cine Ópera: prazer sem limites? uma etnografia imprópria no/do único "cinema de...

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL 04 a 07 de setembro de 2012 UFPI Teresina-PI GRUPO DE TRABALHO GT05 - Culturas Corporais, Sexualidades e Transgressões: novas moralidades em debate na era dos Direitos Humanos Coordenadores Fabiano de Souza Gontijo (UFPI) e Laura Moutinho (USP) Cine Ópera, prazer sem limites? uma etnografia imprópria no/do único "cinema de pegação" de Belém-PA Milton Ribeiro da Silva Filho | UFPA | [email protected] Francisco Moreira Ribeiro Neto | UFPA | [email protected]

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e

PRÉ-ALAS BRASIL

04 a 07 de setembro de 2012

UFPI – Teresina-PI

GRUPO DE TRABALHO

GT05 - Culturas Corporais, Sexualidades e Transgressões: novas moralidades

em debate na era dos Direitos Humanos

Coordenadores

Fabiano de Souza Gontijo (UFPI) e Laura Moutinho (USP)

Cine Ópera, prazer sem limites? uma etnografia imprópria no/do único "cinema de pegação" de Belém-PA

Milton Ribeiro da Silva Filho | UFPA | [email protected]

Francisco Moreira Ribeiro Neto | UFPA | [email protected]

Cine ópera, prazer sem limites? Uma etnografia imprópria no/do único "cinema de pegação" de belém-pa

Mílton Ribeiro da Silva Filho1

Francisco Moreira Ribeiro Neto2

Resumo: Este trabalho é resultado de pesquisa etnográfica sobre os tipos de

sociabilidade e trocas erótico-sexuais masculinas no único "cinema de pegação" de Belém-PA, o Cine Ópera. Propomos, a partir da observação direta e participante no cinema e das entrevistas, tensionar aspectos relacionados às

construções de gênero, sexualidade e corporalidade neste espaço de (des)prazer e (in)satisfação sexual. A partir da reconstrução das trajetórias desses sujeitos objetivamos compreender as motivações e representações

sobre as práticas dissidentes relacionadas à sexualidade, ao prazer com pessoas do mesmo sexo, a masturbação e felação em pessoas/corpos/membros desconhecidos. Neste espaço moldado por

masculinidades viris, por contatos e sinalizações pouco compreensíveis na escuridão do cinema, vultos transfiguram-se em corpos e performances são (re)(des)construídas.

Palavras-chave: Cine Ópera, “Cinema de pegação”, Sexualidade.

Entrada

O texto que aqui apresentamos é fruto de um esforço conjunto, situados

em momentos diferentes das vivências acadêmicas de cada um dos autores: a

primeira pesquisa foi desenvolvida entre os anos de 2010 e 2012 e originou

uma dissertação de mestrado, defendida em março de 2012, e a segunda é

uma pesquisa iniciada em 2011, que resultará num trabalho de conclusão de

curso, ainda em fase de construção.

A pesquisa de mestrado versou sobre os tipos de sociabilidade que os

LGBT estabelecem na cidade de Belém, assim como um mapeamento do

circuito GLS, com ênfase nos bares e boates. Tinha, ainda, por objetivo,

investigar como os LGBT dinamizam suas vidas e estilos de ser/viver na

cidade, a partir do campo de possibilidades aberto com a assunção de uma

sexualidade e/ou gênero dissidente. Como resultado desta, conclui-se que a

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, área de concentração em

Antropologia, da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected] 2 Graduando do 5º semestre de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. E-mail:

[email protected].

orientação sexual e de gênero em discussão ainda são empecilhos a uma

vivência plena, livre de preconceito e discriminação, seja na casa, na família,

ou na rua, no circuito GLS, pois as prescrições e imposições heteronormativas

são uma referência para uma vivência mais próxima do aceitável,

principalmente na construção e visibilidade de si (SILVA FILHO, 2012).

Na segunda pesquisa, ainda em curso, o objetivo é compreender a

dinâmica homoerótica de indivíduos não-gays ou não-homossexuais e que

também não se enquadram na categoria “bissexual”, dizendo apenas que

“curtem homens”, mas que estão no “cinemão” para extravasar sentimentos

e/ou tesões por outros homens, num clima de total escuridão e impessoalidade.

Com isso em vista, esta pesquisa, que está em sua fase de campo, se

desenrolará com a possibilidade de entender, também, as representações

desses homens que frequentam e interagem sexualmente com outros homens,

tendo em vista seus discursos sobre gênero, sexualidade e corpo, sua relação

de (im)pessoalidade e o (não) distanciamento entre os corpos.

