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INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN INVENTARIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS ASPECTOS LEGAIS DO INRC RELAÇÃO COM LEGISLAÇÕES NACIONAIS E ACORDOS INTERNACIONAIS Carla Arouca Belas Belém, 31 de janeiro de 2004.

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INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN

INVENTARIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS

ASPECTOS LEGAIS DO INRC

RELAÇÃO COM LEGISLAÇÕES NACIONAIS E ACORDOS INTERNACIONAIS

Carla Arouca Belas

Belém, 31 de janeiro de 2004.

2

ÍNDICE

Página

Introdução ............................................................................................................................. 03

1 - O INRC e a sua interface com legislações na Área Ambiental .................................... 05

2 - O INRC e a sua interface com legislações na Área Cultural.......................................... 11

3 - O INRC e as questões referentes a direitos morais e patrimoniais sobre criações

individuais e coletivas e o uso da imagem das comunidades ............................................

17

Considerações Finais ................................................................................................................ 19

Bibliografia ................................................................................................................................. 22

Anexos .........................................................................................................................................

3

Introdução

O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) constitui hoje um dos

principais instrumentos para a identificação e documentação de bens culturais sob a

perspectiva da atual política de valorização do patrimônio imaterial originada pelo

decreto 3551 de 4 de agosto de 2000.

Com a proposta de documentação de celebrações, formas de expressão, ofícios,

lugares e edificações, o INRC demanda o acesso a criações de indivíduos e, sobretudo,

comunidades. Em muitos casos, essas criações resultam de conhecimentos constituídos ao

longo de gerações, a partir de observações e experimentações das possibilidades de uso do

meio ambiente local para o tratamento de doenças, a construção de abrigos e a fabricação

de artefatos e/ou utensílios. São criações tanto de utilidade prática quanto de beleza

estética, que pressupõem técnicas bastante elaboradas como as referentes ao ofício de

construção de barcos e casas.

Sabemos hoje que esse tipo de conhecimento, sobretudo o conhecimento associado

à biodiversidade, que serve de subsídio à descoberta de novos fármacos e composições

cosméticas, é muito cobiçado pelo mercado e tem sido apropriado sem que as

comunidades recebam qualquer benefício pelo seu uso comercial (Belas: 2004).

Na mesma linha, vimos assistindo no meio fonográfico, cinematográfico, indústria

e comércio, apropriações de expressões culturais como canções, danças, ritmos,

artesanatos e símbolos sem qualquer menção ou retribuição as comunidades ou

indivíduos que os criaram. Esse movimento denominado por Gonçalves (2002) de

“apologia ao sincretismo cultural”, diz respeito tanto a cópias em série de bens culturais

de comunidades e populações tradicionais, sem que lhes reconheça e gratifique os devidos

direitos autorais, como o desrespeito ao direito moral das mesmas em decidir em que

contexto, condições e formas aceitam a reprodução e o uso de seus bens, expressões ou

símbolos culturais.

Essas questões, relacionadas a direitos de propriedade intelectual e ao uso de

imagem e, ainda, outras questões relacionadas ao acesso a informação e a repartição de

benefícios com as comunidades detentoras do saber, ao uso sustentável do meio ambiente

4

envolvente e a preservação de monumentos históricos e sítios arqueológicos são parte do

cotidiano de um inventário de referências culturais.

A diversidade de situações presenciadas no cotidiano de realização do inventário

requer da equipe um conhecimento mínimo do arcabouço legal que envolve as pesquisas

com comunidades locais e populações tradicionais. Essa percepção dos aspectos legais

envoltos no trabalho de campo pode, se não evitar, ao menos minimizar uma das grandes

preocupações de gestores, de pesquisadores e, sobretudo, das comunidades: o risco de que

os inventários acabem servindo para facilitar apropriações indevidas de saberes e

expressões culturais. Nesse sentido, o presente trabalho aponta interfaces entre o INRC e

algumas legislações vigentes. O objetivo é a constituição de parâmetros legais mínimos

que sirvam de referência às atividades de campo na realização dos inventários culturais.

O texto está dividido em três tópicos, além das considerações finais e dos anexos. O

primeiro trata a questão a partir de regulamentações na área ambiental; o segundo na área

cultural e o terceiro sobre direitos morais e patrimoniais de criações coletivas e o uso da

imagem das comunidades. Em anexo encontram-se todas as legislações utilizadas.

II – O INRC e a sua interface com legislações na Área Ambiental.

O meio ambiente não é apenas o espaço de produção e reprodução dos bens

culturais, constitui, na maioria das vezes, a própria essência desses bens. É parte

indissociável do imaginário coletivo, expresso nas letras das músicas, na sonoridade dos

ritmos, na coreografia das danças e na história oral. Constitui, sobretudo, matéria-prima a

criação de utensílios, instrumentos, meios de transporte, moradias, remédios e artefatos

simbólicos.

A valorização do conhecimento das comunidades locais e populações tradicionais

no que se refere à transformação e ao uso dos recursos naturais passou a constituir uma

demanda efetiva nos fóruns ambientais a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o

Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD). Nesta Conferência, conhecida como Rio

ECO92, foi elaborada a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que no seu art. 8 (j)

conclama os países signatários a:

5

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento.

Outro tema importante da CDB expresso no art.15 se refere ao reconhecimento da

soberania dos países na gestão do acesso a seus recursos naturais e ao conhecimento

tradicional dos povos de seus territórios. O mesmo artigo propõe ainda que esse acesso

esteja sujeito ao consentimento prévio da parte provedora dos recursos, conforme o que

segue nos incisos 1 e 5:

Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional (CDB, art.15, 1); e

O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por essa Parte (CDB, art.15, 5).

