1631), leitor de horácio. um poeta bilingue na corte de d
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
Jorge Fernandes (1534?-1631), leitor de Horácio.
Um poeta bilingue na corte de D. Catarina
Ana Margarida Oliveira Silva
Tese orientada pela Professora Doutora Ana María Sánchez Tarrío,
especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Clássicos
2021
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
Jorge Fernandes (1534?-1631), leitor de Horácio.
Um poeta bilingue na corte de D. Catarina
Ana Margarida Oliveira Silva
Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Clássicos
Orientadora: Professora Doutora Ana María Sánchez Tarrío
Júri:
Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora
Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Arguente: Doutora Isabel Adelaide Penha Dinis de Lima e Almeida, Professora
Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
2021
1
ÍNDICE
Resumo ............................................................................................................................ 2
Abstract ........................................................................................................................... 3
Agradecimentos .............................................................................................................. 4
Introdução ....................................................................................................................... 6
I. Vida e Obra de Jorge Fernandes ........................................................................... 9
1. Jorge Fernandes: para uma biografia ................................................................... 10
2. D. Catarina: mecenas de artistas e poetas ............................................................ 22
3. Jorge Fernandes e os studia humanitatis: a sua educação ................................... 35
4. Poetas bilingues ................................................................................................... 44
II. Jorge Fernandes, leitor de Horácio .................................................................. 51
A obra conservada de Jorge Fernandes e a sua transmissão ....................................... 52
1. Jorge Fernandes e a receção de Horácio .............................................................. 55
2. Da leitura à tradução ............................................................................................ 65
3. O otium horaciano e a fuga à vida de corte ......................................................... 73
Conclusão ...................................................................................................................... 87
Bibliografia .................................................................................................................... 91
Anexos .......................................................................................................................... 108
Anexo 1: Alvará da rainha D. Catarina relativo à pensão de Jorge Fernandes, datado
de 11 de maio de 1552 .............................................................................................. 108
Anexo 2:
Índice de poemas de Jorge Fernandes conhecidos .................................................... 111
Índice de obras impressas de Jorge Fernandes ......................................................... 115
Anexo 3: Composição nº135 do Cancioneiro Juromenha ....................................... 116
Anexo 4: Composição nº136 do Cancioneiro Juromenha ....................................... 122
2
RESUMO
Esta dissertação tem como principal objetivo dar a conhecer um poeta áulico ao
serviço de D. Catarina de Áustria – Jorge Fernandes –, até agora praticamente
desconhecido na bibliografia específica, dilatando, assim, o corpus da poesia
renascentista portuguesa e castelhana do século XVI e XVII.
A primeira parte da investigação centra-se no estabelecimento de uma biografia e
do contexto historiográfico do autor. Esta análise permite não só completar o
conhecimento da dimensão mecenática da rainha junto de poetas e artistas, além da sua
já reconhecida atenção pelo colecionismo, mas também examinar e sistematizar a
formação a que terá tido acesso este frade na Universidade de Coimbra, após as reformas
feitas por D. João III. Seguidamente, a colação das obras do autor e o estabelecimento de
um corpus proporciona a indagação sobre o bilinguismo luso-castelhano num tempo de
profícuo intercâmbio cultural, principalmente durante a monarquia dual.
O núcleo da segunda parte consiste no estudo dos modos de leitura e assimilação
do poeta latino Horácio na poesia de Jorge Fernandes, já que este foi tradutor e emulador
do autor latino. A análise revela a riqueza da cultura clássica e contemporânea de
Fernandes, assim como demonstra a sua integração no conjunto da literatura quinhentista
peninsular.
Palavras-chave: Jorge Fernandes, Frei Paulo da Cruz, Renascimento Português,
D. Catarina de Áustria, Horácio
3
ABSTRACT
The main purpose of this dissertation is to poster an aulic poet that was at the
service of Catarina de Áustria – Jorge Fernandes – virtually unknown in the specific
bibliography, expanding, therefore, the corpus of Portuguese and Castilian renaissance
poetry of the sixteenth and seventeenth centuries.
The first part of this investigation focuses on the establishment of the author’s
biography and historiographic context. This analysis allows not only to complete an
understanding of the dimension of the queen’s patronage amongst poets and artists
(besides her well-known attention to collecting), but to also examine and codify the
academic education that this priest from the University of Coimbra might have had access
to, after the reforms created by D. João III. Then, the collation of the author’s works and
the establishment of a corpus enables a quest on Portuguese-Castilian bilingualism, in a
time of fruitful cultural exchange, especially throughout the dual monarchy.
The core of the second part consists of a study regarding the ways of reading and
absorption of the latin poet Horace in the poetry of Jorge Fernandes, seen as though he
was the translator and emulator of the latin author. The analysis reveals the richness of
the classic and contemporary culture of Fernandes, and demonstrates his integration in
the entity of the sixteenth century’s peninsular literature.
Key Words: Jorge Fernandes, Frei Paulo da Cruz, Portuguese Renaissance, D.
Catarina de Áustria, Horace
4
AGRADECIMENTOS
Um agradecimento não bastará para expressar o meu reconhecimento por todos
aqueles que, de alguma forma, contribuíram para que esta dissertação se realizasse, ainda
assim, confiarei no poder destas simples palavras para agraciar cada um.
Antes de mais, gostaria de deixar uma palavra de sincera gratidão à Professora
Ana María Sánchez Tarrío, pelo incentivo que me deu desde o primeiro momento, pelo
cuidado e apoio constantes durante toda a caminhada, mas também pela exigência e rigor
que sempre me dedicou.
Quero também expressar o meu honesto reconhecimento à querida Luísa Resende,
pela recetividade, dedicação e ajuda que permanentemente senti e recebi da sua parte. De
igual modo gostaria de manifestar o meu apreço por todos os professores e colegas que
me conseguiram transmitir a paixão pelas Artes, especialmente, pela Cultura Clássica.
Não poderia deixar de agradecer, ainda, à minha colega Ana Corrêa da Silva pela
disponibilidade e atenção que me concedeu nos últimos anos, mas, sobretudo, por tudo o
que com ela aprendo todos os dias e por fazer renovar sempre em mim o interesse pela
Literatura.
Finalmente, um profundo obrigada à minha família e aos meus amigos que não
me deixaram sentir só e desalentada nesta travessia, por vezes, tão sombria, mas também
desafiante.
5
Pouco impedimento faz a escuridão do ar, quando a luz do entendimento fica
com seu resplandor. – Frei Heitor Pinto1
1 Pinto (1940: 83).
6
INTRODUÇÃO
O universo literário renascentista afigura-se ainda um profícuo campo de estudo
que nos vai desvelando os seus meandros à medida que nos aventuramos à descoberta dos
homens, dos livros e dos saberes que fizeram parte dessa época ilustre. As camadas de
escuridão que os tempos foram sobrepondo não devem, por isso, ser impedimento
suficiente para que a luz penetre e revele em todo o seu esplendor os insignes poetas por
elas ocultados.
No enlevo dessa senda, procuramos com este trabalho iluminar a vida e a obra de
um poeta que até agora tinha permanecido na penumbra: Jorge Fernandes, o Fradinho da
Rainha2. Tentando seguir o seu rasto, propomos uma reconstituição da sua biografia e do
ambiente áulico que o circundava, enquanto cresceu e se formou ao serviço da rainha D.
Catarina de Áustria. Efetivamente, o mecenatismo parece ser um assunto assaz pertinente
para o qual o próprio Jorge Fernandes chama a atenção:
Ni pudieran luzir las letras y sabiduria, particularmente en los que o por fortuna o por
voluntad eran pobres, sin el arrimo de los poderosos y ricos; ni estos merecer y alcançar
en el mundo la breve, y en el cielo la verdadera y eterna gloria, sin fauorecer a los sabios
y pobres.3
Neste âmbito, a primeira parte do estudo focará especialmente a ação mecenática
da rainha junto de poetas e artistas, além da sua já reconhecida atenção pelo colecionismo
régio em Portugal.
Simultaneamente, destacaremos o papel do monarca, D. João III, que favoreceu e
deu continuidade a esta atitude da rainha, uma vez que a reforma universitária por ele
levada a cabo tornou acessível aos estudantes portugueses os studia humanitatis. Em
Coimbra, por onde passou o nosso poeta na sua fase de formação, o rei erigiu um centro
de estudos vanguardista, incorporando novos professores e enriquecendo os programas
lecionados. Contudo, teremos em consideração que o ambiente não se pautava só pelo
dinamismo académico, era evidente também a situação conturbada que resultava da
2 Infortunadamente, Jorge Fernandes não é o único autor que tem permanecido esquecido no plano da
História Literária de Quinhentos, nesse âmbito é ainda expressivo o caso de D. Francisco de Sá de Meneses,
autor também antologizado no Cancioneiro Juromenha, que tem merecido recentemente atenção por parte
de Fardilha (2003), (2005). 3 Cruz (1614b: dedicatória). A edição dos textos de Jorge Fernandes é da nossa responsabilidade.
7
perseguição inquisitorial de alguns professores e, posteriormente, pelo monopólio
jesuítico do ensino que acarretou algumas mudanças.
Dado que o objetivo principal desta investigação é tentar compreender a patente
dimensão clássica da produção poética de Jorge Fernandes, o seu sentido e génese, o
nosso estudo foca apenas os poemas de cariz horaciano, deixando para estudo ulterior as
obras conservadas deste autor que apresentam temática amorosa e religiosa / teológica,
composições que, pela sua específica complexidade, demandam um espaço e tempo de
indagação que ultrapassam os limites requeridos para a presente dissertação.
Ainda na primeira parte da nossa indagação, não é de menor importância
atentarmos no ambiente de frutífero intercâmbio cultural que se vivia na Península
Ibérica, especialmente durante o período da monarquia dual, enquanto Fernandes
intercalou a sua estadia conventual em Espanha com a permanência em Portugal. O
bilinguismo do autor, comum aos restantes poetas desta época, está intimamente
associado à sua circulação, assim como dos livros e saberes que consigo levavam. Esta
teia de conhecimento que se desenvolveu sem olhar a fronteiras é um tema que parece ter
sido esquecido constantemente na história da literatura dos países ibéricos, mas que tem
vindo a ser iluminado por investigadores recentes, como Ana Isabel Buescu, Hélio Alves
ou José Miguel Torrejón, e para o qual pretendemos chamar a atenção.
Na segunda parte do nosso trabalho, seguimos os indícios deixados por Jorge
Fernandes na sua poesia, especialmente no corpus analisado, que remetem para um perfil
de tradutor e emulador do poeta latino Horácio. Como tal, procuramos, desde logo,
explicitar os fatores mais importantes a ter em conta na receção do poeta venusino no
século XVI, tendo presente que esta questão é complexa e não pode ser dissociada do
modo como os séculos anteriores o leram, bem como da análise da transmissão material
da obra. Carecendo a matéria de um estudo exaustivo e sistemático, tentaremos corroborar
algumas das nossas hipóteses sobre a receção deste poeta no Renascimento Português
com a colação de alguns exemplares patentes na Biblioteca Nacional de Portugal. A
elevada quantidade de materiais encontrados no decurso da investigação não permitiu,
contudo, que conseguíssemos analisar pormenorizadamente os exemplares coligidos,
ficou, ainda assim, o registo das primeiras conclusões e a nota para estudo posterior.
Os últimos dois capítulos da presente investigação são, por fim, dedicados ao
estudo dos processos de tradução e dos modos de leitura e assimilação de Horácio na
8
poesia de Jorge Fernandes, contemplando a dimensão horaciana no marco do conjunto da
literatura quinhentista peninsular.
Neste percurso de investigação afloraram algumas contrariedades que não nos
permitiram avançar ao ritmo esperado ou avançar tanto quanto pretendíamos. Desde logo,
ao delinear a sua biografia, a ausência de registos que remetam para Jorge Fernandes
pertencentes à Universidade de Coimbra, a escassez de documentos que a ele façam
referência no Arquivo Nacional na Torre do Tombo ou qualquer outra alusão feita por
contemporâneos, tornou o processo moroso e não nos permitiu reunir tantos pormenores
quanto gostaríamos.
Além disso, a bibliografia existente em relação a diversas matérias demonstrou
ser parca e dispersa, e, noutros casos, mesmo inexistente, nomeadamente no que respeita
à ação mecenática de D. Catarina junto dos homens de letras, os quais, como conseguimos
apurar, chamou para integrar a sua corte, protegendo-os e patrocinando os seus estudos,
assim como muitas das suas obras. Já relativamente ao estudo do intercâmbio cultural
peninsular no fim do século XVI e início do seguinte, esta é ainda uma matéria para a
qual é necessário chamar a atenção, dada a forma errónea como foi tratada ao longo do
tempo, em virtude da análise nacionalista à qual foi sujeita a literatura peninsular.
Efetivamente, outros assuntos demandam maior estudo, como o já sinalizado percurso de
receção de Horácio no Renascimento Português ou mesmo a investigação do modo de
incorporação dos latinismos na língua portuguesa durante o século quinhentista.
Diante destes desafiantes caminhos, tentaremos desenlear o novelo que o tempo
formou em volta do nosso poeta.
10
I
Vida e Obra de Jorge Fernandes
1. Jorge Fernandes: para uma biografia
A figura de Jorge Fernandes tem sido um vulto indistinto na História da Literatura
Portuguesa. As informações biográficas sobre este poeta de que dispúnhamos até, pelo
menos, à publicação da edição crítica do Cancioneiro Juromenha1 eram escassas e
advinham principalmente da Bibliotheca Lusitana2.
Graças à informação recolhida dessa obra, da nossa investigação no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo3 e das dedicatórias ou declarações de leitura das obras do
autor, podemos tentar reconstruir, ainda que com pouco pormenor, aquela que terá sido a
sua vida.
Jorge Fernandes nasceu em Lisboa na década de 30 do século XVI, em pleno
reinado de D. João III. A data do seu nascimento é incerta, contudo, é provável que o ano
do seu nascimento tenha sido por volta de 1534/36, a julgar por um documento encontrado
no ANTT, de 15524 – adiante analisado com mais detalhe – que o assinala como moço
de capela a estudar em Coimbra.
Desde tenra idade, Fernandes revelou grande talento, o que levou a rainha D.
Catarina de Áustria a interessar-se pelos seus dotes e a mandá-lo estudar “letras
humanas”. Sabe-se que, já nesta ocasião, o poeta professava a ordem franciscana e que a
proteção dada por D. Catarina ao frade era de tal forma evidente, que este era
comummente chamado ‘o Fradinho da Rainha’.
1 Spaggiari (2018). 2 Cf. Machado (1966b: 520). Antes de ser referenciado por Diogo Barbosa Machado, Frei Paulo da Cruz,
nome pelo qual passou a ser conhecido a partir de 1578, quando partiu para Castela, tinha sido já
mencionado na Bibliotheca Hispana Nova e na Bibliotheca universa Franciscana. Contudo, tal como
adverte Barbosa Machado, os autores dessas duas biografias fazem de um autor dois, com o mesmo nome. 3 Daqui em diante referido por ANTT. Trata-se essencialmente dos registos que se conservam com pedidos
da rainha D. Catarina ao seu tesoureiro para fazer pagamentos a Jorge Fernandes. 4 “Mandado da rainha D. Catarina para Álvaro Lopes…”, 1552, ANTT, Corpo Cronológico I, mç. 88,
nº23. O documento já foi publicado por Brandão (1937: 215-216), mas, dada a sua pertinência para este
estudo, oferecemos uma edição em anexo. Cf. anexo 1.
11
Acerca da sua estadia na corte da soberana, sabemos que assumiu o cargo de moço
de capela de 1552 até 15565, uma vez que temos acesso a pedidos de pagamento da rainha
durante os anos compreendidos nesse intervalo de tempo. Embora o documento mais
antigo encontrado seja relativo a 1552, é provável que Fernandes desempenhasse este
cargo antes dessa data, uma vez que, como dissemos, no mesmo documento, se faz
referência à sua frequência na Universidade de Coimbra sob a proteção de D. Catarina, o
que se presume que seja posterior à sua entrada no ambiente áulico. Para se ser admitido
como moço de capela, era exigida a primeira tonsura6, o que pressupõe que os jovens
soubessem ler, escrever e conhecessem os rudimentos da fé. Assim, Jorge Fernandes
deveria ter, pelo menos, doze anos quando iniciou as funções ao serviço da corte, o que,
segundo a nossa estimativa, apontaria para os anos de 1546/48.
Neste período, o valor dos seus pagamentos variou entre os 1485 e os 4872 réis.
As suas funções ao desempenhar o cargo de um moço de capela passavam por preparar o
altar e o assento da rainha durante as missas. Os moços de capela eram vários e estavam
sob a alçada do capelão-mor, que os organizava e distribuía por diferentes tarefas, como
ficar com a responsabilidade da porta da sacristia, da cera que se gastava na capela, dos
recados da missa ou dos frascos da água e do vinho necessários para a celebração7.
Segundo Arroyo8, no Regimento de Moradias de 1572 declara-se que um moço de capela
só poderia exercer tal cargo se o seu pai tivesse, pelo menos, o ofício de escudeiro. Anos
mais tarde, em 1592, no Regimento da Capela Real9, assegura-se que todos os moços de
capela eram de bom nascimento, vida e costumes. Todos seriam solteiros, com a primeira
tonsura e, caso casassem, deixariam aquele cargo e dedicar-se-iam a outro dentro da casa
real. Muitos deles, devido ao serviço que prestavam no palácio, recebiam diferentes
mercês, chegando mesmo a alcançar títulos maiores na corte10, como aconteceu a Jorge
Fernandes.
5 Cf. documento citado supra, nota nº4; “Alvará da rainha D. Catarina por que manda se dessem 2.000
réis…”, 1553, ANTT, CC, I, mç. 91, nº49; “Alvará da rainha D. Catarina para se pagarem a Jorge
Fernandes…”, 1554, ANTT, CC, I, mç. 92, nº39; “Alvará da rainha D. Catarina para Afonso de Zuniga”,
1554, ANTT, CC, I, mç. 93, nº10; “Mandado de D. Aleixo de Meneses, mordomo-mor da rainha…”, 1555,
ANTT, CC, II, mç. 244, nº141; “Mandado pelo qual a rainha D. Catarina ordena ao tesoureiro…”, 1556,
ANTT, CC, I, mç. 98, nº155. 6 Segundo o Regimento da Capela Real de 1592 publicado, em anexo, por Arroyo (2006:438-449),
correspondente ao documento BNL. Cód. 10.981. 7 Arroyo (2006: 75). 8 (2006:74). Os documentos a que se refere são, respetivamente, o Regimento das Moradias de 1572 e o
Regimento da Capela de 1592. 9 Arroyo (2006:438-449). 10 Arroyo (2006: 75).
12
Como se disse, precisamente no ano de 1552, a 11 de maio, Jorge Fernandes
encontrava-se a estudar na Universidade de Coimbra11. Nos registos guardados dos anos
sucessivos, nada faz crer que Fernandes se encontrasse ainda em Coimbra, mas em 1572,
no documento encontrado com a data mais recente12, a sua presença naquela cidade volta
a ser atestada. Assim, é plausível inferir que Jorge Fernandes tenha tido acesso ao ensino
universitário coimbrão, que contava já com as reformas introduzidas por D. João III. A
obra do franciscano corrobora esta informação pela profunda cultura que revela. Como
tal, não admira que Fernandes tenha estudado num período de intensa inovação que
lançou a Universidade de Coimbra para a vanguarda dos estudos humanísticos em
Portugal, contando com professores de grande qualidade e com uma cuidada
reestruturação e atualização das matérias de ensino13.
Além das alterações no âmbito do ensino, outras de carácter político marcaram o
ambiente áulico. Durante esta década de 50, enquanto estudava em Coimbra e servia a
rainha como seu moço de capela, certamente Jorge Fernandes não terá ficado indiferente
à instabilidade que se vivia no reino, especialmente na corte. Logo no início da década, a
inquietação nacional relacionava-se com a sucessão dinástica. Depois de o país ter
assistido ao desaparecimento de oito possíveis herdeiros ao trono de Portugal, as
esperanças recaíam sobre o débil príncipe D. João, que casara, em 1552, com D. Joana,
filha do imperador e irmão de D. Catarina, Carlos V. Porém, a possibilidade de também
este último descendente perecer assolava a casa real, assim como o país, que temia uma
possível união com a Espanha dos Habsburgos, que vinha consolidando a sua hegemonia
no plano europeu.
De facto, o príncipe, que teria sido futuro rei de Portugal, viria a morrer no início
do mês de janeiro de 1554, mas deixava um filho póstumo e muito desejado, que fazia
reavivar a esperança nacional, prestes a nascer no dia 20 daquele mesmo mês: D.
Sebastião.
Esta década pautou-se, ainda, pelo crescente clima de intolerância, que resultava
das decisões tomadas no Concílio de Trento e da consequente viragem cultural e
ideológica que se acentuava, a partir dos anos 40, com o estabelecimento efetivo da
11 Cf. documento citado supra, nota nº4. 12 “Mandado da rainha para Afonso de Freitas…”, 1572, ANTT, CC, II, mç. 248, nº49. 13 Carvalho (2001: 199-358). Tema explorado adiante no capítulo I.3. Jorge Fernandes e os studia
humanitatis: a sua educação.
13
Inquisição em Portugal a pedido de D. João III. O forte ascendente dos Jesuítas na corte
e no ensino evidenciava exatamente essa viragem, que se tornou cada vez mais notória,
por exemplo, a partir de 1555, quando esta ordem passou a governar o Colégio das Artes
por decisão régia, ou quando, em 1559, inaugurou a Universidade de Évora, assumindo a
sua direção14. Além disso, também a educação dos membros da casa real, nesta época,
entra na órbita da hegemonia jesuítica, ainda que D. Catarina pareça não ter aprovado
essa preferência15, tal como sucedeu com outras figuras do seu tempo16. A oposição da
rainha ao monopólio jesuítico do ensino parece ser um facto a ter em consideração para
compreender, adiante, a educação de Jorge Fernandes enquanto autor da sua órbita de
confiança17.
Da década de 70, encontramos outro registo coligido no ANTT18, datado de 29 de
outubro de 1571, que informa que Fernandes ascendeu ao ofício de porteiro da câmara da
rainha. Esta subida de cargo no seio da corte fez com que ele deixasse de receber pouco
mais do que 4500 réis, e passasse a ganhar 20 mil réis, valor já considerável quando
comparado com outros cargos relevantes desempenhados ao serviço da casa da consorte
régia19.
Enquanto porteiro de câmara, Jorge Fernandes assumia uma função de grande
responsabilidade e lealdade, já que parte da segurança de D. Catarina estava a seu cargo.
A sua principal ocupação era vigiar a entrada da câmara da rainha, controlando o acesso
dos demais ao seu interior, sob a supervisão do porteiro-mor.
14 Buescu (2007: 338). 15 A educação do príncipe D. João foi assumida por António Pinheiro, um dos súbditos de D. João III que
teve o seu financiamento para realizar estudos em Paris, onde também deu aulas de Retórica, com fortes
ligações aos Jesuítas e à Inquisição. No entanto, esta decisão contrastava com a inicial intenção dos reis de
atribuir o cargo a Damião de Góis. Também D. Sebastião teve como mestre um jesuíta, Luís Gonçalves da
Câmara, um padre da confiança de Inácio de Loyola, escolhido pelo cardeal D. Henrique e que dificilmente
teve a aprovação de D. Catarina, que se opunha à escolha de um padre da Companhia de Jesus para mestre
do neto. Sobre António Pinheiro e o seu poder na corte, veja-se Buescu (1996: 88-91). Sobre a educação
de D. Sebastião, veja-se Buescu (2007: 336-339). 16 Marcocci (2004: 252-254). Veja-se, a título de exemplo, o caso de João Rodrigues de Sá de Meneses
“que no fim da sua vida compareceu quatro vezes perante a Inquisição portuguesa, sob a acusação, entre
outras, de falar mal da Igreja e dos jesuítas”, como esclarece Tarrío (2005: 172, 182). Este assunto é
explorado de forma mais detalhada, pela mesma autora, numa publicação mais recente (2009: 38, 44-51). 17 Tema explorado adiante no capítulo I.3. Jorge Fernandes e os studia humanitatis: a sua educação. 18 “Mandado da rainha D. Catarina para Afonso de Zuniga…”, 1571, ANTT, CC, I, mç. 109, nº64. 19 Lourenço (2002-2003: 367-390). Em anexo, a autora publica o Livro da Matricula dos Moradores da
Casa da Rainha D. Caterina. Desde o anno de 1542 ate o de 1572.
14
O porteiro de câmara também recebia as pessoas que se dirigiam ao palácio para
falar com a rainha e, em certas ocasiões, podia mesmo atuar como seu mensageiro20. Além
disso, fazia parte do seu serviço avisar os oficiais da casa real quando o conselho régio se
ia reunir, sempre que se dava uma audiência ou quando a rainha saía do palácio21.
Na Recopilación de las Ordenanzas de la Real Audiencia y Chancilleria de
Valladolid de 1566, é atribuído ao porteiro de câmara o dever de assegurar a ordem das
audiências gerais22. Além disso, o documento esclarece ainda que, em caso de ser
necessário enviar ao rei ou ao conselho régio algum processo ou qualquer outro
documento, tal tarefa deveria ser atribuída ao porteiro de câmara23.
É possível que estas funções inerentes ao cargo de porteiro de câmara ao serviço
das audiências e dos conselhos régios tenham sido desempenhadas por Jorge Fernandes
junto de D. Catarina, se não ainda enquanto o rei vivia, provavelmente durante a regência
da rainha.
D. João III morreu em 1557, mas D. Catarina tinha conquistado, nos últimos anos
de vida do rei, uma clara importância a nível político, assumindo um lugar de destaque
no seu conselho régio e presidindo com o marido às cerimónias públicas. Além disso, a
partir de certo momento, os conselhos régios passaram mesmo a decorrer nos aposentos
da rainha, por decisão do monarca24. Buescu chega mesmo a afirmar que “no início dos
anos 50 era a rainha, ainda que o rei estivesse presente, quem verdadeiramente
despachava [os negócios do reino] com o secretário régio, Pero de Alcáçova Carneiro”25.
“E esse seu estatuto nunca o perdeu D. Catarina, tornando-se parte integrante da sua
condição e da sua imagem de rainha”26 que prevaleceu depois da morte do rei, quando se
tornou regente do reino, de 1557 a 1562.
A governação da rainha durante a regência não foi fácil27 e o clima de instabilidade
que se sentia anteriormente não cessou durante estes anos. Desde logo, a crise económica
aumentava, o que levou, por exemplo, a Casa da Índia à bancarrota em 1560. No plano
20 Gálvez (2010: 120). 21 Arroyo (2006: 137). 22 Zauala (1566: II, fl. 114v): “Assi mesmo los dichos porteros deven dar orden, & assiento”. 23 Ibid., II, fl. 115r: “Quando se oviere de embiar al Rey o al Consejo algun processo o cosa otra que requiera
persona de confiança, deve se embiar con alguno delos Porteros de Camara”. 24 Buescu (2007: 252). 25 Ibid., 263. 26 Ibid., 250. 27 Para as circunstâncias que provocavam um clima de instabilidade neste período cf. Buescu (2007: 327-
348).
15
político, D. Joana, que regressara a Castela após a morte do príncipe D. João e o
nascimento do filho, insistia em voltar a Portugal e assumir ela própria o controlo da
educação de D. Sebastião, mas D. Catarina empenhava-se em garantir que tal não
sucederia28. Além disso, as divergências de D. Catarina dentro da corte não se limitavam
aos conflitos que mantinha com o cardeal D. Henrique, particularmente acerca da
educação do futuro rei, mas alargavam-se a algumas das principais casas aristocráticas do
reino, como a casa de Bragança e a de Aveiro. As atitudes de revelia e contestação à
governação da rainha aumentavam, quer com o descontentamento do povo, quer em
episódios de resistência das classes mais altas29.
Este clima tenso que circundava a governação de D. Catarina levou-a a propor
passar a regência para as mãos do cardeal D. Henrique, em 1560. Contudo, tal só veio a
acontecer em 1562, aquando da reunião das Cortes, em Lisboa, passando a rainha a
assumir unicamente o papel de tutora e curadora do neto30.
Em 1568, quando D. Sebastião começou a governar, com apenas catorze anos, e
durante os anos sucessivos, a apreensão face à descendência dinástica nunca se
desvaneceu. A ameaça da incorporação espanhola não deixava de pairar nas mentes
portuguesas, não só pela já comprovada fragilidade da descendência de D. Catarina e D.
João III, mas também pela insistência de D. Sebastião em não casar. No fim da década de
60, a peste era outra das grandes preocupações dos portugueses, principalmente na cidade
de Lisboa31. Perante este cenário e sabendo que Jorge Fernandes deve ter estado em
permanente contacto com a corte, principalmente com a casa de D. Cataria, podemos
imaginar o tormento que se fazia sentir, aliado ao clima de angústia e aflição que levou a
corte a sair da cidade.
