análise hermenêutica das decisões do ministro dias toffoli sobre interceptação telefônica -...

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1 Análise Hermenêutica das Decisões do Ministro Dias Toffoli sobre Interceptação Telefônica Resumo: A Hermenêutica Constitucional no âmbito do moderno constitucionalismo democrático é um dos instrumentos para proteção e efetivação de direito fundamentais. Nesse âmbito a Jurisdição Constitucional assume papel de preservação de garantias fundamentais e manutenção da força normativa da Constituição, premissa básica a consolidação de uma democracia constitucional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, diante do seu caráter híbrido, as decisões prolatadas enquanto Corte Constitucional exercem papel vinculante e também simbólico sobre a Administração Pública e a Sociedade. A mitificação da segurança através do Direito Penal e a sofisticação do aparato investigativo policial e do Ministério Público, o encarceramento de pessoas outrora não atingidas pela Justiça Criminal geram novas demandas interpretativas. O Habeas Corpus tornou-se o meio de maior efetividade para impedir abusos e materializar direitos. Desse modo, no STF esse remédio adquire máxima ressonância e as decisões proferidas pelos Ministros tornam-se referência para proteção aos direitos fundamentais. Nesse contexto, foram selecionados cinco Habeas Corpus que versavam principalmente sobre Interceptação Telefônica, todos sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, a fim de se discutir os métodos de interpretação utilizados, a argumentação jurídica construída, o grau de adequação da decisão e as possíveis lacunas e contradições teóricas apresentadas. Palavras-chaves: Hermenêutica, Habeas Corpus, Interceptação Telefônica.

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1

Análise Hermenêutica das Decisões do

Ministro Dias Toffoli sobre Interceptação Telefônica

Resumo:

A Hermenêutica Constitucional no âmbito do moderno constitucionalismo democrático é um

dos instrumentos para proteção e efetivação de direito fundamentais. Nesse âmbito a

Jurisdição Constitucional assume papel de preservação de garantias fundamentais e

manutenção da força normativa da Constituição, premissa básica a consolidação de uma

democracia constitucional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, diante do seu caráter

híbrido, as decisões prolatadas enquanto Corte Constitucional exercem papel vinculante e

também simbólico sobre a Administração Pública e a Sociedade. A mitificação da segurança

através do Direito Penal e a sofisticação do aparato investigativo policial e do Ministério

Público, o encarceramento de pessoas outrora não atingidas pela Justiça Criminal geram

novas demandas interpretativas. O Habeas Corpus tornou-se o meio de maior efetividade para

impedir abusos e materializar direitos. Desse modo, no STF esse remédio adquire máxima

ressonância e as decisões proferidas pelos Ministros tornam-se referência para proteção aos

direitos fundamentais. Nesse contexto, foram selecionados cinco Habeas Corpus que

versavam principalmente sobre Interceptação Telefônica, todos sob a relatoria do Ministro Dias

Toffoli, a fim de se discutir os métodos de interpretação utilizados, a argumentação jurídica

construída, o grau de adequação da decisão e as possíveis lacunas e contradições teóricas

apresentadas.

Palavras-chaves: Hermenêutica, Habeas Corpus, Interceptação Telefônica.

2

Análise Hermenêutica das decisões do

Ministro Dias Toffoli sobre Interceptação Telefônica

Vinicius Lúcio de Andrade1

1. Introdução

A Hermenêutica Constitucional tem tido papel fundamental na

consolidação das democracias constitucionais modernas: defendendo as

instituições dentro dos parâmetros do Estado de Direito, protegendo e

concretizando direito fundamentais, fornecendo soluções jurídicas

historicamente adequadas, enfatizando a supremacia normativa da

constituição, pluralizando a interpretação constitucional através da abertura

para múltiplos intérpretes, procurando compreender e construir decisões para

uma sociedade pluralista, global e dinâmica.

Todavia, o cenário principal destas discussões jurídicas tem sido os

Tribunais Constitucionais, em âmbito nacional, o Supremo Tribunal Federal tem

realizado um trabalho com forte configuração teórica pós-positivista utilizando

métodos hermenêuticos e princípios interpretativos modernos para o contexto

nacional. Dessa forma, concedeu-se ao Poder Judiciário grandiosa força

institucional através de suas decisões o que tem levado a uma “sobrecarga”

sobre o mundo do Direito, do qual se exige aos juízes constitucionais uma

produção de decisões jurídicas capazes de gerar solução de conflitos e ao

mesmo tempo serem dotadas de legitimidade sem usurpar as funções e

prerrogativas dos demais poderes da República.