A CDB é uma convenção que tem por função o estabelecimento de diretrizes

amplas, ficando a cargo dos países regulamentar seus dispositivos a partir da criação de

leis específicas e o estabelecimento de programas e metas. Dessa forma, tem servido como

parâmetro à formulação de legislações nacionais na área ambiental como: a lei n.9.985/00,

que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC); a

lei.n.9605/98 referente a crimes ambientais; e, sobretudo, as discussões sobre o acesso ao

patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais, hoje regulamentado pela Medida

Provisória n.2186-16/01. Mas, qual a relação dessas legislações com o Inventário Nacional

de Referências Culturais?

Algumas Unidades de Conservação, regulamentadas pelo SNUC como Unidades

de Uso Sustentável, abrigam populações tradicionais que, em muitos casos, pelo

distanciamento dos centros urbanos, têm preservado técnicas e conhecimentos milenares

repassados de geração em geração desde os primeiros habitantes locais. As Áreas de

Proteção Ambiental (APAS), as Reservas Extrativas (RESEX), as Florestas Nacionais

(Flonas) e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável constituem exemplos de Unidades

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de Conservação que mantém não apenas uma rica diversidade biológica, mas também

diversidade cultural. Constituindo, dessa forma, áreas potenciais para a realização dos

referidos inventários. Podemos citar ao menos dois inventários de referências culturais

realizados em áreas desse tipo: o Inventário dos Trançados do Arapiuns, realizado pelo

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular dentro da Reserva Extrativista

Tapajós-Arapiuns, em Santarém no Pará; e o Inventário Cultural da Ilha do Marajó, área

de Preservação Ambiental que possui uma reserva extrativista em Pesqueiro, município de

Soure. Este inventário, também no estado do Pará, vem sendo realizado pela 2a.SR do

IPHAN.

A realização de inventários dentro de unidades de conservação deve obedecer às

regras legais de tais unidades, sobretudo no que se refere à obtenção de autorização para

acesso e pesquisa na área e, também, ao incentivo a exploração comercial de bens culturais

como explicito nos textos legais que se seguem:

A realização de pesquisas científicas nas unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, depende de aprovação prévia e está sujeita à fiscalização do órgão responsável por sua administração (SNUC, Art.32, § 2o ); E

A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento, conforme disposto em regulamento (SNUC, Art.33)

Tendo em vista o objetivo das unidades de conservação de:

proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente (SNUC, art.4, inciso XIII)

Os responsáveis pela administração de tais reservas podem, mais que conceder

autorizações, vir a ser verdadeiros parceiros na realização do trabalho de identificação e

documentação dos bens culturais para o inventário1.

1 Para conhecer melhor os tipos de unidades de conservação e as regras de acesso a cada uma delas, ver legislação em anexo.

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No que se refere à Lei de Crimes Ambientais, Lei n. 9.605/98, os crimes contra o

ordenamento urbano e o patrimônio cultural possuem uma seção específica (seção V). O

art.62 estabelece proteção penal contra atos de destruição, inutilização ou deterioração que

atinja bens, arquivos, registros, museus, bibliotecas, pinacotecas, instalações científicas ou

similar protegido por lei. Também os arts. 63, 64 e 65 seguem a mesma linha no sentido de

evitar atos de vandalismo, alterações em bens ou construções em locais protegidos por seu

valor “paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso,

arqueológico, etnográfico ou monumental”. Contudo, as referências de interesse a

realização dos inventários culturais não se restringem à seção V, dizem respeito também

as questões relacionadas com os crimes contra a fauna e a flora (Seção I e II).

Mencionamos anteriormente que o meio ambiente local fornece boa parte da

matéria-prima a produção dos bens culturais. Assim, madeira, argila, sementes e casca de

frutos, penas, couro e dentes de animais, se transformam em barcos, artefatos de cerâmica,

bijuterias, instrumentos musicais e/ou rituais. Dessa forma, a natureza tanto influencia o

modo de vida do homem e sua dinâmica cultural quanto é influenciada pelo mesmo. A

intrínseca relação entre diversidade biológica e diversidade cultural nos mostra que a

preservação e salvaguarda de inúmeros bens culturais depende também da preservação

dos recursos naturais que lhes servem de base. O uso intensivo de um determinado

recurso natural pode por em risco a produção e reprodução futura de um determinado

bem cultural. A extração de argila em grande quantidade para a produção de artefatos de

cerâmica, por exemplo, pode levar a exaustão desse recurso num determinado local caso

não haja uma avaliação da capacidade de suporte deste local e, quando necessário, a

realização de manejo por meio da diversificação dos locais de retirada. O mesmo se aplica

a madeira para a construção de casas, embarcações e instrumentos musicais; a seringueira,

que fornece a borracha usada na fabricação de produtos diversos; e ao miriti, palmeira

muito usada no Pará para a produção dos famosos brinquedos de miriti, característicos

das festividades relativas ao Círio de Nazaré.