Ora, dois anos antes do último registo de que dispomos atestando o contacto da
rainha com Jorge Fernandes, em 1570, D. Catarina, provavelmente por sentir-se cansada
e abatida pelas circunstâncias que caracterizavam a sua relação com o seu único
descendente, cada vez mais afastado de si, decidiu partir para Espanha e adotar uma vida
de recolhimento, à semelhança do que fizera o seu irmão Carlos V, na fase final da vida.
Porém, a contestação à resolução da rainha foi enorme, o que fez com que esta desistisse
28 Nomeadamente tentando casar a princesa D. Joana com o sobrinho, D. Carlos. Cf. Buescu (2007: 340). 29 Como foi o caso do episódio acontecido a 8 de dezembro de 1560, no convento de S. Francisco de
Lisboa, engendrado por nobres e membros do clero. Cf. Buescu (2007: 339-343). 30 Buescu (2007: 347). 31 Ibid., 368-369.
16
do plano inicial e se mudasse para o paço de Xabregas, contíguo ao convento das clarissas,
onde residiu até à sua morte.
Nos anos sucessivos, o futuro do país e de Jorge Fernandes iriam mudar os seus
rumos. A nível nacional, por um lado, D. Sebastião deu forma ao seu sonho de fazer uma
expedição a Marrocos e, apesar da oposição de alguns membros da nobreza e das duas
figuras fundamentais que o rodeavam – D. Catarina e o cardeal D. Henrique32–, eram
muitos os que o apoiavam33. Por outro lado, a saúde de D. Catarina era já bastante frágil
no início de fevereiro de 1578, com febres altas e quase sem forças para falar. Ainda
assim, foi nessas condições que a rainha recebeu a notícia que tanto temia: D. Sebastião
estava absolutamente determinado a passar a África, comandando o exército. Poucos dias
depois, a 12 de fevereiro, a rainha morria de madrugada, na presença do neto34.
A expedição levada a cabo pelo ambicioso rei destacava-se pelo seu aparato, “era
como que a partida para uma imensa e faustosa festa”35. Contudo, o entusiasmo do jovem
monarca não foi suficiente para superar a falta de preparação das tropas, como é atestado
por D. João da Silva, embaixador de Filipe II, numa das primeiras paragens da armada:
“grande lástima ver ir o rei sem homem que entenda o que vamos fazer, e assim parece o
ganhar impossível e o perder certo, porque dependemos totalmente de milagre”36. Assim
desapareceu D. Sebastião em agosto desse mesmo ano, a cumprir o seu intento, deixando
o país mergulhado numa crise de sucessão dinástica, temida há muito. E foi no decorrer
de toda esta instabilidade política, social e financeira que Jorge Fernandes partiu para
Castela em 1578, como tantos outros que emigraram nesta fase conturbada para a
sociedade portuguesa37.
Um outro caso paradigmático face às circunstâncias que se viviam no país
naqueles anos foi o de Francisco de Holanda, também ele um homem da corte, que fora
arquiteto e conselheiro de D. João III e, mais tarde, fiel a D. Catarina na luta de influências
entre a rainha e o cardeal D. Henrique. Embora de geração anterior a Jorge Fernandes,
32 Ibid., 426. 33Como refere Buescu (2007:406), entre os simpatizantes que tentavam motivar o rei para esse projeto,
encontravam-se Francisco de Holanda e Luís de Camões, na dedicatória da sua epopeia. A autora cita, da
obra Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa de Holanda, pág.23, a exortação para o rei ir “ao campo
d’Ourique e ao Algarve que ainda não viu, e passe a África, e tome-a, e triunfe dela”; e de Os Lusíadas, I,
6, 5-6, faz referência aos versos “novo temor da Maura lança, / maravilha fatal da nossa idade”. 34 Ibid., 431-434. 35 Cf. Magalhães (1997: 459). 36 Velloso (1945: 304) apud Magalhães (1997: 459-460). 37 Magalhães (1997: 479).
17
Holanda também procurou em Espanha uma nova oportunidade, durante o clima de
instabilidade que se viveu. Logo no início da década de 70, com a vinda do embaixador
espanhol D. Juan de Borja a Portugal e a manifestação da intenção da rainha de ir para
Espanha, o pintor e arquiteto tentou ser contratado como iluminador para a corte de D.
Filipe II. Em 1573, recebeu uma gratificação e uma encomenda por parte da corte
espanhola e, aquando da vinda de Filipe II a Portugal, foram-lhe dadas as suas pensões
de compensação38. Assim, parece existir alguma semelhança no comportamento destes
dois autores ligados à corte da rainha, nomeadamente a tentativa de procurar em Espanha
o sucesso que viam extinguir-se em Portugal nos anos em que a crise dinástica se
adensava.
Naquele ano de 1578, Jorge Fernandes foi admitido como Frade Menor na
Província da Conceição, no convento de São Francisco de Olmedo39, adotando o nome
de Frei Paulo da Cruz, pelo qual passou a ser conhecido desde então. Em Olmedo
aprendeu e ensinou, adquirindo, pelo menos a partir do ano de 1612, o estatuto de ‘Letor
de Theologia jubilado de la Orden de los Menores’40.
Em Portugal, depois da morte d’O Desejado, D. Henrique assumiu o controlo de
um reino cada vez menos esperançoso da resolução daquele impasse dinástico e da crise
financeira. A conjuntura era nitidamente adversa e indicava a profunda derrota sentida
pelo país: a juntar ao endividamento da coroa para financiar os projetos de D. Sebastião,
também grande parte do reino tinha perecido em África ou ficado cativo, incluindo parte
da nobreza41. A crise entranhava-se nos vários setores e âmbitos da vida portuguesa.
Progressivamente, o foco de atenção dirigia-se para a disputa dos principais
pretendentes ao trono – Filipe II, D. Catarina de Bragança e D. António, prior do Crato –
e ofuscava D. Henrique, incapaz de designar o seu sucessor. A instabilidade aumentava e
generalizava-se numa sociedade que se dividia no apoio a estes três pretendentes. D.
António, filho bastardo do infante D. Luís, desde cedo percebeu que D. Henrique não o
reconheceria como pretendente ao trono e, mais do que isso, o cardeal de tudo fez para o
afastar da linha da sucessão. Ainda assim, D. António conseguiu o apoio popular e dos
procuradores dos conselhos. D. Catarina, duquesa de Bragança, apostou na forte
38 Sobre a biografia de Francisco de Holanda cf. Deswarte (1986). 39 Cruz (1612: fl.3r). 40 Ibid., capa. 41 Magalhães (1997: 460).
18
fundamentação jurídica do seu direito ao trono e acreditava que isso lhe valeria, embora
não tivesse conseguido cativar o povo. Filipe II, que acreditava ser o herdeiro legítimo,
não só rivalizou com D. Catarina na produção de argumentos jurídicos que o
defendessem, mas também tentou obter o apoio de diversas classes sociais,
nomeadamente da nobreza e do clero, e ainda dos mercadores interessados em expandir
as suas áreas comerciais42.
A divisão interna aumentava significativamente à medida que, por um lado,
crescia a noção de identidade nacional, patente na resistência portuguesa à assimilação
por Castela e no vigor com que se tentava que fosse eleito um rei ‘natural’43; por outro
lado, as ameaças de invasão do rei espanhol iam aumentando, assim como o número dos
seus apoiantes entre os servidores da coroa portuguesa.
Este era o ambiente que se vivia em Portugal aquando da morte de D. Henrique,
no início de 1580. Em junho desse mesmo ano, D. António foi aclamado rei nas cortes de
Lamego, excluindo a pretensão de Filipe II ao trono. Porém, o imperador, ao saber de tal
feito, decidiu cumprir as ameaças e invadir Portugal com as suas tropas, que derrotaram
o exército mal preparado e mal chefiado de D. António, a 25 de agosto, em Lisboa. No
ano seguinte, as cortes de Tomar atestavam a mudança de rumo do país, que passava,
então, a estar sob a alçada do soberano mais poderoso da Europa.
O país vizinho, unindo-se a Portugal, alcançou o apogeu do império. Porém, o
poder esmagador de uma monarquia que granjeava territórios em quatro continentes e se
identificava como defensora do Cristianismo foi revelando as suas fragilidades. As
expectativas da nobreza e dos mercadores portugueses saíram goradas, a distância face
ao centro de decisões e do poder político foi-se acentuando de reinado para reinado pelas
escassas deslocações dos Filipes ao país.
Durante a dinastia filipina, Jorge Fernandes só regressara a Portugal em 1613, ano
em que reinava D. Filipe II de Portugal. Nesta ocasião, o franciscano teve tempo para se
inteirar da forma como se vivia em solo português naqueles anos e não perdeu a
oportunidade de deixar registada, na sua obra Encomio de S. Vicente e de suas
translações, de 1614, uma reflexão exatamente sobre a desalentada realidade do país:
“Quantos trabalhos, Patria minha antiga, / Nestes ultimos annos padeceste, / Depois que
42 Ibid., 473. 43 Ibid., 464.
19
com bom zelo e sorte immiga / Contra Africa as bandeiras estendeste?”44. Fica também
expressa uma crítica à soberba dos portugueses enquanto detinham o controlo das
riquezas do império – “Quanto mal na riqueza cometeste”45 – e à corrupção dos valores
morais que parece não se ter corrigido com o passar dos anos – “[…] não sei se emendada
dos teus vicios”46.
O desalento e a tristeza do povo português pelo declínio do seu antigo grande
império, assim como as dificuldades que enfrentavam à época os marinheiros e
comerciantes na navegação também são lembradas no final deste longo poema:
La te falta da India a rica droga,
Em que teu grã commercio mais estriba […]
Qual navio se rouba, qual se afoga,
Qual do tempo cruel fugindo arriba.
Pois em tanta tormenta, em tal perigo,
Chama, querida patria, o grande amigo [S. Vicente].47
Por estes anos, o frade entrou no Convento de S. Francisco de Lisboa,
confessando-se feliz pelo retorno à pátria48, atitude que era partilhada por outros escritores
do mesmo período ao voltarem a Portugal49. No ano seguinte, por ocasião de uma solene
procissão realizada a 13 de setembro, que celebrava e recordava a trasladação do mártir
S. Vicente em Lisboa50, Fernandes compôs várias poesias que lhe valeram a distinção de
“primeiro prémio no verso latino”51, das quais não se encontrou, até hoje, nenhum
testemunho. Porém, guardando memória destas celebrações, conserva-se a obra
anteriormente citada que trata do elogio de S. Vicente.
44 Cruz (1614a: fl.36r, canto V, estr.26). 45 Ibid. 46 Ibid. Este será um tema abordado por Jorge Fernandes em outras obras, nomeadamente no poema
“Quando do mundo novo a gente nova”. 47 Cruz, Paulo da (1614a: fl.36r-36v, canto V, estr.28). 48 Ibid., dedicatória. 49 Nomeadamente por Tomé Pinheiro da Veiga, no seu texto Fastigímia. Cf. Olival (2008: 214): em
Valladolid, o autor confessava “sentir-se a viver no estrangeiro […], quando regressou sentiu carinho pela
sua terra, representada pela palavra pátria (terra de nascimento). Não seria por acaso que no seu texto a
forma prenominal «nós», «nosso» e derivados seriam tão comuns”. 50 Cruz (1620: fl.112v). 51 Machado (1966b: 520).
20
Durante o tempo em que se encontrava em Portugal, Jorge Fernandes teve a
intenção de imprimir uma coletânea dos seus versos para “satisfazer à instância de pessoas
eruditas”52. Todavia, ao ter-lhe sido negada esta hipótese, partiu, uma vez mais, para
Castela.
A relação deste franciscano com ‘pessoas eruditas’ e bem posicionadas na corte
parece ser atestada não só pela forma como ingressou no mundo áulico, pelo apoio de D.
Catarina de Áustria, mas também pelo contacto que manteve com outras figuras
importantes do círculo cortesão, como Diogo de Paiva Andrade, a quem, pela sua morte,
dedicou uma elegia53. Diogo de Paiva era filho do tesoureiro-mor de D. João III,
doutorou-se em Teologia e ficou célebre quando, em 1561, D. Sebastião o nomeou para
assistir ao Concílio de Trento54. Além do poema que Fernandes lhe dedicou, hoje perdido,
nada mais sabemos, tornando-se difícil reconstruir qual seria a relação entre os dois.
Efetivamente, Jorge Fernandes continuou a conviver com pessoas bem
posicionadas na corte, mesmo após a sua saída de terras lusitanas, por exemplo com
António Gomes da Mata, sexto correio-mor do reino, entre 1607 e 1641. O trato entre os
dois é assegurado pela dedicatória da sua obra Tardes de Quaresma55, editada em Lisboa,
no ano de 1614. Neste texto dedicatório, Jorge Fernandes louva as qualidades do correio-
-mor, no que diz respeito à valorização das letras e dos estudiosos, e elogia-o igualmente
como sendo um exemplo das virtudes transmitidas na sagrada Escritura, alguém que se
compadece e socorre a pobreza.
Confirmando a elevada posição social de António Gomes da Mata, o frade refere-
-se à “antigua nobleza de los Coroneles (de quien por linea derecha y masculina tiene su
decendencia) cavalleros delos Reyes de Castilla tanto y con tanta razon favorecidos”. De
facto, a família do correio-mor do reino conseguiu ascender socialmente devido ao apoio
financeiro que deu à monarquia espanhola, durante os períodos de crise. O seu pai, Luís
Gomes de Elvas, conseguiu, em 1606, o título de nobreza e a compra do ofício de correio-
-mor do reino, que conferiu à família maior prestígio e influência56.
52 Ibid. 53 Machado (1966b: 520) faz alusão a este poema - “Elegia á morte de Diogo de Paiva” -, embora seja hoje
desconhecido. 54 Machado (1965: 684-687). 55 Cruz (1614b: dedicatória). 56 Abecasis (2017: 52).
21
Assim, Jorge Fernandes, ao dedicar este livro a António Gomes da Mata,
agradecendo o apoio que este lhe deu e que permitiu a publicação da obra, demonstra a
proximidade que tinha do correio-mor, de quem esperava “defension y amparo”, e atesta,
uma vez mais, o apreço de que desfrutava junto da corte.
Nos derradeiros anos da sua vida, Jorge Fernandes dirige-se a segunda e última
vez para Castela, rumando ao Mosteiro de Medina del Campo, relativamente perto
daquele onde tinha residido entre 1578 e 1613, e lá ficou até morrer, em 1631. Importa
sublinhar que foi precisamente neste mosteiro que esteve San Juan de la Cruz, um nome
maior da poesia castelhana, que viveu entre 1542 e 1591. Significativamente, o poeta
português, que chegou a este mosteiro vários anos após a morte do insigne poeta
castelhano, escolheu o nome ‘Frei Paulo da Cruz’ aquando da sua entrada no Convento
de S. Francisco de Olmedo, em 157857.
57 A difusão das obras de San Juan de la Cruz em Portugal é um assunto que carece de investigação
monográfica. Não obstante, o referido clima de bilinguismo e recíproca circulação de autores e obras
autoriza a presumir tal difusão. Em todo o caso, a fundação do primeiro convento das carmelitas descalças
em Lisboa – o convento de Santo Alberto –, em 1585, sem dúvida constitui um momento determinante. Ao
implicar a vinda de uma discípula de Santa Teresa enquanto prioresa deste novo convento, Soror María de
San José (Salazar), é provável que a produção literária dos dois místicos da ordem tenha começado a
circular, pelo menos, entre a comunidade carmelitana. Acerca da obra de María de San José e das suas
semelhanças com a poesia de Santa Teresa e de San Juan de la Cruz, veja-se Morujão (2003); (2013: 102-
104, 291-293, 328-332).
22
2. D. Catarina: mecenas de artistas e poetas
Ni pudieran luzir las letras y sabiduria, particularmente en los que o por fortuna o por
voluntad eran pobres, sin el arrimo de los poderosos y ricos; ni estos merecer y alcançar
en el mundo la breve, y en el cielo la verdadera y eterna gloria, sin fauorecer a los sabios
y pobres. – Jorge Fernandes1
O papel de D. Catarina como mecenas das artes tem sido objeto de estudo da
historiografia, nos últimos anos2. Acredita-se mesmo que, no século XVI, a rainha seria
detentora da maior coleção de objetos asiáticos e exóticos, provenientes de fora da
Europa3. De modo semelhante ao que fizeram os seus parentes Habsburgos, em Viena,
Praga e Madrid4, a coleção de D. Catarina deu origem à que tem sido considerada a
primeira Kunstkammer em Portugal. Este acervo, reunido durante cinquenta anos, era
composto por “tapeçarias flamengas, retratos de família, objetos preciosos da Ásia
portuguesa, joias e pedras preciosas, móveis exóticos e têxteis, a baixela e uma
impressionante biblioteca”5. Segundo Jordan6, o objetivo da rainha não seria criar uma
coleção enciclopédica, de carácter universal, mas promover as artes com o objetivo de
glorificar a dinastia joanina, de forma idêntica ao que fizeram o seu avô Maximiliano e o
seu irmão Carlos V. Porém, a coleção da rainha revestia-se de contornos singulares face
às demais, promovendo a sua imagem enquanto soberana de um império ultramarino, que
lhe permitia granjear peças exóticas jamais vistas em solo europeu.
Os objetos artísticos presentes na sua coleção têm motivado diversos estudos,
contudo, parecem ser ainda escassas as referências à sua ação enquanto mecenas de
poetas, tema que cremos ter bastante relevância para a investigação que aqui
desenvolvemos.
É certo que a educação recebida por D. Catarina, enquanto infanta, a tornou mais
sensível à importância da arte, moldando a sua forma mentis, que mais tarde viria a
revelar-se na atenção que tanto deu aos estudos humanísticos. Tendo crescido confinada
1 Cruz (1614b: dedicatória). 2 Nomeadamente por parte de Annemarie Jordan. 3 Buescu (2007: 365). 4 Jordan (2012: 99-100). 5 Ibid. 6 Ibid.
23
com a mãe em Tordesilhas, as condições que rodeavam D. Catarina poderão ter
comprometido parte da sua formação, nomeadamente por se ver privada do convívio
cortesão, ainda assim, Carlos V de tudo tentou para aperfeiçoar a educação da irmã7.
Apesar desta realidade, a verdade é que a instrução da futura rainha deverá ter seguido os
padrões adequados à sua condição de infanta, comum às casas reais da península ibérica,
naquela época.
A crescente importância dada à instrução feminina no mundo áulico verificava-se
já desde o século XV8, impondo-se como uma preocupação peninsular comum a ambas
as cortes. Na corte de D. Isabel, a Católica, por exemplo, a atenção dada à pedagogia
feminina é atestada pelo pedido da rainha a António de Nebrija para que elaborasse uma
gramática latina destinada às mulheres, que assim poderiam aprender sem necessitarem
de ajuda masculina9. Além disso, D. Isabel contava com a presença de duas mulheres de
grande erudição que ensinavam as damas da sua corte: Beatriz Galindo e Juana de
Contreras10. No que diz respeito à corte dos monarcas portugueses D. João II e D. Manuel,
de facto, constata-se que o famoso humanista siciliano Cataldo Sículo teve como alunas
várias mulheres a quem teceu fortes elogios11, entre elas destacam-se D. Leonor de
Noronha, a rainha D. Leonor, mulher de D. João II e a sua irmã, a infanta D. Joana, a
rainha D. Maria, segunda esposa de D. Manuel e D. Maria de Meneses, filha do poeta
João Rodrigues de Sá de Meneses12.
Importa dedicar algum espaço a conhecer a educação e cultura de D. Catarina, à
luz do papel decisivo da monarca na educação do nosso poeta. A rainha terá fruído de
uma instrução idêntica à que acabámos de descrever, tendo como mestre o franciscano
Juan de Ávila13, que se encarregou da formação intelectual da infanta e da sua
aprendizagem da doutrina cristã. Além deste mestre, Catarina aprendeu a dançar com o
português Francisco Dias e a tocar clavicórdio com Martín de Salcedo, e ao seu serviço
tinha também o tangedor de flauta Juan Sánchez, os tocadores de vilhuela Martin Sánchez
e Ana de Urueña e um cantor chamado Gabriel14. Assim, “o número de instrumentos
7 Buescu (2007: 65-70). 8 Morujão (2013: 41-48). 9 Buescu (2007: 55). 10 Ibid., 56. 11 Ramalho (1969: 66-67). 12 Tarrío (2001a: 231). 13 Buescu (2007: 54). 14 Cf. Buescu (2007: 70) e Jordan (2012: 29).
24
depois registados na coleção de Catarina em Portugal é testemunho dos seus talentos
musicais e da sua predileção por órgãos, cravos e clavicórdios”15, mas também os
inúmeros músicos que faziam parte da sua corte e o excelente coro que a rainha reuniu na
sua capela real de Lisboa16 contribuem para atestar que o seu apreço pela música não se
desvaneceu.
Da mesma forma que confirmamos tal facto relativamente à música, parece ter
acontecido algo semelhante no que diz respeito ao interesse da rainha pela literatura. A
julgar pela formação que foi dada à sua mãe, D. Joana, na corte de Isabel, a Católica, as
mulheres eram instruídas em música, literatura e línguas clássicas – sobretudo no latim,
e, por vezes, no grego –, além das Sagradas Escrituras. Estariam, contudo, vedadas ao
conhecimento da mulher as matérias relacionadas com a ciência, a filosofia e a retórica17.
Esta instrução terá sido ministrada também a Catarina, como corrobora Jordan, aludindo
a um estudo feito à biblioteca de Joana de Castela, que confirma que a infanta Catarina
era “fluente em latim, lia grego e, sob a supervisão do seu tutor Frei Juan de Ávila, foram
comprados livros religiosos e em latim para a biblioteca da princesa”18. Entre os livros,
dicionários e manuais comprados para a sua formação estão incluídos o tratado teológico
Summa Angelica do franciscano Angel Clavasio, poemas de Sedulio e o tratado
pedagógico De modus epistolandi de Francisco Negri19.
Alguns dos livros que possuía em Tordesilhas terão sido, certamente, trazidos
consigo para Portugal, aquando do casamento com D. João III20, contribuindo para o
enriquecimento daquela que seria a sua futura biblioteca em terras lusas, uma preciosa
fonte de conhecimento para si e para a sua corte, que esteve em permanente construção e
atualização21.
Seguindo os dados fornecidos por Viterbo22 relativamente à livraria de D.
Catarina, percebe-se que “mais copiosos, sem duvida, são os subsidios que encontramos
a respeito da rainha [face aos outros monarcas] […], e que vem demonstrar que ella era
uma senhora de alguma illustração e dedicada á leitura”23. De facto, o apreço pela cultura
15 Jordan (2012: 29). 16 Ibid., 30. 17 Buescu (2007: 57). 18 Jordan (2012: 28). 19 Ibid. 20 Ibid., 29. 21 Tarrío (2015: 23-27). 22 Viterbo (1901). Veja-se também a análise que faz Buescu (2016: 60-66). 23 Viterbo (1901: 26).
25
clássica e humanística que Catarina desenvolveu desde tenra idade parece não se ter
desvinculado dela, de modo que, ao estabelecer-se na corte portuguesa, tentou cultivá-lo
entre as suas damas e cortesãos. Aliás, Jordan adianta que “D. Catarina escrevia poesia e
dedicava várias horas do seu dia às suas orações”24. Tal facto justifica a natureza dos
livros que faziam parte da sua biblioteca: se uma parte é dedicada aos grandes autores
clássicos e contemporâneos, outra, talvez ainda maior, é composta por breviários, vidas
de santos, livros de rezar, missais e todo o tipo de obras de cariz religioso.
Entre os autores da antiguidade clássica que constavam da sua biblioteca,
destacavam-se Séneca, Plutarco, Tito Lívio, Quinto Cúrcio e Boécio, assim como outros
mais recentes, que se teriam já tornado incontornáveis para a época, como Petrarca e
Erasmo de Roterdão. Um dado relevante é também o facto de constar um Abecedairo e
um livro de Oras de Nosa Senhora em língua grega numa listagem de obras que foram
compradas em 154025, o que indica que, “também entre algumas damas da corte mais
eruditas […], em que se destaca Joana Vaz, o grego não era um idioma desconhecido, e
a rainha fazia questão de ter obras em grego entre os seus livros”26. Além disso, sabemos
que a extraordinária humanista Luísa Sigeia, que foi dama na corte portuguesa, conhecia
seguramente a língua grega27.
A biblioteca terá sido reforçada várias vezes, nomeadamente com livros
provenientes de Milão e da Flandres destinados à educação da sua filha Maria28. Neste
âmbito, salienta-se ainda a existência, na corte, da gramática latina iluminada
Grammatices rudimenta, que João de Barros criou para a aprendizagem da filha de D.
Catarina e D. João III29, assim como a afamada gramática de António de Nebrija30.
Curiosamente, ao contrário do que mencionámos em relação à educação dada na corte de
Isabel, a Católica, a D. Joana e, muito provavelmente, a D. Catarina, a infanta Maria, sua
filha, contou já com o ensino da filosofia31, anteriormente vedada às mulheres, o que
parece refletir já a evolução cultural da corte.
24 Jordan (2012: 77). 25 Buescu (2016: 63-65). 26 Ibid., 65. 27 Monteiro (2018: 152), Maestre (2019: 149, 156, 198), Resende (2019: 15). Tema explorado infra. 28 Jordan (2012: 137). 29 Buescu (2007: 267), BNP IL. 148. 30 Viterbo (1901: 33). 31 Jordan (2012: 137).
26
Neste ambiente, é natural que a rainha tenha protegido e chamado para a sua corte
homens de grande erudição que ajudaram a glorificar o seu nome, graças à sua ação
enquanto mecenas. Desde logo, é importante referir que foram vários os autores que lhe
dedicaram obras, como podemos assinalar, a título de exemplo, o caso de Frei Francisco
de Jimenez com a sua obra Carro de las donas, em 154232; Francisco de Moçon que lhe
dedicou o Libro Primero del Espejo de la Princesa Christiana, provavelmente por volta
de 154333; e Rui Gonçalves, em 1557, com Privilegios, e prerrogativas, que o genero
feminino tem por direito commum, e Ordenaçoens do Reino mais, que o governo
masculino34. Ora, perante tais composições, salientamos, como fez Fernandes35, que “as
dedicatórias destas três obras sobre temáticas «femininas» parecem indicar alguma
sensibilidade particular da rainha D. Catarina em relação” a estas matérias, tal como
constatamos relativamente ao interesse que a rainha tinha na questão da educação
feminina.
Outras obras, sobretudo de cariz religioso, também lhe foram dedicadas, como é
o caso do segundo livro da obra Guia de Pecadores36 de Frei Luís de Granada, em 1557,
e, em 1562, da sua tradução da Escala Espiritual de S. João Clímaco37. A dedicatória
desta obra elucida, por um lado, a atenção dada pela rainha às instituições religiosas,
nomeadamente como sua protetora38 e, por outro lado, não deixa de salientar as
qualidades de D. Catarina no desempenho das suas funções enquanto rainha, mas também
as suas virtudes espirituais, uma vez “que no dexa de tener spiritu y costumbres de mas
que religiosa”39. Incluem-se também, nas obras dedicadas à rainha, a obra latina De
conditio[ne] & demonstra[tione] Idem Selectarum interpretationum circa conditiones,
demonstrationes & dies. Libri II de Manuel da Costa, publicada em 155140; a Segunda
parte das Chronicas da orde[m] dos frades Menores do seraphico padre sam Francisco
seu instituidor e primeiro ministro geral que se pode chamar Vitas patru[m] dos Menores
de D. Frei Marcos de Lisboa, impressa em 156241; a Exposiçam da Regra do glorioso
32 Viterbo (1901: 27). 33 Buescu (1996: 103-104). 34 Machado (1966b: 661). 35 Fernandes (1993: 113). 36 Rodrigues (1988: 564-565); Viterbo (1901: 26). 37 Rodrigues (1988: 566) cita um exemplar cuja edição é de 1576 e que não conseguimos localizar;
recorremos a uma edição anterior, de 1562, a partir de um exemplar da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, digitalizado e disponibilizado pela Biblioteca Nacional de Portugal (cota ULFL RES. 201). 38 Sobre este tema, veja-se Mendes (1989). 39 Clímaco (1562: fl. iiijr). 40 Machado (1966b: 234-236). 41 Ibid., 407-410.
27
padre sancto Augustinho copilada de diuersos authores por Frei Diogo de S. Miguel, de
156342; e os Contos e historias de proveito e exemplo parte 1 e 2 de Gonçalo Fernandes
Trancoso, em 157543.