Nesse contexto, as decisões do Supremo Tribunal Federal e dos

seus ministros são grandes parâmetros para estudos hermenêuticos

relevantes, pois são estas decisões que balizarão os agentes estatais quando

1 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Especialista

em Direito Fundamentais e Democracia pela Universidade Estadual da Paraíba. Investigador da Polícia Civil do Estado da Paraíba.

3

ausentes um aparato normativo necessário às diversas e múltiplas questões

surgidas no mundo da vida que necessitam de intervenção jurídica.

Neste artigo, serão analisadas as decisões sobre Interceptação

Telefônica sob a ótica do Ministro Dias Toffoli em processos sob sua relatoria,

para isto serão utilizados cinco Habeas Corpus impetrados no STF oriundos de

vários estados do Brasil, versando sobre vários aspectos das interceptações

telefônicas. Todavia, a análise se deterá aos seguintes aspectos: Qual ou quais

os métodos hermenêuticos utilizados nas decisões? A partir disso, foram

produzidas decisões adequadas? Quais as razões jurídicas e os parâmetros

interpretativos utilizados para construção da justificação jurídica nestes votos

do Ministro Dias Toffoli?

2. Novos Paradigmas da Hermenêutica Constitucional

Primeiramente é necessários construir algumas idéias de substrato

teórico a fim de embasar a análise que será feita posteriormente. É inviável

compreender as decisões do Supremo Tribunal Federal no panorama da

hermenêutica jurídica sem expor alguns conceitos e mudanças paradigmáticas

ocorridas.

A Constituição Federal de 1988 é um produto político-jurídico da

nossa sociedade democrática que precisar ser reafirmada e defendida

constantemente. A Hermenêutica Constitucional é um dos instrumentos da

ciência jurídica para mantê-la viva, atual e capaz de sustentar todo o

ordenamento jurídico de forma satisfatória, um desafio cotidiano imposto a toda

sociedade, mas principalmente aos juízes constitucionais2, pois são estes que

interpretaram e dirão o que é o direito e qual o sentido e alcance que deve ser

dado aqueles conteúdo normativo constitucional ou aos conteúdos jurídicos

infraconstitucionais tomando-se como parâmetro interpretativo as normas

constitucionais.

O modelo hermenêutico que dominou o Direito Constitucional

durante a maior parte do século XX foi o modelo kelseniano, essencialmente

2 Aqui refiro-me as todos os juízes, desde da primeira instância até os tribunais superiores, ou seja, em

um sentido amplo da expressão.

4

positivista, apesar de ser uma evolução aos modelos interpretativos

tradicionais, pois “ao afirmar uma multiplicidade de significados da ordem

jurídica, afastando-se da busca da “verdade hermenêutica”, Kelsen amplia os

horizontes da Teoria do Direito”3. Apesar dessa abertura construída a partir dos

estudos de Hans Kelsen, esta sofre limitações ao desenvolvimento devido ao

“princípio metodológico fundamental” imaginado por Kelsen como paradigma

ideal a interpretação jurídica, a partir dele concebe-se o Direito apenas como o

conhecimento das normas jurídicas, ou seja, “as proposições jurídicas nada

mais são que exteriorizações da interpretação de normas jurídicas”4. A grande

herança desse paradigma de interpretação foi à perspectiva que a norma

jurídica comporta várias significações verbais e, portanto, não há apenas uma

resposta correta para determinado problema jurídico.

No cenário histórico-jurídico do século XX, um período

extremamente conturbado e repleto de extremos5. Crise do Capitalismo,

Guerras Mundiais, Globalização econômica, Neoliberalismo, Guerra Fria.

Concomitante a isto, surgiu a Organização das Nações Unidas, a formação

embrionária da União Européia, o Estado de Bem-Estar Social, a derrota do

nazi-facismo.

