser trazidos à civilização. Um longo debate foi travado em
torno do que fazer com os indígenas, especialmente no sul do país, onde os
imigrantes, principalmente alemães, protestavam contra os ataques cons-
tantes dos Kaingang que viam sua base de subsistência, o pinhão, desapa-
recer para dar lugar a lavouras e ferrovias. Ao contrário do caso argentino,
não foram os positivistas comteanos que propuseram o extermínio, mas
em especial um cientista com o cargo de diretor do Museu Paulista, von
Ihering. Sua proposta, se comparada à de Sarmiento algumas décadas an-
tes, parece uma réplica da posição positivista argentina. Breve e agudo, diz
Sarmiento: “Nada ha de ser comparable con las ventajas de la extinción de
las tribus salvages” (Viñas [1982]2003: 64). Em von Ihering a prosa é me-
nos elegante e econômica, mas a mensagem se repete. O trecho a seguir é
parte do artigo publicado no Jornal do Comércio a 16 de setembro de 1908,
citado em Gagliardi (1989: 72):
Os atuais índios do Estado de S. Paulo não representam um
Elemento de trabalho e de progresso. Como também nos outros
Estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado
dos índios civilizados e como os Caingangs são um empecilho para
a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há
outro meio, de que se possa lançar mão, se não o seu extermínio.
Instigante inversão de posições: enquanto na Argentina são os po-
sitivistas hegemônicos que defendem a eliminação sumária dos índios, no
Brasil, são eles que repelem tal proposta e advogam a proteção irrestrita dos
povos indígenas, ainda que dentro do paradigma evolucionista que caracte-
riza o programa de Comte. É como se fosse um mesmo teste com resultados
opostos: na Argentina, a proposta Sarmiento/Roca levou a melhor; aqui, a
de von Ihering saiu perdedora. Certamente, houve no Brasil seguidores do
positivismo de inclinação spenceriana, mas a sua influência foi mais aca-
dêmica do que política, como é o caso de Nina Rodrigues (Leite 1992: 218).
Von Ihering foi duramente criticado e, eventualmente, calado, ao
prevalecer a posição dos positivistas hegemônicos. A polêmica se encerrou
com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910. Foi a primeira
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política estatal a englobar todos os povos indígenas do país, fossem eles
classificados como “primitivos” ou como “civilizados”.
O baluarte da proteção indígena brasileira foi o General Candido Ma-
riano da Silva Rondon que, no fim do século XIX, empreendeu a construção
de uma rede de linhas telegráficas pelas florestas de Mato Grosso, numa
tentativa tardia de trazer o interior ocidental do país para o controle do Es-
tado centralizado no Rio de Janeiro e evitar outras surpresas desagradáveis
como foi a guerra do Paraguai. Em suas incursões mata adentro, Rondon
fez os primeiros contatos com muitos povos indígenas desconhecidos até
então. Conduzia seus soldados com mão de ferro e impôs o slogan que con-
tribuiu para torná-lo um herói nacional (Souza Lima 1990): morrer se pre-
ciso for, matar, nunca. Com sua matilha de cães e uma paixão quase incon-
tida pela caça a onças (Viveiros 1969), ele criou um modelo para abordar
índios arredios que ainda hoje está em vigor na agência indigenista oficial,
agora chamada Fundação Nacional do Índio, Funai. Esse modelo consiste
em atrair os índios com presentes (as proverbiais bugigangas do primeiro
contato), palavras e gestos de sedução, mas inclui também a construção de
torres panópticas e outras táticas de defesa nem sempre eficientes. A tensão
que esse estado de sítio auto-imposto gerava na tropa de Rondon era tão
grande que muitos soldados simplesmente fugiam, ou tentavam fugir pela
mata inóspita. Ser resgatado de volta à tropa nem sempre era melhor do
que cair nas mãos dos índios.
Mas, se Rondon e seus sucessores pouparam aos índios as balas que
mataram tantos na Argentina, isto não quer dizer que os índios brasileiros
sobreviveram ilesos ao primeiro contato. O clímax do processo de pacifica-
ção, mais tarde rebatizado de “atração”, era o abraço que fundia – ou con-
fundia – pacificadores e índios. Aparentemente amistoso e inocente, aquele
abraço era, de fato, um veículo potente para a contaminação microbiana.
Por exemplo, a gripe que era apenas um desconforto passageiro para os
pacificadores, era letal para os índios. Muitas vezes, depois de cada pacifi-
cação, surtos epidêmicos devastavam aldeias inteiras e seus habitantes que,
deixados à própria sorte, sucumbiam em massa na ausência de qualquer
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assistência médica, incapazes de se cuidar uns aos outros (Ribeiro 1970:
272-307). Como no filme italiano dos anos 1960, os índios brasileiros eram,
literalmente, seduzidos e abandonados, vítimas de uma atração fatal que
lhes transformava a vida para sempre (Ramos 1998a).
Talvez por efeito da sujeição pacífica e da subsequente infantiliza-
ção que veio com a intensa tutela do Estado, os indígenas contemporâne-
os à formação do Brasil independente perderam sua subjetividade frente à
sociedade brasileira. Eram índios sem rosto e sem vontade. O contraste é
flagrante com a situação argentina. Lá, em consequência das guerras, dos
embates menos desequilibrados entre exército nacional e força indígena
e da importância política dos caciques, algumas figuras passaram à cons-
ciência do país como verdadeiros personagens históricos: Calfucurá, Na-
muncurá, Pincén, Mariano Rosas, Baigorria, Catriel, Sayweke, Yanquetruz
e muitos outros. Calfucurá, chefe de um contingente de dez mil homens e
seus dependentes, chegou a criar uma embaixada em Buenos Aires (Jones
1989: 178, 181). Eram líderes de reconhecidas “nações indígenas” com as
quais o Estado argentino firmou tratados ou acordos, ainda que enganosos
e desrespeitados (Briones e Carrasco 2000). Assim, enquanto no Brasil o
destino dos índios era traçado sem que eles tivessem conhecimento e muito
menos participação, reduzidos que foram a meros objetos de governo, na
Argentina, a formalidade gerada pelo espírito da guerra avultou o porte do
sujeito, vencido, mas sujeito com rosto e vontade.
Em face desses contrastes tão marcantes, era preciso buscar um con-
texto nacional onde os povos indígenas fossem também minoria demográ-
fica e política, mas que pudesse intermediar os extremos entre a situação
brasileira e a argentina, de modo a enriquecer a análise comparativa com
mais elementos empíricos e, ao mesmo tempo, ampliar o escopo e elucidar
os contextos dos países sob comparação. Para isso selecionei a Colômbia
como o país que talvez melhor exemplifique um terceiro termo na constru-
ção do indigenismo e da nação.
O que se segue é uma primeira aproximação do que entendo sobre
a realidade colombiana. Temas como a a história detalhada da formação
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do país, a descentralização do poder estatal e a proliferação de poderes re-
gionais, a hermenêutica legislativa, a contribuição da literatura, a ação dos
missionários, o envolvimento da academia na questão indígena e outros
aspectos cruciais do indigenismo colombiano serão analisados no decorrer
da pesquisa que foi recentemente iniciada. Apesar disso, o caso do indige-
nismo na Colômbia já mostra o seu potencial interpretativo.
Indigenismo na Colômbia
Numa cápsula, o cientista político da Universidade Nacional da Co-
lômbia, Álvaro Tirado Mejía, assim caracteriza a Colômbia:
Colombia ha sido un país muy metido en sí mismo, sin
grandes movimientos de inmigración, con una economía mediana,
cuando no pobre, si se lo compara con sus homólogos del conti-
nente pero, sobre todo, un país que se sale de los esquemas con
que se mira a Latinoamérica desde el exterior. En efecto, Colombia
brilla por la ausencia de dictadores; posee un sistema bipartidista,
una tradición electoral y unos partidos políticos que se sitúan entre
los más antiguos de occidente, con instituciones propias de la de-
mocracia liberal, pero, al mismo tiempo, ha sufrido una tremenda
violencia (Tirado Mejía 1994: 9).
Fonte de orgulho para muitos colombianos, esse respeito ao sistema
eleitoral que tem poupado o país de golpes de estado tão comuns nos de-
mais países sul-americanos, não garante, entretanto, a vigência de um regi-
me democrático. A proverbial debilidade do Estado colombiano tem como
consequência desastrosa a proliferação de atos de violência que deixa os
cidadãos à mercê do arbítrio de grupos regionais que se arrogam o direito
ao uso da força para benefício próprio. Há que acrescentar que, dentre os
segmentos mais sofridos da Colômbia, estão os povos indígenas, vítimas
de massacres, perseguições e expropriações. Neste ponto, a Colômbia se
aproxima lamentavelmente dos seus vizinhos do sul.
Diversos autores colombianos ou dedicados ao estudo da Colômbia
(Bushnell 1994; Múnera 2005, [1998]2008; Rojas 2001; Palacios e Safford
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2002; Laguado Duca 2004; Arias Vanegas 2005; Serje 2005) são unânimes
em apontar um traço distintivo do ordenamento nacional. Trata-se da ina-
petência pela centralização do poder que tem possibilitado a propagação de
poderes regionais, e mesmo familiares, tendo como consequência a debili-
dade do Estado e a instalação endêmica, e mesmo epidêmica, da violência
generalizada pelo país que tem afligido a população por mais de 70 anos.
Um observador externo não pode se furtar a fazer a pergunta que
não cala: por que a Colômbia, neste ponto, difere tanto dos seus vizinhos
sul-americanos? Por que ali poderosas forças regionais, aparentemente
sem um projeto separatista, proliferam tão folgadamente sem que o Es-
tado central tenha conseguido exercer plenamente suas atribuições webe-
rianas, ou seja, manter o monopólio do uso legítimo da força? Por que o
Estado deixa seus cidadãos à mercê da sanha de grupos armados a servi-
ço de interesses particulares? O que há na história colombiana que possa
iluminar essa particularidade única no continente? Considerando que a
Colômbia teve o mesmo substrato libertário dos seus vizinhos na figura
de Simón Bolivar, a possível resposta a essa intrigante pergunta não esta-
ria na passagem de colônia a país independente. Estaria então em alguma
peculiaridade de sua colonização espanhola ou poderia ser traçada ainda
mais atrás no tempo? Teria a atual fragmentação de poder alguma coisa
a ver com a estrutura política pré-hispânica que dominava em especial os
Andes colombianos e que estava ausente na Venezuela e nos outros países
da região? Na ausência de análises que, até onde vai meu conhecimento
atual, silencia sobre este tema específico, tomo a liberdade de sugerir o que
segue mais como provocação para novas pesquisas do que como afirmação
ingênua ou desavisada. À guisa de “hipótese de trabalho”, e correndo o
risco de criar uma ficção, proponho que o substrato indígena na forma
dos famosos “cacicados” seja, se não o principal responsável, ao menos
um elemento importante na formação de um país que tem sido visto como
“Colombia: Una nación a pesar de sí misma” (Bushnell 1994), “Colombia,
país fragmentado, sociedad dividida” (Palacios e Safford 2006), ou como
“El fracaso de la nación” (Múnera [1998]2008).
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O registro arqueológico e histórico da ocupação da Colômbia, em
especial nas regiões andina e caribenha, ressalta a presença do que se
tem chamado de “cacicados”, formações político-sociais organizadas em
confederações independentes e em competição entre si (Langebaek 1998,
2001; Langebaek e Cárdenas 1996). Sabe-se também pela historiografia
que os conquistadores espanhóis, a exemplo do que fizeram nos Andes
bolivianos e peruanos, numa primeira fase da conquista, depuseram os
grandes líderes e os substituíram sem com isso alterar substancialmente
a estrutura de poder vigente (Herrera Ángel 2007). Mantiveram, assim, a
tendência à fragmentação regional. Apesar do processo desagregador que
usurpou aos índios suas terras e sua força de trabalho, em boa medida,
persistiu o substrato organizativo de clãs matrilineares. A exemplo do que
ocorreu na Argentina (Shumway 2008), a independência e a constituição
do novo Estado republicano trouxeram conflitos entre aqueles a favor do
centralismo de governo e os adeptos do federalismo que procurava manter
a autonomia regional. Mas, ao contrário da Argentina que acabou optan-
do pelo Estado formal e substantivamente centralista, a Colômbia ficou a
meio caminho com um governo formalmente centralizado, mas com um
forte contrapeso regionalista.
Além disso, a grande fonte de energia por trás das disputas regionais
têm sido grupos familiares tão potentes que, com suas forças de segurança
particulares, provocaram o surgimento dos grupos paramilitares que ainda
hoje continuam aterrorizando o país. Dos clãs muíscas e taironas dos tem-
pos pré-hispânicos às famílias poderosas da atualidade colombiana parece
haver uma continuidade inédita na paisagem política sul-americana.
Sobre isto não posso deixar de evocar Lewis Henry Morgan quan-
do analisa o surgimento da sociedade civil na Grécia Antiga. Morgan deixa
claro que esse longo processo foi acompanhado de longas e violentas lutas
internas, em que a “sociedade se devorava” (Morgan 1963: 271). Sua fas-
cinante análise histórica poderia mesmo ser vista como a busca das “for-
mas elementares da vida civil”. A transformação da sociedade grega, de um
agregado de parentesco a uma sociedade civil é descrita por Morgan numa
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das passagens mais ricas de Ancient Society de 1877. Vemos como o paren-
tesco vai sendo substituído por uma ordem política até se transformar num
novo modelo de sociedade, a polis. O período de transição entre sociedade
gentílica (organizada em torno de gentes ou clãs) e sociedade civil durou sé-
culos e foi conturbado pela coexistência e grande competição entre as ins-
tituições antigas baseadas no parentesco e as novas baseadas no território,
na propriedade privada e na cidadania, certamente, repleto de situações
altamente conflituosas.
Poderíamos estender a imaginação sociológica de Morgan à situação
atual da Colômbia, onde parentesco e Estado ainda não resolveram as suas
diferenças, onde poderosas famílias oligárquicas continuam desafiando a
ordem estatal, levando terror à cidadania.
Se esta interpretação tem algum fundamento, temos no caso da Co-
lômbia uma das maiores demonstrações de quanto os indígenas contribu-
íram para a formação da nação, sejam quais forem os ingredientes dessa
construção.
Uma outra característica fala de perto ao tema central do indigenis-
mo comparado, qual seja, a repulsa pelo que tem sido visto como selvageria
ou barbárie. Isto se refletiu especialmente na virada republicana da Colôm-
bia no século XIX, quando começou a ser talhada a sua feição de nação
independente e elaborada a sua ideologia indigenista.
Diversamente do caso argentino, a construção da ideia de barbárie
colombiana foi seletiva e não incluía todo e qualquer povo indígena. Se,
por um lado, o ônus da incivilização recaiu sobre os povos amazônicos e
caribenhos, por outro lado, os habitantes dos Andes receberam o dúbio pri-
vilégio de representar os índios legítimos de um passado nobre, admirável
e, especialmente, dourado, com seus magníficos e reluzentes adereços de
ouro, tornando-os dignos de servir como ancestrais da nova nação. Mas
isto não quer dizer que os indígenas andinos tenham sido poupados das
vicissitudes da conquista e do colonialismo que dizimou a América indíge-
na, como mostra a abundância de casos de abusos, ilustrados na repetição
de massacres na região do Cauca, zona de fronteira cafeeira (IWGIA 1983,
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1884; Jimeno e Triana 1985; Rappaport 1994; Jimeno 2006). Portanto, não
custa enfatizar que não me refiro ao “índio” concreto, mas às imagens que
se fazem dele.
Em flagrante contraste com a nobreza prístina concebida sobre os
Andes, os indígenas da região amazônica e do Caribe e os afro-colombia-
nos eram – e são ainda – a epítome da barbárie. Exemplo dessa dicotomia
foi a reação indiferente, se não mesmo de alívio, à perda, em 1903, do
Panamá, região então considerada a metáfora do fracasso de um modelo
de nação: “por sua geografia, por sua composição racial e pelo predomínio
de uma cultura popular, o istmo se encaixava perfeitamente no estereótipo
das terras incivilizadas e bárbaras” (Múnera 2005: 116). Em suma, a perda
daquele grande território foi compensada pelo descarte da barbárie que
ele continha, aliviando a Colômbia do ônus de civilizá-lo. Por sua vez, a
Amazônia colombiana tem sido palco de imenso sofrimento para os povos
indígenas, especialmente na era da borracha (Taussig 1987; Pineda Cama-
cho 2000). Ainda em meados da década de 1960, os indígenas da Amazô-
nia eram considerados como entes subumanos, inclusive aos olhos da lei
para a qual matar índios não era crime (Bodley 1975; Ramos 2002: 261).
De modo semelhante ao que ocorreu no Brasil a partir de 1988, a
constituição promulgada em 1991 trouxe mudanças substanciais ao indige-
nismo colombiano. Ao declarar que o “Estado reconhece e protege a diver-
sidade étnica e cultural da nação colombiana” (Art. 7°), a nova constituição
criou uma série de provisões que garantem o direito indígena às terras an-
cestrais, aos seus usos e costumes, delegando aos próprios indígenas a res-
ponsabilidade de gerenciar seus territórios (Sánchez Botero 2002a). Ainda
sem o amparo de legislação ordinária, esta última provisão tem sido objeto
de críticas de várias ordens (Padilla 1996; Sánchez Botero 2002b; Villa e
Houghton 2004; Jimeno 2008).
Comparar a construção da nação colombiana à da brasileira e argen-
tina, imediatamente, revela algumas diferenças flagrantes das quais des-
taco três: a doutrina do positivismo, a política de imigração e o tributo da
arqueologia.
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Ao contrário do Brasil e da Argentina, a Colômbia não sofreu a forte
influência do positivismo nem em sua vertente francesa, nem inglesa, nem
no âmbito do governo, nem da intelectualidade. Embora alguns pensadores
da nação se inspirassem no exemplo da Inglaterra (Uribe Vergara 20083),
não foi o positivismo que orientou a formação da nação colombiana, mas
a doutrina do laissez-faire (Rojas 2001), ou seja, o liberalismo (González
1997; Palacios e Safford 2002; Laguado Duca 2004) ou uma “filosofia expe-
rimental” (Ruben Sierra entrevista, 25/04/2010). Isto significa que o Esta-
do colombiano, para o bem ou para o mal, abdicou de conduzir uma política
indigenista coerente (como ocorreu com a Argentina de Roca e com o Brasil
de Rondon) com o seu desígnio de “civilizar” o país. Em grande medida,
a Colômbia delegou aos missionários o papel de lidar com os índios que
enfrentavam a fúria expansionista do setor privado em suas várias frentes.
Assim, enquanto o positivismo argentino e o brasileiro contribuíram para
a separação do Estado e da Igreja, a filosofia benthamista da Colômbia (Ja-
ramillo Uribe 2001) seguiu a direção oposta, delegando à Igreja atribuições
que seriam do Estado (Ruben Sierra entrevista, 25/04/2010).
Outro contraste gritante entre a Colômbia, por um lado, e a Argenti-
na e o Brasil, por outro, foi a parca imigração naquele país. Algumas tenta-
tivas débeis de governos republicanos para atrair imigrantes resultaram em
rotundo fracasso, o que acentuou o já crônico isolamento da Colômbia com
relação ao Velho Mundo e até mesmo aos seus vizinhos no continente.4
Como afirma Frédéric Martínez, “la historia de la inmigración en Colombia
durante el siglo XIX se caracteriza también por su fracaso casi absoluto”
(1997: 7). Ainda que houvesse o anseio de branquear o país com a atração
do imigrante ideal – o artesão europeu, (Martínez 1997: 3) – as “políticas
3 Este autor aponta com detalhes os caminhos distintos que a Colômbia e a Argentina trilharam em sua formação, mesmo tendo em comum o papel do higienismo, da criminologia e do racismo em suas respectivas políticas públicas (Ver também Urueña 1994). Sobre isto, ver o caso brasileiro em Murilo de Carvalho (1991).