De outro modo, nos casos onde os recursos naturais já se encontram exauridos ou

em processo, a adaptação talvez seja a única forma de garantir a reprodução de um

determinado bem cultural. Este foi o caso da Viola de Cocho, instrumento musical tocado,

sobretudo, na região do pantanal nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em

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manifestações como o Cururu e o Siriri. De acordo com Vianna et al (s/d), o modo

tradicional de fabricação da viola empregava “tripas de ouriço-cacheiro (porco espinho)

ou de bugio (macaco de grande porte), ou da irara, ou do macaco-prego para fazer as

cordas”... e, ainda, “para colar as diversas partes, empregava-se a batata-de-sumaré

(espécie de orquídea selvagem) ou um grude feito pelo cozimento de poças de piranhas

(bexiga natatória, pequena tripa cheia de ar)”. A substituição dessa matéria-prima

tradicionalmente utilizada por cola industrial e linha de náilon foi à forma encontrada pela

comunidade para que a preservação do patrimônio cultural não comprometesse a

preservação do patrimônio ambiental. Na citação abaixo a autora argumenta que essa

diversificação da matéria-prima empregada na fabricação da Viola de Cocho não constitui

uma descaracterização desse instrumento enquanto bem cultural:

... essa diversificação não descaracteriza ou ameaça a qualidade, a singularidade, o papel e o significado que esse instrumento tem na vida dos grupos de cururueiros e para o conjunto dos cidadãos brasileiros. A forma e a sonoridade em princípio não desaparecem; tampouco o prazer da brincadeira musical e as representações culturais associadas correm risco de extinção com a adaptação do processo de fabricação a outras matérias-primas.(Vianna et al, s/d)

Esses princípios de preservação ambiental como os que foram utilizados no

Inventário da Viola de Cocho, realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura

Popular, encontram-se presentes também no art. 225 da Constituição do Brasil, na seguinte

forma:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações (CF, art.225)

O acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, como já

mencionado a partir da transcrição dos artigos 8 (j) e 15 da CDB, constitui outro tema

legislativo de interesse na realização dos inventários culturais. A Medida Provisória

n.2186-16, atualmente o principal instrumento de regulamentação dessa temática no país,

afirma em seu art. 9o que:

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À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:

I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações;

II - impedir terceiros não autorizados de:

a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento tradicional associado;

b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado;

III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.

Parágrafo único. Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.

O conceito de conhecimento tradicional que consta na MP é claramente restrito ao

patrimônio genético com potencial comercial, como definido no art.7 inciso II.

informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.

Contudo, há previsões de que essa definição de conhecimento tradicional associado

logo seja substituída por outra, constante no Anteprojeto de Lei de Acesso ao Material

Genético e seus Produtos, a Proteção aos Conhecimentos Tradicionais Associados e a

Repartição de Benefícios Derivados de seu Uso. Este anteprojeto, enviado a Casa Civil,

para apreciação e posterior encaminhamento ao Congresso Nacional, foi elaborado nas

reuniões do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN/MMA) visando à

substituição da MP por uma legislação mais definitiva sobre o tema. A elaboração desse

anteprojeto contou com uma ampla participação de representantes de órgãos

governamentais, instituições de pesquisa, membros das comunidades e demais

interessados da sociedade civil. A riqueza do debate propiciada pelo envolvimento de

todos esses atores possibilitou rever e ampliar o conceito de conhecimento tradicional

associado, definido no art.9, inciso II na forma seguinte:

Todo o conhecimento, inovação ou prática individual coletiva dos povos indígenas, comunidades locais e quilombolas associados às propriedades,

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usos e características da diversidade biológica, dentro de contextos culturais que podem ser identificados como indígenas, locais ou quilombolas, ainda que disponibilizados fora desses contextos, tais como em banco de dados, inventários culturais, publicações e no comércio.

Em comparação com a MP 2186-16, a definição que consta na APL torna muito

mais explícita a relação do conhecimento tradicional associado à biodiversidade com os

contextos sociais em que os mesmos têm sido criados e mantidos. Há de se supor que esse

evidenciamento, inclusive, citando os inventários culturais como forma de documentação

desses saberes, constitui uma via de mão dupla. Ou seja, se por um lado caracteriza uma

vitória dos setores culturais quanto à adoção de uma visão menos reducionista e restrita

do conhecimento tradicional a informações de potencial comercial para a área de

fármacos, por outro, se traduz em novas implicações e demandas aos setores da esfera

cultural que desenvolvem e utilizam instrumentos de documentação, inventários e

registros de bens culturais.

A inclusão dos inventários culturais na definição dos conhecimentos tradicionais

associados leva a supor que, tão logo vigore esta legislação, a realização de inventários que

envolvam de alguma forma acesso aos conhecimentos tradicionais associados, deverá se

submeter à concordância do CGEN, órgão atualmente responsável por conferir as

autorizações de acesso. Nesse aspecto, deve ser dada especial atenção aos inventários que

têm como base de atuação a identificação de manifestações culturais de comunidades

ribeirinhas ou povos indígenas que habitam áreas de grande biodiversidade, a exemplo dos

inventários realizados na Ilha do Marajó (PA) e no Alto Rio Negro (AM).

Sabe-se hoje que o referencial etnobotanico, ou seja, a informação que a

comunidade fornece sobre o uso local de uma determinada planta ou qualquer outro

recurso da fauna e da flora, embora não dispense a necessidade de se realizar inúmeros

procedimentos como, por exemplo, os testes toxicológicos e a avaliação da viabilidade

para a produção em larga escala, reduz substancialmente o custo da pesquisa para

obtenção de novos produtos cosméticos ou medicamentos quando comparado ao uso

exclusivo de técnicas de identificação puramente laboratorial. O interesse das empresas

nesse tipo de conhecimento está tanto relacionado com a possibilidade de reduzir os

custos da pesquisa, quanto em agregar valor aos seus produtos a partir do uso da imagem

11

das comunidades. Nesse sentido, entendemos que a realização dos inventários culturais

nessas áreas deve prever uma discussão com as comunidades sobre o potencial valor

comercial das informações que estão fornecendo e, ainda, lhes deve ser dado o direito de

opinar se desejam ou não que essa informação seja acessada por um público amplo.