Visto que os espaços de encontro homoerótico estão distribuídos em

Belém de forma heterogênea, podendo estar tanto em bairros de classe média

alta, compondo a atual mancha de lazer e sociabilidade da cidade, quanto em

bairros periféricos, mais afastados e geralmente de classe baixa, vislumbramos

com esse trabalho apresentar, de maneira breve, o único “cinema de pegação”

da capital paraense.

Os dados de campo aqui apresentados fazem referência, como dito

anteriormente, a duas pesquisas em fases distintas: uma já concluída e a outra

em construção. Os trechos de entrevistas3 aqui apresentados fazem parte das

entrevistas realizadas para a dissertação e algumas descrições e impressões

do lugar e das pessoas são resultado da pesquisa de campo em andamento.

Com essa explicação, pretendemos apenas acentuar a dificuldade que é

escrever um texto em parceria com outro pesquisador, em momentos distintos

de suas trajetórias acadêmicas, fruto de dois olhares diferentes, de dois

momentos diferentes. Não é por isso que deixamos de antever questões éticas

envolvidas na feitura de um material em parceria. Isto posto, apresentaremos

3 Os nomes das/dos interlocutoras/es são fictícios.

na sessão seguinte algumas das observações sobre o espaço, a dinâmica e as

pessoas.

A mancha de lazer e sociabilidade LGBT na capital paraense

A cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará foi fundada, em 12

de janeiro de 1616, por Francisco Caldeira Castelo Branco, que erigiu a

edificação-marco do desenvolvimento urbano da cidade, o Forte do Presépio –

Forte do Castelo4 anteriormente–, às margens da Baía do Guajará. A escolha

para construção deu-se pela localização privilegiada do terreno, pois este se

encontra na foz do Amazonas, “ao sul do estuário amazônico e protegido do

oceano, este forte contribui para a expansão lusa no norte do Brasil5”, ponto

estratégico de combate aos ingleses e holandeses6, e que “desempenhou um

importante papel na ocupação da região7”.

Ainda no século XVII, com a expansão da cidade e do consequente

desenvolvimento urbano, a cidade contava com três freguesias: Sé, Campina e

Trindade. A primeira era conhecida à época como Cidade, onde hoje é o bairro

da Cidade Velha. A segunda, na área imediatamente contígua, onde hoje se

encontra o, quase extinto, bairro da Campina. E a terceira nas imediações do

que conhecemos hoje como o bairro do Comércio. Na virada do século XIX

para o XX, a cidade agregava mais uma freguesia, a de Nazaré – onde a

referência hoje em dia é a Basílica de Nazaré. Assim a cidade crescia em

todas as direções.

A antropóloga Carmem Izabel Rodrigues (2008, p. 98), no texto em

que descreve a formação do bairro do Jurunas, seu objeto de análise, diz que

4 Rodrigues (2008, p. 94) afirma que o Forte do Presépio sofreu inúmeras intempéries sendo

“reconstruído e substituído na primeira metade do século XVIII pelo Forte de Castelo do Senhor de Santo Cristo”. 5 Cf. Almeida, 2008, p. 53.

6 “Nos dois eixos de extensão do sítio inicial (no sentido do Guajará e no sentido do rio

Guamá), a expansão se fez tanto por meio de lutas contra os índios que resistiam à ocupação da terra e das águas na ilha grande de Joannes (hoje ilha do Marajó), no Guajará, porta de entrada dos navegadores invasores, assim como nas margens do rio Guamá, onde se localizavam, à época, grupos tupinambás, como também por meio de acordos de paz, trocas e negociações com diversos grupos indígenas que se misturaram, desde então, à população do núcleo que se constituía, como trabalhadores escravizados ou cooptados, ocupando, desde o início, parte do espaço da cidade, especialmente os arrabaldes, que já habitavam antes da chegada dos portugueses.” (RODRIGUES, 2008, p. 94-95). 7 Cf. Souza, 1997, p. 14.

No início dos oitocentos, um evento importante marcou a expansão da cidade em direção aos bairros hoje denominados Batista Campos, Jurunas, Condor, Cremação e Guamá: o aterramento do igarapé do Piry, um braço do rio Guamá que desaguava na baía do Guajará; a partir de então surgiram novas ruas e avenidas, ligando o centro da cidade aos arrabaldes paralelos ao Guamá. Com o aterramento, a estrada das Mongubeiras (hoje Almirante Tamandaré) ligou o largo do Bagé, no Arsenal de Marinha, ao largo da Pólvora e à estrada de Nazaré, que dava acesso ao único caminho terrestre de saída da cidade.

