lugares de memória: bens culturais?

29

Upload: independent

Post on 02-Feb-2023

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

© 2011 Editora Forum Ltda.

E proibida a reprodw;ao total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletr6nico,inclusive por processos xerograficos, sern autorizac;ao expressa do Editor.

Conselho Editorial

Adilson Abreu DallariAndre Ramos Tavares

Carlos Ayres BrittoCarlos Mario da Silva Velloso

Carlos Pinto Coelho MottaCarmen Lucia Anhmes Rocha

Cesar Augusto Guimaraes PereiraClovis Beznos

Cristiana FortiniDinora Adelaide Musetti Grotti

Diogo de Figueiredo Moreira NetoEgan Beckmann Moreira

Emerson GabardoFabricio MottaFernando Rossi

Flavio Henrique Unes Pereira

Floriano de Azevedo Marques NetoGustavo Justino de OliveiraInes Virginia Prado SoaresJorge Ulisses Jacoby FernandesJose Nilo de CastroJuarez FreitasLucia Valle Figueiredo (in memoriam)Luciano FerrazLucio DelfinoMarcia CarnmarosanoMaria Sylvia Zanella Di PietroNey Jose de FreitasOswaldo Othon de Pontes Sara iva FilhoPaulo ModestoRomeu Felipe Bacellar FilhoSergio Guerra

...'i;) EdHor8 Forum,

Luis Claudio Rodrigues FerreiraPresidente e Editor

Coordena,ao editorial: Olga M. A. SousaRevisao: Equipe Forum

Bibliotecarios: !zabel Antonina A. Miranda - CRB 2904 - 6' RegiaoRicardo Neto - CRB 2752 - 6' RegiaoTatiana Augusta Duarte - CRB 2842 - 6' RegiaoCapa, projeto grMico e diagrama,ao: Walter Santos

Av. Afonso Pena, 2770 - 15'/16' andares - Funcionarios - CEP 30130-007Belo Horizonte - Minas Gerais - Tel.: (31) 2121.4900/2121.4949www.editoraforum.coID.br-editorafoTum@editoraforurn.com.br

045 Olhar multidisciplinar sobre a efetividade da prote,ao do patrirnonio cultural/Sandra Cureau ; Sandra Akemi Shimada Kishi ; Ines Virginia Prado Soares ;Claudia Marcia Freire Lage (Coord.). Prefacio Paulo Affonso Leme Machado.Belo Horizonte: Forum, 2011.

553 p.ISBN 978-85-7700-474-4

1. Direito - Patrimonio Publico - Patrimonio CuI rural. 2. Arquitetura e urbanismo.3. Direito constituciona!. 4. Direitos fundamentais. 5. Direito ambienta!. 6. Historia.7. Geografia. 8. Artes. 9. Cinema. 10. Antropologia. l1. Direito internaciona!.12. Sociologia juridica. 13. Filosofia. 14. Paleontologia. 15. Ciencias sociais. 16.Arqueologia. 17. Religiao. I. Cureau, Sandra. II. Kishi, Sandra Akemi Shimada. III.Soares, Ines Virginia Prado. IV. Lage, Claudia Marcia Freire. V. Machado, PauloAffonso Leme.

CDD: 341.349COU: 351.71:008

Informa,ao bibliogrMica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associa,ao Brasileira deNormas Tecnicas (ABNT):

CUREAU, Sandra et 01. (Coord.). Olhar multidisciplinar sabre a efetividade da prote,iio dopatrim8nio cultural. Belo Horizonte: Forum, 2011. 553 p. ISBN 978-85-7700-474-4.

CAPITULO 30

LUGARES DE MEMORIA: BENS CULTURAIS?

Ines Virginia Prado SoaresRenan Honorio Quinalha

Sumario: 1 Introdw;ao - 2 A volta da ordem democratica - 2.1 As medidas para repara<;aodas vitimas da ditadura brasileira - 2.2 Retorno a democracia e bens culturais - 3 Memoriacoletiva e cultura - 3.1Amemoria entre a lembran<;ae a imagina<;ao- 3.2Sujeito e objeto: umamemoria coletiva - 4 Lugares de Memoria e graves viola<;6esde direitos humanos - 4.1Rela<;6esentre memoria e cultura: as iniciativas de memorializa<;ao - 4.2 Lugares de Memoria: conceito- 5 Os Lugares de Memoria e suas fun<;6escomo bens culturais - 5.1 Os Lugares de Memoria seenquadram nas fun<;6esdo patrimonio cultural brasileiro na Constitui<;ao?- 5.2A fun<;aodeser 0 elo entre 0 passado e 0 presente - 5.3A fun<;aode contribuir para a educa<;aoem valorese sentimentos afetivos - 5.4A fun<;aode sustentabilidade: presente e futuro com garantias denao repeti<;ao?- 6 Conclus6es - Referencias

1 Introdu<~ao

o estudo da rela<;ao entre patrimonio cultural e fatores sociais, economicose politicos e cada vez mais essencial para compreensao das praticas democraticase da efetividade dos direitos humanos no Estado de Direito. E sob esta atica que 0

presente capitulo analisara a possibilidade de tratar os chamados Lugares deMem6riacomo bens culturais destinados a atender as demand as democratic as apas a transi<;aode urn periodo de graves viola<;6es de direitos humanos.1

oBrasil foi submetido a uma ditadura militar de 1964 a 1985. Este periodo foimarcado por supressao de liberdades publicas e praticas estatais de graves viola<;6esde direitos humanos, com ampla repressao contra cidadaos vistos como opositoresdo regime autoritario, por meio de pris6es, desaparecimentos fon;;ados, torturas,

I Para compreensao do que e justi~a de transi~ao ver: MEZAROBBA, Glenda. De que se fala, quando se diz"Justi~a de Transi~ao"? BIB, Siio Paulo, n. 67, p. 111-122, jan./jun. 2009 e BICKFORD, Louis. TransitionalJustice. In: SHELTON, Dinah (Ed.). The Encyclopedia of Genocide and Crimes against Humanity. Detroit:Macmillan Reference USA, 2004. v. 3, p. 1045-1047. E tarnbern ver: ELSTER, Jon, Rendici6n de cuenias: La Justiciatransicional em perspectiva historica. Trad. E. Zaidenwerg. Buenos Aires: Katz Editores, 2006. VALENCIAVILLA, Hernando. lntroduccion a la justicia transicional. Claves de Raz6n Practica, Madrid, n. 180, mar. 2008.Disponivel em: <http://escolapau. uab. cat/img/programas/ derecho/justicia/seminariojt/tex03. pdf>. Acesso ern:1" abr. 2010.

-10 [ Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi,mb Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.):> [Olhar Multidisciplinar sobre a Efetividade da Protec;aodo Patrimonio CuIrural

exilios, homicidios, banimentos, estupros, dentre outras vioH~ncias.Esse legado deviolac;:6esem massa de direitos humanos foi recebido pela sociedade brasileira e, atehoje, passados quase trinta anos do final da ditadura, ainda se buscam as melhorese menos dolorosas alternativas para lidar com essa heranc;:a.

No dificil caminho que vern sendo percorrido em nosso pais, a aparente opc;:aopelo esquecimento, por nao recordar, por caminhar adiante sem se prender ao legadodo regime autoritario, convive com uma latencia de mem6ria e com a vontade de sabera verdade, de entender a historia recente. No plano juridico, a transic;:aobrasileirainiciada formalmente com a promulgac;:ao da Lei de Anistia em 19792 se consolidacom a Constituic;:aode 1988.

o texto constitucional valoriza os direitos humanos e oferece uma gama demecanismos aptos a garantir a pluralidade, 0 exerdcio das liberdades fundamentais ea fruic;:aodos direitos fundamentais individuais e coletivos. Nesse cenario, os direitosa memoria e a verdade encontraram abrigo nos dispositivos dedicados aos direitoshumanos, mas tambem em outros ambitos, como nos artigos referentes a protec;:aodas manifestac;:6ese bens culturais (arts. 215 e 216), que fazem refen'?nciaexpressa amemoria como elemento qualificador dos bens que integram 0 patrimonio culturalbrasileiro (art. 216, caput).

Sem maiores aprofundamentos, pode-se afirmar que os Lugares de Mem6riasao urn recurso para a efetividade dos direitos humanos e se situam como bensessenciais para a memoria, necessarios para a reparac;:aosimbolica das vitimas e dasociedade. No entanto, qual e 0 suporte rnais adequado para tutelar esses Lugares?Nesta perspectiva, os bens culturais (e seus instrumentos protetivos) assumem urnlugar de destaque. E e sob 0 enfoque da protec;:aojuridica dos bens culturais que serafeita a analise se os Lugares de Mem6ria, que surgem no cenario brasileiro a partir dopassado violento da ditadura militar, sao bens culturais tipicos e, portanto, devemser protegidos pelo sistema de tutela do patrimonio cultural.

A discussao comec;:aracom urn item que trata brevemente do retorno a demo-cracia apos a mais recente ditadura brasileira e apresenta a ligac;:aoentre os bensculturais e os valores de referencia que podem ser encontrados no legado da dita-dura militar brasileira. No item seguinte, sera abordada a memoria, seu contextoindividual e coletivo e sua importancia para a elaborac;:aodo passado violento, berncomo para prevenc;:aode praticas semelhantes no presente ou futuro. Por fim, 0 ultimoitem analisara os Lugares de Mem6ria e fornecera subsidios para que 0 leitor possaresponder: "os lugares e bens ligados a memoria do periodo da ditadura militar saomerecedores de tutela como patrimonio cultural brasileiro?"

2 A volta da ordem democratica

2.1As medidas para repara<;ao das vitimas da ditadura brasileira

Apos quase tres decadas do inicio do processo de redemocratizac;:ao,0 tema decomo enfrentar 0 legado de violencia ja ocupa a agenda brasileira de direitos humanos_

2Lei nO 6.683/79.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honorio Quinalha I 511Lugares de Memoria: Bens Culturais?

No plano juridico, ainda se pergunta: a) quais os mecamsmos mais adequados paralidar corn violac,:6es praticadas no periodo da ditadura militar (1964-1985)?; b) osinstrumentos de protec,:ao dos bens culturais podem ser utilizados para repararsimbolicamente as vitimas e a sociedade?; ou ainda, c) os lugares e bens ligados amemoria do periodo da ditadura militar sao merecedores de tutela como patrirnoniocultural brasileiro?

As respostas para esses questionamentos tern sido objeto de produc,:ao recenteno pais, mas no plano internacional ja ha larga reflexao produzida na ciencia politica,sociologia, filosofia e dire ito, que indica as experiencias exitosas e sugere pistas para 0

avanc,:odo tema no Brasil. Ha, tambem, farta jurisprudencia das Cortes Internacionais,corn destaque para Corte Interamericana de Direitos Humanos, que desde 0 CasoVelasquez Rodriguez VS. Honduras3 fixou obrigac,:6es a serem cumpridas pelo Estado,relativas a justic,:a, verdade, reparac,:ao e reformulac,:ao das instituic,:6es. Alem disso,a experiencia dos paises ern transic,:ao, a atuac,:ao das entidades de defesa de direitoshumanos e a contribuic,:ao dos pesquisadores fornecem elementos que permitema abertura para novas formulas para lidar, localmente, corn as graves e massivasviolac,:6es de direitos humanos ocorridas.

Sob a considerac,:ao dos Lugares de Memoria como instrumento a ser usadopelo Estado para cumprimento dessas obrigac,:6es pelo Estado, 0 grande desafio naseara cultural e construir, consolidar e gerir urn acervo pautado na diversidade damemoria brasileira recente, corn destaque para a memoria das vitimas do regimemilitar. Esse desafio nao e novo, nem afeto somente aos que lidam corn politicasculturais vinculadas aos direitos humanos. Antes, refere-se a urn tratamento dosconflitos e das tens6es que, longe de ser naturat tern sido muitas vezes reafirmadona historia politica de nosso pais. Nesse sentido, Paulo Sergio Pinheiro pontua:

Nao faz parte da tradi~ao politica brasileira acertar contas com 0 passado. Todas astransi~6es do periodo republicano foram marcadas par anistias generalizadas e peloesquecimento. 0 precedente mais proximo que sepode invocar antes da ditadura militarde 1964foi a volta Ii democracia com a Constitui~ao de 1946.E os crimes do EstadoNovo se esvoa~aram para nao perturbar os festejos do retorno ao regime democratica,como os da ditadura de 1964,para nao empanar 0 brilho da Nova Republica.4

Diante desse cenario, qual seria a ligac,:aojuridica entre 0 teor constitucionale 0 conjunto de abordagens para lidar corn 0 legado da ditadura? Ou melhor: aConstituic,:ao abtigou outros direitos relativos a este legado, alem da declarac,:ao deanistia prevista no art. 8Q do ADCT (Ato das Disposic,:6es Constitucionais Transitorias)?Ern que lugares se enquadrariam, no sistema de justic,:abrasileiro, os direito a verdade,a memoria e a reformulac,:ao das instituic,:6es? Sao direitos culturais? Exigiriamremedios juridicos (judiciais e extrajudiciais) distintos?