II – O INRC e a sua interface com legislações na Área Cultural.

A valorização do patrimônio imaterial tem como referência, no âmbito

internacional, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003,

e também o documento “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e

Popular” de 1989. Esses documentos surgiram no âmbito da Organização das Nações

Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) como uma reação ao documento da

Convenção Relativa a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, que

restringe o conceito de patrimônio cultural a monumentos, conjuntos arquitetônicos e

sítios urbanos e naturais, conforme o art.1o. abaixo transcrito:

Para fins da presente Convenção serão considerados como <patrimônio cultural>: - os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; - os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; - os lugares notáveis: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Contrapondo esta definição presente na Convenção de 1972, a Convenção de 2003

aborda o patrimônio cultural a partir de duas vertentes: o patrimônio cultural imaterial e o

patrimônio cultural material e natural. Adotando no art.2o. §1o. a seguinte definição de

patrimônio imaterial:

Se entiende por “patrimonio cultural inmaterial” los usos, representaciones, expresiones,conocimientos y técnicas-junto con los instrumentos, objetos, artefactos y espacios culturales que les son inherentes- que las comunidades, los grupos y en algunos casos los individuos reconozcan como parte integrante de su patrimonio cultural. Este patrimonio cultural inmaterial, que se transmite de generación en

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generación, es recreado constantemente por las comunidades y grupos en función de su entorno, su interacción con la naturaleza y su historia, infundiéndoles un sentimiento de identidad y continuidad y contribuyendo así a promover el respeto de la diversidad cultural y la creatividad humana. A los efectos de la presente Convención, se tendrá en cuenta únicamente el patrimonio cultural inmaterial que sea compatible con los instrumentos internacionales de derechos humanos existentes y con los imperativos de respeto mutuo entre comunidades, grupos e individuos y de desarrollo sostenible.

No Brasil, a idéia de preservação do patrimônio imaterial remonta a década de 30,

com a elaboração do Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional por Mario de

Andrade. Esse anteprojeto propunha a criação de um órgão no Ministério da Educação,

mais especificamente o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPAN), com o objetivo

de “determinar, organizar, conservar, defender e propagar o patrimônio artístico

nacional”2. O conceito de patrimônio cultural adotado por Mario de Andrade era bastante

amplo e envolvia tanto os monumentos e bens históricos e arqueológicos quanto às

manifestações da cultura popular e indígena, como: músicas, contos, lendas, medicina,

culinária e outros. Inovador, tanto nacional quanto internacionalmente, serviu de

referência à elaboração do Decreto-Lei n.25/37, responsável por organizar a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional.

Embora tenha criado o instituto do tombamento, inclusive prevendo sanções

administrativas, civis e penais ao não cumprimento da lei, o Decreto-lei 25/37 não

enfatizou a proteção das expressões da cultura popular e indígena na mesma medida que

o texto do Anteprojeto escrito por Mario de Andrade3.

A ênfase exclusiva no patrimônio material foi mantida pelo Instituto Histórico e

Artístico Nacional (IPHAN) até a década de 70, quando, segundo Márcia Sant’Anna

(2003), a questão da proteção do patrimônio imaterial retorna por meio de iniciativas e

ações experimentais de registros do Centro Nacional de Referência Cultural e pela

Fundação Nacional Pró-Memória. Um trabalho mais efetivo e sistemático nesse sentido só

2 Andrade, M. de “Anteprojeto para a Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional”. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no.30, 2002. 3 De acordo com Falcão “...a defesa de Mário de Andrade do patrimônio imaterial não granjeava o mesmo apoio político da classe média que o patrimônio material de pedra e cal obtinha de nossa elite. Era proposta restrita a um grupo de intelectuais avançados no tempo. Demanda de ninguém politicamente poderoso. Nem dos partidos de esquerda, nem dos de direita. Nem dos democratas, nem dos ditatoriais. A preservação da lenda ou da dança indígena não tinha a mesma legitimidade social de um altar barroco resplandecendo a ouro. Era quase uma extravagância intelectual. Ter razão antes do tempo, diz o ditado, é errado” ( 2001: p.169-170)

13

foi possível a partir da Constituição de 1988, que seguindo a tendência internacional,

identifica formalmente os bens imateriais como parte do patrimônio cultural da nação,

como descrito no art.216:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados

às manifestações artísticos-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arquitetônico, paleontológico, ecológico e científico.

Nos parágrafos que seguem o caput do mesmo artigo são mencionados os meios de

salvaguarda, proteção e incentivo a preservação e manutenção desses bens culturais de

natureza material e imaterial:

§1o. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§2o. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

O uso de inventários e registros para a documentação do patrimônio cultural a que

se refere § 1o. acima citado, foi regulamentado pelo decreto 3551/00. O Decreto cria o

Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e institui o Registro de Bens Culturais de

Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro a partir da

documentação em 4 livros específicos:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e

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reproduzem práticas culturais coletivas. (Decreto 3551/00, Art.1o, § 1o ).