4 Uma impressão de quem vê a Colômbia com olhos vindos do Brasil é a repetição inesperada dos so-brenomes numa população muito menor do que a brasileira. Não encontramos lá os Schmidts, Genaros, Malufs, Levis e Suzukis tão comuns no Brasil. Sem confirmação estatística, resta arriscar uma pergunta, talvez uma impertinência: seria o aparentemente reduzido universo de sobrenomes colombianos uma consequência da falta de imigração em massa, do efeito fertilizante dos estrangeiros?
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voluntaristas” que comandaram esse anseio ruíram por falta de consistên-
cia e recursos materiais. E, conclui Martínez: “La lenta disipación de la qui-
mera inmigracionista llevará, progresivamente, a los ideólogos de la nación
– conservadores o liberales – a convencerse de aceptar a una Colombia tal
como es, y no como la habían soñado” (Martínez 1997: 44).
Portanto, não foi uma avalanche de imigrantes desbravando o “de-
serto” para enriquecer o país que serviu de justificativa para o extermínio e
submissão dos povos indígenas, como ocorreu na maior parte da Argentina e
no sul do Brasil. A fronteira econômica da Colômbia independente formou-
-se, e ainda se forma, principalmente, pelas forças internas ao próprio país,
como os setores cafeeiro, mineiro e militar, tanto legítimos como ilegais.
Por último, vejamos como a arqueologia tem moldado o imaginário
colombiano com relação aos povos indígenas e criado contrastes exacerba-
dos entre os grandes feitos do passado e a indigência do presente. Também
aqui a Colômbia representa um contraste com dos dois outros países objeto
desta comparação, uma vez que essa atividade não tem gerado consequ-
ências sociais ou políticas perceptíveis nem no Brasil nem na Argentina.
Refiro-me à arqueologia não como uma disciplina acadêmica, mas como
um recurso ideológico que contribui para marcar diferenças sociais. A ar-
queologia como elemento ideológico separa o passado admirável traduzi-
do, por exemplo, nas espetaculares esculturas de San Agustín, do presente
miserável de povos indígenas depauperados e marginalizados. Como afir-
ma o arqueólogo Cristóbal Gnecco, “la negación de continuidad cultural
resultó muy útil para deslegitimar las reivindicaciones territoriales de las
sociedades indígenas contemporáneas” (Gnecco 2000: 40). “Os sujeitos ar-
queológicos”, diz Gnecco, “não mudam, desaparecem” (Gnecco 2000: 37).
Deste modo, atribui-se civilização aos indígenas do passado monumental
e barbárie aos seus atuais descendentes. Destes espera-se apenas que se
civilizem e deixem de cobrar seus direitos étnicos.
Em flagrante contraste com o atávico glamour das montanhas ou
do Caribe, a região amazônica foi eleita pelo próprio Estado como “el lugar
propicio para los condenados, mediante la creación de Colonias Penales y
centros de confinamiento” (Gómez 2000: 93). Essa marginalidade política
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e social tem contribuído para perpetuar a marginalização dos povos indí-
genas da Amazônia colombiana. A caracterização que faz Augusto Gómez
expõe a força do imaginário colombiano sobre a Amazônia.
la satanización [da Amazônia] se há venido construyendo de dicho
espacio e de sus habitantes, hasta convertirla en el ‘infierno’, en el ‘lugar de
los condenados’. La difusión de imágenes como, por ejemplo, la del salva-
jismo y canibalismo de sus pobladores aborígenes (…) ha sido desde siglos
atrás, parte de esa construcción de la región, con sus efectos desastrosos …
peor aun, si se observa que muchas de esas imágenes negativas (…) persis-
ten hoy en la sociedad colombiana (Gómez 2000: 93).
Em última instância, apenas os índios do passado glamoroso, como
os muíscas e os taironas, merecem consideração. Índio vivo, seja da mon-
tanha, do Caribe ou da Amazônia, é índio perdido se não se submeter aos
ditames de uma civilização que continua cega à sua própria incapacidade
de servir de exemplo para alguém.
CONCLUINDO
Não é demais enfatizar que o estudo do indigenismo como via para
entendermos o ethos de uma nação americana é como uma porta que se
abre às regiões mais íntimas e recônditas de um país. Ele tem o potencial
de revelar o não dito de uma nacionalidade, ou seja, aqueles espaços mui-
tas vezes implícitos que não se quer ou não se pode explicitar. Em última
instância, o valor heurístico da comparação – ferramenta privilegiada da
antropologia –é permitir chegar a um conhecimento muito mais profundo
da nossa própria realidade, refletida no espelho que são os outros, além de
minimizar a tendência de nossos países a um provincianismo etnográfico
em que os estudiosos se ocupam com demasiada exclusividade em exami-
nar o seu próprio contexto nacional. 5
5 Neste sentido, à guisa de exemplo de alguns trabalhos que ampliam os horizontes de quem se dedica a analisar fenômenos de escala macro, como são as nações, podemos citar o já mencionado Edward Said (1979), Jean e John Comaroff (1991, 1997, 2006), Fernando Coronil (1997), Norbert Elias (1996), Johannes Fabian (1986), James Ferguson (1994), Bruce Grant (1995), Richard Handler (1988), Michael Hersfeld (1987), Elizabeth Povinelli (2002), Michael Taussig (1997), Eric Wolf (1999), entre mui-tos outros. Todos esses autores fornecem valiosa inspiração teórica para o trabalho um tanto ambicioso
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Ao estudar indigenismo como uma ideologia sobre diferenças cultu-
rais, espero poder desnudar o estado-nação nos seus espaços mais recôndi-
tos e íntimos, como se a questão indígena fosse uma neurose virtualmente
incurável que, de um modo ou de outro, aflige os países americanos em
geral. Até que ponto, vasculhando esse subconsciente nacional, é possí-
vel desvendar algo de novo? Posso dizer que, no caso do Brasil, ir fundo
nos discursos indigenistas e nas imagens criadas sobre os índios tem feito
emergir, por exemplo, um traço da brasilidade que me parece inédito, com
a possível exceção dos trabalhos de Roberto DaMatta. Refiro-me à ambi-
guidade como o traço que sublinha o Brasil (Ramos 1998b). Meu desafio é
usar o indigenismo para trazer à tona o lado encoberto do país que não fica
totalmente exposto em análises sociológicas ou políticas.
Quanto à Argentina, há um claro renascimento da indianidade, ou
aboriginalidade, como quer Claudia Briones (2002), depois de séculos de
negação da existência de índios e da carga negativa que pesa sobre a figura
dos “cabecitas negras” em meios urbanos − “muchos de los que ustedes
llamaban cabecitas negras éramos nosotros, los indígenas que vinimos a
Buenos Aires” (líder mapuche citado em Briones 2002: 80). Esta nova con-
juntura traz, necessariamente, consequências importantes e mesmo impre-
visíveis. Quando, em 1994, com a reforma da constituição nacional, os le-
gisladores argentinos reconheceram pela primeira vez a presença de índios
em território nacional (Briones 2006: 248), eles desmentiram os vultos
mais importantes da história republicana do país e deram um recado à po-
pulação: a Argentina, advertem, não é um país apenas de brancos e, mesmo
que exista um anseio de branqueamento por quem não é branco, não é com
homogeneidade étnica que se faz uma verdadeira nação.
Na Colômbia, dado o seu lugar de minoria dominada, ainda que o
país, desde 1991, se proclame pluriétnico, é surpreendente constatar a visí-
vel vanguarda política dos povos indígenas quanto às iniciativas de repúdio
e combate à violência generalizada naquele país. Como muitos segmentos
de desvendar o sentido da nacionalidade num continente onde as nações se erigiram a expensas dos povos indígenas originários, deixando um rastro de ambiguidades, frustrações, ressentimentos e outras questões mal ou não resolvidas no vasto campo da convivência pluriétnica.
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da sociedade rural da Colômbia, os indígenas, tanto dos Andes quanto da
Amazônia e da região caribenha, têm sido perseguidos, torturados e mortos
pelos vários braços armados que assolam o país, desde grupos paramilita-
res e revolucionários até o próprio exército nacional (Molano [1985] 2009).
A massa de mutilados e despossuídos deixada na esteira de ações agressi-
vas ao extremo por parte desses grupos beligerantes gerou uma nova cate-
goria política: as vítimas. De desvalidas a politicamente ativas, essas víti-
mas, a duras penas, têm-se mobilizado para tornar públicas as suas perdas
e as condições em que se deram, transformando a impotência individual
em potência coletiva. Neste contexto, são os grupos indígenas organizados
que estão à frente dessas mobilizações com a adesão dos demais segmentos
do país (Jimeno 2009; Jimeno et al. no prelo). Esse protagonismo indígena
na Colômbia não vem por acaso. Há naquele país inúmeros líderes e pen-
sadores de diversas etnias que, no passado e no presente, se têm destacado
por sua atuação política (Gnecco 2004; Muelas Hurtado 2005; Rappaport
2005; Jimeno 2006; Gros e Morales 2009) e intelectual (Guerra Curvelo
2002). O resultado é uma visibilidade em ascensão de figuras proeminentes
no campo das relações interétnicas na Colômbia.
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O CONTRA O ESTADO E AS POLÍTICAS AMERÍNDIAS
algumas meditações clastreanas1
Renato Sztutman2
Transfigurações do “Contra o Estado”
Nas terras baixas da América do Sul, chefia e xamanismo são ins-
tâncias por excelência da mediação entre pessoas e mundos. Ainda que
a primeira esteja mais diretamente ligada ao trato dos homens entre si e
a segunda, ao trato entre os homens e o “outro mundo” – mundo extra-
-humano, sobrenatural etc. –, não podemos deixar de lado a necessária
interpenetração entre esses domínios, o que revela uma ação política par-
ticular, isto é, uma cosmopolítica.3 Chefes e xamãs costumam ser, nessas
paisagens, figuras complementares: ambos empenham-se na constituição
dos coletivos por meio da mobilização de certas relações. Estas figuras po-
dem em certas ocasiões se confundir, mas esta não é a regra verificada nas
paisagens em questões, o que aponta um problema para a filosofia políti-
ca indígena. Tal idéia de complementaridade – que invade outras relações
para além desta que apontamos – parece, de sua parte, lançar luz sobre
aspectos importantes disso que poderíamos chamar de “poder político” nas
terras baixas da América do Sul. Isso porque, com seu efeito pulverizador,
1 Este ensaio é uma versão ligeiramente modificada da palestra que apresentei, em 12 de novembro de 2010, na VII Jornada de Ciências Sociais – “O poder em perspectiva”. Sua intenção é apresentar o problema das políticas ameríndias quando pensadas por meio de um esforço de atualização da obra de Pierre Clastres. Agradeço especialmente aos organizadores do evento, que me estimularam a publicar o texto, bem como a Paulo Maia, Rogério Do Pateo e Karenina Andrade. Noto que essas reflexões re-montam a um diálogo sobre o tema das políticas ameríndias que venho estabelecendo há tempos com Beatriz Perrone-Moisés, a quem dedico o ensaio.
2 Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e pes-quisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo.
3 Inspiro-me na idéia de cosmopolítica, tal como desenvolvida por autores como Isabelle Stengers (Cos-mopolitiques I e II. Paris: La Découverte, 2003) , Bruno Latour (“Whose Cosmos, Which Cosmopolitics? Comments on the Peace Terms of Ulrich Beck”. In: Common Knowledge, v. 10, n. 3, 2004)e Eduardo Viveiros de Castro (“Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: Queiroz, R. de C. & Nobre, R. F. (orgs.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008).
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ela tende a caminhar ao lado de uma espécie de recusa da concentração de
um tal poder nas mãos de uma só pessoa ou grupo de pessoas, recusa que
pode se manifestar das mais variadas maneiras, dentre elas, a submissão
dos pretensos “poderosos” – aqueles que aspiram mandar, subjugar a ação
de outrem – a uma posição de eterna e constante suspeita.
Essas idéias de complementaridade e recusa podem ser mais bem
compreendidas se nos atermos a algumas etnografias recentes. Tomemos,
para começar, alguns exemplos do alto Xingu (estado do Mato Grosso),
onde proliferam acusações de feitiçaria, que não raro recaem sobre a figura
de chefes e de xamãs que se fazem e se querem “poderosos”.4 Em linhas
gerais, no alto Xingu, os chefes são apresentados como pessoas modelares,
uma vez que se aproximam com maior êxito dos protótipos míticos, carre-
gando em si um ideal de humanidade e de moralidade. Feiticeiros, de sua
parte, consistem no oposto disso tudo. Conforme nos conta Marina Vanzo-
lini Figueiredo, os Aweti, povo de língua tupi, dizem que feiticeiros sequer
são “gente”. E se os chefes são antes de tudo, fazedores – de parentes, de
coletivos, de festas – os feiticeiros são aqueles que põem tudo a perder,
dissolvem os laços e as associações.5
Note-se que no alto Xingu, xamãs, ainda que dotados de prestígio,
devido ao trabalho de cura que realizam graças à interlocução com o mun-
do dos “espíritos”, raramente vêm a ser chefes de aldeia, o que remete ao
problema a um só tempo da complementaridade e da recusa, como vere-
mos. Mais especificamente, um xamã deve empenhar-se em estabelecer
boas relações entre homens e “espíritos”, sem com isso recobrar para si
uma situação de carisma excessivo. Tomemos um exemplo mais preciso.
João Veridiano de Franco Neto conta a história de um grande xamã kalapa-
lo, povo de língua caribe, que vinha de uma parentela de chefes, sem jamais
4 O alto Xingu consiste num sistema multiétnico, composto por dez diferentes povos, falantes de lín-guas de quatro famílias diversas. Para uma apresentação desse sistema ver, entre outros, Franchetto, B. & Heckenberger, M. (orgs.) Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2001.
5 Marina Vanzolini Figueiredo. A flecha do ciúme. O parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu”. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional: UFRJ, 2010.
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ter se tornado um chefe de aldeia.6 Este xamã ganhou grande reconheci-
mento pelas curas que realizava, e atribuía o seu sucesso ao fato de ter como
espírito auxiliar ninguém menos do que Jesus Cristo.7 O antropólogo, que
vê aí todas as características de um líder carismático messiânico, nota que
os médicos que o acompanhavam o diagnosticaram como esquizofrênico.
O ponto que gostaria de frisar aqui é que, quando do auge de seu reconhe-
cimento como xamã poderoso, não apenas pelos Kalapalo, mas em outros
lugares do alto Xingu, ele foi acusado de feitiçaria, caindo logo em descré-
dito.8 Vemos aqui a ação de um esquema moral e político que equaciona
abuso de poder – no caso, quem cura demais também mata demais – à
feitiçaria; e com isso não quero reduzir a feitiçaria a um mero instrumento
sociopolítico, uma vez que ela deve ser situada dentro de uma cosmopolíti-
ca, que pressupõe a existência de uma multiplicidade de agências, humanas
e não-humanas.9
Outros exemplos alto xinguanos, não diretamente associados à fei-
tiçaria, ilustrariam essa cautela diante da figura de líderes dotados de “po-
der”, seja este propriamente político (no sentido de agir na constituição
de coletivos), seja este de outra natureza. Um caso curioso – e desta vez
ligado à política partidária – foi narrado por Marina Vanzolini Figueiredo
entre os Aweti. Na ocasião de uma eleição municipal, a maioria dos Aweti,
que então viviam em uma só aldeia, teria rejeitado candidatos indígenas
– dentre eles, o próprio chefe aweti – dando preferência aos candidatos
6 Note-se que, no alto Xingu, a chefia está relacionada a uma regra de descendência, mas não de maneira automática, como evidenciam, mais recentemente, os trabalhos de Aristóteles Barcelos Neto (Apapatai: rituais de máscaras no alto Xingu. São Paulo: Edusp, 2008) e, especialmente, de Marina Van-zolini Figueiredo (Centralização e faccionalismo: imagens da política no alto Xingu. Dissertação de mes-Dissertação de mes-trado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2006). Há, além disso, uma polêmica sobre a operação ou não de uma teoria da concepção que valorizaria uma espécie de “substância nobre”, e isso diz respeito tanto às interpretações antropológicas do fenômeno como às diferenças entre os povos alto-xinguanos, que não podem ser desconsideradas. Enfim, o problema da chefia no alto Xingu é bastante complexo para ser tratado nos limites deste ensaio.
7 Esta associação entre grandes xamãs e Jesus Cristo é recorrente em outras partes das terras baixas, tanto em períodos históricos como em tempos atuais.
8 João Verdiano de Franco Neto. Xamanismo kalapalo e assistência médica no alto Xingu. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 2010.
9 Para uma análise original da dinâmica da feitiçaria no alto Xingu e em outros lugares das terras baixas da América do Sul, remeto novamente ao trabalho de Figueiredo(ver nota 5).
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brancos. “Tanto a votação e candidatos brancos quanto a rejeição dos
candidatos locais eram explicadas da mesma maneira: ‘o povo dele [do
chefe aweti] sabe que ele é ruim’”.10 Em suma, chefe que se candidatou
ao cargo foi visto como espécie de usurpador, acionando a idéia corrente
de que um chefe que se quer grande demais acaba por se assemelhar a
um feiticeiro. O resultado desse episódio, nos conta a antropóloga, foi a
fissão da aldeia Aweti, com a partida do chefe e sua família. Este caso não
parece demonstrar nem desinteresse nem falta de participação em nossa
“política” – no caso, a política partidária, a democracia representativa –,
antes revela cautela diante de movimentos de concentração de poder. Essa
cautela pode se manifestar, segundo Figueiredo, no fenômeno, bastante
usual no alto Xingu, da multiplicação das chefias – fazendo que para cada
comunidade haja mais do que um chefe. E isso que vemos no alto Xingu
comunica diretamente com outros fatos ameríndios, conectando inclusive
fatos etnográficos com fatos históricos.
Tomemos um novo exemplo, desta vez relativo aos Tenetehara (povo
de língua tupi-guarani) da Terra Indígena Cana Brava (Maranhão), que
participaram ativamente das eleições municipais de 2008. Florbela Ribeiro
procurou mapear a constituição das diferentes formas de liderança local,
tendo em vista que a inserção dos Tenetehara na nossa “política” ocorre a
partir de códigos que lhes são próprios, passando pela imbricação entre a
formação de blocos de aliados (segmentos ou facções) e laços de parentesco
e afinidade. Em suma, a descontinuidade entre a política “interna” e a par-
tidária seria apenas parcial. Seu diagnóstico atentou para uma tendência de
dissociação das diferentes formas de liderança: caciques locais, lideranças
políticas que fazem mediação com órgãos indigenistas como a Funai e a
Funasa e, por fim, os candidatos a vereador. Esse aspecto se via refletido
no discurso de lideranças antagônicas que concordavam que a Funai ja-
mais poderia ser ocupada por um só Tenetehara, uma vez que na Terra
Indígena em questão, estes se viam divididos em duas grandes facções. Ou
esse órgão, enquanto atendendo os interesses daquele povo em geral, seria
10 Marina Vanzolini Figueiredo. “Eleições na aldeia, ou o alto Xingu contra o Estado”. Ms., 2011, p. 10.
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ocupado por dois lideres de facções opostas, ou o cargo deveria passar para
alguém de fora. “O que todos eles argumentam”, explica Ribeiro, “é que um
cargo de chefia para um Tenetehara representa uma posição hierárquica,
que o colocará em relação de desigualdade com os outros. A indicação de
uma só pessoa para se posicionar à frente de um órgão de Estado pare-
ce introduzir um elemento disfuncional na dinâmica das relações entre os
indígenas. Por isso dividiram a Funai entre os Rocha e os Mendes [duas
“famílias” influentes] e, com o tempo, muito possivelmente queriam dividir
entre outras famílias, como já fizeram com a Funasa. A lógica do Estado
aplicada a essa população gerou conflitos internos, os quais eles tentaram
resolver a seu modo. Contudo, a configuração proposta por eles nem sem-
pre poderá ser aceita. Uma presidente da Funai autorizou a criação de dois
escritórios, outro disse que esse modelo não era viável e os suspendeu. Por
isso, entendem como melhor alternativa deixar a política do Estado para os
karaiw (brancos)”.11
Em suma, a autora evidencia que a lógica política tenetehara, impli-
cando a operação de facções, não se acomoda bem à lógica da “nossa políti-
ca”, que sempre exigirá alguma medida de unificação. Para os Tenetehara, a
unificação só poderia ser desastrosa, nesse sentido, se ela se mostra mesmo
necessária no que tange aos assuntos de interface com o mundo dos bran-
cos, a melhor opção seria apelar para líderes não-indígenas. Assim como no
caso aweti, a rejeição de líderes indígenas vem acompanhada de uma crítica
do fortalecimento de chefias locais e, portanto, de um desejo de pulveri-
zação dos poderes. Poderíamos concluir, com esses casos, que a distinção
entre novas e velhas formas de liderança e chefia é menos importante e
operante do que um movimento de pulverização, de recusa de unificação e,
portanto, de representação de um todo uno.
