formação do leitor: um bicho de quantas cabeças?
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SÔNIA REGINA VINCO
FORMAÇÃO DO LEITOR: UM BICHO DE QUANTAS CABEÇAS?
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação
em Educação da Universidade Federal Fluminense
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Educação. Campo de Confluência: Estudos do
Cotidiano da Educação Popular.
Orientadora: Profª Drª EDWIGES DOS SANTOS ZACCUR
Niterói
2006
SÔNIA REGINA VINCO
FORMAÇÃO DO LEITOR: Um Bicho de Quantas Cabeças?
Dissertação apresentada ao curso de
Mestrado em Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Mestre em
Educação. Campo de confluência: Estudos
do Cotidiano da Educação Popular.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Profª Drª Edwiges Guiomar dos Santos Zaccur - Orientadora
____________________________________________________________
Profª Drª Mailsa Carla Pinto Passos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profª Drª Cecília Maria A. Goulart
Universidade Federal Fluminense
Defendida a Dissertação: Conceito: Em:__/__/__
À dona Maria Avansi, que via com olhos de mãe meu desejo de aprender.
Ao seu Silvino Vinco, de quem trago um certo olhar.
Aos meus sete irmãos.
A todos aqueles que sonham, que vibram, que ousam, que fazem. E que
conjugam esses verbos na primeira pessoa do plural.
AGRADECIMENTOS
Depois de tanto pedir, chegou a hora de agradecer!
Tenho menos amigos que as estrelas do céu. Mas são tantos, que nem posso contar.
E com eles sempre conto, tanto em ocasiões de alegria como naquelas em que
penso não haver saída. Durante o período de mestrado, não foi diferente. Dentre
tantas contribuições, não poderia deixar de agradecer especialmente a Alan, Carla,
Inês, Robin, Venício e Virgínia. Eles sabem por quê. E eu também.
Preciso agradecer, também especialmente, aos colegas professores do colégio, meus
companheiros de viagem, que, com muito boa-vontade, usaram parte do seu tempo
para conversar comigo e dizer de tantas coisas que eu desconhecia. Sem eles, este
trabalho não teria acontecido.
Da mesma forma, eu seria uma pesquisadora sem pesquisa, se os meus ex-alunos
não tivessem se disposto a sentar-se comigo para lembrar e me ajudar a ver o que
sem eles eu não veria. Por isso, a eles apresento minha reverência .
Sou grata, também, aos companheiros do grupo do Cotidiano da Universidade
Federal Fluminense, professores e alunos, que, na medida do possível,
acrescentaram às minhas experiências de vida seus modos de ver e de ver-me.
Ao colégio Pedro II, convém agradecer pelos meses de licença que me foram
concedidos para que pudesse concluir esta pesquisa. Espero que ela contribua em
nossas reflexões sobre o papel da escola na formação dos tantos alunos cuja
educação nos é confiada.
Por fim, não poderia deixar de agradecer à professora Edwiges Zaccur, minha
orientadora, que, com a delicadeza que lhe é própria, acompanhou a produção
deste trabalho, acalmando minhas angústias, mostrando-me saídas e ajudando-me a
caminhar.
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
......................................................
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador
[urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te
[e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos,
[portas rangentes, solidão e asco
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos,
[contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão
[da costureira, luto no braço, pombas,
[cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.
(Carlos Drummond de Andrade, “Nosso tempo”)
SUMÁRIO INTRODUÇÃO: Entrando no labirinto da memória ................................. 9 CAPÍTULO 1: Caminhos por onde andei: itinerário de pesquisa e percurso metodológico .................................................................................18
1.1- De Onde Venho: Leitura, Literatura E Outros Enredamentos ................................. 18 1.2- Trilhas Do Cotidiano.................................................................................................21
1.2.1- Fuxicos .............................................................................................................. 32 1.3- Da Idéia Fixa Ou Um Itinerário De Pesquisa........................................................... 36
1.3.1 - Um pouco mais sobre as entrevistas ................................................................ 44
CAPÍTULO 2: Um lugar no espaço-tempo: encontros e desencontros numa instituição secular ..............................................................................46
2-1- O Olhar De Quem Chega: Um Prédio Quadrado Branco Com Uns Frisos Azuis... 49 2.2- Vozes, Memórias, Relatos........................................................................................ 51 2.3- O Velho Colégio E Seu Filho Mais Novo................................................................ 52 2.4- O Novo Corpo Docente.............................................................................................48 2.5- O Que Se Fez Do Lugar Vazio?................................................................................51
2.5.1- As atividades complementares .......................................................................... 66 2.5.1.1- O primeiro Plano de Literatura e a ampliação de um trabalho coletivo..... 74 2.5.1.2- Sujeito, poder e arte.................................................................................... 81
CAPÍTULO 3: Enredamentos cotidianos: passeio por um bosque de ‘fuxicos’ .......................................................................................................... 87
3.1- ‘Fuxicos’ Da Imaginação ......................................................................................... 94 3.2- Ouvindo Histórias .................................................................................................. 107 3.3- Um Emaranhado De Sentidos E Sentimentos: Leitura, Literatura E Outras Artes114
3.3.1- As Atividades: rotina de rupturas? .................................................................. 117 3.4- As Aulas De Literatura........................................................................................... 121
3.4.1- Histórias e rodas de conversas ........................................................................ 123 3.5- O Prazer De Escrever ............................................................................................. 131 3.6- Os Clubes De Leitura ............................................................................................. 144 3.7- A Leitura No Segundo Segmento: Pedras No Caminho? ...................................... 149
4- Considerações finais ................................................................................. 156 5- Bibliografia ............................................................................................... 162
RESUMO
Esta pesquisa investiga aspectos do trabalho de formação de leitores desenvolvido no Colégio Pedro II- RJ, Unidade São Cristóvão I. Partindo da noção de que o conhecimento é tecido em rede, considera as relações entre as experiências vividas na escola em torno da leitura literária e a formação dos alunos como leitores. O primeiro segmento desse colégio tem vinte e um anos de existência. Em sua grade, estão previstas aulas de Literatura da Classe Inicial até a quarta série do Ensino Fundamental. A existência dessas aulas é fruto de um processo coletivo de tessitura do currículo, iniciado em 1984. Assim, através das memórias de professores e de alguns alunos que, hoje, em sua maioria, cursam o ensino médio, a pesquisa penetra no cotidiano escolar, buscando ampliar a compreensão dos processos coletivos vividos e de sua implicação nas redes de subjetividades dos alunos. Procurando, nas entrevistas, colher informações que indiciem se o trabalho com leitura feito na escola constituiu para esses sujeitos uma experiência de formação, a pesquisa apresenta elementos que podem auxiliar a reflexão sobre a prática docente. Palavras-chave: Formação de leitores, leitura literária, redes de conhecimentos.
ABSTRACT
This research investigates some aspects of the work of readers formation developed at Pedro II-RJ school, São Cristóvão Unit. From the notion that knowledge is woven in networks, it considers the relations between the experiences lived at school around the literary reading and the formation of students as readers. This school’s first segment has 21 years of existence. Literature classes are included in its programme from the initial until the fourth grade. These classes existence is the result of a collective process of curriculum elaboration, which began in 1984. In this way, through the memories of teachers and some students who, nowadays, in its majority, course high school, the research penetrates into the scholarly daily life, intending to broaden the comprehension about the collective processes lived and its implication on the students’ subjectivities networks. Searching, in the interviews, to collect information that indicates if the reading work done at school constituted to these subjects a formation experience, the research presents elements that may help the reflections on the teaching staff practice. Key words: readers formation, literary reading, knowledge networks.
INTRODUÇÃO ENTRANDO NO LABIRINTO DA MEMÓRIA
Antes de mais nada, gostaria de apresentar-me: sou uma amante de palavras.
Quando pequena, assim como outras crianças, gostava de me entreter fingindo que
a placa de madeira que vedava o retângulo da porta de entrada sem portinhola, na casa
onde morava, era um quadro-negro. Então escrevia ali os deveres que os alunos fictícios
copiariam, como na escola. Mas, de verdade, nunca pensei em ser professora.
No entanto, mesmo sem saber, ainda pequena era uma amante de palavras.
Na família onde nasci, palavras escritas não tinham privilégio. Viemos da roça.
Mãe analfabeta, pai semi-alfabetizado pela própria mãe, sete irmãos mais velhos que cedo
trocaram os bancos escolares por isopores de picolés, caixas de engraxate, casas de família,
balcões de lojas, maridos, filhos. Tudo muito comum entre nós.
Se a linguagem escrita quase não tinha lugar, no rio do cotidiano familiar, a palavra
falada corria caudalosa.
Papai era dono de muita destreza verbal. Homem sensível, alegre e tão amante de
minúcias que virou relojoeiro, tinha grande prazer em dialogar, cantar, contar (em detalhes
preciosos). Invencionices verbais eram corriqueiras e nós ríamos muito naquele tempo.
Já mamãe tinha um profundo respeito pelo poder das palavras. De formação muito
católica, dizia, por exemplo, que o demônio se aproximaria mais e mais de nós a cada vez
lhe pronunciássemos o nome. Dizia do cuidado que sempre deveríamos ter com as palavras
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que falávamos. Acreditava profundamente, em suma, que palavras eram capazes de criar
realidade. Tinha ela uma grande mágoa: certa vez, apareceu na roça uma professora para
alfabetizar as pessoas. Ela começou a freqüentar e se orgulhava de dizer que rapidamente
aprendera todas as letras. Porém seu pai, homem rude por quem ela guardava enorme
respeito, disse assim: “Os homens, que deveriam estudar, não querem. Mulher, que não
precisa, fica querendo aprender a ler!” Nunca mais ela voltou. Ficou com as letras e o
silêncio engolido em seco. Ficou com as letras e com um sentimento de que todos no
mundo eram superiores a ela.
Nunca ouvi de ninguém que devesse estudar para melhorar de vida. Se o fiz, foi
porque quis. Isso mamãe também dizia. Por que quis? Certamente, não por uma intenção
pragmática de construir qualquer escada que me alçasse a outra classe. Com certeza, por
uma intensa curiosidade a respeito do mundo, uma vontade de saber mais que me
consumia e uma exagerada paixão por palavras.
Ainda hoje, guardo uma curiosidade quase infantil pelas coisas do mundo. Muitas
vezes sou tomada por urgências que me impulsionam ao ato de procurar descobrir porquês,
sejam simples, ou mais complexos. Como agora, no processo de pesquisa em que estou
imersa.
Das palavras, me apraz sentir gostos, perceber cheiros, apalpar lisuras e asperezas,
alisar contornos, ouvir silêncios. Diante delas, ajoelho-me. Gosto de perder-me em seus
sentidos, mergulho em suas delícias e delírios. Sou dada a amá-las.
Tenho por elas um amor meio profano. Na intimidade, me apraz vê-las obscenas,
obscuras, abstrusas, absurdas. Deleito-me no papel de súdita e soberana do meu objeto de
paixão. Acredito muito, como o poeta1, que “o verbo tem que pegar delírio”.
Sempre escrevi por gosto. O papel em branco vejo-o como a um ovo, puro
nascedouro. Gosto muito de acompanhar os caminhos que as letras traçam nas páginas.
Gosto de acompanhar escritas. Descobri um dia que palavra e gente são a mesma coisa.
Irmãs xifópagas inseparáveis.
Não pensava em ser professora, mas, por acaso, fui para o curso de Formação de
Professores. Não pensava em ser professora, mas, ironicamente, escolhi depois estudar
justamente na faculdade de Letras. Só por paixão por palavras. Só para vê-las mais de
perto. Só para estreitar nossos laços. Assim pensava. Assim sentia.
1 BARROS, Manoel de. “Uma didática da invenção”(VII), in O Livro das Ignorãças. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1994.
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Há muito, aos vinte e um, fui trabalhar como professora numa escola estadual em
Belford Roxo. Mas ali não fui feliz. No primeiro dia, manhã do fim de maio de 1985,
entrei numa sala de aula com trinta e seis alunos de sete a vinte anos. Turma que ninguém
queria. Segunda série, apenas um livro com conteúdos de todas as áreas. Além do livro,
nada. Percebi que, naquele labirinto, eu teria que me virar. Mas não me virei. Solitária e
inexperiente, não tinha o novelo de Ariadne para me ajudar. Também não consegui encarar
o minotauro. E diria que não consegui desempenhar um papel que pudesse tornar a sala de
aula um espaço de prazer e de aprendizagens. Não me sentia educadora, não me via
respeitada como trabalhadora e não era movida por uma ideologia que me convencesse de
que eu teria que sofrer tanto para ser uma profissional da educação. Eu era muito jovem,
morava num alojamento de estudantes no fundo da ilha do Fundão, tinha de estar às 7:15
na escola e, às 13:00, de volta à ilha para as aulas. Quando recebia o salário, sabia que ele
se esvairia bem antes de o mês terminar. Posso estar cometendo uma heresia ao dizer o que
muitos pensam secretamente, mas arrisco: eu não conseguia mesmo gostar daquilo tudo.
Dois anos depois, mudei de escola e de esfera. Fui chamada para trabalhar no
Colégio Pedro II, devido a um concurso que prestara no início de 1986. Eu só conhecia
aquele nome pelo texto da Lei 5.692, mais nada. Fui, mas muito apreensiva. A sala de aula
me trazia paúra e insegurança. Tinha profunda sensação de que, de novo, não saberia o que
fazer e não teria a quem recorrer.
O colégio me trouxe grata surpresa: o salário era muito bom, as turmas eram
pequenas, ninguém me entregou qualquer livro, pois dali livros didáticos passavam longe,
havia uma estrutura humana e material que dava bastante suporte ao trabalho docente e um
projeto pedagógico para a escola, que vinha sendo construída havia três anos. Ali eu pude
não sentir a dor lancinante da solidão pedagógica, pois trabalhávamos em grupo. O pavor
foi se dissipando e, assim, aos poucos, fui virando professora, isto é, foi-se tornando-me
possível revelar a professora que eu na verdade era sem sabê-lo. Porque outro de meus
maiores prazeres é repartir dúvidas e conhecimentos.
Um dia, nessa mesma escola, encontrei um lugar para mim fundamental: virei
professora de Literatura, lugar da linguagem onde, porque delirar não é pecado, é, antes,
aconselhável, a expressão ganha plenitude. Sei da delicadeza que é tratar com palavras.
