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Tópicos Especiais em Ciência Política 17/09/2012 Curso: Segurança, Território, População Michel Foucault Aula de onze de janeiro de 1978 Perspectiva geral do curso : o estudo do biopoder = conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa estratégia política, numa estratégia geral de poder, a partir do final século XVIII. Indicações preliminares : 1º) análise dos mecanismos de poder, e não uma teoria geral do poder, mas como se exerce; o poder como um conjunto de mecanismos e procedimentos que tem como papel ou função e tema manter justamente o poder. 2°) essas relações, esses conjuntos de procedimentos que tem como papel estabelecer, manter ou transformar os mecanismos de poder não são autogenéticas, i.e., não são fundadas em si mesmas: “o poder não se funda em si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. (...). Os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o efeito e a causa delas (...)” (p. 4); 3º) a análise dessas relações de poder pode encetar algo como a análise global de uma sociedade, articulando-se, por exemplo, com a história das transformações econômicas; trata-se de uma “política da verdade”, e nesse sentido, essa analítica do poder tem o papel de mostrar quais são os efeitos de saber que são produzidos em nossa sociedade pelas lutas, pelos choques e pelos combates que nela se desenrolam e pelas táticas de poder que são os elementos dessa luta; 4º) não há discurso teórico ou simplesmente analítico que não esteja embasado no “imperativo” (goste disso, deteste aquilo, isto 1

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Tópicos Especiais em CiênciaPolítica 17/09/2012

Curso: Segurança, Território, População MichelFoucault

Aula de onze de janeiro de 1978

Perspectiva geral do curso: o estudo do biopoder = conjunto dosmecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suascaracterísticas biológicas fundamentais, vai poder entrar numaestratégia política, numa estratégia geral de poder, a partir dofinal século XVIII.

Indicações preliminares:

1º) análise dos mecanismos de poder, e não uma teoria geral dopoder, mas como se exerce; o poder como um conjunto de mecanismose procedimentos que tem como papel ou função e tema manterjustamente o poder.

2°) essas relações, esses conjuntos de procedimentos que tem comopapel estabelecer, manter ou transformar os mecanismos de podernão são autogenéticas, i.e., não são fundadas em si mesmas: “o podernão se funda em si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. (...).Os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essasrelações, são circularmente o efeito e a causa delas (...)” (p.4);

3º) a análise dessas relações de poder pode encetar algo como aanálise global de uma sociedade, articulando-se, por exemplo, coma história das transformações econômicas; trata-se de uma“política da verdade”, e nesse sentido, essa analítica do podertem o papel de mostrar quais são os efeitos de saber que sãoproduzidos em nossa sociedade pelas lutas, pelos choques e peloscombates que nela se desenrolam e pelas táticas de poder que sãoos elementos dessa luta;

4º) não há discurso teórico ou simplesmente analítico que nãoesteja embasado no “imperativo” (goste disso, deteste aquilo, isto

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é bom, aquilo é ruim, etc); a dimensão do que se tem a fazer sópode aparecer no interior de um campo de forças reais que nunca umsujeito falante pode criar sozinho e a partir de sua palavra: sãoindicadores táticos;

→ o que se entende por segurança?

Exemplo

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1) lei penal: “não matarás, não roubarás” e sua punição, o enforcamento, o desterro ou a multa

2) lei penal + vigilância + controle + olhar → esquadrinhamentos que permitem descobrir, antes mesmo do ladrão roubar, se ele vai roubar + correção

3) lei penal + vigilância + correção + prevenção = taxa média da criminalidade do roubo

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* Como se pode prever estatisticamente que haverá esta ou aquela quantidade de roubos num dado momento, numa dada sociedade, numa dada cidade, na cidade, no campo, em determinada camada social, etc?

* Há momentos, regiões, sistemas penais tais que essa taxa média vai aumentar ou diminuir?

As crises, a fome, as guerras, as punições rigorosas ou, ao contrário, as punições brandas vão modificar essas proporções?

* Este ou aquele tipo de crime quanto custa à sociedade, que prejuízos produz, que perdas, etc?

* A repressão a esses crimes custa quanto? É mais oneroso ter uma repressão severa e rigorosa, uma repressão fraca, uma repressão de tipo exemplar ou, ao contrário, uma repressão contínua?

* Qual é o custo comparado do roubo e da sua repressão?

* Se o culpado é encontrado, vale a pena puni-lo? Quanto custa puni-lo?