Nesse contexto, houve uma “refundação jurídica”6 dos países

europeus através do Constitucionalismo depois da Segunda Guerra Mundial.

Segundo Barroso, na segunda metade do século XX, foi exatamente o

Constitucionalismo o responsável pela reaproximação entre Direito e Ética -

afastamento outrora promovido pelo normativismo jurídico - através da

multiplicidade de instrumentos oferecidos pelo Direito, então a Filosofia e a

Ética forneceram uma série de princípios e produtos humanísticos que

passaram a serem inseridos nas Constituições.7

3 COELHO, Fábio Ulhôa. In Direito, Cidadania e Justiça: Ensaios sobre Lógica, Interpretação, Teoria,

Sociologia e Filosofia Jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.58 4 COELHO, Fábio Ulhôa. In Direito, Cidadania e Justiça: Ensaios sobre Lógica, Interpretação, Teoria,

Sociologia e Filosofia Jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.53 5 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia da Letras, 1995, p.18.

6 Não essencialmente através de uma nova Constituição como aconteceu com Espanha, Portugal, Itália e

Grécia, mas na forma interpretar e enxergar a Constituição no interior do sistema jurídica e na própria concepção de nação. 7 BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Éticos e Filosóficos do Direito Constitucional Brasileiro.

Disponível em <www.luisrobertobarroso.com.br>. Acesso em 03.11.2012.

5

Segundo Paulo Bonavides, o Direito Constitucional até 1950 era um

direito sem interpretação, na qual havia uma ausência total da hermenêutica

como instrumento para enriquecimento teórico e formação de uma nova visão

acerca da Constituição.8 Desse modo, foi a consolidação da Hermenêutica

Constitucional de forma latente em um espaço jurídico e de poder bem

específico, os Tribunais Constitucionais que permitiu alguns resultados: a

criação científica de um Novo Direito Constitucional, a inauguração de dois

ramos complementares de interpretação, originais e autônomos, uma da

própria constituição, com grande amplitude, e outra mas restrita, a

interpretação dos direitos fundamentais.9

Essa criação judicial do Direito na perspectiva de Hans-Georg

Gadamer, o qual entende que compreender é aplicar, significa pensar a lei e o

caso conjuntamente, assim o sentido geral de uma norma apenas poderá ser

limitado e determinado quando cuida-se de sua concretização10. Essa visão da

interpretação nunca ensejar de um ataque ao parlamento, este sim, criador da

norma jurídica por excelência nos moldes clássicos da tripartição de poderes.

Todavia, segundo Inocêncio Mártires Coelho, a interpretação criadora é uma

atividade legítima, inclusive desenvolvida pelos magistrados “naturalmente”11

no curso do processo de aplicação da norma jurídica, e não deveria se

encarado como um procedimento marginal ou subversor da lei.12 Essa atuação

política13 do judiciário é necessária para responder a “sobrecarga” colocada

sobre o Direito, o moderno Estado constitucional através das Côrtes

Constitucionais necessita desse alargamento de concepção que supere o

dogma da rígida tripartição de poderes. Na visão de Habermas a problemática

central desta temática reside na instrumentalização da política com finalidade

8 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.595.

9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.598.

10 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, São Paulo: Vozes, 2004, p.380 e 396

11 Discutível essa perspectiva de “naturalidade” se constatarmos que o direito não é uma produção

natural, mas um fenômeno cultural gestado majoritariamente sob a órbita do Estado a fim de responder demandas sociais. 12

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.117 13

Segundo Paul Ricoeur, não existe locais apolíticos e também “não-ideológicos” nas nossas sociedades e esta concepção em si mesmo já é uma perfilhação política. (RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.)

6

de regulação do mundo político, o que sobrecarrega a estrutura do meio

jurídico, assim dissolve a vinculação entre a política e a realização de direitos.14

Cabe, entretanto, explicitar o entendimento de Mauro Cappelletti,

uma coisa é a inevitável criação judicial do Direito, contexto de controvérsias e

conflitos interpretativos, outra bem diferente é admitir os juízes como autênticos

legisladores esquecendo-se de todos os procedimentos processuais e

processos de natureza políticas consolidados há vários séculos.15 Constata-se

como é tênue esse limite entre interpretação criadora e arbítrio judicial ao

legislar através das sentenças e decisões proferidas, o primeiro consolida o

estado-democrático constitucional e o segundo subverte os princípios

democráticos e secundariza o poder do povo.