Essa expansão da cidade, para o norte, evidencia o crescimento

urbanístico de Belém, com inúmeras construções sendo erguidas, ruas e

bairros sendo criados, estradas sendo alargadas e um processo de

saneamento sendo implementado; isso tudo isso ligado à economia do ciclo da

borracha, do século XIX. E, emergem nesse momento, dois importantes pontos

atuais de sociabilidade: a Doca, no bairro do Reduto, e a Praça da República.

Através do sistema de escoamento dos canais de águas pluviais,

havia uma ligação entre o antigo Largo da Pólvora – atual Praça da República

– e a Doca do Reduto8 – hoje Avenida Visconde de Souza Franco – e após a

terraplanagem dessa área, em meados do século XIX, e contando com uma

“aprazível localização e seu dinamismo comercial” a cidade ganhou um novo

“cartão-postal” (SOUSA, 2009, p. 32-33).

Com todas essas modificações ocorrendo na cidade, em finais do

século XIX e início do XX, o bairro do Reduto passou a ocupar uma

característica interessante, pois sua “localização junto aos terminais de

transporte fluvio-marítimo favoreceu o surgimento de unidades fabris na área

central ou em áreas próximas a esta, como era o caso do Reduto” (SOUSA,

2009, p. 67). Com isso, prédios para servirem de fábricas foram construídos e

casas para abrigar a mão-de-obra operária também foram erguidas.

A partir deste ponto é que pretendo desenvolver algumas das

minhas hipóteses, pois com o processo de estigmatização que ligava o Reduto

8 “A conversão de igarapé do Reduto se iniciou em 1851, mas somente atingiu uma forma mais

regular e duradoura em 1859 quando passou a ser chamada de Doca do Imperador, posteriormente, Doca do Reduto.” (SOUSA, 2009, p. 32). “A Doca do Reduto recebia as águas pluviais que vinham do antigo Largo da Pólvora (atual Praça da República) por meio de esgotos laterais construídos a partir do calçamento da Estrada do Paul d’Água. A partir dessa obra e do calçamento de várias ruas do Reduto realizados no final do século XIX o problema de saneamento das terras baixas predominantes na área foi sensivelmente reduzido, porém somente na segunda metade do século XX é que o problema das enchentes no bairro foi parcialmente solucionado, como trataremos mais adiante” (SOUSA, 2009, p. 33).

a uma origem operária, este foi, a partir da década de 1940, período final da

pesquisa de Sousa (2009), perdendo terreno no mercado imobiliário, porque

não tinha para onde se expandir, sendo deixado de lado em detrimento do

bairro vizinho, o Umarizal. Mas esse é um tema que merece mais investigação,

histórica e antropológica. Portanto, acredito que muitas das construções

residenciais e industriais foram abandonadas, o que pode se observado

fazendo-se uma rápida visita pelo bairro e verificando-se o nível de

deterioração de algumas edificações, e num momento posterior foram

compradas por empresários que almejavam desenvolver neste bairro um

circuito de lazer.

Na pesquisa desenvolvida pela antropóloga Telma Amaral

Gonçalves (1989) com homossexuais na cidade de Belém na década de 1980,

a autora não explicita nenhum lugar dos lugares de interação e sociabilidade

entre os LGBTs; a não ser pelo Bar do Parque, na Praça da República, que

surge com “uma frequência bem expressiva de homossexuais de ambos os

sexos sendo que, particularmente à noite, quando o movimento aumenta no

local, pode-se observar, além disso, um número razoável de prostitutas e,

também, de travestis que fazem da prostituição o seu meio de vida.” (p. 7-8).

Izabela Souza (1997), que desenvolveu uma pesquisa sobre as

“tribos urbanas” da capital paraense, no contexto chamado por ela de “pós-

moderno” – essa pesquisa inclui, ainda, uma observação sobre a dinâmica das

drag-queens –, evidenciou no trabalho alguns lugares do circuito de

sociabilidade juvenil em Belém, na década de 1990. Assim, aparecem, na

etnografia, as boates Athenas e Zeppelin Club, conhecidos clubes mix9 da

capital naquela década; assim como a Praça da República, lugar onde ela fez

quase todo o campo. Então, ela ajuda a reconstituir o panorama deste circuito,

a saber:

Atualmente, além dos espaços que anteriormente eram comuns às drags, após 1995, se configurou na cidade uma espécie de território circunscrito, que não se restringia apenas a boates gays. Casas noturnas como o Bar La Nuit (Rua Doutor Moraes, 581), o 407 Night Club (Av. Gentil Bittencourt, 407), o Bar Lual (Trav. Rui Barbosa), a Boate Eqquos (Rua 28 de Setembro) são locais que já existiam como

9 Eram clubes que não faziam diferença de público, podendo congregar homens e mulheres,

homossexuais e heterossexuais, assim como as travestis e transexuais, ou seja, congregavam também as sexualidades e gêneros dissidentes. Todas as boates descritas acima não existem mais.

guetos homossexuais e, além de shows de drags queens, neles apresentavam-se também transformistas e travestis. Nesse contexto, até o referido momento podia-se dizer que as drags ficavam muito restritas aos guetos homossexuais, frequentados por “iguais” ou “informados”. Outros bares e boates foram inaugurados e abriram suas portas para apresentações de drag queens, como o atualmente extinto Bar Go Fish (Trav. Rui Barbosa entre Av. Brás de Aguiar e Av. Nazaré), a boate Doctor Dance (Rua Boaventura da Silva entre Trav. Quintino Bocaiúva e Av. Visconde de Souza Franco), a Boate Mix (Trav. Almirante Wandenkolk entre Rua Antônio Barreto e Rua Diogo Móia). (SOUZA, 1997, p. 153)

Sendo assim, atualmente, esta praça10 possui alguns coretos, um

anfiteatro, um pequeno teatro experimental e um amplo gramado que servem

de ponto de encontros e sociabilidade entre jovens e adultos; abriga ainda, o

Bar do Parque, reduto da boemia da capital paraense nas décadas de 1970 e

1980, e o Teatro da Paz, construção que data de 1878, símbolo do período da

borracha. E, durante muitos anos, a mesma recebeu a Parada Militar de 7 de

Setembro – que acontece agora na Aldeia Cabana – e por ela ainda passam a

Trasladação e a Procissão do Círio de N. S. de Nazaré11, a Parada do Orgulho

LGBT, sem falar da Festa da Chiquita. Comumente, é o ponto de chegada, nas

manhãs de domingo dos meses de junho e outubro, do cortejo festivo

comandado pelo grupo cultural “Arraial do Pavulagem”. Então, por tudo isso, a

praça continua sendo um ponto de encontro e localização na cidade de Belém.

De acordo com o exposto até agora, fica evidente que o bairro do Reduto e

arredores, assim como a Praça da República (na imagem abaixo),

configura[ra][m], pelo menos nos últimos 20 anos, uma grande mancha de lazer

e sociabilidade juvenil.

10

Ainda, de acordo com Souza (2009, p. 45): “Deve-se aos intendentes Arthur Índio do Brasil, Barão do Marajó, Dr. Silva Rosado e Antônio José de Lemos, as principais reformas e melhoramentos introduzidos no logradouro, como o calçamento das ruas que o delimitam, a instalação de diversos equipamentos decorativos, o assentamento de monumentos e coretos, e principalmente a conformação de seu aspecto paisagístico, havendo a delimitação de passeios e jardins internos, fazendo com que a Praça ganhasse, em fins do século XIX e início do século XX, os contornos e perfis que hoje a caracterizam”. E continua: “Dentre os monumentos presentes na praça, vale ressaltar o da República, cuja pedra fundamental foi assentada em 15 de novembro de 1890, no governo de Justo Leite Chermont, que desejou comemorar um ano de proclamação da república com a instalação do referido monumento, feito pelo escultor genovês Michele Sansebastiano.” 11

A procissão do Círio acontece no segundo domingo de outubro, pela manhã, e faz o sentido inverso à Trasladação. Enquanto que esta “leva” a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré até a Catedral Metropolitana de Belém (Igreja da Sé), no sentido Nazaré-Cidade Velha, a primeira faz o contrário, retornando com a imagem para a Basílica de Nazaré, sentido Cidade Velha-Nazaré. A Trasladação acontece nas noites do sábado que antecede ao Círio e o próprio Círio acontece aos domingos pela manhã, sempre no segundo domingo do mês de outubro.

Acerca dessa grande mancha, posso afirmar que corresponde ao

que Néstor Canclini (2008) chamou de “multifocalidade, policentricidade e

polissemia” característica das grandes cidades, que divide as mesmas em

várias áreas, centros e sentidos. Portanto, a praça e o Reduto carregam esses

sentidos variados, principalmente para quem usufrui desses espaços e nele

inscreve seus próprios fluxos, criando fronteiras simbólicas e se mesclando ao

hibridismo possibilitado pelas grandes cidades (HANNERZ, 1997).