Como sugerem as palavras destes autores ao oferecerem à rainha a sua produção
literária, o mecenato de D. Catarina surge ligado, por um lado, a obras que têm como
principal preocupação o lugar da mulher na sociedade da época e, por outro, a livros de
temática religiosa. Neste âmbito, é relevante que a rainha tenha custeado, por exemplo,
o Tratado de la vida loores y excelencias del glorioso apostol y bienauenturado
euangelista san Iuan el mas amado y querido discipulo de Christo nuestro saluador de
Frei Diego de Estella, em 155444, e a tradução da Vida de S. Bernardo realizada por Frei
Gonçalo da Sylva, em 154445.
Assim, não terá sido, com certeza, apenas Jorge Fernandes, o ‘Fradinho da
Rainha’, a frequentar o círculo mais próximo da monarca. De facto, houve outros autores
e artistas por ela apreciados, patrocinados e protegidos, nomeadamente o já citado Frei
Luís de Granada46, Frei Heitor Pinto47, Francisco de Holanda48 ou o artista João
Baptista49, entre outros que não granjearam tanta fama quanto estes.
No que respeita a Frei Luís de Granada, Provincial dos Dominicanos a partir de
1556, foi conselheiro e orientador de D. Catarina, nessa mesma época50. A rainha,
mantendo com o poeta uma certa convivência, ter-se-á interessado bastante pelo seu
talento, tornando-se sua protetora na corte e leitora assídua das suas obras51, chegando
mesmo a custear, em 1559, um volume composto por um Compendio de Doctrina
Christãa, seguido de Treze Sermões das principaes festas do anno52. A relação entre os
dois está patente também no facto de Frei Luís saber qual o teor dos textos que
interessavam a D. Catarina, como expressa na dedicatória do segundo livro do Guia de
42 Machado (1965: 679). 43 Machado (1966a: 394); Mimoso (1998: 263-271). 44 Machado (1965: 650-651). 45 Machado (1966a: 403). 46 Buescu (2013: 72). 47 Deswarte-Rosa (1992: 42-44). 48 Deswarte (1986); Jordan (2012: 199). 49 Serrão (2016: 71); Serrão (2004: 49-50). 50 Jordan (2012: 215). Sobre a obra deste autor em Portugal, veja-se Rodrigues (1988). 51 Buescu (2013: 72). 52 Compendio de doctrina christãa recopilado de diuersos autores que desta materia escreuerão, pelo
R.P.F. Luys de Granada... Acrecentarãose ao cabo treze sermões das principaes festas do anno pelo mesmo
autor. Lisboa: em casa de Ioannes Blauio de Agripina Colonia, 1559 (BNL Res-173-v).
28
Pecadores53, ou no facto de a rainha o ter convidado para ser Arcebispo de Braga, em
155754, e, dois anos depois, ter ponderado escolhê-lo para mestre de D. Sebastião55. Aliás,
D. Juan de Borja, numa carta a Filipe II, em 1572, atesta que “Fray Luis de Granada es
persona de quien la Reina hace mucha cuenta por su mucha virtud y letras. Escribe
siempre cosas muy provechosas”56. Assim, compreende-se que, depois da morte da rainha
em fevereiro de 1578, Frei Luís de Granada tenha sido escolhido para predicar nas
exéquias que se celebraram em Belém57.
Relativamente a Frei Heitor Pinto, parente de Holanda, professou na Ordem de S.
Jerónimo, entrando no Convento de Santa Maria de Belém em 1543. Sabe-se que terá
passado pela Universidade de Coimbra por volta dos mesmos anos que Jorge Fernandes,
tendo lá estado na década de 50 a estudar Teologia e, em 1575, como Lente da cadeira de
Escritura58. As informações de que dispomos sobre a sua convivência com a rainha são
mais escassas, mas é bem conhecida a estreita ligação de D. Catarina aos hieronimitas,
especialmente aos do mosteiro dos Jerónimos, que a consideraram a verdadeira fundadora
da sua casa conventual, logo a seguir a D. Manuel59.
Ora, os laços da rainha com monges daquele convento intensificaram-se a partir
de 1550, quando Frei Miguel de Valença lá residia e era Prior e Provincial da Ordem,
bem como confessor e orientador espiritual de D. Catarina. Foi neste âmbito que a rainha
certamente conheceu Frei Heitor Pinto e com ele pôde conviver, sendo que nesse mesmo
ano o monge publicou a segunda parte da Imagem da Vida Cristã. A monarca confessou
mesmo o apreço que tinha pelos sermões proferidos por este hieronimita, que entre 1571
e 1573 viria a ser Provincial da Ordem60.
No que concerne a Francisco de Holanda, o essencial já foi referido no capítulo
anterior, contudo, parece ser relevante enquadrá-lo aqui, uma vez que esteve ao serviço
53 Segunda parte del libro llamado Guia de peccadores en la qual se trata de tres muy principales medios
con que se alcança la diuina gracia que son oracion, confession y comunion ; Va entretexido aqui vn vita
Christi muy deuoto y un piadoso exercicio en la consideracion delos beneficios diuinos, por el reuerendo
padre F. Luys de Granada Prouincial dela orden de S. Domingos en la Prouincia de Portugal. Lisboa: en
casa de Ioannes Blauio de Colonia, 1557 (BNL Res-3243-p). Cf. Rodrigues (1988: 565). 54 Rodrigues (1988: 566-567). 55 Ibid., 570-571. 56 Apud Rodrigues (1988: 578). 57 Ibid., 578. 58 Machado (1966a: 427) 59 Buescu (2007: 393-394); Deswarte-Rosa (1992: 42-43). 60 Deswarte-Rosa (1992: 42-44).
29
de D. Catarina como artista-cortesão num período contemporâneo do nosso poeta61.
Parece ter sido a rainha a “[…] grande protetora da família Holanda e único amparo de
Francisco após os falecimentos sucessivos do Infante D. Luís (1555) e do Rei D. João III
(1557)”62. Aliás, é certo que, ainda em vida do rei, a rainha já manteria contacto com o
artista a quem pediu para realizar diversos retratos63, além de que haveria naturalmente
“[…] uma circulação interna (apesar de limitada) no meio cortesão, e não uma posição
estanque, permanente, na Casa da rainha, como se se conservasse à parte do ambiente
letrado da corte de D. João III”64 e vice-versa.
É importante frisar que D. Catarina não só se fez rodear de escritores e artistas de
prestígio, como também investiu na formação de intelectuais, tornando-se mecenas de um
conjunto de subsidiados65 em Portugal e na Europa. Este terá sido o caso de Jorge
Fernandes, estudante na Universidade de Coimbra enquanto prestava serviços para a corte
da rainha, mas também de um pintor, João Baptista, que foi seu porteiro de capela, em
1559, e no ano seguinte porteiro da sua casa. Pouco se conhece sobre a sua vida e sobre
a sua obra, mas sabe-se que terá sido enviado, ainda em 1560, a Roma, a mando da rainha,
para estudar e se aperfeiçoar na arte da pintura66.
Também pela Europa andou outro protegido da rainha, Frei Afonso de Ferreira,
que esteve na Universidade de Paris durante o ano de 1558 e contava com uma pensão de
vinte cruzados67. Em Portugal, além de Jorge Fernandes, sabe-se que passaram por
Coimbra outros dois alunos subsidiados a cargo da monarca, na década de 50: Afonso de
Guimarães e D. Diogo de Alarcão. O primeiro, filho do Doutor Diogo Barbosa,
frequentou a universidade, pelo menos, nos anos de 1552 e 1554, auferindo uma pensão
de oito mil réis68. Do segundo, de longe mais protegido por D. Catarina, sabemos, com
certeza, que lá esteve a fazer os seus estudos de 1553 a 1556. No que respeita a D. Diogo
de Alarcão, não se conservam apenas os registos de pagamento da sua pensão de vinte
61 Jordan (2012: 199). 62 Deswarte-Rosa (1992: 44). 63 Nomeadamente o retrato perdido de D. João III para a princesa D. Maria; Nossa Senhora de Belém, que
retrata a família real e no verso a Descida de Cristo ao Limbo, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga; um
retrato da rainha para D. Maria de Hungria; e um retrato de D. Sebastião para D. Joana, sua mãe. Cf.
Deswarte (1986: 15). 64 Monteiro (2018: 90). 65 Eles ocupavam cargos no organograma palaciano e eram pagos por eles. A Rainha pagava ainda os custos
da sua educação universitária. 66 Cf. Serrão (2016: 71); Serrão (2004: 49-50). 67 Brandão (1937: 204-205). 68 Ibid., 216-217; 220-221.
30
mil e, posteriormente, de quarenta mil réis69, mas também a correspondência da rainha
com importantes personalidades da universidade a respeito deste seu protegido. Assim,
há registo de, em 1553, D. Catarina pedir ao Doutor Paio Rodrigues de Vilarinho que
assegurasse o bem-estar do recém-chegado estudante e que tratasse de pedir a outro
professor, Doutor Manuel de Pina, o favor de dar a D. Diogo duas lições extra todos os
dias70. Três anos mais tarde, foi a vez do Doutor Afonso do Prado enviar uma certidão
em que confirmava que D. Diogo de Alarcão se encontrava a frequentar o curso de
Teologia71.
Além do grupo de subsidiados que estavam sob a alçada da rainha, há ainda um
conjunto de autores, dos quais de alguns pouco se sabe, que foram chamados por D.
Catarina no auge da sua formação, ou depois de terem dado provas da sua erudição, para
integrar funções na sua corte, como é o caso de Frei Atanásio Sanches, D. Frei Baltazar
Limpo, Frei Duarte Álvares, Frei Tomás da Costa e Frei Tomás de Sousa.
Quanto a Frei Atanásio Sanches, moço fidalgo educado na corte de D. João III,
era filho do afamado poeta latino Pedro Sanches e neto de Luís Sanches, castelhano que
veio para Portugal no séquito de D. Catarina. O poeta professou na Ordem da Santíssima
Trindade e estudou ciências escolásticas em Coimbra, onde o seu talento de orador ficou
tão célebre que foi escolhido para ser pregador da rainha72. A partir dos dados fornecidos
por Barbosa Machado, pouco se sabe sobre a sua obra, ainda assim, o biógrafo afirma que
Atanásio “foy insigne Poeta Latino, e neste dote sahio muito semelhante ao seu Pay, de
cuja arte deo multiplicados argumentos nas composiçoens que fez em louvor dos
Princepes deste Reyno, e de seu Pay Pedro Sanches”73.
D. Frei Baltazar Limpo, nascido em Moura, em 1478, foi carmelita e doutorou-se
em Teologia na Universidade de Salamanca. De tal forma se distinguiu entre os demais,
que, ao regressar ao reino nos primeiros anos de governação de D. João III, lhe foi
atribuída a cadeira de Prima do curso de Teologia, na Universidade de Lisboa. Estas
funções desempenhou-as entre 1521 e 1530, tendo sido Provincial da Ordem do Carmo
de 1523 a 1533. Foi por volta destas datas que D. Catarina o designou seu confessor, mas,
da relação entre os dois, nada mais sabemos. Depois disso, D. Baltazar ficou conhecido
69 Ibid., 217-219; 221-222. 70 Ibid., 135. 71 Ibid., 223. 72 Machado (1965: 436). 73 Ibid., 437.
31
por ter sido nomeado pelo Papa Paulo III para desempenhar o cargo de bispo do Porto,
desde 1536, e por ter sido escolhido por D. João III para estar presente no Concílio de
Trento de 1546 a 1549. Terá redigido as Constituiçoens Synodaes do Bispado do Porto,
os Estatutos do Collegio de Coimbra, os Estatutos do Noviciado do Convento de Lisboa
e um Missale Bracharense74.
Frei Duarte Álvares, natural de Vila Viçosa, foi teólogo no Convento de
Salamanca, onde vestiu o hábito como eremita de Santo Agostinho. Em 1543, devido ao
seu já eminente talento, o Geral Frei Jerónimo Seripando mandou-o para o Convento de
Paris ensinar Teologia, onde foi regente dos estudos por treze anos. Doutorou-se na
Universidade de Paris e depois tornou-se pregador, ficando conhecido pelas suas notáveis
qualidades oratórias. Distinguiu-se ao serviço da rainha D. Leonor de França, que o
estimava e privava com ele, enviando-o, em 1550, como embaixador a Carlos V. É então,
enquanto Vigário Geral das Províncias de França, que regressa a Portugal e a sua fama
chega ao conhecimento de D. Catarina. A rainha, sabendo-o de grande cultura, elegeu-o
seu confessor no ano de 1560. Da sua obra, Barbosa Machado refere sumariamente que
escreveu vários tratados teológicos75.
No que se refere a Frei Tomás da Costa, sabe-se que foi dominicano e professou
a sua fé no Convento da Serra de Almeirim. Destacou-se nas aulas pela extraordinária
compreensão dos mistérios teológicos, assim como pelos dotes de orador, mas nunca quis
aceitar o grau de Mestre, por considerar que estaria a ser vanglorioso. Certamente por
estas suas qualidades, foi eleito diretor espiritual da rainha e, em 1570, no ano da sua
morte, deveria ainda estar próximo da corte, uma vez que o seu estado de saúde
enfraqueceu enquanto pregava na capela real. Escreveu um tratado, que acabou por
desaparecer, intitulado Tropi insignes veteris, & novi Testamenti, ejusdemque phrazes76.
Por último, Frei Tomás de Sousa, natural de Ponte da Barca, professou também
ele na Ordem de S. Domingos no Real Convento de Lisboa, em 1548. Por ali se terá saído
tão bem nas ciências escolásticas e na compreensão das Sagradas Escrituras, que, sabendo
D. Catarina do seu talento e prudência, o chamou para seu diretor espiritual, já durante a
governação de D. Sebastião. Durante a estadia na corte, sabe-se que ficou conhecido pela
sua acérrima crítica dos vícios que por ali proliferavam e que terá convivido com o seu
74 Ibid., 453-454; Moreno (2002: 11). 75 Machado (1965: 727). 76 Machado (1966b: 743-744).
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conterrâneo Diogo Bernardes, que lhe escreveu uma carta, publicada na sua obra O
Lima77. Frei Tomás escreveu Commentaria in Prophetas Oseam, & Joelem78.
Além deste elenco de doutos escritores que se sabe terem orbitado em torno da
rainha, há ainda a destacar a presença de três eruditas mulheres que faziam parte da corte
de D. Catarina e que confirmam a crescente importância dada à instrução feminina no
mundo áulico: Joanna Vaz, Luísa Sigeia e Paula Vicente.
As latinas, como eram chamadas, todas elas versadas, pelo menos, no latim e no
grego, faziam parte da casa da rainha e foram destacadas para participarem na cuidada
educação que D. Catarina quis dar à filha, futura princesa das Astúrias, D. Maria79, que
morreu precocemente em 1545, assim como fizeram parte da instrução da irmã do rei, a
infanta D. Maria de Portugal80. A mais velha, Joanna Vaz, era natural de Coimbra e parece
ter sido uma autodidata, a julgar pelo que descreve Rodrigo Sanches numa carta a Baltasar
de Teive: “Para não falar da erudição admirável, que uma rapariga de tenros anos adquiriu
entre mestres ‘mudos’, como chamam aos livros, e fora do convívio dos homens
doutos”81. Além do apreço que a rainha lhe tinha82, ficou imortalizada pelos elogios dos
seus contemporâneos Aires Barbosa, Luís Teixeira, André de Resende e Clenardo83.
Como afirma Carolina Michaëlis de Vasconcelos, se “Joanna foi a estrella, o
Vesper da manhã, Luisa [foi] o sol glorioso do humanismo português”84. De facto, Luísa
Sigeia alcançou grande prestígio ao serviço da corte, primeiro enquanto crescia na Casa
de Bragança, em Vila Viçosa, e, depois, mudando-se para Lisboa juntamente com o
séquito que acompanhava D. Isabel, filha de D. Jaime, quando casou com o infante D.
Duarte, em 153785. Luísa veio com a sua irmã Ângela e, sabendo a rainha da afamada
erudição das duas, convidou-as a mudarem-se para o Paço da Ribeira. Sabemos que Luísa
terá sido transferida definitivamente, pelo menos, em 1543, ano em que há registo do
primeiro vencimento86. Mas a sua notoriedade alcançaria o seu apogeu três anos mais
tarde, quando enviou ao Papa Paulo III uma carta escrita em cinco línguas, no mesmo ano
77 Carta X “Ao P. Fr. Thomaz de Sousa, achandose entre Douro a Minho”. 78 Machado (1966b: 750). 79 Jordan (2012: 137). 80 Cf. Vasconcelos (1902) e Pinto (1996), Resende (2019: 15). 81 Tradução de Ramalho (1969: 347-348). 82 Vasconcelos (1902: 37). 83 Pereira (1995: 67). 84 Vasconcelos (1902: 38). 85 Monteiro (2018: 83). 86 Ibid., 85.
33
em que passou a servir também a casa da infanta D. Maria, filha de D. Manuel, enquanto
sua precetora. Do que escreveu, além da correspondência latina que se conserva, sabemos
que foi autora do poema intitulado Syntra, redigido entre 1545 e 1546, e do diálogo
Duarum virginum colloquium de vita aulica et privata, terminado em 1552, que terá sido
escrito na biblioteca da infanta, com recurso aos seus livros. Em 1555, Luísa saiu da corte
portuguesa e foi viver com o marido para Burgos87.
De Paula Vicente, filha do célebre dramaturgo Gil Vicente, não dispomos hoje de
tanta informação quanto desejaríamos. Na corte de D. Catarina, Paula aparece inscrita
como tangedora no rol de moradores88 e, de facto, é a tocar instrumentos ou a improvisar
textos teatrais que ela é referida nos serões, ao lado de Ângela Sigeia89. Em 1543, no rol
de moradias da infanta D. Maria, Paula é referida como dama de câmara90 e pensa-se que
terá sido admitida ao serviço da infanta aquando da morte do seu pai91. Posteriormente,
em 1561, D. Catarina concedeu-lhe o privilégio de poder imprimir e vender as obras do
seu pai, mas Paula não o fez, tendo passado o encargo para o irmão Luís no ano seguinte92.
De resto, há ainda a notícia de que terá composto uma gramática inglesa e outra
holandesa, apesar de não se terem conservado até hoje e das dúvidas de alguns estudiosos
em relação a essa informação93.
Ora, a vida e a criação poética de Jorge Fernandes remetem para uma constelação
de artistas e letrados que gravitaram, na corte, em torno de uma soberana letrada. Alguns
dos temas das suas composições obedecem a temáticas transversais aos poetas e artistas
desta corte: a experiência do sofrimento pela ausência do objeto amado, os enganos do
mundo e a fugacidade da alegria, ou a crítica aos vícios e à corrupção moral da corte que
levavam o homem a ambicionar uma vida solitária, onde se pudesse dedicar ao estudo e
à ascese. Além disso, os dedicatários de algumas composições de Fernandes remetem
para o seu contexto cultural cortesão, como é o caso da já referida elegia escrita pela
morte de Diogo de Paiva Andrade e da “Elegia consolatória á Rainha D. Catherina em a
morte da Princeza D. Joanna Mãy del Rey D. Sebastião”94. O teor de ambas poderia
87 Cf. Monteiro (2018: 78-121); Pereira (1995). 88 Vasconcelos (1902: 43). 89 Pinto (1996: 23). 90 Ibid., 120. 91 Vasconcelos (1902: 43). 92 Pinto (1996: 152). 93 De facto, Vasconcelos (1902: 43) refere-se a esta questão como se de uma lenda se tratasse, descartando
complemente a hipótese. Veja-se também Pinto (1996: 153). 94 Machado (1966b: 520).
34
fornecer mais dados acerca da vivência deste frade junto da corte, contudo, não tivemos
acesso ao conteúdo de cada uma destas elegias95. Resta-nos, ainda assim, a certeza de que
Jorge Fernandes estaria efetivamente ligado à vida cortesã que circundava a monarca.
Em suma, D. Catarina foi uma das maiores colecionadoras de arte do seu século,
mas também uma mecenas de poetas. A par do seu marido, percebeu a importância do
ensino das línguas clássicas e das humanidades, talvez pela educação que ela própria
recebeu, e deu continuidade à tradição dos estudos femininos, comum às cortes
peninsulares, desde o século XV. A comprová-lo temos documentos que dão conta de
encomendas de livros, a notícia de obras que figuravam na sua biblioteca e a índole da
educação que planeou para a filha. De igual modo, constituem testemunhos disso mesmo
as dedicatórias de obras de autores seus contemporâneos, o facto de, inclusivamente, ter
sido ela a custear diversas obras, e, claro, a memória daqueles que estiveram ao seu
serviço e que ela própria chamou para a sua corte. Por tudo isto, parece-nos possível
assegurar, como afirma Senos96, que a partir do “[…] reinado de D. João III o lado
feminino do palácio ganha uma importância que parece não ter tido em tempos anteriores,
e os aposentos da rainha são frequentemente palco de acontecimentos” e espaço de
estímulo para diversas expressões de cultura.
95 Em relação à primeira, por não se conhecer qualquer fonte, e à segunda, por constar apenas de uma
coleção privada à qual não tivemos acesso. 96 Senos (2002: 121-122).
35
3. Jorge Fernandes e os studia humanitatis: a sua educação
[…] Con mi trabajo he sacado lo que he escrito, assi de mis antiguos estudios (que
desde mi ninez emplee en todo genero de letras humanas y diuinas) como de la lecion de
los Santos. – Jorge Fernandes1
A obra conservada deste poeta de contexto áulico promove a indagação sobre a
génese e as características da sua educação, assunto assaz pertinente para a reconstituição
da qualidade da cultura promovida no reino por D. Catarina. Contudo, a escassez de
informações acerca da sua vida estudantil dificulta o processo de delimitação de todos os
locais onde terá estudado, dos professores que o terão ensinado e das matérias que terá
aprofundado. Assim, partindo da relação que os seus poemas estabelecem com a literatura
clássica, orientámos a nossa investigação para o papel dos autores clássicos na sua
formação, nomeadamente Horácio, a par de outros autores antigos, em particular
Vergílio2. Não cabe, porém, na presente investigação, o estudo específico da parte
religiosa da obra do nosso autor e, em consequência, da sua formação teológica, assim
como do seu conhecimento das autoridades relativas a esta matéria.
Como referido no capítulo 1.1, antes de ser enviado para a Universidade pela
rainha, Jorge Fernandes cresceu na corte, tendo tido acesso a uma educação que se afigura
que fosse promissora, tendo em conta os diversos estudos feitos até hoje no sentido de
indagar o modo como funcionava o ensino em contexto palaciano. Tarrío, na análise que
fez à educação de João Rodrigues de Sá de Meneses3, delineou um conjunto de autores
que certamente terão feito parte da educação ministrada na corte de D. Manuel I. Entre
os vultos clássicos mencionados estão Catão, Cícero, Tito Lívio, Tibulo, Catulo, Ovídio,
Plínio, Vergílio, Horácio e Terêncio4. Tanto na corte de D. Manuel I, como na de D.
Catarina, a génese cortesã desta educação humanística era importante e não colidia com
1 Cruz (1612: fl.4r). 2 A alusão a motivos clássicos que remetem para a obra destes dois autores está patente no poema “Quando
do mundo novo a gente nova”, assim como na tradução da ode III.24 de Horácio, cf. Spaggiari (2018: 654-
661). 3 Tarrío (2001a: 33-212). O capítulo «La formación de un ‘poeta menor’: João Rodrigues de Sá de
Meneses» trata especificamente esta questão. 4 Além da monografia citada na nota anterior, veja-se também a este respeito Tarrío (2005). Neste estudo,
a autora sugere uma lista de autores e de obras que se reconhecem ativamente no tratado De Platano,
concluído em 1527 por J. R. de Sá de Meneses.
36
a vertente universitária. Aliás, Sá de Meneses termina a sua obra De Platano com o louvor
à reforma da Universidade feita por D. João III5.
Ainda em relação aos autores estudados, os inventários de algumas bibliotecas
são bastante esclarecedores a este nível, ajudando a compreender o ambiente cultural em
que nasce e cresce Fernandes. Veja-se, por exemplo, o registo das obras que se
encontravam na biblioteca de D. Jorge da Costa, prelado português que viajou para Itália
diversas vezes e que foi um dos impulsionadores da imprensa em Portugal. Este
inventário, que data de 1612, inclui “las Noctes Atticae de Aulo Gelio, las Epistulae
Familiares de Cicéron entre otras, las obras de Plauto, Plinio el Viejo, Suetonio, Terencio,
Virgilio, Horacio, Estacio, Claudiano, Lucano y Marcial. Se trata de editiones impresas
en Bolonia, Venecia, Roma y Milán desde el año 1467”6. Acresce a isto que um conjunto
de exemplares de edições humanísticas de autores clássicos, com sinais de terem
circulado na corte de D. João II e D. Manuel I, está ainda patente no espólio da Biblioteca
Nacional de Portugal7. Algumas destas obras, por exemplo de Ovídio, foram usadas para
ensinar latim ao príncipe e futuro rei D. João III8.
Contemporâneo à formação de Fernandes é o inventário do património de D.
Teodósio I, duque de Bragança, realizado em 1563, cujo espólio bibliográfico deixa
perceber que foi “sem dúvida a maior biblioteca portuguesa do século XVI, depois da
biblioteca “romana” de Aquiles Estaço”9. A análise deste acervo, feito por Buescu10,
permite-nos perceber a variedade e quantidade de autores clássicos que estavam
representados na sua biblioteca, a par das demais obras de caráter espiritual.
No que respeita ao ensino universitário do poeta em estudo, como dissemos
anteriormente, encontrámos apenas um registo que remete inequivocamente para os
estudos de Jorge Fernandes na cidade de Coimbra, datado de 11 de maio de 155211. A
alusão posterior à permanência de Fernandes nesta cidade, feita num documento de
157212, em que a rainha pede que lhe enviem 26.000 réis para seu mantimento, não
5 Ibid. 6 Tarrío (2001a:125); Tarrío (2015: 26). 7 Sobre este espólio cf. Tarrío (2015). 8 Ibid., 30, 34. Tarrío (2001a: 43). 9 Pereira (1995: 846) apud Buescu (2016: 47). 10 Buescu (2016). 11 “Mandado da rainha D. Catarina para Álvaro Lopes…”, 1552, ANTT, CC, I, mç. 88, nº23. 12 “Mandado da rainha para Afonso de Freitas…”, 1572, ANTT, CC, II, mç. 248, nº49.
37
relaciona a estadia do poeta na cidade coimbrã com os seus estudos, porém, não podemos
descartar essa hipótese.
Esses anos foram de intenso dinamismo. Antes de mais, a ação joanina procurou
complementar o ensino universitário com uma rede de colégios que servia para preparar,
complementar e/ou prolongar as aulas da universidade13, além de ter alargado, renovado
e enriquecido o corpo docente, trazendo à universidade e aos colégios um conjunto de
prestigiados professores nacionais e estrangeiros. Destacavam-se os nomes do alemão
Vicente Fabrício, mestre de Grego, do sevilhano Juan Fernández, que ensinava Retórica,
e do italiano Eusébio, mestre de Hebraico. Em Teologia, ressaltava a contratação dos
Doutores Afonso do Prado, Marcos Romeiro, Martinho de Ledesma e Paio Rodrigues
Vilarinho vindos, respetivamente, da Universidade de Alcalá, Paris, Salamanca e Paris.
Em Direito Canónico sobressaía o Doutor Martín de Azpilcueta, que dera aulas em
Toulouse, Alcalá e Salamanca, além de ser teólogo e jurista. Em Direito Civil, eram várias
as contratações, desde o italiano Fábio Arcas de Narni, vindo da Baviera, aos portugueses
Manuel da Costa, Heitor Rodrigues e Aires Pinhel, que lecionaram também na
Universidade de Salamanca. Na Faculdade de Medicina, distinguiam-se os nomes dos
espanhóis Rodrigo de Reinoso e Francisco Franco, assim como o do português António
Luís14.
A reestruturação da universidade também abrangeu os planos de estudos e, neste
domínio, teve o objetivo de enriquecê-los e torná-los mais úteis na preparação dos alunos
para a sua futura especialidade. No que respeita às línguas, incorporou-se, no ensino em
Santa Cruz, as lições de Grego e de Hebraico15, além do já habitual latim em que as aulas
eram ministradas, tanto no ensino preparatório, como nas Faculdades maiores16. As
cadeiras de Retórica e de Poesia faziam parte do plano dos primeiros estudos
preparatórios17, que incluíam também a Gramática e a Matemática. Além disso, os
estudos humanísticos, de frequência obrigatória para os candidatos às Faculdades de
13 Dias (1969: 605); Carvalho (2001: 227-230). 14 Cf. Ramalho (1997: 696-697) e Dias (1969: 605-608). 15 Dias (1969: 502). Sobre a introdução do ensino de Grego no meio académico, em Portugal, veja-se
Resende (2019). 16 Ibid., 657. 17 Ibid., 506-507. No que respeita à disciplina intitulada ‘Oratória’ ou ‘Retórica’, não encontrámos nenhum
estudo sobre a sua incorporação na Universidade de Lisboa antes da transferência, nem sobre a sua inserção
no curriculum. Contudo, Martim de Figueiredo é referido como lente de Oratória no Estudo Geral de Lisboa
por Fernandes (2013: 505-509).