Os exemplos aqui mobilizados, todos eles extraídos de contextos
bastante atuais, nos reaproximam da idéia da “sociedade contra o Esta-
11 Florbela Ribeiro. Políticas Tenetehara e Tenetehara na política: um estudo sobre as estratégias de uma campanha eleitoral direcionada a uma população indígena. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010; p. 164.
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do” proposta por Pierre Clastres no começo dos anos 1960.12 Lancei mão,
propositalmente, de exemplos que se afastam do protótipo da “sociedade
primitiva” vislumbrado pelo autor. De um lado, nos deparamos com o alto
Xingu e sua complexa ideologia da chefia, que envolve uma concepção sui
generis de descendência e mesmo de aristocracia; algo que se distancia da
imagem do chefe “sem poder” representando uma comunidade pequena,
indivisa e una, como propõe Clastres. Do outro lado, temos o imbricamen-
to entre formas por assim dizer “tradicionais” de liderança e a democracia
representativa, algo que se verifica tanto no alto Xingu como entre os Tene-
tehara, povo com longa história de contato com o mundo dos brancos. Ora,
esse imbricamento teria sido entrevisto por Clastres sob o signo do “mau
encontro”, isto é, a destruição do Ser das populações ameríndias. Ao con-
trário do que se poderia imaginar, proponho que o afastamento entre os ca-
sos apresentados e o protótipo da “sociedade primitiva” clastreana podem
revelar a atualidade da tese da “sociedade contra o Estado”, esta que foi
alvo de inúmeras críticas teóricas e etnográficas.13 Parece-me que a idéia
de “contra o Estado”, sobretudo quando confrontada nas etnografias de po-
vos ameríndios, foi tomada pelos etnólogos de maneira por demais literal,
para não dizer ingênua. Gostaria, pois, de examinar esta idéia e refletir so-
bre suas implicações, o que exige também uma certa avaliação do contexto
da produção da literatura etnológica nos últimos vinte ou trinta anos.
Segundo Pierre Clastres, a “sociedade primitiva” – generalização que
tem como inspiração as sociedades das terras baixas da America do Sul –
12 Mais precisamente no ensaio “Troca e poder: filosofia da chefia indígena”, de 1962, publica-do na coletânea A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política (São Paulo: Cosac Naify, 2003), de 1974. A imagem da “sociedade primitiva” mantém-se nos demais ensaios do autor, reunidos nesta e na sua segunda coletânea, Arqueologia da violência: investigações de antropologia política (São Paulo: Cosac Naify, 2004), de 1980.
13 Sobre a atualidade do pensamento de Clastres, ver especialmente: Tânia Stolze Lima e Marcio Gol-dman – “Pierre Clastres, etnólogo da América” (Sexta Feira, vol. 6, 2001) e “Prefácio” (In: Clastres, P. A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003); Barbosa, Gustavo – A socialidade contra o Estado (Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2002); Sztutman, Renato – O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens (Tese de doutora-do. São Paulo: USP, 2005); Viveiros de Castro, Eduardo. “Posfácio: o intempestivo, ainda” (In: Arqueologia da violência: investigações de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004); Perrone-Moisés, Bea-triz & Sztutman, Renato. “Dualismo em perpétuo desequilíbrio feito política”; Manuscrito inédito, 2009.
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é “contra o Estado”, e não “sem” Estado. Dizer que elas são “sem Estado”
seria defini-las pela falta, seria privá-las de capacidade de organização e de
gestão de assuntos que dizem respeito à vida coletiva. Seria incorrer numa
razão etnocêntrica que toma as populações indígenas seja como estagnadas
em um estágio primeiro de evolução das formas de governo – tal a saída
evolucionista e neoevolucionista – seja como incapazes de estabelecer uma
forma propriamente dita de governo – tal a saída estrutural-funcionalista.
Para Clastres, não se trata de estagnação tampouco de incapacidade para
governar-se, a configuração das sociedades indígenas revelaria, isso sim,
mecanismos capazes de promover uma recusa ativa do poder político cen-
tralizado, fazendo da “forma-Estado” não a finalidade da História, nem o
privilégio de certas sociedades, mas sim uma fatalidade, um acidente, que
pode ser prefigurado e portanto conjurado.
Em outras palavras, para Clastres, as sociedades indígenas, socie-
dades contra o Estado, são essencialmente políticas. O ponto – defendido
pelo autor em “Copérnico e os selvagens”14 – é que precisamos alargar as
nossas noções de “política” e de “poder político”, uma vez que estes não dão
conta da realidade indígena. Trata-se de um movimento análogo ao que
Lévi-Strauss realizou em seu “alargamento da Razão” e na proposição de
um “pensamento selvagem”, que não é exatamente o mesmo que o pensa-
mento “dos selvagens”. Se os indígenas são tão racionais quanto nós mes-
mos, eles são também tão políticos quanto nós mesmos; mas a sua política
não pode ser reduzida aos negócios da pólis – tal a definição aristotélica
– e nem o poder que eles reconhecem pode ser reduzido ao monopólio da
coerção física – tal a definição hobbesiana. A política dos indígenas estaria
baseada, e este é o ponto, não na ignorância nem na impossibilidade deste
poder coercitivo, mas sim na sua recusa. Dito de outro modo, como vimos
nos exemplos citados, os indígenas sabem muito bem o que poderia ser um
grande xamã ou um chefe desmesurado; narram, inclusive, uma infinidade
de mitos a este respeito, seja atentando ao perigo de figuras como as de
chefes usurpadores e xamãs atemorizantes, seja ridicularizando-as, paro-
14 In: A sociedade contra o Estado, op. cit.
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diando-as. O poder coercitivo, que está na base de qualquer Estado, pode
sim ser reconhecido e localizado; caberia à sociedade proteger-se contra ele
e conjurá-lo. Essa recusa e esse reconhecimento são a base na qual Clastres
pode pensar a “sociedade primitiva” como “contra o Estado”, e não “sem
Estado”, é a maneira pela qual ele qualifica as políticas indígenas, políticas
selvagens porque não unificadoras.
O legado de Pierre Clastres
Como lembra Bento Prado Jr., Pierre Clastres propiciou de maneira
bastante original a articulação entre questões importantes da etnologia e da
filosofia política. O filósofo resume assim o percurso de Clastres: “Saindo
da filosofia, passando pelo trabalho de campo, lá descobrindo a articulação
entre a ontologia do social e a reflexão sobre o poder, ampliando o alcance
teórico do primeiro passo na direção de uma crítica das ciências humanas,
somos devolvidos às questões fundamentais da filosofia política”.15 Prado
Jr. admite que Clastres penetrou os mistérios da política, indo buscar em
Etienne de la Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária, a consta-
tação de que a submissão não é um fenômeno “natural”, mas sim resulta de
um ato individual de abdicação da liberdade, passível de ser localizado na
história. Com isso, Clastres teria tocado numa interrogação filosófica fun-
damental. Nas palavras de Prado Jr.: “O que é, afinal, o poder? Seria esta
uma questão vã?”.16 Ora, Clastres argumenta que só poderemos entender o
poder político quando nos dermos conta que ele pode ser recusado. Trata-
-se, pois, de uma tese ousada que sugere que a filosofia política ocidental
pode ser transformada pela filosofia política indígena.
Michel Foucault assumiu certa vez que Clastres é um dos responsá-
veis em fazer com que o pensamento político deixasse de orbitar em torno
da noção moderna de Estado, qual seja, da noção de poder político como
algo necessariamente centralizado e coercitivo, como algo necessariamente
15 Bento Prado Jr. “Prefácio” (In: Clastres, Pierre. Arqueologia da violência; op. cit); p. 11.
16 Idem; p. 12.
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negativo, repressivo. Foucault vê em Clastres o desenho de uma noção de
“poder como tecnologia”, destacando que o poder político centralizado e a
serviço da coerção – Repressão – seria apenas um caso dos diferentes pode-
res que constituem a sociedade.17 Com efeito, em analogia com a proposta
de Kant, Clastres pensou uma “revolução copernicana” para a Antropologia
Política capaz de tirar o Estado do centro das atenções, e então apreender
formas de pensamento, organização e ação que pulverizam o poder políti-
co impedindo que ele seja detido por uma pessoa ou um aparelho. Essas
formas podem ser encontradas entre os povos indígenas que reconhecem
os poderes e seus perigos, mas recusam a sua concentração. Eles recusam
o exercício de relações de poder, que produz a Divisão da sociedade em
dominantes e dominados.
Mas a “revolução copernicana” de Clastres é certamente menos kan-
tiana do que indígena. O autor pretende deslocar o Estado do centro das
atenções e empreender um exame crítico da Razão Etnocêntrica que em-
basou a Antropologia Política, passando pelos evolucionistas, pela ecologia
cultural presente no Handbook of South American Indians, pela antropo-
logia social britânica e pela obra comparativa de um politólogo como W.
Lapierre – autor do Ensaio sobre o fundamento do poder político. Esse
exame crítico, contudo, não bastaria por si só, pois é apenas no “diálogo”
com os povos indígenas que a tal crítica pode se tornar profícua. É somente
levando a sério a filosofia política destes povos que isso se tornará possível.
E essa filosofia política – por definição “contra o Estado” – pode ser colhida
seja nos mitos, ritos e exegeses de sábios indígenas, seja nas práticas da
chefia, na guerra, nas acusações de feitiçaria.
Como escrevem Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman, a antropolo-
gia para Clastres é menos uma ciência do homem do que uma “ciência dos
selvagens”, no duplo sentido do termo: ciência que estuda os selvagens,
estudando a ciência dos selvagens; e põe em xeque, assim, as premissas
17 Michel Foucault. “Les mailles du pouvoir”. In: Denfet, D. & Ewald, F. (orgs.). Michel Foucault. “Les mailles du pouvoir”. In: Denfet, D. & Ewald, F. (orgs.). Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994.
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etnocêntricas da nossa ciência.18 A “revolução copernicana” de Clastres,
enunciada em “Copérnico e os selvagens”, não se separa, portanto, de um
deslocamento da antropologia como “discurso sobre os outros” para um
“dialogo com os outros”, tal como defendido por ele em um pequeno ensaio
em homenagem a Lévi-Strauss.19 É justamente nesse diálogo que se torna
possível descentrar o nosso olhar e compreender que o Estado não é a fina-
lidade das formas de organização das sociedades humanas, mas sim uma
forma particular, regional, e que outras sociedades respondem ao perigo da
irrupção de um aparelho de coerção separado da sociedade com um “con-
tra”, com uma “recusa”.
De modo geral, Clastres identifica o “contra o Estado” das “sociedades
primitivas” em dois aspectos centrais. O primeiro seria a “filosofia da chefia
indígena”, subtítulo de seu primeiro ensaio “Troca e poder”, publicado em
1962 na revista L’homme. O segundo aspecto seria a “máquina de guerra”,
apresentada no ensaio “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades
primitivas”, publicado na revista Libre, em 1977, ano de sua morte precoce.20
Em “Troca e poder” Clastres localiza a recusa do poder político coer-
citivo na figura do chefe ameríndio, “chefe sem poder”. Salta daí uma filoso-
fia política particular baseada na disjunção entre chefia e poder político co-
ercitivo, algo que contrasta fortemente com a imagem do homem de Estado,
aquele que controla os aparelhos de violência. A chefia seria, assim, apenas
o lugar aparente do poder21, nesse sentido ele representa o grupo à medida
que o faz aparecer. Em suma, o que faria um chefe é simplesmente conferir
aparência a seu “grupo”. Temos aí a inversão da relação de poder, tal como
18 Op. cit.
19 “Entre Silence et Dialogue”. In: BELLOUR, R. & Clément, C. (orgs.). “Entre Silence et Dialogue”. In: BELLOUR, R. & Clément, C. (orgs.). Claude Lévi-Strauss. Paris: Galli-mard, 1979.
20 As revistas em questão dizem muito do percurso do autor. Num primeiro momento, ele está vin-culado ao Laboratoire d’Anthropologie Sociale, coordenado por Lévi-Strauss, fundador, aliás, da revista L’homme. Num segundo momento, ele se associa ao grupo “Socialismo e barbárie”, encabeçado por Lefort e Castoriadis, ambos filósofos. Para uma discussão sobre a relação de Clastres com esses dois grupos de intelectuais, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro a Arqueologia da violência; op. cit.
21 Ver interpretação de Marc Richir para a “filosofia da chefia indígena”. “Quelques réflexions épistémologi-ques préliminaires sur le concept de sociétés contre l’État”. In: Abensour, M. (org.), L’Esprit des lois sauvages: Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie politique. Paris: Seuil, 1987.
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concebida pela filosofia política moderna: não é o chefe que exerce poder so-
bre o grupo, mas o grupo que exerce poder sobre ele; dito de outro modo, ele
é um prisioneiro do grupo. O “poder” – se ele existe – está com o grupo, está
com a sociedade, e nisso reside o “contra o Estado”, no sentido de um meca-
nismo – uma tecnologia, para usar o termo de Foucault – contra o exercício
do poder político e sua concentração em alguém ou em algum aparelho que
ganha autonomia em relação à sociedade. Mas lembremos: este chefe não
tem poder, mas tem prestígio, ele não é qualquer um. Diferentemente dos
demais, ele detém um privilégio: a poliginia. Mas este privilégio se dá às cus-
tas de uma dívida imensa: ele terá de ser generoso, manifestar o dom da ora-
tória e agir como pacificador. Mais uma vez a inversão na relação de poder:
não é o chefe que endivida o grupo, fazendo-lhe pagar tributos, mas o grupo
que o torna endividado e, portanto, “preso”. Clastres sugere que a chefia
consiste numa ruptura no movimento de reciprocidade – de cônjuges, bens
e discursos – que funda as relações sociais, como propôs Lévi-Strauss. E
essa ruptura produziria uma relação de poder potencial que os indígenas
souberam neutralizar, invertendo o seu vetor. É nesse sentido que eles são
contra o Estado: eles reconhecem o poder que pode irromper de uma assi-
metria, e cuidam para dissipá-lo. Eles negam à Palavra do chefe o lugar de
signo, capaz de comunicar uma mensagem de mando, transformando-a em
puro valor, aquilo que constitui o prestígio do chefe na medida em que se
compromete a produzir um discurso antes de tudo Belo, que diz o Bem da
sociedade. Se o chefe adquire um privilegio, a poliginia, isso lhe custará a
contração de uma dívida impagável, já que as mulheres são o bem supremo,
logo insubstituíveis, como mostrou Lévi-Strauss. E se o chefe é aquele que
possui o dom da oratória, ao conteúdo desta deverá ser vazio, para não dizer
o mando, mas para enaltecer a linguagem.
Em “Arqueologia da violência” Clastres agrega a essa filosofia da che-
fia indígena um outro aspecto da conjuração do poder político coercitivo:
a guerra. Note-se que quando Clastres escreveu “Troca e poder”, ele ainda
não tinha feito pesquisa de campo, tendo aproveitado as etnografias de ter-
ceiros, bem como o compêndio contido no Handbook of South American
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Indians, organizado por Julian Steward. Já quando escreveu “Arqueologia
da violência”, ele tinha passado por quatro diferentes grupos, e estava so-
bretudo impactado com a breve experiência entre os Yanomami, entre os
quais a guerra parecia ser uma realidade inescapável.22 Para Clastres, as so-
ciedades indígenas recusam a unificação política em nome de comunidades
pequenas e autônomas do ponto de vista político e econômico; e a maneira
de manter essa autonomia seria a perpetuação de um estado de guerra, res-
ponsável por um processo contínuo de fragmentação social. A guerra – em
seu sentido tanto físico como metafísico – é, para Clastres, o que “multipli-
ca o múltiplo”.23 A guerra é, nesse sentido, contra o Estado, e as “socieda-
des primitivas”, “para-a-guerra”. Essas comunidades indígenas autônomas
e autárquicas eram descritas pelo autor como “comunidades indivisas”, isto
é, como não baseadas em relações entre dominantes e dominados. Para ele,
sequer a diferença entre homens e mulheres poderia ser pensada ali como
Divisão, uma vez que não está baseada na expropriação ou na dominação,
mas sim na complementaridade. Se em “Troca e poder” a violência é con-
tra a sociedade”, é a arma do Estado, em “Arqueologia da violência”, outra
forma de violência – não mais interna, e sim interna – passa a ser aquilo
que se opõe ao Estado, agora fundado num desenvolvimento da troca. A
violência guerreira aparece em “Arqueologia da violência”como interrup-
ção de um ciclo de trocas – desta vez entre as diferentes comunidades –,
trocas que podem agir em prol da unificação política. E a política “primiti-
va”, se assim podemos chamá-la, não é – ao contrário do que prescrevem as
nossas filosofias políticas – uma política da unificação, ela é, isso sim, uma
política da multiplicação, da multiplicidade.24
22 Para uma análise da guerra yanomami, ver Rogerio Do Pateo. Niyayu: relações de antagonismo e aliança entre os Yanomam da Serra de Surucucus (RR). Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2005.
23 “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas”. In: Arqueologia da violência, op. cit.
24 Para uma reconsideração dessa teoria anti-troquista da guerra tendo em vista a idéia deleuziana de multiplicidade, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro para Arqueologia da violência; op. cit.
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É nesse aspecto que Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores de Mil
platôs, sentem-se particularmente atraídos pela “máquina de guerra” ilu-
minada por Clastres: para eles, essa máquina é o que impede toda unifica-
ção, seja de uma forma política – a forma-Estado – seja de uma forma de
pensamento – a ciência régia.25 Ainda que não tenha elaborado essa idéia
de maneira explícita, Clastres não dissociou a filosofia política indígena de
uma epistemologia ou mesmo de uma ontologia “contra o Estado”. Esse as-
pecto vem à tona quando lemos seus escritos sobre as exegeses de xamãs ou
sábios guarani. Um desses sábios – homem mbyá de uma aldeia paraguaia
– teria confessado a Clastres a aversão filosófica de seu povo a tudo aquilo
que se assemelhe ao Um. Ele associava tudo o que é indesejável ao Um, e
tudo o que é desejável ao Dois, o Um sendo o número da terra imperfeita
em que habitamos, e o Dois, o número da terra sem mal, a qual os Guarani
não cessam de buscar e onde todos são ao mesmo tempo homens e deuses,
isto é, recusam a fronteira entre a humanidade e a divindade. Esta reflexão,
traçada muito rapidamente no ensaio “Do Um sem o Múltiplo”, careceria
certamente de um desdobramento maior. Voltarei a ela mais adiante, quan-
do for tratar de uma formulação quer encontramos em Viveiros de Castro:
“o perspectivismo é a cosmologia contra o Estado”.
Limites teóricos e históricos do “contra o Estado”
A obra de Pierre Clastres é inacabada em vários sentidos. Em pri-
meiro lugar, não há uma obra de síntese, mas sim dois conjuntos de ensaios
– estilo que se define pela sua abertura e por uma espécie de “desrepressão”
acadêmica –, uma monografia escrita em tom de crônica, Crônica dos ín-
dios Guayaki, e duas coletâneas de mitos e exegeses indígenas, dedicadas
respectivamente aos Guarani e Chulupi.26 Os conjuntos de ensaios, que
25 Ver, sobretudo, o platô 12 “1227: Traité de nomadologie: La machine de guerre”. In: In: Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie II. Paris, Eds. de Minuit, 1980.