O novo papel da jurisdição constitucional é afirmar a força normativa

da constituição, a dinamicidade do Direito, através da possibilidade de oferecer

respostas jurídicas céleres para as demandas urgentes da sociedade.

Respostas estas difíceis de serem construídas em curto prazo e com a

completude necessária pelo Poder Legislativo. Essa sobrecarga submetida a

mundo do Direito terá como teatro das relações de poder as demandas

submetidas ao Tribunal Constitucional, numa visão diferenciada da tripartição

dos poderes, tornam-se legítimos construtores do equilíbrio institucional, social

e político através das decisões prolatadas.

3. Aspectos Sócio-Jurídicos da Interceptação Telefônica

O Supremo Tribunal Federal tem desempenhado importante papel

construindo decisões inovadoras e dotadas de grande legitimidade social, isto

é, porque as decisões tem encontrado grande ressonância na sociedade,

inclusive naquelas contra-majoritárias onde são atendidos os direitos das

minorias. Além disso, tem-se decidido no entendimento de que “o direito é

produto histórico, cultural, está em contínua evolução.”16

14

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade II. 2ª edição São Paulo: Editora Tempo Brasileiro, p.182 15

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p.75-78. 16

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2008, 7ª edição, p.22

7

Ora, as demandas mais sensíveis são submetidas ao STF,

principalmente as divergências no campo do Direito Penal e Processual Penal,

afinal, devido a liberdade ser um bem jurídico essencial aos demais.

Simultâneo a isto, percebe-se uma maior envergadura das investigações

criminais no contexto brasileiro, em parte estimulado pelo mito da segurança

através do Direito Penal, e em outro sentido, pela profissionalização das

Polícias somada ao aumento das atividades investigativas desenvolvidas pelo

Ministério Público.

Nesse cenário, houve uma massificação de um instrumento de

facilitação do trabalho investigativo, a Interceptação Telefônica, fato este

coerente diante da intensificação das comunicações entre as pessoas devido

às necessidades mercadológicas, potencializado pela grande oferta dos

serviços de telefonia após as privatizações na década de 1990. Desse modo, a

dinamicidade do fenômeno criminoso subjacente à sociedade utiliza-se das

facilidades tecnológicas para multiplicar dividendos e expandir seus negócios.

A Constituição delimita as possibilidades de violação das comunicações

telefônicas para fins de investigação criminal em situações específicas e sob

fundada justificativa, sempre através de autorização judicial específica.

Há na legislação infraconstitucional a Lei nº 9.296/96, esta por sua

vez regulamentou o art. 5º, inciso XII da Constituição Federal. Ou seja, até a

edição desta lei o STF entendia pela impossibilidade da interceptação

telefônica, mesmo com autorização judicial, diante da não-recepção do art.57,

II, e da Lei nº 4117/62(Código Brasileiro de Telecomunicações)17, ou seja, uso

dessa tecnologia é um cenário muito recente nos parâmetros de nossa

democracia constitucional, portanto motivo de constantes apreciações pelo

STF dos limites e possibilidades da utilização desse instrumento a fim de não

permitir violações de direito fundamentais.

Ora, a Lei 9.296/96 possui vários vazios e conceitos imprecisos,

além de seu progressivo anacronismo diante das meteóricas mudanças

tecnológicas nos serviços de telefonia. Essas diferenças profundas entre

17

A Constituição e o Supremo. Disponível em

<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/Completo.pdf>.

Acesso em 10.11.2012.

