a praça: do casal de paio de novais à praça da liberdade

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Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 1 A PRAÇA: DO CASAL DE PAIO DE NOVAIS À PRAÇA DA LIBERDADE Texto de Manuel de Sousa 8 nov 2014 A cidade do Porto tem várias praças, mas há uma que se destaca das demais ao ponto de, muitas vezes, ter sido designada simplesmente como “A Praça”. Referimo-nos à praça da Liberdade, o coração da Baixa. Escrevendo em 1914, Firmino Pereira destacava um certo ascendente que o Porto corporizado na Praça tinha sobre a capital. «O Rossio tinha engulhos quando lhe constava que a Praça Nova se impunha. E do rei D. Luís se conta que, em certa ocasião agitada, chamara o Fontes [Pereira de Melo] e lhe dissera, entre aterrado e medroso: O Porto não está contente, o Porto mexe-se. O melhor é o ministério cair para evitar qualquer bernarda». E Aquilino: «Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras». Mas, que fatores contribuíram para que este local se tornasse o centro da cidade? Na verdade, no tempo da cidade dos bispos, foi em torno da Sé que se estabeleceram os órgãos essenciais à vida do burgo, protegidos pela cerca de muralha primitiva. O desenvolvimento do comércio fluvial e marítimo fez deslocar o centro para a beira-rio. O pulsar da cidade passou a sentir-se na praça da Ribeira, estendendo-se até à rua Nova dos Ingleses (hoje, rua do Infante D. Henrique) e ao largo de São Domingos, onde, nas arcadas do mosteiro dominicano, se reunia frequentemente a Câmara. imagem 01

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Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 1

A PRAÇA: DO CASAL DE PAIO DE NOVAIS

À PRAÇA DA LIBERDADE

Texto de Manuel de Sousa

8 nov 2014

A cidade do Porto tem várias praças, mas há uma que se destaca das

demais ao ponto de, muitas vezes, ter sido designada simplesmente como

“A Praça”. Referimo-nos à praça da Liberdade, o coração da Baixa.

Escrevendo em 1914, Firmino Pereira destacava um certo ascendente que o Porto –

corporizado na Praça – tinha sobre a capital. «O Rossio tinha engulhos quando lhe constava

que a Praça Nova se impunha. E do rei D. Luís se conta que, em certa ocasião agitada, chamara

o Fontes [Pereira de Melo] e lhe dissera, entre aterrado e medroso: – O Porto não está

contente, o Porto mexe-se. O melhor é o ministério cair para evitar qualquer bernarda». E

Aquilino: «Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de

Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou

as letras».

Mas, que fatores contribuíram para que este local se tornasse o centro da cidade?

Na verdade, no tempo da cidade dos bispos, foi em torno da Sé que se estabeleceram os

órgãos essenciais à vida do burgo, protegidos pela cerca de muralha primitiva. O

desenvolvimento do comércio fluvial e marítimo fez deslocar o centro para a beira-rio. O

pulsar da cidade passou a sentir-se na praça da Ribeira, estendendo-se até à rua Nova dos

Ingleses (hoje, rua do Infante D. Henrique) e ao largo de São Domingos, onde, nas arcadas do

mosteiro dominicano, se reunia frequentemente a Câmara.

imagem 01

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 2

No entanto, duas intervenções do rei D. Manuel I acabaram por ajudar a fazer “subir” a Baixa.

A construção do mosteiro de São Bento de Avé-Maria (onde hoje está a estação ferroviária de

São Bento), em 1518 [imagem 01], e a abertura da rua de Santa Catarina das Flores (hoje,

apenas rua das Flores), em 1521. O novo arruamento passou a ligar o movimentado largo de

São Domingos ao novo mosteiro feminino de São Bento. O mosteiro ficava no limite norte da

muralha fernandina, mesmo ao lado da porta de Carros, de onde partia a estrada de

Guimarães (a que hoje corresponde a rua do Bonjardim).