38
Medicina e Teologia, integravam um ciclo de estudos filosóficos composto pela Lógica,
a Física, a Ética e a Metafísica18.
Se, por um lado, se destacava a reestruturação e o enriquecimento das matérias de
ensino e do corpo docente levados a cabo por D. João III, que fizeram de Coimbra um
centro universitário vanguardista, por outro, teve lugar um conturbado momento de
perseguição inquisitorial de alguns professores19, seguindo-se o processo de instalação do
monopólio do ensino em Portugal por parte dos jesuítas20. A este respeito, é importante
recordar as reservas de D. Catarina em relação ao ensino jesuítico21 que certamente terão
influenciado a educação de Fernandes, ainda que não sejamos capazes de perceber até
que ponto. Antes de mais, o franciscano foi moço de capela da rainha. Em D. Catarina,
Jorge Fernandes reconhecia, por isso, o garante do seu sustento e o baluarte da sua
educação, portanto, é de esperar que a sua fidelidade o mantivesse ao lado da mecenas
que não assistia com agrado à progressiva monopolização do ensino por parte da
Companhia de Jesus.
A reformulação dos programas lecionados em Coimbra veio afirmar a
centralidade dos autores gregos e latinos ensinados na universidade, quer através da
Gramática, quer da Retórica ou mesmo da Poesia – no fundo, os curricula foram ao
encontro da necessidade de os alunos terem uma boa preparação nos studia humanitatis22.
O cerne da educação passava por estes autores,
os antecedentes históricos da cultura ocidental, cuja língua podia ser ainda o fator de um
reencontro universal. Estudar os clássicos era, pois, recuperar, acima das ruturas, uma
unidade cultural e linguística fundamental para a formação da consciência histórica. O
encontro com os clássicos dava à Europa a consciência de um passado comum e essa
missão caberia ao humanista.23
Embora seja difícil traçar um plano definitivo das matérias lecionadas, uma vez
que os programas foram mudando ao longo dos anos, tentaremos fazer um esboço dos
18 Ibid., 511. 19 Alguns dos professores perseguidos pelo Santo Ofício foram Diogo de Teive, João da Costa e George
Buchanan. Marcocci (2004: 260-263), Carvalho (2001: 257-261). 20 Ibid., 281-330. 21 Cf. supra capítulo I.1 Jorge Fernandes: para uma biografia. 22 Miranda, M. (2009: 20-21). 23 Ibid., 21.
39
autores clássicos que eram alvo de estudo na Universidade de Coimbra antes e após o
estabelecimento do ensino jesuítico.
A partir de 1547, o curso de Latinidade, compreendido nos estudos preparatórios
ministrados no Colégio das Artes, era lecionado em dez classes24. Na décima classe, a de
nível elementar, os estudantes aprendiam as bases do latim que lhes permitiriam ler e
escrever. Após conseguirem o aproveitamento desejado para aquela classe, passavam
para a seguinte, a nona classe, na qual se liam sentenças retiradas dos Disticha Catonis.
Nas classes oitava, sétima e sexta, os alunos estudavam as epístolas de Cícero e as
comédias de Terêncio que permitiam, além da análise do conteúdo, a continuidade do
treino da análise morfológica e sintática da língua. Na quinta classe, introduzia-se a arte
versificatória e a respetiva literatura que era apresentada por meio de poemas de Ovídio25.
Na quarta e na terceira classes, consolidava-se o estudo destes últimos três autores e
começava a fazer-se um estudo mais sistemático da Retórica26. Na classe que se seguia,
a segunda, introduzia-se Lucano ao conjunto de autores que tinham vindo a ser estudados
e que continuariam até à primeira classe. Nesse último nível, a Retórica desempenhava
um papel central e eram incluídos, no programa, autores como Suetónio, Tito Lívio,
Pompónio Mela, Eutrópio, Séneca e Justino.
Como dissemos, é plausível presumir que o nosso poeta se encontrava a estudar
em Coimbra quando, em 1555, o Colégio das Artes passou a ser dirigido pela Companhia
de Jesus, o que significou a institucionalização, em Portugal, de um curriculum de estudos
humanísticos comum à Europa, que ficou fixado na Ratio Studiorum27. Ainda que esta
alteração “não tenha significado a decadência dos estudos em Coimbra, os jesuítas
privilegiavam um tipo de ensino marcado pela sistematização do acesso aos autores
antigos, […] e, apesar da evidente continuidade quanto às inovações filológicas das
produções humanísticas, constituía uma significativa mudança em relação ao período
antecedente”28. Isto supõe que o decurso da educação universitária de Jorge Fernandes se
viu marcado pela viragem mais decisiva da história da universidade portuguesa, mas
24 A descrição dos programas tem como base os estudos de Dias (1969: 552-553) e Carvalho (2001: 253-
254). 25 Dias (1969: 553) afirma que se dariam também poemas de Vergílio, Lucano, Juvenal, Pérsio e Horácio,
contudo, esta informação não é corroborada por autores mais recentes como Carvalho (2001: 253). 26 O momento em que começaria o estudo da Retórica é apontado por Dias (1969: 553) como sendo na
quarta classe, de modo diferente Carvalho (2001: 253) assinala-o na terceira. 27 Miranda, M. (2009: 25). 28 Resende (2019: 17).
40
também significa que os primeiros anos da sua educação se realizaram sob os auspícios
do humanismo vanguardista instaurado em Portugal a partir da transferência da
universidade, em 1537.
Tal como acontecia antes de os Jesuítas assumirem o controlo do ensino, os
estudos das línguas – Latim, Grego e Hebraico –, das Humanidades, da Retórica e das
Artes precediam os de Teologia e de Filosofia29. O ensino do latim era, para a Companhia
de Jesus, a base da educação, por isso, os estudantes começavam por ter três classes de
estudos de Gramática que seguiam a De Institutione Grammatica Libri Tres de Manuel
Álvares. Na classe inferior, praticavam as declinações e os géneros, passando para a
classe média, centravam-se nas conjugações e, na superior, o foco passava a ser a
sintaxe30.
A Ratio Studiorum é clara quanto aos autores que deveriam estar incluídos no
programa da classe superior de Gramática de latim:
Quanto às leituras, no primeiro semestre, poder-se-ão dar, de entre os oradores,
as cartas mais importantes de Cícero: Ad Familiares, Ad Atticum, Ad Quintum fratrem;
no segundo semestre, o livro De Amicitia, De Senectute, Paradoxa e outros do género.
Dos poetas, no primeiro semestre, uma seleção de elegias e de epístolas de Ovídio,
adaptadas. No outro semestre, poemas também escolhidos e expurgados, de Catulo, de
Tibulo e de Propércio, e das Éclogas de Vergílio, ou então algum trecho mais fácil de
Vergílio, como a Geórgica IV, ou o canto V e VII da Eneida.31
Inevitavelmente, os textos dos autores clássicos usados no processo de
aprendizagem eram expurgados das palavras, passos ou poemas que os professores da
Companhia de Jesus considerassem serem nocivos à formação moral e intelectual dos
estudantes32. Neste aspeto a Ratio Studiorum é inequívoca quando se afirma que os textos
só podiam ser lidos “desde que estejam expurgados de toda a obscenidade”33.
29 Ibid., 28-29. 30 Carvalho (2001: 334-335). 31 Tradução de Miranda, M. (2009: 218-219). 32 Carvalho (2001: 339). Alguns exemplares de obras usadas para fins académicos, em Portugal, no fim do
século XVI e início do XVII, evidenciam marcas de censura. Veja-se, como exemplo, uma edição das obras
de Horácio, editada em 1576, guardada na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP L. 1344 V.) que apresenta
notas em latim e traduções para português manuscritas, cujo texto está, em parte, expurgado. As marcas de
censura são evidentes também num exemplar das obras de Horácio, editado pela Companhia de Jesus, em
1629, que se destinava especificamente a propósitos académicos (BNP L. 2589 P.). 33 Miranda, M. (2009: 210-211).
41
Depois de o estudante dominar a língua latina, passava, então, às disciplinas de
Humanidades e Retórica, que lhe davam a oportunidade de começar a explorar a poesia
e a prosa, mas também a História, sempre numa perspetiva de conjunto34.
A classe de Humanidades seguia-se à de Gramática e tinha em vista a preparação
dos alunos para a eloquência, assunto que seria desenvolvido com mais pormenor na
disciplina de Retórica35. Para alcançarem os objetivos desta disciplina, os alunos
deveriam conhecer e ser capazes de usar vocabulário latino rico e variado, desenvolver a
sua erudição e ter noções básicas sobre os preceitos da retórica. Para tal, ensinava-se, nas
aulas, as obras de Cícero acerca de filosofia moral e alguns historiadores como César,
Salústio, Tito Lívio e Quinto Cúrcio. De entre os poetas, privilegiava-se Vergílio,
excetuando-se as Éclogas e o canto IV da Eneida, algumas odes de Horácio e poemas de
outros poetas célebres que não são especificados na Ratio Studiorum36. O facto de a obra
de Horácio constar no programa lecionado é um dado significativo para a nossa
investigação, sobre o qual iremos refletir adiante, uma vez que este poeta é fundamental
na obra de Fernandes, dada a utilização dos tópicos horacianos na sua poesia e a tradução
que faz de uma das suas odes.
A disciplina de Retórica era dedicada a formar o indivíduo na eloquência do
discurso através do ensino da arte oratória e poética. No decurso das aulas, o professor
ocupava-se dos discursos de Cícero, da obra Quintiliano, da Retórica e da Poética de
Aristóteles e poderia ainda recorrer a alguns textos dos historiadores e dos poetas mais
importantes37. O compêndio recomendado era da autoria do jesuíta Cipriano Suárez e era
formado pelos De Arte Rhetorica Libri tres ex Aristotele, Cicerone & Quintiliano
praecipue deprompti, publicado em Coimbra no ano de 156238. Assim, os discípulos
recebiam uma preparação que os tornaria capazes de contactar facilmente com os textos
da Antiguidade39.
Dos programas seguidos pelos jesuítas, concluímos que, dos autores por nós
privilegiados neste estudo, a obra de Vergílio era relevante para duas das principais
disciplinas lecionadas, tanto na aprendizagem da língua, como no estudo da literatura. É
34 Carvalho (2001: 338). 35 Miranda, M. (2009: 210-211). 36 Sobre o programa da disciplina de Humanidades, cf. Miranda, M. (2009: 210-217). 37 Ibid., 198-209. 38 Carvalho (2001: 340). 39 Cordeiro (2018: 171).
42
possível inferir também que a sua obra era lida quase na íntegra, excetuando-se,
evidentemente, o texto expurgado.
Relativamente a Horácio, autor com presença significativa, como veremos, na
obra do poeta, os documentos da Universidade de Coimbra referentes ao ensino pré-
jesuítico são silenciosos. Ainda assim, esta não deve ser razão para não considerarmos a
presença das suas obras na fase inicial da educação de Jorge Fernandes. Sabendo que o
franciscano cresceu no meio áulico, é importante aludir ao marcado ascendente horaciano
visível na obra de Francisco de Sá de Miranda40, autor do mesmo círculo de Sá de
Meneses que, como referimos anteriormente, pertencia ao contexto palaciano brevemente
descrito. Neste sentido, poderíamos mencionar ainda o conhecimento que André Falcão
de Resende, António Ferreira, Pêro de Andrade Caminha ou Diogo Bernardes evidenciam
ter tido da obra do venusino41.
Já na fase jesuítica do ensino, embora a Ratio Studiorum só se refira à utilização
de algumas das odes de Horácio na disciplina de Humanidades, outras fontes atestam a
leitura das suas obras, por exemplo, pelos Monumenta Paedagogica Societatis Iesu sabe-
-se que Vergílio e Horácio eram recomendados para a primeira classe, ou seja, para o
nível mais avançado: “In primo gymnasio: Sextus liber Vergilii. – Horatii tertius
Odarum”42, justamente o livro III das Odes, ao qual pertence a composição privilegiada
por Jorge Fernandes para traduzir43. Também num documento compilado por Brandão
em O Colégio das Artes44, ao descrever-se o programa da primeira e segunda classes,
Vergílio e Horácio são citados como autores que deveriam ser estudados. Embora nenhum
dos dois autores conste nas antologias jesuíticas do século XVI, Domingues aponta como
explicação o facto de haver já boas edições a circular em Portugal às quais os docentes
podiam recorrer45. De facto, esta hipótese confirma-se tendo em conta a existência, na
Biblioteca Nacional de Portugal, de exemplares de Horácio impressos nas décadas
anteriores e reutilizados no período jesuítico, de acordo com as marcas de posse e os
40 Sobre o ascendente de Horácio na obra de Sá de Miranda, veja-se Ramalho (1965); Rebelo (1982); Earle
(1985); Franco (2005: 50-52, 63-64); Tarrío (2021a, no prelo). 41 Sobre a presença da obra horaciana nos trabalhos destes poetas, veja-se Ramalho (1965); Ramalho
(1995); Castro (2009); Rebelo (1982); Pereira (1988); Almeida (1989). 42 Lukács (1974: 591). 43 Tema abordado com mais detalhe no capítulo II.2. Da leitura à tradução. 44 Brandão (1933: CCXXXVII, documento CLXIII). 45 Domingues (2002: 338, 441).
43
marginalia, que detêm marcas do seu manuseio por estudantes portugueses46 e
corroboram a leitura de Horácio nas classes mais avançadas.
Assim, embora sejam hoje desconhecidos documentos que proporcionem dados
mais precisos acerca da educação de Jorge Fernandes, é possível perceber que o seu
percurso académico se fez trilhando um curriculum de estudos humanísticos que conferia
aos autores clássicos uma enorme importância, nomeadamente dando-lhe a oportunidade
de contactar com obras que seriam essenciais para a sua faceta lírica.
46 Veja-se, por exemplo, um livro de Horácio, editado em 1604, que pertenceria ao Mestre da primeira
classe (BNP L. 664 A.), ou um exemplar de 1533 com anotações e traduções manuscritas em português
(BNP L.1341 V.). Além disso, como referido anteriormente, a própria Companhia de Jesus editou, em 1629,
a obra de Horácio especificamente para fins académicos (BNP L. 2589 P.).
44
4. Poetas bilingues
Nos últimos anos de vida, Espanha tornou-se para Jorge Fernandes a sua segunda
pátria, a terra que o acolheu numa época de profunda instabilidade. Tal como aconteceu
com este frade, parece ter havido, sobretudo durante a época da monarquia dual, um mais
fluido movimento de escritores portugueses e castelhanos entre os dois países1. A título
de exemplo, podemos referir a estadia de Miguel de Cervantes em Lisboa, entre 1581 e
15832, ou a de Manuel de Galhegos na corte de Madrid, onde foi amigo de Lope da Vega,
e publicou, em 1637, Obras varias al real Palacio del Buen Retiro3.
A proximidade cultural entre os reinos, favorecida pelas circunstâncias políticas,
pode ser corroborada por diversos fatores, entre eles salienta-se a movimentação de
homens eruditos entre cortes, mas também a questão do bilinguismo, da elevada
percentagem de obras castelhanas que circulavam em Portugal ou ainda o caso da ampla
difusão de traduções castelhanas de obras portuguesas em Espanha. As universidades
foram, com certeza, outro polo de proximidade, que favoreceu um intercâmbio cultural e
intelectual entre os dois reinos que, embora já existisse, se intensificou depois da união
dinástica.
No que respeita ao bilinguismo luso-castelhano, Buescu destacou os principais
aspetos a ter em conta ao analisar esta questão na realidade portuguesa dos séculos XV
ao XVII4. Antes de mais, desde D. Manuel que a política matrimonial tendia a aproximar
as duas cortes5, uma vez que as princesas, ao virem para Portugal, se faziam acompanhar
de “séquitos numerosos que traziam modas, maneiras, gostos e também a língua”6.
Naturalmente, os cortesãos portugueses tentavam agradar às rainhas aprendendo
castelhano. Além disso, particularmente no reinado de D. João III, o especial interesse
dos monarcas na reformulação da educação favoreceu a imigração de espanhóis.
Torrejón7 destaca alguns dos nomes mais relevantes de letrados espanhóis que se
1 Cordeiro (2018: 81) dá destaque à deslocação de portugueses para a corte espanhola. 2 Navarrete (1819: 59, I. 60-64). 3 Machado (1966b: 272-273). 4 Cf. Buescu (2004). Saliente-se também o contributo de Cordeiro (2018: 156-168) para o estudo desta
temática. 5 Recorde-se que D. Manuel casou com três princesas espanholas, D. Isabel, D. Maria e D. Leonor; D. João
III casou com D. Catarina de Áustria; e o príncipe D. João casou com D. Joana. Cf. Cordeiro (2018: 157). 6 Buescu (2004: 17). 7 Torrejón (2002: 4).
45
estabeleceram no reino português, integrando-se na vida e na cultura do país, sem terem
necessidade de mudar de idioma sempre que publicavam obras. Assim, destaca-se
Francisco Cano, capelão da rainha, Frei Luís de Granada, Frei Pedro de Alcántara, Martín
de Azpilcueta, já referido a propósito dos novos professores contratados para a
Universidade de Coimbra, e os irmãos Sanches, tios do famoso humanista Brocense –
Pedro e Rodrigo – que se tornaram afamados latinistas, tendo chegado a Portugal no
séquito da rainha D. Catarina8.
Significativa foi também a difusão de obras castelhanas ou traduzidas para
castelhano em Portugal, quer fosse porque o mercado de importação de livros assim o
permitia com rapidez e facilidade, quer fosse pela edição destas obras nas tipografias
portuguesas. Do total de obras impressas em Portugal, Buescu afirma que cerca de 15%
corresponderia a obras em língua castelhana9. De resto, a divulgação das obras de Erasmo
traduzidas para castelhano e de Frei Antonio de Guevara em Portugal constitui um
exemplo disto mesmo, como aponta a autora10. De Erasmo, apenas são conhecidas
edições em castelhano e latim, não se encontrando nenhuma em idioma luso. De Guevara,
franciscano, cuja obra teve ampla difusão na Europa, as traduções em português deste
período são raras. Aliás, a primeira edição feita em Lisboa do Relox de Principes, em
1529, é impressa, em castelhano, a pedido de D. João III11. Ainda neste âmbito, Cordeiro
destaca a importância do teatro enquanto meio de difusão do bilinguismo, isto porque o
teatro espanhol se difundiu em Portugal, naturalmente pela sua qualidade literária e
potencialidade de espetáculo, “mas também porque os próprios autores portugueses
traduziam as suas obras para castelhano, já que por vezes esta era a única forma de verem
as suas peças representadas”12.
No que respeita à disseminação de obras portuguesas em Espanha, o caso da
epopeia de Camões parece ser um bom exemplo do interesse dos espanhóis pela literatura
portuguesa e da forma como esta era difundida. Filipe I de Portugal, grande apreciador
do poeta lusitano, apoiou as primeiras traduções castelhanas de Os Lusíadas, logo após o
início da monarquia dual, vendo nisto uma oportunidade de reforçar os laços políticos e
8 Tarrío (2001a: 42). 9 Buescu (2004: 20-21). Pelos cálculos da investigadora, a percentagem de livros editados em português
seria de 50,8%, em latim de 33,8% e em castelhano de 15,4%, excetuando as peças de legislação avulsa. 10 Ibid., 18-20. 11 Sobre a obra de Guevara em Portugal, veja-se Buescu (1996: 181-187). 12 Cordeiro (2018: 160). A título de exemplo, o autor refere o caso de Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões.
Sobre este tema escreve também Torrejón (2002: 7).
46
culturais entre Espanha e o país recentemente incorporado no seu vasto império13. Assim,
a tradução da obra “terá significado […] duas coisas: sublinhar a vinculação de um
imaginário imperial à ‘nação’ portuguesa; [e] anexar, à língua castelhana, este património
simbólico-cultural”14.
Em 1580, ano da morte de Camões e oito anos passados da editio princeps,
Espanha viu nascer duas traduções da obra vindas de duas das suas faculdades mais
prestigiadas: uma de Benito Caldera em Alcalá, que contava com textos preambulares de
Pedro Laínez e Luis Gálvez de Montalvo; e outra de Luis Gómez de Tapia em Salamanca,
que, entre os diversos panegiristas, tinha textos de Luis de Góngora e Francisco Sánchez
de las Brozas15.
Em 1591, Enrique Garcés publicou a terceira tradução da epopeia em Espanha e,
em 1639, surgiu a primeira tradução castelhana em prosa de Manuel de Faria e Sousa.
Repare-se não só no número significativo de traduções espanholas nos anos imediatos à
morte do poeta, mas também no êxito que estas deverão ter tido a julgar pelos exemplares
conservados16 e pelo facto de, em 1591, Espanha possuir mais edições da epopeia do que
Portugal17.
Importa salientar também que Cervantes terá tido um exemplar da edição de
Benito Caldera na sua biblioteca18, aliás, mais importante do que a posse da tradução da
épica camoniana, é o facto de em Don Quixote de la Mancha se referir que Camões era
lido em português: “Traemos estudiadas dos églogas, una del famoso poeta Garcilaso, y
otra del excelentísimo Camoes, en su misma lengua portuguesa, las cuales hasta agora no
hemos representado”19. Além disso, reforça esta ideia o facto de, no mesmo ano das
primeiras traduções castelhanas, 1580, Fernando de Herrera ter formulado o primeiro
encómio dedicado a Camões, o que significa que terá lido a obra em português, uma vez
que a licença do livro em que viria publicado o encómio – Obras de Garcilaso de la Vega
con anotaciones de Fernando Herrera – é de setembro 157920. Neste sentido, também
13 Dasilva (2014: 197). 14 Serra (2011: 777). 15 Dasilva (2014: 194); Asensio (1974: 304-306); Serra (2011: 774). 16 Asensio (1974: 306). 17 Dasilva (2014: 197). 18 Serra (2011: 775). 19 II, 58. Serra (2011: 779). 20 Ibid.
47
Filipe IV lera Camões em português, tendo mantido exemplares tanto da obra épica, como
das Rimas no acervo da biblioteca da Torre Alta21.
Contudo, como já Alves teve a oportunidade de chamar a atenção22, não foi apenas
Camões que teve êxito em Espanha por estes anos. Para provar que seriam conhecidas,
no país vizinho, outras obras portuguesas às quais, até ao momento, não se deu destaque
neste âmbito, Alves faz alusão a duas traduções castelhanas: a obra Primavera de
Francisco Rodrigues Lobo, por Juan Bautista Morales, e a primeira versão da Castro de
António Ferreira, incluída na obra Primeras Tragedias Españolas, de 157723.
Além das traduções, Alves demonstra que autores como António Ferreira,
Francisco Rodrigues Lobo ou Paulo Gonçalves de Andrada são citados no Teatro de los
Dioses de la Gentilidad de Baltasar de Vitoria24. Não havendo traduções das obras citadas
destes autores para castelhano até à publicação do Teatro de Vitoria25, fica claro que terão
sido lidas em português, tal como já aqui se referiu em relação à obra camoniana.
Depois, o autor analisa a presença de livros portugueses nas coleções privadas de
poesia, em Espanha, nesta época26. Do seu estudo27, conclui que, das bibliotecas
particulares que incluíam livros de poesia, 16,6% possuíam livros portugueses28.
Relativamente àquelas que contavam com livros de teatro, 21,73% dispunham de teatro
português29. Comparativamente com o volume de obras clássicas gregas, o de obras
portuguesas é praticamente idêntico e, em alguns casos, chega mesmo a superá-lo. Além
disso, o autor constata que a presença da poesia portuguesa não se resume a um autor,
mas a vários, existindo apenas um caso em que Camões é o único lusitano representado.
Assim, além deste célebre poeta épico, atesta-se a presença de obras de Francisco
Rodrigues Lobo, Sá de Miranda e Diogo Bernardes, sendo que, relativamente a Camões
e a Rodrigues Lobo, haveria traduções castelhanas, pelo menos, de uma parte das suas
obras, enquanto, no que se refere aos outros dois escritores, as únicas edições tinham sido
21 Ibid., 780. 22 Alves (2014). 23 Ibid., 73-74. 24 Ibid., 70-71. 25 A obra foi publicada em três partes nos anos de 1620, 1623 e 1688, respetivamente. 26 Alves (2014: 71-73). 27 O autor baseia-se nas informações coligidas por José Díez Borque (2010). Literatura (novela, poesia,
teatro) en bibliotecas particulares del Siglo de Oro español (1600-1650). Madrid-Frankfurt-Orlando:
Universidad de Navarra-Iberoamericana-Vervuert. 28 O universo é de 48 bibliotecas. 29 O universo é mais restrito, 23 bibliotecas.
48
impressas em Portugal. Neste âmbito, é ainda preciso ter em conta o caso particular de
autores como Gil Vicente ou Sá de Miranda que, por terem escrito parte da sua obra em
castelhano, tinham o seu lugar no corpus literário da língua castelhana.
Por fim, Alves avalia o papel do poema Sepúlveda e Lianor de Jerónimo
Corte-Real, enquanto intertexto fundamental, em duas peças do século dourado do teatro
espanhol: Escarmientos para el cuerdo de Tirso de Molina e A secreto agravio, secreta
venganza de Don Pedro Calderón de la Barca30. O investigador concluiu, portanto, que a
presença da poesia portuguesa em Espanha, durante o Século de Ouro, era mais vasta do
que se considerava e abrangia diversos autores, além de Camões, que influenciaram a
produção literária daquele país.
Atentemos ainda ao contributo das universidades ibéricas para esta proximidade
cultural, enquanto polos irradiadores de cultura. Por um lado, Salamanca era uma das
universidades prediletas dos portugueses, que perfariam cerca de 12% da matrícula total
universitária31, sobretudo durante a monarquia dual, uma vez que cessaram as taxas que
o reino português cobrava aos seus estudantes, tentando impedi-los de trocarem o ensino
universitário nacional pelo estrangeiro32. Por outro lado, como acima foi explicado, D.
João III recrutou nas universidades espanholas diversos professores para a Universidade
de Coimbra.
Finalmente, é importante recordar que foram vários os portugueses que
escreveram em castelhano, tal como fez Jorge Fernandes, e que o recurso a esta língua,
como afirma Asensio, pressupunha o conhecimento e admiração da literatura espanhola33.
Aliás, a opção de os autores escreverem em castelhano também se prendia com o facto
de esta língua lhes dar acesso a um mercado e a um público muito mais vasto34, o que
leva alguns autores a verem nesta escolha a defesa do próprio lusitanismo e não uma
suposta traição à pátria, dado que era uma forma de dar maior alcance e visibilidade à
literatura produzida pelos portugueses35. Neste contexto, copiosos são os escritores
portugueses que enveredaram por aquele idioma, como nos mostram alguns estudos feitos
30 Alves (2014: 74-78). 31 Dios (2017: 205). 32 Ibid., 210. 33 Asensio (1974: 311). 34 Como afirma Torrejón (2002: 5), “Parallèlement aux traductions, les Portugais sont conscients d’avoir la
possibilité de faire entendre plus largement leur voix en écrivant en castillan”. 35 Esta ideia é defendida por Nepomuceno (2012: 34) que reforça a sua opinião citando Marcia Franco
(1998). “A correspondência entre Sá de Miranda e Jorge Montemayor”, Caligrama, 3, pp. 129-146.
49
sobre o assunto, nomeadamente o de Ferro36, que apresenta um elenco de cerca de vinte
autores que, sendo portugueses, editaram obras nos prelos castelhanos; e de Castro37, que
conclui, precisamente, que durante a monarquia dual o número de autores nesta situação
aumentou38.
Destaquemos, então, alguns destes ilustres poetas. Jerónimo de Corte-Real é um
caso paradigmático, nomeadamente no que diz respeito à obra épica Felicíssima victoria,
de 1578, dedicada a D. Juan de Austria, celebrando a vitória na Batalha de Lepanto, mas
também a outro poema, que o autor, ao morrer, provavelmente não teria terminado39,
intitulado Perdição de el-rei D. Sebastião em África, e das calamidades que se seguiram
a este reino, recentemente editado por Torrejón40. O caso das obras de Corte-Real é
expressivo do ponto de vista da língua escolhida, uma vez que se demonstra que o idioma
não pretendia vincular qualquer tipo de patriotismo, dado que o autor opta pelo castelhano
independentemente de estar a cantar os triunfos de Castela ou de Portugal41.