De maneira geral, a questão que se coloca será a de saber como, nofundo, manter um tipo de criminalidade dentro dos limites que sejamsocial e economicamente aceitáveis e em torno de uma taxa média ótimapara um dado funcionamento social. Trata-se, enfim, de um cálculo

político e econômico dos procedimentos de punição, controle e regulação.

1º ) Mecanismo legal/jurídico → criação da lei e estabelecimento dapunição em caso de infração. Sistema do código legal com divisão bináriaentre o permitido e o proibido = trata-se do acoplamento entre um tipo de ação proibida e um tipo de punição → funcionamento penal arcaico (desde a Idade Média até os séculos XVII-XVIII);

2º) Mecanismo disciplinar → ao lado do código binário da lei, aparece um terceiro personagem – o culpado –, ao mesmo tempo fora e alémdo ato legislativo, e toda uma série de técnicas adjacentes, policiais, médicas, psicológicas que são do domínios da vigilância e da correção,

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do diagnóstico e da eventual transformação dos indivíduos → moderno (século XVIII);

3°) Mecanismo de segurança → inserir o fenômeno em questão – o roubo – numa série de acontecimentos prováveis cujas técnicas e procedimentos serão inseridas num cálculo de custo e que, em vez de instaurar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai se fixar de um lado uma média considerada ótima e depois estabelecer os limites do “aceitável”, além dos quais a coisa não deve ir → contemporâneo.

→ não se trata, no entanto, se supor uma linha substitutiva entre oantigo, o moderno e o contemporâneo, como que uma evolução, aocontrário, tomemos, por exemplo, o que acontece atualmente na ordempenal: o conjunto das medidas legislativas, dos decretos, dosregulamentos e das circulares que permitem implementar os mecanismos desegurança é cada vez mais gigantesco; há uma verdadeira inflação legal,para fazer esse sistema de segurança funcionar. Do mesmo modo o corpusdisciplinar também é amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimentodesses mecanismos. Porque, afinal de contas, para de fato garantir essasegurança é preciso apelas, por exemplo, para toda uma série de técnicasde vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que eles são, daclassificação da sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc,todo um conjunto disciplinar que viceja sob os mecanismos de segurançapara fazê-lo funcionar → não há a era do legal, a era do disciplinar e aera da segurança; há uma série de edifícios complexos nos quais o quevai mudar são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou secomplicar, o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, maisexatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais,os disciplinares e os de segurança.

história das técnicas propriamente ditas: por exemplo, a da técnicacelular; a detenção em celas é uma técnica disciplinar da qual se podefacilmente fazer a história, seus deslocamentos, suas utilizações, etc,

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assim como se pode fazer a história da estatística dos crimes. Mas o queFoucault tenta mostrar é em que consistem essas tecnologias desegurança, estando entendido que cada uma delas consiste em boa parte nareativação e na transformação das técnicas jurídico-legais e dastécnicas disciplinares.

Exemplos:

Lepra → a exclusão dos leprosos na Idade Média se fazia essencialmentepor um conjunto jurídico (de leis e regulamentos) e religioso quetraziam uma divisão de tipo binária entre leprosos e não leprosos.

Peste negra → os regulamentos relativos à peste no final da Idade Média,no século XVI e ainda no século XVII tem uma finalidade e instrumentosbem diferentes: quadrilhar as regiões nas quais existe a pesteregulamentando quando as pessoas podem sair, como, a que horas; o quedevem fazer em casa, que tipo de alimentação ter, proibindo-lhe este ouaquele tipo de contato, obrigando-as a se apresentar a inspetores. Temosaí um sistema de tipo disciplinar.

Varíola → as práticas de inoculação desenvolvidas a partir do séculoXVIII: aqui o problema não é tanto impor uma disciplina, embora estaseja chamada em auxílio, mas o de saber quantas pessoas pegaram varíola,com que idade, com quis efeitos, qual a mortalidade, quais as lesões esequelas, que riscos se corre fazendo-se inocular, qual a probabilidadede um indivíduo vir a morrer ou pegar varíola apesar da inoculação,quais os efeitos estatísticos sobre a população em geral, em suma, todoum problema que já não é o da exclusão, como na lepra, que já não é o daquarentena, como na peste, que vai ser o problema das epidemias e dascampanhas médicas por meio das quais se tentam julgar os fenômenos,tanto os epidêmicos quanto os endêmicos → aqui também basta ver oconjunto legislativo, as obrigações disciplinares que os mecanismos desegurança modernos incluem para ver que não há uma sucessão: lei, depoisdisciplina, depois segurança. A segurança é uma certa maneira de

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acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos propriamente desegurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina (p. 14).