O art. 2o. estabelece que a instauração de um processo de registro pode ser

solicitada pelo Ministro de Estado da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da

Cultura; Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; sociedades ou

associações civis. Depende, entretanto, de avaliação do Conselho Consultivo do

Patrimônio Cultural, que decidirá em ultima instância pela inscrição do bem e a sua

titulação como Patrimônio Cultural do Brasil a partir de critérios como o de relevância

nacional exposto no trecho a seguir:

A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira (Art. 1o., § 2o ).

No caso específico dos bens culturais dos povos indígenas a Funai estabeleceu uma

regulamentação própria, a Portaria n.693/00. De acordo com Ana Valéria Araújo esta

Portaria, que cria o Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena, foi estabelecida pelo

presidente da Funai visando aos indígenas “maior autonomia para a proteção dos seus

bens e garantir a independência em relação aos diversos interesses que os contrapõem”

(2000, p.100). Em comparação com o Decreto 3551/00 a Portaria n.693/00 opta por um

caminho mais simplificado, tanto no que se refere à solicitação, quanto à instauração do

processo de registro. O cadastro pode ser requisitado por um número maior de atores,

prevendo no Art.3o não apenas solicitações coletivas, mas também individuais. Além

disso, esse mesmo artigo garante a sociedade indígena o direito de se opor ao registro:

Art.3o. Poderão solicitar a instauração do procedimento de cadastro I – as sociedades indígenas e suas comunidades; II – as organizações indígenas; III – as organizações da sociedade civil; IV – as instituições científicas; V – o Ministério Público Federal; VI – a Fundação Nacional do Índio; VII – o índio, no caso de produção individual Parágrafo Único – Em qualquer hipótese, fica ressalvado o direito da sociedade indígena interessada obstar o cadastro de um bem integrante do seu patrimônio cultural.

15

O estabelecimento de uma Comissão Deliberativa (art.7o.), ao contrário do

Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural previsto no Decreto 3551/00, não tem por

função o julgamento do que deve ou não ser registrado, mas apenas o de dirimir dúvidas

ou conflitos decorrentes de um cadastro já efetuado. Outro aspecto importante se refere à

preocupação com a gratuidade e não obrigatoriedade do registro, sendo expresso de forma

explícita no art. 2o. que o cadastro não constitui condição necessária para atestar a

existência e titularidade do bem cultural.

Não obstante a sua proposta de simplificação, na prática, contudo, o cadastro do

patrimônio cultural indígena não tem tido o mesmo desempenho que o registro dos bens

culturais de natureza imaterial. Em palestra proferida no seminário “Propriedade

Intelectual & Patrimônio Cultural: proteção das expressões culturais tradicionais” (Belém,

2004) José Carlos Levinho, diretor do Museu do Índio, afirmou que por dificuldades de

infra-estrutura institucional o Museu do Índio ainda não implementou esse instrumento

legal de forma efetiva.

Outro tipo de inventário que possui interface com a preservação do patrimônio

imaterial é o inventário com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural

previsto na Lei n.6513/77 que dispõe sobre a criação de Áreas Especiais e de Locais de

Interesse Turístico. São considerados de interesse turístico, dentre outros, “os bens de

valor histórico, artístico, arqueológico ou pré-histórico” e, ainda, “as manifestações

culturais ou etnológicas e os locais onde ocorram” (art.1o.). A responsabilidade de

implantar e manter atualizado o Inventário das Áreas Especiais de Interesse Turístico, dos

Locais de Interesse Turístico e dos bens culturais e naturais protegidos por legislação

específica, foi dada a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR). Esta entidade é

também responsável por manter entendimento com outros órgãos e entidades com a

finalidade de definirem os bens culturais e naturais protegidos que possam ter utilização

turística e os usos turísticos compatíveis com os mesmos bens. Esses órgãos e entidades

encontram-se enumerados como se segue no artigo 5o:

Art . 5º - A ação do Governo Federal, para a execução da presente Lei, desenvolver-se-á especialmente por intermédio dos seguintes órgãos e entidades: I - Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) vinculada ao Ministério da Indústria e do Comércio; Il - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Educação e Cultura;

16

III - Instituto Brasileiro Desenvolvimento Florestal (IBDF), do Ministério da Agricultura; IV - Secretaria EspeciaI do Meio Ambiente (SEMA), do Ministério do Interior; V - Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), organismo interministerial criado pelo Decreto nº 74.156, de 6 de junho de 1974; VI - Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), do Ministério da Agricultura.

A lei afirma ainda, que esses órgãos e entidades acima enumerados têm a

responsabilidade de enviar “a EMBRATUR, para fins de documentação e informação,

cópia de todos os elementos necessários à identificação dos bens culturais e naturais sob

sua proteção, que possam ter uso turístico” (art. 6o, § 2º).

Além das legislações que tratam a questão do patrimônio imaterial de forma mais

explicita é fundamental a realização do trabalho do INRC o conhecimento de legislações

voltadas à preservação do patrimônio material como: a lei n.3924/61 que dispõe sobre

monumentos arqueológicos e pré-históricos. O conhecimento desse arcabouço legal pode

ser útil a condução das atividades de campo em áreas tombadas por seu valor histórico ou

com incidência de sítios arqueológicos. Este é o caso da Ilha do Marajó, onde a equipe de

campo do inventário cultural tanto ouviu relatos quanto documentou as condições físicas

de alguns bens históricos e sítios arqueológicos.