“Cinema de pegação” ou “cinemão”: o Ópera no contexto belemense

Entre os anos de 2010 e 2012, quando da realização da pesquisa de

campo para o mestrado, contabilizava-se na cidade de Belém: seis boates

(Malícia, Lux, Hache, Rainbow, Vênus e R4 Point), dois bares (Bar da Ângela e

Veneza), quatro saunas (Calypso, Paradise, Reduto e Thermas 21) e um

cinema (Cine Ópera); dentro do que consideramos como circuito GLS da

cidade. Excetuando-se esses, ainda existem outros pontos de sociabilidade

homoerótica, como: o sex shop “Comprinhas Quentes” com cabines individuais

de projeção e locação de vídeos pornôs, localizado no Telégrafo; os banheiros

dos shopping centers e das grandes lojas de departamentos, localizadas nos

mais diferentes bairros da cidade; a Doca; e a não menos observável Praça da

República, tradicional ponto de sociabilidade homoerótica, prostituição e

michetagem, localizada no centro da cidade.

Com uma configuração distinta às saunas, que também ajudam a

compor a cena gay de Belém e que também são locais de sociabilidade

mediados pelo comércio, existe no bairro de Nazaré, centro da cidade, o único

“cinema de pegação” em que os contatos homocorporais são permitidos e

incentivados, a partir da exibição de filmes pornôs HT12 durante todas as

sessões.

12

De heterossexual e refere-se à classificação da indústria de entretenimento adulta, na qual os filmes são classificados de várias maneiras, mas que para esse momento não é importante explicitar.

Imagem 1: Localização do Cine Ópera. Fonte: Google Maps, 2012.

O Ópera, como é mais conhecido este cinema, encontra-se localizado

na Av. Nazaré, em frente ao Centro Arquitetônico de Nazaré, lugar que abriga a

Basílica de Nazaré, símbolo máximo da Festa de Nazaré, da qual o Círio de N.

S. de Nazaré faz parte, conforme imagem acima. O CAN, como também é

conhecido o Centro Arquitetônico, é uma praça em frente à Basílica onde há

época dos festejos, em outubro de todos os anos, montam-se o Arraial de

Nazaré, com parque de diversões e barracas no estilo junino.

Atualmente, o Ópera se encontra ladeado por duas lojas: uma de

apetrechos para fantasias, O Mandarim (da galeria da qual o cinema faz parte),

e outra de departamentos, as Lojas Americanas (que ocupou o lugar onde

antes ficavam duas antigas salas de cinema, o Nazaré 1 e 2), de acordo com

foto abaixo. Este cinema, desde sua fundação até os dias de hoje, é um ponto

comercial de velada contestação homoerótica, embora exiba filmes

heterossexuais, pois está situado próximo à igreja que representa a presença

do catolicismo na capital paraense.

Foto 1: Fachada do Ópera. Fonte: Blog Vida e Curtição Gay, 2012.

Um pouco da memória deste cinema é relatado no trecho da matéria

abaixo:

O último exemplo de fechamento de cinema em Belém é o do Ópera, vizinho dos Cines Nazaré. O Cine Ópera já encerrou suas atividades de exibição cinematográfica como era previsível, embora de forma imperceptível, pois o grande público de cinema não mais freqüentava a sala inaugurada em 1961, como me apresso a explicar, antes de ser contestado. O Cine Ópera conservou, até recentemente, um galardão nada invejável de ser o único cinema do Brasil a exibir, em película, filmes pornográficos. Os raros cinemas que ainda resistem utilizam o sistema digital. Com o fim das distribuidoras desse gênero, o Ópera adquiriu as últimas fitas remanescentes e, com esse material mais do que surrado (e canibalizado), ficou projetando repetidamente partes misturadas dos vários filmes existentes. Para os atuais espectadores do cine Ópera, o que menos interessa é o que está sendo exibido e não preciso dizer mais nada. Quero me ater ao fato de que, com programação regular, o cine Ópera deixou de ser sala exibidora de filmes. Ou, para ser mais claro, deixou de ser cinema (CARNEIRO in Portal ORM, acesso em 05/06/2012)

Para se ter acesso ao cinema é preciso entrar na galeria, no interior do

qual estão distribuídas lojas e lanchonetes, e onde, ao fundo, encontra-se a

sala propriamente dita. Este cinema é o único que restou dos antigos cinemas

de rua em Belém. E o segundo mais antigo em funcionamento na capital,

perdendo apenas para o Cine Olympia, com seus 104 anos.