Trata-se da emergência de tecnologias de segurança no interior, seja demecanismos que são propriamente de controle social, como no caso dapenalidade, seja dos mecanismos que tem por função modificar em algo odestino biológico da espécie. Eis a questão central: poderíamos dizerque em nossas sociedades (ocidentais) a economia geral de poder está setornando da ordem da segurança?

Características gerais dos dispositivos das tecnologias de segurança:

1) Espaços de segurança;

2) tratamento do aleatório;

3) a forma de normalização específica dos mecanismos de segurança;

4) a correlação entre a técnica de segurança e a população, ao mesmotempo como objeto e sujeito desses mecanismos, i.e., a emergência nãoapenas da noção mas da realidade da população. São, no fundo, uma ideia euma realidade absolutamente modernas em relação ao funcionamentopolítico e também em relação ao saber e à teoria políticas anteriores aoséculo XVIII.

Espaço:a) soberania = território;b) disciplina = corpo dos indivíduos;c) segurança = população

tudo isso lidando com o problema das multiplicidades, desses diferentes tratamentos do espaço pela soberania, pela disciplina e pela segurança.

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As cidades, ainda no século XVIII e início do XIX: i) a cidade eracaracterizada por uma especificidade jurídica e administrativa que aisolava ou a marcava de maneira singular em relação a outros espaços doterritório; ii) encerrava-se dentro de um espaço murado e denso; e iii)possuía uma heterogeneidade econômica e social muito acentuada emrelação ao campo.

→ tudo isso suscitava, nos séculos XVII-XVIII, toda uma massa deproblemas ligados ao desenvolvimento dos Estados administrativos para asquais a especificidade jurídica da cidade colocava um problema dedifícil solução: o crescimento do comércio, e depois no século XVIII, dademografia urbana o problema do seu adensamento e do seu encerramento nointerior das muralhas. O desenvolvimento das técnicas militares tambémcolocava esse mesmo problema.

→ a necessidade dos intercâmbios econômicos permanentes entre as cidadese seu entorno imediato para a subsistência, seu entorno distante parasuas relações comerciais, tudo isso fazia com que o encerramento dacidade levantasse um problema: Em linhas gerais, era precisamente dessedesencravamento espacial, jurídico, administrativo, econômico da cidadeque se tratava no século XVIII = ressituar a cidade num espaço decirculação 1

O exemplo de La Mètropolitée , de Alexandre Le Maître (protestante 2, engenheiro-geral do Eleitor de Brandemburgo, dedicou sua obra ao rei da Suécia). 1 Leviatã.2 O edito de Nantes foi um documento assinado em Nantes a 13/04/1598 pelo rei HenriqueIV, também protestante, convertido ao catolicismo para subir ao trono. O edito concediaaos huguenotes a garantia de tolerância religiosa após 36 anos de perseguição emassacres por todo o país, com destaque para o Massacre da noite de SãoBartolomeu de 1572. O catolicismo permanecia a religião oficial do Estado mas garantiaaos calvinistas franceses a liberdade de culto. Oitenta e sete anos mais tarde aintolerância religiosa estaria de volta, a 23/10/1685, o rei Luís XIV revogaria o Éditode Nantes com o Édito de Fontainebleau, contrariando a vontade do Papa Inocêncio XI eda Cúria Romana. Os huguenotes voltariam a ser perseguidos e muitos deles fugiriam paraa Prússia, Estados Unidos e África do Sul.

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Problema da obra: deve haver uma capital num país e em que deve consistir essa capital?

O Estado, utilizando-se de uma metáfora arquitetônica, se compõe de trêselementos: a) camponeses, b) artesãos e c) o soberano e seus oficias. Eem relação a esses três elementos, o Estado deve ser como um edifício:sua fundação, os camponeses, que asseguram solidez ao conjunto; aspartes comuns, as partes do serviço do edifício são os artesãos; quantoás partes nobres, as partes de habitação e de recepção, são os oficiasdo soberano e o próprio soberano.

O território também tem seus três elementos: os campos são suasfundações, e neles habitam os camponeses; as pequenas cidades são aspartes comuns, nelas habitam os artesãos; e enfim na capital, a partenobre do edifício, onde devem viver o soberano e seus oficiais, bem comoaqueles indispensáveis ao funcionamento da corte e do entourage dosoberano.