26 Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. São Paulo: Ed. 34, [1972]1995. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos Guarani. Campinas: Papirus, [1974]1990. Mythologie des indiens chulupi. Edição preparada por Michel Catry e Hélène Clastres. Paris: Bibliotèque de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales – Section des Sciences Réligieuses, vol. 98., 192.
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desdobram a idéia da “sociedade contra o Estado”, não estão livres de am-
biguidades que muitas vezes conduziram a críticas teóricas ásperas. Muitos
autores, menos ou mais críticos em relação a Clastres, o repreenderam por
tomar este “Estado” – que a sociedade primitiva é “contra” – de maneira
por demais vaga. E também pelo fato de ele transferir a coerção do Esta-
do para a sociedade, o que representaria outra forma de transcendência.
Clastres, em alguns de seus últimos ensaios – “O retorno das luzes”, “Os
marxistas e sua antropologia”27, por exemplo –, retrucou essas críticas ale-
gando que o que ele entende por Estado é simplesmente a imposição de
uma Divisão entre dominantes e dominados, e que ele não se considerava
propriamente um durkheimiano, visto que para ele a vida coletiva não to-
lheria a liberdade, o ponto é que teríamos a tendência de tomar a liberdade
na sua versão demasiadamente individual.
Os ensaios publicados em 1977, “Arqueologia da violência” e “Infor-
túnio do guerreiro selvagem”, teriam, por sua vez, problematizado o lugar
do Estado entre os indígenas ao se colocarem a pergunta de como a Divisão
poderia surgir numa sociedade que preza pela indivisão. Isso tornava a Divi-
são como horizonte possível, ainda que sua instauração fosse tomada como
acidente. Uma nota de pé de página incluída pelo editor da revista Libre no
ensaio “Infortúnio do guerreiro selvagem” revelava justamente o interesse de
Clastres em refletir tanto sobre as ameaças de irrupção de lideranças e meca-
nismos centralizadores – tal o caso dos Tupi antigos e dos povos do Chaco –
como a arquitetura do Estado Inca que, por mais que tivesse sido instaurado
pela Divisão, não poderia ser simplesmente justaposto ao Estado-nação da
era capitalista, em que o etnocídio – abolição das diferenças, marca de todo
Estado – teria sido levado a enormes consequências. Seja como for, Clastres
deixou muitas veredas abertas, e isso inclui a ambiguidade de certas noções
por ele manuseadas, como a noção de “poder político”, bem como a prolife-
ração de certos paradoxos identificados nos diferentes devires das sociedades
indígenas. Um deles é a possibilidade da guerra, mecanismo por excelência
de recusa do Estado, se converter em instrumento de unificação e concen-
27 Ambos reunidos em Arqueologia da violência; op. cit.
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tração de poder. Outro, mais particular, seria o processo do profetismo tupi,
movimento liberador, que não raro recai num mecanismo de produção de
lideranças carismáticas de caráter coercitivo e centralizador, promovendo a
unificação de comunidades autônomas ou mesmo inimigas entre si.28
Pretendo tratar aqui o caráter paradoxal e a abertura ensaística em
Clastres como uma virtude, que pode ser atualizada nos estudos etnológicos
mais atuais. No entanto, é antes preciso considerar alguns afastamentos re-
alizados pelos antropólogos em relação à obra de Clastres. Tendo a ver estes
afastamentos como pertencendo a duas ordens. Em primeiro lugar, trata-se
de um afastamento que tem em vista o descompasso entre a idéia de “so-
ciedade contra o Estado” e os fatos empíricos, não apenas etnográficos, mas
também aqueles revelados pela historiografia e pela arqueologia. Em segun-
do lugar, trata-se de recusar uma visão fatalista no autor, que em muito resul-
ta da constatação de uma contradição inelutável entre a existência de socie-
dades indígenas num território reconhecido como parte de um Estado-nação.
Comecemos pelo primeiro ponto. Alguns etnólogos questionaram a
idéia do “chefe sem poder” clastreano, apontando situações em que chefes
deteriam de fato poder de mando e coerção, bem como controle sobre a
produção comunitária. O exemplos de certos líderes de guerra, reconheci-
dos pela sua força e pelo temor por eles causado, bem como de certos líde-
res xamânicos, estes também capazes de meter medo em seus seguidores
devido ao reconhecimento de sua capacidade de promover a vida e a morte,
passariam a ser acionados promovendo uma revisão sobre os lugares do
“poder político” nas terras baixas da América do Sul. Veja-se, nesse sentido,
as críticas de Fernando Santos Granero, que compara etnografias de dife-
rentes povos sul-americanos para frisar o aspecto controlador de “doação
de vida” – e, por conseguinte, de morte – dos chefes ameríndios,29 bem
28 Ver, a respeito dos paradoxos encerrados pela guerra e profetismo ameríndios, Sztutman; op. cit. Para uma definição clastreana da antropologia como “ciência paradoxal”, ver o “Posfácio” de Viveiros de Castro, op. cit.
29 Fernando Santos Granero. “Power, ideology and the ritual of producti on in Lowland South Ameri- Fernando Santos Granero. “Power, ideology and the ritual of production in Lowland South Ameri-ca”. In: Man, vol. 21, n. 4, 1986. “From prisioner of the group to darling of the gods: an approach to the issue of power in Lowland South America”. In: L’homme, vol. 126-128. Vital enemies: slavery, predation and the amerindian political economies of life. Austin: University of Texas, 2009.
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como os novos balanços sobre povos de língua arawak, que insistem em
reconhecer neles traços fortes de hierarquia e poder ritual.30 Um caso par-
ticular dessa crítica empírica às idéias clastreanas é certamente o dos estu-
dos sobre o alto Xingu, encabeçados por Michael Heckenberger. Cruzando
descobertas arqueológicas no Parque do Xingu com a etnografia entre os
Kuikuro (povo de língua caribe), o autor chega a comparar ideologia da
chefia alto-xinguana com os esquemas polinésios, em que uma teoria da
substância conduziria a uma espécie de teocracia.31
O grande ímpeto da crítica americanista às idéias de Clastres parece-
-me ter sido a “nova síntese” produzida entre estudos sobre as terras bai-
xas sul-americanas que pretenderam cruzar perspectivas da etnologia, da
historiografia e da arqueologia. O termo “nova síntese” foi conferido pela
arqueóloga Anna Roosevelt, que teria evidenciado na várzea amazônica –
mais especificamente nas regiões de Santarém e Marajó – a presença de
formas políticas por assim dizer “complexas”. Em linhas gerais, Roosevelt
caminhou na contramão dos estudos de ecologia cultural que tomavam a
Amazônia como território improvável para o florescimento de formas po-
líticas complexas – tais os Estados ou proto-Estados, “cacicados” – devido
às suas condições ambientais. Os vestígios da civilização marajoara, por
exemplo, costumavam ser identificados a uma difusão mal-fadada da re-
gião andina. Roosevelt, de sua parte, interpretou a queda dos cacicados
amazônicos pela ação desestruturadora da Conquista européia, e leu todo
esse processo por meio de um cruzamento entre evidências (materiais) ar-
queológicas e relatos etno-históricos, que corroboravam com o retrato de
grandes civilizações instaladas na várzea.32
A imagem da “nova síntese” sobre a Amazônia, com toda sua pro-
fundidade histórica, contrasta fortemente com a imagem da “sociedade pri-
30 Jonathan Hill & Fernando Santos Granero (orgs.). Comparative arawakan histories: rethinking lan-guage family and culture área in Amazonia. Chicago: University of Illinois Pres, 2002.
31 Michael Heckenberger. Michael Heckenberger. The ecology of power: culture, place and personhood in the Southern Ama-zon (AD 1000-2000). Nova York: Routledge, 2005.
32Roosevelt, Anna. “Amazonian anthropology: strategy for a new synthesis”. In: Roosevelt, A. (ed.). Roosevelt, Anna. “Amazonian anthropology: strategy for a new synthesis”. In: Roosevelt, A. (ed.). Ama-zonian indians: from prehistory to the present. Tucson: The University of Arizona Press.
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mitiva” de Clastres. Se a primeira vangloria-se pela sua cientificidade dada
na capacidade de refazer um longo percurso temporal, a segunda é ataca-
da pelo seu ensaísmo e pela sua insistência de recobrir um Ser do mundo
primitivo. A sociedade “contra o Estado” seria, sob a tal síntese, provavel-
mente o resultado da ação aterrorizante da Conquista. Seria, nesse sentido,
menos uma escolha dos indígenas do que do próprio Clastres. A “sociedade
contra o Estado”, ou melhor, “sem Estado”, seria resultado de uma involu-
ção indesejada, de uma dispersão das calhas dos grandes rios em direção
à terra firme amazônica, em que o atomismo sociopolítico figuraria como
mais adequado.33 Michael Heckenberger, na esteira de Roosevelt mas se
afastando dela, propõe uma etno-arqueologia capaz de cruzar arqueologia,
história e etnografia. Em seu trabalho sobre com os Kuikuro, como vimos,
Heckenberger revela a centralidade da chefia, que não está dissociada de
um poder coercitivo, implicando mecanismos rituais de validação e, assim,
uma espécie de “teocracia”. O que veríamos hoje em uma escala reduzida
teria, no passado, uma versão ampliada: um sistema regional integrado e
hierarquizado revelando uma ideologia que associa chefia e poder ritual.34
Todas essas críticas de ordem empírica teriam o poder de desfazer a
força de uma idéia como a da “sociedade contra o Estado”, transformando-
-a numa ideologia romântica e datada? Como apontei há pouco, talvez a
virtude da obra de Clastres resida nas ambiguidades e nos paradoxos por
ele enunciados. E ele estava bastante ciente de que a idéia da “sociedade
primitiva” – o seu Ser, para mantermos o termo do autor – não corres-
pondia exatamente ao devir histórico das sociedades ameríndias. Ele esta-
va igualmente ciente da diversidade das formas indígenas e das maneiras
pelas quais estas “tangenciavam” formas políticas mais “complexas”, por
33 O caráter problemático dessa dicotomia “complexidade das redes sociais no passado” versus “ato-mismo sociológico no presente” – vigente tanto nos textos dos arqueólogos e historiadores como dos etnólogos – foi discutido na coletânea Redes de relações nas Guianas (São Paulo: Associação Humani-tas Editorial/NHII/Fapesp, 2005), organizada por Dominique Gallois. Note-se, a este respeito, as análises presentes nos artigos de Denise Fajardo Grupioni (“Tempo e espaço”) e de Rogério Do Pateo (“Guerra e devoração”), a primeira focalizando a organização social e o parentesco, o segundo focalizando a guerra e suas implicações, sempre tendo em vista as sociedades indígenas da região das Guianas, norte-amazônico.
34 Ver nota 31. Uma crítica ao modelo de Heckenberger sobre a política xinguana pode ser encontrada em Figueiredo, op. cit.
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exemplo, aldeias populosas, conjuntos regionais liderados por chefes de
guerra, distinções hierárquicas e até mesmo aristocracias. Leiam-se, nes-
se sentido, as suas considerações em dois artigos pouco explorados como
“Independência e exogamia” e “Infortúnio do guerreiro selvagem”.35 Mas
se essas sociedades “tangenciavam” tais formas, isso não significa que elas
sucumbiam a elas, isso não enfraquecia seus poderosos mecanismos de
conjuração do poder político. A “sociedade contra o Estado”, diriam Gilles
Deleuze e Félix Guattari na homenagem que fazem ao autor em Mil platôs,
seria melhor vista como um vetor inerente a toda sociedade. Ora, as socie-
dades indígenas o fariam funcionar de maneira mais eficaz, despendendo
mais energia com ela. E o vetor estatal, nelas também presente, seria re-
batido com maior ênfase, sendo conjurado a todo momento; o que as dis-
tancia de nossa sociedade, em que este vetor se enrijeceu de tal modo que
já não pode ceder aos contra-poderes, a não ser por meios radicais, a que
convencionamos chamar de “revoluções”.
De todo modo, tendo em vista a “nova síntese” entre etnologia, ar-
queologia e historiografia seria preciso problematizar a noção de “comple-
xidade sociopolítica” que aí emerge. Isso porque essa noção retoma a razão
evolucionista, criticada tão bem por Clastres, razão que equaciona o ganho
em “complexidade” com a aproximação à forma do Estado. Levando a sério
a revolução copernicana de Clastres, podemos dizer que é preciso subme-
ter essa idéia de “complexidade” a um escrutínio que inclui tanto a análise
crítica dos enunciados dos autores dessa “nova síntese” como o referido
“diálogo” com as filosofias e práticas políticas indígenas. Se avançarmos na
consideração sobre o que esses povos pensam com relação às suas formas
sociopolíticas e às possibilidades de emergência de algo como um poder
coercitivo poderemos dar novos ares ao problema da “complexidade”, o que
envolveria uma compreensão mais adequada do caráter assimétrico das re-
lações nas terras baixas da América do Sul. Levando a sério o que Marilyn
35 Para uma análise desses textos de Clastres, ver Lima & Goldman, “Prefácio” (op. Cit.), Sztutman (“Le vertige des guerriers et prophètes sauvages: déploiement d’un paradoxe clastrien” In: Abensour, M. & Kupiec, A. Cahiers Pierre Clastres; no prelo), Figueiredo (“Eleições na aldeia...”, op. Cit.) e Viveiros de Castro (“Posfácio”, op. cit.).
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Strathern escreveu sobre o fato de a oposição entre simples e complexo ser
mais um problema de escala do que de realidade,36 poderíamos admitir
que a complexidade indígena reside não na evolução ou na involução de
formas na história, mas sim na alternância ou “pulsação” entre as formas, o
que incluiria a atenção ao modo pelo qual os indígenas tangenciam experi-
ências que tendemos a identificar com as nossas concepções de Estado e de
poder político. Voltarei a esse ponto adiante.
O afastamento dessa “nova síntese” com relação à obra de Clastres
tem um sentido oculto, que é político – como não poderia deixar de ser.
Ao assumir que o passado dos povos das terras baixas da América do Sul é
marcado por formas sociopolíticas complexas que não se reduzem à difusão
dos Andes, estes estudos forjam um passado glorioso e dão dignidade polí-
tica a povos descritos como pré-políticos ou apolíticos. O problema é, mais
uma vez, equacionar dignidade política com Estado. Por que não podemos
pensar que é possível ser digno – no sentido de ser agente de seu próprio
destino, de governar a si mesmo contra a ameaça de outros – sem sucumbir
ao Estado, ao assumir que a melhor forma de viver é recusar a centralização
de um poder coercitivo? Mais uma vez uma pergunta clastreana se faz eco-
ar: qual, afinal, o sentido da política?
Há uma segunda ordem que compõe o afastamento em relação à
obra de Clastres, e que é política não apenas num sentido oculto. Faço refe-
rência mais propriamente à experiência brasileira, desenhada a partir dos
anos 1980, de inclusão de maneira positiva da diferença cultural – e, mais
especificamente, da questão indígena – na pauta do Estado-nação moder-
no. Essa experiência de certa maneira contradiz a máxima clastreana de
que “todo Estado é por essência etnocida”, isto é, o fundamento do Estado
é suprimir as diferenças culturais para assim impor a unificação e a uni-
formidade, para efetuar a equação entre Estado e nação, e a equação entre
nação, cultura e língua. Faço referência ao famoso ensaio “Do etnocídio”,
de 1974, e às repetidas constatações de Clastres de que o avanço dos Esta-
dos nacionais e das economias de mercado iria necessariamente destruir as
36 Marilyn Strathern. Partial connections. Oxford: Altamira Press, 2005.
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sociedades indígenas.37 Marshall Sahlins reconheceria aí talvez os traços
de um “pessimismo sentimental”, uma vez que ele está mais interessado em
lançar luz sobre a originalidade das estratégias indígenas de resistência do
que em corroborar com a idéia de um ocaso inexorável .38
Não podemos esquecer, no entanto, que no momento em que Clas-
tres escrevia – os anos 1960 e 1970 – a tal crônica de uma morte anunciada
não parecia tão implausível. Este era o tempo da expansão radical e preda-
tória do Estado e da economia capitalista – e aqui me refiro sobretudo ao
Brasil, ainda que ele não circunscreva sua observação neste país –, que de-
cretava os índios como entraves para a soberania e para o desenvolvimento,
tendo como única solução a sua integração na sociedade sob a forma de
camponeses. Como sugeria Darcy Ribeiro, o destino dos povos indígenas
era a dissolução de suas diferenças em uma “indianidade genérica”.39 Ou,
como pensava Roberto Cardoso, os índios estariam se transformando em
camponeses e sua única saída era tomar consciência de suas diferentes
identidades étnicas para assim resistir ao mundo dos brancos.40 Os anos
1980 fizeram, no entanto, irromper um novo otimismo, ainda que o qua-
dro ameaçador não tenha de modo algum cessado. A primeira razão para
esse suposto otimismo é que o decréscimo populacional e o processo de
homogeneização foram revertidos: os índios não desapareceram, nem dei-
xaram de lado suas diferenças. A segunda razão foi o desenvolvimento de
movimentos indígenas, que passavam a reivindicar direitos territoriais e
transformavam identidades em armas políticas. A luta política travada pelo
cruzamento dos movimentos indígenas e de diferentes setores do indige-
nismo acabaria por surtir forte efeito sobre a Constituinte de 1988.41
37 Arqueologia da violência, op. cit.
38 Marshall Sahlins. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em extinção”. In: Mana, vol. 3, n. 1 e 2, 1997.
39 Darcy Ribeiro. Os índios e a civilização. Petropólis: Ed. Vozes, [1970]1993.
40 Roberto Cardoso de Oliveira. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: Ed. da Unicamp, [1964]1995.
41 Ver, entre outros, Bruce Albert. “Associações indígenas e desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira”. In: Ricardo, Beto (org.). Povos Indígenas no Brasil: 1995-2000. São Paulo: ISA, 2000.
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Como resume o site do Instituto Socioambiental, com relação às
constituições anteriores e ao Estatuto do Índio de 1973, a constituição de
1988 promoveu duas inovações conceituais fundamentais. A primeira é o
abandono de uma perspectiva assimilacionista: índio deixa de ser conside-
rado uma categoria transitória, fadada ao desaparecimento. É nesse senti-
do que se inscreve o direito à diferença, algo que reverbera no reconheci-
mento da diversidade cultural linguística bem como nas propostas de uma
educação diferenciada. A segunda inovação diz respeito aos direitos sobre
a terra, entendidos como direitos originários, anteriores ao próprio Estado.
Somado a isso estaria a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho – ratificada no Brasil apenas em 2002 –, que reforça o princípio
de auto-determinação dos povos, assegurando a vigência do direito costu-
meiro interno e participação políticas dos povos indígenas nas decisões que
os afetam. Como vemos, a partir dos anos 1980, há, no Brasil, uma conjun-
ção entre luta política – indigenista e indígena – e a conquista de direitos,
trazendo a diferença cultural para a pauta do Estado.
Os antropólogos, é claro, tiveram grande parte nisso. Sua militância
sempre consistiu em exigir do Estado a garantia dos direitos dos índios
bem como a promoção de políticas públicas com o intuito de favorecê-los.
Era preciso forjar uma certa ação política, e esta tinha de se apoiar na fer-
ramenta por excelência da democracia representativa: o direito. O suposto
pessimismo de Clastres diante do embate dos povos indígenas com o Esta-
do aparecia, nesse sentido, como uma espécie de paralisia.
Em um artigo intitulado “O futuro da questão indígena”, Manuela
Carneiro da Cunha faz um elogio dos sistemas multiétnicos como condi-
ção de sobrevivência dos povos indígenas, e sinaliza a necessidade de im-
plementar parcerias entre estes povos, o Estado e setores da sociedade ci-
vil.42 Para ela, o desafio do indigenismo dos anos 1980 era como se valer
do Estado e do Direito contra eles mesmos, ou seja, a favor dos projetos de
autonomia dos povos. Longe de recair num otimismo demasiado ou num
simplismo, as reflexões de Carneiro da Cunha parecem atentar para o fato
42 In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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de que, em vez de nos rendermos ao paradoxo implícito na inclusão dos
índios na pauta do Estado, é preciso fazer esse paradoxo render; ou seja,
é preciso extrair do Estado e do Direto armas para a resistência dos índios.