8

previsões legais estritas e o mundo da vida, entre a multiplicidade de situações

fáticas e há ausência de soluções jurídicas precisas. Assim, dentre várias

lacunas e limitações teóricas do positivismo jurídico, duas questões são

enfatizadas por Eros Grau. A primeira, não admitir a existência de lacunas e

não reconhecer nos princípios caráter de norma jurídica; a segunda, a

presença de dificuldades insuperáveis para os “conceitos indeterminados”,

normas penais em branco e as formulações jurídicas onde é necessário o uso

de valorações.18 Ainda acrescenta Luis Roberto Barroso e aponta como

subprodutos do positivismo jurídico: o fetiche da lei e o legalismo acrítico,

subprodutos estes que serviram de disfarce para autoritarismos de tipos

variados, destacando que o encerramento do debate sobre a justiça na

positivação da norma teve um caráter legitimador da ordem estabelecida:

“qualquer ordem”.19

Portanto, diante dessa insuficiência teórica do positivismo a

Hermenêutica Constitucional vivenciada e construída pelo STF após a

Constituição de 1988 procura realizar decisões de equilíbrio entre a

necessidade de proteção da intimidade e da vida privada de qualquer cidadão,

inclusive aqueles submetidos à investigação criminal a fim de materializar as

previsões constitucionais dotando-as de juridicidade e efetividade. E em outro

aspecto, possibilitar meios legítimos e limitados para otimização da persecução

penal, partindo da premissa da inexistência de direitos fundamentais absolutos.

4. Análise Hermenêutica dos Habeas Corpus acerca do tema

“Interceptação Telefônica” no STF pelo Ministro Dias Toffoli

O Habeas Corpus é um remédio constitucional de larga utilização

para que demandas e situações complexas no âmbito da constitucionalização

do Processual Penal brasileiro. Houve uma escolha metodológica de analisar

juridicamente, sob enfoque, hermenêutico especificamente, cinco Habeas

18

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2008, 7ª edição, p.31 19

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Éticos e Filosóficos do Direito Constitucional Brasileiro. Disponível em <www.luisrobertobarroso.com.br>. Acesso em 03.11.2012.

9

Corpus julgados pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que tiveram

como relator o Ministro Dias Toffoli. São os seguintes: Habeas Corpus nº

95.244/PE(2010), Habeas Corpus nº 101.584/SP(2011), Habeas Corpus nº

102.601/MS(2011), Habeas Corpus nº 103.418/PE(2011), Habeas Corpus nº

106.129/MS(2012).

A primeira constatação é o caráter cambiante do STF devido à

condição de não ser apenas uma Côrte Constitucional afeita a apenas decisões

jurídicas estratégicas, mas também um Tribunal que decide questões em grau

recursal atraindo não só uma quantidade imensa de processos, bem como

reiterando uma série de decisões já tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nos Habeas Corpus analisados a análise do Supremo não ultrapassou os

limites gerais das decisões proferidas pelo STJ.

No Habeas Corpus nº 95.244/PE de 2010, o cerne da discussão

situava-se em torno da impossibilidade de denúncia anônima por si só ensejar

a abertura de inquérito policial, bem como interceptação telefônica. O

entendimento predominante já consolidado seria da necessidade de

“diligências mínimas” para esclarecimento se as denúncias realizadas sob

anonimato eram materialmente verdadeiras. Todavia, o foco específico

encontrava-se na dificuldade de precisar quais seriam as “diligências mínimas

preliminares”. No caso específico, policiais federais receberam denúncias

anônimas acerca de várias condutas ilícitas praticadas por oficiais de justiça da

Comarca de Caruaru, no estado de Pernambuco, após isto, verificaram se

aqueles apelidos e nomes constantes nas denúncias eram realmente oficiais

de justiça. As diligências preliminares resumiram-se a essa rápida identificação

dos possíveis autores do delito, partindo-se logo depois para um pedido de

interceptação telefônica.

O voto do Ministro Dias Toffoli é um resumo da decisão do STJ

sobre a mesma situação específica, somada a algumas de Ministros do STF e

da Procuradoria Geral da República sobre o tema, inclusive citadas

literalmente, não há uma articulação entre as idéias ou comentários, apenas

posteriormente na fase de debates ficaram explícitas as premissas do voto-

relator. Ora, aponta que havia um procedimento administrativo de investigação

por improbidade no âmbito do Ministério Público e inclusive um interrogatório

10

de uma das investigadas confirmava o recebimento de vantagens indevidas

para realização de diligências; também afirma ter iniciado sua linha de

raciocínio pela Teoria dos frutos da árvore envenenada para apreciar se as

provas colhidas eram imprestáveis.