Em relação ao restante do território, a capital deve ter: a) uma relaçãogeométrica - um bom país deve ter a forma circular tendo a capitalsituada no centro desse círculo; b) uma relação estética e simbólica - acapital como ornamento do território; c) uma relação política – osdecretos e as leis devem ter no território uma implantação tal quenenhum canto do reino escape dessa rede geral das leis e decretos dosoberano; d) uma relação moral - a capital deve difundir aos confins doterritório tudo o que é necessário impor às pessoas quanto à sua condutae modos de agir; e) a sede dos bons costumes; f) a sede das academias:pois as ciências e a verdade devem nascer aí para então se difundir peloresto do país; e enfim g) um papel econômico - deve ser o lugar do luxopara atrair as mercadorias do estrangeiro e ser também o ponto deredistribuição pelo comércio de número de produtos fabricados,manufaturados, etc. → encontramos aí uma definição e uma reflexão sobrea cidade em termos de soberania → a relação da soberania com oterritório é a chave para compreender o surgimento de um certo número de

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funções propriamente urbanas, funções econômicas, morais,administrativas, etc.

→ para o projeto utópico de Le Maître, a questão era a de conectar a eficácia política da soberania a uma distribuição espacial – o território → eficácia política = intensificar a circulação: das ideias, das vontades e das ordens bem como o comercio; trata-se, no fundo, de superpor o Estado de soberania, o Estado territorial e o Estado comercial → cameralismo3 → assegurar o desenvolvimento econômico máximo pelo comércio

A construção de cidades artificiais: o exemplo de Kristiania, Gotemburgoe Richelieu:

Nos fins do século XVI e início do XVII, põe-se de novo em vigor a formado acampamento romano (os exercícios, a subdivisão das tropas, oscontroles coletivos e individuais no grande projeto de disciplinarizaçãodo exército) → a partir da figura geométrica, o quadrado ou o retângulosubdivididos.

Nesse esquema simples encontramos o tratamento disciplinar dasmultiplicidades no espaço: a) a constituição de um espaço vazio efechado, no interior do qual vão ser construídas multiplicidadesartificiais organizadas de acordo com o tríplice princípio dahierarquização, da comunicação exata das relações de poder e dos efeitosfuncionais específicos dessa distribuição, por exemplo, assegurar ocomércio, a moradia, etc.

Em Le Maître, tratava-se de ‘capitalizar’ um território, neste, trata-sede arquitetar um espaço. A disciplina é da ordem do edifício.

A urbanização das cidades já existentes: o exemplo de Nantes: cidade importante, primeiro, porque em pleno desenvolvimento comercial, 3 Ler nota 25.

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segundo, suas relações com a Inglaterra fizeram que o modelo inglês fosse utilizado.

Problema → desfazer as aglomerações desordenadas, abrir espaço para asnovas funções econômicas e administrativas, regulamentar as relações como entorno rural e prever o crescimento.

O projeto de reurbanização de Vigny para Nantes: abrir eixos queatravessassem a cidade e ruas largas o bastante para assegurar quatrofunções:

i) higiene: eliminar todos os bolsões em que se acumulavam miasmasmórbidos nos bairros apertados, com suas moradias apinhadas;

ii) garantir o comércio no interior da cidade;

iii) articular a rede de ruas com estradas externas para escoamento dasmercadorias mantendo o controle aduaneiro;

iv) possibilitar a vigilância já que houve a necessidade da supressãodas muralhas para o desenvolvimento econômico; aumento da insegurançadevido ao afluxo das populações flutuantes – mendigos, vagabundos,delinquentes, criminosos, ladrões, assassinos, etc. – que podiam vir docampo.

Em suma, organizar a circulação, eliminar o perigo, separar e maximizara boa da má circulação e planejar os acessos ao exterior, essencialmenteno que concerne ao consumo da cidade e a seu comércio com o exterior.Foi organizado um eixo de circulação com Paris, realizou-se oaproveitamento do rio Erdre, de onde vinha lenha da Bretanha para acalefação.

→ como integrar a um projeto atual as possibilidades de desenvolvimentoda cidade?

O projeto de Vigny era construir cais ao longo de uma das margens doLoire, deixar um bairro se desenvolver, depois construir pontes sobre o

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Loire e a partir dessas pontes deixar o bairro se desenvolver de modo aequilibrar a urbanização dos dois lados do rio.