Na zona extramuros, havia uma grande propriedade agrícola chamada casal de Paio de Novais,

da qual fazia parte uma área de cultivo a poente da porta de Carros, vulgarmente chamada

campo das Hortas. Entretanto, nas proximidades, fixam-se mais dois mosteiros: o dos cónegos

de santo Elói, intramuros (com frente para o atual largo dos Loios); e o da congregação de São

Filipe de Néri, os conhecidos congregados, cuja igreja persiste até aos nossos dias [imagem

02].

Em 1721, o campo assume a designação de praça Nova das Hortas ou, mais comummente,

apenas praça Nova. Por essa altura, a sul da praça corria ainda a muralha fernandina; a

nascente ficavam os dormitórios dos Congregados; a poente, uma série de pequenos prédios;

a norte, dois edifícios de boa traça – os palacetes de Morais Alão Amorim e de Monteiro

Moreira.

imagem 02

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 3

Entretanto, a cidade assiste a um grande desenvolvimento económico, a par de um fulgurante

crescimento demográfico. Como forma de enquadrar a expansão urbana do burgo, sob a égide

do marquês de Pombal, é criada em 1758 a Junta de Obras Públicas do Porto, liderada por João

de Almada e Melo. De entre as numerosas melhorias urbanas impulsionadas por João de

Almada, incluem-se a abertura das ruas dos Clérigos e de Santo António (hoje de 31 de

Janeiro) [imagem 03], ligando as igrejas dos Clérigos e de Santo Ildefonso, através da praça

Nova.

Muito importante para o desenvolvimento da Praça foi a iniciativa dos padres loios de, em

1794, procederem à demolição de um lanço das muralhas, iniciando a construção do seu novo

convento com frente para a Praça [imagem 04]. As obras foram-se arrastando e já não

chegaram a ser concluídas pelos Loios.

Entretanto, dão-se os episódios das invasões francesas, da transferência da família real para o

Brasil e da administração inglesa do território metropolitano. Em 1819, os serviços da Câmara

instalam-se no palacete Monteiro Moreira, na frente norte da Praça, coroando o edifício com a

célebre estátua de um guerreiro, intitulada “O Porto” [imagem 05]. A praça Nova consagra-se

como local da centralidade simbólica, institucional e administrativa do Porto.

imagem 03

imagem 04

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Foi da varanda deste edifício que, a 24 de agosto de 1820, foi proclamada a Junta Provisória do

Governo Supremo do Reino, com o objetivo de convocar Cortes para elaborar uma

Constituição. A praça Nova passou, oficialmente, a praça da Constituição, designaç o ue

manteve até 1823, quando os ventos da história começaram a soprar em sentido contrário e o

terror miguelista se fez sentir de forma implacável. Foi na Praça que, a 7 de maio e a 9 de

outubro de 1829, subiram ao patíbulo os, mais tarde chamados, Mártires da Liberdade, por

terem tomado parte na revolta contra D. Miguel. Por sentença judicial, depois de enforcados

foram-lhes cortadas as cabeças que ficaram em exposição pública. Quando o desenrolar dos

acontecimentos voltou a favorecer os liberais, em 1832, a Câmara decidiu substituir o antigo

nome da praça pelo de D. Pedro.

Com o triunfo definitivo dos liberais, em 1834 as ordens religiosas são extintas em Portugal. Os

conventos dos Loios e dos congregados são confiscados pelo Estado e vendidos em hasta

pública.

Do antigo convento dos padres congregados é conservada a igreja, mas os antigos dormitórios

são divididos por diversos proprietários que vão rentabilizando da melhor forma os seus lotes

[imagem 06]. Neste espaço, que representa a frente nascente da Praça, abriram as suas portas

diversos estabelecimentos comerciais que marcaram a vida da cidade. Na esquina com os

Congregados, existiu o famoso café Guichard, muito frequentado pelos literatos da época, a

que sucedeu, um pouco mais ao lado, o Camanho [imagem 07]. No mesmo lado da praça,

existiam as duas relojoarias de maior prestígio na cidade: Geremy Girod e Germano Courrège.