Para Márcia Sant`Anna (2001), a idéia de patrimônio cultural traz em si tanto o

conceito de patrimônio material quanto imaterial. Segundo a autora esses dois conceitos

devem ser entendidos não como opostos, mas como complementares, “um não faz sentido

sem o outro, e um não pode ser completamente apreendido sem o outro” (p.160). O

patrimônio imaterial tem uma face material expressa em objetos concretos (artefatos,

vestimentas, locais de produção e reprodução) da mesma forma que monumentos,

edificações e sítios possuem uma face imaterial expressa em valores e representações

sociais a eles atribuídos. Sant`Anna usa o exemplo de um sítio urbano tombado, no qual

“além dos valores históricos, artísticos, arqueológicos e paisagísticos que nele se reconheça

– valores que se vinculam a determinada configuração espacial ou física – possui ainda

valores que se ligam ao uso e a prática social daquele espaço”(2001:p.160). Essa mesma

lógica também permeia o trabalho de Choany como explicito na citação abaixo:

17

A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é o passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar... O monumento assegura, acalma, tranqüiliza, conjurando o ser no tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos. (Choany, Françoise; apud Cunha, 2004, p.95-96)

A metodologia do INRC ao propor a documentação de lugares e edificações abre

espaço a superação dessa falsa dicotomia. Faces de uma mesma moeda, material e

imaterial compõem juntos o chamado Patrimônio Cultural.

IV – O INRC e as questões referentes a direitos morais e patrimoniais sobre criações das comunidades.

Nessa discussão sobre legislação não podemos deixar de lado questões referentes a

direitos morais e patrimoniais relacionados a criações coletivas e individuais e ao uso da

imagem das comunidades.

Uma das maiores preocupações geradas na implantação de inventários como

instrumento de documentação das expressões da cultura popular e tradicional é a gestão

posterior das informações reunidas. O documento da UNESCO “Recomendações sobre a

Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular de 1989” trata a questão num item

específico chamado proteção da cultura tradicional e popular. São recomendados aos

países signatários: proteger a privacidade dos portadores de tradição; adotar medidas para

salvaguardar as informações reunidas de apropriações indevidas e mal usos; manter a

monitoração do uso do material coletado; proteger o interesse dos pesquisadores cuidando

para que o material coletado seja bem acondicionado.

O documento recomenda, ainda, atenção aos direitos de propriedade intelectual,

embora reconheça as limitações desse instrumento no que se refere à proteção das

expressões da cultura tradicional e popular. Em parte, atribui-se tais limitações ao fato das

legislações de direitos autorais e de propriedade industrial terem sido formuladas com o

18

intuito de assegurar, sobretudo, direitos individuais, enquanto os bens culturais se referem

eminentemente a direitos coletivos.

Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) em conjunto com a

UNESCO têm realizado pesquisas no sentido de avaliar dentre os atuais mecanismos de

proteção da propriedade intelectual quais seriam mais adequados ou mais facilmente

adaptados à proteção dos conhecimentos tradicionais e das expressões culturais4. Tem se

discutido, por exemplo, se as indicações geográficas não poderiam constituir uma forma

eficiente de agregar valor a produtos com um modo de fazer específico e restrito a uma

determinada comunidade.

No caso dos bens culturais difusos, aos quais não se consegue claramente

identificar a autoria, a idéia mais recorrente é a da criação de mecanismos desvinculados

do atual sistema de propriedade intelectual. No âmbito das discussões da criação de tais

mecanismos, conhecidos como sui generis, surgiu a idéia do domínio público pago. No

qual, o pagamento pelo uso comercial de um saber popular amplamente difuso e

documentado serviria a um fundo para financiamento de projetos para as comunidades de

uma forma em geral.

No entanto, é importante observar que nem todos os casos se referem a criações

coletivas ou de domínio público. Existem produtos, processos ou expressões artísticas

individuais cujos autores são plenamente identificáveis. Nestes casos, dependendo da

natureza da criação, podem e devem ser utilizados como instrumentos de proteção

patentes, marcas e desenhos industriais, em se tratando de produtos e processos

inovadores como: um motor mais potente ou um desenho de barco mais arrojado, um

novo equipamento ou melhorias tecnológicas em produtos já conhecidos. Também, no que

se refere a músicas, estórias e outras formas de expressão, quando resultante de

criatividade individual, devem ter a autoria reconhecida. Esses direitos são garantidos na

lei nº.9.610/98 de Direitos Autorais, na lei n.9279/96 de propriedade industrial e no art. 5o.

incisos XVII e XXIX da Constituição Federal de 1988. No entanto, mesmo nos casos de

autorias individuais, sempre há possibilidade de novos arranjos. Essa tem sido a proposta

do Instituto Nacional para a Propriedade Intelectual Indígena (INBRAPI), que incentiva os

4 O resultado dessas pesquisas encontram-se disponíveis na página da OMPI: www.wipo.int/globalissues/tk/repor/final/index

19

autores indígenas a revertem parte dos recursos obtidos com os direitos autorais de

publicações sobre o imaginário indígena em benefício da própria etnia, enquanto

detentora do saber que subsidiou a publicação.