Não se trata, no entanto, de construir num espaço vazio, como nos casosdas cidades disciplinares de Richelieu ou Kristiania. A disciplinatrabalha num espaço vazio, artificial, que vai ser inteiramenteconstruído.

i) a segurança vai se apoiar em certo número de dados materiais, ela

vai trabalhar com a disposição do espaço, com o escoamento das águas,

com as ilhas, com o ar, etc., i.e., sobre algo dado;

ii) não se trata simplesmente de reconstruir esse dado, mas de

maximizar seus elementos positivos e minimizar os negativos, como o

roubo, as doenças, sabendo que nunca serão suprimidos;

iii) o que se procura estruturar nesse tipo de planejamento são todas

as diferentes funções da cidade, umas positivas, outras negativas.

iv) Trabalha-se com uma perspectiva futura, dinâmica, com o que pode

acontecer, i.e., levando-se em conta o processo de desenvolvimento.

O planejamento se abre para um futuro não exatamente controlado nemcontrolável, não exatamente medido nem mensurável, mas o que podeacontecer nesse movimento, ao problema da segurança que constitui todauma série indefinida de elementos que se deslocam: circulação, número Xde carroças, de passantes, de ladrões, de miasmas, etc.; toda uma sérieindefinida de elementos que se produzem: tantos barcos vão atracar,tantas carroças vão chegar, etc.; série indefinida também de unidadesque se acumulam: habitantes, imóveis, etc., e é a gestão dessas sériesabertas que só podem ser controladas por estimativas probabilísticas quecaracteriza o mecanismo de segurança.

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Soberania = ‘capitalizar’ um território; problema: sede dogoverno;Disciplina = arquitetar um espaço; problema: distribuiçãohierárquica e funcional dos elementos;Segurança = criar um ambiente em função de acontecimentospossíveis.

O espaço próprio da segurança remete a uma série de acontecimentospossíveis, remete ao temporal e ao aleatório inscrito num espaço dado,i.e., num meio, noção que, em biologia, só aparece com Lamarck. Osdispositivos de segurança trabalham, criam, organizam, planejam um meioantes mesmo da noção ter sido formada e isolada.

Meio = aquilo em que se faz a circulação; conjunto de dados naturais(rios, pântanos, morros); conjunto de dados artificiais (aglomeração deindivíduos, de casas, etc.); certo número de efeitos de massa que agemsobre todos os que aí residem; é um elemento dentro do qual se faz umencadeamento circular dos efeitos e causas, já que o que é efeito, de umlado, se torna causa, de outro. Por exemplo, quanto maior a aglomeraçãodesordenada, mais haverá miasmas, e mais se ficará doente, e quanto maisse ficar doente, mais se morrerá, quanto mais mortes, mais cadáveres e,por conseguinte, mais miasmas, etc. → é esse fenômeno de circulação dascausas e dos efeitos que é visado através do meio, e o meio como campo deintervenção em que, em vez de atingir os indivíduos como um conjunto desujeitos de direitos capazes de ação voluntária – como na soberania –;em vez de atingi-los como uma multiplicidade de corpos capazes dedesempenhos requeridos como na disciplina, vai se procurar atingirprecisamente uma população, ou seja, uma multiplicidade de indivíduosque são e que só existem profunda, essencial, biologicamente ligados àmaterialidade dentro da qual existem.

→ o que vai se procurar atingir por esse meio é o ponto em que uma sériede acontecimentos, que esses indivíduos, populações e grupos produzem,

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interfere com acontecimentos de tipo quase natural que se produzem aoredor dele.

Com esses problemas técnicos colocados pela cidade vê-se a irrupçãode algo fundamental: o problema da ‘naturalidade’ da espécie humanadentro da artificialidade política (cidade) numa dada relação de poder →o surgimento da noção de um ambiente histórico-natural como alvo de umaintervenção de poder que é totalmente diferente da noção jurídica desoberania e de território, diferente também do espaço disciplinar.

É a propósito dessa ideia de um meio artificial e natural em que oartifício age como uma natureza em relação a uma população que, emboratramada por relações sociais e políticas, também funciona como umaespécie, que encontramos nos Estudos sobre a população, de Moheau, acerca doproblema da natalidade:

depende do governo mudar a temperatura do ar e melhorar o clima; um cursodado às águas estagnadas, florestas plantadas ou queimadas, montanhasdestruídas pelo tempo ou pelo cultivo contínuo da sua superfície formam umsolo e um clima novos. Tamanho é o efeito do tempo, da habitação da terra edas vicissitudes na ordem física, que os cantões mais sadios tornam-semorbígenos.