Certamente, a Constituic,:ao oferece suporte juridico para reparac,:ao das vio-lac,:6es de direitos humanos no ambito local, tanto por meio de seu regime e seusprindpios, como pelos compromissos internacionais firmados pelo Estado brasileiro

3 Sentenc;a de 29 de julho de 1988. Serie C, n. 4.4 PINHEIRO. Prefacio: esquecer e comec;ar a morrer, op. cit, p. 12.

512 Sa.'ldra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Oihar Multidisciplinar sobre a Efetividade da Protec;ao do Patrimonio Cultural

(art. 5Q,§2Q).Nessa linha, 0 texto constitucional apresenta elementos que tambemproporcionam a redefini<;;aoda cidadania no tratamento das vitimas do regimeautoritario e da sociedade em geral, especialmente pela oferta de instrumentosprocessuais e de base normativa material para a defesa do dire ito a informa<;;aoedos direitos a verdade e a memoria como direitos coletivos.

Por exemplo, no ordenamento juridico brasileiro estao plasmadas normas quepreveem a amplia<;;aodo rol de legitimados ativos, cuja consequencia e a possibilidadede iniciativas nao oficiais de verdade e de memoria;5 ou, ainda, dispositivos querenovam a importancia dos pilares democniticos, especialmente do principio datransparencia e do dire ito a informa<;;ao,do que decorre a fundamenta<;;aojuridicapara a cria<;;aode espa<;;ospublicos destinados a recorda<;:aodo legado de violenciadeixado pela ditadura militar, como forma de repudio de tais a<;;6ese de valoriza<;;aodas memorias das vitimas.

No mais, 0 sistema de justi<;;abrasileiro permite a considera<;;aodas expectativase necessidades das vitimas para elabora<;:aoe implementa<;;aode politicas publicas,com aten<;;aoprimordial a efetividade do direito a verdade e a memoria. Por fim,vale destacar que, alem de escassas, as normas relacionadas a gestao participativ3da sociedade nos assuntos relativos a memoria do periodo e ao esclarecimento dosacontecimentos mais violentos da ditadura militar, especialmente em rela<;;aoaosdesaparecidos politicos e a prMica reiterada de torturas contra os presos, ainda eterna pouco explorado pela doutrina brasileira.

Assim, passam ao largo do interesse dos juristas importantes discuss6es epesquisas sobre instrumentos e mecanismos judiciais e extrajudiciais para lidar comas graves viola<;;6esde direitos humanos na ditadura, tais como monitoramento dasComiss6es de Anistia e Especial de Mortos e Desaparecidos, acompanhamento daeventual Comissao de Verdade, a forma<;;aode acervos para memoriais, museus, 0

acesso a arquivos publicos, indica<;;aode verba para localiza<;;aode restos mortais dedesaparecidos politicos em on;amentos participativos, dentre outros.

2.2 Retorno a demo era cia e bens culturaisA condu<;;aodo processo de resgate da memoria e da verdade apos periodos

autoritarios, como 0 vivido por nosso pais, segue caminhos diferentes a depender decada povo e nao ha uma formula unica para se lidar com 0 legado de violencia e desegredo. No entanto, e consenso que os mecanismos de justi<;:a,verdade, memoria erepara<;;aodevem estar presentes nas transi<;;6ese consolida<;;6esdemocraticas.

E tambem amplamente aceito, a partir das experiencias concretas ja vivenciadasem outros paises, que as necessidades das vitimas e da sociedade, apos 0 termino deperiodos cravados por hostilidades, passam pela atent;ao e valorizat;ao dos bens evalores culturais. Tanto e assim que, entre as decadas de 30 e 50 do seculo passado,fase marcada especialmente pela Segunda Guerra Mundial, ha 0 amadurecimento

5 Dispositivos do C6digo de Defesa do Consumidor, da Lei de A~ao Civil Publica, do Estatuto da Cidade, da Leido tombamento - Decreto-Lei nQ25/1937, Lei da Politica Nacional do Meio Ambiente dentre outras.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honoria Quinalha I 513Lugares de Mem6ria: Bens Culturais?

a tratativa do patrimonio cultural e, nas decadas as seguintes (50-60), ocorre 0

3sentamento institucional corn avan~o no ambito organizativo e profissional.6

A no~ao de patrimonio cultural voltada a tematica de viola~ao dos direitosumanos (com aten~ao para bens ligados aos period os ditatoriais), no entanto, nao eecorrencia natural do retorno ou da passagem para a democracia. Antes, e 0 resultadoe urn processo ern constante constru~ao, que tern seus tra~os atuais esclarecidos nolicio do seculo XX,especialmente nas decadas de 20-30. No Brasil, por exemplo, naoJmente na ditadura militar (1964-1985), mas tambem no Estado Novo varguista,avia 0 reconhecimento da importancia da cultura e suas formas de expressao, sejaela estrutura~ao de uma politica cultural, com instrumentos protetivos, seja pelatiliza~ao de mecanismos de censura e tolhimento das liberdades culturais.

Logo no come~o do seculo XX, a mudan~a do tratamento do patrimonio cul-lral se deu com 0 desenvolvimento de uma concep~ao de patrimonio com a abran-encia tanto dos bens monumentais e de valor excepcional como dos bens materiaisimateriais que tivessem importancia para a comunidade, mesmo que sem nenhumtributo externo especial, fruto da produ~ao cotidiana. Porem, essas altera~6es naoJram postas em pratica, em razao da crise que se abateu sobre 0 mundo (periodoas duas grandes Guerras Mundiais) e que impediu a implementa~ao das medidasinstrumentos que realmente tratassem 0 cotidiano e a memoria coletiva como bensulturais relevantes?

As abordagens mais abrangentes de cultura e a busca de instrumentos efetivosma a salvaguarda do patrimonio cultural da humanidade se consolidam no periodo>os-guerra.8 Desde entao, 0 patrimonio cultural se firma conceitualmente como 0

onjunto de bens materiais e imateriais, acumulados durante 0 tempo ou produzidosa atualidade, os quais os homens valorizam como fundamentais para a frui~ao daida no momenta presente e que conservam para rep res en tar a transposi~ao entre 0

lassado e 0 futuro. E, ao mesmo tempo, heran<;:a,frui<;:aoe memoria. E a valora<;:aoontemporanea de certos bens, materiais ou imateriais, que deverao servir de refe-encia para entender 0 passado, viver 0 presente e refletir sobre 0 futuro.

A vivencia de uma ditadura militar no Brasil gerou, para 0 Estado, obriga~6eselativas ao fortalecimento e valoriza~ao da memoria e verdade, inclusive com alecessidade de direcionar 0 olhar para bens portadores de valores de referencia demo-ratica ligados a memoria, identidade e a~ao do povo brasileiro.9 E exatamente nestalerspectiva que se localiza a liga~ao entre tutela do patrimonio cultural e repara~aoimbolica das vitimas 'e da sociedade brasileira pelas graves viola~6es de direitoslumanos praticadas no periodo autoritario. Especificamente, e nesse cenario que selstifica a discussao acerca dos lugares de memoria como bens culturais.

BALLART, Joseph; TRESSERRAS, Jordi Juan i. Gestion del patrimol1io cultural. 2. ed. Barcelona: Ariel, 2005. p. 61.BALLART; TRESSERRAS, op. cit., p. 54.Em 1937, a Sociedade das Na,6es, na Conferencia de Athenas, defendeu a salvaguarda do patrimonio culturalda humanidade na Carta de Athenas, produzida no IV Congresso Intemacional de Arquitetura Moderna(ClAM).E consenso na doutrina que essas obriga,6es do Estado brasileiro nao sao altemativas umas as outras, nemsao opcionais e 0 Estado deve cumprir cada uma delas na medida de suas possibilidades e de boa-fe. Nessesentido ver MEZAROBBA, Glenda. Entrevista com Juan Mendez, presidente do Internacional Center forTransitional Justice (ICT]). Sur - Revista Intemaciol1al de Direitos Humal1os, Sao Paulo, v. 7, p. 168-175, 2007.

514 Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi. Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Olhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Prote<;ao do Patrimonio Cultural

No Brasil, 0 direito a cultura nao esta vinculado, necessariamente, a urn sistemajuridico que estabelec;:amecanismos participativos e que busque a igualdade material,ja que 0 desenvolvimento da politica cultural nao depende da participac;:ao popular ouda busca constante da democratizac;:ao do aces so e fruic;:aodos bens culturais materiaise imateriais. Tanto que as Constituic;:5es anteriores, mesmo as nao democraticas,continham normas de protec;:ao a cultura e ao patrimonio cultural.

o que muda com a Constituic;:ao atual, em relac;:aoao tratamento da cultura e dosbens culturais, decorre da propria concepc;:ao do Brasil como urn Estado Oemocraticode direito. Eo trac;:ocultural democratico e estabelecido, em especial: a) pelos artigosconstitucionais que versam sobre direito a cultura e sobre a importancia da tutelados bens culturais que sao portadores de referencias para os grupos formadores dasociedade; e b) pela estruturac;:ao do Estado para a protec;:ao dos valores culturaiscom a colaborac;:ao da comunidade e tambem dentro do sistema de protec;:ao dosdireitos coletivos.

A Constituic;:ao nao define 0 que e patrimonio cultural brasileiro, porem esta-belece que 0 seu tratamento deva se pautar no respeito a diversidade e a liberdadee na busca da igualdade material entre e para os grupos formadores da sociedadebrasileira, especialmente para os grupos desfavorecidos historica, social e economi-camente. Alem disso, a sua tutela deve buscar sempre a manutenc;:ao dos elementosessenciais a vida digna e com qualidade, que deve ser fruido tanto pelas presentescomo pelas futuras gerac;:5es.

A indicac;:ao constitucional nao privilegia a monumentalidade ou a excepcio-nalidade dos bens imoveis na composic;:ao do patrimonio cultural brasileiro. Oslocais ligados as graves violac;:5es aos direitos humanos ocorridos na ditadura militar(1964-1985) podem se enquadrar, por exemplo, no dispositivo que aponta como bensculturais os espac;:os destinados a manifestac;:6es artistico-culturais (art. 216, inc. IV)ou nos sitios de interesse arqueologico ou antropologico (art. 216, inc. V).

Os regimes autoritarios latino-americanos, dentre os quais a ditadura brasi-leira, adotaram logicas repressivas que passavam, centralmente, pela exclusao, peloesquecimento e pelo aniquilamento das diferenc;:as e dos grupos ou individuosque as personificavam. Esses processos, que objetivavam nao apenas 0 isolamentomas 0 proprio apagamento das identidades consideradas desviantes, aconteciamem algum espac;:o fisico, que pode ser atualmente identificado e ate pesquisado,se houver indicios de que dali podem ser extraidas informac;:5es relevantes para acompreensao das atrocidades, suas circunstancias, sua motivac;:ao ou qualquer outramaterialidade. Nesse sentido, a discussao sobre Lugares de Memoria encontra abrigotanto no ambito dos direitos humanos (por ser espac;:o de inclusao para gruposvulneraveis) como tambem na tutela da memoria da dor como bern cultural imaterial(forma de expressao).

Nesse sentido, investigar a memoria das vitimas, ainda que nao seja a tmica, euma das perspectivas privilegiadas e que precisam ser levadas em conta na construc;:aodemocratica de uma memoria social justa. E de grande importancia a contribuic;:aode outra narrativa historica, assumindo essa perspectiva da memoria dos que foramafetados e silenciados. Oai a necessidade de meios de busca e lugares de difusao dessasmemorias que for am deslegitimadas ou tornadas invisiveis, e os Lugares de Memoriasao urn desses espac;:ospara reflexao e difusao do nao esquecimento, da nao repetic;:ao.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Hon6ria Quinalha I 515Lugares de Memoria: Bens Culturais?

3Memoria coletiva e cultura

3.1A memoria entre a lembran<;ae a imagina<;aoEm diversos campos de reflexao, a memoria tern assumido importancia cada

vez maior, sendo apropriada das mais diferentes formas, desde as teorias filosoficas~sociologicas, ate a estetica e a etica. Alguns autores chegarao a afirmar que vivemos,:ltualmente, em uma era da memoria_lo No entanto, a reflexao em tomo da memoria,~m suas variadas dimensoes, nao e algo inedito e tampouco recente. Em verdade,remonta as origens do pensamento filosofico ocidental; desde os cLlssicos da Grecia,passando pelo empirismo ingles e pela tradi<;ao do racionalismo frances, diferentesforam as formula<;oes em torno desse conceito.

Desde sua origem, 0 signo da memoria floresce sob a tensao entre dois sentidosque the sao constitutivos: a recorda<;ao e a imagina<;ao. Por ser concebida como urnmeio de acesso ao passado, comumente, mostrou-se capaz nao apenas de rememora-10,mas de recri<i-Io,imputando-lhe elementos novos. Durante muito tempo, buscou-sedemonstrar que esses processos do imaginario e da lembran<;a eram marcadamentediferentes e, de algum modo, ate mesmo excludentes entre si. Enquanto 0 objetivoda imagina<;ao estaria orientado ao fantastico, a fic<;ao,ao irreal, ao impossivel e aoutopico, a intencionalidade da lembran<;a seria dirigida diretamente a realidadeanterior, a coisa recordada enquanto tal. Esta ultima dimensao, da memoria enquantomera recorda<;ao, era qualificada como mais fiel e, por isso, mais adequada pararecuperar 0 passado.