No que se refere à questão da imagem das comunidades tradicionais, encontramos

também no art.5o. da Constituição Federal, anteriormente citado, a garantia de

inviolabilidade em relação à imagem, assegurando o direito à indenização pelo dano

material ou moral decorrente da violação desse direito. Embora ainda não existam

mecanismos legais de caráter global voltados especificamente a proteção dos

conhecimentos e expressões da cultura popular e de povos tradicionais, entende-se hoje

que o uso do conhecimento e da imagem de comunidades demanda uma permissão

formal mesmo nos casos nos quais não haja interesse comercial. Araújo (2000) ao abordar a

questão no âmbito dos povos indígenas afirma a importância da formulação de contratos

que garantam os créditos de autoria coletiva e a proibição de reprodução total ou parcial

sem autorização dos detentores do conhecimento. No caso específico do uso da imagem,

chama a atenção para a necessidade de garantir que a utilização da imagem não seja

ilimitada ou ofensiva aos usos, costumes e tradições da comunidade em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho procurou demonstrar que a documentação, a manutenção e a

salvaguarda do patrimônio imaterial possuem implicações legais além do Decreto

3.551/00, que atualmente regulamenta a temática no país. São inúmeras as interfaces com

legislações que tratam de questões ambientais, turismo, comércio, propriedade intelectual

e outros. Constituindo, assim, um arcabouço legal importante enquanto subsídio à

realização dos trabalhos de campo dos inventários.

Quatro problemáticas nortearam a escolha das legislações pesquisadas: primeiro, a

necessidade de preservação do meio ambiente enquanto local de produção de expressões

culturais e subsídio à manutenção e continua reprodução das mesmas; segundo, a

constituição e gestão do acervo reunido na pesquisa e, ainda, o envolvimento e o

20

consentimento das comunidades no que se refere à realização, a divulgação e ao acesso aos

bens inventariados; terceiro, a interface entre patrimônio material e imaterial; e, quarto, os

direitos de autoria coletiva e individual sobre as produções culturais.

Em relação à primeira problemática as legislações pesquisadas na área ambiental (a

CDB, o SNUC e a lei de Crimes Ambientais) evidenciaram, dentre outros aspectos, a

necessidade de obtenção do consentimento prévio das comunidades para a realização de

pesquisas, a atenção as regras de acesso para pesquisa em áreas de proteção ambiental, e,

ainda, a preocupação com o uso sustentável dos recursos naturais na produção dos bens

culturais. As legislações nessa área demonstram, sobretudo, uma imbricada relação entre

biodiversidade e sóciodiversidade, sendo a cultura tanto influenciada como influência ao

meio ambiente local.

No que se refere à segunda problemática, ainda na área ambiental, a CDB e a MP

n.2186-16/01 explicitam um dilema que aparece como inerente à proposta de realização

dos inventários culturais: divulgar ou não divulgar os resultados da pesquisa. O crescente

interesse comercial nos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tem

levado pesquisadores, comunidades, instituições governamentais e não governamentais, a

discutirem a criação de um sistema legal que regulamente o acesso ao conhecimento

tradicional e assegure a repartição de benefícios com comunidades detentoras de saberes

locais. Esse esforço conjunto tem como base a concepção de que o conhecimento que essas

comunidades possuem dos recursos naturais que as envolvem é resultado de um longo

processo de pesquisa, experimentação, observação, raciocínio e intuição não apenas

transmitido como reformulado por inúmeras gerações. E, como tal, nada mais justo que as

populações detentoras de saberes tradicionais recebam benefícios pelo repasse desses

conhecimentos, principalmente quando se destina a uso comercial e lucro de terceiros.

Esse tipo de preocupação tem sido associada com maior freqüência a

conhecimentos relacionados à medicina tradicional, sobretudo pelo grande potencial de

mercado que apresentam. Mas, não se restringe a estes, como bem mostra o documento

Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (UNESCO, 1989), quando

aborda a possibilidade dos inventários servirem como fonte de consulta a facilitar cópias e,

por conseguinte, reproduções de bens culturais sem autorização ou benefício das

comunidades que os originaram. Numa pesquisa sobre conhecimentos tradicionais

21

realizada pela OMPI (1998 a 1999)5 com comunidades de vários países, a perda de

significação e, por conseguinte, o desaparecimento da própria cultural, foram apontados

pelas comunidades como possíveis conseqüências indesejáveis da exploração comercial de

suas expressões culturais.

Por outro lado, algumas comunidades vêem o inventário e a divulgação posterior

das informações nele reunidas como uma possibilidade de inserção dos seus produtos e

bens culturais no mercado. A visibilidade, neste caso, é desejada por gerar interesse e

demandas em relação aos bens culturais e, por conseguinte, novas perspectivas de

aumento da renda dos grupos produtores desses bens.

A perspectiva de inserção no mercado - a exemplo do trabalho que tem sido

realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular com o apoio aos artesãos em

inventários como os da Cuia de Santarém, do Bumba-meu-boi e outros – constitui uma

forma de inclusão social e, em muitos casos, manutenção da cultura de comunidades

historicamente alijadas dos processos de desenvolvimento social. Nesse aspecto inúmeras

instituições tanto no âmbito local quanto federal poderiam se constituir parceiras. No caso

da EMBRATUR essa parceria já se encontra respaldada na lei n.6513/77, que dispõe sobre

a criação de Inventários com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural.

Outra instituição importante é o Museu do Índio, atualmente responsável pelo cadastro e

inventário do patrimônio cultural indígena, de acordo com a Portaria n.693/00 da FUNAI,

que poderia, com o apoio do IPHAN, concentrar os esforços e as iniciativas de inventários

relacionados a povos indígenas, dada à especificidade deste tipo de inventário e a

experiência deste órgão.