Levo-as para a sala de aula nos braços, na língua, na pele, na alma. Leio-as e ouço-as.
Miro-as cheia de contentamento. De ‘tia’ a teia, meu propósito é seduzir crianças. Enredá-
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las, capturá-las e soltá-las na delícia do delírio do verbo. No deleite de lidar com
incertezas. No prazer de percorrer fios e tecer caminhos.
Penso, às vezes, que levo também para as aulas meu pai, minha mãe e meus irmãos,
fios preciosos da rede que me habita. A elegia à palavra e a alergia ao silenciamento.
Muitas vezes falho, sei disso. Não sei até onde consigo. Mas continuarei tentando. Como
um agricultor. Ou como um relojoeiro.
Uma outra paixão me avassala, habitante que é do reino onde moram as palavras. É
o tempo e, trafegando por seus meandros, a memória. Não o tempo cronológico que move
os ponteiros dos relógios, mas o tempo habitado pelo homem, pela cultura. Este tempo
sobrevive através da memória dos homens e das mulheres. A memória só pode existir
quando se vive. Tempo e memória movem-se juntos, ainda que nem sempre na mesma
direção.
No tempo em que trabalhava na escola estadual de Belford Roxo, uma cena que vi
pela janela me tocou, me incomodou bastante. Paulo, um dos alunos da turma, tinha dado
de faltar às aulas, o que não chegava a ser fora do comum, já que o índice de faltas era
alto. Naquele dia, faltou de novo. Era uma deliciosa manhã de sol. Lá pelas tantas, olhei
pela janela da sala, que ficava no segundo andar, e vi ninguém menos que ele, correndo ao
sol, sozinho, no terreno baldio que ficava exatamente ao lado do colégio.
O menino parecia querer dizer a mim que correr ali, mesmo só, era melhor que
estar na escola. E eu era obrigada a concordar com ele. Um dia, pensando sobre os alunos,
escrevi no meu diário pessoal: “Paulo continua não indo à aula. Talvez faça questão de ser
visto pela rua. Provocar-me? Provocar inveja nos demais alunos? Ou, simplesmente, curtir
os prazeres que o sol lá fora oferece e os quais a escola lhe tira?”
A escola era um lugar desagradável para ele e para mim também. Ali ele parecia
não encontrar ressonâncias de/para si, e eu também não. Mesmo achando que eu não tinha
sido feita para aquela profissão, isso me preocupava. E, sozinha como Paulo, me
perguntava se tinha de ser sempre assim, embora não soubesse como fazer diferente.
Muito tempo depois disso, já no Pedro II, tive um encontro casual, no pátio do
colégio, com Eduardo. É um ex-aluno, de quem fui professora de Literatura no “Pedrinho”,
forma como as Unidades de primeiro segmento do ensino fundamental do Colégio Pedro
II, carinhosa ou preconceituosamente, costumam ser chamadas. Ele me disse:
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“Professora, eu me lembro até hoje das suas histórias!” O encontro se diluiu na
pressa do cotidiano, mas não se perdeu. Algumas vezes depois a frase ouvida voltou-me à
lembrança.
Eduardo não tinha sido propriamente o tipo de aluno normalmente tido como
brilhante, que por algum motivo se destaca dos demais. Não, era mediano. No entanto,
lembrava-se – e, ao dizê-lo, tinha um brilho especial nos olhos e aquele sorriso que
acompanha a recordação de um prazer vivido. Lembrava-se, já adolescente, das histórias
que me ouvira contar na sua turma das primeiras séries, as quais ele bem sabia que, tendo
ou não autores conhecidos, não eram minhas, eram nossas, de todos aqueles que delas
quisessem se apropriar.
A desatenção me fez perder excelente oportunidade de procurar saber que tipo de
leitor havia aquele menino se tornado, ou mesmo se ele se tornara um leitor confirmado,
pois não indaguei nem do que ele se lembrava, nem se procurava outras histórias para ler.
Todavia, há algo de que também ele não sabe: Eu me lembro até hoje da sua frase.
Tanto me lembro da frase de Eduardo como da imagem de Paulo. Certamente
minhas aulas representavam coisas bem distintas para um e para outro. De minha parte,
tive a satisfação de saber que tinha conseguido ser capaz de tornar as aulas de algum modo
mais agradáveis. O sentido do que me foi dito encontrou, bem depois daquele presente, sua
“festa de renovação”, como fala Bakhtin (2003), provocando em mim um movimento.
Eduardo me suscitou voltar a pensar na pergunta que muitas vezes fiz durante os
anos em que venho sendo professora de Literatura no “Pedrinho”: o que levam os alunos
daquilo que vivem no cotidiano de nossas aulas?
Estou usando a palavra experiência na acepção benjaminiana resgatada por Larrosa
(2002;2004): aquilo que tem potência para nos deixar marcas, aquilo que não se passa fora
de nós, mas, ao contrário: acontecendo, acontece em nós, se passa em nós. Aquilo que,
justamente por acontecer dentro dos sujeitos, nos transforma, nos move.
Não foi gratuitamente que me apresentei aos leitores da forma como o fiz. Na
verdade, quando o fiz, foi porque desejava dizer-me do modo mais verdadeiro que pudesse.
Disse que nunca tinha pensado em ser professora, e isso, no início, me colocava num lugar
diferente de outras colegas que nutriam esse desejo desde antes. Foi, no entanto, o fato de
ter, pelas vias do imprevisto, encontrado um lugar que me favoreceu encontros e diálogos
que pude ir virando professora. O processo de formação continuada não-oficial que vivi
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junto aos meus colegas e alunos foi se inscrevendo na minha subjetividade, formando-me,
e, devagar, fui sendo transformada pela experiência.
Anos depois do encontro com Eduardo, já tendo escrito o anteprojeto de minha
proposta de pesquisa, fui abordada por uma ex-aluna, na hora da entrada, que, sorridente e
esfuziante, me disse: Professora, lembrei de você enquanto escrevia meu discurso de
formatura! Reconheci seu rosto, mas não sabia seu nome. Lembrei apenas de que fora sua
professora na quarta série. Olhei o emblema em sua blusa: lá estava o número oito, oitava
série. “Você foi escolhida para escrever o discurso? Parabéns! Mas por que se lembrou de
mim?” “Porque você me estimulava tanto a escrever, que eu lembrei de você!”
A coincidência me animou bastante, pois parecia dizer-me que minha proposta de
pesquisa fazia sentido. Diferentemente do que tenho observado acontecer no dia-a-dia do
primeiro segmento, ser interpelada por ex-alunos que se remetem a questões tão
específicas não é algo corriqueiro. O que há em comum entre o que disseram Eduardo e a
aluna cujo nome esqueci? Ambos apontavam, embora de modos diversos, que o que
viveram nas aulas de Literatura no primeiro segmento havia tido um papel significativo em
suas vidas. Haviam vivido experiências com a leitura?
***
O encontro com Eduardo ficou jazendo numa caixa da minha memória, feito
semente à espera, e foi determinante, por ter me indicado, bem depois de ter acontecido,
uma possibilidade de pesquisa. Encontros muitas vezes fomentam possibilidades de
continuar encontrando. Assim foi comigo.
No princípio, não tinha claro que desenhos meu caminho tomaria. É fato que nutria
desde muito uma (in)certa curiosidade da qual costumam partilhar muitos professores. Já
ouvira algumas vezes, em lugares diversos, pessoas dizendo de uma característica do
trabalho docente, a qual, por razões cronológicas, se dá com maior intensidade com relação
às séries iniciais. É que, diferentemente do que ocorre com outros profissionais, cujo
trabalho pode ter seus resultados conhecidos a curto prazo, dispersamos sementes sem
poder conhecer o que nascerá. Recentemente, encontrei imagem semelhante em Gallo
(2005, p.103): “Ensinar é como lançar sementes, que não sabemos se germinarão ou não;
já aprender é incorporar a semente, fazê-la crescer e frutificar, produzindo o novo”.
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Talvez por ser filha de agricultores apaixonados por terra, a metáfora tenha
germinado em mim. Não com a concepção limitada de uma lógica de causa e efeito, não
com o espírito cristão, traduzido na parábola do semeador2, que deixa caírem suas
sementes ora em terreno ruim, ora em terra fértil, com conseqüências previsíveis. Porque o
que pensamos ensinar não necessariamente é aprendido. De novo, recorro a Gallo:
A aprendizagem é um processo sobre o qual não se pode exercer absoluto controle. Podemos planejar, podemos executar tudo de acordo com o planejado, tomando todos os cuidados imagináveis; mas sempre algo poderá fugir do controle, escapar por entre as bordas, trazendo à luz um resultado insuspeitado, inimaginável. Aí se encontra, em minha maneira de ver, a beleza do processo educativo: agimos, sem nunca poder saber qual será o resultado de nossas ações. (ibid.)
Evoco, no bojo da metáfora, a imagem do elemento terra, constituinte simbólico de
ser gente. Terra de que se modelaram os primeiros humanos, segundo tantas mitologias.
Terra, de onde “tudo vem”, segundo palavras de minha mãe. Terra, matéria de coexistência
de tanta diversidade. Terra, lugar de trans-formações. Terra, nós, professores, elas, as
crianças. E pensar em sementes híbridas, constantes do processo de educação, seja ele qual
for.
Talvez por sentir que somos todos solos em que germinam as sementes das relações
sociais que travamos ao longo da nossa história, as quais, naturalmente, mais e mais se
complexificam tanto mais nos habitamos de experiências, é que me interessa pensar nas
crianças como solos semi-virgens, potência. Não quero com isso, de modo ingênuo, dizer
que crianças nos chegam ocas. Não, crianças não são vazios a serem preenchidos. São
sujeitos sociais, têm já uma história anterior à escola, como também vivências paralelas a
ela. Um jardineiro ou um agricultor preparam a terra, escolhem sementes, semeiam-nas e
podem acompanhar o vir-a-ser dos brotos. Podem continuar cuidando, preparando o futuro
dos frutos. Podem colher até. Nós não. Porque trabalhamos com gente, porque trabalhamos
com educação, porque nosso trabalho se insere na dinâmica da história construída por
homens e mulheres, de um certo ponto de vista, somos todos plantadores de algo que não
podemos conhecer ao certo. Dispersamos sementes no terreno da incerteza. Estamos
envolvidos com hibridização, com mistura, com multiplicidade. É certo que, no nosso
cotidiano, podemos saber germinações, acompanhar crescimentos, ou mesmo seu
2 Refiro-me à “parábola do semeador” in S. Mateus, 13. 1-9.
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contrário. No entanto, o tempo se nos impõe como um limite. Fazemos no presente, mas
quase sempre o futuro, floresta densa, nos esconde a constituição das árvores.
As questões acima se me colocam desde muito antes do encontro com Eduardo.
Não saberia dizer quando, mas lembro que vez ou outra me flagrava pensando mais ou
menos deste modo: no que dará isso tudo que nós fazemos com essas crianças? O que fica
para elas de tudo que vivemos no nosso cotidiano? De que modos o que foi vivido com a
literatura é por elas reelaborado, ressignificado?
Aquele aluno me trouxe suas palavras feito frutos, que não colhi naquele momento.
Em sua memória afetiva, ficaram as aulas de Literatura. Mas de que forma? Além das boas
lembranças, o que mais terá ficado?
Eduardo, sem saber, despejou água sobre a semente adormecida em minha
memória, que, à maneira do ocorrido com o personagem machadiano3, se transformou
numa “idéia fixa”. Não fora a fixidez de tal idéia, poderia eu ter embrenhado por terrenos
menos pedregosos, poderia ter escolhido caminhos menos difíceis, poderia ter realizado
uma pesquisa diferente desta que ora apresento.
Brás Cubas, os leitores bem sabem, afirma que veio a falecer em decorrência de sua
idéia. Busca imagens com que traduzir sua obsessão: “Não me ocorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta
germânica.” E deixa ao leitor a possibilidade de escolher a comparação que mais lhe
aprouver. Afirmo, ao invés, que apesar do temor de um destino similar ao meu trabalho,
insisti na idéia até que ela saísse da esfera das intenções e se concretizasse em encontros:
de fios e sujeitos. O leitor saberá avaliar a minha escolha.
No capítulo 1, “Caminhos por onde andei”, apresento mais detalhadamente meu
tema de pesquisa, buscando trazer os múltiplos enredamentos a partir dos quais vim
formulando-o. Aqui vão ser apresentados, também, os companheiros de teoria que me
ajudaram a escolher, dentre as muitas possíveis trilhas nesse “bosque”, aquelas que mais
me diziam de possibilidades nesse processo. Como a metodologia não estava dada a priori,
fui quase que inventando-a, e ela foi sendo descoberta pelos desvios. Nomeei meu modo de
fazer de metodologia dos fuxicos.
No segundo capítulo, “Um lugar no espaço-tempo: Encontros e desencontros numa
instituição secular”, partindo de uma visão em escala macro, vou mergulhando no espaço
3 Trata-se da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, lançada em 1881.
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(Certeau, 2003) do colégio, começando por um tempo muito pretérito. Aos poucos, outras
vozes vão se enredando: são as palavras dos professores que lá chegaram antes de mim,
trazidas graças às artes da memória. Elas falarão do tempo em que o primeiro segmento
passou a existir no colégio e de como, a partir do prédio vazio que receberam ao serem
admitidos, os saberes e não-saberes, as experiências e inexperiências dos sujeitos
praticantes do cotidiano foram se articulando em rede e delineando as feições do
“Pedrinho”, que chamo de “o filho mais novo do velho colégio”.
Nesse trabalho coletivo de tessitura do currículo, foram criadas as Atividades
complementares, dentre as quais, Literatura. As memórias dos colegas que iniciaram esse
trabalho estão misturadas, em diálogo, porque procuro mostrar alguns enredamentos que se
fizeram possíveis naquele cotidiano.
“Enredamentos cotidianos: passeio por um bosque de fuxicos” é o terceiro e último
capítulo. Inicia-se em 1996, ano em que comecei a participar do grupo de Literatura. Foi
também nesse ano que a maior parte dos alunos participantes da pesquisa entrou no
colégio. Buscando evitar qualquer exposição desses sujeitos, optei por substituir seus
nomes.