Todavia, expõe de maneira clara: “Mas o que eu apontei aqui, e por

isso não coloquei esses dados da consequência no meu voto,(...).”20 Na

verdade, as reais razões das suas escolhas jurídico-teóricas não foram

expostas em catorze páginas de relatório, somente após o debate isto ficou

claro. Uadi Lammêgo Bulos lembra que em um Estado Democrático de Direito

as decisões judiciais devem ter fundamentos normativos claros expostos

através da fundamentação jurídica do intérprete, “não basta dizer o que ele

“acha”, sem percorrer o caminho longo e acidentado que o conduzirá a

determinada conclusão”21

Outro nuance do voto proferido, cerra-se durante os debates expôs

sua argumentação partindo de problemas vivenciados quando ainda exercia

funções na Advocacia Geral da União com respeito à regulamentação dos

procedimentos administrativos de investigação no âmbito daquela instituição.

Nesse sentido fez uma abordagem interessante através de uma metodologia

próxima ao método tópico-problemático, dando ênfase ao caráter prático da

interpretação constitucional, e através de uma variedade de sentidos

percebidas pelos diversos intérpretes pôde escolher a interpretação mais

conveniente ao problema.22

Quanto ao Habeas Corpus nº 101.584/SP de 2011 não há

divergências relevantes a serem discutidas e analisadas, pois se tratava da

mera apreciação a respeito se a interceptação telefônica havia sido realmente

autorizada judicialmente. Mais um exemplo, da abrangente competência do

STF que cria graves distorções, a atração de casos de simples resolução,

inclusive já debatidos em outros órgãos judiciais colegiados.

O Habeas Corpus nº 102.601/MS de 2011 a interpretação do

Ministro-relator deu-se especificamente sobre as possibilidades e limites do art.

20

Habeas Corpus 95.244/PE , p.37 Ministro-relator Dias Toffoli 21

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, 6ª edição, p.442. 22

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2008, p.377.

11

5º da Lei 9.296/96 onde o texto legal refere-se expressamente a 15 dias,

prorrogável por mais 15 dias, comprovada a indispensabilidade do meio de

prova. No caso apreciado, havia uma complexidade de condutas delitivas

sendo investigadas associado ao grande número de pessoas, condições estas

segundo o STF23 somadas a fundamentada decisão judicial adequada

possibilitaram sucessivas prorrogações da interceptação telefônica.

A Turma decidiu unanimemente, o voto proferido pelo Ministro Dias

Toffoli apesar de conciso, foi construído de uma maneira mais rica quanto ao

aspecto argumentativo e as fontes utilizadas se comparado aos Habeas

Corpus anteriores reportou-se não apenas a jurisprudência dos tribunais

superiores, mas também as lições do penalista brasileiro Guilherme Souza

Nucci. Neste caso, seguiu postulados da metódica jurídica normativo-

estruturante que compreende o texto de um preceito jurídico positivo é apenas

a parte a priori observável de um iceberg, rompe com a idéia de identidade

entre norma e texto normativo, e considera a necessidade de compreensão do

âmbito normativo e do programa normativo a fim de construir a norma de

decisão.24

Em uma hipótese de utilização de uma metódica atrelada ao

normativismo positivista, a decisão jurídica formulada fora do estrito quadro

moldurado – decretação da interceptação por 15 dias, prorrogável por mais 15

dias, ou seja, jamais os 30 dias de forma direta e renovando este período após

as devidas e fundamentadas autorizações judiciais - pelo texto legal seria

inviável e não seria pelo motivo de afirmar a Constituição ou os direitos

fundamentais amparados nela, mas apenas pela compreensão limitada da

correspondência identitária entre norma e texto normativo. Assim, bem afirma

Eros Grau ao dizer: “o que em verdade se interpreta não são os textos

normativos; da interpretação dos textos resultam normas não se identificam. A

norma é a interpretação do texto normativo.”25

23

HC 83.515/RS – Ministro-relator Nelson Jobim (04/03/2005) 24

FRIEDRICH, Muller. Teoria Estruturante do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 103,105 e 115. 25

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p.03.