Na esquina da praça com Sampaio Bruno (inicialmente chamada rua de Sá da Bandeira), em

1864 existiu o café Portuense, vizinho da farmácia Birra. Mais tarde, o Portuense seria

substituído pelo café Suíço. Ao lado da farmácia Birra, o café Central que cedeu lugar ao

imagem 05

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 5

Imperial, espaço atualmente ocupado por um restaurante de uma cadeia internacional de

comida rápida.

Na parte sul da praça, o edifício inacabado do convento dos Loios foi arrematado por Manuel

Cardoso com o compromisso de o terminar, respeitando o projeto inicial. O facto de a obra ter

sido finalizada pela sua viúva e filhas terá determinado que o passeio em frente tenha ficado

conhecido como passeio das Cardosas e o prédio como edifício das Cardosas [imagem 08].

imagem 06

imagem 07

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Neste grandioso prédio fixaram-se

numerosos estabelecimentos

comerciais. No gaveto com a praça de

Almeida Garrett estabeleceu-se o café

Astória [imagem 09]. Um pouco mais

ao lado, esteve instalada a

dependência no Porto do Banco

Angola e Metrópole, do célebre Alves

dos Reis, em cujo cofre, em 1925, os

inspetores detetam duas notas de

banco de 500 escudos com o mesmo

número de série, pondo a descoberto a

maior falsificação de sempre em

Portugal. Muito próximo esteve a

conhecida loja de artigos de caça Casa

Laporte que, a toda a largura do

estabelecimento, ostentava como

tabuleta uma enorme réplica de uma

espingarda. O espaço ocupado pela

filial do Banco Comercial do Porto, em 1933, daria lugar à conhecida farmácia Vitália. Já no

gaveto com o largo dos Loios, em meados do século XIX, funcionou a livraria Moré,

considerada a melhor do Porto e frequentada por nomes como Camilo Castelo Branco, Eça de

Queirós, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão.

imagem 08

imagem 09

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 7

Após profundas obras de remodelação de todo o edifício, em 2011 aqui abriu um hotel de luxo

de uma cadeia internacional, recuperando-se a designação Astória num novo café-restaurante

pertencente ao hotel.

Ao contrário das outras frentes da praça, do ponto de vista arquitetónico, o lado poente

sempre foi o mais heterogéneo. No século XIX, este era o local predileto das cervejarias, dos

restaurantes e das casas de pasto. Aqui esteve também a Flora Portuense – estabelecimento

de Aurélio da Paz dos Reis, entusiasta da fotografia e pioneiro do cinema em Portugal – e a

farmácia Albano – a mais antiga da Praça e fornecedora da Casa Real [imagem 10].

Sensivelmente a meio da frente poente da praça havia uma estreita travessa que ligava a Praça

imagem 10

imagem 11

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 8

à rua do Almada, chamada viela da Polé [imagem 11]. Em 1917, a construção do edifício do

Banco de Portugal ditou a definitiva eliminação desta antiga travessa. Todos os lotes para

norte da viela da Polé encontravam-se mais recuados em relação aos restantes, formando um

pequeno largo dentro da Praça. Foi aqui que existiu uma fonte com o respetivo tanque,

mandada fazer por Francisco de Almada, onde os cavalos dos trens de aluguer que operavam

na praça iam beber.

imagem 12

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O topo norte da praça era ocupado pelos palacetes de Morais Alão Amorim e de Monteiro

Moreira, onde funcionava a sede da edilidade [imagem 12].

Desde o episódio do Cerco do Porto (1832-33) que a vereação acalentava a ideia de vir a

construir um momento que homenageasse o Rei-Soldado. Para tal, obteve autorização para

que as peças de artilharia inimigas fossem fundidas para que o metal pudesse ser usado no

novo monumento. Feito o concurso público em 1862, o vencedor foi o escultor belga Anatole

Calmels. Aquando da inauguração, a estátua equestre de D. Pedro IV estava protegida por um

gradeamento de ferro e chegou a estar guardada por uma sentinela que ali tinha a respetiva

guarida [imagem 13].