Nesse longo capítulo, as memórias dos alunos em relação à sua formação vão
aparecendo e sendo trançadas às minhas próprias memórias. Para enriquecer as reflexões
que procuro fazer em torno da formação de leitores na escola, trago também, para dialogar
conosco, alguns alunos que ainda estavam estudando no primeiro segmento. Assim, penso
que a imagem do trabalho que fazemos vai se delineando com maior nitidez.
A partir do momento em que os alunos passam a falar de suas relações com a
linguagem escrita, as memórias transitam entre as experiências com leitura e escrita
vividas na escola de primeiro segmento e aquelas posteriores, vividas no decorrer do
segundo segmento, até o momento presente.
Espero conseguir, com este trabalho, discutir um pouco da complexidade que é
formar leitores na escola. Nesse sentido, digo sem medo de errar: a formação do leitor é
um “bicho de muitas cabeças” e, embora a escola seja o foco desta pesquisa, esse processo
está relacionado a todas as outras redes de que os sujeitos vêm fazendo parte durante sua
vida.
Vamos ao texto?
CAPÍTULO 1 CAMINHOS POR ONDE ANDEI: ITINERÁRIO DE PESQUISA E PERCURSO METODOLÓGICO
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. (Fala de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa )
1.1- De Onde Venho: Leitura, Literatura E Outros Enredamentos
Nesta parte do trabalho, pretendo delimitar melhor o objeto e os objetivos desta
pesquisa, falar do percurso metodológico que trilhei, bem como apresentar os principais
conceitos e noções com quem dialogo, não nessa ordem.
Há dez anos venho sendo professora de Literatura para crianças da primeira à
quarta série do ensino fundamental. Trabalho, no meu cotidiano, com a palavra literária.
Lido, no dia-a-dia profissional, com palavras grávidas de sentidos múltiplos, que podem
nascer e crescer a partir das interlocuções que os leitores façam com os textos, mas não só.
Eles também podem se ampliar no diálogo que os leitores estabelecem com outros leitores.
Pelos caminhos da vida, nas malhas das várias redes de que venho participando ao
longo da minha formação como pessoa e como professora, venho aprendendo que tratar
com a literatura na escola é coisa delicada. As muitas possibilidades significativas da
palavra literária podem também ser esmagadas quando as opções metodológicas que
fazemos não atentam para o valor polissêmico e a plurivocidade de sentidos que a literatura
evoca.
Encontrei, nas Memórias da Emília4, um trecho que me ajuda a dizer o que penso.
A boneca Emília, ao tentar ensinar a língua portuguesa ao anjinho de asa quebrada que caiu
no Sítio, vê-se às voltas com a dificuldade de explicar a complexidade da linguagem à
4 “O anjinho de asa quebrada” in Lobato, MONTEIRO. Memórias da Emília. São Paulo, Brasiliense,[s/d], p.11-15.
19
criaturinha que nada sabia da comunicação lingüística entre os homens. Diante das
possibilidades polissêmicas das palavras, o anjinho vai se confundindo, até que indaga:
“Mas por que é assim?” Sem titubear, a boneca responde, com a ironia que lhe é peculiar:
“Para atrapalhar a gente. Eu penso que todas as calamidades do mundo vêm da língua. Se
os homens não falassem, tudo correria muito bem, como os animais que não falam. (...) A
língua é a desgraça dos homens na terra.” E prossegue na explicação dos diferentes
significados que podem ter as palavras.
O anjinho, diante do leque semântico que se abre, pergunta então: “E como a gente
sabe quando é de um jeito ou de outro?” “Pelo sentido”, responde Emília. “E o que é
sentido?”, quer saber o anjo. A boneca desanima, porque não há nada mais difícil do que
ensinar anjinhos, diz o narrador.
Se a linguagem em si é de natureza polissêmica, esse processo se amplia na
literatura. Como as crianças não são anjinhos, mas sujeitos de linguagem, participantes da
cultura, e como a palavra literária é, por definição, plural, talvez nossa ‘tarefa’ não seja tão
difícil como a de Emília. Será?
Umberto Eco (2002, p.12), analisando a relação intrínseca do texto com o leitor, no
que tange ao seu poder de escolher os caminhos que percorrerá na experiência da leitura,
alude a uma metáfora criada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, que compara o
texto narrativo a um bosque. Este, para Borges, “é um jardim de caminhos que se
bifurcam”, e ainda que nele inexistam “trilhas bem definidas, todos podem traçar sua
própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore, e a
cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção”. Não é assim mesmo que
fazemos quando diante de uma narrativa literária?
Mas uma questão me incomoda. É que muitas vezes existe uma desconexão entre
aquilo que tencionamos fazer e o que efetivamente fazemos. Indago a mim mesma quantas
vezes, sem perceber, não interceptei às crianças possibilidades de leitura, não escolhi, eu
mesma, as trilhas do bosque pelas quais elas deveriam seguir. E não sei responder.
Nós, professoras e professores, desejamos, na escola, formar leitores. Quanto a
mim, poderia dizer que desejo formar leitores críticos, sagazes, curiosos, indagativos,
leitores que vão afinando a compreensão do mundo e de si mesmos na experiência da
leitura literária. Vejo na literatura grandes possibilidades para isso. Até onde eu e minhas
colegas professoras alcançamos nosso objetivo?
20
Ainda que não possamos responder ao certo, tentamos. O primeiro segmento do
colégio Pedro II, locus da pesquisa, vem tendo, praticamente desde a sua fundação, um
espaço garantido na grade para o trabalho com os textos literários. No entanto, nunca
houve, em São Cristóvão, Unidade onde trabalho, alguma investigação cujo objeto
estivesse relacionado a essa prática. Por isso, acredito que esta pesquisa possa trazer
possibilidades de reflexão, no próprio espaço escolar, sobre nossa atuação.
A hipótese inicial que me orientou foi que as experiências de prazer com textos
literários vivenciadas quando ainda se é leitor iniciante, ou mesmo antes, pela audição de
histórias narradas ou lidas, parecem ser muito significativas nas futuras relações da pessoa
com a leitura do mundo e da palavra.
A escritora Ana Maria Machado (2002), dizendo sobre a importância da
convivência da criança com textos literários e rememorando sua própria experiência,
afirma:
Engraçado como todas essas lembranças infantis ficam tão nítidas e duráveis. Talvez porque nas crianças a memória ainda está tão virgem e disponível que as impressões deixadas nela ficam marcadas de forma muito funda. Talvez porque sejam muito carregadas de emoção.(ibid.,p.10)
Testemunhos de numerosos escritores, leitores que escolheram fazer da palavra sua
matéria de trabalho, dizem também das influências marcantes que lhes trouxeram suas
primeiras leituras. É ainda Machado que me auxilia com suas observações:
Em todos esse casos, o que me interessa destacar não é a variedade de leitura feita por gente famosa. Prefiro chamar a atenção para o fato de que esses diferentes livros foram lidos cedo, na infância ou adolescência, e passaram a fazer parte indissociável da bagagem cultural e afetiva que seu leitor incorporou pela vida afora, ajudando-o a ser quem foi. (ibid, p.11)
Essa idéia, juntando-se ao pensamento que narrei na introdução, veio a fortalecer
meu desejo de realizar uma pesquisa para procurar conhecer um pouco do caminho pelo
bosque da leitura que vêm tendo os alunos do colégio que estudaram no “Pedrinho”. O
trabalho com a leitura de textos literários feito na escola deixou neles as marcas de que fala
a escritora? Tendo deixado, estarão eles se formando leitores? O que pode a literatura no
processo sempre infindo de formação dos sujeitos?
21
Muitas vezes, na escola, apesar de nossas intenções, não conseguimos aproximar
nossos alunos da leitura. As razões podem ser múltiplas, como múltiplos são os caminhos
pelos quais os leitores se formam, muitas vezes, apesar da escola. Não é objetivo deste
trabalho examiná-las. Mas penso que um dos eixos para abordar a questão é interrogarmo-
nos em que medida estamos preocupados – a instituição escola e os professores - em
proporcionar aos alunos um contato prazeroso com a leitura ou até onde nossas aulas têm
sido espaços que se abrem para que os sujeitos possam experimentar formas de relação
com a leitura que favoreçam sua constituição como experiência5.
Considerando que a alfabetização é um processo inserido na relação dialética entre
sujeito e sociedade, mediada pelos projetos e práticas sociais, e que a leitura é um dos
elementos constituintes dessa rede (Foucambert,1994; Chartier,1994), é possível afirmar
que, para tornar-se leitor, é indispensável estar efetivamente incluído em determinadas
redes de práticas. Que redes estamos ocupados em tecer? Essas redes favorecem o processo
de apropriação da leitura, especificamente da leitura literária?
André, aluno participante da pesquisa, tentando explicar de onde surgiu seu gosto
por ler me disse o que dizem vários estudiosos do assunto: “Não sei... De mim mesmo... Eu
aprendi a despertar o gosto... Eu aprendi a gostar... lendo!” Isso parece óbvio, mas nem
sempre o óbvio ulula. Leitores, diz-se, são formados em contato com livros, com leituras
significativas, com envolvimento. Leitores se formam na prática de atos de leitura, numa
“contínua interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas”
(Foucambert, ibid., p.31). Se cada um de nós se debruçar a pensar nos seus próprios
caminhos de formação como leitor, embora certamente sejam diversos, ao menos um ponto
eles terão em comum: formamo-nos leitores lendo. E melhores leitores nos tornamos se
também temos espaço para dialogar sobre nossas leituras, nossos entendimentos.
Diálogo é palavra que traz em seu cerne a ‘relação entre pessoas’ [di(a)-] e o logos,
a linguagem. Diálogo é palavra que me remete a Paulo Freire (1982), que também me
ajuda com suas palavras:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles um novo pronunciar.
5 A noção de experiência será aprofundada no decorrer deste trabalho.
22
Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. (...) O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. (...) Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial.(ibid., p.92-93)
Penso que o diálogo, entendido nessa perspectiva, tem extremo poder de nos
enredar ao texto e ao outro, num processo infindo de criação de elos absolutamente
imprevisível e, talvez por isso mesmo, apaixonante. Não é no exercício de pronunciar o
mundo, de dizer as nossas palavras, que o vamos criando, vamos estabelecendo
enredamentos, relações? Em que medida, na escola, de modo geral, e, mais
especificamente, no tratamento da leitura de textos, consideramos essa questão?
Ler é um trabalho mental que tanto mais se aprimora quanto maior for a capacidade
do leitor de fazer interrogações semânticas ao texto que se lhe apresenta. É também “ser
questionado pelo mundo e por si mesmo, é saber que certas respostas podem ser
encontradas na produção escrita, é poder ter acesso ao escrito, é construir uma resposta que
entrelace informações novas àquelas que já possuía”(Foucambert, op.cit., p.5). É decisão
individual que, em última análise, relaciona-se profundamente à existência de um ambiente
que lhe seja favorável.
Penso que uma forte possibilidade da escola na tentativa de formar de leitores seja
aceitar o desafio de procurar propiciar aos alunos o encontro da leitura e da escrita como
experiência (Benjamin,1996; Larrosa, 2004) ou encarar as salas de aula como um espaço
onde a leitura possa ter um lugar de formação (Larrosa,2002). O que significa isso?
Benjamin (ibid., p.197), pensando as transformações que vinham sendo vividas pela
sociedade européia da primeira metade do século XX, afirma que a experiência passava
por um progressivo empobrecimento e que, por isso, a arte de narrar estava “em vias de
extinção”. O poder de narrar, para Benjamin, está indissociavelmente ligado às
experiências vividas pelo sujeito que narra, intimamente relacionado ao diálogo tecido “na
substância viva da existência”, ou seja, nas malhas da experiência. Chama a essa tessitura
“sabedoria”. Diz o autor (ibid.,p.198): “A experiência que passa de pessoa em pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores.”
23
O narrador, diz Benjamin, se move nos degraus da experiência “para cima e para
baixo, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas
nuvens”. A voz que conta, que canta, que dialoga precisa fazê-lo acoplada nas tramas do
que é consistentemente vivido. “O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o
narrador do conto de fadas”, o qual traz em sua fala um saber que “vem de longe”
(ibid.,p.202). Este “foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa.”
De que distâncias, ou de que proximidades, vem esse saber?
Esse saber é radicalmente diferente da ligeireza das informações fragmentadas tão
características da modernidade, a cuja emergência Benjamin assistia preocupado, já
naquele tempo. Larrosa (2004, p.159), nosso contemporâneo, por sua vez, corrobora
Benjamin, dizendo com veemência do valor da experiência. Como aquele, opõe
experiência a informação. Lembra que “a experiência é o que nos passa, nos acontece, ou
que nos toca” (ibid., p.154), o que é radicalmente diferente daquilo que simplesmente
passa ou que acontece ou que toca. Porque o sujeito é a medida da experiência. Só aquilo
que se coloca para ele de verdade, na intensidade do vivido que deixa marcas, pode ser tido
como experiência.
“O tédio6 é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”, diz Benjamin
(op.cit.,p.204). E Larrosa (ibid.) continua: “tudo o que passa está organizado para que nada
nos passe”. Para que nada nos aconteça verdadeiramente, para que nada se constitua para
nós como... experiência.
O mundo contemporâneo está marcado por um ritmo frenético e abreviado.
Vivemos, hoje, num mundo de excessos e, por conseguinte, também de faltas (Larrosa,
2004). Para Larrosa, a experiência está apartada do sujeito moderno por causa desses
excessos. Podemos estar informados – excessivamente- sobre muitas coisas, somos
solicitados, ou obrigados, a ter opiniões sobre outras tantas, trabalhamos muito, e sempre
nos falta muito tempo para tantas atividades. Esse sujeito, pretensiosamente, aspira a
“conformar o mundo (...) segundo seu saber, seu poder e sua vontade” (ibid.,p.159).
Quanta onipotência! E quanta impotência nos avassala!... Onde o ‘pássaro do tédio’ pode
ter paz para construir seu ninho, palha por palha, palavra por palavra... experiência?
6 A palavra ‘tédio’ tem, em Português, carga semântica negativa: “sensação de enfado produzida por algo
lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais”, diz o Houaiss. Entretanto, entendo-a, na frase de Benjamin, como a necessária lentidão para que a nossas percepções amadureçam.