Foucault cita outra passagem bastante ilustrativa de Moheau:

Se do clima, do regime, dos usos, do costume de certas ações resulta o princípio desconhecido que forma o caráter e os espíritos, pode-se dizer que, os soberanos, por leis sábias, por instituições sutis, pelo incômodo que trazem os impostos, pela consequente faculdade de suprimi-los, enfim por seu exemplo, regem a existência física e moral dos seus súditos. Talvezum dia seja possível tirar partido desses meios para matizar à vontade os costumes e o espírito da nação.

Encontramos aqui de novo o soberano, mas o problema do soberano nãoé mais aquele que exerce seu poder sobre um território, mas é algo quese relaciona com uma natureza, com a interferência perpétua de um meiogeográfico, climático, e físico com a espécie humana, na medida em que

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ela tem um corpo e uma alma, uma existência física e moral; e o soberanoserá aquele que deverá exercer seu poder nesse ponto de articulação emque a natureza no sentido dos elementos físicos vem interferir com anatureza no sentido da natureza da espécie humana, nesse ponto dearticulação em que o meio se torna determinante da natureza: é aí que osoberano vai intervir, e se ele quiser mudar a espécie humana, só poderáfazê-lo agindo sobre o meio → temos aí um dos eixos, um dos elementosfundamentais nessa implantação dos mecanismos de segurança = oaparecimento de um projeto, de uma técnica política que se dirige aomeio.

Aula de 18 de janeiro de 1978.

Dispositivos de segurança: textos e projetos de urbanizações reais dascidades no século XVIII como o soberano do território tinha se tornado o

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arquiteto do espaço disciplinado e regulador de um meio para,essencialmente, possibilitar a circulação de pessoas, mercadorias, dear, etc. → soberano = função estruturante do espaço e do território.

No interior de que economia geral de poder se situa esse projeto? Trata-se de marcar um território ou conquistá-lo? Trata-se de disciplinarsúditos e faze-los produzir riquezas ou trata-se de construir para umapopulação um meio de vida, de existência, de trabalho?

Relação do governo com o acontecimento: a escassez alimentar =“insuficiência atual (século XVIII) da quantidade de cereais necessáriapara fazer uma nação subsistir” → é um problema de raridade que, defato, faz os preços subirem; quanto mais os preços sobem, mais os quedetêm os estoques procuram estoca-lo e para os preços subirem maisainda, e assim até o momento em que as necessidades mais elementares dapopulação deixam de ser satisfeitas.

Para o governo francês no século XVII e XVIII era o tipo deacontecimento a evitar pois ela acarreta a revolta urbana = flagelo dolado da população; catástrofe, crise do lado do governo. O problema da escassez é pensado sob duas categorias, duas matrizesfilosóficas:

1) conceito cosmológico-político da má fortuna (greco-latino): daAntiguidade a Maquiavel, até Napoleão, a escassez alimentar aparececomo uma das formas fundamentais da má fortuna para um povo e umsoberano;

2) conceito jurídico-moral da natureza decaída do homem: castigo;devido à avidez dos homens – seu desejo de ganhar mais, seu egoísmo– vai provocar todos esses fenômenos de estocagem e retenção demercadoria que vão acentuar a escassez.

Nas técnicas de governo, de gestão política e econômica da sociedadefrancesa do século XVII e XVIII, estabeleceu-se contra ela todo umsistema de regulamentos destinado a prevenir a escassez alimentar:

a) sistema jurídico e disciplinar: limitação de preços, limitação do direito deestocagem, limitação da exportação e de extensão de cultivo;

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b) sistema de pressões: semear quantidade mínima disto ou daquilo; c) sistema de vigilância e controle: dos estoques, impedir a circulação de um

país a outro, de uma província a outra, impedir o transportemarítimo, etc.

Objetivo: que os cereais sejam vendidos ao preço mais baixo possível,que os camponeses tenham o menor lucro possível e que a gente dascidades possa se alimentar ao preço mais baixo possível, e, comoconsequência, receber o salário o mais baixo possível. Essa regulaçãopor baixo do preço de venda dos cereais, do lucro do camponês, do custode compra para as pessoas, dos salários é o princípio político domercantilismo = técnicas de governo e de gestão da economia dominante naEuropa desde o início do século XVII até o início do XVIII.