A idéia de que um certo Estado poderia conter as diferenças sem
destruí-las aparece também nas reflexões de David Maybury-Lewis, etnó-
grafo dos Xavante, coordenador do famoso projeto Harvard Brasil Central
na década de 1970 e também fundador da OnG Cultural Survival. Num ar-
tigo intitulado “Vivendo Leviatan: os grupos étnicos e o Estado”, Maybury-
-Lewis escreve que a proposta da criação de Estados multiétnicos deve par-
tir da premissa de que “não há lei natural que impeça que ‘nacionalidades’
ou o que hoje chamaríamos de grupos étnicos convivam com um único
Estado”.43 Desse modo, a asserção habitual, tanto na visão denunciadora
da “corrente do etnocídio” como na perspectiva desenvolvimentista, de que
as demandas do Estado são necessariamente contraditórias com as aspira-
ções dos grupos étnicos pode ser revista considerando-se alternativas para
as relações entre os Estados nacionais e as minorias étnicas. Para Maybury-
-Lewis, é preciso não se ater unicamente a denúncias, mas estabelecer an-
tes de tudo um plano de ação política capaz de transformar o Estado, que
deixaria de ser visto como Leviatã para abrigar diferenças.
No século XXI há novas experiências de inclusão da diversidade
na pauta Estado ainda mais ousadas. Refiro-me àquelas experiências que
ocorreram na Bolívia e no Equador com suas novas Constituições Plurina-
cionais. Como celebra Boaventura de Sousa Santos, em palestra proferida
na Assembléia Constituinte do Equador, em 2008, estamos diante de um
processo de refundação do Estado, não mais o velho Estado-nação mono-
cultural moderno, mas o Estado plurinacional. Para Santos, essa refunda-
ção seria um exemplo de unificação do Estado sem a idéia de uniformidade,
seria um exemplo de convivência democrática entre sociedades descentra-
lizadas, que não estaria livre de tensões. Nas palavras deste autor, temos
de “inventar a democracia no sentido intercultural e o Estado num sen-
tido plurinacional. A crise do Estado liberal moderno é irreversível e por
43 In: In: Anuário Antropológico 83, 1984, p. 103.
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isso o Estado equatoriano, se quer inovar será um Estado experimental e
isso é realmente novo”.44 Veja-se, em consonância a este discurso, a fala de
Luís Macas, político e intelectual indígena, de origem Kichwa, também na
Constituinte do Equador: “Estamos condenados a viver juntos. Não vamos
poder sobreviver no sistema se não ajudarmos, coletivamente, indígenas
e não indígenas, a romper com o sistema”. A luta contra a absorção pelo
Estado se daria, assim, por meio da apropriação das próprias armas do Es-
tado. E Macas continua: Nossa “proposta [é a] de descolonizar o Estado e
o propor como plurinacional, [é] ao menos conseguir que essa constituinte
diminua a distância entre a cidadania equatoriana e preexistência das na-
cionalidades indígenas ou originárias”.45
Com este exemplo equatoriano me distanciei bastante da realidade
brasileira, onde a questão indígena tem contornos bastante diversos. No
Brasil, a construção de uma consciência pan-indígena – de um indianismo
político propriamente dito – seria bastante recente se comparada a outros
países da América Latina. Isso não implica a impossibilidade de refundação
do Estado, mas sim a necessidade de um maior aprendizado da experiên-
cia moderna do Estado. Poderíamos objetar que a construção desses Esta-
dos plurinacionais na Bolívia e no Equador, em que a população declarada
como indígena é imensa, teria como modelo um Estado indígena, de matriz
andina, capaz de garantir um certo equilíbrio entre a imposição de uma
unificação política e ritual e a autonomia das comunidades agrícolas. Como
evidencia Salvador Schavelzon, em seu estudo minucioso sobre o processo
da Constituinte na Bolívia (processo concluído em março de 2009), uma
das questões centrais ali discutidas foi o lugar das comunidades agrárias,
estas que representariam um “contra o Estado” dentro do Estado. Ou seja,
o desafio seria como trazer para o Estado o sentido da autonomia dessas
comunidades, e assim pensar “um Estado que também fosse um não-
44 Boaventura Sousa Santos. “Las paradojas de nuestro tiempo y la plurinacionalidad”. In: Acosta, A. & Martínez, E. (orgs.). Plurinacionalidad: democracia en la diversidad. Quito: Eds. Abya-Yala, 2009; p. 61.
45 Luis Macas. “Construyendo desde la historia: resistencia del movimiento indigena en el Ecuador”. In: In: Acosta, A. & Martínez, E. (orgs.). Plurinacionalidad: democracia en la diversidad. Quito: Eds. Abya-Yala, 2009; p. 98.
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-Estado”.46 Um desafio ainda maior seria o de pensar uma refundação do
Estado no caso de certos atores indígenas das terras baixas sul-americanas,
para quem o Estado, seja qual for sua geometria, permanece uma experiên-
cia alienígena, ainda que não destituída de possibilidade.
Alternância e criatividade nas políticas ameríndias
Realizei toda essa digressão, de modo bastante impressionista, para
evidenciar uma espécie de contrapartida histórica à idéia clastreana de que
o Estado e os povos indígenas são realidades absolutamente contraditórias.
Idéia que encontra abrigo no tema do “mau encontro” desenvolvido por
Étienne de La Boétie em seu Discurso sobre a servidão voluntária47: mau
encontro como acidente irreversível, como perda irreparável da liberdade
que constitui o cerne de toda humanidade; mau encontro como desnatu-
ração irreversível. Não acredito que a contradição apontada por Clastres
possa ser totalmente diluída. Seja qual for a experiência, sempre persis-
te um paradoxo ou uma tensão, persiste também o perigo da redução dos
povos a “nações”, noções não menos unificadoras e majoritárias. Persiste,
portanto, o perigo das políticas indígenas se enrijecerem na interface com
a nossa política, perderem justamente o que há de mais interessante nelas:
esse movimento de recusa da unificação, essa flexibilidade de pulveriza os
focos de poder e impede concentrações, essas linhas de fuga que permitem
a tal “multiplicação do múltiplo”. Com a antropologia das últimas décadas,
aprendemos a ser mais otimistas, e a ver que esses vetores flexíveis e fugi-
dios das políticas indígenas podem conviver e mesmo combinar-se com os
vetores rígidos de uma política de Estado de modo a produzir resistência
e autodeterminação. No entanto, é preciso valer-se do pessimismo menos
sentimental do que heurístico de Pierre Clastres para nos darmos conta dos
riscos envolvidos numa politização dura e, ao mesmo tempo, das potencia-
46 Salvador Schavelzon. Assembléia constituinte na Bolívia: etnografia do nascimento de um Estado plurinacional. Tese de doutorado. Museu Nacional/UFRJ, 2010.
47 São Paulo: Ed. Brasiliense, [escrito provavelmente em 1549]1982.
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lidades de uma política selvagem, que insiste em recusar as unificações.
Uma nova antropologia política tem de cuidar para não reduzir o problema
à interação dos povos indígenas com o Estado e, então, conceitualizar os
mecanismos criativos destes povos para se organizar e agir politicamente
para além e aquém da esfera do Estado e da sociedade envolvente. Pen-
so que esses mecanismos não deixaram de envolver a filosofia da chefia
indígena e a “multiplicação do múltiplo” da guerra, que não se reduzem
à política de homens, revelando toda uma cosmopolítica. Não deixaram,
enfim, de envolver o “contra o Estado”, como vemos no exemplo boliviano
de refundação do Estado apresentado por Schavelzon.
Em vista da experiência brasileira, nos últimos 20 anos, de criação
de associações, formato legal que permite aos índios alegar representativi-
dade perante o Estado brasileiro, Manuela Carneiro da Cunha se pergunta
o quê e quem essas associações representam. Ela constata que essas asso-
ciações não são figuras perenes, mas sim circunstanciais dependendo de
projetos de naturezas diversas. A criação de associações que reúnem mais
de uma comunidade ou mesmo mais de uma etnia colocaria um problema
para a idéia de comunidade como unidade político-econômica autônoma,
idéia que certamente não deixou de vigir. O resultado disso seriam confli-
tos e fissões, bem como crises de representatividade. Nesse ponto, e não
por acaso, Carneiro da Cunha recorda Clastres: “é possível, escreve ela, que
estes povos tivessem instituições diferentes das nossas numa escala muito
mais ampla do que conseguimos perceber por estarmos confinados numa
ontologia política gerada no século XVII”.48 Sim, o problema é de ontologia
– no sentido de que o problema é mais profundo do que pensamos, pois
toda filosofia política está fundada numa base ontológica especifica, numa
definição menos ou mais precisa do que vem a ser a humanidade.49
A diferença entre as ontologias modernas e as indígenas não seria
tão pequena a ponto de imaginarmos que eles possam ter uma política
48 “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas e outros ensaios; op. cit, p. 338.
49 Ver, para esse debate tendo em vistas as filosofias políticas ocidentais, Marshall Sahlins The western illusion of human nature. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2008.
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idêntica à nossa. É preciso levar a sério essas diferenças – e suas escolhas
particulares – quando perseguimos as políticas indígenas, sejam aquelas
confinadas no interior das aldeias, sejam aquelas que ocorrem em regiões
de interstício. É preciso, pois, compreender como se dá a criação de novas
formas de associação e de representatividade a partir de formas preexisten-
tes, sem no entanto cair no problema indecidível da autenticidade.
A reflexão de Carneiro da Cunha sobre as associações indígenas, que
se insere num movimento maior de auto-representação diante da interface
com o mundo moderno, atenta para a vigência de mecanismos de organi-
zação, ação e segmentaridade irredutíveis ao modelo moderno de política,
mecanismos que revelam não formas fixas, mas uma criatividade política
propriamente indígena. Criatividade capaz de atualizar a filosofia da chefia,
a máquina de guerra ou outras faces do “Contra-um” ameríndio. O exemplo
das associações, assim como o da entrada dos índios na trama da política
partidária, ora como eleitores ora como candidatos, revelam não apenas o
aprendizado deles de um novo fazer política e se representar como índios e
como “etnias” para Outrem, mas sobretudo a mobilização de mecanismos
conhecidos e desejados.
A maneira pela qual os índios entram no mundo da nossa “política”
– a democracia representativa, com suas exigências de unificação e de dele-
gação – só poderia ser compreendida, desse modo, a partir das motivações
indígenas, e estas implicam mecanismos por vezes estranhos à nossa prá-
tica política. Essa reflexão só poderia caminhar com a produção de novas
etnografias capazes de perseguir a constituição de “novas” formas tanto de
liderança como de produção de coletivos. Novas, ou melhor, relativamente
novas, já que pressupõem relações com formas preexistentes. Essas etno-
grafias poderão responder quando estamos diante de um enrijecimento ou
quando estamos diante da atualização do que Clastres, vale repetir, chamou
de filosofia da chefia indígena e de máquina guerreira.
Aposto, portanto, numa releitura atual das idéias de Pierre Clastres,
releitura que permite, por exemplo, voltar a pensar a relação entre povos
indígenas e o Estado menos como uma contradição sem qualquer chan-
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ce de resolução, do que como uma tensão inelutável que faz, no entanto,
brotar outras formas de resistência, outros “contras”. Como evidenciaram
Deleuze e Guattari em sua homenagem ao autor, o “contra o Estado” per-
manece no interior do próprio Estado, fazendo com que o mau encontro
jamais se complete.50 É assim que vimos mesmo no interior da política
partidária, erguerem-se movimentos contrários à concentração do poder e
à consolidação de uma forma de representação política. Isso foi o que nos
evidenciaram, entre outros, os estudos de Marina Vanzolini Figueiredo e
Florbela Ribeiro citados no início deste ensaio. Aposto, ademais, numa re-
leitura das idéias de Clastres que permitam pensar, num plano agora mais
teórico do que histórico, o que significaria esse Estado, esse poder político,
contra o qual as sociedades indígenas se voltariam contra.
Retornemos, por ora, ao problema das tais formas complexas, ao
qual fazem referência os autores da “nova síntese” entre arqueologia, his-
toriografia e etnologia. O problema da conceitualização destas formas está
justamente na insistência na metáfora do Estado. Com efeito, tais formas
aparecem como caminhos em direção ao Estado, e tudo se passa como se
a única maneira de reversão desse caminho tenha sido a tragédia da Con-
quista européia. Se os índios não tivessem sido interpelados pelos europeus
teriam eles se tornado sociedades com ou para o Estado como as européias?
Se eles desenvolvessem um Estado este poderia tomar uma forma absolu-
tamente diversa da nossa, a ponto de duvidarmos se ele poderia ser mes-
mo chamado de Estado? Sabemos muito pouco a esse respeito. Mas nossas
suspeitas podem conduzir a conclusões diversas. Por exemplo, podem fazer
com que movimentos vistos como “complexificação sociopolítica” sejam
tomados como movimentos previstos e mesmo desejados pelos povos in-
dígenas, mas nem por isso – ou talvez por isso mesmo – podemos admitir
que eles sejam irreversíveis.
Poderíamos concluir que esses movimentos de complexificação so-
ciopolítica evidenciados pelos arqueólogos e etno-historiadores integram,
50 Este seria, por exemplo, o sentido de uma noção como a de “linha de fuga”, esta que impede o enrijecimento das linhas de segmentaridade.
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de fato, uma oscilação ou alternância entre diferentes formas, menos ou
mais complexas. Dito de outro modo, o que haveria de complexo nesse
movimento não seria um momento ou outro, mas a própria oscilação, a
própria alternância entre vetores centrífugos e centrípetos, entre fases de
concentração e fases dispersão. O retrato de lideranças mais fortes, beiran-
do a centralização e a coerção, e de esboços de unificação política, dados
por um maior grau de integração regional, tal como presente na análise dos
vestígios arqueológicos e na historiografia, poderia corresponder menos a
um caminho inelutável e irreversível a uma forma de tipo Estado do que
a um momento de uma alternância incessante e mesmo prevista. Beatriz
Perrone-Moisés, debruçada sobre relatos acerca de confederações entre os
povos caribe da região das Guianas e em outras partes da América, con-
ceitualizou esse movimento oscilante – de certo modo, pendular – como
um “dualismo em perpétuo desequilíbrio”, propriedade que Lévi-Strauss
reconhece como motor de todo pensamento ameríndio.51 Em um ensaio
escrito em conjunto, desenvolvemos a idéia de que esse movimento pen-
dular deveria ser pensado como um elemento estrutural de longa duração,
sendo portanto capaz de conferir alguma continuidade entre os eventos do
passado – apreendidos pelos arqueólogos e historiadores – e os eventos do
presente – apreendidos pela etnografia.52 Tentamos manter o sentido mais
dinâmico do termo “estrutura”, como algo mais próximo de uma matriz
intelectual para a criação de novas formas sociopolíticas. Essa alternância
ocorreria, via de regra, entre um pólo dispersivo e um pólo centralizador,
evitando toda tendência de fixação em um deles, isto é, mantendo-se con-
trária tanto à configuração de uma interioridade enrijecida como o Esta-
do quanto a uma situação de pulverização total, significando a abolição da
toda vida social.
51 Beatriz Perrone-Moisés. “Notas sobre uma certa confederação guianense”. In: Anais do Colóquio “Guiana Ameríndia: Etnologia e História, coordenado por Dominique T. Gallois. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006. “O mistério das confederações”. Manuscrito inédito, 2008.
52 Beatriz Perrone-Moisés & Renato Sztutman. “Dualismo em perpétuo desequilíbrio feito política”. Manuscrito inédito.
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Como demonstrei em minha tese de doutorado, que partia da recon-
sideração dos materiais sobre os antigos Tupi para propor uma compara-
ção mais ampla com outros materiais históricos e etnográficos, profetas e
chefes de guerra emergiam em diferentes momentos da história colonial
não para apontar o caminho inelutável para o Estado, mas para prefigurar
o perigo que representa a irrupção do poder político coercitivo; em suma,
para provocar uma espécie vertigem. Esses personagens assinalavam o li-
mite da “sociedade contra o Estado” como imaginada por Clastres, mas de
modo algum o seu fim. Revelavam, assim, uma dinâmica muito própria ao
modo ameríndio de fazer e desfazer pessoas e coletivos, modo que não se
confinava a um patamar puramente humano, mas que se inscrevia numa
cosmopolítica, na qual o xamanismo se inscrevia como peça crucial.53
Para terminar essa apresentação, gostaria de discutir a maneira pela
qual toda essa discussão sobre política e sobre poder pode conduzir a al-
gumas reflexões recentes de Eduardo Viveiros de Castro sobre o chamado
“perspectivismo ameríndio”.54 Haveria, e ele mesmo a enuncia, uma apro-
ximação entre a idéia clastreana da “sociedade contra o Estado” e o pensa-
mento “perspectivista” dos ameríndios, pensamento que recusa a subjeti-
vidade como posição fixa e que a distribui pelo cosmos, para além do lugar
disso que nós, modernos, chamamos de “humanidade”. Isso que chama-
mos de “natureza” seria, para eles, povoado por diferentes subjetividades
que, de sua parte, veriam o mundo da mesma maneira que os membros da
espécie humana, isto é, como ocupando uma posição de sujeito. Escreve o
autor no recente Posfácio de Arqueologia da violência que “o perspectivis-
mo, enfim, é a cosmologia contra o Estado. Essa cosmologia se radica na
composição ontológica do mundo mítico, aquela ‘exterioridade’ originária
para onde estariam projetos os fundamentos da sociedade. Este mundo mí-
tico, contudo, não é realmente exterior, nem interior, nem presente nem
53 Ver Renato Sztutman. O profeta e o principal, op. cit. E “Le vertige des prophètes et guerriers sau-vages”, op. cit.
54 A aproximação entre o perspectivismo ameríndio e a ideia de “contra o Estado” está muito presente também no livro de Tânia Stolze Lima, Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva (São Pau-lo: Ed. Da Unesp/ISA/NuTI, 2005). Infelizmente, não haverá espaço para recuperar este argumento aqui.
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passado, porque é ambos. [...] É assim na esfera virtual do ‘religioso’ que
o conceito de sociedade contra o Estado ganha sua verdadeira endo-con-
sistência, ou diferença etnográfica. Clastres nos levou quase lá. Ninguém
poderia ter feito melhor; estaremos sempre quase em algum outro lugar”.55
Segundo Viveiros de Castro, este pensamento perspectivista, que
não deixa de ser uma forma de ação sobre o mundo, revela uma tendência a
estados de “quasidade” em contraste com os estados de unificação e fixidez.
Ao interrogarmos, numa entrevista recente, este autor sobre o que seria,
afinal, o Estado para os ameríndios – se é mesmo possível falar de tal en-
tidade entre eles – ele nos respondeu o seguinte: a “larva do Estado” seria
constituída pelos espíritos, as alteridades, os seres sobrenaturais, que tem
o poder de contra-determinar os humanos, de subtrair suas humanidades,
ao reduzi-las a entidades não-humanas. Em suma, ao sujeitá-los. O autor
sugere que as narrativas sobre os encontros com o sobrenatural poderiam
ser qualificadas de “quase-eventos”, pois aquele que sobrevive a esses even-
tos “quase” perdeu sua humanidade, “quase” sucumbiu ao chamado dos
seres do outro mundo. Mas, finalmente, ele foi salvo e pôde contar aos ou-
tros o que lhe aconteceu. Viveiros de Castro conclui então: “O sobrenatural
não é o imaginário, não é o que acontece num outro mundo. É o que ‘qua-
se’ aconteceu no nosso mundo, e o que o transforma em um ‘quase’-outro
mundo”.56
No sentido sinalizado por Viveiros de Castro, o poder político, o Es-
tado clastreano seria, para os ameríndios, o que “quase-acontece”, o que
“quase-se-realiza”, mas que não acontece, não se realiza, pois é inibido. Os
ameríndios parecem, nesse sentido, recusar a possibilidade que alguma
pessoa, que algum órgão detenha verdadeiramente o poder de submeter,
de assujeitar os outros. Em vez disso, poderes pulverizados permaneceriam
dispersos no cosmos e na sociedade, aguardando para serem parcialmente
apropriados. Essa situação se prolongaria desde as relações entre os ho-
55 “Posfácio”, op. cit; pgs. 43-44.