24
O sujeito da informação não é, assim, o sujeito da experiência. Larrosa salienta
que, ao contrário, “a informação não deixa lugar para a experiência” (ibid., p.154).
Por isso, a ênfase contemporânea na informação, em estar informados e toda a retórica destinada a constituirmos como sujeitos informantes e informados, não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência.” (ibid.)
O saber da experiência não deve ser confundido, para Larrosa, com “saber coisas,
tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas”(ibid.).
Depois de assistir a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação (...), podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos passou, que nada nos tocou, que, com tudo o que aprendemos, nada nos sucedeu ou nos aconteceu. (ibid.)
Penso que se temos ouvidos e olhos e coração para chegar à intimidade das coisas,
escutando-as, uma conferência, um livro ou uma aula podem, sim, acontecer em nós. Mas
não posso deixar de reconhecer que muito do que se faz e se vive acontece externamente
ao sujeito, pois o mundo parece mesmo organizado para que nada nos passe. E eu me
pergunto o que temos feito para promover rupturas nesse ciclo. Será que nossas aulas têm
se constituído em espaços onde “aquilo que passa afeta de algum modo, produz alguns
afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios”? (ibid., p.160) Para Larrosa estas
são algumas características do “sujeito da experiência”. Como trazer para as aulas a
possibilidade da experiência da leitura?
Marisa Lajolo (2002,p.15), preocupada com a qualidade das práticas escolares em
relação à leitura de textos literários, diz que “ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele
não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer de nossas aulas”. De outra maneira,
diria que, para que faça sentido, o texto, na sala de aula, deve necessariamente integrar
uma certa rede de que faça parte o sujeito que o lê , bem como contribuir para que o leitor
avance na tessitura de outros significados para o fato de estar no mundo, pessoal e
socialmente. É preciso, pois, que estejamos envolvidos como sujeitos na construção desse
currículo.
25
Kramer (2001) faz importante reflexão sobre leitura e escrita entendidas como
experiência, apontando a “centralidade da narrativa como espaço de diálogo e de
rememoração” e dimensionando “seu papel na constituição do homem como sujeito social,
enraizado na coletividade”(ibid.,p.105-6). Reportando-se às diferenças estabelecidas por
Benjamin entre vivência (reação a choques) e experiência (vivido que é pensado, narrado),
sublinha que, para se constituírem como formadoras, “a leitura e a escrita precisam se
concretizar como experiências”. É a possibilidade de relatar para o outro, isto é, de
dialogar com o outro, que torna a vivência uma experiência.
Então, quando uma ‘atividade de leitura’ pode se constituir numa ‘experiência de
leitura’? Parece que quando essa atividade nos deixa marcas, nos dá condições de dialogar
com o mundo, com a vida. Diz Kramer:
O leitor leva rastros do vivido no momento da leitura para depois ou para fora do momento imediato – isso torna a leitura uma experiência. Sendo mediada ou mediadora, a leitura levada pelo sujeito para além do dado imediato, permite pensar, ser crítico da situação, relacionar o antes e o depois, entender a história, ser parte dela, continuá-la, modificá-la. Desvelar.(ibid. p.107)
Tudo o que venho dizendo até agora conflui para a idéia da importância do diálogo
entre sujeitos, quando se pensa a educação como prática formadora e trans-formadora. Isto
me chama a tratar da concepção de linguagem que permeia meu discurso, marcada,
também, pela minha própria experiência de leitura das idéias trazidas por Mikhail Bakhtin.
A teoria da linguagem formulada por Bakhtin (2004) aponta para a idéia de que a
língua não é um sistema estático de signos de que o falante lança mão para realizar seus
atos comunicativos, como se fosse uma paleta com várias cores de tinta da qual
escolhêssemos as mais convenientes para colorir uma tela em branco. Ao contrário,
Bakhtin afirma que o homem é forjado na e pela palavra. Em outras palavras, “palavras
somos”, como diz o verso de Drummond. Mas nos cabe desvendar os significados.
A linguagem não é, absolutamente, um já-dado. Ao invés, constrói-se
permanentemente pelos atores sociais imersos na cultura. Na prática viva da língua, os
signos (palavras) estão sempre impregnados de um conteúdo ou de um sentido ideológico.
Sem ideologia, não há signo, porque o signo é produto das relações sociais. O caráter da
linguagem é, portanto, essencialmente cultural, ideológico.
26
A natureza dialógica da linguagem é um conceito básico da teoria bakhtiniana. A
interação verbal, que se dá no movimento dialógico entre interlocutores, através da
enunciação ou das enunciações (Bakhtin, 2004), tem dimensão muito mais ampla que a
simples comunicação: o ser humano se forma num movimento contínuo de fluxo e refluxo
do signo. Ou seja: “Ao expressarmos nossa compreensão sobre qualquer tema para uma
outra pessoa, nossa palavra retorna sempre modificada para o interior do nosso
pensamento.” (Jobim, 2003, p.112) Então, é através das interações verbais que o ser
humano, criado na e pela linguagem, organiza sua atividade mental, isto é, sua
consciência, e se constrói. E constrói o mundo dentro de si mesmo.
A dimensão formativa da leitura está implicada nesses conceitos. Bakhtin considera
que a compreensão de uma enunciação (formulada pelo texto ou por alguém) nos leva a
fazer a esta uma réplica. Portanto, à palavra do outro, opomos uma contrapalavra. De
réplica em réplica, no diálogo com o mundo, é que tecemos sentidos para este e para nós
mesmos.
Então, as atividades de leitura que promovemos nas aulas, muito mais que trazer
‘ilustração’, informações para nossos alunos, fazem sentido quando lhes favorecem
encontros com o mundo, com o outro, consigo mesmos. Quando suscitam perguntas,
questionamentos, elos. Quando tornam possível que os sujeitos pronunciem as próprias
palavras. Até que ponto isso acontece nas minhas aulas?, sigo me perguntando.
Sujeitos, palavras, leitura, conhecimento, experiência. Muito tempo pensei que o
conhecimento fosse algo a ser construído pelos sujeitos. Entendido desse modo, conhecer
seria um processo gradual em que a uma aprendizagem se sobrepusesse outra e mais outra,
como, num edifício, os andares vão se sobrepondo, até que... Mas aí subsiste uma
concepção que talvez limite a compreensão da complexidade com/em que se tece o
conhecimento. Um dia, encontrei com uma outra idéia, outra noção, relativa ao processo de
conhecer: a de que não há, propriamente uma hierarquização de saberes, começando dos
mais simples até chegar aos mais complexos. A de que os sujeitos, na relação cotidiana
com o outro e com o mundo da cultura, tecem seus conhecimentos em redes (Alves,
2000;2002).
A professora Nilda Alves (2000) recorre à noção de Santos (1995) segundo a qual
“somos uma rede de subjetividades formada pelas relações que estabelecemos nos
múltiplos contextos cotidianos em que vivemos” (Alves, 2000, p.42). Em cada um desses
contextos é que nos formamos, conhecemos. Desses vários contextos trazemos fios “que
27
permeiam e definem os caminhos do que somos e do que nos tornamos, nos processos de
constituição de nossas identidades, forjadas pela articulação entre as muitas inserções e
instâncias nas quais vivemos cotidianamente (...)” (Oliveira,2001, p.38). Nas palavras de
Alves (2000):
Cada aluno/aluna e cada professor/professora que entra no espaçotempo escolar carrega consigo a rede de subjetividade que é. Ou melhor dizendo, traz consigo as múltiplas redes nas quais vive, com seus diferentes processos de conhecer e com os vários conhecimentos nelas criados, quer tenhamos ou não olhos para ver, boca para saborear, nariz para cheirar, pele para tocar essa complexa relação. (ibid.,p.47-8)
Todas as práticas sociais de que participamos nos levam a aprender e esses saberes
se enredam, estão sempre e permanentemente relacionados, como aponta Oliveira (op.cit.,
p.38.). Assim, tanto os saberes formais como “o que vivemos na rua, na escola, em casa,
nas conversas com os amigos, nas leituras que fazemos, na TV a que assistimos” estão
emaranhados em nossas subjetividades e interferem nos sentidos que atribuímos ao mundo.
Essas idéias vêm me fazendo refletir bastante, porque sendo, para mim, um
pensamento novo, tensionam as concepções que faziam parte da rede de compreensões que
me constitui. E foi pensando nisso tudo que, aos poucos, fui delineando com maior nitidez
minha principal pergunta de pesquisa: se compreendo o sujeito como um enredamento de
subjetividades que está em constante formação no movimento das múltiplas experiências
que vive, como e até que ponto os processos vividos na rede da escola vêm interferindo
nas subjetividades dos alunos, especialmente na sua constituição como leitores?
No cotidiano das aulas, as articulações que as crianças operam entre os saberes
tecidos nessas redes se fazem ver, muitas vezes, e dão viço ao processo de aprendizagem.
Quanto à formação de leitores, as redes familiares também têm importância enorme,
muitas vezes até maior que a rede da escola7. Não desconsiderando sua existência, mas
entendendo os limites desta pesquisa e de maneira nenhuma pretendendo esgotar o assunto,
volto meu foco para as influências da escola no processo de formação dos alunos como
leitores, embora algumas vezes, durante o trabalho, essas outras relações apareçam.
7 Pesquisas como Retrato da Leitura no Brasil (realizada entre 10 de dezembro de 2000 e 25 de janeiro de 2001, pela Câmara Brasileira do Livro- CBL/Sindicato Nacional dos Editores de Livros- Snel/Associação Brasileira de Celulose e Papel-Bracelpa e Associação Brasileira dos Editores de Livros-Abrelivros) e Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (realizada anualmente pelo Instituto Paulo Montenegro, do Instituto Brasileiro de Opinião Pública (IBOPE), associado à Organização Não Governamental Ação Educativa) trazem notícias a esse respeito.
28
O processo de perguntar me levou a perceber, também, esse duplo movimento em
relação aos professores e professoras. Nós trazemos para o cotidiano da escola fios de
outras redes, como também, vamos sendo trans-formados pelas experiências vividas no
contexto do trabalho (Santos apud Alves, 2000)8 , configurando, assim, possibilidades de
renovação das práticas.
As relações complexas (Morin, 1996) que aí se dão se emaranham e se fazem ver
no espaço-tempo do cotidiano. O leitor verá que a contextualização da escola onde
aconteceu a pesquisa é mais que um “pano de fundo”. Na ribalta, estão as redes tramadas
pelos professores que fizeram parte da constituição da escola do ponto de vista curricular,
cujas vozes, trazendo um pouco da história do “Pedrinho”, permitem perceber o processo
de construção da Atividade de Literatura na e apesar da instituição.
Todos os sujeitos que participam da pesquisa trazem, cada um a seu modo, a
história do cotidiano, os diferentes "cotidianos" das diferentes épocas e sua contribuição
para a formação do trabalho (onde se incluem os professores e professoras) e dos alunos.
O leitor poderá conhecer um pouco das memórias dos professores em relação às
práticas do ensino de Literatura no primeiro segmento de São Cristóvão e um pouco
também das memórias dos alunos em relação à sua formação, tanto no primeiro segmento
quanto no restante de sua escolaridade no colégio. Participar desse(s) processo(s)
certamente marcou a história de cada um.
Os professores, dentre os quais eu me incluo, também se formaram
profissionalmente nessa história, como adiante será visto. E com os alunos? Quais as
marcas deixadas pela escola em sua trajetória (Certeau, 2003)? Como a escola de primeiro
segmento contribuiu para que cada sujeito seja o leitor que é? De que modo eles relatam
suas relações com a leitura literária durante o segundo segmento? Onde se articulam?
A trajetória de um sujeito, segundo Certeau, não é algo que se possa prever ou
determinar absolutamente.
Produtores desconhecidos, os consumidores produzem por suas práticas significantes alguma coisa que poderia ter a figura das “linhas de erre” desenhadas pelos jovens autistas de Deligny. No espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam, as suas trajetórias formam frases imprevisíveis, “trilhas” em parte ilegíveis. Embora sejam compostas com os vocabulários de línguas recebidas e continuem submetidas a sintaxes prescritas, elas desenham as astúcias de interesses
8 SANTOS,B.S. Pela mão de Alice- o social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez, 1995.
29
outros e de desejos que não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem.(ibid.,p.45)
Focando os homens singulares, Certeau interessa-se por identificar as formas,
astúcias e táticas através das quais as pessoas comuns trapaceiam com a ordem
estabelecida. Ainda que não a contestem declaradamente, ainda que pareçam com ela
conformadas, contestam-na e subvertem-na, pelos usos e práticas com que se apropriam
daquilo que se lhes impõe. Consumir, enquanto assimilar, para ele, pode ser aproximar o
consumido do que se é, ao contrário de ser absorvido por aquilo que se consome. É
possível, então, conjecturar ser ingênuo pensar simplesmente que os adolescentes são
capturados por uma série de valores de consumo veiculados, reproduzindo-os cegamente,
sem absolutamente ressignificá-los? Afinal, como se chega a ser o que se é?
Se nossas subjetividades não são monolíticas, se “cada corpo é um elemento
assinado por muitos outros” (ibid., p.171), pergunto: o trabalho de formação de leitores na
escola é um bicho de quantas cabeças? E que cabeças são essas? Apenas as sete da
expressão popular? Apenas os cinco anos de primeiro segmento? Apenas os nove anos de
ensino fundamental? Apenas as aulas de Literatura? Certamente não.
Buscar compreender os fragmentos labirínticos das trajetórias dos alunos pelas
malhas da leitura me impõe procurar mergulhar com todos os sentidos (Alves, 2002) no(s)
cotidiano(s) em que eles vêm sendo formados. O que significa o mergulho de que fala
Alves? Antes de tudo, uma postura político-metodológica. Entrar no lugar praticado de
que fala Certeau (2003). Arriscar-me. Tentar descobrir significados na escola onde nós,
praticantes ordinários, vivemos grande parte de nossas vidas. Onde somos felizes,
infelizes... Onde se constroem, se encontram desejos, conhecimentos, esperanças,
afinidades... Ou não. Desconstroem-se, desencontram-se, desespera-se, desafina-se. Ou,
ainda, um pouco de tudo isso.