Outra leitura desse fen6meno, hoje mais aceita, abandona essa perspectivade que a imagina<;:ao seja uma forma inferior de conhecimento em compara<;:ao arememora<;:ao. Como as recorda<;oes do pass ado aparecem sempre representadas,na maior parte das vezes pOl' imagens, toma-se inevitavel 0 hibridismo da memoriano desafio simultaneo de identificar urn registro passado e consumar sua evoca<;:aono tempo presente.n

Assim, as duas dimensoes - imagina<;ao/rememora<;ao - sao complemen-tares. Em outras palavras, todo exerdcio de memoria e realizado a partir de media<;oese representa<;oes, trazendo a ton a essa ambiguidade que lhe e constitutiva entrerecordar e reconstruir 0 passado, seja pelas lacunas apresentadas por este, seja pelassuas multiplas leituras possiveis.

A despeito desse tra<;o,°paradoxo maior e que nao resta nada melhor alem dapropria memoria para garantir a efetiva ocorrencia de algo. A recorda<;:ao e, portanto,urn meio privilegiado de revisitar e interpretar experiencias passadas.

As reflexoes mais atuais em torno do tema da memoria, no entanto, ternprivilegiado as suas dimensoes politicas e coletivas, em especial sua rela<;ao com aqualidade democratica das diferentes sociedades em momentos pos-transicionaisou pos-conflitivos. Esse tambem e ° enfoque do presente capitulo, ja que a analise

10 LORENZ, Federico. Los Iugares de Ia memoria. Buenos Aires: Madreselva, 2009. p. 7. BRAUER, Daniel. El arlecomo memoria: reflexiones acerca de la dimension historica de la obra de arte. In: LORENZANO, Sandra;BUCHENHORST, Ralph (Org.). Politicas de Ia memoria: tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires:Carla; Mexico: Universidad del Claustra de Sor Juana, 2007. p. 269.

11 RICOUER, Paul. La memoria, la his/aria, el alvido. Buenos Aires: Fonda de Cultura Economica, 2010. p. 22.

516 Saro.d.raCureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, lnes Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Olhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Prote~ao do Patrimonio Cultural

(

C

c

Fa

4

4

Cir01

feelpIin

Df'ddvaSI

siH

pe,

14Aidacd,pc

15V,seBl

dos Lugares de Mem6ria como bens culturais somente tern sentido se estes locais seapresentam importantes para a coletividade e exercem as fun<;oes indicadas para osbens culturais em uma democracia.

3.2 Sujeito e objeto: uma memoria coletivaFalar em memoria significa, antes de qualquer outra coisa, confrontar-se com

duas perguntas fundamentais: uma relacionada ao sujeito e a outra ao objeto do atode memoria. 0 exerdcio da memoria tern sempre sujeito e objeto definidos: por urnlado, a memoria e sempre pessoal e comprometida, ou seja, ha sempre alguem querecorda, 0 possuidor da memoria e, portanto, 0 ponto de partida da lembran<;a; poroutro, lembra-se sempre de algo, 0 que significa que a recorda<;ao esta sempre emreferencia a urn fa to que se pretende rememorar, dimensao que e conhecida comocarater objetal da memoria.

Oentre esses diferentes objetos da memoria, os momentos de extrema violenciae de viola<;ao sistematica de direitos fundamentais apresentam-se como umaperspectiva privilegiada para compreender as caracteristicas essenciais dos processosde rememora<;ao. Exemplos tradicionalmente discutidos, apenas para ilustrar, saoas duas Grandes Guerras Mundiais, a Shoa, os regimes fascistas e protofascistaseuropeus, as guerras civis e 0 sistema do Apartheid na Africa, as tiranias teocraticasno Oriente e as ditaduras militares na America Latina. A memoria sobre estas ultimas,em especial sobre 0 caso brasileiro, e 0 foco principal desse artigo.

Esses episodios sao lembran<;as incomodas a toda a humanidade que, no seculoXX, atingiram urn apice de horror e barbarie, qualitativa e quantitativa mente, dife-rentes do que se viu ate entao. Por constituirem situa<;:oes-limite, convocam, ao mesmotempo em que dificultam, 0 ato de constihli<;ao da memoria. Com efeito, a naturezaintensamente traumatica desses conflitos de alto potencial de desagrega<;:ao socialcoloca, aos que sobre ele se debru<;am, 0 desafio da representa<;ao do irrepresentaveL

Em outras palavras, se toda lembran<;:a precisa ser representada para acessaro presente, esses momentos passados de grave violencia poem ern evidencia tantoos limites quanta as potencialidades do que significa a narra<;ao desses efeitostraumaticos. A experiencia, nesses casos, nao e passivel de pronta elabora<;:ao noplano das diferentes linguagens, pois a propria condi<;:ao humana e colocada ernxeque diante desses acontecimentos.12 Essa situa<;:ao torna-se ainda mais paradoxalporque esses momentos extremos sao tao dificeis de lembrar quanto de simplesmenteesquecer, impossibilitando a mera recusa, pela nega<;:ao, de urn passado indesejado.

Oai a relevancia cada vez mais sentida da memoria coletiva, que remete justa-mente a fatos historic os que transcendem as intimidades individuais, a despeito de

12Sobre 0 paradoxo da representa~ao do irrepresentavel, tambern chamado "paradoxo de Levi", vale consul tara analise de Agamben sobre a impossibilidade do testemunho sobre Auschwitz: AGAMBEN, Giorgio. 0 queresta de ALlschwitz. Sao Paulo: Boitempo, 2007. Diante de tais fatos graves, variadas sao as respostas individuaise coletivas, tanto dos perpetradores, quanto das testemunhas ou mesmo das vitimas. Interessante estudomapeando algumas dessas possiveis rea~6es encontra-se em COHEN, Stanley. Estados de negaci6n: ensayosobre atrocidades y sufrimientos. Buenos Aires: Departamento de Publicaciones de la Facultad de Derecho -UBA, 2005.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Hon6rio Quinalha I 517Lugares de Memoria: Bens Culturais?

tambem influencia-Ias. Por interessar a urn grupo de individuos, que pode ser umapequena familia, uma sociedade nacional ou ate mesmo a comunidade humanaem seu conjunto, a memoria de determinado acontecimento, tal qual este proprio,assume dimensao coletiva, sendo sua elaborac;:ao impossivel nos estreitos Iimitesda individualidade. Nesse caso, 0 todo e maior do que a mera soma das partes, Amemoria coletiva se constitui como urn nucleo a partir do qual se articulam relatosdissidentes, ainda que nem sempre excludentes, entre si,

Diante dessa diversidade em constante interac;:ao, a memoria coletiva assumeo carater de uma arena de embates e acordos, em que se fazem possiveis as maisdivers as e provisorias construc;:6es discursivas, contribuindo, cada qual a sua maneira,para a elaborac;:ao social de urn evento compartilhado. A memoria coletiva13 abrange,tambem, aquela heranc;:a que, muitas vezes, e transmitida atraves de gerac;:6es ecultivada por quem a recebe, sendo que sua longevidade depende da magnitude eda profundidade das marcas deixadas por determinado evento historico.14

Essa negociac;:ao em torno da memoria justa encontra, no espac;:o publico edemocratico, urn locus privilegiado de produc;:ao de sentidos e de exerdcio da politica,produzindo incessantemente elementos identitarios e culturais, que concorrem comas imagens oficiais e consagradas da historia.15

4 Lugares de Mem6ria e graves viola<;oes de direitos humanos

4.1 Rela<;oesentre memoria e cultura: as iniciativas de memorializa<;aoAs complexas inter-relac;:6es entre memoria e cultura estao delineadas na

Constituic;:ao brasileira que estabelece que, para a considerac;:ao de urn bern comointegrante do patrimonio cultural brasileiro e necessario que este bern, materialou imaterial, seja portador de val ores de referencia ligados a memoria dos gruposformadores da sociedade brasileira (art. 216, caput). Desse modo, alem desses doiselementos - memoria e cultura - serem estruturantes da sociedade moderna, noplano juridico nacional, especialmente na seara de patrimonio cultural, apresentam-seintima mente vinculados. 1sso porque a memoria e urn fator fundamental de coesao

13Nao por outra razao, uma interessante diferencia<;ao feita por Jan Assmarm e Arno Cisinger, autores que sededicam a essa tematica, e entre a memoria comunicativa e a memoria cultural. A memoria comunicativa edireta, transmitida pelos que vivenciaram ou testemunharam diretamente os acontecimentos lembrados. E,via de regra, de curta dura<;ao, pois a vida media de uma testemunha gira em torno de oito decadas, apos 0 quea memoria do fato nao tem mais essa fonte prirnaria dos que 0 vivenciaram. Por sua vez, a memoria culturalsurge a partir do desaparecimento da comunicativa. Em geral, algumas decadas apos os acontecimentossignificativos, a sociedade vai tomando ciencia do iminente desaparecimento das testemunhas vivas. Area<;aonatural diante dessa constata,ao e, entao, mobilizar 0 conjunto de meios disponrveis para conservar eprolongar essas lembrar1<;as(conforme CHEROUX. Por que serra falso afirmar que despues de Auschwitz noes posible escribir poemas? In: LORENZANO; BUCHENHORST (Org.). Idem, p. 220-222).

14A dependencia de uma gera<;ao em rela<;ao it outra para ter acesso ao material historico que conform a aidentidade e a cultura de um povo e fLmdamental: "los pueblos recuerdan solamente el pasado transmitidoactivamente por los que 10 precedieron en la historia en la medida en que Ie encuentram un sentido cargadode logica propia, y 10 olvida cuando la genera cion poseedora del conocimiento no 10 transmite 0 es rechazadopor esta" (FLORES, Julio. In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph (Org.). Idem, p. 190).

15Ver Crupo de Arte Callejero. El anti-monumento. Resignacion de la memoria historica. Formas de repre-sentacion del poder y mod os de apropiacion colectiva sobre el espacio urbano. In: LORENZANO;BUCHENHORST (Org.) Idem, p. 212.

518 Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)01har .Multidisciplinar sabre a Efetividade da Protec;ao do Patrimonio Cultural

social e de veiculac;aode valores, ocupando lugar privilegiado na edificac;aoda vidacultural e da identidade de um povo, tendo, inclusive, capacidade de semantizarcoisas, locais e artefatos.

Amemorizac;ao e um dos importantes aspectos que ligam cultura e memoria epode ser definida como um processo de construc;aoe consolidac;aode uma memoriaque rep are simbolicamente as graves violac;oes de direitos humanos sofridas nopassado.16 A memorializac;iio reflete sempre um esforc;ode construc;ao consciente e deopc;aopolitica, com ac;oesque permitem abrigar 0 passado violento numa perspectivade valorizac;aoe respeito aos direitos humanos. Por isso, as aC;oesde memorializac;aotem enfoque nas vitimas das atrocidades e busca contemplar os dissensos e as vozesnao ouvidas ao lado das versoes oficiais da historia.

o exercicioefetivo da memoria nao se resume, apenas, a incluir uma efemerideno calendario festivo, a construir um cerimonial de homenagem ou mesmo a erguerum memorial as vitimas. E a combinac;aoentre esses diversos elementos que poten-cializa a ac;aosingular de cada um deles, constituindo um mapa ou uma topografia damemoria capaz de enriquecer os sentidos de uma paisagem urbana, trac;ando pontes,compartilhadas pela coletividade, entre 0 passado, 0 presente e 0 futuro. Somente pormeio da conjunc;aodos varios suportes ergue-se uma memoria coletiva que se tornatanto mais publica e democratica quanto mais envolvente e participativa, traduzindo-se em expressao dos valores dominantes de uma comunidade moral, a partir da qualuma narrativa mais profunda e justa com os fatos preteritos se faz possivel.

Dentre esses diversos lugares e atos de memoria, que concentram significadose irradiam sentidos, as produc;oes culturais de uma sociedade sao privilegiadasenquanto reveladoras das relac;oesque esta mantem com sua propria memoria. Reci-procamente, a cultura influencia muito 0 tratamento que a memoria de determinadofato recebera por parte da sociedade e de seus grupos.

Por isso, a construc;ao de memoriais, a protec;ao de urn espac;ocomo lugar dememoria, 0 estabelecimento de datas comemorativas, a formac;ao de museus comtemas que previnam a repetic;ao das atrocidades ou outras formas de homenagemde vitimas sao iniciativas de memorializac;ao que, independentemente do uso desuportes fisicos, classificam-se como medidas intangiveis relevantes, nao somentepara as vitimas diretamente atingidas, como tambem para toda a sociedade. Nessesentido, pesquisa aponta que os atos de memorializac;ao, em diversos paises, sao degrande importancia para a sociedade por representarem 0 reconhecimento publicodo legado de violencia (ou do passado violento).17

Por isso, independentemente da iniciativa de memorializac;ao escolhida, 0

importante e reter que a memoria coletiva e sempre uma construc;ao, feita de cons-ciencia e vontade, levada a cabo por ac;oesde grupos; nunca e automatic a ou espon-tanea. Alem disso, os atos e espac;os de memoria somente se justificam dentro deurn contexto de reparac;ao simbolica das vitimas: biografias, diarios, livros, escritos,

16Memorializa~ao e 0 processo de criar memoriais publicos, sendo estes locais fisicos ou atividades come-morativas que se relacionam com eventos do passado e se situam ou se realizam em espa~os publicos.