Foto 2: Galeria de acesso ao Ópera. Fonte: Blog Vida e Curtição Gay, 2012.

O acesso ao cinema pode ser constrangedor, mas embora exista essa

áurea de coerção, que poderia representar o sentimento de abjeção por

aqueles que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo, pois sabe-se

claramente o que se faz, ou pelo menos o que se espera que façam, naquela

sala. Em detrimento a isso, o cinema sempre está movimentado, em alguns

dias a lotação chegando quase ao máximo.

Em um local onde a entrada é permitida só para maiores de 18 anos,

encontro no relato de uma interlocutora, como esta, à época menor de idade,

conseguiu acessar este cinema sem maiores problemas. Evidenciando com

isso os manejos e dribles possíveis no acesso tanto ao cinema, quanto à

construção de si, mediados por laços de amizade e sociabilidade:

(sobre a primeira ida ao Ópera) [MILTON] Que tu foi pro Ópera? [LAVÍNIA] Sim. Foi que eu fui pro Ópera com os meus amigos. É, eu não lembro como eu foi que eu consegui entrar com 13 anos, naquele cinema, né, proibido. Mas entrei, foi uma coisa, assim, estranha, sabe?! Eu não sei te explicar! Ao mesmo tempo me deu desejo, me deu medo, me deu tudo, né?! E os amigos naturalmente, como se já tivesse a carteirinha dali, né?! E eu não, sabe?!

Para se chegar à roleta, na entrada da sala, é preciso passar antes,

além das lojas e lanchonetes, acompanhados de olhares curiosos de seus

usuários, na bilheteria, que, como mostra a foto abaixo, já deixa clara a

intenção do cinema.

Foto 3: Bilheteria do Ópera. Fonte: Blog Vida e Curtição Gay, 2012.

Os ingressos custam r$ 10, com a possibilidade de meia-entrada, porém

é quase impossível comprá-las, sempre com a justificativa do bilheteiro de que

já foram vendidas as cotas e que a lotação do cinema está no máximo, fato

quase sempre desmentido, quando se adentra o recinto.

Os curiosos, ou como diz João Silvério Trevisan (2000), os “suspeitos”

(que seriam os simpatizantes, o “S” da sigla GLS), quase sempre procuram o

lugar como ponto de encontro e contato sexual, pois sua fama atinge tanto os

homo quanto os hetero-orientados, uma vez que a fama do cinema como um

lugar de pornografia e sujeira é notoriamente conhecida na capital paraense,

como demonstra o trecho de entrevista abaixo:

(sobre o Ópera) [ERIC] Um amigo meu hetero falou que tinha ido lá. Aí, fizeram o “caminho do inferno” pra querer agarrar as pessoas. Ele falou que viu gente fazendo sexo oral. [MILTON] Mas aí ele falou se era homem com home? [ERIC] Sim, homem com homem. Até porque lá só vai homem, né?! [MILTON] Basicamente. [P. H] Porque, eu não sei se é verdade, mas parece que mataram uma pessoa lá! [MILTON] Recentemente. Não que mataram, morreu... [ERIC] Foi?

[MILTON] A pessoa... foi... recente acho que não faz nem três meses. [ERIC] Não, porque o que eu fiquei sabendo faz muito tempo. Que mataram uma pessoa lá dentro. Não sei se é verdade, nem sei quando foi isso. Quando ele falou isso nessa época eu nem tive coragem de ir. Aí, eu fui com esse meu amigo que vai fazer oito anos e tal. Aí, a gente foi lá pra ver como é que era, curiosidade. Ainda fez parte daquele, digamos assim, daquele momento de curiosidade, de conhecer coisas novas, foi no pacote. Deixa eu ver quando foi isso... [MILTON] Foi com a turma da praça da república? [ERIC] Foi com um deles que frequentava a praça, mas foi esse que eu conheci, em 2004 na Go!, que é meu amigo até hoje e que mora perto da Rainbow. Aí, a gente foi. Só que a gente não se sentiu bem. Porque é meio, sei lá, promiscuidade. Não era uma coisa que a gente estava disposto a fazer. Chegamos lá pra conhecer. Passava filme. E tinha travesti lá, tava andando por lá. Mas era assim: ou era homem ou era travesti, não tinha mulher. Aí, alguns caras ficavam só, de longe assistindo. Alguns ficavam se masturbando, no banco. E eu percebi que... parece que eu tava fazendo uma pesquisa, eu tava reparando em tudo. Aí, tinha um caraça que tava se masturbando, lindo, sabe?! Ele tava com capacete, aí, foi um rapaz fazer sexo oral nele e ele não deixou. Eu acho que ela tava só, enfim, assistindo. Aí, eu vi que ficavam pulando de um banco pro outro, eles faziam lá mesmo, né?! (Trecho da entrevista com ERIC, 27 anos, 24/01/2012).