30
1.2- Trilhas do Cotidiano
Trabalho há vinte e um anos com turmas de primeira a quarta série. Embora
professora experiente que tem por hábito refletir e questionar suas práticas, sou uma
pesquisadora – em sentido estrito – iniciante.
Dentre os dilemas que vivi durante o curso de Mestrado, um deles, que me
desafiava incessantemente como um puzzle, foi o seguinte: minha pesquisa se insere
mesmo no campo do cotidiano? Não estarei tentando vestir-lhe uma indumentária que não
lhe cabe? O principal motivo dessa dúvida era o fato de o foco central por mim imaginado
referir-se a um passado, a algo já vivido, e não ao dia-a-dia presente. Mas, o que é o
passado senão um presente de outro tempo que a memória revisita e com ele reflete e
repensa?
Uma das pedras que se interpunham no meu caminho era uma compreensão
superficial do que fosse o cotidiano. É fato que, pela minha longa experiência em sala de
aula, sabia que o cotidiano está longe de ser o espaço da mera repetição, longe de ser o
lugar onde nada se passa. Mas, pensava de modo um tanto simplista, se o cotidiano é o
dia-a-dia, eu deveria fazer observações das aulas! Como dizer de um cotidiano que há
muito já não é?
No decorrer do tempo, entretanto, aprofundando leituras e compreensões, fui
descobrindo que, sim, mais que um tempo presente ou pretérito, o que define uma pesquisa
do cotidiano é o tipo de abordagem que ali se faz. O que a difere de outros modos de
pesquisar são os caminhos, isto é, os métodos de que esse olhar se vale. Conforme Pais
(2003):
É que toda pergunta é um buscar. E, como etimologicamente método significa caminho e como o caminho se faz ao andar, o método que nos deve orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade(...), tentando ver o que nela se passa mesmo quando “nada se passa”.(ibid.,p.33)
Penso que, na verdade, a inexperiência me embotava ante a dificuldade que teria
para tentar recompor um cotidiano através das memórias que me fossem trazidas. Como
trotar uma realidade que já não é? E acabei por trotar a realidade da minha própria
pesquisa, que se foi fazendo devagar - sem o ‘conforto’ de uma metodologia pré-definida,
31
da qual bastasse ‘seguir os passos’-, procurando colher aqui e ali elementos que me
auxiliassem a compreender que
a temporalidade do cotidiano não se reduz a uma temporalidade cíclica, repetitiva, vivida exclusivamente no presente; há lugar para uma história da vida quotidiana que, naturalmente, não deve ser encarada como uma história de tudo aquilo que se gera de uma forma repetitiva, banal, efêmera, fugaz. (ibid.,p.147)
Como recuperar da invisibilidade aquilo que no cotidiano se passa de forma fluida,
deslizante, transitória (Pais, 2003)? A história do cotidiano é uma história de rotinas? Mas,
que significados são encobertos pelo uso mesmo dessa palavra?
Foi lutando contra a hegemonia de um pensamento demonstrativo e catalogador
(Certeau, 2003), traços de um modelo tradicional de ciência que está em mim, em cuja
sombra fui formada e cuja seiva me alimentou, que, aos poucos, fui incorporando uma
outra perspectiva à pesquisa. Movimento lento como a rotação da Terra, mas que produz
dias e noites. Pais afirma que
À sociologia do cotidiano interessa mais a mostração (...) do social do que a sua demonstração, geometrizada por quadros teóricos e conceitos (ou preconceitos) de partida, bem assim como por hipóteses rígidas que à força se procuram demonstrar num processo de duvidoso alcance em que o conhecimento explicativo se divorcia do conhecimento descritivo e compreensivo. (ibid., p.30)
Esforçando-me por não pretender constringir as “imagens do social (...) no sentido
do que se pretende demonstrar ou explicar”(ibid.,p.31), fez-se primordial procurar
abandonar conceitos prévios, prognósticos, e abrir-me às imagens, sons, texturas, sabores,
odores (Alves, 2002) que se me apresentariam durante a pesquisa. Tal movimento, se
amplia as possibilidades de compreensão do real, está longe de ser fácil, uma vez que, na
condição de professora do primeiro segmento do colégio e de ex-professora dos sujeitos da
pesquisa, encontro-me submersa nesse processo, seja pelo envolvimento com o trabalho de
Literatura, seja pela percepção, forjada no decorrer do tempo, em relação ao trabalho do
segundo segmento. Num curto intervalo temporal, fui me esforçando por “aprender a ver o
que é nosso como se fosse estrangeiro e como se fosse nosso o que é estrangeiro” (ibid.,
p.59).
32
Então, entendendo que a história humana se faz na vida concreta, na vida
acontecida a cada pessoa num determinado espaço-tempo, penso ser possível entender,
também, ser necessário buscar nos indivíduos, que são sínteses complexas dos fenômenos
sociais (Pais, 2003), os pontos de partida para a compreensão daquilo que desejo. Por isso
abandonei as trilhas épicas da macronarrativa, de uma história “limpa”, onde as asperezas,
as rugosidades, as linhas sinuosas inerentes à complexidade da vida social podem tomar
uma textura aveludada, uniforme, quiçá agradável ao toque, porém distante do real, da vida
como ela é, conforme diria Nelson Rodrigues.
1.2.1- Fuxicos
E, como a vida é surpreendente, um dia, olhando dedicadamente a blusa que vestia
uma colega, uma idéia me surgiu inesperadamente. Era uma peça artesanal, feita com a
técnica chamada ‘fuxico’. Toda em flores de retalhos franzidos. Toda colorida de estampas
diversas. Toda tecida em rede. No entanto era um todo: blusa. O que, antes do trabalho de
união das partes/flores, não passava de um amontoado de fuxicos, virara bela peça de
indumentária.
A imagem se apoderou de mim. Passei a pensar por fuxicos. “Cerzidura ou
remendo malfeito”, eis a definição que dicionários9 nos oferecem. No entanto, é difícil não
se encantar com a beleza que extravasa das peças construídas pelas artesãs que, de posse de
9 Essa definição consta dos dicionários AURÉLIO e HOUAISS.
33
retalhos, normalmente sobras de tecidos usados para outros fins, vão formando pequenas
‘flores’. Cerzindo-as num todo, criam verdadeiras obras de arte para decoração ou
indumentária, quase sempre multicoloridas. O real não tem esse teor, múltiplo e
surpreendente?
Procurar decifrar totalidades partindo das partes, eis o meu desafio, eis o enigma
que a Esfinge me propõe. Mas os enigmas, convém não esquecer, junto ao lado opaco,
obscuro, trazem também uma luminosidade latente (Pais, 2003). Cotidianos vividos por
professores e por alunos. Imagens do social que podem ou não se interpenetrar, coincidir,
mas que se cruzam, necessariamente, numa rede. E Pais, novamente, me auxilia:
O caminho é chegar à realidade por partes. (...) A valorização da parte não significa necessariamente um equívoco de metonímia em que o todo é tomado pela parte, muito menos quando a parte é tomada como uma simples metáfora do todo. (ibid., p.68)
Morin (1996) trata de forma muito interessante a relação entre partes e todo. O todo
contém as partes, mas as partes também contêm as qualidades do todo. O carbono que deu
origem à vida está em cada um de nós, assim como os processos sociais. Valorizar as
partes não significa negar o todo em que estas se inserem. Mas significa abrir-se a
descobertas que “uma abordagem encurralada em formas definitivas, rígidas e inalteráveis
do real” poderia obliterar (Pais,op.cit.,p.69). Pensando em termos de fuxicos, cada flor se
inclui na rede em que se tece a vida.
As artesãs nordestinas costumavam reunir-se para costurar e aproveitavam o ensejo
para conversar ou fazer intrigas, mexericos... fuxicos. Durante a pesquisa, o que fiz eu?
Sentei-me com professores, coordenadores, ex-alunos e até com um aluno do “Pedrinho”.
Dos “baús de suas memórias” vi surgirem muitos ‘retalhos’ dos cotidianos vividos –
metáforas da memória? Uma professora me trouxe seus guardados: uma fita de vídeo em
que ela aparecia contando história às crianças na biblioteca do colégio, retratos, cadernos,
cartões...
Escavei, também, minhas próprias impressões do que vivi e vivo como professora
daquele colégio. E não só. Revirei meus guardados, achei tantas coisas... Muitas fontes –
documentos biográficos - para dinamizar meu ‘jardim de fuxicos’.
Continuando o artesanato acadêmico, durante o processo de escrita, descobri-me
estabelecendo mentalmente diálogos entre os discursos dos alunos que já não estão no
“Pedrinho” e os daqueles com quem convivia no presente das aulas, as crianças do
34
“Pedrinho”. Nesses ‘fuxicos’, há restos de histórias, de processos pessoais e coletivos. Por
isso, aproveitei para costurar nesta rede também algumas ‘flores’ que me trazem os alunos
do primeiro segmento, como leitor verá.
Assim, trotando a realidade, tratando de memórias minhas e alheias, fui urdindo os
‘fuxicos’ e tentando compor uma imagem interpretada (ibid.,p.66) do cotidiano de uma
escola e do(s) seu(s) trabalho(s). Passeando por onde me levavam os discursos, busquei
compor a imagem de um espaço – o lugar praticado pelas operações dos usuários de que
fala Certeau (2003).
As memórias dos sujeitos praticantes (Certeau, 2003), aparecem em forma de
narrativas. Narram eles e narro eu. Como diz Larrosa (2002, p.145-6), “se a vida humana
tem uma forma, ainda que fragmentária, ainda que seja misteriosa, essa forma é a de uma
narrativa: a vida humana se parece a uma novela.” Importante é entender, com o autor, que
nossa vida não consiste numa sucessão de feitos, mas sim que os sujeitos se constituem na
temporalidade dos relatos. São eles que convertem o tempo em tempo humano. Procurar
descobrir quem somos “implica uma interpretação narrativa de nós mesmos, implica uma
construção de nós mesmos na unidade de uma trama, e isso é análogo, então, à construção
de um caráter, de uma novela”. A essa concepção se alinha necessariamente a percepção
de que “só compreendemos quem é outra pessoa ao compreender as narrativas que ela
mesma ou outros nos fazem”.
Pais (op.cit., p.64) também me ajuda a justificar minha opção quando afirma a
importância dos relatos, dizendo que “a narração é um método, um caminho (odos) vasto
e comum para chegar à realidade de qualquer coisa. Um caminho obscuro que se vai
clareando à medida que se vai fazendo, isto é, à medida que o percorremos (...)”. Explica
também que
(...) as sociologias narrativistas definem-se pela sua discursividade metodológica – porque mais importante do que o mundo em si mesmo é a forma como ele é dito e pensado. (...) O mundo pensado e dito, o mundo relatado, é o mundo por excelência. A realidade não existe a não ser de forma interpretada. (ibid., p.66)
Minha opção pelos relatos se fundamenta, também, nos escritos de Michel de
Certeau (op.cit., p.199-200). Ele sublinha que todos os dias os relatos10 “atravessam e
10 Certeau usa o termo relato na acepção que damos a narração. No capítulo VI da obra citada, discorre longamente sobre o assunto.
35
organizam lugares”, pois “são percursos de espaços”. “Todo relato é um relato de viagem -
uma prática do espaço”, diz Certeau, e “as estruturas narrativas têm valor de sintaxes
espaciais”. Ao ancorar a pesquisa basicamente em relatos de cotidiano relacionados à
leitura/literatura - meus, de outros professores e de alunos -, minha intenção é enfatizar a
noção de espaço proposta por Certeau, segundo a qual o espaço é o lugar praticado. Se é
assim, é necessário que os sujeitos praticantes possam narrar sua prática. Fazer dos relatos
matéria de reflexão é um desafio que lhes dá conseqüência.
Certeau (ibid.,p.202), aludindo a noções formuladas por Merleau-Ponty, afirma
que “o espaço é existencial” e “a existência é espacial”, concluindo que “essa experiência é
relação com o mundo”. Assim, numa perspectiva determinada por uma “‘fenomenologia’
do existir no mundo, existem tantos espaços quantas experiências espaciais distintas”
(Choay, 1973 apud Certeau). Se o espaço é o lugar praticado, creio ser possível concluir
que as diferentes experiências relatadas pelos alunos e pelos professores, sujeitos
praticantes do cotidiano escolar, apontam para a existência de diferentes espaços dentro da
mesma escola, e mesmo dentro de uma mesma turma.
Os relatos são muito importantes para a constituição dos grupos, de acordo com
Certeau, que afirma: “Onde os relatos desaparecem (...) existe perda de espaço: privado de
narrações (...), o grupo ou indivíduo regride para a experiência inquietante, fatalista, de
uma totalidade informe, indistinta, noturna”(ibid.,p. 209).
Pelas ruas das cidades e – por que não?- pelas vias sociais, os caminhantes
escrevem um texto sem poder lê-lo (ibid., p.171). Nós, os sujeitos ordinários, vivemos
nossas práticas cotidianas, sem, contudo, escrevê-las, ‘preto no branco’, como se poderia
dizer em linguagem popular. Numa sociedade marcada pelo valor da escritura,
normalmente quem escreve sobre nós são outros. Quando escrevem. Quem abrir o Projeto
Político-Pedagógico do Colégio Pedro II poderá constatar que, nas páginas onde a longa e
pomposa história do colégio é contada, a criação dos “Pedrinhos” é registrada em duas
linhas. Da Unidade São Cristóvão se fala: “Em 1984, foi criada, em São Cristóvão, a
primeira Unidade de Ensino do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental (da classe de
alfabetização à 4ª série).”11 E mais nada.
Lembro-me ainda de que, no final dos anos de 1980, Marcelo, um colega de
trabalho, costumava comentar, preocupado, que, no colégio, nós não registrávamos quase
11 Conferir Colégio Pedro II: Projeto Político Pedagógico. Brasília: Inep/MEC, 2002, p.30.
Comentário: Relatos são diferentes de narrações. Vc está usando ambos como sinônimos?
36
nada do que fazíamos; as coisas se diluíam na correnteza das práticas cotidianas e muitas
vezes se perdiam no labirinto do tempo. O colega já morreu. Enquanto pesquisava, e
mesmo agora que escrevo, sua voz de vez em quando ressoa em minha memória.