17KIZA, Emesto; RATHGEBER, Corene; ROHNE, Holger-C. Victims of War: An Empirical Study on War-Victimization and Victims' Attitudes.Toward Addressing Atrocities. Hamburgo: Instituto de Investigaci6nSocial de Hamburgo, Junio 2006. p. 119-122.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honorio Quinalha I 519Lugares de Memoria: Bens Culturais?

pinturas, esculturas, simbolos, rituais, testemunhos, placas com nomes das vitimas,intervenc;::6es politicas, march as, pesquisas academicas, processos judiciais, datas,politicas publicas, fotografias, retratos de personagens, camisetas, bandeiras, filmes,diferentes arquivos, monumentos, obras arquitetonicas, nomeac;::6esde logradourospublicos, sitios virtuais na internet.lS

Neste capitulo, dentre tantos atos de memorializac;::ao, a abordagem sera dainiciativa baseada em urn espac;::ofisicamente delimitado: os Lugares de Memoria oudos Sitios de Consciencia (para utilizar a terminologia de lingua espanhola, quetambem e tao significativa na lingua portuguesa).

4.2 Lugares de Mem6ria: conceitoA reflexao sobre efetividade das medidas para lidar com 0 legado de violencia

de um regime ditatorial exige adoc;::aode estrategias que funcionem no cenario locatde acordo com os context os politico, sociat cultural e juridico. Como destacam LouisBickford e Debra Schultz, a percepc;::aoda importancia da memoria apos a transic;::aoou retorno para a democracia e assunto que comec;::aa ser explorado, apesar de amemoria sempre ter sido um elemento essencial para os direitos humanos e paraos movimentos democraticos.19 Nessa perspectival os chamados Lugares de Memoria(ou Sitios de Consciencia)2° servem como mecanismo extrajudicial para reparac;::aosimbolica das vitimas da ditadura e da sociedade e tern urn potencial que atingetambem 0 Estado que, por meio da implantac;::ao e gestao desses locais (ou pelo apoioaos mesmos, no caso de uma iniciativa privada), pode expressar publica e oficialmenteseu repudio as violac;::6escometidas e ao negacionismo.

Termo concebido originalmente pelo historiador Pierro Nora, os Lugares deMemoria "nascem e vivem do sentimento que nao ha memoria espontanea, que e

"Todos esses bens e cada urn deles, materiais ou imateriais, converlidos em "espa<;o de disputa e coexistenciade distintas versoes, donde confluem 0 colelivo e 0 individual, 0 heroico e 0 intimo" (REATI, idem, p. 161,tradLH;aolivre dos autores).

"BICKFORD, Louis; SCHULTZ, Debra. Memory and Justice: a Brief and Selected History of a Movement Part 32009. Disponivel em: <http://memoryandjustice.org/aboutlhistory/part3>. Acesso em: 05 fey. 2010. 0 Centrolnternacional para Justi<;a de Transi<;ao (lCTJ), importante Organiza,ao nao Governamental que estudao tern a, tern dedicado especial aten<;ao ao exame das memorias como valiosos componentes da justi<;a detransi<;ao. A partir .de 2002, 0 ICTJ e a Coalicion Internacional de Museos del Silio Historico de Concienciapassaram a desenvolver uma apresenta<;ao multimidia que ressalta as experiencias internacionais com amemoria e a comemora,ao, intitulada: "El poder de memorias: Derechos Humanos, de Justicia y de la Luchapor la Memoria". Este projeto analisa a maneira de utiliza<;ao dos monumentos como recursos importantesem sociedades que emergem de periodos de violencia e de repressao. Maiores informa<;oes disponiveis nosite: <http://www.ic~.org>. Sobre experiencias internacionais com memoria e comemora<;ao, ver projeto doICTJ intitulado: "El poder de memorias: Derechos Humanos, de Juslicia y de la Lucha por la Memoria".Este projeto analisa a mane ira de utiliza<;ao dos monumentos como recursos importantes em sociedades queemergem de periodos de violencia e de repressao. Maiores informa<;oes no site: <http://www.ic~.org>.

20 Sobre a rede mundial de silios de consciencia consultar: <http://www.sitesofconscience.org/quienes-somos/networks/es/>. Na America Latina, a rede dos silios de consciencia e pel a ONG argentina Memoria Abierta. Arede: "contribuye al desarrollo de las capacidades de los sitios para recordar periodos de violentos conflictosinternos y el terrorismo de estado en Lalinoamerica, para preservar la memoria de 10 que ocurri6 y susconsecuencias en la sociedad; a fin de ulilizar dicha memoria para influir en la cultura politica, y trabajarcon jovenes para evitar todas las formas de autoritarismo en las generaciones futuras. Hasta ahora la red desitios de conciencia de Latinoamerica cuenta con 16 participantes de 8 paises" (Disponivel em: <http://www.sitesofconscience.org/recursos/networks/south-america/es/>. Acesso em: 06 fey. 10).

520 Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)OIhar Multiclisciplinar sabre a Efetividade da Protet;ao do Patrimonio Cultural

preciso criar arquivos, que e preciso manter aniversarios, organizar celebra<;oes,pronunciar elogios f{mebres, notariar atas, porque essas opera<;6es SaO naturais".21Seriam constituidos e constituiriam, assim, diversos meios de celebra<;ao e cultua<;aodas memorias. No entanto, Ludmila da Silva Catela critic a essa conceitua<;ao de Nora,par entende-la par demais "estatica, unitaria e substantiva" e propoe a no<;ao maisdinamica e fluida de territorios de memoria. Para a autora, esses territorios referem-se

as relac;6es ou ao processo de articulac;ao entre os divers os espa<;osmarcados e aspraticas de todos os que se envolvem no trabalho de produ<;ao de mem6rias sobre arepressao; ressalta os vinculos, a hierarquia e a reprodUl;:aode urn tecido de lugares quepotencialmente pode ser representado porum mapa. Ao mesmo tempo, as propriedadesmetaforicas do territ6rio nos leva a associar conceitos tais como conquista, litigios,deslocamentos ao longo do tempo, variedade de criterios de demarca<;ao,de disputas,de legitimidades, direitos, "soberanias".22

Com certeza, a proposta de Catela, com a concep<;ao de territorios de memoria,e mais abrangente e encontra, inclusive, respaldo no ordenamento juridico brasileiro,especialmente porque e urn conceito importante para a tutela da vida digna parapovos indigenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. No entanto, areferencia a territorios de memoria parte do pressuposto de que seus elementos -lugares, documentos, narrativas, historias e outros bens materiais e imateriais - jaestao integra dos, ja 0 compoem e 0 caracterizam.

Par isso, se e possivel pensar em territorios de memoria para as grupos vulne-raveis mencionados (povos indigenas, dentre outros), a expressao Lugares deMemoriatern urn significado rna is claro e direto na perspectiva da gestao e uso de instrumentosprotetivos dos bens culturais para dar conhecimento da verdade a sociedade brasileirae para a repara<;ao simbolica das vitimas da ditadura militar. No mais, a men<;ao aurn Lugar de Memoria facilmente se vincula a previsao constitucional dos espa<;osdestinados a manifesta<;ao cultural (art. 216, inc. IV) ou dos sitios de valor cultural aude interesse arqueologico como bens integrantes do patrimonio cultural brasileiro (art.216, inc. V). Par fim, 0 termo Lugar de Memoria tambem delimita com maior clarezao bern que se deseja proteger, permitindo uma atua<;:aoadministrativa que lhe destineverbas or<;amentarias especificas, que caracterize seus elementos constitutivos, seustra<;:osdiferenciadores e ate mesmo seus valores de referencia que 0 ligam a memoria,a identidade e a<;:aodo povo brasileiro.

No entanto, isso nao impede que os defensores dos direitos humanos e osprofissionais que atuam na seara do patrimonio cultural trabalhem a concep<;:ao deterritorios de memoria, de acordo com a conceito de Catela, e que pens em em urnperimetro espacial sem contornos tao definidos para congregar harmonicamentemanifesta<;oes e bens culturais materiais e imateriais que possam traduzir a lembran<;adas atrocidades em posicionamentos a favor do respeito incondicional aos direitoshumanos.

21 NORA, Pierre. Entre memoria e historia: a problematica dos lugares. Projeto Historia, Sao Paulo, n. 10, p. 13,dez.1993.

22 CATELA, Ludmila da Silva. Situar;iio-limite ememoria: a reconstru<;ao do mundo dos familiares de desaparecidosda Argentina. Sao Paulo: Hucitec; Anpocs, 2001. p. 208.

lnes Virginia Prado Soares, Renan Honoria Quinalha I 521Lugares de Memoria: Bens Culturais?

5 Os Lugares de Memoria e suas fun~6es como bens culturais

5.1Os Lugares de Memoria se enquadramnas fun~6es do patrimoniocultural brasileiro na Constitui~ao?

Sebastian Brett, Louis Bickford, Liz Sevcenko e Marcela Rios definem Lugaresde Mem6ria (ou Sitios de Consciencia) como "memoriais publicos que assumem urncompromisso espedfico com a democracia mediante programas que estimulam 0

diaIogo sobre tern as sociais urgentes de hoje e que ofere cern oportunidades para aparticipac,;ao publica naqueles temas".23 Ou seja, 0 Lugar de Memoria e urn espac,;oconcebido para cumprir uma func,;ao espedfica no Estado democratico, com a parti-cipac,;aoda sociedade. Mas, para ser consider ado bern cultural, deve exercer as func,;6esdemocratic as atribuidas a esta categoria de bens.

Afinal, os Lugares de Mem6ria estao aptos a desempenharem func,;6es comobens culturais? Quais seriam estas func,;6es? Inicialmente, a func,;ao de qualquerbern cultural e integrar os conteudos dinamicos e plurais tipicos de urn Estadodemocratico, contribuindo para a construc,;ao de uma sociedade livre, justa e solid ariae a consolidac,;ao da democracia. Assim, a func,;aodo patrimonio cultural e vinculadaaos val ores e prindpios espalhados por todo 0 texto constitucional, ligados a cidadaniae a dignidade da pessoa humana, aos direitos sociais,24 bern como a ordem socialcomposta por amplo universo de normas que enunciam programas, tarefas, diretrizese fins a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade.25

A concepc,;aode patrimonio cultural inscrita na Constituic,;ao (art. 216) estabeleceque a referencialidade, a imaterialidade e a busca da igualdade material sao diretrizesa serem atingidas e perseguidas pelo Estado e pela sociedade. E indica como func,;6esdos bens culturais brasileiros: a) serem 0 elo entre 0 passado e 0 presente, que ligaos fatos cotidianos ou excepcionais a memoria, a ac,;aoe a identidade cultural dosgrupos formadores da sociedade brasileira, contribuindo para 0 fortalecimentodos val ores culturais dos grupos desfavorecidos; b) serem veiculo que expresse osvalores tangiveis e intangiveis das referencias culturais eleitas pela comunidade,contribuindo para a educac,;ao em valores e sentimentos afetivos e reduzindo adesigualdade material dos grupos formadores da sociedade brasileira; c) serem urnrecurso sustentavel, proporcionando, para a comunidade, a fruic,;aodos bens culturaise de outros bens da vida.

Alem das fl.).nc,;6esmais gerais atribuidas aos bens fundamentais, 0 patrimoniocultural tambem tern func,;6es ligadas a sustentabilidade dos bens que 0 integram eao exerdcio dos direitos culturais. Em relac,;aoaos Lugares de Mem6ria, sua finalidadee de estabelecer diaIogos temporais e espaciais com 0 legado de violencia deixadopela ditadura militar brasileira (1964-1985) com 0 objetivo de garantir a nao repetic,;aodas graves violac,;6es aos direitos humanos, servindo de testemunho e de referencia

23 BICKFORD, Louis; BRETT, Sebastian; SEVCENKO, Liz; RIOS, Marcela. Memorializaci6n y Democracia. Pollticasde Estado y Acci6n Civil, informe base ado na Conferencia Intemacional Memorializaci6n y Democracia:Politicas de Estado y Acci6n Civil a realizada entre el20 y e122de junio de 2007en Santiago, Chile. Disponivelem: <http://www.ictj.org>.Acessoem: 22 maio 2010. Tradw;ao livre dos autores.

'·1Estabelecidos no art. 6Q da Constitui~ao.25 PIOVESAN. Temas de direitos humanos, p. 209.

522 Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, lnes Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Olhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Prote~ao do Patrimonio Culhlral

as gera~6es presentes e futuras. Ou, de modo sistematico, os Lugares de Mem6ria terna tripla fun~ao de: a) servir a memoria coletiva, b) contribuir para a educa~ao emvalores e sentimentos de nao repeti~ao de graves viola~6es em direitos human os; ec) ser culturalmente sustentaveP6

Assim, a verifica~ao do cumprimento de fun~6es pelos Lugares de Mem6ria vaiaMmdo atendimento das tarefas estritamente ligadas aos direitos humanos, ja que deveter tambem urn reflexo direto nas politicas publicas para prote~ao dos bens culturaise no exercicio dos direitos culturais. Em outras palavras, a tutela juridica dos Lugaresde Mem6ria como bens culturais depende da elabora~ao das politicas publicas e deiniciativas de memorializa~ao que partam da perspectiva cultural, incluindo as oticashistorica, antropologica, arqueologica, artistica, arquivista, urbanistica, dentre outras.