Tais proibições e impedimentos tem a finalidade de colocar nomercado todos os cereais o mais depressa possível limitando o fenômenoda escassez. As proibições à exportação, à estocagem e à elevação dospreços, por sua vez, vão impedir o que mais se teme: que os preçosdisparem nas cidades e que as pessoas se revoltem. Trata-se, portanto,de um sistema antiescassez centrado num acontecimento eventual, quepoderia acontecer e que se procura impedir que aconteça antes que ele seinscreva na realidade.

→ fracassos e contradições do sistema: 1) a manutenção dos preços baixos vão causar a ruína dos camponeses,mesmo com abundância de cereais, pois seu lucro será inferior ao custode produção;2) em consequência, os camponeses serão constrangidos a plantar pouco,logo, haverá uma produção inferior à quantidade suficiente necessáriapara a população = “de modo que, a cada instante, essa política do preçomais baixo possível expõe à escassez alimentar e, precisamente, a esseflagelo que se procura conjurar” (p. 44).

Século XVIII: como destravar esse problema?Foi do interior de uma nova concepção de economia, talvez até desse atofundador do pensamento econômico e da análise econômica que é a doutrinafisiocrata, que formulou o princípio fundamental do governo econômico =a liberdade de comércio e circulação dos cereais.

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→ resultado toda uma mudança nas técnicas de governo e um dos elementosda instauração dos dispositivos de segurança,

Em outras palavras, vocês podem ler o princípio da livre circulação doscereais seja como a consequência de um campo teórico, seja como umepisódio na mutação das tecnologias de poder e como um episódio naimplantação dessa técnica dos dispositivos de segurança (...)característico das sociedades modernas (p. 45).

Mas mesmo antes dos fisiocratas, alguns governos, desde o fim doséculo XVII, já haviam pensado ser a livre circulação de cereais não sóa melhor fonte de lucro como também um mecanismo eficaz contra o flageloda escassez: em 1689 o Parlamento inglês adotou um conjunto de leis queadmitia a liberdade de circulação e comércio dos cereais, porém, com umsustentáculo e um corretivo: a) exportações só eram permitidas em períodos de abundância; parasustentação dos preços, não só se permitia a exportação como aincentivavam; b) estabeleceu-se taxas de importação, em excesso, para evitar a quedade preços internamente → o bom preço era obtido por essas duas medidas

A questão da liberdade dos cereais foi um dos maiores problemaspolíticos e teóricos na França do século XVIII, que podem ser divididosem três fases:i) antes de 1754: vigência do velho sistema jurídico-disciplinar comsuas consequências negativas;ii) 1754: adoção de um regime moldado no inglês, com liberdade relativa,corrigida e sustentada;iii) de 1754 a 1964: chegada dos fisiocratas à cena teórica e política etoda uma série de polêmicas a favor da liberdade dos cereais e os editosde maio de 1793 e de agosto de 1764, estabelecendo a liberdade quasetotal dos cereais → vitória do laissez faire, laissez passer

em setembro do mesmo ano, as más colheitas fazem os preços subiremastronomicamente: terceira onda de discussões, mas agora, tanto osfisiocratas quanto os demais se colocam na defensiva em relação aoprincípio do laissez faire, laissez passer: Carta de um negociante sobre a natureza do

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comércio dos cereais, de Louis-Paul Abeille, importante representante dopensamento econômico da época. Trata-se de uma obra exemplar, dentretantas, de uma análise do campo teórico, procurando descobrir quais sãoos princípios diretores, as regras de formação dos conceitos, doselementos teóricos, etc.

O que interessa a Foucault na análise desse texto não é, noentanto, a arqueologia do saber, mas a genealogia das tecnologias depoder, isto é, a possibilidade da reconstituição do funcionamento dotexto em função dos objetivos e das estratégias a que ele obedece e dasprogramações de ação política que sugere.