Jorge de Montemor, embora não tenha presenciado o período da monarquia dual,
é também um bom exemplo. O poeta nasceu nos arredores de Coimbra, por volta de
1520/24, e cedo encontrou a sua oportunidade junto da corte42. Rumou para Castela no
séquito da infanta D. Maria, filha de D. Catarina, aquando do seu enlace com o príncipe
D. Filipe, filho de Carlos V. Montemor partiu enquanto cantor, mas em 1552 voltou à
pátria, tendo posteriormente regressado à corte espanhola na comitiva que acompanhava
D. Joana, após a morte do príncipe D. João. Da obra deste autor, que praticamente só
escreveu em castelhano, destaca-se, principalmente, o seu romance pastoril Los siete
libros de la Diana, publicado em Valência, sem data de impressão43.
36 Ferro (2014: 89-93). 37 Castro (2002). 38 Ibid., 16-18. 39 Torrejón (2019: 73). 40 Ibid. 41 Ibid., 80. O autor afirma a este respeito “Escolher uma língua alheia para cantar nada menos que a história
nacional vem a ser um modo de declarar, desde logo, que a fronteira já não era o que tinha sido”. 42 Sobre a vida na corte espanhola e a obra de Jorge de Montemor, ver Nepomuceno (2012). 43 Nepomuceno (2012: 37).
50
Poderíamos ainda juntar a este elenco vários outros nomes de poetas portugueses,
como é o caso de Manuel de Galhegos, sobre quem já falámos anteriormente44, Vasco
Mouzinho de Quevedo Castelo Branco45, André Falcão de Resende46 ou Duarte Dias47.
O itinerário luso-espanhol de Fernandes situa-nos, portanto, perante um panorama
cultural bilingue de profícuo intercâmbio. O seu percurso não foi, pois, um caso isolado,
mas sim fruto dos tempos. Neste sentido, tentámos destacar a forte movimentação
peninsular de homens, livros e saberes que se estabeleceu entre os reinos, uma aliança
cultural muito mais forte e duradoura do que a mera união política. Como já Torrejón
advertiu,
tout un chapitre de l’histoire de la littérature espagnole a été écrit au Portugal; tout un
chapitre de l’histoire de la littérature portugaise s’est écrit en espagnol. Et cependant, ces
deux histoires persistent à ignorer les auteurs qui habitent dans cette région frontalière si
peu confortable48.
O presente estudo procura oferecer um novo contributo para um assunto que ainda
demanda maior atenção.
44 Referido também por Serra (2011: 784). 45 Cf. Machado (1966b: 777). Estes poetas são também referidos por Torrejón (2002: 7). 46 Cf. Machado (1965: 146-147). 47 Cf. Ibid., 730. 48 Torrejón (2002: 3).
52
II
Jorge Fernandes, leitor de Horácio
A obra conservada de Jorge Fernandes e a sua transmissão
A vertente horaciana do nosso autor encontra-se no conjunto de uma obra1
dividida tematicamente em quatro grupos, a saber, os livros de cariz religioso, os poemas
de temática amorosa, as composições sobre motivos áulicos e uma tradução de Horácio.
No que diz respeito às composições de cariz religioso, destacam-se três obras, das
quais se conservam ainda hoje exemplares do Centiloquio de encomios de los santos,
sacados de los evangelios, que se cantan en sus festividades, obra publicada em 1612, em
Valladolid; de Tardes de Quaresma, impressa em 1614, em Lisboa, com sermões para o
tempo quaresmal e, por fim, uma épica de assunto hagiográfico intitulada Encomio de S.
Vicente e de suas translações, composta por ocasião de uma procissão que houve em
Lisboa, em 1614, celebrando o padroeiro da cidade2. Esta obra foi nesse mesmo ano
impressa, numa edição que contemplava unicamente este texto, por Jorge Rodrigues3 e,
posteriormente, inserida na coletânea de textos Vida, martírio, e última trasladação do
mártir S. Vicente, em 1620, com o título Oitavas ao Invicto Mártir S. Vicente. Quanto a
esta última composição de Fernandes, é ainda importante salientar que Barbosa Machado4
faz referência a um prémio recebido pelo autor dada a excelência das suas poesias em
verso latino, por ocasião dessa mesma festividade que celebrava o mártir, em Lisboa.
Contudo, não chegaram até nós essas composições em latim, o que nos sugere ou que
Barbosa Machado pressupôs que a obra era em latim sem ter tido acesso direto ao
material, ou que houve também uma versão em latim sobre este mesmo tema, da qual não
temos hoje registo.
1 Cf. anexo 2. 2 Esta obra foi referenciada por Teófilo de Braga como exemplo dos poemas épicos que se fizeram depois
do de Luís de Camões. Cf. Braga (1874: 310-311). 3 O catálogo da BNP refere a obra como sendo de 1624, contudo, após a sua consulta, concluímos que esta
data não corresponde à informação veiculada pelo exemplar BNP F. 4473, que indica explicitamente o ano
de 1614. 4(1966b: 520).
53
Depois deste prémio, Barbosa Machado faz também alusão a uma coleção de
versos de Jorge Fernandes que ele mesmo reuniu a fim de os ver impressos, satisfazendo
os interesses de “pessoas eruditas”, porém, tal nunca chegou a acontecer, uma vez que a
autorização lhe foi negada. Conjeturamos que alguns desses poemas possam estar
presentes no Cancioneiro Juromenha, onde se encontra a maioria das composições mais
breves de Jorge Fernandes de que temos hoje conhecimento5, grande parte de temática
amorosa. Relativamente aos poemas presentes no Cancioneiro Juromenha, estes tinham
já sido editados por Carolina Michaëlis6 e a mais recente editora afirma terem sido
escritos antes de 15787. Além destes poemas, outros aparecem também, ainda que com
menor representatividade, no manuscrito do Cancioneiro Verdelho8, no manuscrito do
Cancioneiro de D. Cecília de Portugal9 editado por António Cirurgião em 1972, no
Cancioneiro Fernandes Tomás, cuja “formação não vai além dos últimos anos do século
XVII”10 e do qual se conhece apenas um único exemplar sito no Museu Nacional de
Arqueologia e Etnologia, e, por último, no livro Obras inéditas de Aires Telles de
Menezes e de Estevão Rodrigues de Castro, e de outros anónimos dos mais esclarecidos
da literatura portuguesa editado por António Lourenço Caminha, em 179211.
Além dessas composições que abordam a temática amorosa, sobressaem ainda os
poemas dominados pelos motivos áulicos, entre eles destaca-se o poema analisado adiante
“Quando do mundo novo a gente nova”12 e uma “Elegia consolatoria á Rainha D.
Catherina em a morte da Princeza D. Joanna Mãy del Rey D. Sebastiaõ” referida por
Barbosa Machado e Spaggiari13, mas à qual não tivemos acesso por constar apenas do
Cancioneiro Verdelho, pertencente a uma coleção privada. Neste âmbito, o poeta dá
relevo à oposição entre vida ativa e vida contemplativa, à valorização da virtude e à
descrição do presente enquanto tempo de degradação moral.
O último grupo, apesar de representar pouco em termos quantitativos, é de grande
relevância para o estudo da sua obra, sobretudo porque Teófilo de Braga14 e Carolina
5 No anexo 2, apresentamos o conjunto de poemas e obras impressas de Jorge Fernandes que conseguimos
rastrear. 6 Spaggiari (2018: 25). 7 Ibid., 72. 8 Sobre o qual não detemos mais dados, em virtude de pertencer a uma coleção privada à qual não tivemos
acesso. 9 Manuscrito do início do século XVII, ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 1835. 10 Vasconcelos (1980: 3). 11 BNP L. 3378 P. 12 No Cancioneiro Juromenha o poema corresponde à composição nº135. Cf. Anexo 3. 13 Spaggiari (2018: 44). 14 Braga (2005: 259).
54
Michaëlis de Vasconcelos15 admitem que Jorge Fernandes tenha traduzido mais odes
horacianas às quais, infortunadamente, perdemos o rasto. A única tradução de que temos
conhecimento é a da ode 24 do III livro das Odes de Horácio16. Será, sobretudo, a partir
desta tradução e de uma das composições de tema áulico que iremos procurar
compreender o ascendente horaciano.
Além das obras anteriormente referidas, é importante notar que é atribuída a Jorge
Fernandes a autoria do manuscrito Compendio das Cronicas de todos os Reys de Portugal
ate Dom Sebast[ião] conservado na Biblioteca Nacional de Portugal17. Contudo, no
estádio atual da nossa investigação, não é possível corroborar nem refutar esta
informação, dada a ausência de documentação a este respeito. Cabe, ainda, pensar que se
trate de outro autor com o mesmo nome.
Ainda que uma parte da sua obra tenha chegado à atualidade e nos permita
reconstituir o que terá sido a sua produção literária, outra parte ficou por conhecer,
nomeadamente algumas das composições referidas por Barbosa Machado: Sermones de
Santos, cujo título alude à temática tratada em outra obra publicada exatamente no mesmo
ano de 1612, já anteriormente mencionada, muito embora não seja possível perceber se
se trata do mesmo texto ou de um diferente; e quatro composições sobre as quais não
dispomos de qualquer informação, nomeadamente um Marial dividido em 13 Tratados,
Louvores a S. João Evangelista, a composição Juízo Astronómico do Amor e a Elegia à
morte de Diogo de Paiva.
15 Vasconcelos (1980: I.85). 16 No Cancioneiro Juromenha o poema corresponde à composição nº136. Cf. Anexo 4. 17 BNP F.R. 170.
55
1. Jorge Fernandes e a receção de Horácio
A poesia de Jorge Fernandes inclui diversas alusões a autores clássicos,
nomeadamente a Horácio. Esta familiaridade com a poesia do autor venusino é anunciada
por Fernandes no Prólogo da sua obra Tardes de Quaresma, aludindo aos dois primeiros
versos da ode I.14 de Horácio para exemplificar a utilização da alegoria como figura de
retórica:
Otro modo de Alegoria es figura de Rhetorica. Quando para dezir una cosa, se dize otra
a que ella se puede comparar, sin aplicar la comparacion. Como quando Horacio habla
con la republica Romana, por alegoria de una nao.
O nauis, referent in mare te noui.
Fluctus. &c.
Y alli va llamando ondas las guerras ciuiles, puerto la paz, remeros los Senadores, &c.1
Além de reconhecer a autoridade horaciana no que respeita à retórica, o poeta
quinhentista foi leitor, tradutor e assimilou os tópicos horacianos na sua poesia. Esta
aproximação de Fernandes do legado de Horácio não constitui um caso isolado, é antes
um traço transversal à poesia áurea portuguesa, em que se destacam os nomes de Sá de
Miranda, André Falcão de Resende, António Ferreira, Pêro de Andrade Caminha e Diogo
Bernardes2.
Assim, importa saber como circulava a obra de Horácio e como era interpretada
no tempo do poeta. Muito embora se afigure um autor essencial para o século XVI, depois
da publicação da obra Horacio en España de Menéndez y Pelayo, em 1885, não consta
que exista alguma monografia sobre a receção do poeta em Portugal e em Espanha
durante o Renascimento.
Ao tentarmos compreender como era Horácio lido pelos humanistas, é necessário
que tenhamos em consideração que a visão renascentista deste autor herdou as
características da sua transmissão desde a Antiguidade, incorporando outras
singularidades próprias da leitura individual e secular que propiciaram as edições
1 Cruz (1614b: prologo). 2 Sobre o ascendente de Horácio na obra destes poetas ver supra, capítulo I. 3. Jorge Fernandes e os studia
humanitatis: a sua educação, notas 40 e 41.
56
humanísticas e a sua difusão impressa. Destaquemos aqui alguns traços da poesia
horaciana particularmente relevantes para o tema que nos ocupa.
“Odi profanum volgus et arceo”3, diria Horácio. O poeta assumiu uma atitude de
proteção face ao seu trabalho, que se relacionava intimamente com o menosprezo que
sentia face à ampla divulgação das suas obras, vendo-as como o monumentum que,
estando em permanente labor e evolução, deveria ser mostrado apenas a um núcleo de
amigos restrito, escolhido pelo autor. Desta forma, percebe-se que Horácio não apreciasse
a ideia de um dia vir a ser ensinado nas escolas, como expressa claramente na sátira I.104
e, de forma mais irónica, na epístola I.205. Ora, o seu temor depressa se tornou realidade,
como documentam alguns autores clássicos6, entre os quais Quintiliano7, Juvenal8 e
Tácito9. Destes testemunhos, há duas características que sobressaem no que respeita à
forma como era compreendida a sua obra. Antes de mais, Horácio era visto como um
exemplo do bom orador, que deveria ser apresentado ao jovem, enquanto aprendia guiado
pelo grammaticus. Note-se que eram sugeridas tanto as Sátiras como as Odes, embora
Quintiliano admitisse que se deviam censurar alguns dos poemas, devido ao seu caráter
licencioso10. Assim, percebemos que já desde a Antiguidade se reconheceu nos textos de
Horácio uma qualidade que não podia ser ignorada, mas, tal como alguns séculos mais
tarde viria a acontecer, uma parte da sua obra, designadamente de temática amorosa, teve
tendência a ser reprimida e censurada.
A transmissão textual das obras de Horácio foi assegurada pela ampla leitura e
produção de comentários durante a Antiguidade Tardia. Os manuscritos que chegaram
até aos nossos tempos são centenas11 e os mais antigos datam da segunda metade do
3 Odes III.1.1. 4 Sátiras I.10.72-93. Daqui em diante as obras de Horácio serão referidas da seguinte forma: Sátiras – S.;
Epístolas – Ep.; Arte Poética – Ars; Odes – Od.; Epodos – Epod.; Cântico Secular – Carm. 5 Ep. I.20.17-18. 6 Sobre este assunto ver Edmunds (2010: 341-344). 7 Inst. Orat. I.8.6., X.1.94-96. 8 Sat. 7.225-227. 9 Dial. orat. 20.5-6. 10 Inst. Orat. I.8.6. 11 Tarrant (1983: 183) faz alusão a H. Buttenwieser (1942). Speculum, 17, pp.53-5, que afirma ter registado
perto de 300, dos quais 250 foram copiados antes de 1300.
Os manuscritos estão convencionalmente divididos em dois grupos: Ξ e Ψ. O primeiro grupo inclui os
seguintes manuscritos: A – Parisinus 7900A, século IX/X; a – Ambrosianus O. 136 sup., século IX/X, de
Avinhão; B – Bernensis 363, século IX, escrito por um copista irlandês; C – Monacensis 14685 (o
manuscrito tem duas partes, C é a mais antiga), século XI, de St. Emmeram, Ratisbona; K – Saint-Claude
(Jura) 2, século XI, de Saint-Oyan. Em relação ao segundo grupo, estão incluídos os seguintes manuscritos:
R – Vaticanus Reginae 1703, século IX, da igreja de Saints-Pierre-et-Paul de Wissembourg. Este é talvez
o manuscrito mais antigo; δ – Marley 2725, British Library, século IX, do norte de França; π – Parisinus
57
século IX12, porém muitos permanecem ainda sem terem sido investigados ou
catalogados13.
Durante a Antiguidade Tardia, a memória de Horácio manteve-se presente na
cultura dos escritores, tal como se reconhece nas obras de Claudiano, Ausónio, Prudêncio
ou Boécio14. A obra de Prudêncio constitui um bom exemplo, uma vez que consegue
reconhecer-se Horácio como modelo para a forma métrica dos seus poemas, mas também
para o conteúdo de alguns15. De modo geral, a obra de Prudêncio sugere o que acontece
com os autores desta época: por um lado, têm ainda um conhecimento amplo da literatura
latina clássica e, por outro, vivem e movimentam-se num ambiente profundamente cristão
que fornece o conteúdo da sua literatura, daí que as referências a Horácio sirvam, muitas
vezes, para sustentar uma leitura cristã16.
Além de o seu legado ter permanecido vivo por meio dos escritores que viram
nele uma referência, é provável que a obra de Horácio também tenha continuado a ser
estudada nas escolas, como parecem demonstrar os dois conjuntos de escólios que se
conservaram17. Um deles é atribuído a Pompónio Porfírio, provavelmente do século III,
e foi concebido para acompanhar o texto horaciano. Segundo Villeneuve, “le caractère
scolaire en est très marqué: Porphyrion nous apparaît moins comme un érudit que comme
un professeur désireux avant tout de rendre accessible à des esprits peu mûrs l’intelligence
d’un text”18. O outro conjunto é uma miscelânea de material antigo preservado nas
margens dos manuscritos de Horácio à qual, no século XV, foi agregado o nome de
Heleno Acro, um autor do século II que terá escrito um comentário perdido sobre a obra
horaciana, posteriormente referido como Pseudo-Acro.
A partir de meados do século VI, a tradição de copiar os textos clássicos começa
a diminuir a sua intensidade e entra num período de estagnação. No século VIII, alguns
10310, século IX/X, da biblioteca da catedral de Autun; λ - Parisinus 7972, século IX/X; ι – Leidensis Lat.
28, século IX, de Saint-Pierre de Beauvais; φ - Parisinus 7974, século X, de Saint-Remi, Reims; ψ –
Parisinus 7971, século X, Reims. Cf. Tarrant (1983). 12 Tarrant (1983: 182). 13 Diversos autores alertam para esta questão, nomeadamente Tarrant (1983: 183) e Friis-Jensen (2015: 13). 14 Tarrant (2007: 281-283). 15 Ibid., 281-82. Em relação à presença da temática horaciana, veja-se por exemplo, a forma como o autor
delineia o seu autorretrato, à semelhança do poeta clássico, ou nas diversas referências horacianas presentes
na obra Peristephanon. Sobre a influência de Horácio e de outros autores clássicos nesta obra de Prudêncio,
ver Palmer (1989). 16 Palmer (1989: 1-5). 17 Sobre os escólios ver Tarrant (1983: 186), Villeneuve (1927: li), Courtney (2013: 556-557), Edmunds
(2010: 340) e Tarrant (2007: 281-282). 18 (1927: xlix).
58
eruditos, nomeadamente Alcuíno de York e Paulo, o Diácono, conheceriam o nome do
poeta clássico – ‘Flaco’ –, contudo não se percebeu ainda até que ponto tiveram, de facto,
contacto direto com o seu trabalho19. Só no século seguinte, em pleno Império Carolíngio,
é que o interesse pela cultura clássica se reaviva efetivamente, por isso compreende-se
que sejam dessa época os manuscritos mais antigos do texto de Horácio, assim como os
escólios20. Parece datar também deste período o regresso da sua obra ao curriculum
escolar, pelas anotações que se encontram nas margens dos textos preservados21. Durante
a Idade Média, os textos do poeta conservaram este estatuto didático que terá,
provavelmente, perpassado toda a sua obra22.
O avultado número de manuscritos conservados, quando comparados com os de
Vergílio, sendo este o poeta clássico mais celebrado nesta época, permitem perceber a
sua popularidade: do século XI, temos cinquenta manuscritos que contêm as Odes de
Horácio, em oposição aos quarenta e seis da Eneida de Vergílio. Do total de manuscritos
que restaram do século IX ao XVI, as obras de Vergílio contam cerca de mil manuscritos,
enquanto as de Horácio estão em cerca de oitocentos e cinquenta, sendo que quatrocentos
exemplares pertencem ao século XV, o que sugere que os padrões de leitura se
começaram a alterar nesse período, intensificando-se a atenção dada a este autor, como
adiante veremos23.
Do contacto escolar medieval com o texto horaciano, podemos concluir que o
autor foi usado como modelo formal, especialmente no que respeita à imitação dos
metros, e como modelo ético, aproveitando a densidade moral do conteúdo dos seus
poemas para educar o leitor, que estaria ainda em formação num contexto clerical.
Neste contexto, compreende-se a preferência dada aos trabalhos em hexâmetro
dactílico, nomeadamente às Sátiras e às Epístolas24, como salienta a referência que Dante
faz ao «Orazio satiro»25. Esta eleição justificar-se-ia na medida em que o conteúdo
moralizante é apresentado explicitamente, legitimando a leitura destas obras. Todavia,
19 Tarrant (2007: 286). 20 Ibid., 287-288. Tarrant menciona também a inspiração horaciana na obra de Heiric de Auxerre. 21 Nomeadamente no manuscrito A. Tarrant (2007: 288). 22 Segundo Braund (2010: 367) e Tarrant (2007: 288), na transição para o século XI, Horácio era tema das
aulas de Gerbert d'Aurillac, futuro Papa Silvestre II, em Reims, assim como seriam Pérsio e Juvenal. 23 Friis-Jensen (2007: 291); Bischoff (1971). 24 Friis-Jensen (2007: 304), (2015: 103, 117). 25 Divina Comédia, Inferno IV.79.
59
esta preferência não se traduziu no esquecimento das obras líricas do poeta, como têm
demonstrado alguns estudos26.
As interpretações moralizantes eram expostas geralmente no accessus da obra, ou
numa introdução individual a cada poema. Ora, estas leituras atualizavam a mensagem
clássica e faziam frequentemente referências aos ideais e valores do mundo cristão
medieval, compreendendo-se, assim, a razão pela qual estas obras eram normalmente
referenciadas como fazendo parte da filosofia moral ou ética27. Em alguns casos, a lição
moral extraída do texto assume um carácter bastante prosaico e usa vocabulário simples,
o que leva Friis-Jensen a assumir que se destinaria a qualquer estudante num nível
elementar de ensino28.
Assim, a interpretação moral dos poemas de Horácio, que incluía, por vezes, a
referência ao poeta enquanto monge29, pretendia, por um lado, justificar a leitura daquele
escritor pagão e, por outro, funcionava como estratégia pedagógica, fazendo os alunos
identificarem-se com a mensagem para reterem o modelo de vida a seguir30.
Esta estratégia moralizante é aplicada até ao modo como os eruditos medievais
interpretavam a vida de Horácio. Como se lê no accessus ao comentário padrão francês,
do século XII, às Sátiras31, o comentador acreditava que o poeta latino teria escrito as
suas obras pela ordem em que se encontram no manuscrito32 e que essa estrutura resultava
de uma premeditada intenção de Horácio em espelhar nos seus trabalhos o conceito ideal
de desenvolvimento humano. Dessa forma, as Odes destinar-se-iam aos jovens, focando-
-se, portanto, em temas como o amor, a juventude ou a diversão; as Sátiras teriam o
objetivo de reprovar todo o tipo de vício em que o homem acaba por sucumbir ao longo
da vida e, por último, as Epístolas poderiam ensinar a virtude ao sábio que já tinha
aprendido a combater esses mesmos vícios. Esta interpretação explicava também a
importância da varietas dos géneros usados pelo autor pela analogia com as etapas do
desenvolvimento da vida humana. Ora, a personificação da obra poética aqui apresentada
26 Sobre este tema ver Friis-Jensen (2015). Antes de mais, o autor demonstra que a quantidade de
manuscritos que contêm os livros das Odes é significativa, além disso, a análise de alguns desses
testemunhos, que apresentam comentários ao texto, tem revelado que são geralmente elementares e
sistemáticos e, por isso, adequados ao ensino. 27 Friis-Jensen (2007: 292), (2015: 114). 28 Friis-Jensen (2015: 111, 115). 29 Ibid., 115. 30 Ibid. 31 Denominado «Sciendum» e traduzido por Friis-Jensen (2015: 106-107) 32 Isto é: Odes, Epodos, Cântico Secular, Arte Poética, Sátiras e Epístolas.
60
implica, obviamente, uma identificação com a vida do próprio poeta que vai alterando a
sua maneira de pensar em termos morais e caminha em direção à sabedoria, dando
testemunho disso33.
Neste âmbito, a obra de Horácio foi, pois, sujeita a uma forma de interpretação
comparável à de Séneca, caracterizada pela procura de regras de conduta moral que
podem levar o homem a alcançar a tranquilidade da alma, mantendo a liberdade interior
e a integridade moral34. A censura dos vícios e o elogio das virtudes, enquanto preceito
estoico, é indissociável da visão cristã que os medievais quiseram dar à obra de Horácio.
Efetivamente, Blüher admite que, no Renascimento, o Estoicismo chegou à lírica
peninsular por meio da obra horaciana35.
No alvor do século XV, os humanistas herdam, assim, um Horácio medieval que
é valorizado pelo exemplo formal e pela lição moralizadora, mas a atitude que a cultura
humanística assumia relativamente à obra horaciana começava já a mudar, como
testemunha a epístola que Petrarca endereçou «ad Horatium Flaccum lyricum poetam»36,
demonstrando uma nítida mudança de perspetiva em relação ao Horácio dantesco. A
componente lírica de Horácio passa, então, a ter um papel central para os autores
renascentistas que viram nela a fonte precetoral do seu estilo poético. Por isso, de acordo
com o estudo de Iurilli, só é possível perceber e explicar a poesia renascentista tendo
como premissa a lírica horaciana37.
Esta mudança de perspetiva só pode ser compreendida plenamente mediante a
análise do modo como seria a sua obra transmitida materialmente. Entre os poetas pagãos,
a obra de Horácio foi uma das primeiras a ser impressa, datando a editio princeps de
147038. Este foi o período dos incunábulos, na sua maioria, impressos por editores
italianos39. Pelo fim desse século, havia já um cânone de comentários ao texto horaciano:
além dos dois que vinham da Antiguidade, destacavam-se dois mais modernos, um de
Cristoforo Landino e outro de Antonio Mancinelli, que se focavam especialmente na lírica
de Horácio40.
33 Friis-Jensen (2015: 106-107). 34 Acerca deste tema, veja-se Blüher (1983) e Colish (1985). 35 (1983: 317-318). 36 Familiaris, XXIV, 10. Sobre este tema, veja-se Iurilli (2004: 28-29), Grimaldi (2014: 193-195). 37 Iurilli (2004: 33). 38 Braund (2010: 368). 39 Bo (2015: 32-33). 40 Iurilli (2004: 38-39).
61
Ora, o facto de a imprensa difundir a obra completa de Horácio para um público
mais abrangente e diversificado contrastava drasticamente com as antologias a que os
frades medievais tinham acesso no seu percurso formativo. O impacto desta
transformação de suporte foi enorme no que respeita à visão que o homem do século XV
e XVI tinha de Horácio, uma vez que este pôde, efetivamente, ler integralmente a obra
do venusino sem se cingir apenas às composições escolhidas para a aprendizagem
moralizante dos teólogos.
Durante o século XVI, as principais casas editoriais dedicaram-se sobretudo à
introdução de correções e anotações ao texto, assim como à informação sobre os metros
usados por Horácio. Neste âmbito, salienta-se o trabalho de Aldo Manuzio que não só
teve um enorme sucesso editorial, dando ao texto o protagonismo absoluto da página,
como fixou, nas suas edições, o De metris horatianis41. O êxito que foram estas edições
decresceu com o aparecimento da primeira edição feita por Lambino, em 1561, cujo texto
se baseava na colação de dez manuscritos e apresentava numerosos comentários42. A
partir daí, afirmou-se definitivamente o interesse dos humanistas pelo trabalho filológico
e a lição de Lambino foi seguida, por exemplo, por Cruquius que, para a edição da obra
completa de Horácio, usou onze códices antigos43. O texto fixado por Lambino serviu de
base a muitas edições posteriores que, por essa época, já começavam a produzir-se fora
de Itália44.
No contexto português, os humanistas do século XVI tinham já ao seu dispor
edições que lhes permitiam ler a obra diretamente na língua original, como demonstra o
conhecimento que perpassa nas traduções e/ou na adoção de temas e géneros horacianos
na poesia de alguns contemporâneos de Jorge Fernandes, como António Ferreira, Pêro de
Andrade Caminha, Diogo Bernardes e André Falcão de Resende que, na tradição já
inaugurada por Sá de Miranda, se serviram dos temas horacianos para expressarem a sua
visão do mundo.
Das ideias horacianas presentes nas obras destes poetas destacam-se, por um lado,
as considerações sobre questões de poética, alicerçadas nos preceitos estabelecidos na
41 Iurilli (2004: 46-47). 42 Bo (2015: 33). 43 Bo (2015: 33). A edição de Cruquius é especialmente importante, porque o humanista usou um
manuscrito – Blandinius Vestustissimus –, destruído em 1566 num incêndio que devastou o antigo mosteiro
de Blankenberge, na Bélgica, que parece sugerir uma lição diferente dos grupos de manuscritos
anteriormente citados – Ξ e Ψ. Sobre este assunto, cf. Courtney (2013: 550) e Tarrant (1983: 185). 44 Bo (2015: 33).
62
Epístola aos Pisões45. Note-se que a Arte Poética se assumiu como texto obrigatório para
qualquer aspirante a poeta. Desde o século IX, aquando da sua redescoberta, que a Carta
aos Pisões passou a ser a obra horaciana mais divulgada e faria mesmo parte do curso de
Artes, oferecendo aos estudantes não só o contacto com uma obra literária, mas
proporcionando também um momento de aprendizagem das regras pelas quais se
deveriam reger46. A popularidade de Horácio nestas matérias manteve-se até ao início do
século XVI, quando os humanistas se começaram a interessar pela relação que esta obra
podia estabelecer com a Poética de Aristóteles47. Neste âmbito, os portugueses não se
distanciaram do que de melhor se ia fazendo no resto da Europa, como comprovam as
obras dedicadas à Arte Poética do venusino de Aquiles Estaço, o primeiro comentador
peninsular do texto, de Pedro da Veiga ou de Tomé Correia48.