No sistema de justi~a brasileiro, 0 cumprimento da trip lice fun~ao dos Lugaresde Mem6ria fica claro se analisarmos a combina~ao de pesquisas arqueologicas comoutros elementos que caracterizam estes Lugares de Mem6ria. As consequenciasjuridicas mais importantes dessa combina~ao sao: a) a considera~ao e valoriza~ao dasnarrativas das vitimas (e sua conforma~ao com os arquivos oficiais) nas pesquisasarqueologicas e na gestao dos Lugares de Mem6ria; b) 0 cumprimento da obriga~ao doEstado de reparar simbolicamente as vitimas, com a destina~ao de urn lugar especifico,individualizado e de ao acesso publico, no qual sao apresentados elementos quepermitam aos visitantes entrar em contato com 0 passado autoritario e violento; ec) a possibilidade de utilizar os instrumentos protetivos dos bens culturais para osLugares de Mem6ria.

No entanto, a considera~ao de urn sitio com artefatos que permitam pesquisasarqueologicas sobre 0 legado de violencia do regime autoritario brasileiro naotransforma esse local em Lugar de Memoria, mas, sim, em urn sitio de interessearqueologico. Esse raciocinio serve tambem para sitios portadores de valor historico,artistico, etc.ligados a fase da ditadura militar. Por isso, e importante analisar as fun-~6esdos Lugares de Mem6ria para saber exatamente quando e como exigir a prote~aodesses locais com argumentos e normas destinadas a tutela do patrimonio cultural.

5.2 A fun<;aode ser 0 elo entre 0 passado e 0 presenteA fun~ao de servir a memoria coletiva esta prevista na Constitui~ao na indi-

ca~ao,como patrimonio cultural brasileiro, dos espa~os destinados as manifesta~6esartistico-culturais27 ou ainda dos sitios de interesse arqueologico ou culturar.zsPorem,para cumprir a fun~ao de servir a memoria coletiva, os Lugares de Mem6ria precisamde a~6es e mecanismos inscritos na agenda de direitos humanos para que as a~6esde nao repeti~ao do passado violento sejam fortalecidas por meio de politicas e a~6esafirmativas destinadas a sociedade em geral, as vitimas au mesma a outras gruposvulneraveis na sociedade brasileira.

26 Conforme desenvolvido por HERNANDEZ; TRESSERRAS. Gestion del patrimonio cultural, p.12S.27 Art. 216, leV2B Art. 216, V

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honoria QuinaTha I 523Lugares de Memoria: Bens Culturais?

Nesse sentido, 0Memorial da Resish~ncia e 0 exemplo brasileiro mais destacadoe sera tratado logo em seguida, na analise da fun<;:aode sustentabilidade dos Lugaresde Memoria. Atualmente ha uma campanha, veiculada na Internet, para desapropriara "Casa da Morte", tambem conhecida como "Casa dos Horrores", localizada emPetropolis (Rio de Janeiro) e transforma-Ia no Centro de Memoria, Verdade e Justi<;:ade Petropolis. Este local e considerado, por alguns, 0 pior porao da ditadura brasileira.Em Sao Paulo, no ambito da Administra<;:ao Publica estadual, tramita 0 procedimentopara abertura de estudo de tombamento do edificio onde funcionou 0DOI/CODI - IIExercito, edifica<;:ao na qual esta instalada a 361\Delegacia de Policia, localizada nacapital paulista. Este local, segundo Pedro Estevam da Rocha Pomar, contou com"ocorrencia de 50 mortes sob custodia e a passagem por ali de mais de 6.700 pessoassuspeitas ou acusadas, em menos de cinco anos (setembro de 1970 a junho de 1975)" .29

Caso 0 DOI-CODI seja tomb ado ou a Casa da Morte seja desapropriada, nao seraa primeira vez que se lan<;:amao de instrumentos administrativos protetivos dos bensculturais para resguardar bens que revelam historias do passado ligadas a violenciaou a injusti<;:as_3o0 tombamento tern sido usado para reparar injusti<;:as historicas,para valorizar bens materiais desses grupos injusti<;:ados ou hipossuficientes. Assim,o processo de tombamento do DOI-CODI seguira outros tantos tombamentos nessalinha, como: 0 tombamento do predio do DOPS em Sao Paulo (hoje ocupado peloMemorial da Resistencia); da Casa de Chico Mendes (onde 0mesmo foi assassinado),dos terreiros de Candomble (como reconhecimento da memoria e a<;:aodos gruposafrodescendentes), dentre outros.

Sao muitos outros exemplos de locais que precisam ser preservados e ha urnlargo campo de pesquisa a ser explorado para valoriza<;:ao e preserva<;:ao da memoriadas vitimas da mais recente ditadura brasileira. N ota-se que ate hoje nao foram feitosestudos arqueologicos continuos na regiao do Araguaia, local em que mais de cernpessoas foram atingidas e exterminadas por a<;:aodas For<;:asArmadas. Esse easo (CasoGuerrilha do Araguaia) foi levado ao Sistema Interamericano e provocou a historicacondena<;:ao do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Hurnanos(Corte IDH), em decisao tornada publica em dezembro de 2010.

No Caso Guerrilha do Araguaia, podem-se relacionar como diretrizes da atua<;:aodo Estado, na busca da verdade e como demonstra<;:ao de boa-fe do Estado brasileiro,o cumprimento da senten<;:ada Corte IDH: a) a participa<;:ao do IP~l\J nas bus cas doslocais em que podem ser encontrados restos mortais dos desaparecidos; b) a gestaoe autoriza<;:ao do IPHAN no que tange as pesquisas arqueologicas realizadas noslocais em que podem ser encontrados restos mortais dos desaparecidos; c) 0 usa dametodologia arqueologica em toda interven<;:ao para localiza<;:aoe para a identifica<;:aodos restos osseos; d) a participa<;:ao de arqueologos na busea pelos restos mortais dosdesaparecidos e em sua identifica<;:ao; e) a obrigatoriedade de individualiza<;:ao dos

29 POMAR, Pedro. Estevam da Rocha. Estatisticas do DOl-Codi. Revista ADUSP, n. 34, p. 74, maio 2005.30 Como exemplo, vale lembrar que, mesmo antes da atual Constitui,ao, 0 tombamento era usado paravaloriza,ao e prote,ao de grupos desprestigiados e vulnenlveis social ou politicamente. Tanto que, em 1984,o Conselho Consultivo do Patrimonio Hist6rico e Artistico Nacional decidiu pelo tombamento do terreirode Casa Branca em Salvador. Maiores detalhes em VELHO, Gilberto. Patrimonio, negocia,ao e conflito.Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, Apr. 2006. Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=SOI04-93132006000100009&lng=&nrm=iso>. Acesso em: 11 out. 2008.

"""24 i Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, IrH?sVirginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)J \ Olhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Protet;ao do Patrimonio Cultural

restos osseos nos ossuarios e a obtenc;:aoda identificac;:ao dos restos esqueletais; e f)a informac;:ao, pelo Poder Publico, aos familiares dos resultados nas atividades debusca e identificac;:ao (mesmo que resultados parciais ou por etapas).

Alem disso, 0 IPHAN, em conjunto com outros 6rgaos do Poder Publico, deveadotar outras medidas extrajudiciais de busca da verdade, medidas mais amplas,tais como: a) proceder ao registro arqueol6gico do local da Guerrilha do Araguaia; b)aceitar registros arqueologicos solicitados por arqueologos/pesquisadores de outroslocais relevantes para a justic;:ade transic;:aono pais; c) abrir editais para realizac;:aode inventarios de locais de violencia na ditadura, dentre outros.

A pesquisa e gestao de locais utilizados para tortura de presos e para" descarte"dos presos mortos em razao de torturas como bens culturais guard am pertinenciacom 0 ordenamento juridico brasileiro, ja que sao bens de interesse arqueologico,antropo16gico e hist6rico (de acordo com 0 artigo 216, inc. V, da Constituic;:ao e como artigo 2Qda Lei nQ3.924/61). Estes locais tern, a sua disposic;:ao, os instrumentose mecanismos de protec;:ao dos bens culturais indicados no ordenamento juridico.Assim, podem ser tombados, registrados (como sitios arqueologicos), inventariados,pesquisados (inclusive com concurso publico para selec;:aodo melhor projeto depesquisa), desapropriados, entre outras medidas.31

A reI evan cia da arqueologia para esses locais e exemplificada por LuisFondebrider, que relata a primeira escavac;:aoapos 0 fim da ditadura argentina, emjulho de 1984,no cemiterio de San Isidro, nos arrabaldes de Buenos Aires (Argentina),realizada sob a coordenac;:ao de Clyde Snow, antrop610go forense americana que foi aArgentina grac;:asa iniciativa de organismos de direitos humanos locais. Fondebriderexplica que Snow e urn dos primeiros antrop6logos forenses que, pela decada dos anossetenta, decidiu utilizar a Arqueologia na recuperac;:ao dos corpos, em casos medicolegais. Passados mais de vinte e cinco anos da experiencia argentina, Fondebrider fazurn apanhado mais geral da importancia dos trabalhos arqueol6gicos para a memoriados desaparecidos politicos, para reparac;:ao simbolica dos familiares-vitimas e paraa compreensao do pass ado violento das ditaduras e outras situac;:6esde hostilidades:

A exumac;:aoarqueologica de fossas na America Latina, na Africa e na ex-IugosLivia,para mencionar os casos notorios, tern permitido recuperar os corpos de centenas depessoas que foram sequestradas, executadas, na maioria dos casos pelo Estado, e iden-tificar muitos destes corpos. Este processo significou poder devolver a seus familiaresos restos de seus seres queridos. Da mesma forma, aportar provas cientfficas a justic;:apara definir penalmente os responsaveis e reconstruir uma parte importante da historiarecente destes paises.Ao mesmo tempo, abriu uma nova linha de trabalho e de investigac;:aodentro da disci-plina. Forc;:ou-aa interatuar com outras especialidades cientificas e com outros atoresda sociedade. Mostrou que a Antropologia em geral e, a Arqueologia em particular,podem brindar urn aporte fundamental a compreensao de nOS80passado recente e apreservac;:aoda memoria do sucedido.32

31Alem disso, mesmo que atualmente 0 local teMa urn uso totalmente diverse (sitio que era urn centro clandes-tino de tortura e hoje e urn hotel ou condominio de residencias particulares), cabe a realizac;ao de pesquisasarqueol6gicas.

32 FONDEBRIDER, Luis. Arqueologia e antropologia forense: urn breve balan<;o. In: FUNARI, Pedro Paulo;ZARANKIN, Andres; REIS, Jose Alberioni dos. Arquelogia da repressiio e da resistincin na America Latina na eradas ditaduras: decadas de 1960-1980. Sao Paulo: Annablurne; Fapesp, 2008. p. 155.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honorie Quinalha I 525Lugares de Memoria: Bens Culturais?

NaArgentina ha muitos Lugares de Memoria, mas 0 caso da Escuela de Mecanicade la Armada (ESMA) e um dos mais emblematicos. Este lugar e reconhecido comotal apos propositura de dedara<;ao de inconstitucionalidade da demoli<;aoda Escuelade Mecanica de la Armada em 1998.A Justi<;areconheceu a obriga<;aodo Estado deresguardar qualquer documenta~ao ou testemunho que pudesse integrar dados paraa reconstru<;aoda verdade e reconhecimento do carater de patrimonio cultural desteslocais. Esta decisao colaborou com a inten<;aode instalar, em ambito publico, a ideiade um museu sobre 0 terrorismo do Estado e, progressivamente, a de sua localiza<;aono predio da ESMA,33que hoje esta aberta a visita<;aodo publico e e ocupada pelosdiferentes organismos de direitos humanos.

Outro exemplo interessante, tambem argentino, e 0 do Club Atletico, urn dosmais importantes Centros Clandestinos de Deten<;ao.Andres Zaranki e Claudio Nirorelatam 0 concurso publico de projetos para escavar os restos do Club Atletico,34promovido pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, em 2003.35 A propostaselecionada foi a de Bianchi Villeli e Zarankin. 0 projeto se chamou "Arqueologiacomo memoria: interven~6es arqueologicas no Centro Clandestino de Deten<;aoe deTortura 'Club Atletico"'. Zarankin e Niro, ao descreverem os objetivos do projeto eseus resultados, destacam a importancia da pesquisa como forma de contraposi~aoa historia oficial que nos foi transmitida:

Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por urnlado, buscamos entender a logica do funcionamento e da organiza<;ao espacial daarquitetura deste dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, 0 segundo objetivofoi de contribuir com a constru<;ao de uma memoria material. Isto e, transforma-la emalgo fisico, para assim, poder ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra (oralou escrita). Uma memoria que pode ser tocada, ouvida, experimentada (fig. 4). Comoexemplo, podemos mencionar como uma simples bolinha de ping-pong, recuperadadurante as escava<;6es, pode se transformar em urn simbolo do sofrimento daquelesque foram torturados neste lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4), sobrevivente doClub Atletico: "0 que pensariam os que jogavam ping-pong, em frente it leonera [Celacomum onde, em geral, eram colocadas as mulheres gravidas 1enquanto que nos eramostorturados, desta bolinha que acabamos de encontrar debaixo do elevador de cargas?"