→ para Abeille e os fisiocratas, a escassez alimentar – aquele mal que osistema jurídico-disciplinar queria conjurar – não se deve pensá-lo comoum mal em si mesmo, deve-se considerá-lo um fenômeno natural e, porconseguinte, que não é nem bom nem ruim, ele é o que é: essadesqualificação moral implica que a análise vai fazer aparecer o queFoucault denomina a história do cereal → a unidade de análise não serámais o mercado com seus efeitos de escassez-carestia, mas o cereal comtudo que lhe pode acontecer naturalmente, de certo modo, em função de ummecanismo e de leis que interferirão na qualidade do terreno: o cuidadocomo é cultivado, as condições climáticas, calor, umidade, e enfim, aabundância ou a escassez, a colocação no mercado, etc.:

É muito mais a realidade do cereal do que o medo da escassez alimentar(...). E é nessa realidade do cereal, em toda a sua história e com todos osvaivéns e acontecimentos que podem de certo modo fazer sua história oscilarou se mexer em relação a uma linha ideal, é nessa realidade que se vaitentar enxertar um dispositivo graças ao qual as oscilações de abundância edo preço baixo, da escassez e da carestia vão se ver, não impedidas deantemão, não proibidas por um sistema jurídico e disciplinar que, impedindoisto, forçando aquilo, deve evitar que elas ocorram. O que Abeille e osfisiocratas e teóricos da economia no século XVIII procuraram obter foi umdispositivo que, conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vaiatuar de tal modo que, por uma série de conexões com outros elementos darealidade, esse fenômeno, sem de certo modo nada perder de sua realidade,sem ser impedido, se encontre pouco a pouco compensado freado, finalmentelimitado e, no último grau, anulado. Em outras palavras, é um trabalho nopróprio elemento dessa realidade que é a oscilação abundância/escassez,

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carestia/preço baixo, é apoiando-se nessa realidade, e não tentando impedirpreviamente, que um dispositivo vai ser instalado, (...) um dispositivo desegurança e não mais um sistema jurídico-disciplinar (pp. 48-49).

Em que consiste esse dispositivo de segurança que se conecta àprópria realidade do fenômeno, sem valorizá-lo nem desvalorizá-lo,reconhecido simplesmente como natureza?Primeiro, não visar o menor preço possível mas autorizar/propiciar umaumento do preço do cereal, que podem ser proporcionados como no métodoinglês, com incentivos às exportações e controle das importações,taxando-as; mas também suprimindo todas as proibições de estocagem e deexportação de modo a manter os preços, coisa absolutamente paradoxal, eaté mesmo impossível, no sistema precedente.

Contexto do texto: boas safras, que permitiam esse exemplo favorável.Com o aumento dos preços mesmo em tempos de abundância, o que se tem é oaumento da extensão cultivada, já que os camponeses tiveram uma boaremuneração: depois dessa safra bem paga, aumenta-se a probabilidade dasafra seguinte ser boa, mesmo que as condições climáticas não sejam tãofavoráveis, a maior extensão das terras semeadas, o melhor cultivocompensará essa má condição havendo maiores chances (probabilidade) daescassez ser evitada. Com a ampliação do cultivo, essa primeira elevaçãodos preços não será acompanhada na safra seguinte, pois com a abundânciaos preços tendem a estabilizar-se, de modo que uma primeira elevação dospreços terá como consequência uma diminuição do risco de escassez e aestabilização dos preços ou uma redução do ritmo de aumento → aprobabilidade da escassez alimentar e da elevação dos preços serãoigualmente reduzidas.

Na lógica de funcionamento do pensamento econômico a escassez alimentarse torna “uma quimera” (ler nota 19 p. 70)

A partir do momento que as pessoas sabem que o comércio é livreelas sabem que, ao fim do sexto mês, as importações vão ocupar o lugardo trigo que falta no país, (...) vão por seu trigo no mercado e não vaihaver esses fenômenos que se observam agora, em tempos deregulamentação, esses comportamentos de pessoas que retém o trigo apartir do momento em que se anuncia uma safra ruim. Portanto, a alta de

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preços vai ocorrer, mas logo vai se estabilizar ou alcançar o teto, namedida em que todo mundo vai entregar seu trigo na perspectiva das taisimportações, quem sabe maciças, que vão se produzir a partir do sextomês. Do lado dos exportadores dos países estrangeiros, teremos o mesmofenômeno, quer dizer, se souberem que na França há uma escassezalimentar, os exportadores ingleses, alemães, etc, vão querer aproveitaras elevações de preços (ler nota 21). (...) Ou seja, o fenômeno daescassez-carestia induzido por uma safra ruim num dado momento que vaiacarretar, por toda uma série de mecanismos que são ao mesmo tempocoletivos e individuais, aquilo que o vai pouco a pouco corrigir,compensar, frear e finalmente anular. (...) A escassez alimentar

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