As distintas expectativas quanto à inserção dos bens culturais no mercado reforçam

a idéia de que é necessário que os membros das comunidades sejam convidados a

participar de forma mais intensa nas decisões que envolvem as diferentes etapas de

realização dos inventários. É importante que as comunidades sejam vistas não

simplesmente como beneficiarias, mas, sobretudo, como parceiras na realização deste tipo

de trabalho. A participação das comunidades, grupos e indivíduos nas atividades que

5 As missões de enquêtes foram realizadas entre 1998 e 1999 e o relatório final encontra-se disponível in: www.wipo.int/globalissues/tk/repor/final/index .

22

visam a salvaguarda do patrimônio imaterial é, inclusive, objeto do art. 15 da Convenção

para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003.

O estabelecimento de parcerias com membros das comunidades ou grupos

pesquisados e, ainda, com diferentes instituições de apoio a manutenção e ao

desenvolvimento da cultura local, favorece a compreensão de uma realidade

extremamente complexa e dinâmica, que envolve tanto o imaginário per si quanto sua

expressão em edificações, produtos e processos. Dessa concepção surge a terceira

problemática do trabalho, a percepção de que o inventário engloba tanto o patrimônio

imaterial quanto o material reforçando a importância do conhecimento de algumas

legislações voltadas a proteção do patrimônio material como: a Convenção Relativa à

Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO6; a Lei n. 3924/61 que

Dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos; a Lei n. 7.347/85 que disciplina

ação civil pública de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio

ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico; além do

Decreto-Lei n.25/37, que Organiza a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional.

Quanto a quarta problemática, referente a questões de direitos de propriedade

intelectual e uso da imagem das comunidades, foi utilizado como apoio à legislação de

direitos autorais, lei nº.9.610/98, e de propriedade industrial, lei n.9279/96, além do art. 5o.

incisos XVII e XXIX da Constituição Federal de 1988. No entanto, em relação a essa

questão específica, o conhecimento da legislação não é o bastante. É importante ter alguma

noção de como esses mecanismos funcionam na prática a fim de que se possa oferecer uma

assessoria mínima tanto no que se refere à salvaguarda de criações coletivas quanto

individuais. Nesse sentido, poderia ser estabelecida uma parceria com o INPI, visando a

criação de programas para a capacitação das equipes de campo dos inventários e, ainda,

para oferecer apoio as comunidades.

Embora se tenha dado destaque a legislações da área ambiental e cultural, o

presente texto não sustenta a opinião de que essas seriam as duas únicas áreas com

mecanismos legais de implicações diretas a realização dos inventários. Também não há

qualquer pretensão de que o trabalho esgote todas as possibilidades de discussão nessas

6 Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.74 de 30.06.1977 e promulgada pelo decreto n.80.978, de 12.12.1977

23

áreas. A proposta é apenas a de iniciar a discussão, abrindo o caminho a trabalhos

similares, tanto no âmbito federal quanto no estadual, que apontem ou aprofundem novas

interfaces com mecanismos legais em outras áreas do conhecimento como: a agrária, a

educação e o comércio.

Entendemos, que evitar que os inventários facilitem apropriações indevidas, de

saberes e expressões culturais de comunidades e, ainda, possibilitar as condições para a

manutenção e reprodução desses bens culturais, implica no respeito às regras legais de

acesso a esses inúmeros saberes, ao ambiente onde os mesmos se desenvolvem e, também,

ao imaginário que os envolve. Nesse sentido, entendemos que as comunidades possuem

não apenas o direito de se beneficiarem coletivamente por seus conhecimentos e serem

compensadas pela conservação dos recursos genéticos (mediante remunerações

monetárias, bens, serviços, direitos de propriedade intelectual ou outros mecanismos)

como, o direito de negar o acesso a tal conhecimento ou romper acordos quando julgarem

ameaçada a integridade de seu patrimônio natural ou cultural.

24

BIBLIOGRAFIA

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26

ANEXOS

27

Listagem das Legislações Usadas como Referência no Trabalho 1. Legislação na Área Ambiental

Convenção da Diversidade Biológica (CDB)

Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.2 de 30.02.1994 e promulgada pelo decreto n.2.519, de 16.103.1998.

Lei n. 9.985/00 Dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, regulamentado pelo decreto n.4340 de 22.08.2002.

Lei n. 9605/98 Crimes Ambientais

Medida Provisória n.2186-16/01 Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição, os arts. 1º, 8º, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e a transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências

Constituição Federal Capitulo VI do Meio Ambiente, Art. 225 2. Legislação na Área Cultural

Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO

Aprovada no Brasil pelo decreto legislativo n.74 de 30.06.1977 e promulgada pelo decreto n.80.978, de 12.12.1977

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial

Lei n. 3924/61 Dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos Lei n. 7.347/85 Disciplina ação civil pública de responsabilidade por danos morais e

patrimoniais causados ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico.

Lei n.6513/77 Dispõe sobre a criação de Áreas Especiais e de Locais de Interesse Turístico; sobre o Inventário com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural.

Decreto 3551/00. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências.

Decreto-Lei n.25/37 Organiza a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional. Portaria n.693/00 FUNAI Cria o Cadastro do Patrimônio Cultural Indígena Constituição Federal Capítulo III referente a Educação, Cultura e Desporto. Seção II da

Cultura, Art.215 e 216 3. Outras Legislações Lei n.9279/96 (Lei de Patentes) Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial –

patentes de produtos e processos; marcas e indicações geográficas Lei nº. 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais)

Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.