Do mesmo modo que ouço a voz de Marcelo, as outras vozes que venho ouvindo se
mesclam neste texto e continuarão reverberando, mesmo quando for necessário colocar um
ponto, ainda que não seja o final, porque os fuxicos da memória apresentam possibilidades
de inesgotáveis combinações.
1.3- Da Idéia Fixa Ou Um Itinerário De Pesquisa
Na fase inicial da pesquisa, tinha claro que desejava conhecer - “desdobrar,
desenvolver, exprimir algo que está enovelado, envolvido, recolhido sobre si” (Pais,
op.cit.,p.57) - os caminhos que ex-alunos do primeiro segmento do ensino fundamental do
Colégio Pedro II vêm percorrendo na floresta da leitura, como já disse. No entanto, uma
questão aparentemente tão clara me abriu um leque de variadas possibilidades e, junto com
elas, numerosas dificuldades.
Devo dizer que, no princípio, tinha a intenção de procurar compreender
estritamente as influências das aulas de Literatura desenvolvidas no primeiro segmento na
constituição dos alunos como leitores literários. De que modo? Procuraria realizar a
pesquisa junto a ex-alunos que hoje estão no último ano do ensino fundamental para
conhecer suas trajetórias (Certeau, 2003). O recorte, no entanto, revelou-se, de um lado,
por demais amplo; de outro, restrito em excesso. Mas idéia fixa é idéia fixa.
“Decifra-me, ou te devoro”. Assim a Esfinge se apresentava àqueles que ousavam
habilitar-se a enfrentar seus enigmas. Preciso dizer que o processo da pesquisa que me
propus me fez, fazia e faz, sentir-me quase que desafiando o monstro grego. Veja o leitor
por que brenhas me meti e as razões de minhas dificuldades:
Em primeiro lugar, se desejava saber que influências tiveram as aulas de Literatura
da escola de primeiro segmento para os alunos pesquisados, deveria ocupar-me também
em descrever e discutir o trabalho ali desenvolvido. Para tal, qual uma ‘catadora de
histórias’, na primeira fase da pesquisa fui em busca dos professores do “Pedrinho” que
participaram dos primórdios da elaboração do currículo de Literatura no primeiro
segmento, para ouvir suas narrativas. Esse material já teria sido suficiente pra uma densa
dissertação.
37
Porém, outro complicador se interporia em meu caminho: como falar apenas das
aulas de Literatura, se, no colégio, este não é o único espaço em que se investe na
formação de leitores (o ‘bicho’ tem mais de uma cabeça)? Por que reduzir o ato de ler
apenas à leitura literária?, perguntava-me. Por outro lado, sabia que também não poderia
me ocupar de todas as nuances da questão. Decidi então que iria tratar de leitura literária
sim, porém sem desprezar o que me fosse dito sobre a leitura em geral.
Ademais, sabia que, na centralidade da pesquisa, estavam os alunos. Por isso
dependeria do que eles me dissessem sobre seus itinerários. E, de fato, em relação ao
“Pedrinho”, disseram bem mais do que das aulas de Literatura. De tudo o que lembraram,
escolhi alguns assuntos para desdobrar neste trabalho, porque, integrando uma rede (Alves,
2002), se revelaram experiências (Larrosa, 2004) importantes na formação daqueles
sujeitos: as aulas de outras Atividades12 e os Clubes de Leitura que as professoras do
Núcleo Comum desenvolvem com os alunos.
Não seriam apenas estas as minhas dificuldades. Também sabia que me depararia
com algo de uma complexidade impossível de ser desprezada. Considero extremamente
delicado buscar compreender as sutilezas de caminhos percorridos. Como transitar, sem o
pecado da simplificação, por lugares talvez tão fluidos? Como materializar tais sutilezas
em possíveis respostas? As trajetórias dos adolescentes certamente não seriam retilíneas,
nem dependentes apenas das experiências escolares – as redes da vida inteira são
muito mais complexas, isto me era possível assegurar. E, ainda que assim fosse, como
descartar as experiências vividas durante os anos seguintes de sua escolaridade, no
segundo segmento do ensino fundamental? Entranhar-me-ia também no trabalho
desenvolvido na área de Língua Portuguesa no segundo segmento? Seria necessário
esmiuçar as práticas de diversos professores de quinta a oitava séries?
Diante desse mosaico, carregada de incertezas, as perguntas que me perpassavam
eram estas: há exeqüibilidade numa tal proposta? Não será excesso de ousadia ou de
insanidade de minha parte? No entanto, ao mesmo tempo em que me atemorizava, o
‘enigma esfíngico’ me açodava e excitava, porque “todo enigma é portador de uma latente
luminosidade” (Pais, op.cit.,p.61): como os alunos significam aquilo que viveram durante o
primeiro segmento na sua formação? Que influências o trabalho desenvolvido no
“Pedrinho” pode ter tido na relação dos alunos com a leitura? O que lhes vem
12 No colégio, os alunos têm aulas de outras Atividades Complementares, conforme será visto adiante.
38
acontecendo depois que transpuseram as grades que separam a escola de primeiro
segmento do “Pedrão”, o colégio que começa na quinta série?
Decidida a continuar trilhando o caminho sugerido pela minha ‘idéia fixa’, desenhei
um ‘mapa’ de intenções, isto é, um roteiro que me auxiliaria a definir os sujeitos que
viriam a participar da pesquisa. Ainda sem imaginar o que o futuro me reservava, defini
que visitaria todas as nove turmas de oitava série do segundo segmento e distribuiria aos
ex-alunos do “Pedrinho” uma folha contendo algumas perguntas, cujas respostas poderiam
indicar possíveis participantes.
A livre-participação, obviamente, era um a priori. Mas tinha em mente alguns
critérios para selecionar os participantes. Considerava prudente, em nome da diversidade,
escolher alunos de ambos os sexos que tivessem tido mais de um(a) professor(a) de
Literatura no “Pedrinho”. E - o mais importante -, como desejava aproximar-me das
diferentes nuances da realidade, era necessário trabalhar tanto com alunos que gostassem
de ler, como com aqueles não afeitos a essa atividade.
Depois disso, convidaria alguns daqueles alunos para uma entrevista semi-
estruturada que visaria conhecer, a partir de suas histórias pessoais de formação como
leitores quando alunos do “Pedrinho” e depois, já no segundo segmento, a importância e
relevância que atribuem ou não ao ato de ler (como e o que pensam), seus gostos e atitudes
leitoras.
A partir dos depoimentos obtidos, tendo como parâmetro a maior diversidade
possível de posições com relação à leitura, selecionaria algumas das entrevistas para fazer
uma reflexão sobre a leitura no cotidiano das aulas de Literatura e em outros espaços da
escola de primeiro segmento do ensino fundamental do colégio, bem como sobre o(s)
trabalho(s) com textos literários realizado(s) pelos professores do segundo segmento.
Os relatos me subsidiariam na tentativa de recompor as histórias de vida dos alunos
enquanto leitores. Nesse bojo, buscaria descobrir como vem se dando a participação da
escola em seus processos.
Se a imprevisibilidade é fator inerente à vida, não poderia estar apartada de um
processo de pesquisa, muito menos se a pesquisa é feita com pessoas, menos ainda se seu
locus é uma escola, penso. Assim foi que se deu o maior entrave: na semana em que
finalmente obtive do colégio a autorização para iniciar o trabalho, teve início a greve das
IFEs, que duraria alguns meses. O Pedro II parou em vinte e nove de agosto e só retornaria
às aulas no dia oito de dezembro de 2005.
39
Passei grande parte desse período vagando num caos sem fim. Escola vazia,
impossibilidades. A cada assembléia, a certeza de que a greve não terminaria tão cedo. O
que fazer? Desistir? Embrenhar-me por outros caminhos? Começar de novo?
Mas, como disse Morin (op.cit., p.277), “a desordem desempenha um papel
produtor no Universo”. Difícil é lembrar disso em meio ao caos e aos prazos... Foi assim
que, certo dia, visitando meus arquivos pessoais, fui surpreendida pelo encontro de alguns
textos produzidos por ex-alunos que, por razões ignoradas, acabaram ficando comigo.
Eram alunos que cursaram a quarta série no ano de 2000 e que, portanto, em 2005 estariam
já no primeiro ano do ensino médio. Aventei, assim, a possibilidade de, por vias múltiplas,
tentar encontrá-los. Meu primeiro critério (trabalhar com alunos da oitava série) estava,
portanto, descartado.
Fui ao colégio e recorri aos arquivos do “Pedrinho” para acessar a listagem das
turmas. O inusitado do cotidiano me aguardava ali. Descobri, dentre os alunos listados,
Pedro13, que é filho de uma das professoras da escola. Desde a intenção de pesquisa, tinha
claro que não pretendia entrevistar filhos de professores. Buscava o máximo de isenção
possível, por isso pensava ser mais indicado aproximar-me de alunos cujas famílias não
tivessem relações de trabalho com o colégio. E assim teria sido, não fosse a extrema
complicação ao desenvolvimento da pesquisa trazida pela greve.
Em meados de novembro, no entanto, sem nenhuma possibilidade de iniciar as
entrevistas, uma vez que não havia alunos na escola, conversei com a mãe de Pedro sobre a
possibilidade de entrevistá-lo. Ele prontamente se dispôs e marcamos nosso encontro.
Consegui encontrá-lo já em 25 de novembro. No dia da entrevista, ele me disse que
casualmente encontrara Clara, uma colega que fizera parte de sua turma no “Pedrinho”, lhe
falara de minhas intenções e também ela se dispusera a participar.
No mesmo dia em que entrevistei Pedro, chegou em sua casa Taís, que é sua prima
e coincidentemente cursava também o primeiro ano do ensino médio em São Cristóvão.
Como a menina não se objetou e a tia afirmou que a mãe dela não se incomodaria,
conversei com ela ainda naquela tarde. A partir daí, uma enorme rede de relações se formaria, da maneira mais inesperada
possível, trazendo-me ainda mais ansiedade. Taís me abriu um outro universo de
(im)possibilidades. Como estavam todos em ‘férias’, muitos de seus colegas e ex-alunos
13 Para evitar a exposição de alunos que ainda fazem parte do quadro discente do colégio, seus nomes verdadeiros foram aqui substituídos.
40
visitavam com freqüência o Orkut, site de relacionamento da Internet. Taís me perguntou
se eu queria que ela falasse com os colegas pelo Orkut e eu, claro, aceitei. Ela se
comunicou com eles da seguinte forma:
Taís: gabrielle, adiciona a professora de Literatura do pedrinho! ela pediu, o orkut dela é: Sonia Vinco beijãoo =*
13.59 27/11
Para vários colegas ela mandou esse recado. Então comecei a receber mensagens de
ex-alunos do “Pedrinho”, que às vezes nem alunos meus tinham sido. Mas também o Orkut
não foi um caminho de muito sucesso. Meu objetivo era conseguir entrevistar autores dos
textos que tinha em mãos, e havia alguns naquele grupo. Dizia-lhes que precisava de uma
ajuda deles. Em princípio se mostravam dispostos, porém, ao dizer-lhes que precisaria
entrevistá-los, de um modo ou de outro se esquivavam. Com alguns entabulei longas
‘negociações’ via Messenger (Msn), outro site de relacionamento, todas fracassadas. Como
quando Hugo14, um dos meninos que estavam no Orkut, me procurou para conversar pelo
Msn:
Hugo diz: oi
Sônia diz: Oi!
Hugo diz: vc era minha prof
Sônia diz: Claro que era! Esqueceu de mim...
Hugo diz: nao
Hugo diz: q issu
Sônia diz: 402!
Hugo diz: Eu sei
Sônia diz: Vem cá: eu contei tantas histórias pra você e seus colegas e você nem lembra, né?
Hugo diz: vc era prof de Literatura não era?
Sônia diz: Era. Tenho até uma história sua comigo!
Hugo diz:
14 O nome é fictício. Preferi manter a grafia original do texto.
41
eh???? Hugo diz:
q issu Hugo diz:
!!!!!!!!!!!! Sônia diz:
É!!!! Você era marinheiro e tinha uma esquadra! Hugo diz:
q issu sao essas coisas q comprometem um adolecente Hugo diz:
brincadeira Sônia diz:
ahauahua! Que nada, é maneiro ver o passado! Marinheiro português que enfrentou um monstro no mar!
Hugo diz: q issu?
Hugo diz: !!!!!!!!!!!!
Sônia diz: Você ainda escreve histórias?
Hugo diz: nao
Hugo diz: Nao sou bom em portugues
Hugo diz: gosto mais d desenho
Sônia diz: Ahhh... por quê?
Hugo diz: sei la
Hugo diz: nao tenho talento para escrever!!!!!!!!!!!
Sônia diz: No Pedrinho v era bom em Português?
Hugo diz: nao
Sônia diz: Ficava em recuperação?
Hugo diz: não mas chegava perto
Sônia diz: O q. é mais difícil em Português?
Hugo diz: nem sei eu não gosto
Sônia diz: É mais chato agora q. no pedrinho?
Hugo diz: eh
Sônia diz: E os livros?
Hugo diz: o q tem eles?
Sônia diz: aqueles que você TEM que ler! Como você se arruma?
42
Hugo diz: leio
Hugo diz: numa boa
Sônia diz: Mas se dá bem na prova?
Hugo diz: por inquanto
Sônia diz: Eba!
Sônia diz: Você só lê o que é obrigado?
Hugo diz: nem
Sônia diz: ????
Hugo diz: a sei lá Harry potter
Hugo diz: senhor dos aneis
Sônia diz: Todo mundo gosta, né?
Hugo diz: claro
Hugo diz: tenho q ir
Hugo diz: amanha acordo 05 da manha
Sônia diz: Um beijo!
Hugo diz: tchauuuu
Hugo diz: bj
Podia ser verdade que ele acordaria cedo, já que, no dia dessa conversa, as aulas já
tinham recomeçado. Mas, para mim, ficou claro que ele não estava muito interessado em
falar daquele assunto. Nem com a história que escreveu no “Pedrinho” consegui capturá-lo.
Depois disso, nunca mais conversamos. E ele poderia ser uma pessoa bastante interessante
para me trazer a diferença que eu tanto desejava.