Devemos considerar que, a historia da repressao ilegal durante a ditadura militar, ternsido ocultada ou contada atraves de uma "versao oficial". A escava<;ao do Club Atletico,entao, e uma forma de recuperar a memoria e, atraves dela, contrapor-se a historiaque nos foi transmitida. Tratou-se de urn projeto que contemplou a participa<;ao desobreviventes e de familiares dos detidos no proprio centro de deten<;ao Club Atletico.Foi uma forma de reapropria<;ao de sua propria his tori a que, de alguma maneira, e ade todos.

33Ainda na Argentina, outro caso ernblematico e 0 do Edificio de Virrey Cevallos, onde fnncionava urn centroclandestino de deten<;ao subordinado a For<;aArea Argentina. 0 edificio £oi de clara do patrimonio historicoem outubro de 2004 (Lei nO1.505 da Legislatura da Cidade de Buenos Aires).

34Zaratin e Niro explicam que 0 "Club Atletico, cujo nome, em realidade, era 'Centro Anti-subversivo' (ClubAtletico foi uma deriva<;ao das iniciais CAl funcionava no sotao de urn deposito de abastecimento da PoliciaFederal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas Paseo Colon, Cochabamba, San Juan e Juan de Garay. Sabe-se que, par ele, passaram ao redor de 1500 pessoas, a maioria das quais, permanece desaparecida. Tinha acapacidade para manter, ao mesmo tempo, 200 detidos. 0 edilicio foi dernolido em 1977, ja que se encontrava notra<;ado da auto-estrada 25 de Mayo" (Andres Zaranki e Claudio Niro. A materializa,iio do sadismo: Arqueologiada Arquitetura dos Centros Clandestinos de Deten,ao da ditadura rnilitar argentina (1976-1983».

3S ZARANKI; NIRO, op. cit.

526 j Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, lnes Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Olhar Multidisciplinar sobre a Efetividade da Prote<;ao do Patrimonio Culhuai

No Chile, 0 destaque e a Carparacion Parque par la Paz Villa Grimaldi, que estasituado em urn dos antigos centros de detew;ao e tortura clandestinos mais impor-tantes daquele pais, no qual mais de mil prisioneiros foram encarcerados e 230desapareceram ou foram executados, no regime ditatorial de Pinochet. 0 Parque terncomo finalidade reparar a memoria das vitimas, difundir informa~6es acerca da his-toria do terrorismo do Estado no Chile e promover uma cultura de direitos humanos.

As experiencias citadas ilustram bern a potencialidade dos Lugares de Memoria eindicam que estes locais cumprem sua fun<;:aode ser elo entre 0 passado e 0 presente,numa otica da valoriza<;:aoda memoria coletiva.

5.3 A fun<;ao de contribuir para a educa<;ao em valores e sentimentosafetivos

A fun~ao de ser 0 veiculo que expresse os valores tangiveis e intangiveis dasreferencias culturais, para 0 Nunca Mais, e de contribuir para a educa~ao em valorese sentimentos afetivos ligados aos direitos humanos, esta estritamente ligada arepara~ao simbolica das vitimas da ditadura militar e a valoriza~ao da verdade paraa sociedade brasileira como urn todo. A fun<;:aodos Lugares de Memoria e dinamica edeve contribuir para a constru<;:aode uma memoria plural, que abrigue a versao e asvozes das vitimas, bern como para 0 esclarecimento do passado violento. No mesmosentido, Sebastian Brett, Louis Bickford, Liz Sevcenko e Marcela Rios afirmam que:

Usando estrategias explicitas, los memoriales publicos pueden contribuir ern ellargoplazo a la construcci6n de culturas democraticas mas amplias, al generar dialogos entrediferentes comunidades 0 hacer participes a las nuevas generaciones de las leccionesaprendidas del pasado. Los que proponen la construcci6n de memoriales argumentanque enfrentar elpasado conflictivoes un componente esencial de la construcci6n de unaidentidad nacional basada en los derechos y dignidad humana, y que tales iniciativasson un aporte significativo a la reconstrucci6n de una sociedad devastada. Yasea ernuna democracia emergente 0 en una consolidada, ignorar el pasado 0 evitar las politicasde busqueda de la verdad y de justicia para las victimas solo obstaculizan la busquedade la estabilidad y la interacci6n pacifica en el presente y en el futuro.Los proyectos de memorializaci6n involucran tanto riesgos como promesas parala construcci6n de las democracias, dependiendo de los procesos envueltos en sudesarrollo y administraci6n. Los memoriales que pregonan la superior.

o Lugar de Memoria deve ser apresentado e interpretado com a finalidade decontribuir culturalmente para uma sociedade mais democratica, que simplesmentenao aceite que atrocidades possam ser praticadas pelo Estado contra seus cidadaos.o Lugar de Memoria, enquanto patrimonio cultural, tern a finalidade de fornecerelementos que proporcionem ac;oesde respeito a protec;ao aos direitos humanos, detolerancia e de fortalecimento das liberdades culturais nos dias de hoje, sensibilizandoa sociedade para as graves viola~6es aos direitos humanos que ocorrem nos dias dehoje, ainda praticadas pelo Estado, como a tortura a pres os e a pessoas detidas pelapolicia.

Alem de politicas publicas e a~oes afirmativas, para que 0 lugar de memoriacumpra suas func;6es,e imprescindivel a utiliza~ao de instrumentos nominados na

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honoria Quinalha I 527Lugares de Memoria: Bens Culturais?

Constitui<;:ao e de outros que acautelem os bens culturais. Assim, no que tange afun<;:ao de contribuir para a educa<;:ao em valores e sentimentos afetivos, as atua<;:6esdos entes federativos ou mesmo das institui<;:6es cientificas para realiza<;:6es de pes-quisas, tanto documentais como sobre a materialidade, em especial com 0 usa demetodologia arqueol6gica. Esta tambem e a concep<;:ao dos arque6logos Pedro PauloFunari e Nanci Vieira de Oliveira:

o estudo da cultura material pode ser urn poderoso instrumento na analise das hist6riassubalternas e na transferencia de poder para os pr6prios agentes sociais e as contro-versias sobre a interpretac;ao dos mecanismos materiais de repressao fornece urn bornexemplo da relevancia do estudo do passado para a sociedade em geral. (...)Quando se busca descrever e interpretar as culturas do passado, convem incorporar 0

estudo tanto de textos e relatos orais, como de artefatos, 0 que e particularmente rele-vante no estudo da repressao no Brasil recente. Os dados textuais, orais e materiaispodem ser encarados como interdependentes, complementares e contradit6rios, aomesmo tempo. Neste contexto, para lidar com a tarefa de interpretar 0 conflito no interiorda sociedade imp5e-se uma abordagem interdisciplinar que combine analise textual,oral e artefatual, com aportes socio16gicos e antropo16gicos, entre outroS.36

Certamente, a fun<;:ao do patrimonio de contribuir para educa<;:ao em valoresculturais que tornem a sociedade brasileira mais justa passa pelo fortalecimento daeduca<;:ao para os direitos humanos.

5.4A fun<;ao de sustentabilidade: presente e futuro com garantiasde nao repeti<;ao?

Como pensar em sustentabilidade de urn local que lembra atrocidades, querevela 0 sofrimento de vitimas, exp6e feridas e dores - muitas vezes sem cicatriza<;ao?Qual e a demanda que justifica a implanta<;:ao e manuten<;:ao desses lugares? Tendoem conta a natureza sabidamente traumatica dessas experiencias da hurnanidade,por quais raz6es valeria desencadear recorda<;6es de tao desagradavellembran<;:a?Nao seria melhor reI ega-los aquelas paginas pouco visitadas da historia?

A resposta e que a viola<;ao de direitos humanos por urn Estado requer formaspublicas de repara<;:ao das vitimas e de reafirma<;:ao do compromisso do go verno deque tais atrocidades praticadas sao inaceitaveis, que nao se repetirao. A exposi<;:ao dohorror, do repugnante, nao vern para encher os olhos, para oferecer urn deleite esteticoou urn tribute) ao sadismo, mas para despertar sentimentos ligados ao desejo de naorepeti<;:ao. Alem disso, a fun<;:ao e reparar simbolicamente as vitimas e impulsionar aapari<;:ao de novos atores culturais, para que desempenhem tarefas para uma culturade direitos humanos.

A sustentabilidade dos Lugares de Mem6ria esta, portanto, ligada a sua poten-cialidade de oferecer elementos para que se pense em garantias de nao repeti<;:ao.Para isso, estes locais devem valorizar a constru<,;ao de uma memoria plural e,concomitantemente, afastar os visitantes dos a ideia do esquecimento.

36 FUNARI, Pedro Paulo; OLIVEIRA, Nanci Vieira de. A arqueologia do conilito no Brasil. In: FUNARI, PedroPaulo, ZARANKIN Andres, REIS, Jose Alberioni dos. Arquelogia do repressao e da resistencia na America Latinal1a era das ditaduras: decadas de 1960-1980. Sao Paulo: Annablume; Fapesp, 2008. p. 143.

328 Sandra Cure au, Sandra Akemi Shimada Klshi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Oihar Multidisciplinar sabre a Efelividade da Prote~ao do Patrimonio Cultural

Usualmente, em especial no senso comum, contrapoe-se itmemoria uma ideiade esquecimento. Estenada mais seria do que a incapacidade ou a impossibilidade derecordar. Sob essa perspectiva, lembrar-se e olvidar-se seriam dois polos antiteticos,incomunicaveis, cuja {mica intera~ao seria de oposi~ao mutua: este seria definido,simplesmente, a partir da nega~ao completa do primeiro.

No entanto, a constru~ao da memoria ocorre nao somente a partir de recor-da~oes, mas tambem, seletivamente, a partir da organiza~ao e do processamentode certos esquecimentos. Alias, vale frisar que so e possivel esquecer aquilo que foiexperimentado ou vivido, seja diretamente, seja indiretamente. 0 que nao foi inscritona ordem dos acontecimentos nao pode ser apagado.37 Ou seja:0 esquecimento podeser visto como uma presen~a, ainda que ausente, que se poe alem de nossa vontade.

Desse modo, os problemas do lembrar e esquecer se constituem com0 camposfundamentais que demarcam os processos de constru~ao da memoria tanto no ambitoprivado quanta no publico, pois a constitui~ao de uma memoria vern sempre acom-panhada da amea~a da sua dissolu~ao, muitas vezes concretizada no que representao esquecimento e 0 silenciamento.38 Sob esse ponto de vista, nem sempre a oposi~aose dara centralmente entre memoria e esquecimento. A depender do contexto, acentralidade podera residir nos desencontros das diversas memorias de urn mesmoacontecimento contraditorias entre si.

Em tempos mais recentes, sobretudo a partir da segunda metade do seculo XX,foi acentuada a dimensao etica da contraposi~ao entre a afirma~ao de urn patamarminimo de cidadania e os episodios de viola~aosistematica aos direitos fundamentais.Essa consciencia de que, apos eventos sociais traumaticos, nao e possivel retomarcom naturalidade a convivencia democratica do ponto em que esta foi bruscamenteinterrompida, intensificou, sob diversos prismas, a problematiza~ao da memoria,bern como de seus efeitos para a transi~ao e a consolida~ao democraticas.

o objetivo maior de enfrentar urn passado bloqueado e libera-lo para acesso damem6ria e a elabora~ao dessas experiencias, mediante a constru~ao coletiva de umaverdade que essa tarefa exige. A importancia da verdade e da memoria na promo~aodos direitos humanos e notada no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, nosprojetos de resolu~ao da OEApara a instaura~ao do dire ito it verdade e nas decisoesda Comissao e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No mesmo sentido, averdade e tratada como direito na Corte Europeia de Direitos Humanos, na Comissaode Direitos Humanos e na atua~ao da ONU.

AComissao de Direitos Humanos da ONU tornou publico, em 2005, 0 Conjuntode principios atualizados para a prote~iio e a promo~iio dos direitos humanos na luta contraa impunidade.39 Este estudo, que se tornou uma normativa, reconhece que os povostern nao apenas 0 "direito inalienavel" de conhecer a verdade a respeito de crimes dopassado, 0 que inclui as circunstancias e osmotivos envolvendo tais atos de violencia,independentemente de processos que possam mover na Justi~a, como os Estados

37 Conforme BRAUER, idem, p. 267."Nao por outra razao, afirma-se que "en la definicion de 'memoria' se guarda la idea del'olvido', no como suantonimo sino como una relacion de tension y transformacion constante" (FLORES, idem, p. 188).