56 Eduardo Viveiros de Castro. � Uma boa políti ca é aquela que multi plica os possíveis (entrevista a Eduardo Viveiros de Castro. � Uma boa políti ca é aquela que multi plica os possíveis (entrevista a Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis (entrevista a Renato Sztutman e Stelio Marras)», Sztutman, Renato (org.). Eduardo Viveiros de Castro: entrevistas, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2008, p. 238.
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mens até as relações entre os homens e os seres do outro mundo. Eu acres-
centaria, aliás, o fato de que, para os ameríndios, o sobrenatural, o Exterior,
a alteridade mais radical – essa que encarna a figura do perigo necessário
para a fabricação de pessoas e coletivos – deve ser pulverizado de modo
que não seja capturado por um órgão político separado e autônomo, pois
a sua captura significaria o famigerado mau encontro – este que conduz
do “quase” ao “absoluto”, da vertigem à queda. Trata-se, assim, e de uma
maneira bastante ameríndia, de recusar as formas absolutas em favor das
“quase-formações”, de recusar a transcendência num esforço de tornar as
forças imanentes.
As pistas de Viveiros de Castro podem então nos fazer pensar que
o “contra o Estado” clastreano deve também incluir o “quase-Estado”, e
assim a imagem de figuras subjetivas “quase-despóticas”, como determi-
nados chefes, “quase-sacerdotais”, como determinados xamãs e profetas,
podem ser mais bem compreendidas em um quadro no qual os mecanis-
mos sociais antecipam e conjuram a transcendência do poder político. O
“quase” integraria o “contra” na medida em que ele imprimiria uma forma
ao perigo que deve ser evitado. Sob esse ponto de vista, as sociedades con-
tra o Estado revelam-se socialidades da vertigem: elas enfrentam o grande
perigo ao imprimir nele formas subjetivas, sensíveis e narrativas. Tudo se
passa como se fosse preciso expressar o perigo, representá-lo e mesmo per-
sonificá-lo; só assim ele ganhará a forma necessária para que possa, enfim,
ser conjurado.
Essas reflexões rápidas sobre o “quase-Estado” e sua cosmopolítica
permitem encontrar entre os ameríndios modos originais de responder a
possíveis irrupções do poder político coercitivo. Tal possibilidade estaria
dada desde sempre, porém se tornaria mais aguçada nos tempos atuais,
quando das interações menos ou mais tensas e intensas entre os povos in-
dígenas e o Estado-nação moderno. Nesse sentido, é possível reler a obra
de Pierre Clastres tendo em vista o momento mais contemporâneo desses
povos. E é preciso pensar a experiência mais contemporânea desses povos a
partir de suas respostas originais, e não simplesmente como a conformação
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a uma nova política, à qual eles permaneceriam alheios. A política indígena
só pode ser compreendida em seus termos, mesmo quando ela se aproxima
e quase se confunde com a nossa política. Ela quase se confunde, mas não
se confunde, pois nesse quase haverá sempre um contra. E essa será sem-
pre uma lição clastreana.
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ANTAGONISMO EM PROCESSO:
UMA APROXIMAÇÃO À GUERRA YANOMAMI1
Rogerio Duarte do Pateo2
Abordar os conflitos intercomunitários entre os Yanomami não é
uma tarefa fácil. Desde os anos 1960, diferentes modelos analíticos foram
elaborados buscando a compreensão do fenômeno, em um longo deba-
te acadêmico que ficou conhecido como “a querela Yanomami” (Fausto,
1999). Nesse debate, a imagem dos Yanomami como “fierce people” perdu-
rou durante muitos anos, sobretudo entre os leitores norteamericanos. Em
abordagens mais recentes, esses conflitos tem sido encarados como decor-
rências da desestruturação de relações políticas pacíficas entre as diversas
comunidades, supostamente produzidas pela competição por bens indus-
trializados inseridos entre eles de forma descontrolada3.
Por meio da análise de dados coletados entre os Yanomami habitan-
tes da Serra das Surucucus (RR/Brasil), pretendo mostrar como as relações
sociopolíticas entre diferentes comunidades se transformam ao longo do
tempo segundo um “ciclo de desenvolvimento das relações de antagonis-
mo”, relacionando-se à ocupação do espaço e à definição de unidades so-
ciais em sua interface com os funerais e o universo cosmológico. Para tanto,
é necessário retomarmos os elementos centrais que regem as relações in-
tercomunitárias entre os Yanomami.
Proximidade / distância
Viveiros de Castro (2002) nota que o gradiente “proximidade/dis-
tância” é um aspecto fundamental dos sistemas amazônicos, infletindo de
1 Este artigo é uma edição de parte de minha tese de doutoramento ainda não publicada. Para a versao integral ver Duarte do Pateo, 2005.
2 Professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da UFMG
3 Sobre esse modelo ver sobretudo Ferguson 1995.
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maneira decisiva sobre as terminologias de parentesco, sobretudo aquelas
de tipo dravidiano. Segundo ele, a superposição desse gradiente ao contras-
te binário entre consanguíneos e afins se realiza em um regime concêntrico,
potencialmente ternário e graduável. De acordo com uma noção cromática
de “graus de alteridade”, esse sistema concêntrico possui um dinamismo es-
pecífico que permite a transição das pessoas entre as diferentes categorias.
Entre os Yanomami, Bruce Albert (1985) mostra como a classifica-
ção das relações intercomunitárias, somadas à organização social e ao sis-
tema etiológico, fornecem a base para a compreensão da filosofia política
envolvida em todo o sistema de agressões. Essas classificações articulam
uma teoria patogênica ― ligada ao sistema de agressão/predação ― com
um sistema ritual canibal (exo e endo), partilhado por matadores e sepul-
tadores das vítimas. As relações entre a teoria patogênica e os princípios da
predação articulam a trama de um espaço social que constitui um verda-
deiro sistema de comunicação intercomunitário, integrando os múltiplos
elementos envolvidos na representação e na organização de disjunções e
transações que fundam a ordem sociopolítica e a simbolização dos consti-
tuintes biológicos e metafísicos dos indivíduos.
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A cada uma dessas categorias corresponde uma série de atributos
patogênicos específicos, em geral diagnosticados como a origem da maioria
das doenças e das mortes ocorridas entre os Yanomami. Assim, as agres-
sões simbólicas de origem humana são intimamente relacionadas à classifi-
cação das categorias de alteridade sociopolítica (Albert, 1985; 1992).
Analiticamente, podemos distinguir duas formas de atuação que
movimentam o sistema de agressões Yanomami: agressões efetivas, por um
lado, e agressões simbólicas, por outro. É importante notar, entretanto, que
ambos os tipos de agressão são considerados equivalentes pelos Yanoma-
mi, que não fazem distinções qualitativas entre eles.
Agressões efetivas
As relações de agressão entre dois ou mais grupos de população ge-
ralmente se iniciam com a degeneração progressiva das relações de ami-
zade e aliança estabelecidas entre eles durante um determinado período.
A fim de infligir ao adversário o mesmo sofrimento causado pela perda de
um ente querido (Alès, 1984; Lizot, 1984), a retaliação inicia-se em conexão
com um complexo sistema funerário, causando, por um lado, o distancia-
mento entre as comunidades em conflito, e, por outro, a aproximação das
comunidades aliadas em ambos os lados da disputa (Lizot, 1988). A médio
e longo prazos, este sistema permite a reestruturação da geopolítica entre
os diferentes grupos. Em outras palavras, nada impede que os aliados de
hoje sejam os inimigos de amanhã, e vice-versa.
As incursões guerreiras são sempre compreendidas como um mo-
vimento de retaliação contra alguma agressão anterior, seja ela efetiva ou
simbólica, e geralmente se iniciam no interior de um ritual funerário in-
tercomunitário (reahumu) no qual a vingança ― indispensável para uma
correta concretização do funeral ― é combinada entre os aliados.
O reide se inicia com a realização do ritual guerreiro watupamu
(agir como o urubu), que é marcado pela intervenção de todos os xamãs
presentes sobre os guerreiros que participarão da incursão em território
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inimigo. Sua ação busca anular a influência nefasta dos princípios sobrena-
turais do sono (manaxiripë) e da inabilidade com o arco e flecha (siraripë).
Sua intervenção promove também a incorporação de diversas imagens vi-
tais (utupë) de animais e entidades mitológicas, garantindo que as habili-
dades e disposições relacionadas a elas favorecerão os guerreiros em sua
empreitada (Albert, 1985:353-354).
O watupamu é, antes de tudo, a encenação da devoração simbólica
da carne do inimigo. Para isso, são usadas imagens vitais de animais e in-
setos necrófagos como mediadores entre a ação dos guerreiros e a posterior
digestão simbólica de suas vítimas.
Imitando os sons do urubu (ho...ho...ho), todos os participantes en-
fileiram-se (wayu ithou) no pátio central esperando que um dos mais expe-
rientes homens da aldeia confirme, por um grito direcionado ao inimigo, o
sucesso do futuro reide. Todos fazem uma grande algazarra quando ouvem,
vindo da floresta, o som emitido pela imagem vital de seu oponente.
As mulheres depositam, às margens da trilha que leva à região ini-
miga, os alimentos e pertences necessários para a realização da expedição.
Enquanto isso, os guerreiros encerram a encenação depositando alguns os-
sos de animais no centro da aldeia, concretizando assim a devoração sim-
bólica da futura vítima.
Depois de uma boa noite de sono, partem logo cedo em direção a seu
destino. Durante o caminho, encenam novamente um combate, no qual um
pacote de folhas ou um tronco de árvore representando um corpo humano
é flechado por todos, como antecipando o sucesso da incursão.
Já próximos a seu destino final, os guerreiros cobrem-se com um
pigmento preto produzido com restos de carvão e espalham-se no entorno
do local escolhido para o ataque ― geralmente uma roça ou a própria habi-
tação coletiva dos inimigos. Ocultos pela escuridão da noite, dissimulam-se
entre os arbustos disponíveis, mantendo os olhos atentos a qualquer movi-
mento que determine o momento ideal para o ataque. Podem ficar imóveis
durante horas, aguardando essa oportunidade. Suas vítimas são escolhidas
com antecedência. Podem ser homens importantes ou guerreiros valoro-
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sos. Os responsáveis por agressões anteriores ao grupo atacante também
são prioridade, mas no caso de nenhuma das vítimas pré-selecionadas estar
disponível, qualquer homem adulto pode ser morto em seu lugar. As mu-
lheres são rigorosamente excluídas dos confrontos, sendo atingidas apenas
por acidente.
Logo após efetuar o ataque, os guerreiros fogem rapidamente para
suas habitações de origem, buscando escapar da retaliação imediata de seus
inimigos. Ao ocorrer a morte, os responsáveis pelos disparos recolhem-se
em um local isolado a fim de realizar o ritual de purificação do matador
(unokaemu).
Como nos mostrou Albert (1985), entre os Yanomami, os conflitos
intercomunitários ― assim como o sistema etiológico ― baseiam-se numa
teoria de agressão canibal na qual a devoração ontológica e a devoração
física são descritas na forma de um processo simbólico único. A morte do
inimigo, levada a cabo por agressões efetivas ou simbólicas, implica a pu-
rificação do matador por meio de rituais que visam a impedir o colapso
temporal e cosmológico relacionado à contiguidade com o excesso do san-
gue da vítima. A morte de um inimigo é concebida como um verdadeiro
canibalismo simbólico, deixando o matador em um estado ritual de homicí-
dio (unokae), que se caracteriza por uma marca/dívida de sangue (unokë),
que o obriga a passar pelo rito de reclusão chamado unokaemu4. Depois de
terminado o reide, o matador sente-se impregnado pelo gosto e o cheiro do
sangue da vítima, e perde a consciência de seus atos, sendo considerado
“sobrenaturalmente” marcado.
A imagem vital do urubu, invocada nos rituais que precedem a in-
cursão guerreira, é neste caso concebida como se alimentando do cadáver
da vítima, permitindo ao matador a manutenção de sua integridade, tanto
ontológica quanto biológica. No nível ontológico, a integridade do matador
é ameaçada pela absorção do sangue/imagem vital exógeno e pela confusão
de sua identidade individual com a identidade da vítima, enquanto sua in-
4 Para uma descrição detalhada e análise do ritual de reclusão do guerreiro Yanomami ver principal-mente Albert, 1985, cap XI – principal fonte para este texto. Ver também Lizot, 1996.
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tegridade biológica é ameaçada pela aceleração do envelhecimento decor-
rente dessa absorção (Albert, 1985).
No sistema de agressões Yanomami, longe de serem consideradas
isoladamente decorrências da penetração de fatores exógenos no interior
da sociedade, as mortes decorrentes de conflitos efetivos são inseridas em
uma espécie de “triângulo culinário canibal” (Albert, 1992:159-160). Esse
sistema articula a omofagia selvagem de espíritos maléficos, a omofagia ri-
tualizada dos inimigos que devoram simbolicamente a carne em putrefação
de suas vítimas, e a osteofagia “culinária” e cerimonial dos aliados, convi-
dados a consumir ritualmente as cinzas dos ossos dos mortos dos anfitriões
nos grandes festivais funerários intercomunitários.
Conflitos abertos são raros, mas não inexistentes. Além das embos-
cadas, os atacantes podem utilizar-se de chuvas de flechas, e às vezes do
fogo em situações nas quais a escalada da violência se intensifica demasia-
damente.
Agressões simbólicas
Ainda segundo Albert (1985), existem quatro tipos de agressões sim-
bólicas: a feitiçaria de aliança, a feitiçaria guerreira, o xamanismo agressivo
e a agressão ao duplo animal.
A primeira delas, a feitiçaria de aliança, opera no interior do conjun-
to multicomunitário, atingindo todos os grupos classificados como amigos
(nohimotimë thëpë). Duas de suas formas mais corriqueiras (a feitiçaria
amorosa e a feitiçaria comum) possuem efeitos menores e são utilizadas
em desentendimentos entre pessoas de sexos diferentes, ou ligados a ques-
tões econômicas e matrimoniais. Apenas a terceira forma de feitiçaria de
aliança (a feitiçaria por captura de rastro) possui uma letalidade potencial.
Geralmente, esse tipo de agressão é utilizado por pessoas ou grupos em
posição intermediária entre os co-residentes e os inimigos. Podem ser os
aliados em regime de uxorilocalidade (principalmente durante o serviço da
noiva), os aliados políticos com os quais não há mais trocas matrimoniais,
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ou ainda os aliados de aliados, que geralmente utilizam-se de terceiros para
a efetivação da agressão.
Para sua elaboração, restos usados de tabaco ou a terra das pegadas
deixadas pela vítima nas trilhas da floresta são recolhidos e embrulhados
em um pacote de folhas juntamente com substâncias de feitiçaria. O resul-
tado são inchaços, dores etc. Sua letalidade é garantida quando o pequeno
embrulho contendo os rastros da vítima é submetido às mordidas de uma
serpente venenosa. Como a feitiçaria de rastro vai de encontro à regra fun-
damental de ausência de feitiçaria letal no interior do conjunto de aliados, o
rastro recolhido por alguém no interior do grupo é, em seguida, repassado
a um grupo inimigo, no qual o feitiço é preparado.
A feitiçaria de rastro é executada por co-residentes que são “outra
gente” (afins efetivos em regime de uxorilocalidade) e é efetivada por ini-
migos, que se interpõem utilizando suas habilidades no tratamento letal do
rastro. Esse tipo de feitiçaria geralmente opera sobre posições intersticiais,
concretizando uma forma transicional entre a feitiçaria comum (não letal)
e a feitiçaria guerreira (entre inimigos) (Albert, 1985).
A feitiçaria de rastro é concebida como uma espécie de predação fi-
gurada, e seu autor, da mesma forma que os responsáveis por mortes de-
correntes de agressões físicas, passa pelo ritual de purificação do guerreiro
(unokaemu).
A feitiçaria guerreira, por seu turno, é realizada a partir de incursões
secretas (okara huu) efetuadas por um pequeno grupo de homens (okapë)
até uma aldeia inimiga distante, a fim de atingir, individual ou coletiva-
mente, seus membros. Para isso são utilizadas diferentes técnicas.
Durante o dia, os okapë aproximam-se o máximo possível da habita-
ção de seus inimigos, tentando evitar que alguém dê o alerta, denunciando
sua presença. A vítima escolhida é sempre uma pessoa solitária, entretida
em alguma atividade a certa distância da casa coletiva. O feiticeiro inimigo
esconde-se na vegetação e, por meio de uma zarabatana (horomë a), asso-
pra na nuca da vítima uma pequena flecha envenenada com substâncias de
feitiçaria. Os efeitos do veneno são imediatamente sentidos, provocando
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mal-estar, uma alteração na consciência e uma dor intensa no local atingi-
do. Nesse momento, o agressor ataca sua vítima fisicamente, quebrando-
-lhe a coluna vertebral e os membros, provocando, por meio da destruição
do corpo físico e espiritual, sua morte imediata. Da mesma forma que os
guerreiros comuns, os okapë fazem uma imitação do urubu (watupamu)
quando constatam a destruição de seu inimigo, e retornam, em seguida,
para suas casas.
Caso os okapë não consigam se aproximar da vítima envenenada, ela
pode ser facilmente retirada de seu estado alterado de consciência median-
te uma cura xamânica. O feiticeiro pode optar também por “remontar” os
ossos de sua vítima, apagando magicamente os traços de sua ação. A vítima,
sem a memória da agressão sofrida, transforma-se em um “morto-vivo”,
definhando progressivamente no interior de sua habitação. A onipresença
dos okapë é cotidiana, e as pessoas evitam ausentar-se sozinhas por muito
tempo ou deixar velhos e mulheres a sós.
Durante a noite, o ataque dos okapë se dá, sobretudo, por meio do
uso de uma substância de feitiçaria identificada por Albert como paxoukë,
confeccionada com pêlos de diversas partes do corpo do macaco-aranha
(Ateles belzebuth) ou paxo a. Nesse preparado, os pêlos de macaco são mis-
turados a substâncias de feitiçaria comum e despejados secretamente em
alimentos líquidos a serem consumidos pela vítima, o que provoca uma
diarréia violenta, acompanhada de desidratação e emagrecimento. Para
concretizar sua ação, os okapë entram sorrateiramente na casa de seus ini-
migos ou introduzem o braço pelas frestas, envenenando a água e outros
alimentos líquidos deixados sem proteção.
A última forma de agressão associada à ação dos okapë é a disse-
minação de graves epidemias entre os inimigos. Jogando venenos e subs-
tâncias mágicas em uma fogueira acesa nas proximidades da habitação de
suas vítimas, os okapë buscam produzir sua contaminação pela liberação
de poderes maléficos na forma de fumaças deletérias (xawara wakëxi).
Albert (1985) nota ainda que as incursões de feitiçaria guerreira
(okara huu) põem em evidência o caráter estrutural e institucional da hos-
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tilidade entre os grupos que se situam além do conjunto multicomunitário
de aliados. Suas características intrínsecas confirmam a associação da fei-
tiçaria dos okapë aos reides efetivos, identificados como caracteres homó-
logos e complementares no pensamento Yanomami. Ambas as formas de
agressão são intercambiáveis e possuem campos sociopolíticos idênticos;
utilizadas contra inimigos próximos e igualmente letais.
A feitiçaria guerreira opera como uma forma latente de conflito, pe-
renizando o estado de guerra entre conjuntos multicomunitários inimigos.