O trecho acima revela a alma do lugar. Ou pelo menos a imagem que se

faz dele. Marcada pelo o estereótipo. De um lugar sujo, perigoso. Com público

para todos os gostos. Lugar da impessoalidade, onde qualquer um pode entrar,

mas que deverá manter-se anônimo, na escuridão, e sem muitas conversas.

A imagem abaixo, de uma conversa capturada no site de

relacionamentos Orkut, evidencia o ar de imprevisibilidade que o cinema traz:

Imagem 2: Conversa sobre o Ópera no Orkut. Fonte: Pesquisa de campo, 2012.

Após a galeria, já na entrada, é possível visualizar um cinema em

decadência, possivelmente com as estruturas de sua época de fundação,

década de 1960. À entrada é possível ver, logo a frente, um velho sofá onde

pessoas podem sentar e conversar. À direita, temos a escada, que dá acesso

ao mezanino (uma pequena sala que dá visão à sala maior, do piso térreo) e à

entrada para a sala do térreo. Na parede da escada, ainda no térreo, é visível

uns cartazes de filmes pornôs antigos, todos HT. À esquerda, existe a saída. E

entre a saída e entrada, na parede em que se recosta o sofá, há uma sala, que

fora transformada em cabines, para sexo privativo. O valor cobrado para

acessá-las é o dobro do cobrado na entrada e consta na bilheteria como

camarote.

Quando se alcança a sala principal, no térreo, é possível enxergar a

magnitude da sala. Onde é possível acomodar, sentadas, 300 pessoas,

facilmente. Sem contar os lugares do mezanino, o que somaria umas 30

pessoas a mais. Na extremidade oposta à entrada, encontra-se a enorme tela

de projeção. E do seu lado direito, um pequeno banheiro, iluminado e pouco

freqüentado (se comparado ao de cima, escuro e com trânsitos constantes).

Foto 4: Interior do Ópera. Fonte: Fotolog Gaby Thais, 2012.

Aliás, todo o cinema é mal conservado. Com cadeiras ainda de madeira

e que nos remontam facilmente às décadas passadas. Os banheiros, quase

sem revestimento nas paredes, estão sempre imundos e fedidos, porém isso

não impede o tráfego constante neles. Os mesmos não possuem portas,

elemento esse que seria um impedimento a mais na busca por sexo.

O trânsito entre os banheiros, o mezanino e a sala do térreo é constante,

quase sempre sendo possível observas bundas nuas, paus em riste e

mamadas vorazes entre os frequentadores. No banheiro de cima, que integra o

mezanino, a porta cedeu lugar a apenas um tecido, que a cobre até a metade,

sendo que do torso para baixo as pessoas ficam visíveis a quem estiver na

pequena sala. É comum vermos mais de duas pessoas nos banheiros, quase

sempre se tocando ou masturbando-se ou transando.

Os convites e contatos para esses tipos de interação não são

homogêneos ou disseminados, tendo cada um sua forma de abordagem.

Signos comuns ainda não encontraram espaço neste ambiente, onde além do

público ser volátil e “imprevisível” eles não se conformam enquanto unidade

e/ou comunidade e/ou grupo. Entre os frequentadores assíduos do cinema é

quase sempre possível encontrar um novato, que estará ali de passagem, e

que poderá não estar interessado num intercurso sexual com alguém do

mesmo sexo.

Há pouca circulação de mulheres no local. Quando vão, nunca estão

sozinhas. A não ser que freqüentem o local a mais tempo, que já sejam parte

daquele cenário, como a interlocutora do trecho abaixo. No entanto, há

freqüência de travestis e transexuais. Elas, quase sempre, estão observando e

selecionando um possível parceiro. Ou estão a espreita de uma/um novata/o

que invadiu-lhes o território. No trecho abaixo, uma rápida configuração do

cinema é desnudada:

Na ida, observo uma mulher me olhando de ponta de olho como se me reconhecesse claramente, mas se ressentia em se pronunciar e eu não corresponder. Apresento-me a ela e apertamos as mãos, ela chame-se Flor (nome fictício). Pergunto de cara se ela frequentava há muito tempo o cinema, no que ela me responde que há pelo menos uns dez anos. Ela tinha entre trinta e quarenta anos, estatura baixa, branca e loira. Anteriormente, dentro do cinema, quando desci para a sala maior, ela havia me acariciado o braço e se oferecido para me fazer um sexo oral, no que eu muito educadamente respondi que “hoje não, quem sabe outro dia?!”. Ela respondendo: “Tá legal”. Duvidei, nesta ocasião, se ela era mulher, pois só havia ela, muitos

homens, uma travesti e um rapaz magrinho bem afeminado. Pergunto a ela se muitos casais frequentavam o cinema, ela me responde que “muitos poucos, assim como poucas mulheres”. Afirmando, em tom meio jocoso, que “dava muita bicha” e que se eu não quisesse ser “chupado” por “eles” que viesse às terças, quando ela também vem. Despeço-me e sigo para parada de ônibus (Trecho do Diário de Campo, novembro de 2011).

Existem também aqueles homens que só querem se masturbar. Sendo

estes menos sujeitos ao sexo. E que vão ao cinema por ser um local em que tal

prática é vista como corriqueira. A diferença entre este e um que quer ser

mamado só é entendida na aproximação. Pois em nada se diferenciam, seja na

performance, seja esteticamente. E será na hora da abordagem que as

respostas surgirão.

Este momento é extremamente delicado, principalmente para nós

pesquisadores, pois temos que selecionar possíveis interlocutores e podemos

ser mal interpretados no momento da abordagem. E também é mais difícil

conversar num local como esse. Com sujeitos que estão com intenções

diferentes da sua, como no caso relatado a seguir:

Ao sair do banheiro do andar superior sento bem ao lado de dois homens que estão praticando sexo oral. Eles tinham entre trinta e trinta e cinco anos, são negros e já estavam ali há mais de meia hora. Estava eu, como um voyeur, olhando atentamente para o pênis e para a boca que o revestia em movimentos ordinariamente prazerosos. O que recebia o sexo oral me olhava pensado que eu talvez quisesse participar, pois anteriormente este homem estava no canto da sala revezando seu pênis entre as bocas de dois outros rapazes. Seu pênis era grosso com uns dezesseis centímetros de comprimento e a boca do outro o cobria por vezes completamente, aliás, fazia até um som surdo devido à rapidez com que friccionava o pênis (Trecho do Diário de Campo, novembro de 2011).

Saída

O público deste lugar é composto basicamente por gays, homens que

transa com outros homens, travestis, transexuais e mulheres, em menos

proporção. Durante as nossas conversas, o Ópera era quase sempre era

mencionado como lugar propício ao contato sexual, pois a demanda erótico-

sexual é facilitada pelo clima à meia-luz do cinema, sendo referendado como

um lugar propício à transa ocasional, pois já foi mais famoso e vistoso na

paisagem da cidade, mas que agora é retratado como um lugar de decadência.

Desse modo, constatamos que existem inúmeras maneiras de se

construir e vivenciar gêneros e sexualidades dissidentes na vida off-line –

partindo das redes de amizade, das vivências nos bares e boates, banheiros,

praças, cinemas ou em qualquer lugar que possibilite a “pegação”.

Referências

CANCLINI, Néstor. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/espetáculo/ desconhecimento. In: ______. A Cultura pela Cidade. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2008. (p. 15-31)

CARNEIRO, José. O fim de todos os cinemas de rua, que pena! Disponível em: <http://www.portalorm.com.br/plantao/imprimir.asp?id_noticia=335589>.

Acesso em 05/06/2012. GONÇALVES, Telma Amaral. Homossexualidade – representações, preconceito e discriminação em Belém. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Ciências Sociais). Belém. UFPA, 1989.

HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da Antropologia Transnacional. In: Mana, v. 3, n. 1, abril de 1997. (p. 07-39)

RODRIGUES, Carmem Izabel. À beira do Rio Guamá... um bairro em movimento. In: BELTRÃO, Jane Felipe e VIEIRA JUNIOR, Antônio Otaviano (org). Conheça Belém, Co-memore o Pará. Belém. EDUFPA, 2008. (p. 93-107) SILVA FILHO, Mílton Ribeiro da. Na rua, na praça, na boate: uma etnografia da sociabilidade LGBT no circuito GLS de Belém-PA. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFPA. Belém, 2012.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro. Record, 2000.

Blogs, Fotologs e Matérias

Foto do interior do Ópera <http://www.fotolog.com.br/gabythais/25565852/>. Acesso em 05/06/2012.

Fotos do Ópera <http://vidaecurticaogay.blogspot.com.br/2011/10/fds-em-belem-do-para-calor-

e-folia.html>. Acesso em 05/06/2012.