39 UN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Report of the independent expert to update the Set of Principlesto combat impunity, 18 February 2005, E/CN.4/2005/102. Disponivel em: <http://www.unhcr.org/refworld/docid/42d66e7aO.htrnl>. Acesso em: 1Q set. 2009.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honorio Quinalha I 529Lugares de Memoria: Bens Culturais?

tern 0 dever de recordar. Ah~m disso, 0 exerdcio pleno e efetivo do direito a verdadeproporcionaria salvaguarda fundamental contra a repeti<;ao de tais vioIencias.

o grande lema, nesses casos, e recordar para nao repetir.40 A expressao NuncaMais remete a concep<;ao de que nao basta recuperar urn passado para mante-Io comoobjeto de museu em mais uma das estantes decorativas da historia. Na verdade, ainten<;ao e recuperar esse passado de modo a enriquecer e transformar 0 presente,41ja que a memoria e uma forma de trazer 0 passado para abrir outras perspectivas,transforma-Io em novas possibilidades, recuperando 0 vivido sem a inten<;ao derepeti-lo.42

No contexto latino-americano foi traduzido, pioneiramente pelos argentinos,pela expressao Nunca Mas, que foi tambem 0 nome da publica<;ao oficial elaboradapela Comision Nacional sobre la Desaparicion de Personas (CONADEP), presididapelo escritor Ernesto Sabato. No Brasit em 1985, tambem houve uma importantepublica<;ao com esse nome, capitaneada pelo D. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendoJaime Wright. E, mais recentemente, duas iniciativas do Governo Federal tambemadotam 0 espirito do Nunca Mais.

o primeiro e 0 Projeto Direito a Memoria e a Verdade, da Secretaria Especialdos Direitos Humanos da Presidencia da Republica/3 que tern 0 objetivo de recuperare divulgar 0 que aconteceu no periodo da ditadura militar brasileira (1964-1985), apartir de registros que giram em torno das viola<;oes de direitos humanos.

A justificativa dessa iniciativa e que a disponibiliza<;ao de sse conhecimento efundamental para 0Brasil construir instrumentos eficazes e garantir que esse passadonao se repita nunca mais. As linhas de atua<;ao de atua<;ao do projeto sao tipicas daseara cultural: a) Livro-relat6rio da Comissao Especial sobre Mortos e DesaparecidosPoliticos (CEMDP/SEDH) CEMDp, produzido a partir dos process os encaminhadosa esta CEMDP;44 b) Memoriais "Pessoas Imprescindiveis", composto por paineis eesculturas que bus cam unir forma e conteudo para dar aos visitantes uma visao -mesmo que sintetica - do que foram os "Anos de Chumbo" no pais/5 C) Exposir;iio

40 Ha uma grande influencia da psicamilise nessa no<;ao de compulsao a repeti<;ao do recalcado, que retornacomo si.ntoma. Inumeras analises tern se dedicado a essa interessante dimensao do trabalho da memoria,priorizando 0 conceito de sintoma social (Cf. KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson;SAFATLE,Vladimir. 0 que resta da ditadura. Sao Paulo: Boitempo, 2010. p. 123-132).

41 Como afirma Vezzetti, "Ia condicion basica que permite afirmar la memoria como deber y como derecho esque el pasado significativo pennanezca disponible y abierto a la deliberacion sobre sus efectos, en un presenteque queda, as!, transformado/l (VEZZETTI, Hugo. Sabre LaviaLencia revolucianaria: memorias y olvidos. BuenosAires: Siglo Veintiuno Editores, 2009. p. 37).

"CALVEIRO, Pilar. Memoria, politica y violencia. In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph (Org.).Idem, p. 61.

43 Este projeto teve inicio em agosto de 2006, com a abertura da exposi<;ao fotografica "Direito a Memoria e aVerdade -A ditadura no Brasil 1964-1985/1, no hall da taquigrafia da Camara dos Deputados, em Brasilia.

'140 livro conta historia das vilimas da ditadura no Brasil. A trajetoria de operarios, estudantes, profissionaisliberais e camponeses que se engajaram em organiza<;oes de esquerda para combater 0 regime autoritarioaparece agora como documento oficial do Estado brasileiro. 0 livro - lan,ado, em 29 de agosto de 2008,com uma tiragem inicial de 3.560 exemplares - foi distribuido para os familiares de mortos e desaparecidos,bibliotecas publicas e enlidades ligadas ao tema. 0 estado de Pernambuco fez uma edi,ao - lan<;ado em abrilde 2008, de 2 mil exemplares - para distribuir para escolas e institui,oes. A SEDH editou, em dezembro de2008, mais cinco mil exemplares.

45 Feitos em acrilico e a<;onaval, os paineis trazem imagens dos homenageados e de situa<;oes que representam arepressao violenta do regime. 0 a<;oaplicado sobre 0 acrilico remete para a brutalidade e frieza e ao ambienteclaustrofobico das prisoes e dos poroes pelos quais passaram. Desde sua implanta<;ao, em 2007, ate outubrode 2009, foram inaugurados 15 Memoriais pelo pais.

!""".""}o; Sandra Cureau, Sandra Akerni Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)J,:} [ OIhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Prote<;aodo Patrimonio Cultural

Jotognifica "A DITADURA NO BRASIL 1964-1985", que traz uma ambienta~ao visualque conduz 0 publico em uma especie de "viagem no tempo": recupera, de maneiraexclusiva, desde os primeiros momentos do Golpe de Estado que mergulhou 0 paisnuma ditadura de 21 anos, ate os grandes comicios populares das "Oiretas Jail. E asegunda e a cria~ao, em 2009,46do Centro de Referencia das Lutas Politicas no Brasil,denominado Mem6rias Reveladas, institucionalizado pela Casa Civil da Presidenciada Republica e implantado no Arquivo Nacional. Esta ultima, inclusive, adotou 0

slogan: para que nao se esque~a, para que nunca mais aconte~a.Alem das iniciativas de publica~ao e forma~ao de acervos documentais, e im-

portante destacar iniciativas que projetem e promovam a gestao de monumentos elocais que lembrem as atrocidades do passado e as viola~oes de direitos humanos.47Estes sitios devem ser projetados e geridos de mane ira que as lembran~as da:violenciasirvam para a cultura de direitos humanos, atendendo a finalidade de educar acomunidade e de proporcionar reflexoes que conduzam a nao repeti~ao (reiterandoa expressao "Nunca Mais").48

oMemorial da Resistencia e uma experiencia brasileira que tern se mostradosustent<i.vel.Este lugar de consciencia e 0 unico do pais que participa da Rede Latino-americana de Sitios de Consciencia.49 Instalado no antigo edificio sede do OOPS/SPe hoje integrado a Pinacoteca em Sao Paulo, capital, este memorial decorre de urnprograma museologico estruturado em procedimentos de pesquisa, salvaguardae comunica~ao relativas aos bens culturais, orientados em eixos tematicos queevidenciam as amp las ramifica~oesda repressao e as estrategias de resistencia, com asseguintes linhas de a~ao:Centro de Referencia, Lugares da Memoria, Coleta Regularde Testemunhos, Exposi<;:oes,A<;:aoEducativa e A<;:aoCulturaPO 0 Memorial daResistencia e mencionado pelos pesquisadores como urn local que conseguiu invertero seu uso original, de repressao, para ceder lugar as memorias dos ex-presos, agoraprotagonistas. A partir dessas memorias, a resistencia foi valorizada como elementode liga<;:aoentre 0 tragico passado e a atual experiencia democratica. 0 Memorialrecebe cerca de 7.000visitas por meso

Outra experiencia interessante, de sustentabilidade, vern da Africa do SuI.Desde 1995, a prisao Old Fort de Johanesburgo foi transform ada em sede do novoedificio do Tribunal Constitucional, por determina~ao dos juizes daquele Tribunal.o complexo prisional, que ja simbolizou 0 lado mais obscuro do antigo regime doApartheid, abrigou Nelson Mandela e Mahatma Gandhi como presos, mas hoje ternurn outro significado e e considerado, no mundo todo, urn simbolo de esperan~a.

46 0 Centro de Referencia das Lutas Politicas no Brasil, denominado "Memorias Reveladas", foi institucionalizadopela Casa Civil da Presidencia da Republica e implantado no Arquivo Nacional com a finalidade dereunir informa~6es sobre os fatos da historia politica recente do Pais. Maiores detalhes em: <http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exeIsys/start.htm?sid=43>.

47 No ambito federaC 0 PNDH3, ern sua Diretriz nQ24 - Preserva<;ao da memoria rust6rica e a constru<;ao p1.iblicada verdade - estabelece como a~ao para cumprimento do objetivo estrategico de incentivar as iniciativas depreservac;ao da memoria historica e de construc;ao publica da verdade sobre periodos autoritarios, a criac;ao emanuten~ao de museus, memoriais e centros de documenta~ao sobre a resistencia a ditadura.

48 Ver: <http://memoryandjustice.org/article/never-again-rnemorials-and-prevention/>. Acesso em: 05 fey. 1049Atualmente 0 programa e coordenado pela ONG Argentina Memoria Abierta. Maiores inforrna~6es, ver:<http://www.sitesofconscience.org/recursos/networks/south-america/es/>.

50 Cf informa~6es constantes no site: <http://www.pinacoteca.org.br/?pagid=memorial_da_resistencia>. Acessoem: 05 fey. 10.

Ines Virginia Prado Soares. Renan Honoria Quinalha I 531Lugares de Memoria: Bens Culturais?

Em se tratando da memoria dos crimes contra a humanidade, tal qual arepressao politica da ditadura militar brasileira, aprofunda-se a tensao entre a me-moria e 0 esquecimento, sobretudo porque, nessas situa<;:6es,este ultimo e comumenteinstrumentalizado como estrategia de poder a fim de garantir a perpetua<;:ao dedeterminada ordem e a impunidade dos que cometerem esses crimes. Assim, a me-moria aparece como elemento indesejavel e perigoso para essa almejada estabilidade.

Nesses casos, 0 esquecimento assume outra dimensao, pois nao e apenas umaperda acidental ou natural de acesso ao passado, por exemplo, pela a<;:aoinexoraveldo tempo; ao contra rio, e politicamente manipulado.51 a esquecimento que deveriaser 0 contraponto da lembran<;:aou da memoria passa, nessas situa<;:6es,a ser urn dadoproduzido, evidenciando que a luta pelo passado e sempre uma luta por identidades:o que recordamos e 0 que esquecemos inform am e desgastam a nossa identidadeenquanto grupo ou na<;:ao.

Dai a centralidade de urn trabalho da memoria que se oriente no sentido deromper com a logica do silenciamento, com a valoriza<;:aodas vozes das vitimas e coma abertura para constru<;:ao de memorias e a<;:6esque nao aceitem, de modo algum,a hipotese de que as graves viola<;:6esocorridas no passado voltem a se repetir.52

Com efeito, alem de se projetar ao futuro, consagrando 0 ideal de nao repe-ti<;:aodos traumas sociais, 0 exerdcio da memoria apresenta importante fun<;:aodeprover repara<;:ao simbolica aos que foram direta ou indiretamente atingidos pelosatos de arbitrio e violencia. Isso pode ocorrer de diversas formas, tanto pelo reconhe-cimento publico do sofrimento que lhes foi perpetrado quanto pela assun<;:ao deresponsabilidades e atribui<;:ao de culpas, abrangendo tambem as diversas medidasde repara<;:ao no plano economico e social.

Por fim, vale destacar que 0 desenvolvimento das fun<;:6esdo Lugar de Memorianao pode se pautar em politicas, a<;:6esou instrumentos que permitam, implicita ouexplicitamente, 0 negacionismo, a justifica<;:ao das atrocidades e a afronta ao sofri-mento ou itmemoria das vitimas au, ainda, que naa respeitem a diversidade culturale a multiplicidade de memorias, que perpetuem ou acentuem a desigualdade etnicaou de genero, etc. au seja, nao e admissivel a atua<;:aopublica ou privada que desva-lorize a memoria das vitimas, que justifique as medidas de impunidade, que sejapautada em a<;:6esten dentes a unificar a memoria sobre os acontecimentos da dita-dura militar na perspectiva da his tori a oficial, enfim, que inviabilize a constrw;ao efortalecimento da identidade cultural coletiva e da memoria coletiva.

6 Conclus6esa capitulo e extenso e nao se pretende aqui fazer urn apanhado conclusivo

completo do que abordamos, mas apenas pontuar algumas quest6es. Na otica

51 Por isso, "no existe olvido como tal, annque sf hue cos 0 silencios en Ia memoria colectiva causados tanto por laspoliticas oficiales de Ia desmemoria como por los efectos sintomaticos del trauma" (REATI. EI monumento depapeI: Ia construccion de nna memoria colectiva en los recordatorios de los desaparecidos. In: LORENZANO;BUCHENHORST (Org.)., idem, p. 159).

52 Nesse sentido, a memoria deve se constituir em "expressao da reconquista de autoridade pelo sujeito vitima daviolencia, impede a rasura repressiva e traduz a derrota em ultima instancia, das maquinas de aniquilamento"(RIBEIRO, Antonio S; SANTOS, Cecilia M.; MAESO, Silvia R. Violencia, memoria e representa~ao. RevistaCritica de Ciencias Sociais, Coimbra, n. 88, p. 6, mar. 2010.).