Imitando a solução encontrada para revestir o largo do Rossio, em Lisboa, a Câmara do Porto

decidiu também calcetar a praça de D. Pedro recorrendo a pequenas pedras de calcário e

basalto, justapostas em faixas de cor alternadas, a conhecida “calçada portuguesa”. A

empreitada foi adjudicada a artistas vindos de Lisboa e executada em 1882 [imagem 14].

Na segunda metade do século XIX, a praça tornou-se o ponto de encontro de políticos,

jornalistas, burgueses e “brasileiros de torna-viagem”. Circulavam pelos cafés, pelas redações

dos jornais, pela livraria Moré e muitos, como os autointitulados membros do “Real Clube dos

Encostados”, entretinham-se em longas conversas e a admirar quem passava à porta dos

estabelecimentos do passeio das Cardosas, a que popularmente se chamava também o

“pasmatório dos Loios”.

A abertura do tabuleiro superior da ponte Luís I, em 1886, e a chegada do comboio à estação

de São Bento (ainda em construção) em 1896 [imagem 15], vieram reforçar a afirmação da

Praça e a sua influência sobre a envolvente regional.

imagem 14

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 10

A Praça era também o local de conspiração. Foi nos cafés da Praça que se preparou a revolta

republicana de 31 de janeiro de 1891. A república foi proclamada da varanda da Câmara

[imagem 16], sendo arvorada uma bandeira verde-rubra para, poucas horas depois, a guarda

municipal sufocar o sonho a tiro de carabina e de canhão. A república acabaria por vingar, mas

quase duas décadas mais tarde e a trezentos quilómetros de distância, sendo os portuenses

informados da ocorrência por telégrafo [imagem 17].

Em outubro de 1910, o nome da praça é mudado para praça da República e, duas semanas

depois, para praça da Liberdade, designação que mantém até hoje.

imagem 15

imagem 16

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 11

No final do século XIX começa a generalizar-se a ideia de que o centro cívico existente era

demasiado exíguo, falando-se na abertura de uma grande avenida central. Após várias

propostas, acaba por ser aprovado um projeto do arquiteto inglês Barry Parker que previa a

demolição dos paços do Concelho existentes, rasgando-se um ampla avenida, no topo da qual

seria erguida os novos paços do Concelho.

A 1 de fevereiro de 1916,

com a presença do

presidente Bernardino

Machado, dava-se início à

demolição do antigo

edifício da Câmara

Municipal [imagem 18],

inaugurando-se a

construção da avenida,

primeiro chamada “da

Cidade” ou “Central”,

depois da Primeira Guerra

Mundial, “das Nações

Aliadas”, e, mais tarde,

apenas “dos Aliados”.

A monumentalidade da

nova avenida obrigou

também à reformulação

da frente urbana da praça da Liberdade. Com a exceção do edifício das Cardosas e do da Casa

Navarro, todos os restantes foram reconstruídos ou, pelo menos, viram as suas fachadas

imagem 17

imagem 18

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade 12

serem profundamente alteradas. No entanto, no contexto alargado dos Aliados, a Praça

acabou por perder a sua singularidade inicial [imagem 19].

Manuel de Sousa nasceu em Miragaia em 1965. Licenciado em Ciências Históricas, desenvolveu uma atividade profissional ligada à área empresarial, nomeadamente à Comunicação e ao Marketing, sem nunca ter abandonado o seu interesse pela história da cidade do Porto. Procurando aliar a divulgação da história local com as redes sociais, no início de 2012 criou a página “Porto Desaparecido” no Facebook, cujo sucesso lhe valeu a atribuição da Medalha Municipal de Mérito pela Câmara Municipal do Porto.

Artigo publicado no jornal Porto24 de 4 de novembro de 2014:

http://www.porto24.pt/memoria/praca-casal-de-paio-de-novais-praca-da-liberdade/

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