12

No Habeas Corpus nº 103.418/PE de 2011 a defesa alega que

houve subversão aos incisos I e II do art. 2º da Lei 9.296/96 quando a

interceptação telefônica foi decretada estavam ausentes dois requisitos: não

havia indícios de autoria e participação em infração penal; e as provas

poderiam ter sido obtidas através de outros meios disponíveis para que não

houvesse quebra do sigilo constitucional. O Ministro Dias Toffoli remeteu-se

estritamente as razões e fundamentos do STJ, isto é, argumentos expostos

exatamente na decisão atacada pelos defensores dos acusados.

O Ministro-relator expõe sucintamente: “Pelo que se tem na decisão

proferida pelo Superior Tribunal, não se vislumbra nenhuma ilegalidade

flagrante, abuso de poder ou teratologia que justifique a concessão da

ordem.”26 A apreciação feita pelo Relator apresenta razões apenas de cunho

retórico e utiliza três expressões jurídicas imprecisas. Esbarra-se na questão

crucial da discricionariedade do magistrado e na explicitação necessária para

construção da decisão, a exigência da racionalização e procedimentalização da

decisão, por mais que hajam elementos já pré-concebidos pelo julgador e um

certo teor de voluntarismo, um fenômeno inevitável ao decidir, todavia nos

parâmetros da hermenêutica constitucional contemporânea, a decisão judicial

deve ser embasada de forma clara veiculada através da linguagem jurídica.

Entretanto, a utilização de sinais e significados jurídicos permite o uso de

“jogos de linguagem”, expressão cunhada por Ludwig Wittgenstein, este por

sua vez queria demonstrar que sinais tinham um significado quando são

empregados, mas não só, o emprego deles ocorria em situações sempre em

situações concretas, estas possuíam uma natureza peculiar em cada caso,

evidenciada nos contexto dos vínculos de vida e das formas de vida.27 Neste

“jogo de significados jurídicos”, o Ministro Dias Toffoli procurar legitimar seu ato

jurisdicional, passaria despercebida à intenção do julgador se não fosse

utilizada as ferramentas da Hermenêutica e da Filosofia para dissecar

criticamente o conteúdo do acórdão.

Já em relação ao Habeas Corpus nº 106.129/MS de 2012, este

versa sobre a mesma controvérsia: a possibilidade de decretação da

26

HC 103.418/PE – Ministro-relator Dias Toffoli 27

BUCHHOLZ, Kai. Compreender Wittgenstein. São Paulo: Vozes, 2009, 2ª edição, p.79.

13

interceptação telefônica por 30 dias e suas sucessivas prorrogações. Remete-

se novamente o relator ao HC 83.515/RS do Ministro Nelson Jobim e constrói

seu voto idêntico ao HC 102.601/MS, já analisado neste artigo, inclusive

recorrendo as mesmas expressões jurídicas utilizados anteriormente.

Curiosamente nesse julgamento, a observação reside na incoerência

do voto apresentado pelo Ministro Marco Aurélio, este afirmando que o Habeas

Corpus deveria ser concedido, assim justificando-se: “a lei regedora da

espécie, cujos preceitos são cogentes e não dispositivos, é categórica ao

assinar o prazo de quinze dias, prorrogável – e está em bom vernáculo – por

idêntico período.” Ora, em idêntico caso, excetuando-se que neste estão

envolvidos policiais civis por isso dificultada torna-se ainda mais a colheita das

provas, o Ministro Marco Aurélio decidiu no HC 102.601/MS, pela

admissibilidade das sucessivas prorrogações e também pela concessão dos 30

dias diretamente e consecutivamente mediante ordem judicial. Uma

incongruência visível e também considera ainda ser uma “bisbilhotice” quando

da renovação da interceptação ainda não se descobriu nada de substancial. É

uma hermenêutica de viés normativista que não considera a amplitude da

problemática das investigações de organizações criminosas, onde se requer

prazos dilatados e paciência investigativa a fim de se formar um conjunto

probatório suficiente para deflagração da fase judicial do processo. A utilização

do método tópico-problemático poderia nesse caso subsidiar uma interpretação

mais adequada da Constituição sob uma perspectiva, de conceitos indefinidos

e uma textura aberta das normas constitucionais ao aplicar uma concepção

mais problemática do que sistemática.

5. Conclusão

Finalmente, retomam-se as questões levantadas no início do texto.