532 Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Olhar Multidisciplinar sabre a Efetividade da Protet;ao do Patrimonio Cultural

democratica, 0 Estado brasileiro tern 0 dever de proporcionar para a sociedade 0

conhecimento da hist6ria de determinado periodo de opressao para atender a doisdireitos fundamentais: 0 direito a verdade e 0 dire ito a memoria. Por outro lado, estesdireitos fundamentais sao oponiveis ao Estado para se preservar a memoria coletivado esquecimento, tanto com ac;oesque valorizem e destaquem a verdade como poratuac;aono sentido de evitar que surjam teses revisionistas ou de negac;aodos fatos.

o lugar de memoria e urn conjunto formado por espac;o geografico e bensculturais (memoria de urn periodo de graves violac;oes)que estao interligados poruma base temporal, base esta que vincula os valores atuais ao pass ado de gravesviolac;oesaos direitos humanos, com a finalidade de que estas nao se repitam. Sao,portanto, espac;os de consciencia que integram urn processo de visibilidade dopassado violento, com repercussao direta nos valores ligados a verdade, ajustic;a, atransparencia e a toledmcia.

No plano constitucional, nesses locais a materializac;ao da memoria de urnperiodo historico, a depender dos elementos que 0 compoem, se enquadram nadefinic;aode locais destinados a manifestac;ao cultural (art. 216, IV) ou de sitios devalor cultural hist6rico ou arqueo16gico (art. 216, inc. V). Por serem espac;os fisicosdestinados a valorizac;ao e reparac;ao simb6lica de grupos vulneraveis ou histori-camente injustic;ados, a discussao sobre Lugares de Mem6ria encontra abrigo tanto noambito dos direitos humanos como tambem na tutela dos bens culturais. Portanto,a protec;aojuridica dos Lugares de Mem6ria pode ser feita tanto por instrumentos dedireitos humanos como pelos instrumentos tipicos da tutela dos bens culturais.

Por fim, a considerac;ao dos Lugares de Mem6ria como bens culturais trazcomo consequencia a gestao desses espac;ossob a 6tica de patrimonio cultural, coma produc;ao e apropriac;ao do conhecimento dos bens relevantes para a valorizac;aoda cultura e da historia e para a conservac;aoda memoria e para a sustentabilidade,inclusive economica, da comunidade, numa perspectiva intergeracional. Seos Lugaresde Mem6ria atendem aos deveres do Estado de recordar e de reparar as vitimas, acomunidade tambem tern direito a fruir dos beneficios advindos dos Lugares deMem6ria, especialmente do conhecimento do passado e da convivencia com a verdadesobre 0 ocorrido.

Ah~mdas consequencias juridicas mencionadas, entendemos que ha urn fertilcampo de politicas de memoria, ainda pouquissimo explorado no Brasil, que muitocontribuiria para a concepc;aoe gestao dos Lugares de Mem6ria. Esperamos que nossapesquisa, apresentada nesse capitulo, desperte em cada leitor novas ideias paratratar desses locais com riqueza cultural e de acordo com os melhores parametrosde direitos humanos.

Referencias

AGAMBEN, Giorgio. 0 que resta de Auschwitz. Sao Paulo: Boitempo, 2007.

AMBOS, Kai. El marco juridico de La Justicia de Transicion: Especial Referencia al CasoColombiano. Bogota: Editorial Themis, 2008.

BALLART, Joseph; TRESSERRAS, Jordi Juan i. Gestion del patrimonio cultural. 2. ed. Barcelona:Ariel, 2005.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honorio Quinallia I 533Lugares de Mem6ria: Bens Culturais?

BERAT,Lynn. South Africa: negotiating change. In: ARRIAZA, Naomi Roth (Org.). Impunityand human rights in international law and practice. New York: Oxford University Press, 1995.p.267-280.

BICKFORD,Louis. Transitional Justice. In: SHELTON,Dinah (Ed.).The Encyclopedia of Genocideand Crimes against Humanity. Detroit: Macmillan Reference USA, 2004. v. 3, p. 1045-1047.

BICKFORD, Louis; BRETT,Sebastian; SEVCENKO, Liz; RIOS, Marcela. Memorializacion yDemoeraeia. PoHticas de Estado y Accion Civil, informe baseado na Conferencia IntemacionalMemorializacion y Democracia: PoHticas de Estado y Accion Civil a realizada entre e120 y el22 de junio de 2007 en Santiago, Chile. Disponivel em: <http://www.ic~.org>. Acesso em: 22maio 2010.

BICKFORD, Louis; SCHULTZ, Debra. Memory and Justice: a Brief and Selected History of aMovement Part 3 2009. Disponivel em: <http://memoryandjustice.org/about/history/part3>.Acesso em: 05 fev. 2010.

BRAUER, Daniel. EI arte como memoria: reflexiones acerca de la dimension historica de laobra de arte. In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST,Ralph (Org.).Politieas de la memoria:tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla; Mexico: Universidad del Claustrode Sor Juana, 2007.

CALVEIRO,Pilar.Memoria, politica y violencia. In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST,Ralph (Org.). Politieas de laMemoria: tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla;Mexico: Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007.

CATELA,Ludmila da Silva. Situa~iio-limite e memoria: a reconstruc;ao do mundo dos familiaresde desaparecidos da Argentina. Sao Paulo: Hucitec; Anpocs, 2001.

CHEROUX, Clement. Por que seria falso afirmar que despues de Auschwitz no es posibleescribir poemas? In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph (Org.). Politicas de laMemoria: tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla; Mexico: Universidad delClaustro de Sor Juana, 2007.

COHEN, Stanley. Estados de negaei6n: ensayo sobre atrocidades y sufrimientos. Buenos Aires:Departamento de Publicaciones de la Facultad de Derecho (DBA),2005.

DERRIDA, Jacques. 0 perdao, a verdade, a reconcilia<;ao:qual genero? In: NASCIMENTO,Evandro (Org.). Jacques derrida: pensar a desconstru~ao. Sao Paulo: Esta<;aoLiberdade, 2005.p.47-52.

ELSTER, Jon, Rendieion de euentas: La Justicia transicional em perspectiva historica. Trad.E. Zaidenwerg. Buenos Aires: Katz Editores, 2006.

FONDEBRIDER, Luis. Arqueologia e antropologia forense: urn breve balan<;o.In: FUNARI,Pedro Paulo; ZARANKIN, Andres; REIS, Jose Alberioni dos. Arquelogia da repressiio e daresisteneia na America Latina na era das ditaduras: decadas de 1960-1980.Sao Paulo: Annablume;Fapesp, 2008.

FUNARI Pedro Paulo, ZARANKIN Andres; REISJoseAlberioni dos. Arquelogia da repressiio e daresisteneia na America Latina na era das ditaduras: decadas de 1960-1980.Sao Paulo: Annablume;Fapesp, 2008.

GARAPON, Antoine. Des crimes qu'on ne peut ni punir ni pardonner: pour une justiceintemationale. Paris: Odile Jacob, 2002. p. 214-215.

GARAPON, Antoine. Peut-On Reparer L'Histoire?: Colonisation, Esclavage, Shoah. Paris: OdileJacob,2008.

534 y."""_'1draCureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Ines Virginia Prado Soares, Claudia Marcia Freire Lage (Coord.)Oinar ~ultidisciplinar sobre a Efetividade da Prote<;ao do Patrimonio Cultural

SMurnShliHOI

SM'Nev

TEL

UNsoci,

VALMacjusti

VELDis.r:&In)

VE2Vein

ZAFdos<reprEPedIFapE

HABER, Alejandro F, Tortura, verda de, repressao, arqueologia. FUNARI, Pedro Paulo;ZARANKIN, Andres; REIS, Jose Alberioni dos (Org.). Arquelogia da repressiio e da resistenciana America Latina na era das ditaduras: decadas de 1960-1980. Sao Paulo: Annablume; Fapesp,2008. p. 161-166.

HAYNER, Priscilla B. Unspeakable Truths: confronting State terror and atrocity. New York:Routledge, 2002.

KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. 0 que restada Ditadura. Sao Paulo: Boitempo, 2010. p. 123-132.

KIZA, Emesto; RATHGEBER, Corene; ROHNE, Holger-C. Victims of War: An Empirical Studyon War-Victimization and Victims' Attitudes.Toward Addressing Atrocities. Hamburgo:Instituto de Investigacion Social de Hamburgo, Junio 2006.

KROG, Antje. Country of my skull. Johannesburg: Random House, 1998. p. VI-VII apud DERRIDA,Jacques. 0 perdao, a verdade, a reconcilia<;:ao: qual genero? In: NASCIMENTO, Evandro(Org.). Jacques Derrida: pensar a desconstru<;:ao. Sao Paulo: Esta<;:ao Liberdade, 2005. p. 47-52.

LORENZ, Federico. Los lugares de la memoria. Buenos Aires: Madreselva, 2009. p. 7.

LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph (Org.). Politicas de la memoria: tensiones en lapalabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla; Mexico: Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007.

McGREGOR, Lorna. Individual accountability in South Africa: cultural optimum or politicalfacade? American Journal of International Law, v. 95, p. 32-45, n. 1,2001.

MEZAROBBA, Glenda. De que se fala, quando se diz "Justi<;:a de Transi<;:ao"? BIB, Sao Paulo,n. 67, p. 111-122, jan./jun. 2009.

MEZAROBBA, Glenda. Entrevista com Juan Mendez, presidente do Intemacional Center forTransitional Justice (ICTJ). Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, Sao Paulo, v. 7,p. 168-175,2007.

NORA, Pierre. Entre memoria e historia: a problematica dos lugares. Projeto Historia, SaoPaulo, n. 10, dez. 1993.

OLIVEIRA, Jose Roberto Pimenta de. Atividade administrativa de ordena<;:ao da propriedadeprivada e tombamento: natureza jurfdica e indenizabilidade. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca;ZOCKUN, Maurfcio (Org.). Interven90es do Estado. Sao Paulo: Quartier Latin, 2008.

PINHEIRO, Paulo Sergio. Prefacio: esquecer e come<;:ar a morrer. In: SOARES, Ines VirgfniaPrado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memoria e verdade: a justi<;:a de transi<;:ao no EstadoDemocratico brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2009.

POMAR, Pedro. Estevam da Rocha. Estatisticas do DOI-Codi. Revista ADUSP, n. 34, maio 2005.

REATI, Fernando. El monumento de papel: la construe cion de una memoria colectiva en losrecorda tori os de los desaparecidos. In: LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph.Politicas de la memoria: tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla; Mexico:Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007.

RIBEIRO, Antonio S.; SANTOS, Cecilia M.; MAESO, Silvia R. Violencia, mem6ria erepresenta<;:ao. Revista Critica de Ciencias Sociais, Coimbra, n. 88, mar. 2010.

RICOEUR, Paul. La memoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Editions du Seuil, 2000.

ROTBERG, Robert I; THOMPSON, Dennis. Truth v. Justice: the morality of truth commissions.Princeton: Princeton University Press, 2000.

Ines Virginia Prado Soares, Renan Honoria Quinalha I 535Lugares de Mem6ria: Bens Culrurais?

SAMPAIO, JOSeAdercio Leite; ALMEIDA, Alex Luciano Valadares de. Verdade e historia: porurn direito fundamental a verdade. In: SOARES, Ines Virginia Prado; KISHI, Sandra AkemiShimada. Memoria e verdade: a justir,;:ade transir,;:aono Estado Democra.tico brasileiro. BeloHorizonte: Forum, 2009. p. 249-272.

SMYTH, Marie Breen. Truth Recovery and Justice after Conflict: Managing Violent Pasts. London;New York: Routledge, 2007.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. 0 que resta da ditadura. Sao Paulo: Boitempo, 2010.

UN SECURITY COUNCIL. The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflictsocieties. S/2004/616, 3 Aug. 2004.

VALENCIA VILLA, Hernando. Introduccion a la justicia transicional. Claves de Razon Pnictica,Madrid, n. 180,mar. 2008. Disponivel em: <http://escolapau.uab.cat/img/programas/derecho/justicia/seminariojt/tex03.pdb. Acesso em: F abr. 2010.

VELHO, Gilberto. Patrimonio, negociar,;:aoe conflito. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. I, Apr. 2006.Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01 04-93132006000100009&lng=&nrm=iso>. Acesso em: 11 out. 2008.

VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria: memorias y olvidos. Buenos Aires: SigloVeintiuno, 2009.

ZARANKI, Andres; NIRO, Claudio. Amaterializar,;:ao do sadismo: arqueologia da arquiteturados centros clandestinos de detenr,;:aoda ditadura militar argentina: 1976-1983. In: Arquelogia darepressiio e da resistencia na America Latina na era das ditaduras: decadas de 1960-1980. FUNARIPedro Paulo, ZARANKIN Andres; REIS Jose Alberioni dos (Org.). Sao Paulo: Annablume;Fapesp, 2008.

Iniorma<;ao bibliogrMica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associa<;aoBrasileira de Normas Tecnicas (ABNT):

SOARES, Ines Virginia Prado; QU1NALHA, Renan Hon6rio; Lugares de mem6ria:bens culturais? In: CUREAU, Sandra et al. (Coord.). Olha,- multidisciplinar sob,-e aefetividade da protec;iio do patrim611io cullural. Belo Horizonte: F6rum, 2011. p. 509-535. ISBN 978-85-7700-474-4.