Por outro lado, as obras destes escritores portugueses denotam também uma
preocupação com reflexões sobre aspetos de caráter moral, fazendo o elogio da virtude e
denunciando os vícios. Este último aspeto é geralmente colocado ao serviço das
preocupações do poeta, atualizando, assim, a mensagem horaciana pela referência a um
contexto específico, o que não só mostra como a visão moralizadora medieval de Horácio
teve receção junto dos renascentistas, como denota já um certo distanciamento dessa
precedente interpretação condicionada, dado que a leitura integral da obra horaciana
permitia aos humanistas estabelecerem as suas afinidades com determinados tópicos, que
se cruzavam com a sua vivência, e abordá-los de forma crítica49. Os temas que ocuparam
a produção poética destes escritores, tendo como ascendente o poeta latino, foram
45 A importância da Epístola aos Pisões na poesia desta época foi já destacada por Almeida (1989) e Castro
(1999). 46 Friis-Jensen (2015: 123). 47 Ibid., 125; Moss (2008: 71). Nem mesmo a tradução latina da obra deste autor grego, feita por Guilherme
de Moerbeke, no século XIII, inverteu o estatuto de autoridade que Horácio tinha neste tema.
O número significativo de escritores medievais que se dedicaram à composição de artes poéticas
reveladoras de uma leitura atenta da Carta aos Pisões é indicador da importância do autor neste âmbito.
Vejamos alguns exemplos: no século XII, temos João de Salisbury com a obra Metalogicon e Mateus de
Vendôme com a Ars Versificatoria; no século seguinte, a lista aumentou, contando com trabalhos como
Poetria Nova de Geoffrey de Vinsauf, Ars versificaria de Gervase de Melkley, Parisiana poetria de arte
prosaica, metrica et rithmica de João de Garland, Laborinthus de Eberhard, o Alemão e Summa de arte
prosandi de Conrad de Mure. Cf. Friis-Jensen (2015: 123-149). 48 Sobre este assunto, veja-se Castro (1976). Referimo-nos, respetivamente, às seguintes obras dos autores
mencionados: Achillis Statii Lusitani In Q. Horatii Flacci poëticam Commentarii : ad Ioannem Quartum
Lusitaniae Principem Augustissimum, Antuerpiae: apud Martinum Nutium, 1553; Horatius Flaccus
Venusinus, de Arte Poetica vera, et genuina, et non supposita, et adulterina prout ante hac habebatur, a
Petro Veguio Lusitano in communem studiosorum adolescentium [...], Antuerpiae apud Christianum
Hauwellium, 1578; In librum de Arte Poetica Horatii explanationes. Venetiis apud Franciscum de
Franciscis, 1578. 49 Estes aspetos foram já estudados por Earle (1990) e Anastácio (1998).
63
geralmente temas sérios e profundos, como a reflexão sobre a morte e a imortalidade, o
poder da poesia ou a oposição entre a vida contemplativa e a vida ativa50. A temática
amorosa foi descurada, porque, como afirma Earle, havia para tal assunto um modelo que
se impunha: Petrarca51.
Algumas dessas edições que reproduzem o texto e o comentário de Lambino
encontram-se hoje no espólio da Biblioteca Nacional de Portugal e contêm marcas que
nos permitem situá-las no contexto escolar português na transição do século XVI para o
XVII. A título de exemplo, de 1567, conserva-se uma edição parisiense com anotações
em português52 e, de 1604, outra edição publicada na mesma cidade que tem uma
indicação manuscrita de ter pertencido ao ‘Padre Mestre da Primeira’ classe53. Além das
obras que transmitem o trabalho de Lambino sobre o texto horaciano, encontramos outras
edições que apontam igualmente para este contexto devido à existência de marcas de
pertença a instituições de ensino e mosteiros, ou das anotações manuscritas em
português54.
As conclusões em resultado desta breve análise das edições encontradas prendem-
-se, sobretudo, com a sua utilização em contexto de ensino jesuítico. Antes de mais,
confirmou-se a hipótese anteriormente apontada55 de que Horácio era usado,
normalmente, nas classes mais avançadas, nomeadamente na primeira e segunda56, mas
ficou também evidente que os textos horacianos serviriam igualmente para os estudantes
aprenderem latim, uma vez que muitas das obras consultadas dispunham de copiosas
traduções manuscritas57.
Conseguimos ainda inferir que, a partir da segunda metade do século XVI, houve
um recuo na forma de apresentação e acesso ao texto que resultou do crescente clima de
censura em Portugal, que se fez sentir desde o estabelecimento da Inquisição no país e
progrediu até ao estabelecimento do monopólio do ensino jesuítico. Efetivamente,
50 Earle (1990: 69-71), Anastácio (1998, I: 131-157). 51 Earle (1990: 69). 52 Opera. Lutetiae, apud Joannem Macaeum, impressi ab Ioanne Candido. BNP L. 5333 A. 53 Q. Horatius Flaccus ex fide atque auctoritate complurium librorum manuscriptorum, opera Dionysii
Lambini emendatus, etc. Parisiis, apud Bartholomacum Macacum. BNP L. 664 A. 54 Da nossa pesquisa no espólio da BNP, identificámos uma obra que pertencia ao Colégio de Faro (BNP
L. 657 A.), outra à Livraria do Colégio de Évora (BNP RES. 2239 A.) e uma última à Livraria do Mosteiro
de Alcobaça (BNP RES.767 A.). Das restantes, sem identificação de pertença a uma instituição, quatro têm
anotações em português (BNP L. 1341 V.; BNP L. 1344 V.; BNP RES. 765 A.; BNP L. 2589 P.). 55 Cf. supra capítulo I. 3. Jorge Fernandes e os studia humanitatis: a sua educação. 56 Veja-se os seguintes exemplares: BNP L. 658 A; BNP L. 841 A.; BNP L. 664 A. 57 Veja-se os seguintes exemplares: BNP L. 1341 V.; BNP L. 1344 V.
64
verifica-se a existência de restrições à leitura da obra como mostram alguns dos
exemplares presentes na Biblioteca Nacional de Portugal com marcas de censura58.
Embora as obras não constem nos índices de livros proibidos, uma parte dos seus textos
foi expurgada, limitando a interpretação da sua obra a uma visão parcial e fragmentada.
58 Veja-se os seguintes exemplares: BNP L. 1342 V.; BNP L. 1343 V.; BNP L. 841 A.; BNP RES. 5889
P.; BNP L. 1344 V.; BNP L. 665 A; BNP L. 2589 P.
65
2. Da leitura à tradução
He sotilissima e bem convertida.1
Alberto Blecua Perdices, ao falar sobre as traduções que Frei Luis de León fez das
odes horacianas, dizia que “la literatura ni se crea ni destruye, se transforma”2. Ora, um
poeta é sempre e principalmente um leitor, um conhecedor dos seus antecessores que o
guiam, caminham com ele par a par, e fazem-no refletir sobre as questões mais primárias
e pungentes do Homem. Antes de escrever, lê, mas ler implica um domínio profundo do
texto, que, por vezes, envolve o entendimento de uma língua, neste caso, o latim. Desse
ponto de vista, a mestria do escritor que tentava “restaurar la latinidad no consistía sólo
en el conocimiento de los verba; también la res debía de ser conocida”3, daí que as
traduções dos textos latinos, nomeadamente de Horácio, começassem a ganhar cada vez
mais destaque ao longo do século XVI4.
Jorge Fernandes segue, então, uma tendência cada vez mais acentuada em meados
do século, na Península Ibérica: a de traduzir o texto de Horácio. Em solo lusitano, outros
poetas da sua geração também se lançaram ao desafio, entre os quais se destacam,
principalmente, André Falcão de Resende5 e António Ferreira6. Traduzir partes da obra
do poeta venusino não era apenas uma forma de mostrarem o seu apreço por ele, de
atestarem a proximidade que sentiam em termos morais, era também um exercício de
virtuosismo poético que enriquecia a língua portuguesa7. Assim o defende João de Barros,
no Diálogo em louvor da nossa linguagem, que acompanha a gramática publicada em
1540, expondo a necessidade destas traduções:
mas, agora, em nossos tempos, com ajuda da impressão, deu-se tanto a gente castelhana
e italiana e francesa às trasladações latinas, usurpando vocábulos, que os fez mais
elegantes do que foram ora há cinquenta anos. Este exercício, se o nós usáramos, já
1 Rubrica que introduz a tradução da ode III.24 de Horácio, explorada neste capítulo, no Cancioneiro
Verdelho. Spaggiari (2018:844-845). 2 Perdices (1981: 78). 3 Ibid., 89. 4 Ibid., 88. 5 Sobre as traduções horacianas de Falcão de Resende, veja-se Spaggiari (2005), Hue (2012) e Ramalho
(1995). 6 Sobre o assunto, veja-se Ramalho (1965), Earle (1990). 7 Sobre esta questão, vejam-se os estudos de Tarrío (2001b) e (2010).
66
tivéramos conquistada a língua latina, como temos África e Ásia, à conquista das quais
nos mais demos que às trasladações latinas.8
Como afirmávamos, por volta do fim da primeira metade do século XVI, o
paradigma das traduções apresentava já mudanças significativas de uma abordagem
humanista das obras latinas. A manipulação livre e abusiva dos textos, assim como a
inserção de glosas explicativas características das traduções medievais começavam a dar
lugar a uma tradução mais fiel ao texto, que procurava assemelhar-se ao original não só
no conteúdo, como no metro escolhido9. É, portanto, neste novo paradigma que se insere
a tradução, da autoria de Jorge Fernandes, da ode 24 do III livro das Odes de Horácio10.
Além desta tradução, a probabilidade de o autor ter vertido para português outras odes do
mesmo autor é grande se admitirmos como verdadeira a afirmação de Teófilo de Braga
ao comentar as traduções de André Falcão de Resende: “Também Jorge Fernandes,
chamado o Fradinho da Rainha (que tomou o nome de Fr. Paulo da Cruz), fez algumas
traduções das odes horacianas, pela mesma época”11. Por sua vez, Carolina Michaëlis de
Vasconcelos admite ainda que seja, na verdade, de Fernandes a tradução da ode II.18 de
Horácio que, no Cancioneiro Fernandes Tomás, é transmitida como sendo da autoria de
Camões12. Dada a atribuição controversa desta última tradução, deter-nos-emos na
primeira.
A tradução da ode III.24 é transmitida por outros dois cancioneiros além da versão
transmitida pelo Cancioneiro Juromenha, que designa Jorge Fernandes como seu autor.
Em um deles, no Cancioneiro Verdelho, a tradução figura anónima, enquanto no
Cancioneiro Fernandes Tomás é atribuída a Fernão Rodrigues Soropita13. Parece-nos,
porém, haver um sentido em atribuí-la a Jorge Fernandes, tal como já havia chamado a
atenção Carolina Michaëlis de Vasconcelos ao duvidar da autoria de Soropita, no seu
comentário ao Cancioneiro Fernandes Tomás14. Naturalmente, a escolha da composição
a ser traduzida passava por um processo mais ou menos criterioso, uma vez que se tratava
de fazer nascer um novo poema no seio de um contexto diferente e, como tal, a temática
8 Barros (1540: fl.56r), sendo a edição do texto da nossa responsabilidade. Hue (2012: 371) e Tarrío (2021c:
87), (2010: 208) também destacam a importância dada por Barros a esta questão. 9 Tarrío (2002) e Perdices (1981: 88). 10 No Cancioneiro Juromenha o poema corresponde à composição nº136. Cf. Anexo 4. 11 Braga (2005: 259). 12 Vasconcelos (1980: I.85). 13 Spaggiari (2018: 844-845). 14 Vasconcelos (1980: I.96).
67
deveria adequar-se aos seus recetores. Assim, afigura-se bastante significativo que o
poema eleito por Fernandes destaque a importância da virtude e da aurea mediocritas,
valores que parecem escassear no mundo descrito pelo sujeito poético, onde os costumes
não acompanham as vanae leges. Em contrapartida, Horácio aponta os povos Citas e
Getas, associados à vida rural e ao cultivo da terra, como exemplo de gentes livres que,
acima de tudo, respeitam a parentium virtus. Como veremos15, a procura da virtude no
ambiente rural e a fuga à corrupção moral que se dissemina na cidade, local a que se
associa o poeta, será precisamente a temática do poema de Jorge Fernandes analisado
adiante, daí que esta escolha, quanto a nós, não seja fortuita, mas, sim, alicerçada num
tema que dizia bastante ao tradutor da ode.
Neste sentido, a forma como Fernandes se posiciona perante o texto e o modo
como o traduz refletem a atitude de quem torna suas as palavras de Horácio. Dada a
limitação de texto traduzido de que dispomos, isto é, apenas uma ode, é muito difícil
detetar variantes textuais, por isso não nos é possível fazer uma análise exaustiva dos
processos sistemáticos de tradução utilizados pelo poeta, contudo, parece-nos importante
atentarmos nas decisões tomadas por Fernandes relativamente a esta tradução. Antes de
mais, a estrutura formal escolhida pelos tradutores abria-se ao campo da experimentação,
desde logo pela própria variedade formal da lírica horaciana, mas também porque a
tradução do latim para o vernáculo provocava desajustes do ponto de vista sintático que,
muitas vezes, não permitiam manter as mesmas unidades de sentido rigorosamente na
mesma estrutura estrófica e/ou métrica16. Por isso, a opção de Fernandes em verter o
poema horaciano, originalmente em quarto asclepiadeu17, para uma ode em forma de lira
hexástica, com quinze estrofes, e esquema AbbACC18 parece seguir a extensão estrófica
mais frequente entre os tradutores19 e inovar no metro, uma vez que o mais comum era
optar-se pelo hendecassílabo e pelo heptassílabo20.
No que diz respeito ao conteúdo do poema, Fernandes está em sintonia com os
demais tradutores da época que começavam, então, a ser mais fiéis à matéria contida no
poema original, sem introduzir grandes alterações de sentido. Assim, embora não se
15 Esta temática será tratada no próximo capítulo. 16 Osuna (2008: 386). 17 Sobre o metro, veja-se Horácio (2008: 38-39). 18 A letra maiúscula indica o decassílabo, enquanto a minúscula designa o hexassílabo. 19 Osuna (2008: 397) considera Frei Luis de León um dos principais poetas que contribuiu para consolidar
o sexteto-lira como uma das formas preferenciais na tradução das odes. 20 Ibid.
68
limite sempre a replicar em português exatamente o que está escrito no latim, o tradutor
identifica unidades de sentido na ode horaciana que tenta reproduzir numa estrofe em
português, ainda que, por vezes, essa correspondência de estrofes não seja direta. Isto
acontece, sobretudo, pelo aumento vocabular exigido pela língua de chegada, mas
também pelo espartilho métrico.
O alongamento da extensão sintática deve-se, por exemplo, à fuga aos latinismos21
que resultam, muitas vezes, em perífrases ou sintagmas nominais, como acontece na
tradução de certos adjetivos:
intactis v.1 do ceo vos seja dada v.1, inmetata v.12 sem trebutos e sem
demarcaçõis vv.21-22, indomitam v.28 mal regida (furia) v.42, callidi v.40 com
novas artes v.61, inutile v.48 sem proveito v.71
Mas também de nomes, advérbios ou mesmo verbos:
nefas v.24 contra a razão v.35
rite v.10 por costume só seu v.18
temperat v.18 sem se temerem v.27, abigunt v.40 poupe a vida v.60
Um processo semelhante verifica-se ainda na tradução dos gerundivos:
scelerum si bene paenitet.
eradenda cupidinis
pravi sunt elementa et tenerae nimis
mentes asperioribus
formandae studiis, vv.50-54
Se nos pesa dos vicios, arranquemos
a raiz ao desejo
e enquanto he bom ensejo
com mais aspero ensino procuremos
dar forma às condiçõis na tenra idade,
que não tem pera o bom dificuldade,
vv.73-78
21 A rejeição, mais ou menos moderada, do latinismo é uma tendência já estudada em outros escritores
como Duarte de Resende, Sá de Meneses, Rodrigues de Lucena ou Fernando Oliveira por Tarrío (2010),
(2001a: 195-212), (2001b), (2002), (2021c).
Na tradução de Fernandes, é possível detetar, ainda assim, alguns exemplos de acomodação de termos
latinos com recursos patrimoniais sem alcançar o latinismo: thesauris v.2 emtisourada v.4, adamantinos
v.5 de diamante vv.8, invidi v.32 inveja v.47, navitae v.41 navegantes v.62, tenerae v.52 tenra v.77.
Assinalamos, ainda, a ocorrência de um latinismo: asperioribus v.53 mais aspero v.76. Cf. Cunha (2014,
vol. I: 299) e Houaiss (2005, vol. III: 912).
69
Cabe, por outro lado, notar que o tradutor opta por não substituir dois
antropónimos menos familiares em português, a saber, Scythae, v.9, e Getae, v.11, que
figuram na tradução como “Scithas”, v.16, e “Getas”, v.19, assim como o topónimo
Capitolium, v.45, que se mantém como “Capitolio”, v.67.
Importa ainda salientar que o período e a forma de introdução, na língua
portuguesa, de um certo termo derivado do latim é difícil de determinar com precisão,
uma vez que a sua incorporação pode ainda ser assinalada em registos mais antigos do
que aqueles que estão até agora determinados, mas também porque a sua entrada na
literatura portuguesa pode ter ocorrido por meio da literatura espanhola e não diretamente
do latim22.
Ora, como dizíamos, a tendência geral para evitar estes cultismos na língua
portuguesa resulta numa amplificação da frase, cujo resultado, muitas vezes, é mais uma
recriação do enunciado do que uma tradução verbum pro verbo. Esta característica da
tradução prende-se, naturalmente, com a faceta poética de Fernandes que, muito mais do
que tornar acessível o texto latino, pretendia, sim, animá-lo, dar-lhe vida, fazê-lo renascer.
Vejamos, portanto, alguns passos do poema em que se verifica uma recriação poética do
original, mantendo, contudo, um sentido idêntico:
metuens alterius viri
certo foedere castitas, vv.22-23
[…] com o marido alheio,
hum casto e vão receio
que nunca fora dos limites ande, vv.32-
34
pretium est mori, v.24 o preço da culpa a vida deve v.36
o quisquis volet inpias
caedis et rabiem tollere civicam, vv.25-
26
E todo o que isentar os ceos deseja
de iras e mortandades, vv.37-38
22 Sobre este tema veja-se Castro (2011), tal como o autor chama a atenção, o assunto demanda maior
investigação.
70
clarus postgenitis: quatenus, heu nefas
virtutem incolumem odimus,
sublatam ex oculis quaerimus invidi,
vv.30-32
Até quando será que não amemos
a virtude presente,
e que, dipois de absente,
quando já maltratá-la não podemos,
pera que nossa inveja descubramos,
a buscá-la com os olhos acudamos?,
vv.43-48
virtutisque viam deserit arduae?, v.44 e como se do ceo ninguem a olhara
o alto da virtude desempara, vv.65-66
gemmas et lapides aurum et inutile,
summi materiem mali,
mittamus, scelerum si bene paenitet,
vv.48-50
lancemos este bem, que o mundo ama,
estas pedras e este ouro sem proveito
que tanto dano têm no mundo feito.
Se nos pesa dos vicios […], vv.70-73
venarique timet, v.56 nem nas forças promete
que será pera a caça tão ousado, vv.81-82
Assim, não se constata uma obediência cega ao texto original, seguindo-o passo a
passo, mas a reelaboração poética das mesmas ideias ou imagens que Horácio cristalizou
no seu texto, implicando este processo, por vezes, que Fernandes substitua certos
conceitos por outros mais familiares ao leitor. Um destes casos ocorre na substituição do
nome próprio Boreae, v.38, pela sua explicação: “do norte frio, o frio inverno”, v.58, mas
também na tradução do Graeco trocho, v.57, jogo “que consistiria em fazer rolar um aro
de metal com uma vara de ferro”23, pelo jogo do “pião” (v.83) que, provavelmente, seria
mais comum na época e, consequentemente, permitia ao tradutor aproximar o texto do
seu leitor. Noutros casos, Fernandes acrescenta determinadas expressões, associadas a um
tema, que possibilitam àquele que está a ler situar-se facilmente no tópico tratado, por
exemplo, ao iniciar a descrição do meio rural, onde vivem os Citas, com a expressão
“mais livre”, v.13, relacionada diretamente com a sua perspetiva de otium, tratada com
mais pormenor no próximo capítulo.
23 Horácio (2008: 240).
71
No fundo, Fernandes tenta encontrar as soluções que lhe parecem mais adequadas
à língua portuguesa e, em função da sua estrutura e da métrica, ora mantém as repetições
expressivas do latim, por exemplo, na décima segunda estrofe24, ora as elimina, como no
caso da nona estrofe25. O papel de tradutor está ao serviço do de poeta, por isso
compreendem-se os momentos em que o texto português se afasta do original, na medida
em que o objetivo é, sobretudo, veicular as mesmas ideias do autor venusino, mas, agora,
sentidas por outro ‘eu’ num novo contexto e, como tal, expressas necessariamente de
modo diferente, como reconhecemos na segunda estrofe:
si figit adamantinos
summis verticibus dira Necessitas
clavos, non animum metu,
non mortis laqueis expedies caput.
Traduzida, por Fernandes, nestes termos:
se a forçada, crüel necessidade
com cravos de diamante
[nam deyxar ir avante]
da mal traç[ada] vida, a liberdade,
ireis às mãos da morte e do receio,
que primeiro que a morte a matar veio.
É importante assinalar que estes desvios do latim não indicam, contudo, a
existência de erros na tradução, justificam-se mediante as escolhas estéticas e métricas de
um tradutor que vai construindo um poema e que, como tal, tem de adequar o original às
sonoridades e à expressividade da língua de chegada.
A mesma ode foi também traduzida por André Falcão de Resende e, embora não
tenhamos testemunho dessa tradução completa, resta a primeira parte dela,
24 “vel nos in Capitolium /[…] vel nos in mare proximum”, vv.45, 47. 25 “quid tristes querimoniae, / si non supplicio culpa reciditur, / quid leges sine moribus / vanae proficiunt,
si neque […]”, vv.33-36.
72
correspondente às primeiras nove estrofes do original latino26. No que respeita à estrutura,
o tradutor preferiu a lira pentástica com o esquema aBabB27. Por si só, a breve análise
formal revela dissemelhanças entre as traduções, mas, além disso, são evidentes
diferenças no processo de tradução, optando Resende por se manter mais próximo das
palavras de Horácio do que Fernandes e, como tal, apresenta uma composição mais
sintética e menos floreada, independentemente da fragmentação do texto. A divergência
entre as duas traduções prende-se, principalmente, com o motivo que tentámos salientar
na nossa análise ao processo de tradução do nosso autor: o facto de Jorge Fernandes ser,
antes de tudo, um poeta. Como tal, a ode de Falcão de Resende é “mais concisa, mas
menos poética”, fazendo nossas as palavras de Carolina Michaëlis de Vasconcelos em
relação aos dois textos28.
Tal como Frei Luis de León, a propósito das suas traduções clássicas, dizia que
tinha como objetivo fazê-las falar castelhano e não estrangeiro29, também Jorge
Fernandes parece ter tido a mesma preocupação. O ofício da tradução exigia que se
apropriasse do texto latino, procurando nele um intento e sentindo-o como um homem da
sua época, só assim estaria apto para, posteriormente, verter a ode em português,
acrescentando um novo elemento à literatura portuguesa e dando a possibilidade aos seus
contemporâneos de lerem um poema atual, que comunicasse com eles, mas que, ao
mesmo tempo, mantivesse a sua ancestralidade. A forma como traduz, tendo em vista a
harmonia da língua de chegada e a adaptação à cultura que o rodeia, denotam a
preocupação de um poeta que vê na tradução um exercício literário que visa enriquecer a
língua materna e “atualizar a doutrina moral latina para o novo tempo”30. Em suma,
fazendo nossas as palavras do autor anónimo da rubrica, esta tradução “he sotilissima e
bem convertida”31.
26 Spaggiari (2009: 536) adianta que a ode estaria traduzida por completo e que “falta […] uma folha no
MS”. 27 A letra maiúscula indica o decassílabo, enquanto a minúscula designa o hexassílabo. 28 Vasconcelos (1980: I.96). 29 “guardar cuanto es posible las figuras de su original y donaire, y hacer que hablen en castellano y no
como extranjeras y advenedizas, sino como nacidas en él y naturales” apud Hue (2012: 373). 30 Hue (2012: 372). Estas características foram referidas pela autora a propósito das traduções de André
Falcão de Resende, pelo que nos parece atestar o novo paradigma de tradução desta geração, sobretudo no
que respeita à obra de Horácio. 31 Cf. supra nota 1. Spaggiari (2018:844-845).
73
3. O otium horaciano e a fuga à vida de corte
Embora a lírica de Jorge Fernandes que chegou aos nossos dias não ultrapasse
cerca de uma dezena de poemas, parece ser significativa do ponto de vista das temáticas
tratadas. Assim, se, por um lado, parte dos poemas são dedicados à vivência amorosa, por
outro, as preocupações éticas e morais também afloram. Nestes casos, parece ser Horácio
a fonte clássica de Fernandes, fundida com ecos do Estoicismo tão prezado pelo
Cristianismo.
A afinidade moral que Fernandes encontra em Horácio ganha sentido na
abordagem de um tema que é tão prezado pelos poetas da sua geração: o otium. Como
veremos, a atitude defendida constantemente por estes homens de letras é já fruto de uma
mudança de paradigma que os leva a advogar um modelo de vida contemplativa, na
natureza, onde as aspirações literárias encontrem um tempo e um espaço propícios. No
caso de Jorge Fernandes, o tema surge no poema “Quando do mundo novo a gente nova”,
transmitido pelo Cancioneiro Juromenha1.
Segundo Spaggiari, o poema é anterior ao ano de 15782, ou seja, corresponde ao
período em que Fernandes frequentava a corte, fruindo da proteção de D. Catarina. Trata-
-se de uma composição de 130 versos, versada em terza rima, o metro mais comum para
a epístola3. Contudo, é difícil classificar o seu género com exatidão, uma vez que a rubrica
que inicia o poema não o indica e, como foi já estudado por Almeida4,
não era óbvio (continua a não o ser) destrinçar géneros como a epístola, a elegia ou mesmo
a sátira. A especificidade de cada um dos géneros na poética estaria longe de ser evidente,
e tudo leva a crer que estas designações gozavam de propriedade comutativa aos olhos
dos autores e leitores de Quinhentos.5
O poema é inaugurado por uma nota dedicatória que anuncia explicitamente o
argumento a ser abordado: “Do frade da rainha em louvor da vida sulitaria a hum homem
que, deixada Lisboa, se foi viver a hũa quinta”. O nome do destinatário do poema nunca
chega a ser referido ao longo do texto, não valendo, por isso, tanto enquanto exemplo
1 No Cancioneiro Juromenha o poema corresponde à composição nº135. Cf. Anexo 3. 2 (2018: 72). 3 Almeida (1989: 17). 4 Ibid., 19-26. 5 Ibid., 19.
74
singular, mas antes assumindo-se como modelo de um ideal de conduta do Homem.
Assim, o texto, além de delectare, cumpre também um outro preceito defendido por
Horácio na sua Epístola aos Pisões: docere. O destinatário é a figura modelar que serve
o propósito pedagógico que o autor visa atingir a par da repreensão dos vícios da
sociedade.
A composição alude, inicialmente, à Idade de Ouro e ao seu sucessivo
deterioramento, servindo-se deste tópico para caracterizar o presente como uma época
desvirtuosa, de costumes corrompidos. Porém, existe ainda esperança para aqueles que
seguem o caminho escolhido pelo destinatário do poema: rumar ao campo e
tranquilamente optar pela vida contemplativa, encontrando, assim, reminiscências da
perdida Idade de Ouro. No seguimento do poema, dá-se ainda destaque ao contraste entre
os dois géneros de vida apresentados e as respetivas pessoas que optam por cada um deles:
a vida na corte, preferida pelo vulgo, e a vida contemplativa, preferida pelo sábio.
Ora, estamos perante um poema em que, além das raízes clássicas, não é de menor
importância ter em consideração, na sua análise, os tratados latinos de Petrarca – De vita
solitaria e De otio religioso. O otium de Petrarca pressupõe a colação das diversas
perspetivas clássicas sobre o conceito, nomeadamente de Cícero6, Séneca7 e Horácio, mas
adquire contornos específicos8 à luz da sua perspetiva cristã, relacionada, sobretudo, com
o exemplo do otium associado à vida monástica por Santo Agostinho9. Como esclarece
Barsella10, Petrarca parece harmonizar estas duas visões:
Otium had two different but related meanings in classical and medieval religious
traditions. While in antiquity it indicated a speculative pause in active life, in Christianity
it was associated with contemplation and “vacatio” that, connected to “videre”, indicated
physical and mental alacrity aimed at moral perfection in view of salvation. Petrarch
stressed the necessity of a continuous activity of the mind during contemplative rest.