Acusações de feitiçaria guerreira podem iniciar ou reabrir ciclos de vingan-
ça, pois cada morte atribuída à ação dos okapë pode ser retaliada pela reali-
zação de incursões de feitiçaria ou pela organização de um reide de desfor-
ra. Em resumo, a agressão por feitiçaria guerreira e sua retaliação por meio
de uma incursão armada são consideradas termos intercambiáveis de uma
transação ritual na qual repousa toda a ideologia Yanomami da vingança,
expressa pelo termo unokai nomihiai (fazer-se reciprocamente entrar no
estado ritual de homicida).
As duas últimas formas de agressão simbólica ― o xamanismo agres-
sivo e a agressão ao duplo animal ― ultrapassam a esfera das interações po-
líticas efetivas, sendo aplicadas contra inimigos antigos ou virtuais e contra
inimigos desconhecidos, localizados a distâncias inatingíveis.
O xamanismo agressivo ocorre mediante a ação de espíritos auxilia-
res (xaporipë ou hekurapë) convocados, durante um transe alucinógeno,
pelos cantos e coreografias relacionadas a cada um deles. A maioria dos
hekurapë é composta por espíritos de animais ou réplicas de entidades so-
brenaturais, que se apresentam aos xamãs como seres humanos em minia-
tura subordinados a sua vontade. Cada espírito auxiliar possui um princí-
pio agressivo sobrenatural, que é utilizado pelo xamã para atacar a imagem
vital dos membros de uma comunidade inimiga, ou, no caso de uma ação
curativa, extrair ou destruir os objetos patogênicos que afetam os membros
das comunidades aliadas.
A segunda forma de ação do xamanismo agressivo diz respeito, como
vimos acima, ao apoio às incursões guerreiras, voltada a preparar a chegada
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dos wayupë (guerreiros) e a neutralizar antecipadamente seus adversários.
A agressão xamânica e a agressão guerreira são concebidas como formas de
predação canibal figurada, e, como nos casos anteriores, criam a necessida-
de da realização do rito de purificação do matador (unokaemu).
Enfim, a agressão ao duplo animal encerra a descrição de Bruce Al-
bert sobre as formas de agressão simbólica entre os Yanomami.
O duplo animal, um dos constituintes da pessoa, habita regiões ocu-
padas por grupos distantes e potencialmente hostis com os quais não há ne-
nhum tipo de interação social direta (tanomai thëpë). Ele pode ser atingido
em caçadas coletivas ou por ações de feitiçaria. As agressões ao duplo animal
são diagnosticadas pelos xamãs e geralmente imputadas às comunidades
distantes. Nesses casos, um parente de alguma vítima desse tipo de ataque
se encarrega de flechar um animal considerado alter-ego de um membro da
comunidade agressora. É importante notar, no entanto, que após a execução
do animal-imagem inimigo, o caçador também passa pelo ritual unokaemu.
Guerras e devorações
Analisando as diferentes formas que compõem o sistema de agressão
Yanomami, Albert nota que o xamanismo agressivo e os combates efetivos
são estritamente interdependentes. Ambos são associados no pensamento
e na ação, uma vez que o xamanismo agressivo realiza-se mediante comba-
tes invisíveis a distância, enquanto os combates efetivos sustentam-se pela
ação xamânica.
O emprego de uma ou de outra forma de agressão depende da dis-
tância geográfica dos inimigos. Quando estes estão localizados muito lon-
ge, fora do raio de ação dos guerreiros, o sistema de agressão movimenta-
-se por meio do xamanismo agressivo. Quando os conflitos se dão entre
inimigos próximos, o xamanismo intervém de maneira subordinada. De
qualquer maneira, ambas operam em uma esfera sociopolítica homogênea,
situada entre os aliados (nohimotimë thëpë) e os desconhecidos (tanomai
thëpë), que são os inimigos potenciais (atuais, virtuais ou antigos).
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O xamanismo agressivo aproxima-se também da feitiçaria guerreira
dos okapë, pois ambos substituem o enfrentamento aberto, operando de for-
ma simétrica e inversa: enquanto o okara huu caracteriza-se por uma incur-
são secreta de humanos em busca de vítimas relativamente próximas, o xa-
pori huu (sair na forma de espírito xamânico) é baseado no envio de entida-
des sobrenaturais invisíveis ao encontro de vítimas relativamente distantes.
Nesse modelo, a “guerra” não se reduz a seu aspecto de violência
armada coletiva. Ela constitui uma indissociável combinação político-sim-
bólica de três formas fundamentais de troca de agressões entre inimigos
de diversos tipos: incursões guerreiras (wayu huu), incursões de feitiçaria
(okara huu) e xamanismo agressivo (xapori huu). Assim, as trocas de vio-
lências efetivas ou simbólicas se fundamentam, em última instância, sobre
um plano ritual baseado em um sistema de trocas de predações figuradas,
concretizadas pelo exo-canibalismo guerreiro efetivado no rito de homicí-
dio unokaemu.
O modelo desenvolvido por Albert demonstra a existência de um sis-
tema que articula, de maneira coesa, as agressões efetivas com as agressões
simbólicas, fornecendo a base de significação que orienta a ação dos Yano-
mami na esfera intercomunitária.
A seguir tentarei mostrar, por meio da apresentação de casos etno-
gráficos, como as especificidades das diferentes formas de agressão efetiva
se inserem nesse horizonte, e como um padrão recorrente de distanciamen-
to e reaproximação, derivado das relações de antagonismo, torna visível um
ciclo de desenvolvimento dos conflitos.
Os conflitos em Surucucus
A região da Serra das Surucucus está localizada no coração da Terra
Indígena Yanomami, a leste da Serra Parima, região oeste do Estado de Ro-
raima. Sua geografia é marcada por uma dezena de formações granilíticas
em torno de um platô de topo plano com altitude em torno de 1.000 metros
e paredes abruptas.
A área imediatamente ao redor do platô possui um solo arenoso e
um relevo acidentado repleto de serras e vales entrecortados por inume-
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ráveis cursos d’água que compõem as bacias dos rios Parima, a oeste, e
Mucajaí, ao sul. O relevo montanhoso é intensamente ocupado, abrigando
unidades residenciais e roças que parecem apoiar-se em paredões de pedra
ou em barrancos inclinados.
Ao todo, foram observados na região estudada pelo menos cinco
“grupos edogâmicos de vizinhança”, compostos por unidades domésticas
dispersas, de tamanhos variados, ligadas por relações histórico-demográfi-
cas e pela perpetuação de alianças matrimoniais. Esses conjuntos não são
institucionalmente explícitos e não recebem nomes que os identifiquem
como grupos corporados ao longo do tempo. Cada unidade residencial
que compõe o conjunto considera-se econômica e politicamente autôno-
ma, solidarizando-se com as demais em momentos de conflito e guardando
uma idéia de proximidade em geral traduzida pela expressão kami yamaki
(nós), em oposição a xomi thëpë (outras pessoas)5.
O pertencimento a esses grupos se dá a partir da ocupação coletiva
de áreas identificadas por referências toponímicas. Mesmo não sendo no-
meadas ou formalmente delimitadas, essas áreas são reconhecidas pelos
conjuntos vizinhos e designadas pela categoria urihi (terra/floresta)6 .
A composição dos grupos endogâmicos de vizinhança é alterada
constantemente, seguindo o movimento das unidades residenciais que se
deslocam por sua região devido a questões econômicas (abertura de no-
vas roças/escassez de recursos faunísticos) ou políticas (intensificação ou
relaxamento dos conflitos). Nessa movimentação, membros de um mes-
mo conjunto podem se unir em uma casa coletiva (xapono), ou optar pelo
isolamento, posicionando-se em relação às unidades mais populosas ― do
ponto de vista geográfico e político ―, segundo critérios pessoais ligados à
5 Apesar de identificarem os membros de um mesmo grupo endogâmico de vizinhança, esses termos pos-suem um caráter correlativo e contextual, e podem ser empregados para designar relações diversas (Alès, 1990). A utlização de categorias de alteridade que opõe nós/outros entre os Yanomami foi analisada por diversos autores. Ver principalmente: Albert, 1985:cap.VII; Ramos, 1990:96-98; Chagnon, 1968; Colchester, 1982:161-166; Lizot, 1988, 1984a, 1984b; Alès, 1990.
6 O campo semântico da idéia de urihi compreende categorias histórico políticas inclusivas e contextu-ais, como a região natal ou de residência de um indivíduo (ipa urihi), região de origem ou de ocupação de uma comunidade (kami yamak+ urihipë), o habitat dos seres humanos (yanomam thepë urihipë), em oposição ao dos estrangeiros, inimigos, ou brancos (napë thepë urihipë) (Albert, 2001)
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preservação da autonomia, à distância de suas roças ou à segurança contra
investidas inimigas7. O relacionamento entre os conjuntos não é estanque,
podendo variar entre a aliança e o antagonismo. A transformação nas rela-
ções entre eles obedece a um ciclo de desenvolvimento das agressões que
será analisado abaixo, e segundo o qual as alianças, geralmente consolida-
das por poucos e frágeis casamentos, estão com frequência sujeitas a boatos
e intrigas8, que reaquecem a memória de conflitos antigos e alimentam acu-
sações de feitiçaria, roubo e adultério. Nesses casos, as relações de aliança
podem, a qualquer momento, degenerar em violência explícita, e, em caso
de morte, converter-se em relações de inimizade.
A reconstrução da história dos conflitos na serra das Surucucus sur-
giu nos relatos indígenas espontaneamente, pontuando sem exceção todas
as narrativas de deslocamento levantadas durante entrevistas para o preen-
chimento de fichas individuais sobre as migrações pelo território. Logo nas
primeiras tentativas de mapear os deslocamentos e a composição dos gru-
pos locais, pude perceber que a memória desses conflitos funcionava como
um instrumento mnemônico coletivo, intrinsecamente ligado aos locais de
residência ocupados no passado. Passei então a explorar intencionalmen-
te essa vertente do pensamento Yanomami, podendo assim reconstruir a
história desses conflitos desde pelo menos a chegada dos missionários à
região, na década de 1960. Algumas passagens importantes puderam ser
reconhecidas em uma série de fontes diversas, como relatórios produzidos
por equipes de saúde, documentos da Funai e publicações acadêmicas, o
que permitiu sua contextualização temporal e sua ligação com aspectos re-
lacionados à presença de não-índios na região.
Os acontecimentos expostos a seguir dizem respeito aos conflitos
envolvendo grupos endogâmicos de vizinhança conhecidos como Aykam,
Roko e Hakoma theri9, além dos grupos que habitam o norte da região.
7 Sobre escolhas pessoais em relação à residência ver Alès, 1990.
8 Para uma análise clássica da importância dos boatos entre os Yanomami, ver Ramos, 1995:235-237.
9 -teri, ou -theri: Sufixo. Agregado a um nome de lugar, designa, com o sentido de “a gente de...”, “os de...”, um grupo social de residência comum. Ex.: warabawë – theri: termo no qual warabawë é o nome de um rio, e –theri significa “os de...” (Lizot, 1975b:84 – tradução minha).
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O Antagonismo Aykam/Maraxi u
O contato permanente dos habitantes da serra das Surucucus com
agentes não-indígenas se deu a partir do início da década de 1960, por meio
da instalação de uma missão evangélica na região. Ao chegarem ao local, os
missionários foram inseridos em um contexto de acirrados conflitos. Sua
presença reorientou a direção das redes de troca que anteriormente eram
voltadas para a região do Uraricoera ao norte ― devido à presença de outra
missão desde 1957 ― e para a região dos rios Toototopi e Catrimani, já nas
terras baixas localizadas ao sul, onde o contato com as frentes de expansão da
sociedade nacional fornecia bens industrializados, valiosos em toda a região.
Em ocasião da chegada da Meva (Missão Evangélica da Amazônia)
à serra das Surucucus, as populações do Roko e Hakoma viviam juntas,
principalmente por razões de defesa contra um inimigo comum, os Maraxi
u theri, que nesse processo deslocaram-se progressivamente até a região do
rio Couto de Magalhães.
A união dos Roko theri e dos Hakoma theri em um único assen-
tamento (Tiritirimopi) deu-se após a morte de quatro homens do Roko e
do Hakoma em uma emboscada dos Maraxi u theri. A partir de então, a
aliança com o bloco dos Aykam theri consolidou-se a fim de concretizar a
vingança e expulsar os inimigos.
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Não há como estabelecer uma data precisa para o início das hos-
tilidades entre os habitantes da serra das Surucucus, encabeçados pelos
Aykam theri/ Tiritirimopi theri e respectivos aliados, por um lado, e os
Maraxi u theri/ Xiriana, por outro. Acredito, no entanto, que tais conflitos
possam estar relacionados com a série de hostilidades responsáveis pelo
deslocamento de grupos que habitavam a região na virada do século XIX
para o XX e que hoje habitam as terras baixas. Todos esses grupos são iden-
tificados genericamente pelos moradores do Surucucus como waika pë.
O ápice das hostilidades ocorreu em 195910, quando uma epidemia
de gripe oriunda de um pequeno grupo de garimpeiros que trabalhavam no
Alto Mucajaí atingiu os Kasilapai, identificados pela população do Suru-
cucus como xiriana e aliado dos Maraxi u theri. Cinco pessoas morreram
de pneumonia, e, como de praxe, a epidemia foi considerada resultado de
feitiçaria. Após uma série de acusações mútuas, os Maraxi u theri repassa-
ram a responsabilidade pelo ocorrido a um terceiro grupo, os Xiri theri, que
habitavam as cabeceiras do rio Mayepo u, ao norte do Surucucus, próximo
à atual região do Potomatha. Segundo pude verificar, a população dos Xiri
theri fazia parte, na época, do conjunto de aliados dos Aykam theri.
Em busca de vingança, nove homens do Kasilapai, acompanhados
por seus aliados Maraxi u theri, seguiram para o assentamento dos Xiri
theri, que nunca haviam tido contato com grupos xiriana. Segundo John
F. Peters (1998), a dificuldade de comunicação entre os dois grupos ― fa-
lantes de línguas diferentes11 ― teria acirrado os ânimos. Desconfiados, os
Xiri theri recusaram-se a oferecer comida aos visitantes, que decidiram
então matá-los em retaliação à pneumonia. De acordo com fontes da re-
gião da serra das Surucucus, os Maraxi u theri e seus aliados teriam se
oferecido para ensinar aos Xiri theri o “deusimu”, que poderíamos traduzir
livremente por “rezar”. Como ainda não haviam tido contato direto com os
missionários, os Xiri theri resolveram seguir as lições de seus visitantes:
10 A esse respeito ver Early &Peters, 1990: 65 e Peters, 1998: 210-211. Ver também Chagnon, 1966, cap VI e 1997:190).
11 Os Kasilapai e os demais grupos identificados como xiriana são falantes da língua ninam/yanan.
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ajoelharam-se e, com as mãos unidas, fecharam os olhos. Nesse momento,
os Maraxi u theri e seus aliados desferiram os ataques. Versões diferentes
afirmam que a maioria dos homens foi morta a golpes de terçado, muitos
dos quais degolados. Peters, no entanto, apresenta dados mais detalhados.
Segundo ele, dois homens foram golpeados com pontas de flecha de bambu
(rahaka), um morto a golpes de machado, e um outro, de maneira inde-
terminada. Dois feridos conseguiram escapar. Os Kasilapai, então, cap-
turaram três mulheres jovens (moko pë), seguidos pelos Maraxi u theri,
que capturaram “várias” (Peters, 1998: 210-211). As mulheres levadas pelos
Maraxi u theri acabaram, porém, escapando de seus raptores, retornando
em seguida à sua aldeia de origem.
Ao que parece, as incursões guerreiras empreendidas pela aliança
formada entre os Maraxi u theri e os Kasilapai não se restringiram a seus
inimigos da serra das Surucucus. Em sua dissertação de mestrado, Ricardo
Verdum (1995:106-108) nota que no verão de 1968 (uma década depois do
episódio envolvendo os Xiri theri), integrantes de ambos os grupos par-
ticiparam de um festival intercomunitário realizado pelos moradores do
médio rio Ajarani e do rio Repartimento, conhecidos como Yawaripë. Con-
forme Verdum, sua presença causou nervosismo entre seus anfitriões por
terem reputação de violentos e traiçoeiros. Mas principalmente porque eles
chegavam armados com espingardas obtidas mediante trocas e serviços
prestados aos missionários protestantes.
No relato coletado por Verdum, a ação se inicia na manhã do segundo
dia da festa, quando os Kasilapai e seus aliados saíram da casa coletiva di-
zendo que iam caçar wari (queixada). Após algum tempo retornaram dando
tiros e flechando homens e rapazes. O número de mortos não foi determina-
do com exatidão. Cinco mulheres foram raptadas, mas da mesma forma que
na emboscada descrita anteriormente, quatro delas conseguiram escapar.
Esse ataque teve como consequência direta o deslocamento dos Ya-
waripë. Parte de sua população buscou refúgio junto aos não-índios que
habitavam a BR-174, enquanto o restante optou por descer o rio Ajarani e
instalar-se em dois pontos diferentes.
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Este tipo de ação guerreira foi abordada por Chagnon (1968, 1997:2
e 191-ss) a Alès (2000:146) por meio da análise do termo nomohori, tradu-
zido por “traição” ou “ardil”12. Ambos os autores mencionam sua infrequ-
ência, considerando-os casos extremos que demarcam o limite máximo dos
níveis de violência.
Da mesma forma que a feitiçaria de rastro, que, como vimos acima, é
realizada com a participação de pessoas ou grupos em posições intermedi-
árias entre os aliados e os inimigos, o nomohori caracteriza-se pelo envol-
vimento de grupos com posturas políticas ambíguas, os quais, por razões
contextuais, optam por apoiar um dos lados da contenda. Esses “falsos alia-
dos” fazem jogo duplo, atraindo para uma cilada o conjunto de inimigos de
seus aliados, surpreendendo-os com um ataque inesperado.
Mesmo invertendo o modelo “clássico” de nomohori, segundo o qual
são os anfitriões que fingem amizade e posteriormente eliminam seus con-
vidados, os Maraxi u theri e seus aliados Xiriana assumiram o papel de
aliados intermediários, vitimando ora os Xiri theri, ora os Yawaripë.
No mesmo período, os Xiriana tentavam aproximar-se da missão,
beneficiando-se assim dos pagamentos dispensados pelos missionários. Os
habitantes do Roko, no entanto, encarregavam-se de rechaçá-los.
Em um artigo publicado na revista evangélica Brown Gold, o missio-
nário Bill Moore descreve vivamente um combate testemunhado por ele da
janela de uma das casas da missão da Meva, na serra das Surucucus:
“There has been some shooting near the edge of the post on two
different occasions between the Indians. But on June 27, 1973, we had a
3-hour war in our front and side yards between two Uaicá groups” (Mo-
ore, 1973).
12 Trick, nos originais. Lizot (1975) apresenta-nos a definição a seguir : subst. nomohõri : traquenard, traîtrise, fourberie, tromperie. wa nomohõri ha kuni : dis cela pour tromper. vb. trans. nomohõriãi : inviter une personne avec laquelle on feint d’être ami pour la tuer [nomohõrirei, perf.]. nomohõrimou : attirer dans un traquenard, inviter des personnes à une fête pour les tuer et/ou s’emparer des femmes [nomohõrirei, perf.].
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Na tarde de uma segunda-feira, 25 de junho de 1973, um grupo de
inimigos dos habitantes do entorno da missão chegaram para visitar, traba-
lhar e trocar objetos. Os missionários costumavam utilizar a mão-de-obra
indígena em troca de bens industrializados. Por não tomarem parte nos
conflitos dos Yanomami, deixavam todos se aproximarem na esperança de
potencializar sua ação evangelizadora.
A princípio, parecia que o grupo de visitantes iria estabelecer boas re-
lações com a população local, mas, na manhã seguinte, as primeiras flechas
foram disparadas próximo ao fim da pista de pouso, e o grupo visitante pas-
sou o resto do dia perseguindo uma pequena parte dos habitantes locais. Ao
retornarem da perseguição, descobriram alguns homens do grupo inimigo
escondidos nas proximidades. Iniciou-se uma grande gritaria. Mais flechas
voaram, e os homens que estavam de tocaia retornaram para a mata.