Foram utilizados basicamente dos métodos de interpretação: a metódica

normativo-estruturante e o método tópico-problemático. O primeiro foi utilizado

para transceder a interpretação jurídica além do texto normativo e estabelecer

uma norma de decisão ampla quanto as aspecto dos prazos para

interceptação, sendo de quinze ou de trinta, a depender das razões de âmbito

14

normativo presentes no caso específico. O segundo método tomou por

fundamento razões oriundas da problemática referentes a delimitação do que

seria o conjunto mínimo necessário de investigação a fim de superar a

denúncia anônima e utilizá-la como justificativa para quebra do sigilo das

comunicações telefônicas, devido a textura aberta da Constituição se buscou

exigir diligências preliminares, mesmo que reduzidas, para vencer total

imprestabilidade do anonimato para ensejar abertura de procedimento de

investigação e bem como medida respectiva quebra de sigilo.

É difícil perscrutar se a utilização destes dois métodos interpretativos

decorreu da habilidade hermenêutica do julgador, uma hipótese remota, ou

apenas transpareceu decorrente da interpretação jurisprudencial realizada

quando baseia-se largamente nas decisões dos Tribunais de Justiça, Tribunais

Regionais Federal e Superior Tribunal de Justiça. Ou seja, conclui-se no

sentido da preponderância da interpretação jurisprudencial acima de qualquer

raciocínio ou articulação argumentativa jurídica densa por parte do Ministro

Dias Toffoli.

Ademais, as respostas judiciais, inclusive com a denegação de todos

os Habeas Corpus, foram adequadas na medida em que possibilitaram

proteger direito fundamentais, privacidade principalmente, sem torná-los

absolutos, impondo restrições quando os órgãos criminais possuam indícios

suficientes para requerer tais medidas judicialmente. Essa relativização de

direitos fundamentais é saudável dado o caráter rígido da nossa Constituição e

a necessidade de soluções judiciais rápidas as demandas sociais. O equilíbrio

entre proteção de direito fundamentais, liberdades individuais e segurança

coletiva são percebidos no posicionamento Ministro Dias Toffoli, este último de

forma apenas implícita nos seus votos.

Todavia, a grande lacuna verificada ao longo das decisões dos

Habeas Corpus, trata-se da pobreza argumentativa, insuficiente uso da

linguagem constitucional e a ausência de utilização de conceitos processuais

penais mínimos. Esta última razão deve ser pormenorizada devido a formação

e a trajetória do Ministro-relator não haver atuado nesse campo. Quanto as

outras duas lacunas estas devem ser enfatizadas. O valor da argumentação

para o Direito e para Hermenêutica Constitucional é deveras importante, pois

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está intrinsecamente ligada a legitimidade das decisões judiciais, se os

argumentos postos são reduzidos e insuficientes, a capacidade de legitimação

dessa decisão estará comprometida. A argumentação deve transcender a

lógica e a retórica, o conteúdo dos argumentos deve ser cuidadosamente

escolhido, pois são estes que transparecem como foi construído o processo de

tomadas das decisões. A segunda lacuna diz respeito a utilização insuficiente

da linguagem constitucional, dos princípios constitucionais, das normas

constitucionais, não há um reverenciamento, ora em parte se deve ao caráter

dúbio do STF, nestes casos como outrora já dito, atuou muito mais como

Tribunal Superior e com característica de instância recursal máxima. A

repetição de demandas idênticas desgasta os juízes constitucionais e suas

equipes, e os obriga a produzir em grande escala inúmeras decisões o que

afeta sensivelmente a qualidade e robustez delas.

Por fim, atente-se para a atualidade das decisões do Ministro Dias

Toffoli, pois não destoou da jurisprudência do Tribunal neste assunto. As

decisões foram previsíveis, produziu-se segurança jurídica, pobres quanto ao

aspecto argumentativo, o que afeta o processo de legitimação delas, pouco

inovadoras, pois foram basicamente decisões baseadas em interpretação

jurisprudencial. Portanto, a reflexão jurídica mais relevante a ser destacada

através deste artigo é a necessidade de decisões judiciais hermeneuticamente

densas, atualizadas, claras, historicamente adequadas, e são os juízes

constitucionais de maneira ampla os responsáveis mais diretos pela

materialização constitucional a partir de decisões judiciais adequadas e de

qualidade.

6. Referências Bibliográficas

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