Os dois tratados complementam-se um ao outro, na medida em que visam expor
o mesmo objetivo – como atingir a virtude e a perfeição moral na solidão –, mas
apresentam estratégias diferentes, adequadas ao modo de vida do letrado, no De vita
6 Sobre a conceção de otium na obra de Cícero, veja-se De Oratore (De orat.) I.1, De officiis (Off.) III.2-4. 7 Sobre a conceção de otium para Séneca, veja-se, por exemplo, Ad Lucilium Epistulae Morales (Ep.) I.8,
X.82. 8 Sobre este assunto, veja-se Tarrío (2021b). 9 Witt (2002: XII-XIII). 10 Barsella (2009: 202).
75
solitaria, e do monge que procura a salvação, no De otio religioso. Além disso, é
necessário ter em consideração que tanto o conceito de otium secular, como o religioso,
“must be dedicated to parallel study and meditation on secular and Christian scriptures,
where Christian ideals and ethical values enlightened each other”11. Assim, não há dúvida
de que estes seriam dois textos essenciais para um frade que sempre se dedicou a “todo
genero de letras humanas y diuinas”12 e expressava abertamente o seu apreço pelo otium.
Neste contexto, cabe ainda notar a filiação de Jorge Fernandes na ordem
franciscana à luz da devoção do autor dos tratados latinos por esta mesma ordem. O
apreço de Petrarca pela ordem dos frades menores é notório, por exemplo, no segundo
livro do De vita solitaria13, quando o autor escolhe S. Francisco de Assis como exemplo
pleno dos três géneros de solidão: de lugar, de tempo e da alma. Segundo Petrarca, S.
Francisco era aquele que, mais do que ninguém, tinha conseguido seguir com rigor todos
os preceitos inerentes à vida solitária, fazendo com que a sua alma, que por si só já
aspirava a desígnios divinos, se aproximasse cada vez mais do amor de Cristo. No De
otio religioso, Petrarca segue a mesma estratégia e confirma a sua posição, afirmando
novamente que considera São Francisco o melhor exemplo, de entre todos os santos, do
homem que desprezou as tentações no mundo14.
Parece haver fortes indícios que apontam para o facto de o autor português poder
ter tido acesso às obras de Petrarca. Desde as primeiras décadas do século XV, os tratados
circularam em Portugal no ambiente monástico alcobacense, como demonstram as obras
Orto do Esposo e Boosco Deleytoso. Os dois tratados em prosa portugueses revelam o
profundo conhecimento que se teria das obras contemplativas de Petrarca, das quais se
fazem traduções de vários capítulos e de onde são retirados diversos dos exemplos
apresentados. Dos dois tratados do escritor italiano, pode ainda destacar-se a primazia
dada ao De vita solitaria15.
11 Ibid., 206. A autora expõe ainda a principal diferença entre os dois tipos de otium: “While monks testified
to a perfect spiritual life through their sanctity, philosophers, poets, and princes were the moral and political
guides to the edification of Christian society.” 12 Cruz (1612: fl.4r). 13 II.VI.8-13 (1999: 233-237). 14 II.IV.17,34 (2000: 276-279, 296-299). 15 Tarrío (2021b) aponta a relevância do tratado de Petrarca na tratadística portuguesa da primeira metade
do século, incluindo na obra de D. Duarte. A presença desta obra petrarquiana na literatura portuguesa do
século XV já foi assinalada por Santos (1989: 91-108); Dias (1989: 229-245); Anastácio (2005: 41-80);
Marnoto (2005: 251-271). Acerca do Petrarquismo na literatura portuguesa renascentista, contamos com
uma síntese muito útil de Marnoto (2015). No que respeita à poesia portuguesa do século XVI, não temos
76
Além da tradição que provém dos tratados portugueses que entram em diálogo
com as obras petrarquianas, Jorge Fernandes poderá ter tido acesso a esta obra por
intermédio de traduções castelhanas, uma vez que há conhecimento de traduções em
Espanha desde meados do século XV16 e o desenvolvimento da imprensa facilitara a
circulação e importação de livros no decorrer do século XVI17. De resto, a existência de
uma tradução da obra de Petrarca em Medina del Campo18, publicada por Guillermo de
Millis, para onde se retirou o franciscano na fase final da sua vida, vem aumentar, ainda
mais, as probabilidades de o poeta português ter tido acesso à tradução.
Certamente Jorge Fernandes reconheceu no Petrarca moral as preocupações que
o assolavam, o conflito entre a civilização impregnada de vícios e o homem que anseia a
virtude longe desse tumulto, daí que tenha reelaborado em forma poética este conceito de
matriz petrarquista já tratado em prosa, nos tratados portugueses de Alcobaça.
Atentemos em mais alguns detalhes desta composição. O poema inicia-se com a
descrição da Idade de Ouro, associada à descida de Saturno à Terra. Saturno desce do
Olimpo fugindo do seu filho Júpiter e vem habitar entre os homens, reunindo-os,
civilizando-os, dando-lhes leis, segurança e paz. Porém, a concórdia reinou entre eles
pouco tempo, dando lugar à tirania, à ambição e à cobiça. Como houve já oportunidade
de explicar em outro lugar19, esta parte inicial da composição parece ter como possível
modelo a Eneida de Vergílio, dada a semelhança na formulação do mito, nomeadamente
por se assumir a existência de homens num momento anterior à Idade de Ouro.
Mais relevante para compreender o tema do otium, no poema, será atentarmos na
posterior associação da tranquilidade e da paz, características da Idade de Ouro, à vida
rural, como se houvesse uma continuidade entre elas (vv. 22-27):
Mas se o reformador da humanidade
hoje da esphera setima descera
a renovar justiça, paz, verdade,
conhecimento de nenhum trabalho monográfico sobre a receção da obra De vita solitaria, mas não é este o
lugar para tal indagação. 16 Cf. Wilkinson (2010: 577); Martins (1956: 133-134). 17 Sobre a circulação de livros na Península Ibérica veja-se supra o capítulo I.4. Poetas bilingues. Sobre a
circulação e transmissão dos clássicos no século XVI, cf. Tarrío (2015). 18 Cf. Wilkinson (2010: 577, n.º 14783). Sabe-se que a obra se encontrava lá a partir de 1553. 19 Referimo-nos ao artigo “Jorge Fernandes, leitor dos clássicos” publicado no volume A Literatura
Clássica ou os Clássicos na Literatura, ainda no prelo.
77
pode ser que as cidades desfizera
e pera os homens pôr milhor morada
os solitarios bosques escolhera.
A referência à sétima esfera não pode deixar de remeter o leitor da época para a
alusão ao sétimo céu do Paraíso na Divina Comédia de Dante20. É um pormenor
considerável que o poeta localize Saturno no sétimo céu, uma vez que é o lugar onde
estão os espíritos contemplativos. Saturno é, portanto, associado à Idade de Ouro,
encontrada apenas na solidão de uma vida contemplativa na natureza, onde o humanista
do século XVI se poderia dedicar plenamente ao seu estudo e à produção literária, que
contribuiriam para o seu enriquecimento intelectual e para a sua aproximação de Deus21.
De facto, também na obra de Dante, no final canto XXVIII (139-141) do
Purgatório, há uma breve, mas significativa referência à Idade de Ouro. Estando Dante
no Jardim do Éden, Matelda sugere-lhe que os poetas antigos, ao escreverem sobre a
Idade do Ouro e o seu permanente estado de felicidade, porventura teriam sonhado com
aquele mesmo lugar onde Dante e Matelda se encontravam. Desta forma, Dante não só
se filia na tradição clássica do tópico, como o associa a um conceito cristão que está
também subjacente ao poema de Jorge Fernandes, isto é, associa as fabulações da Idade
do Ouro a um lugar onde é permitido ao Homem estar mais próximo de Deus.
Ora, o lugar onde é permitido ao Homem contemporâneo de Fernandes aproximar-
-se da virtude é o campo, local escolhido pelo destinatário do poema em detrimento da
cidade. Jorge Fernandes segue, assim, o exemplo de Horácio e aponta os vícios e a
corrupção dos costumes do ambiente palaciano, enquanto louva as virtudes e qualidades
da salubre vida campestre. Entre os problemas referidos, encontramos a ganância, a
avareza e o deslumbramento pelas riquezas, que de nada valem na ótica franciscana e
petrarquista do poeta. Repare-se no facto de ser precisamente atribuído a Petrarca o papel
de precursor da redescoberta da obra de Horácio, nomeadamente do género epistolar que,
posteriormente, passou a assumir a forma consagrada por Dante para expressar temas de
20 Divina Comédia, Paraíso XXI, XXII. 21 Cf. Marnoto (2015: 24).
78
índole moral, ou seja, a terza rima22, precisamente utilizada neste poema para tratar de
temáticas dessa natureza.
Se a nível formal Fernandes segue a tradição italiana, Horácio é evocado pelo
tema central: o retiro do sábio, que se aparta dos vícios que alastram entre o vulgo. Neste
contexto, não deixa de ser importante salientar que, dos dez poemas presentes no
Cancioneiro Juromenha atribuídos ao franciscano, encontremos também a tradução já
analisada. O facto de Fernandes ter escolhido esta ode em particular para traduzir, cujo
tema é a crítica da devassidão e da ganância do povo romano, é bastante significativo se
o relacionarmos com a composição agora estudada.
Atentemos nestes versos do poema renascentista, em que se faz referência à
vacuidade dos bens materiais e do poder: “Agora já o [Saturno] espanta, e desengana /
[…] Ver de mando e riqueza o vão desejo”; na ode de Horácio, a questão é exposta da
seguinte forma (Carm. 3.24.46-51):
vel nos in Capitolium,
quo clamor vocat et turba faventium,
vel nos in mare proximum
gemmas et lapides aurum et inutile,
summi materiem mali,
mittamus […].23
O logro, a farsa, a mentira e a constante dissimulação são também características
que ambos os poetas apontam, como vemos nos versos de Fernandes (vv. 67-73):
A pique vive sempre este receio
De modo que mil vezes he forçado
Falar, tratar, viver ao modo alheo;
22 Anastácio (1998, vol. I: 132-133). Sobre o percurso histórico-literário da terza rima, veja-se Marnoto
(2015: 268-269). 23 Tradução de Jorge Fernandes:
Ou nós no Capitolio, onde nos chama
o povo alvoroçado,
ou nalgum mar chegado
lancemos este bem, que o mundo ama,
estas pedras e este ouro sem proveito
que tanto dano têm no mundo feito.
79
O animo, o sentido perturbado
Metido entre enemigos encubertos,
A perigos eternos arriscado,
Muito mais entre amigos pouco certos
Horácio, por sua vez, para salientar os mesmos aspetos, descreve o
comportamento de um rapaz que desde sempre se habituou a ver o seu pai a ser desonesto
e a enganar até as pessoas mais próximas. O rapaz deixou-se afetar e moldar de tal forma
pelo exemplo do progenitor, que nele já não se reconhecem os costumes romanos,
preferindo, por exemplo, o lazer ao estudo (Carm. 3.24.60-65).
A corrupção moral e o isolamento como tentativa de salvação estão associados à
dicotomia campo/cidade já em Horácio. A visão da cidade como um local de negotia, de
vida política, de preocupações, ansiedade e excessos é frequentemente oposta à vida rural,
tranquila, simples e moderada, que se pauta pela liberdade e pela dedicação ao otium, no
qual se inclui o tempo consagrado à escrita e à contemplação24.
Vejamos como se aproxima Jorge Fernandes de Horácio neste aspeto. A epístola
14 do primeiro livro das Epístolas do poeta latino é dirigida ao escravo responsável por
cuidar da sua propriedade rural, na Sabina. O autor manifesta o seu desejo de voltar para
o campo, enquanto o seu escravo desejaria regressar à cidade: “rure ego viventem, tu dicis
in urbe beatum” (Ep. 1.14.10)25. Esta dissemelhança leva-o a caracterizar os dois
ambientes. Quanto à cidade, alude-se aos seus divertimentos, como os “jogos e banhos”
(Ep. 1.14.15), as tabernas, os bordéis e as meretrizes: “fornix tibi et uncta popina /
incutiunt urbis desiderium, video” (Ep. 1.14.21-22)26. O facto de ser um local de negócios
também não é esquecido: “me constare mihi scis et discedere tristem / quandocumque
trahunt invisa negotia Romam” (Ep. 1.14.16-17)27. Já o campo é descrito com uma aura
de pureza e simplicidade que contrasta com o ambiente citadino (Ep. 1.14.37-39):
24 Sobre a dicotomia campo/cidade em Horácio, veja-se Harrison (2005: 241-242). 25 Todas as traduções da epístola são de Pedro Braga Falcão, em Horácio (2017: 99): “Eu digo que é feliz
quem no campo vive, tu o que vive na cidade”. 26 “Vejo que são os bordéis, as sebosas tabernas que te incutem o desejo da cidade”, Horácio (2017: 99). 27 “daí saio sempre triste [do campo], sempre que a Roma me arrasta algum dos meus detestados negócios”,
Ibid., 99.
80
non istic obliquo oculo mea commoda quisquam
limat, non odio obscuro morsuque venenat:
rident vicini glaebas et saxa moventem.28
Nesta epístola, encontramos ainda um outro tópico horaciano que terá continuação
no poema de Jorge Fernandes: a associação da vida solitária ao sábio/intelectual para
quem este modo de vida é aprazível29, mas que contrasta com a ideia que o vulgo tem
dela, por não compreender as ações dos grandes homens, uma vez que o profanum volgus
se rege pela admiração à riqueza e não à virtude. Assim, Horácio refere (Ep. 1.14.19-21):
nam quae deserta et inhospita tesqua
credis, amoena vocat mecum qui sentit, et odit
squae tu pulchra putas.30
E Jorge Fernandes reproduz o tópico desta forma (vv. 115-117):
Mas he já a vida tal que he mui possivel
que, pois de bre[u] o necio a reprehende,
por isso a tenha o sabio por sofrivel.
O tema do otium31 aqui tratado pode ainda ser analisado na sua relação com a
perspetiva estoica, no modo como o entenderam Cícero32 e Séneca33. Nesse contexto, o
otium surgia ligado às artes liberais, livres, para as quais a libertação do trabalho e da
política – os negotia – era essencial para a dedicação às letras, ao otium intelectualmente
produtivo, associado à raiz grega da palavra: scholê34. Parece haver, para os poetas
quinhentistas, uma associação entre a conceção do sábio estoico35, que procura
aproximar-se da virtude, e o ideal cristão do santo, uma vez que o método para alcançarem
28 “Aí, ninguém me olha de lado, nem me desgasta pelos favores de que gozo, nem me envenena com o
ódio de uma calada mordedura. Os vizinhos riem-se por me verem remexer a terra e as pedras”, Ibid., 100. 29 Cf. Harrison (2005: 236). 30 “Aquilo que tu pensas ser um ermo deserto, inospitaleiro, um sítio aprazível o há de chamar alguém que
pensa como eu, odiando aquilo que tu consideras belo”, Horácio (2017: 99). 31 Sobre o tema do otium no mundo romano, veja-se Pereira (2013: 388-397). 32 Cf. De orat. I.1, Off. III.2-4. 33 Cf. Ep. I.8, X.82. 34 Tarrío (2001a: 72, 74), Pereira (2013: 392). 35 Veja-se, por exemplo, de Séneca, Ep. XIV.90.
81
o fim a que se propõem é idêntico e passa por fazer do retiro um momento prolífero para
refletir e aprender, tal como era já defendido por Séneca: “Otium sine litteris mors est et
hominis vivi sepultura”36. Ainda assim, para este autor latino, o sábio deveria ter a
capacidade de se manter imperturbável, conseguindo atingir o estado de felicidade
independentemente do sítio onde se encontrasse37, enquanto, na visão de Fernandes, é
evidente a aceitação de que os fatores externos influenciam o estado de espírito do sujeito.
Além disso, este autor afasta-se do Estoicismo quando defende o isolamento no campo
sem restrições, uma vez que, na ótica estoica, o Homem deveria privilegiar a vivência em
comunidade, onde poderia ser útil à sociedade38. Neste sentido, Fernandes abraça uma
forma de Estoicismo relativa ou moderada, próxima do próprio Horácio. Ademais, o autor
venusino associava frequentemente este tópico ao tema da paupertas e da aurea
mediocritas39, o que correspondia perfeitamente ao ideal de vida preconizado pela ética
franciscana.
Note-se que, além das raízes clássicas do tópico, não é possível compreender a
verdadeira aceção do otium sem o relacionarmos com o contexto em que surge e com os
agentes envolvidos na sua defesa. Ora, o motivo era já glosado entre os poetas da geração
anterior à de Jorge Fernandes e surge recorrentemente associado a uma componente
biográfica que apela à mesma oposição entre o ambiente corrupto da corte, do qual os
sábios letrados foram capazes de se afastar, e a eleição do espaço natural como ambiente
propício ao otium40. Luís da Silveira alude ao tópico num poema dirigido a Simão de
Sousa d’Océm, de pendor autobiográfico, como atesta a rubrica “Trovas do conde da
Sortelha Luís da Silveira, estando na Beira recolhido, a Simão de Sousa d’Océm, que
estava na corte”41. Após a contraposição entre os dois espaços, dos quais Luís da Silveira
fala “como amigo / que esteve já no perigo / e agora vê-se [de] fora, / que a verdade é ir
embora / semear centeo e trigo” (vv. 151-155), o poeta faz a apologia do ócio estudioso42.
36 Ep. X.82, 3. Na tradução de Segurado e Campos: “um ócio à margem da cultura equivale à morte, é como
o sepulcro de um homem vivo!”, Séneca (2014: 360). Petrarca cita precisamente esta afirmação de Séneca
no De vita solitaria I.III.19 (1999: 80-81). 37 Cf. Ep. VIII.72, 4-5. 38 Off. I, 158. 39 Pereira (2013: 395). Neste âmbito, são exemplificativas as Odes II.16, II.18 e III.16 e as Sátiras I.6 e II.6. 40 Sobre este tema, veja-se Tarrío (2001a: 114-115); Tarrío (2021a); Earle (1985: 71-104). 41 Torrejón (2017: 444-449). 42 “[…] quando estou só / estou mais acompanhado. / Tenho esta arte provada, / de que me hei por mui
ditoso: / que quando não faço nada estou menos ocioso.”, vv.124-129.
82
Sá de Miranda, conhecido pelo seu apreço pelos motivos horacianos, também
dedicou diversas composições a este tema, das quais se destaca a Carta a António Pereira
Senhor do Basto, que havia partido para a corte43. Uma vez mais, o local eleito pelo amigo
é reprovado pelo letrado, que dali destaca o bulício, a pobreza, a doença que grassa e a
imoralidade que lhe desagrada: “Ouves, Viriato, o estrago / que cá vai dos teus
costumes?” (vv.21-22)44. Perante o estado da capital, Sá de Miranda alude ao mito das
idades para, como percebemos em Fernandes, destacar a progressiva degradação moral
que se verifica no Homem. Para o poeta, o esforço para atingir a virtude tem de ser agora
muito maior e “onde remédio achará / se à natureza não for?” (vv.334-335). Ora, é
precisamente aí que Sá de Miranda situa o seu otium, contemplando a leitura dos autores
mais conceituados para a época45 e a aproximação de Deus.
Outro caso modelar desta geração é João Rodrigues de Sá de Meneses que é
encarado pelos contemporâneos de Fernandes como um exemplo a seguir no que respeita
ao otium46. Tanto Pêro de Andrade Caminha como António Ferreira destacam a nobreza
de carácter que lhe permitiu sempre conciliar as suas obrigações oficiais junto da corte
(negotium) com o tempo livre que dedicava às letras (otium), tópico que foi tão glosado
neste período recorrendo à dicotomia armas versus letras. Na epístola que cada um dos
dois poetas escreve ao “Pai das Musas desta terra”47, é possível coligir indícios de que Sá
de Meneses era um modelo de inspiração, uma vez que, embora estivesse embrenhado no
ambiente áulico, desprezou as honras e as riquezas, privilegiando a virtude e elegendo o
otium como forma de a alcançar48. Caminha também não esquece outro dos vultos
paradigmáticos que referimos – Sá de Miranda –, destacando a sua coragem ao sair da
corte e optar pelo campo49.
Por sua vez, António Ferreira50 salienta o papel modelar desta “ilustre geração
forte, e prudente” (v.2), da qual Sá de Meneses é um dos grandes representantes. O
ascendente do letrado sobre estes poetas mais jovens baseia-se na capacidade de se guiar
43 Este assunto foi já analisado por Earle (1985: 71-104) e Tarrío (2021a). 44 Cf. Miranda (1989: 215-228). 45 Nomeadamente Ariosto, Bembo, Sannazaro, Garcilaso e Bóscan. 46 Sobre este assunto veja-se Tarrío (2001a: 114-115). 47 Epístola 17 de Caminha a João R. de Sá de Meneses, v.1, cf. Anastácio (1998, vol. II: 908-916). Esta
expressão é decalcada na carta 6 de António Ferreira que referiremos a seguir, em que Sá de Meneses é
chamado “Antigo pai das Musas desta terra” (v.1). 48 Cf. epístola 17 de Caminha, a João Rodrigues de Sá de Meneses, vv.6-10, Anastácio (1998, vol. II: 908-
916). 49 Ibid., vv.101-108. 50 Referimo-nos à Carta 6, dirigida a João Ruiz de Sá de Meneses, cf. T. Earle, cf. Ferreira (2000: 270-274).
83
pela razão que, em vez de o conduzir à corrupção moral, como a tantos outros na corte,
leva-o a escolher o virtuoso otium51.
Ora, perante estes testemunhos, será necessário indagar o motivo pelo qual esta
geração de novos poetas, não pertencentes à alta linhagem nobiliária, sentiu o dever de
reconhecer o mérito dos precursores, assumindo-os como modelo de inspiração.
Durante o reinado de D. Manuel, a necessidade de dar uma educação literária à
nobreza impôs-se, de modo que ficou “estipulado até que nenhum moço fidalgo tivesse
moradia no Paço, sem apresentar certidão comprovativa de estudos”52. Com a política
cultural levada a cabo por D. João III, esta posição tornou-se ainda mais veemente,
alargando a oportunidade de enveredar pela via dos estudos tanto àqueles que
genuinamente tinham interesse em aprofundar os seus conhecimentos, como aos que
estavam interessados em ascender a cargos públicos, independentemente de terem ou não
nascido aristocratas. Obviamente, esta foi a oportunidade de que beneficiou o frade cuja
história aqui tentamos reconstruir, mas foi também o motivo pelo qual os verdadeiros
homens de letras, isto é, os que se dedicavam aos studia humanitatis sem intenções de daí
vir a tirar ganhos imediatos, criticaram aqueles que viam nas letras uma forma de fazer
lucro, como acontecia, por exemplo, com os juristas53. Esta ideia foi sobejamente
criticada pelos humanistas, veja-se, por exemplo, a carta escrita por André de Resende a
Damião de Gois em 1535: De vita aulica. Poetas ibi iacere54.
Assim sendo, perante este cenário, os poetas mais jovens, contemporâneos de
Fernandes, sentindo-se desconfortáveis com a corrupção que grassava até no
aproveitamento das letras e que fazia subverter o valor do saber, decidiram privilegiar o
seu ofício e viver da sua perícia poética, arredando-se o mais possível de qualquer
negotium do Paço e, como tal, desprezando a vida ativa55. Assim, compreende-se que
tenham sentido a necessidade de eleger da geração anterior aqueles que, embora
cumprindo obrigações na corte, souberam manter-se fiéis ao ideal de otium ciceroniano,
comportamento que consideravam raro e, como tal, digno de mérito.
51 Ibid., vv.139-141, 145-147. 52 Rebelo (1982: 207). 53 Ibid., 215-221. 54 Cf. Resende (1990: 125-133). 55 Rebelo (1982: 216-217), Tarrío (2001a: 114-115).
84
Deste modo, somam-se as composições desta geração de poetas, entre eles os já
referidos António Ferreira e Pêro Andrade de Caminha, mas também André Falcão de
Resende e Diogo Bernardes, em que se exalta a vida contemplativa associada ao otium e
se despreza o mundo áulico e a vida ativa, isto é, os negotia56. Jorge Fernandes estava em
plena sintonia com estes autores e com a tradição, revelando as mesmas preocupações e,
muitas vezes, até o mesmo modo de as expressar. Não obstante, é essencial não desprezar
a particularidade de o autor professar a ordem franciscana, o que faz do otium litteratum
que defende, simultaneamente, uma forma de se aproximar da “gloria eterna” (v.57),
através deste “santo viver” (v.84) e do desprezo pelos “temores” (v.65) do “mundo que
erra” (v.58)57. Contando com este fator, será fundamental fazer referência a outro autor
que também encarou o otium desta forma – Frei Heitor Pinto –, cujo percurso já foi aqui
mencionado pela semelhança com o de Jorge Fernandes58.
A partir de 1561, o monge hieronimita começou a escrever Imagem da vida cristã,
uma das obras portuguesas de teologia mais apreciadas no século XVI. Além das várias
edições feitas em vida do autor, também a tradução espanhola gozou de um apreço
considerável junto dos leitores59, o que, juntamente com a estima que sabemos que D.
Catarina nutria por aquela ordem e pelos sermões deste monge, é um forte indicador de
que Jorge Fernandes, estando na corte, conheceria bem a obra. A semelhança no
tratamento do tópico é particularmente evidente no Diálogo da vida solitária, em que a
perspetiva do autor é manifestamente veiculada pelo peregrino português.
De acordo com o que dissemos anteriormente relativamente aos escritores desta
geração, Pinto assume também uma atitude radical no que diz respeito à dicotomia vida
ativa versus vida contemplativa. Segundo o peregrino português, a segunda alternativa é
a única verdadeiramente virtuosa, uma vez que nada do que diga respeito aos negotia
poderá levar à virtude, como afirma aquando da sua explicação do epitáfio de Símilo:
E, vendo despesa sua idade, e que a morte entrava já pelo arrabalde de sua vida, mandou
pôr na sua sepultura êsse letreiro, que aí trazeis, em que declara que, ainda que sua idade
56 O assunto já foi abordado no artigo citado na nota 19. A título de exemplo, veja-se as cartas I.9 e 10 de
António Ferreira, as odes III.7 e 8, assim como a epístola III.16 de Pêro de Andrade Caminha, ou ainda a
ode “ao conde das Idanhas estando fora da Corte” de Diogo Bernardes e a sátira VII a Diogo de Miranda
da autoria de André Falcão de Resende. 57 O tema da preparação do Homem para a felicidade eterna que tanto ocupou os poetas desta geração foi
já alvo de análise por Almeida (1989: 92-95). 58 Cf. supra capítulo I.2. D. Catarina: mecenas de artistas e poetas. 59 Earle (1985: 93).
85
foi longa, não viveu mais que que sete anos: não porque não fôsse de mais, mas porque
não chamava vida senão à que viveu em quietação e recolhimento, apartado dos negócios
e tráfegos do mundo. Aos anos que gastara na côrte não chamava anos, mas perdição
deles. […] Quem quiser pôr os olhos na razão verá que êle a tinha.60
Adiante, o autor faz questão de definir o otium que atestámos anteriormente em
Fernandes, em moldes próprios:
[…] êle na sua quintã estava ensinado com seu exemplo a fugir do mundo, e desprezar
suas vaidades e falsas esperanças. E ali podia escrever livros, com que aproveitasse não
sòmente à sua cidade, mas a todo o mundo, não sòmente aos presentes, mas aos futuros,
de maneira que seu ócio servisse a nosso negócio. O que se não pode tão bem fazer nos
tumultos da vida pública como no repouso da solitária, onde o juízo quieto pode melhor
filosofar.61
Por fim, ressalta, ainda, a apologia da vida solitária, o designado “santo viver”
(v.84) por Fernandes, como forma de ascender aos mistérios divinos, à “gloria eterna”
(v.57):
O que me a mim parece é que nos quis Deus significar que nos importa muito
sacrificarmos-lhe nosso próprio filho, que é nosso próprio desejo e vontade, no fogo do
divino amor, e que o lugar mais conveniente para isto é o recolhimento e vida solitária e
contemplativa. Êste é o alto monte da visão, onde alma devota vê grandes mistérios
escondidos e encobertos. 62
Como se pôde verificar, Jorge Fernandes reelabora o tópico do otium coadunando-
-o com o seu contexto, o que explica o especial apreço que deveria ter por um motivo
que, mais do que uma simples temática literária, dava corpo ao que vivia e experienciava.