Dos contatos que fiz, apenas uma ex-aluna, Ana Beatriz, de quem eu nem lembrava
bem, foi, desde o princípio, acolhedora:
oi!professora,pode falar oq eh q eu jah to dentro!se a senhora tiver msn melhor ainda o meu eh :[email protected] qq coisa me manda uma noticia q a gente marca pra se falar!beijoks, Ana Beatriz
05:51 30/11/2005
43
Entrevistei Clara, a menina com quem Pedro se encontrara casualmente, no dia do
retorno às aulas. A entrevista foi feita já às seis da tarde, antes do ensaio do coral de que
ela participava. Foi naquela tarde que, no pátio, Ana Beatriz se me apresentou em carne,
osso e sorriso largo. Foi ela que me reconheceu e se dispôs a chegar ao colégio antes da
hora da entrada para podermos conversar.
A entrevista com André aconteceu alguns dias antes. Eu já falara com ele a respeito
muito tempo atrás, de modo que bastou um telefonema para a concretização do encontro.
Aqueles alunos trouxeram-me elementos ricos e interessantes para reflexão, tanto
em relação ao “Pedrinho” quanto ao cotidiano que viveram e vivem no “Pedrão”. No
entanto, continuei insatisfeita, pois não tinha conseguido chegar à diversidade pretendida.
Foi assim que, já em fevereiro de 2006, dividindo com uma colega de trabalho
minhas angústias de pesquisa, ela me disse que eu poderia entrevistar o filho dela, pois ele
não se interessava muito por leitura e poderia ajudar. O problema era que ele não fazia
parte do grupo que saiu do “Pedrinho” em 2000, estava na sétima série. Diante do impasse,
resolvi arriscar. A conversa com Luís trouxe-me outros elementos importantes para me
ajudar a refletir sobre a complexidade que é formar leitores na escola.
Então, por razões alheias à minha intenção inicial, esta pesquisa envolve um grupo
de cinco alunos que concluiu a quarta série em 2000 e um aluno que terminou em 2002. No
‘cadinho alquímico’ do cotidiano é que se fez a seleção dos participantes, cabendo-me
apenas aceitá-la.
***
Por que, durante minha trajetória metodológica, optei por trazer, também, as
palavras de alguns professores? A resposta não é tão simples.
Antes mesmo de encontrar alunos, como já revelei, comecei a embrenhar-me por
caminhos que me levaram a um passado anterior à minha entrada no colégio. É que,
ocupada que estava em contextualizar o trabalho de Literatura que fazemos com os alunos,
fui levada a penetrar na história da criação do primeiro segmento no Colégio Pedro II, cuja
primeira Unidade foi São Cristóvão.
A criação do “Pedrinho” ocorreu de maneira singular, porque, antes de começar a
funcionar, foi necessário que os professores contratados organizassem a escola do ponto de
vista curricular. Foi nesse contexto que as aulas de Literatura se originaram.
Como o processo de criação dessa Atividade estava completamente emaranhado no
processo mais amplo de estruturação da escola, comecei a conversar com pessoas, que me
44
traziam algumas memórias daquele passado. Essas conversas informais me apontaram a
necessidade de gravar algumas entrevistas.
Os professores que entrevistei foram Patrícia Fernandes e Juliana Torres, que me
contaram um pouco do que sabem/lembram sobre o início do “Pedrinho”, em termos
gerais; com Mário Bruno e Júlia Limia conversei muito, e foram eles que me falaram de
como foi o início da Literatura no “Pedrinho”; Cristina Corção disse bastante da sua
experiência como professora de Literatura; Tereza Prallon, que começou a participar do
trabalho mais tarde que os outros e, hoje, é a professora responsável pela Atividade, falou
de tudo um pouco. Além desses, tirei algumas dúvidas pontuais com Inês Barbosa, que
também participou do processo de criação do “Pedrinho”, mas não gravei entrevista.
As conversas com os alunos me mostraram que seria importante saber um pouco
mais sobre o segundo segmento. Eles apontaram algumas questões estruturais que eu não
me sentia à vontade para afirmar sem que tivesse a possibilidade de saber até onde
procediam. Por isso, fui procurar a coordenadora de Língua Portuguesa de quinta a oitava
séries em São Cristóvão, professora Maria Lúcia Brunner, que prontamente aceitou gravar
uma entrevista, tendo colaborado bastante para as reflexões que faço em torno de alguns
aspectos do trabalho daquele segmento.
1.3.1 - Um pouco mais sobre as entrevistas
Fazer as entrevistas foi um processo de aprendizagem. Penso que, justamente por
nos conhecermos há muito tempo e termos uma relação de horizontalidade, enquanto
conversei apenas com os professores do “Pedrinho”, não consegui sentir as dificuldades
que enfrentei depois, embora elas também tenham existido.
Minha inexperiência como pesquisadora se fez notar, entretanto, no dia em que
fiquei frente a frente com os dois primeiros alunos entrevistados. Apesar de ter
conhecimento de algumas recomendações metodológicas em relação ao instrumento de
pesquisa, ao terminar a entrevista, tive o forte sentimento de que eu não tinha conseguido
uma performance razoável. Achava que minha inabilidade tinha colaborado para que não
tivesse aproveitado a oportunidade para saber dos sujeitos tudo o que eu desejava. Por
vezes eu os interrompi, em momentos em que poderia ter me calado; por vezes poderia ter
tido a sensibilidade de buscar aprofundar o diálogo a partir do que me diziam, e não tive;
por vezes minhas falas talvez tenham sugerido respostas.
45
A cada entrevista feita, as dificuldades diminuíam, mas nem por isso eu deixava de
me comportar em desacordo com as regras. Porque o fato de me sentir mais à vontade nas
situações, fazia com que, algumas vezes, eu desconsiderasse as possíveis tensões existentes
a partir das posições distintas que cada um de nós ocupava naquela situação e me sentisse
numa simples conversa. Com André e Ana Beatriz isso ficou muito explícito.
Encontrei em Silveira (2002) uma reflexão instigante sobre as “visões mais
tradicionais de entrevista como instrumento de pesquisa” em educação. Recuperando essas
idéias,
lembramo-nos de quanto abundavam as recomendações metodológicas que oscilavam entre a preocupação com um clima propício à “abertura da alma” do entrevistado e a preocupação com a obtenção de dados relevantes, confiáveis, ricos para a pesquisa e o entrevistador. Assim se alinhavam as pistas de ação: seja simpático, não sugira respostas, respeite o/a entrevistado, não o interrompa, não o/a intimide, estabeleça um clima de confiança, (...) seja flexível, minimize a presença do gravador, procure falar menos do que ele/ela mas... insista no que quer... todas elas sob a égide de uma maior eficiência do partejar da “palavra alheia” e do direcionamento dessa “palavra” para os objetivos da captação de “dados fidedignos”.(ibid., p.122-123)
Apesar de não ter procedido da maneira tradicional, as entrevistas que fiz
trouxeram ricos elementos para a pesquisa, como já disse. Entendendo a linguagem como
constituidora de verdades, e não como espelho translúcido de uma verdade anterior (ibid.,
p.120), procurei afastar-me da ilusão de encontrar a verdade. Entendendo, também, que a
memória recria e muitas vezes cria realidades, interessa-me ater-me às narrativas dos
sujeitos, porque, se eles não narram as coisas como aconteceram, narram como sentem que
elas aconteceram. Conforme afirma Certeau (2003), existe uma diferença fundamental que
separa a narrativa da Descrição clássica:
no relato não se trata mais de ajustar-se o mais possível a uma “realidade” (...) e dar credibilidade ao texto pelo “real” que exibe. Ao contrário, a história narrada cria um espaço de ficção. Ela se afasta do “real” – ou melhor, aparenta subtrair-se à conjuntura. (...) Deste modo, mais que precisamente descrever um “golpe”, ela o faz.
Nas palavras de Portelli (1997 apud Alves e Oliveira, 2004, p.20), “as fontes orais
contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar
fazendo e o que agora pensa que fez”. Convido, pois, o leitor a adentrar comigo no espaço
do colégio e das memórias trazidas pela pesquisa.
CAPÍTULO 2
UM LUGAR NO ESPAÇO-TEMPO: ENCONTROS E
DESENCONTROS NUMA INSTITUIÇÃO SECULAR
Figura 1- Vista aérea do Campo de São Cristóvão – RJ.
Do alto da imagem digital, da fotografia aérea que cataloga a Terra, vê-se o coração
do bairro de São Cristóvão: o Campo que leva seu nome. Ali, uma grande construção
47
branca e oval envolvida por extensas serpentes de asfalto. É o antigo Pavilhão de São
Cristóvão, hoje Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Outrora era um bairro
nobre. Muitos portugueses abastados se avizinhavam ao palácio imperial, hoje Museu
Nacional, que fica na Quinta da Boa Vista. Na verde quinta, de onde governaria o Brasil
por quase cinqüenta anos, nasceu e cresceu imperador Pedro II. O cinza predomina. Há
muito a nobreza se foi. Ficaram os imigrantes que vieram para trabalhar nas fábricas e seus
descendentes. Ficaram também favelas. Algumas poucas árvores compõem o desenho do
jardim modelado. Artes de uma arquitetura que através dos anos vem remodelando aquele
espaço. Um emaranhado de telhados, telhados. Mil setecentos e três pés de altura, quase
setecentos metros. Veja: um único ‘retângulo azul’, que em bairros da zona sul abundam,
se destaca na paisagem. A visão do conjunto pode ajudar na observação de aspectos
relacionados a uma geografia social.
Porém, o olhar do alto, por revelar o conjunto, encobre a complexidade que
impregna a vida vivida, esconde os textos que são escritos pelos habitantes da cidade no
vai-e-vem cotidiano (Certeau, 2003). Por isso não me convém deixar-me enredar por uma
erótica do saber, satisfazendo-me apenas com a “vista aérea” do espaço.
“Onde se origina o prazer de ‘ver o conjunto’?”, pergunta Certeau. Por que o prazer
historicamente perseguido no ocidente de ver do alto?
Fechemos o zoom, desçamos mais um pouco. Aproximemo-nos, aproximemo-nos.
Pergunto o inverso: onde se origina o prazer, ou a necessidade de – Ícaro às
avessas – mirar o alvo e mergulhar? Peço ajuda às gaivotas, que outrora voavam pelas
praias que já banharam São Cristóvão.
Conforme assinala Certeau (ibid., p.171), “a cidade-panorama é um simulacro
‘teórico’(ou seja, visual), em suma, um quadro que tem como condição de possibilidade
um esquecimento e um desconhecimento das práticas.” É, pois, por desejar “escapar das
totalizações imaginárias do olhar”(ibid., p.172) e tentar ler os textos que, nós, praticantes
ordinários, fios vivos de uma rede que se tece e entretece cotidianamente na dinâmica da
vida, escrevemos, é por ousar querer lê-los que se torna imprescindível mergulhar. É
também por entender, com Certeau, que os lugares se tornam espaços através da
interferência dos sujeitos que os praticam que não há opção, senão mergulhar.
Rejeitar a ficção do saber, abandonar o voyeurismo que nem tudo enxerga e
mergulhar com todos os sentidos (Alves, 2002) nas contradições latentes da vida cotidiana,
chegar embaixo, lá onde estão os praticantes, lá onde a vida é concretude. Lá onde, no
48
dizer popular, o “bicho pega”, a “porca torce o rabo”, a “giripoca pia” e o “couro come”.
Pegar carona nas metaphorai15 do povo. Ousar querer ver.
Desçamos um pouco mais.
Pairamos
direita, quadras
um velho teatro
muitos “sujeitos
resto é bastante
No entan
pouco. A pousar
Conheço
o primeiro segm
Pedro II.
15 Certeau (op.cit.,methaphorai”, daí ausada pelo autor. 16 No foyer do préfreqüentaram os ba
Figura 2 – O Colégio Pedro II visto do alto.
a pouco menos de trezentos metros. O ‘retângulo azul’ é a piscina. À
esportivas. A imagem branca, que a mim parece um O.V.N.I. pousado, é
, como velho era o ator que lhe emprestou o nome: Mário Lago, um dos
ilustres”16 que freqüentaram meu espaço-alvo durante sua existência. O
cinza.
to, umas árvores. Olho-as perplexa. Convido você a descer mais um
, em princípio, sobre o grande retângulo cinza que está na base da imagem.
-o há muito. O prédio tem dois andares. No térreo e no primeiro, funciona
ento do ensino fundamental deste espaço, o “sesquicentenário” Colégio
p.199) lembra que, “na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam s pessoas se locomovem de um lugar a outro tomando metáforas, o que já é uma metáfora
dio da Direção-geral, figuram, sobre placas de mármore, os nomes dos “notáveis” que ncos das salas de aula do colégio durante sua existência. É a galeria de ex-alunos ilustres.
49
À frente do telhado cinza, extrema direita, vêem-se algumas árvores e um pátio
não-cimentado. Sei que são mangueiras. O conjunto de três da esquerda fica exatamente
em frente à sala de Literatura onde há muitos anos dou aulas.
Façamos um intervalo. Vamos ao passado. Daqui a pouco desceremos e estaremos
ao rés-do-chão.
2-1- O Olhar De Quem Chega: Um Prédio Quadrado Branco Com Uns Frisos Azuis
Quase um ano depois de ter sido aprovada no concurso, chegou o telegrama que
tanto aguardava: compareça ao colégio Pedro II etc. Tomei um ônibus e reencontrei o
“prédio quadrado branco com uns frisos azuis”, cuja dureza arquitetônica me
impressionara na ocasião em que fiz as provas. Não lembro muito bem de como foi a
chegada. Creio não termos sido recebidas pelo Diretor-Geral do colégio. Mas sei que era
uma tarde de verão. O ano, 1987.
Havia certa confusão, pois a Unidade Tijuca estava sendo aberta naquele ano. Eu
morava muito perto dali, poderia chegar a pé. Muito diferente das longas viagens até
Belford Roxo. Mas na Tijuca não havia vagas pra os novos. Diziam que Dalva17, até então
diretora da Unidade São Cristóvão, havia escolhido a dedo as professoras que se
deslocariam com ela para o novo “Pedrinho”, pois assim começaram a ser chamadas as
Unidades de primeiro segmento do Colégio Pedro II. Dizia-se ser por carinho. Mais tarde,
descobri que o preconceito também habitava a carga semântica da alcunha. O lugar das
professorinhas? Várias vezes, nesse tempo, observei que ocasionalmente alguns
professores do “Pedrão” se referiam a nós, professoras dos “Pedrinhos”, como “Pedritas”18.