O grupo que permaneceu próximo à missão passou a noite gritando
e cantando. Na manhã seguinte, 27 de junho, uma mulher do grupo vizi-
nho foi enviada com uma mensagem aos visitantes: “nós estamos chegando
para enfrentar vocês”.
Em vão, os missionários tentaram fazer com que os visitantes retor-
nassem para suas casas a fim de evitar o confronto. Os guerreiros, porém,
não lhes deram ouvido, prepararam suas armas e mantiveram-se prontos
para enfrentar seus inimigos.
Moore conta que logo após seu almoço, ouviu gritos do lado de fora
da casa. O grupo que habitava as cercanias da missão havia chegado para
combater os visitantes: “As we looked out our windows we saw hundreds
of arrows falling from the sky”.
Os enfrentamentos se deram na pista de pouso, a cerca de 100 me-
tros de distância das instalações da missão. Depois de uma hora de conflito,
o grupo visitante recuou a fim de se proteger no entorno da casa, onde o
combate continuou.
Após uma flecha furar o telhado e cair bem no meio da sala dos mis-
sionários, os índios começaram a se ferir. Primeiramente, um deles foi atin-
gido na mão; um outro, além de na mão, recebeu uma flechada nas costas.
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Ao todo, quatro guerreiros foram alvejados. O confronto se encerrou com a
retirada do grupo do local para suas casas, deixando para trás os inimigos,
que tiveram seus ferimentos tratados pelos missionários e rapidamente re-
tornaram à sua região de origem.
Os conflitos envolvendo as populações do Surucucus e seus inimigos
Maraxi u theri estenderam-se por mais de uma década, quando mudanças na
situação de contato causaram o aumento da letalidade dos enfrentamentos.
O Surgimento dos Tëpëxina hiopë theri
Com a chegada dos primeiros garimpeiros à região e a saída dos mis-
sionários em 1976, o cenário sociopolítico da serra das Surucucus foi rees-
truturado. Paralelamente, os conflitos foram intensificados em decorrência
da inserção de armas de fogo de forma descontrolada.
Entre os Yanomami, toda agressão é inserida em um rígido conjunto
de códigos de formalização da violência, e cada morte produz a necessidade
da vingança. Normalmente, o arcabouço simbólico é acessado e manipula-
do de maneira criativa, fazendo com que poucas mortes ― sejam elas de-
correntes de ataques efetivos ou de acusações de feitiçaria ― movimentem
seu ciclo ritual durante anos, fomentando alianças, reides e festivais fune-
rários intercomunitários.
A potencialização da letalidade dos ataques pela proliferação das es-
pingardas, no entanto, fez com que as agressões fugissem ao controle dos
próprios Yanomami. Grupos inimigos tornaram-se reféns de intensos e in-
cessantes ciclos de vingança, intensificados pela produção de um número
de vítimas muito maior em relação ao período no qual apenas flechas, além
dos mecanismos de agressão xamâmica e feitiçaria guerreira, eram utili-
zadas. No mesmo período, um conflito destruiu a aliança entre os Aykam
theri e a população do Tiritirimopi.
Após um reahumu ― o festival funerário intercomunitário Yanoma-
mi ―, um Aykam theri morreu em decorrência de uma epidemia (xawara),
e os Roko theri foram acusados de feitiçaria. Houve então um duelo de va-
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ras, e outro Aykam theri acabou morrendo em consequência dos ferimen-
tos. A vingança foi imediata e um homem do Roko foi morto por uma fle-
chada. As proporções do conflito logo atingiram os aliados dos Tiritirimopi
theri, provocando sua grande migração em direção ao Tëpëxina u, impor-
tante rio localizado ao norte da serra das Surucucus. Uma vez habitando
essa região, os Roko theri e seus aliados do Hakoma sofreram uma série
de ataques oriundos do Potomatha, um conjunto de assentamentos que na
época compunha o grupo de aliados dos Aykam theri. Esses ataques acaba-
ram provocando o deslocamento dos dois grupos para a região do Hakoma,
e, após uma fissão causada por uma morte decorrente de relações extracon-
jugais, a reocupação do Roko e o encerramento dos conflitos.
Década de 1990
Na segunda metade dos anos 1990, uma série de novos conflitos vol-
tou a modificar o mapa das relações políticas na região do Surucucus. Após
a dissolução da aliança entre os Aykam theri e os Tiritirimopë theri, foi a
vez dos grupos que habitam o norte da serra ― Potomatha e Moxahi theri
― distanciarem-se de seus antigos aliados, os Aykam theri.
A origem do conflito com os grupos do Potomatha se deu depois
de alguns de seus guerreiros atacarem um homem do Mayepo u ― cujos
habitantes são aliados históricos dos Aykam theri – e roubarem seus per-
tences, incluindo uma série de objetos industrializados que haviam sido
trocados com os brancos. Em resposta, alguns Pirisi theri dispararam tiros
de calibre 20 contra quatro moradores da região do Potomatha13, após um
duelo de varas ocorrido dia 8 de maio de 1996. No dia seguinte ao inci-
dente, veio a vingança. Um grupo de homens do Potomatha permaneceu
escondido, durante toda a noite chuvosa, entre os arbustos ao lado da pista
de pouso de Surucucus, com os olhos pregados na porta de um pequeno
xapono denominado Manakasi hami. Ao amanhecer, um de seus morado-
13 Na realidade, apenas uma mulher e uma criança foram transferidas para Boa Vista em decorrência desses disparos, onde se recuperaram. A esse respeito ver Pellegrini, 1998: 107-110
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res saiu para urinar e foi alvejado pelos guerreiros, que desapareceram em
seguida rumo à segurança de sua casa. Essa morte causou uma comoção
geral entre os aliados dos Aykam theri, atraindo pessoas de todas as regi-
ões para seu funeral. A partir de então, a inimizade entre os dois grupos
tornou-se ferrenha, sustentando-se ao longo dos anos por meio de reides
recíprocos.
O acirramento das relações de antagonismo com os Moxahi theri,
por sua vez, ocorreu de forma mais gradual, culminando em acusações de
feitiçaria que levaram ao início dos conflitos propriamente ditos.
Pelo menos desde a grande aliança formada para combater os Ma-
raxiu theri, os Aykam theri mantinham relações de amizade com os habi-
tantes do Moxahi. Essas relações, no entanto, revelaram-se frágeis, sendo
marcadas por constantes acusações recíprocas de roubo e fuga de mulhe-
res. Por volta de 1997, a morte de um jovem nascido nessa região fomentou
o início do ciclo de vinganças. Anos antes, seu pai fora morto por grupos
do sul da região durante uma visita ao Surucucus. O jovem, na ocasião
criança, foi “adotado” pelos Pirisi theri; cresceu e casou-se entre eles. Em
determinado momento, porém, seu pai adotivo foi removido para Boa Vis-
ta para tratamento de saúde, e os demais habitantes do Pirisi passaram a
atormentá-lo, fazendo-o decidir pelo retorno à sua região de origem. Logo
após sua chegada ao Moxahi, o jovem foi vítima de um acidente ofídico,
que o levou a morte. No mesmo período, seu “pai” Pirisi theri retornava
de Boa Vista, configurando o cenário ideal para a acusação de feitiçaria e
a destruição definitiva das relações de amizade entre os dois grupos. Logo
em seguida à sua morte, diversas mulheres do Moxahi foram ao Pirisi e
acusaram seus habitantes de terem sido os autores, por meio de feitiçaria
de rastros, da mordida da cobra. Os Pirisi theri negaram enfaticamente as
acusações, repassando a culpa a seus vizinhos do sudeste, os Hakoma theri.
Após consultarem estes últimos, as mulheres do Moxahi convenceram-se
de que os culpados eram mesmo do Pirisi e os advertiram a não aparecerem
em sua região sob pena de serem mortos por seus guerreiros. Iniciou-se
então a vendeta.
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A troca de agressões entre os dois grupos teve como consequência
direta a formação de uma aliança entre os habitantes do Moxahi e seus vizi-
nhos Potomatha theri, aumentando assim a profundidade das rivalidades.
Em 1º de dezembro de 2000, em uma ação conjunta, a aliança Moxahi/Po-
tomatha theri mata o principal líder dos habitantes do Pirisi, o que acirrou
os ânimos definitivamente. No dia 17 de fevereiro de 2001, um homem do
Roko é eliminado por engano pela mesma aliança, estendendo o clima de
revolta aos Roko theri e seus parentes da região do Hakoma. A raiva tornou-
-se intensa e, em alguns lugares, o desejo de vingança chegou a clamar pela
eliminação total do inimigo, seja por meio de uma série de ataques consecu-
tivos ― intermediados pelas festas funerárias ―, seja mediante o envenena-
mento da água, chuva de flechas e dispersão de epidemias (xawara).
***
Os reides recíprocos continuam atualmente em diferentes partes da
Terra Indígena Yanomami. A presença de garimpeiros continua criando
problemas por toda a área, sobretudo mediante a distribuição de armas
e munição entre os índios, que as inserem em seu universo sociopolítico,
tornando-os, embora de forma involuntária, dependentes e reféns da pró-
pria violência.
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Os casos apresentados acima vão ao encontro das afirmações de
Albert, que vê nas agressões efetivas e simbólicas duas faces de um único
sistema. Como vimos acima, as incursões guerreiras e o xamanismo agres-
sivo relacionam-se de forma simétrica e inversa segundo a distância dos
inimigos a serem atingidos pelos ataques. Da mesma forma, os diferentes
tipos de feitiçaria (de aliança, de rastro e feitiçaria guerreira) compõem um
sistema coeso com correspondentes no plano das agressões efetivas. Al-
bert nos mostra que a feitiçaria de aliança, caracterizada pela ausência de
letalidade, é restrita ao interior do conjunto dos aliados, opondo-se à feiti-
çaria guerreira, destinada à eliminação dos inimigos que se encontram nos
limites da alteridade sócio-geográfica atingível fisicamente pelos okapë. O
ponto intermediário entre as duas categorias é ocupado pela feitiçaria de
rastro, realizada por pessoas ambíguas que vivem no interior da comuni-
dade da vítima e que necessitam do apoio de inimigos desta para efetivar
sua agressão. Da mesma forma, os duelos realizados com troca de socos
no tórax, golpes com a lateral de machados ou facões e golpes de varas são
restritos a grupos aliados e sua letalidade é apenas acidental. Longe de se
inserirem em um continuum de violência no qual a “guerra” seria o limite
extremo14, esses duelos opõem-se aos reides, que são reservados exclusiva-
mente a grupos que ocupam a posição de inimigos e que por isso localizam-
-se a uma distância geográfica que corresponde a esse status. A posição
intermediária entre os duelos e os reides é, da mesma forma que na feitiça-
ria, ocupada por pessoas ou grupos ambíguos. Sua ação se dá, como vimos
no caso dos Maraxi u e Kasilapai, por meio do nomohori, momentos nos
quais anfitriões ou convidados que ocupam posições intermediárias entre
os aliados e os inimigos fingem amizade a fim de utilizar o efeito surpresa
na realização de um ataque.
A descrição da dinâmica das relações de aliança e antagonismo na
região da serra das Surucucus, por sua vez, nos permite vislumbrar pro-
cessos de aproximação e distanciamento entre os grupos que ali habitam,
tornado visível seu caráter estrutural. Impossibilitados pela circunscrição
14 Sobre os “niveis de violência” ver Chagnon 1968.
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social exercida por seus vizinhos de se deslocarem rumo a regiões distantes,
esses grupos fornecem a paisagem ideal para que possamos compreender a
evolução de suas relações intercomunitárias.
Analisando os diferentes conflitos descritos até aqui, é possível ela-
borar um modelo de evolução das relações de antagonismo composto de 4
fases principais:
1. Marcada por relações de aliança entre dois grupos endogâmicos
de vizinhança. Como nos casos dos Aykam e os Tiritirimopi the-
ri contra seus inimigos do Maraxi u, essas alianças são frágeis,
efetivadas entre afins potenciais mediante trocas de bens, pres-
tações rituais e poucos casamentos.
2. Com o tempo, essa aliança se enfraquece por motivos diversos:
casamentos desfeitos, esposas fugitivas, acusações de furto, ava-
reza e, principalmente, feitiçaria de rastro. Uma tensão latente
surge entre os dois conjuntos, até que alguma morte seja impu-
tada a um dos lados.
3. Inicia-se o ciclo de vinganças. Os grupos se distanciam e toda
comunicação direta é interrompida. Os afins potenciais passam
à condição de inimigos, e os reides-revanche, a marcar o cotidia-
no de ambos os grupos. As condições de vida tornam-se difíceis.
A ameaça constante da presença de guerreiros (wayupë) ou fei-
ticeiros (okapë) impede o cumprimento satisfatório das tarefas
cotidianas. O abastecimento de alimentos torna-se precário. O
trabalho nas roças e as atividades de caça e coleta são dificul-
tados por razões de segurança, e a possibilidade da realização
de deslocamentos repentinos impede qualquer planejamento
relacionado à manutenção ou à abertura de novas roças. Muitas
vezes é necessário abrigar-se entre grupos aliados, submetendo-
-se às condições incômodas ligadas ao status de refugiado.
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4. Em casos de conflitos nos quais não há o emprego indiscrimi-
nado de armas de fogo, as poucas mortes produzidas durante o
ciclo de vinganças tornam-se distantes. Os rituais funerários se
concluem e a raiva (hixio), derivada da morte do ente querido, se
enfraquece. Nesse momento, ambos os grupos se mostram can-
sados das condições difíceis, do convívio com o medo e dos cho-
ros incessantes que embalam as expedições guerreiras. Inicia-se
o processo de reaproximação. Pessoas de idade avançada ou jo-
vens que ainda não participaram dos reides são utilizados como
embaixadores na tarefa de restabelecer relações deterioradas.
Após algum tempo, os primeiros convites para a participação em
festas funerárias são enviados, e, em alguns casos, um novo ca-
samento é selado a fim de encerrar definitivamente a contenda.
O ciclo de desenvolvimento das relações de antagonismo, exposto
acima, ilustra o movimento que marca a dinâmica das relações entre os
diferentes grupos endogâmicos de vizinhança da serra das Surucucus. Se
a partir desse modelo, olharmos as relações entre eles ao longo do tem-
po, veremos que enquanto a aliança entre grupos endogâmicos A e B vai
paulatinamente enfraquecendo, as relações de antagonismo entre o mesmo
CICLO DE DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE ANTAGONISMO
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grupo A e seus inimigos C vão atingindo o ponto de esgotamento. Ou seja,
enquanto um processo de distanciamento se opera entre os aliados, um
processo simétrico e inverso de reaproximação ocorre entre os inimigos.
Observando os casos descritos, vemos como as populações do
Aykam, Mayepo u, Roko, Hakoma, Moxahi e Potomatha formavam um
único bloco de aliança em oposição ao conjunto dos Maraxi u e Xiriana
até pelo menos meados da década de 1970, quando os últimos foram defi-
nitivamente afastados da região e iniciou-se a penetração dos garimpeiros.
A saída da Meva e o início dos conflitos entre Roko/Hakoma vs. Aykam
provocaram um reordenamento das relações de aliança e antagonismo. O
bloco de aliança inicial cindiu-se, opondo Roko e Hakoma aos Aykam e
demais aliados. Cerca de uma década depois, os Roko theri restabeleceram
relações pacíficas em toda a região. Por fim, após um curto intervalo, foi
a vez dos grupos do norte de Surucucus (Moxahi e Potomata) unirem-se
em uma aliança em oposição a seus antigos aliados (Aykam, Mayepo u,
Roko e Hakoma theri), reordenando mais uma vez o quadro de alianças e
inimizades.
Como espero ter conseguido mostrar no decorrer de minha argu-
mentação, os reides ― geralmente identificados com a guerra Yanomami
― são apenas uma pequena parte de um amplo universo de relações de an-
tagonismo que inclui, por um lado, elementos simbólicos, poderes patogê-
nicos e classificações sociais, e por outro, relações de parentesco, formação
de grupos e alternância de papéis rituais ao longo do tempo.
As informações a respeito do caráter simbólico e do universo cosmo-
lógico ― ambos constituintes do sistema de agressões ― complementam os
dados coletados em campo, fornecendo um ponto de vista “de dentro” que
dá sentido aos aspectos sociológicos observados.
Como vimos, Albert (1985) nos mostra que as relações sociopolíticas
entre os diferentes grupos locais (identificados em seu contexto às casas
coletivas) se baseiam em um sistema de classificação das relações interco-
munitárias que, a partir de um gradiente de proximidade e distância, posi-
ciona os grupos vizinhos em diferentes categorias sócio-espaciais dotadas
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de poderes patogênicos específicos. Essas categorias organizam as relações
sociais mediante um sistema de diagnósticos e acusações que dá subsídios
ao sistema de agressões e às práticas rituais.
As agressões, sempre consideradas atos de retaliação, compõem um
sistema que integra ações efetivas e simbólicas de maneira simbiótica, fun-
damentando a execução de feitiçarias, reides e o envio de espíritos deleté-
rios. Esse sistema baseia-se em uma lógica canibal, comum ao universo da
predação, segundo o qual toda morte é considerada fruto da devoração dos
elementos físicos e espirituais da pessoa.
Essa devoração insere-se no âmbito das práticas funerárias. Por um
lado, afins classificatórios sepultadores trocam o consumo ritual das cinzas
do cadáver pelos alimentos e a hospitalidade do anfitrião enlutado; e por
outro, os mesmos sepultadores compartilham com os inimigos matadores o
trabalho de destruição dos traços do morto, efetivado mediante o endocani-
balismo funerário dos primeiros e o exocanibalismo guerreiro dos últimos.
A separação entre vivos e mortos fundamenta tudo isso. Dessa for-
ma, a existência do mundo dos vivos é garantida pela preservação da pe-
riodicidade, sustentada essencialmente pela eliminação de todo e qualquer
traço que possa provocar o retorno dos espectros.
A transformação das relações entre os grupos de vizinhança, que ora
são aliados, ora inimigos, torna-se compreensível quando enfocada a partir
das especificidades da posição de afinidade potencial na Amazônia. Como vi-
mos acima, as características intrínsecas do dravidianato no continente ― que
tende a sobrepor à classificação fundada no parentesco um gradiente dinâmi-
co de proximidade/distância ― permitem que a relação entre os grupos endo-
gâmicos de vizinhança seja pautada pela transição entre diferentes categorias.
Uma vez que a maioria das trocas matrimoniais se dá no interior de
um mesmo grupo de vizinhança (mais ou menos disperso segundo condi-
ções contextuais), as relações entre esses grupos são restritas ao âmbito da
afinidade potencial, espécie de categoria intermediária entre os cognatos
(conjunto que inclui os afins efetivos) e os inimigos (entre os quais nenhu-
ma comunicação direta é possível).
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Vimos como a afinidade potencial é marcada pela transitoriedade.
Os grupos situados nessa categoria podem ser atraídos para o interior (me-
diante a efetivação de casamentos entre seus membros), ou expelidos para
o âmbito dos inimigos distantes por meio do rompimento das frágeis rela-
ções de troca de objetos e serviços rituais. Essa transição é sempre acompa-
nhada pelo deslocamento efetivo no espaço, aproximando os grupos endo-
gâmicos que desenvolvem relações de aliança, e afastando radicalmente os
antigos aliados que passam à categoria de inimigos.
O desenvolvimento das relações de aliança e antagonismo entre os
diferentes grupos endogâmicos de vizinhança da serra das Surucucus mos-
tra como o movimento de aproximação e distanciamento entre eles permite
que a complementaridade exercida entre os responsáveis pelo serviço fune-
rário seja estendida à diacronia. Essa alternância entre as posições de alia-
do e inimigo faz com que a troca dos papéis e atributos rituais envolvidos
na eliminação dos traços do cadáver atinja a todos. Inimigos devoradores
tornam-se aliados sepultadores e vice-versa, concretizando um sistema de
reciprocidade ritual de ciclo longo.
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