Estamos perante um frade franciscano que se acolheu sob a autoridade da sua mecenas,
D. Catarina, para poder estudar e subsistir enquanto escrevia e se dedicava às tarefas
religiosas. Entre a vontade de se dedicar às letras (subentende-se também as sagradas
letras) e a obrigação de se manter na corte, é provável que o desconforto e a angústia
tenham aflorado, concorrendo, portanto, para a defesa do tão desejado otium. Daí que
Fernandes tenha encontrado, principalmente em Horácio e em Petrarca, uma voz afim na
60 Pinto: (1940: 4). A posição é reforçada várias vezes ao longo do diálogo, veja-se, por exemplo, as
afirmações do peregrino português nas páginas 10 e 42. 61 Ibid., 8. 62 Ibid., 37.
86
qual se reconhecia, não só pela filosofia de vida que estes autores apregoavam e que se
harmonizava com a sua ética franciscana, mas também por lhes conceder o estatuto de
mestres, de príncipes dos poetas63. Só mais tarde, numa fase posterior à redação desta
composição, viria este frade a encontrar o tempo e o espaço para o seu otium ao entrar no
convento, em Castela.
63 No final do século em que morre Jorge Fernandes, datada de 1681, há precisamente uma edição das obras
de Horácio intitulada Obras de Horacio principe dos poetas latinos lyricos, BNP L. 2287 V.
87
CONCLUSÃO
Exegi monumentum aere perennius.
Horácio1
O estudo que aqui desenvolvemos vem ampliar o conhecimento que tínhamos
acerca da literatura renascentista peninsular, resgatando um dos poetas que
permaneceram ignorados pelas vicissitudes da história, mas que hoje vem dar força à
célebre mensagem de Horácio: Exegi monumentum aere perennius. A poesia, embora seja
a mais etérea das artes, é, incrivelmente, aquela que sobrevive ao tempo e se estende para
a eternidade. Como tal, ao resgatar esta figura renascentista, estamos em condições de
atestar a veracidade de tal característica, que permite hoje arredar a escuridão do ar e dar
lugar à luz do entendimento. O nosso contributo vem na linha de raciocínio de autores
como Fardilha, que chamam a atenção para o caminho que ainda há a fazer:
Há que reconhecer, humildemente, que ainda temos hoje uma visão claramente distorcida
do que se terá verificado no século XVI em Portugal, que se encontra veiculada nos
instrumentos mais divulgados de acesso à nossa história literária, nos quais aparecem
sobrevalorizados certos autores, enquanto outros estarão certamente subestimados.2
Neste sentido, a primeira conclusão que nos é possível aduzir da nossa
investigação prende-se com o facto de Jorge Fernandes apresentar um percurso norteado
pela sua excelência, que lhe valeu a proteção mecenática de D. Catarina. Neste âmbito,
destacou-se a qualidade do ensino patrocinado pela rainha, junto da corte e,
posteriormente, ligado à Universidade de Coimbra que lhe proporcionou uma forte
formação humanística, patente na sua produção literária, e que vem destacar o papel
preponderante da rainha e do rei como impulsionadores de cultura.
Do ensino em Coimbra, foi difícil delinear o percurso de Jorge Fernandes com
exatidão, dada a escassez de registos de que dispomos, contudo, foi possível demonstrar
que, tanto durante o ensino pré-jesuítico como depois da sua implementação, o frade terá
1 Od. III.30. 2 Fardilha (2005: 138).
88
tido acesso a um curriculum vanguardista que permitiu a sua formação nas línguas e
literaturas clássicas, assim como nas matérias teológicas, ainda que estas não tenham sido
privilegiadas na nossa análise. Face à parca informação disponível, não fomos capazes de
compreender até que ponto o desagrado de D. Catarina face ao ensino da Companhia de
Jesus pode ter influenciado ou não a formação de Fernandes, certo é que deverá ter sentido
o clima de hostilidade face a alguns professores antes da transferência da direção da
Universidade.
Ao analisar as suas circunstâncias, pudemos concluir que Fernandes não foi caso
único de mecenatismo por parte de D. Catarina, esta ocupação seria, sem dúvida, uma das
suas principais preocupações a par da sua coleção de objetos artísticos. Além dos poetas
e artistas que foram subsidiados pela monarca na sua educação, houve ainda outros
chamados por ela a desempenharem cargos junto da corte no auge da sua formação.
Igualmente significativas neste âmbito, revelaram-se as diversas dedicatórias de obras
que registam o apreço de inúmeros escritores pela rainha, assim como as outras tantas
obras que sabemos que por ela foram custeadas. Fica ainda evidente que a preocupação
de D. Catarina pelo ensino não se limitou ao patrocínio destes homens, mas também à sua
veemente intenção de dar continuidade aos estudos femininos no seio da corte.
Considerando as obras do nosso poeta e as particularidades da sua vida, foi
manifesta uma das suas faculdades, comum a tantos outros da sua época: o bilinguismo.
Esta evidência juntamente com a efetiva circulação de intelectuais e de obras permitiram-
-nos compreender que a aliança cultural entre os dois países ibéricos se caracterizava por
um profícuo intercâmbio de saberes, mais forte do que o vínculo político estabelecido.
Por isso, concluímos que a literatura demonstrou ser um eficiente meio de encontro e a
língua, mais do que separar, serviu para ligar e difundir o que de melhor se produzia nos
dois lados da península.
De acordo com a obra conservada, Jorge Fernandes foi leitor e emulador do poeta
latino Horácio. Desde logo, o cotejo dos autores e obras dadas na universidade permitiu-
-nos perceber que Horácio era lido e analisado, especialmente o livro III das Odes, ao
qual o nosso autor dá preferência ao selecionar a composição a traduzir. Além disso, a
popularidade do venusino entre os poetas da geração de Fernandes e da geração anterior
era inequívoca e revelou ter seguimento na obra do nosso poeta.
89
Da obra de Fernandes, foi possível concluir que, por um lado, o franciscano via
em Horácio uma autoridade no que concerne à retórica, como francamente afirma, e, por
outro lado, que se identificava com os valores morais nela defendidos e, como tal, fez
questão de se juntar ao conjunto de autores que emularam o poeta latino nas suas obras.
Aliás, não se limitou a reelaborar tópicos horacianos, Jorge Fernandes traduziu, pelo
menos, uma ode de Horácio. Neste sentido, é significativa a análise feita à tradução, uma
vez que, antes de mais, percebemos que Fernandes tinha um bom conhecimento da língua
latina, e, além disso, chegamos facilmente à conclusão de que o frade, mais do que um
tradutor que coloca à disposição dos demais um poema de outro autor, é um leitor que se
coloca na perspetiva de Horácio e, como poeta que é, cria algo novo e pessoal.
Foi ainda possível chegar a conclusões relacionadas com outros autores que
seriam reconhecidos por Fernandes, designadamente Dante, mas, principalmente
Petrarca. Deste, salientam-se os tratados latinos De vita solitaria e De otio religioso que
preconizavam um ideal de otium, afastado do tumulto do mundo, defendido pelo nosso
autor na sua composição “Quando do mundo novo a gente nova”. Petrarca juntamente
com o seu precursor Horácio tornaram-se, assim, modelos poéticos, mas também ideais
de vida que se coadunavam com a ética franciscana de um frade que vivenciou os
meandros da corte e, por isso, certamente ambicionava refugiar-se no convento ou no
campo, longe dos negotia, para poder dedicar-se unicamente ao saber e à aproximação de
Deus.
Diante do trabalho realizado, são ainda alguns os assuntos que gostaríamos de ter
explorado, mas que requereriam mais tempo do que dispomos para finalizar o presente
estudo. Relativamente à obra de Jorge Fernandes, ficou por ler e analisar a “Elegia
consolatória á Rainha D. Catherina em a morte da Princeza D. Joanna Mãy del Rey D.
Sebastião” transmitida pelo Cancioneiro Verdelho, pertencente a uma coleção privada,
que poderia ainda, talvez, iluminar-nos sobre pormenores biográficos e, certamente,
alargar o nosso conhecimento sobre a sua obra poética. Além deste aspeto, seria oportuno
investigar os concursos de poesia realizados em Portugal, especialmente em Lisboa, na
época, já que Barbosa Machado atesta que Fernandes terá concorrido a um deles e obtido
o “primeiro prémio no verso latino”3, mas não chegaram até nós quaisquer versos em
latim do poeta.
3 Machado (1966b: 520).
90
Outro tema bastante relevante que não tivemos oportunidade de indagar,
porquanto se desviava do percurso que traçáramos para o presente estudo, diz respeito ao
apuramento da difusão das obras de San Juan de la Cruz em Portugal. O assunto carece
de maior investigação monográfica, mas os dados apurados relativamente ao profícuo
intercâmbio cultural peninsular conjugados com a fundação do primeiro convento de
carmelitas descalças em Lisboa, em 1585, levam a presumir que a produção literária dos
místicos circularia, por esses anos, pelo menos, entre a comunidade carmelitana.
Por fim, deixamos para investigar e clarificar, numa futura oportunidade, a
receção de Horácio em Portugal no século XVI, que carece de um estudo exaustivo e
sistemático. Demanda maior atenção a vertente horaciana dos poetas contemporâneos de
Jorge Fernandes, assim como as suas traduções, principalmente tendo em vista uma noção
de conjunto que até hoje não foi apurada. Igualmente, é necessário enquadrar esse
conhecimento numa análise detalhada dos exemplares da obra de Horácio, elaborados até
ao fim do século XVI, dispersos pelas bibliotecas e arquivos do país, que, a julgar pela
pequena amostra que brevemente examinámos da Biblioteca Nacional de Portugal, se
afigura promissora. Só desta maneira será possível ter a noção do verdadeiro
conhecimento que havia em Portugal da obra deste autor latino, o modo como foi lido, e
ainda averiguar o quanto marcou os poetas do fim do século.
Esperamos ter conseguido com estas evidências demonstrar ser possível da lei da
morte ir libertando os insignes poetas que pela escuridão dos tempos foram
permanecendo esquecidos, mas que poderão ainda voltar a ter o seu lugar na História da
Literatura. Assim, com este estudo introdutório à vida e à obra de Jorge Fernandes, ficam
lançadas as bases para uma futura investigação que dê a conhecer de modo mais amplo a
sua restante obra.
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108
ANEXOS
Anexo 1
Alvará da rainha D. Catarina relativo à pensão de Jorge Fernandes, datado de 11
de maio de 1552
ANTT, Corpo Cronológico I, mç. 88, nº23
110
Breve nota de edição:
A edição do documento é da nossa responsabilidade e tentou manter as características
significativas do português da época. No entanto, optámos por introduzir a acentuação, a
simplificação das consoantes dobradas, a supressão do h inicial e medial sem valor
fonético, assim como a atualização do y para i, correspondente à fonética atual. Procedeu-
-se também à substituição do -u com valor consonântico por -v, ao desenvolvimento das
abreviaturas, à atualização da pontuação e à modernização da numeração. No caso de
grafias inconsistentes, optámos pela grafia mais habitual (exemplo Jorje / Jorge).
Quatro mil réis de mercê a Jorge Fernandes, moço de capela, que está na Universidade de
Coimbra – 1552
Eu, a Rainha, mando a Vós, Álvaro Lopes, meu tesoureiro1, que deis a Jorge Fernandes,
meu moço da capela que ora está na Universidade de Coimbra, quatro mil réis de que lhe
faço mercê. E per este com seu conhecimento de como de vós recebeo os ditos quatro mil
réis vos serão levados em conta. Feito em Lisboa, a 11 de maio de 1552. Aleixo de Morais
o fez aprovar.
Rainha
Recebeo Jorge Fernandes, moço da capela da Rainha, nossa Senhora, do tesoureiro
Álvaro Lopes os quatro mil réis contidos neste alvará em Coimbra a 23 de outubro de
1553.
Dioguo [Meneses]
Jorge Fernandes
[Verso]
Recebido no livro da fazenda deste ano de [15]52 na despesa […] e no livro dos moços.
Aleixo Morais
1 No original lê-se thisoreiro.
111
Anexo 2
Índice de poemas de Jorge Fernandes conhecidos
Notas prévias:
1. Os poemas assinalados com * constituem casos de autoria controversa.
2. Todos os poemas constantes do Cancioneiro Juromenha tinham sido já analisados
por Carolina Michaëlis de Vasconcelos1 e são considerados anteriores a 15782.
3. As informações sobre os poemas constantes no Cancioneiro Juromenha têm como
fonte a análise e o comentário de Spaggiari3.
Fonte Nº Título Apontamentos
Cancioneiro
Juromenha 120*
Fostes meu bem,
mas agora ||
Perdido o gosto de
via
*Sem atribuição no Cancioneiro Juromenha,
mas com atribuição a Jorge Fernandes em
Obras ineditas de Aires Telles de Menezes e
de Estevão Rodrigues de Castro, e de outros
anonymos dos mais esclarecidos da
litteratura portugueza, por Antonio Lourenço
Caminha, Lisboa, 1792, BNP L. 3378 P.
Cancioneiro
Juromenha 126*
Crecem, Camilia os
abrolhos || Quanto
se ergue nestes
prados
*Atribuído geralmente a Camões. O poema
também aparece no Cancioneiro Verdelho e
nenhum destes dois manuscritos atribui o
texto a Camões. Contudo, entra na tradição
impressa camoniana com a Segunda Parte das
Rimas editada por Domingos Fernandes em
1616, com o título «Vilancete Pastoril». Nesta
versão, só o mote coincide com os
manuscritos Juromenha e Verdelho. Barbara
Spaggiari sugere que possa ser um mote
alheio glosado tanto por Camões, como por
Fernandes independentemente.
1 Segundo Spaggiari (2018: 25, 28), as conclusões da análise da investigadora foram publicadas em
fascículos na Zeitschrift für romanische Philologie. 2 Ibid., 72. 3 Ibid., 43-44, 835, 838-846.
112
Cancioneiro
Juromenha 127
Amor, fortuna e
cuidado || Calo do
estado enganoso
Aparece também no Cancioneiro Verdelho,
em que, tal como aqui, não há atribuição
explícita. Contudo, no Cancioneiro
Juromenha encontra-se dentro da secção
destinada à poesia de Fernandes.
Cancioneiro
Juromenha 128
Peço-vos que vos
não vades || Veijo-
vos, meu bem,
fugir
Aparece também no Cancioneiro Verdelho,
em que, tal como aqui, não há atribuição
explícita. Contudo, no Cancioneiro
Juromenha encontra-se dentro da secção
destinada à poesia de Fernandes.
Cancioneiro
Juromenha 129
Ontem si, mas hoje
não || Depois que a
longa tardança
Aparece também no Cancioneiro de D.
Cecília de Portugal.
Cancioneiro
Juromenha 130*
Contentamientos de
amor || Sienpre el
mal me vience e
dura
* Carolina Michaëlis V. atribui-o a Jorge de
Montemor, mas, no Cancioneiro Juromenha,
encontra-se dentro da secção destinada à
poesia de Fernandes. A única correspondência
perfeita aparece no Cancioneiro Verdelho.
Cancioneiro
Juromenha 131
Deixai-me, alegres
enganos || Gloria, já
que me deixais
Aparece também no Cancioneiro Verdelho,
em que, tal como aqui, não há atribuição
explícita. Contudo, no Cancioneiro
Juromenha encontra-se dentro da secção
destinada à poesia de Fernandes.
Cancioneiro
Juromenha 135
Quando do mundo
novo a gente nova
Corresponde à composição Da vida solitaria
do Campo referida por Barbosa Machado.
Não se conhecem outras fontes.
Cancioneiro
Juromenha 136
Tradução da ode
III.24 de Horácio:
Ainda que do ceo
vos seja dada
No Cancioneiro Juromenha é atribuída a
Fernandes. Aparece também no Cancioneiro
Verdelho como anónima e com a nota de que
“he sotilissima e bem convertida”. Há uma
terceira versão no Cancioneiro Fernandes
Tomás atribuída Fernão Rodrigues Soropita.
113
Cancioneiro
Juromenha 137
Bem posso em tais
extremos ver
perdida
Corresponde à Elegia a huma Despedida
citada por Barbosa Machado. Não se
conhecem outras fontes.
Cancioneiro
Juromenha 138
Sem vós e com
meu cudado ||
Tendo-me esta
alma cativa
Este mote aparece no Cancioneiro Juromenha
glosado por Camões e por Fernandes. O
poema da autoria de Fernandes está
incompleto. A autora refere ainda que o mote
foi muito difundido entre os castelhanos e que,
em Portugal, se destacam poetas como Diogo
Bernardes e Andrade Caminha que também o
glosaram, além dos poetas anteriormente
referidos.
Cancioneiro
Fernandes Tomás 186
Pois nesse paraiso
terreal
Soneto ao Cano dos
Amores
A atribuição deste poema é controversa,
contudo, neste cancioneiro, a composição é
atribuída a Jorge Fernandes. Não se conhecem
outras fontes.
Rimas de Estevão
Rodrigues de
Castro, Florença,
Obras ineditas de
Aires Telles de
Menezes e de
Estevão Rodrigues
de Castro, e de
outros anonymos
dos mais
esclarecidos da
litteratura
portugueza, por
Antonio Lourenço
Caminha, Lisboa,
1792, p.194, BNP
L. 3378 P.
---
Em vaõ levantei os
olhos: || Já os abri a
desora,*
*A atribuição desta composição é
controversa. Os impressos mais antigos
atribuem-na a J. Fernandes (como em Rimas
de Estevão Rodrigues de Castro), contudo, a
tradição manuscrita considera-a de D.
Manuel, nomeadamente no Cancioneiro
Juromenha, na Miscelânea Pereira de Foios,
e no Cancioneiro de Corte e Magnates.
114
Cancioneiro
Verdelho 72
Elegia consolatoria
á Rainha D.
Catherina em a
morte da Princeza
D. Joanna Mãy del
Rey D. Sebastiaõ,
inc. “Não mais ó
implacável dura
sorte”
Não se conhecem outras fontes.
--- ---
Juizo astronomico
do Amor, inc.
“Ouvime ó largo
Tejo, ou fundo
Douro”
Composição mencionada por Barbosa
Machado, da qual não temos qualquer fonte.
--- --- Elegia à morte de
Diogo de Paiva
Composição mencionada por Barbosa
Machado, da qual não temos qualquer fonte.
115
Índice de obras impressas de Jorge Fernandes4
Título Data e
Local Exemplares
Centiloquio de encomios de los
santos, sacados de los evangelios,
que se cantan en sus festividades
1612,
Valladolid
Conservam-se cerca de três dezenas de
exemplares espalhados por diversas
bibliotecas. Consultámos o exemplar
BNP R. 24312 P. e outro disponível
em:
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=
ucm.532504557x&view=1up&seq=5
Tardes de Quaresma 1614,
Lisboa
Conservam-se 6 exemplares.
Consultámos o exemplar BNP R.
25224 P.
Encomio de S. Vicente e de suas
translações.
1614,
Lisboa Consultámos o exemplar BNP F. 4473
Oitavas ao Invicto Mártir S. Vicente
(obra anterior) inseridas na coletânea
Vida, martírio, e última trasladação
do mártir S. Vicente
1620,
Lisboa
Consultámos o exemplar BNP RES. 89
P.
Sermones de Santos 1612,
Valladolid
Obra referida por Barbosa Machado,
cujo título alude à temática tratada em
Centiloquio. Não nos é possível saber
se se trata do mesmo texto ou de outro
diferente. Se se tratar de uma obra
diferente, não se conhece qualquer
exemplar.
Marial dividido em 13 Tratados Sem
informação
Obra referida por Barbosa Machado,
da qual não temos qualquer exemplar.
Louvores a S. João Evangelista Sem
informação
Obra referida por Barbosa Machado,
da qual não temos qualquer exemplar.
4 Para a localização dos exemplares recorremos a: https://iberian.ucd.ie/ e
https://porbase.bnportugal.gov.pt/ipac20/ipac.jsp?profile=
116
Anexo 31
Composição nº135 do Cancioneiro Juromenha
Do frade da rainha em louvor da vida sulitaria a hum
homem que, deixada Lisboa, se foi viver a hũa quinta.
Quando do mundo novo a gente nova,
medrosa e esquiva, por morada tinha
ou cabana de rama, ou lapa, ou cova,
dos frutos de Pomona se mantinha
e mil vezes na caça perigosa 5
com bravos animais à guerra vinha.
Só morava na serra temerosa,
andava só di noite, só di dia,
sem temor pela terra alta e fragosa.
Desceu Saturno à terra, que fogia 10
do seu filho fatal, o qual temendo,
em vão todos os outros morto havia.
A gente deshumana reprehendendo
fez viver em comum, mansa e segura,
cidades, magistrados, leis fazendo. 15
Este concerto foi di pouca dura
que tiranias, ambiçõis, cobiça
1 A presente transcrição corresponde à edição de Spaggiari (2018: 654-658). Assinalamos em nota a única
discordância que nos suscita a referida edição, no que respeita ao sentido do texto.
117
fizeram saüdade da espessura.
Fugio ao ceo a diosa da justiça,
a qual dourava tam felice idade, 20
cada menos a que cá mais cobiça.
Mas se o reformador da humanidade
hoje da esphera setima descera
a renovar justiça, paz, verdade,
pode ser que as cidades desfizera 25
e pera os homens pôr milhor morada
os solitarios bosques escolhera.
Ali mais doce a vida, e sossegada,
ali mais claro o sol, mais livre a vida,
de mil olhos e lingoas apartada. 30
Mal cuidava Saturno, quando unida
fez abitar a rude gente humana,
que dipois se perdesse de polida.
Agora já o espanta, e desengana
ver de lavrado jaspe e de azulejo 35
o que ele compesou com palha e cana;
ver de mando e riqueza o vão desejo
que igualmente me move o sentimento
a lagrimas i rizo quando o vejo.
Se Deos ò meu desejo e pensamento 40
me deixasse dispor da vida breve
118
e das oras que correm mais que o vento,
não temo que entregasse o lenho leve
à duvidosa furia de Austro e Norte,
hum cavador de chuva, outro de neve. 45
Nem que o terrivel canto de Mavorte
alvoroçado ao campo me chamasse,
onde tampouco vai da vida à morte.
Nem que a soberba corte frequentasse
onde com o leve pasto da esperança 50
a fome dos desejos enganasse.
Presto passam riqueza, honra, privança,
que a vida já gastada em buscar vida
falta pera a gozar, quando se alcança.
Vós nos mostrais a estrela não seguida 55
por onde com descanso cá na terra
o ceo à gloria eterna nos convida.
Seguro vereis de alto o mundo que erra
e rir-vos-heis de quantos sem descanso
buscam na paz riqueza, honra na guerra. 60
Não são vidas as outras, quanto alcanço:
tudo o demais coa morte se aparece,
não se vive senão neste remanso.
Bem he de ferro quem sofre e padece
os temores do mundo, o qual sem freio 65
119
cuida e diz logo quanto se oferece.
A pique vive sempre este receio
de modo que mil vezes he forçado
falar, tratar, viver ao modo alheo;
o animo, o sentido perturbado 70
metido entre enemigos encubertos,
a perigos eternos arriscado,
muito mais entre amigos pouco certos:
que de homens não terá firme certeza,
que[m] não lhe vir os coraçõis abertos. 75
O espirito que de süa natureza
subindo e contemplando sobe e voa,
nam pode, que o cudado dentro pesa.
E de fora confusamente soa
turbulento tumulto e rebuliço 80
do trafego soberbo de Lisboa.
Dela vos apartastes: seguis nisso
a sã philosophia, e verdadeira,
e o santo viver, puro e maciço.
Quanto milhor parece a rocha inteira, 85
por mão da natureza edeficada,
da qual com grande som desce a ribeira,
que a torre, em si alterosa e bem fundada,
em cujo cume, †aonr, mor† e atrevido
120
quem só quer ter as nuvens por morada. 90
Quanto he melhor o natural vestido
de que abril veste o campo deleitoso,
com o sopro de favonio enfraquecido,
que essoutro em suas cores mentiroso
buscando entre trabalhos e entre medos. 95
Tudo da natureza he mais fermoso.
Ela os prados de frol, de hera os penedos,
de verdes arvoredos cerca o rio,
e de folha os verdes arvoredos.
Ditoso aquele que em lugar sombrio, 100
entre musica de aves natural,
engana a força do sedento estio,
ao longo da ribeira perenal
que ora apressadas mostra, ora quїetas
as aguas da corrente desigual, 105
inda que não contemple as mais secretas
partes da natureza, enquanto ordena
a conjunção diversa dos planetas.
Não-no cansa esperança, medo ou pena,
nem providencia incerta do futuro 110
que com sucesso avesso se condena.
De toda a magoa vivirá seguro
se não de ver por caminho emvisivel
121
levar tão presto a vida ao fado duro.
Mas he já a vida tal que he mui possivel 115
que, pois de bre[u] o necio a reprehende,
por isso a tenha o sabio por sofrivel.
Este tal não-no move, nem-no ofende
alcançar, ou perder cargos, louvores,
os quais dá tarde o mundo e caros vende. 120
Não lhe dão que os grandes e senhores,
não por direito de merecimento,
mas por paixão repartam seos favores.
Vivei, senhor, com tal contentamento
a que terá qualquer sesudo inveja, 125
de trafego, temor, cuidado, isento.
Porque, posto que a vida breve seja,
quem toda a vive, não teme perdê-la;
quem a gasta1 em buscá-la, esse a deseja
e em começando está no cabo dela.130
Et cett.
1 gosta na edição de Spaggiari (2018: 658).
122
Anexo 41
Composição nº136 do Cancioneiro Juromenha
Ode 24 no livro de Horatio
Traduzida pelo mesmo autor. Etc
Ainda que do ceo vos seja dada
muito maior riqueza
que quanto Arabia preza,
e quanto a India tem emtisourada,
e pera edeficar acheis piqueno 5
o mar de Apublia e todo o mar Tirrheno;
se a forçada, crüel necessidade
com cravos de diamante
[nam deyxar ir avante]
da mal traç[ada] vida, a liberdade, 10
ireis às mãos da morte e do receio,
que primeiro que a morte a matar veio.
Mais livre nas campinas descubertas
por terra conhecida
passam a leda vida 15
1 A presente transcrição corresponde à edição de Spaggiari (2018: 658-661).
123
os Scithas, que não têm moradas certas;
e nos carros que de altos troncos fazem,
por costume só seu, suas casas trazem.
Vida têm mais segura os duros Getas
a quem dão largos frutos 20
as terras, sem trebutos
e sem demarcaçõis, sempre quїetas,
o trabalho que sem o tempo o mede
e nele em sorte igual cada um socede.
Ali com coraçõis nunca domados 25
as madrastras singelas
sem se temerem delas
governam como mãis os enteados;
nem por todo a molher roga o marido
nem tem outros amores no sentido. 30
A vertude dos pais he dote grande,
e, com o marido alheio,
hum casto e vão receio
que nunca fora dos limites ande.
Ninguem contra a rezão pecar se atreve, 35
o preço da culpa a vida deve.
E todo o que isentar os ceos deseja
124
de iras e mortandades,
se por pai das cidades
seu nome em mil imagens quer que esteja, 40
grangee a fama e ousadamente vença
a mal regida furia da licença.
Até quando será que não amemos
a virtude presente,
e que, dipois de absente, 45
quando já maltratá-la não podemos,
pera que nossa inveja descubramos,
a busca-la com os olhos acudamos?
De que servem queixumes escusados
se não são poderosos 50
castigos rigurosos
pera cortar os herpes aos pecados?
que montam tantas leis quantas fazemos,
se nunca com os costumes as enchemos?
Se nem a parte, que com fogo eterno 55
o mundo tem fechada,
nem a que tem guardada
por mão do norte frio, o frio inverno,
nem a neve na terra endurecida
125
fazem com o mercador que poupe a vida? 60
Vencem com novas artes a braveza
do mar os navegantes,
que quaisquer males antes
fazer e soportar manda a pobreza,
e como se do ceo ninguem a olhara 65
o alto da virtude desempara.
Ou nós no Capitolio, onde nos chama
o povo alvoroçado,
ou nalgum mar chegado
lancemos este bem, que o mundo ama, 70
estas pedras e este ouro sem proveito
que tanto dano têm no mundo feito.
Se nos pesa dos vicios, arranquemos
a raiz ao desejo
e enquanto he bom ensejo 75
com mais aspero ensino procuremos
dar forma às condiçõis na tenra idade,
que não tem pera o bom dificuldade.
Não sabe o moço nobre, mal criado,
ter-se no seu genete, 80
nem nas forças promete
126
que será pera a caça tão ousado,
quam destro he no pião e quam perdido
pelos jogos, que as leis têm defendido.
Entanto o pai sem fé traz enganado 85
o ospede e companheiro
e só pera o erdeiro
anda continuamente desvelado:
enfim crece a fazenda, e sem fim crece,
mas sempre, em não sei que, curta parece.90