Carinho?
Contribuindo para o burburinho, as conversas entre nós, as professoras recém-
chegadas, que nos interpelávamos, buscando trocar informações, buscando saber para onde
ir. Havia algumas funções para escolhermos. Dentre as quais, uma vaga para uma certa
Atividade chamada Literatura. O que será isso?, pensei. E o fiz com a mesma curiosidade
que costuma brotar de alguns interlocutores quando digo que dou aulas de Literatura para
17 Dalva da Mota, primeira diretora da Unidade São Cristóvão I do Colégio Pedro II (1984-1986). 18 Em alusão a Pedrita, o personagem do desenho animado de Os Flinstones, talvez.
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crianças: E vocês fazem o quê?, costumam perguntar. Não sei se me foi respondido. De
qualquer modo, eu desejava trabalhar no primeiro turno, e a vaga se destinava ao turno da
tarde. Uma simples diferença de turnos adiaria meu encontro com a Literatura no
“Pedrinho” por cerca de dez anos. Falei da Atividade para a moça que tinha conhecido ali,
no processo de escolha. Chama-se Cristina Corção e teria , a partir dali, uma longa história
de paixão pela Atividade. Ela se recorda daquele dia:
Mas, enfim, e aí, naquela angústia de escolha, (...) você se aproximou e disse assim pra mim, isso é inesquecível: “Olha, Cristina, eu tenho uma função aqui que apareceu”, e você nem me conhecia, mas era um momento em que éramos todos novos no colégio, a gente estava uns socorrendo os outros, (...) e você me mostrou essa outra função que existia, que era a Literatura.
Foi assim que Cristina “encontrou a Literatura” de imediato. Fiquei, então, com
uma turma de primeira série, que tinha apenas dezenove alunos. O turno começava às sete
horas e terminava ao meio-dia e vinte. No entanto, quase não havia dia em que não
permanecesse na escola até bem mais tarde, porque, dentre outras coisas, precisava
interpelar as coordenadoras. Perguntar sobre as imensas dúvidas, buscar saídas para as
dificuldades. Precisava de respostas: tudo tão novo! Nem imaginava, porém, que muitas
coisas para elas era também tão novas; quase todas eram muito jovens, como eu. A grande
diferença era que estavam ali desde o início, agora sei.
Na primeira série do primeiro turno, éramos um grupo assim: quatro turmas, uma
professora ‘antiga’, três novas e uma supervisora, Marlene. Esta também havia também
chegado conosco, mas era bastante experiente na profissão: já fora, inclusive, diretora de
uma escola estadual. Não obstante, ela dizia que quase tudo era novo também para ela.
O colégio trabalhava na perspectiva do construtivismo piagetiano. Tinha uma
metodologia de ensino diferente daquelas que a maioria de nós havia conhecido em nossa
curta prática profissional. Como não adotávamos livros, todo o material a ser usado nas
aulas – inclusive os textos - deveria ser produzido por nós, professoras da série.
Estávamos, ainda, na época do mimeógrafo e havia muito poucos. Para ter o material
reproduzido a tempo, era necessário entregá-lo aos funcionários técnicos designados para
tal com certa antecedência. Antecedência muitas vezes impossível naquele cotidiano de
produção incessante.
Que confusão de matrizes trocadas entre nós! Algumas delas me chegavam já tão
gastas, que precisavam ser refeitas. E rodadas por mim mesma, à tarde. Então havia sempre
uma quantidade imensa de folhas por corrigir. Mas, meu problema capital era este: como
51
avaliar a produção de texto de um aluno de primeira série? Apesar de termos, no início do
ano, feito alguns cursos introdutórios à metodologia usada e de, quinzenalmente, nos
encontrarmos com a assessora de Língua Portuguesa19, eu não sabia exatamente o que era
esperável. Não sabia mesmo. Deparava-me ali com o tormento que a nós, professoras,
muitas vezes fustiga: a obrigação de exercer o poder de chancelar aprendizagens,
classificar saberes, pontuá-los. Também por isso permanecia no colégio durante uma parte
da tarde. Para procurar respostas.
O primeiro ano foi bastante extenuante e sofrido. Mas não solitário. Dentro da
grade, havia espaço para reuniões de planejamento com o grupo da série e com as
coordenadoras das áreas. Além disso, encontrávamos com o SOE e ainda tínhamos dois
tempos para planejamento individual. Um aparato muito diferente do que tinha vivido
anteriormente. Para mim, um luxo. Por que aqui é tão diferente?, pensava. Talvez o leitor
possa fazer a mesma pergunta. Para descobrir algumas respostas, consultei pessoas que
chegaram antes de mim e também alguns livros.
2.2- Vozes, Memórias, Relatos
A vida não é a que a gente viveu, e sim a que gente recorda, e como recorda para contá-la. ( Gabriel García Márquez)
Entender o espaço como o lugar praticado significa admitir que os sujeitos que o
vivem (e não apenas nele vivem) são as pessoas cujas vozes são imprescindíveis, se se
busca compreendê-lo. Essas vozes, que se atualizam em forma de narrativas, organizam a
experiência tramada nas teias do tempo. Trazer as narrativas de um espaço-tempo é uma
opção político-metodológica, portanto. Os relatos são formas de organizar o espaço
(Certeau,2003): metaphorai que nos transportam coletivamente, que produzem geografias
de ações , organizam as caminhadas e os lugares.
Não são ‘palavras lançadas ao vento’, se não nos faltam sentidos aguçados para que
possamos capturá-las em seu balé existencial e entendê-las como sintaxes espaciais (ibid.,
p.199). Mesmo a ciência histórica tem seu inegável parentesco com a ficção (Chartier,
19 Professora Maria Heloísa Vilas Boas Simões, que passou a assessorar o trabalho de Língua Portuguesa a partir de meados de 1985, conforme será pormenorizado adiante.
52
2001). A raiz grega [histor-] traz em si a presença do sujeito que viu. E conta, e narra .
“História é testemunho. (...) E Heródoto narra o que viu ou que ouviu dizer. Narra para
informar e ensinar , mas também pelo simples prazer de contar” (Smolka, 2000).
É possível dizer que existem tantos espaços quanto experiências espaciais distintas
houver (Choay, 1973, apud Certeau, 2003). Aqui, as memórias de alguns sujeitos
entrelaçadas. Ali, fragmentos de um espaço-tempo que compõem um texto da memória
coletiva do colégio. Aqui e ali, ressonâncias múltiplas em diálogo.
Muitas vezes, na minha infância, ouvi as memórias trazidas por meus pais,
memórias que não se resumiam à vida deles isoladamente, mas que diziam respeito à
cultura de toda uma comunidade num espaço e num tempo tão distantes de mim. Sou
fascinada por narrativas, fascinada pelas artes da memória, que podem trazer certa
tangibilidade àquilo que não vivi. E que por isso me fazem entender melhor a(s) história(s).
Aqui, entrelaçadas, as memórias de alguns sujeitos e as minhas próprias. Memórias
marcadas pelo tempo forjado na linguagem (Smolka, 2002). O tempo é minha matéria.20
Tempo que se configura para além da sucessão rítmica dos ponteiros do relógio, reino de
Cronos. Tempo passado que não é morto, porque sobrevive no espaço, projetando-se no
presente. Tempo da experiência dos sujeitos praticantes (Certeau, 2003), em ‘retalhos’ de
cotidianos que se juntam como “fuxicos”.
2.3- O Velho Colégio E Seu Filho Mais Novo
Os professores do “Pedrão” viam o “Pedrinho” como uma coisa horrível... Chamavam de “a banda podre”(...), porque eles tinham horror...(...) A gente via muitos professores aqui vindo dar aula de terno, de guarda-pó compridão, quando a gente chegou ... (...) Então ninguém queria saber da gente! 21
Comecemos pela história oficial. Ou por retalhos dela. O Colégio Pedro II é uma
instituição federal de ensino organizada num complexo composto por onze Unidades
Escolares (UEs I, II e III), das quais quatro ministram ensino da Classe Inicial até a 4ª série
do ensino fundamental (Unidades I), com cerca de 2700 alunos. O colégio tem cento e
20 Carlos Drummond de Andrade, “Mãos dadas”. 21 Patrícia Fernandes, professora do Núcleo Comum, ex-chefe do Departamento de 1° segmento, ex-diretora (nomeada) da USC I.
53
sessenta e oito anos de existência, mas as UEs I tiveram início em 198422, com a Unidade
São Cristóvão23, onde trabalho há dezenove anos, dez dos quais como professora de
Literatura da 1ª à 4ª série.
O colégio tem suas raízes fincadas no século XVIII24. Mas, dizem os livros, em
1837, Bernardo de Vasconcelos, ministro do Império, apresentou ao regente uma proposta
para transformá-lo no primeiro colégio de ensino secundário oficial do Brasil. E foi em
dois de dezembro daquele ano, dia do aniversário do imperador, ainda um menino, que se
publicou o decreto transformando o antigo Seminário de São Joaquim no Colégio de Pedro
II. Assim mesmo, com a preposição indicando a quem ele pertencia. Afinal era “uma
instituição aristocrática destinada a oferecer ‘a cultura básica necessária às elites
dirigentes’, isto é, a ‘boa sociedade’ formada por aqueles que eram brancos, livres e
proprietários de escravos e terras”25. Sua importância política era tão grande que estiveram
presentes à cerimônia de inauguração o imperador, as princesas, suas irmãs, todos os
ministros de Estado, o regente Araújo Lima e outros dignitários do Império.26
Diz-se, então, que o início foi assim, envolto em ventos que sopravam
grandiosidade. Aliás, uma parte do Artigo 3 do Decreto que o criou não deixa dúvidas
sobre isso:
Art. 3 - Neste colégio serão ensinadas as línguas latina, grega, francesa, inglesa, retórica e os princípios elementares de geografia, história, filosofia, zoologia, mineralogia, álgebra, geometria e astronomia. ...
Um colégio de currículo clássico, um colégio para difundir a civilização
pretendida pelo governo imperial. Mais tarde, “D. Pedro, que costumava referir-se a ele
como ‘seu colégio’”, escolhia os professores, assistia às provas e conferia as médias27.
Através de sua história, o Pedro II continuou mantendo a aura de grandiosidade. Atraía a
elite da corte, reunia professores ilustres e alunos igualmente. Notabilizou-se então pela
excelência (Rocha,2001). Até hoje ouço por lá que “este é um colégio de excelência.”
Excelência que lhe rendeu, já no século XX, uma outra alcunha: “Colégio padrão do
22 Nos anos seguintes criaram-se as Unidades Humaitá (1985), Engenho Novo (1986) e Tijuca (1987). 23 A Unidade tem cerca de mil e cem alunos, distribuídos em quarenta turmas. 24 O Colégio de Pedro II, cuja primeira sede se situa na atual Avenida Marechal Floriano, no centro do Rio de Janeiro, originou-se do Seminário dos Órfãos de São Pedro, criado em 1739, por Frei de Guadalupe, "para criação de meninos nas costas da igreja de São Pedro". Recebeu diversos nomes: Seminário de São Joaquim, e Imperial de São Joaquim até receber a denominação de Colégio de Pedro II. In http://www.multirio.rj.gov.br/historia. 25 Idem. 26 Conferir Colégio Pedro II: Projeto Político Pedagógico. Brasília: Inep/MEC, 2002, p.29. 27 In http://www.multirio.rj.gov.br/historia.
54
Brasil”. Isto porque seu currículo era modelar para qualquer escola particular que desejasse
ter seus exames validados28. Ao escrever sobre isso, lembro-me: assim que ingressamos,
recebemos um exemplar do Plano Geral de Ensino (PGE) do primeiro segmento. Na
introdução, havia algumas páginas sobre a história do colégio. Um dia parei para lê-las.
Pensei: onde vim parar, logo eu, que nem dar aulas sei direito!...
Anos depois, o PGE virou PPP (Projeto Político Pedagógico). Continuando a
mística que envolve o nome do colégio, o texto introdutório ao PPP também está pleno de
exemplos exaltantes de sua importância e distinção, desde os nomes que integraram seu
renomado corpo docente até os presidentes da República formados em suas salas de aula.
História oficial, decantada em tons ufanistas, onde, no avesso, também se imiscuem
histórias de tantos sujeitos ordinários (Certeau, 2003), como a minha.
Tradicional, conservador e elitista - assim no passado, assim no presente? A partir
da década de 1980 algumas coisas começaram a mudar. Com a implantação do primeiro
segmento, o Pedro II experimentaria algumas modificações que trariam ao seu perfil
tradicional “incômodos” questionamentos. Diferentemente do que ocorria até então,
quando, para ter o direito de sentar-se nos bancos daquela instituição, o candidato a aluno
teria de submeter-se a um rigoroso exame de conhecimentos cuja relação candidato/vaga
era (e ainda é) altíssima, o ingresso na Classe de Alfabetização (hoje Série Inicial) se daria
através de sorteio público. A “homogeneidade” do corpo discente, um dos pilares sobre os
quais parece ter se construído sua imagem de colégio de elite, a partir de então, estaria
definitivamente29 abalada. Suas salas de aula, que já não eram mais freqüentadas pela
“elite da corte”, deveriam abrir-se também para membros de camadas menos abonadas da
população, com todas as implicações que isso traria. Para realçar esse processo, a linha
metodológica que seria construída da Série Inicial até a quarta divergiria bastante das
concepções adotadas no segundo segmento e no antigo segundo grau. Os “Pedrinhos”
começaram a mandar para o “Pedrão” alunos diferentes do que esperavam ‘do lado de lá’.
Isso aconteceu justamente no ano em que o conheci, 198730.
Com bastante freqüência, no passado, se falava, na Unidade, sobre as reclamações
feitas pelos professores do segundo segmento a respeito dos alunos do “Pedrinho”. As
‘vozes dos corredores’revelavam que nossos alunos não sabiam a matemática esperada,
28 Colégio Pedro II: Projeto Político Pedagógico. Brasília: Inep/MEC, 2002, p.29. 29 Embora no início da década o colégio tivesse ‘aberto suas portas’ a alunos provenientes da rede municipal sem que passassem por concurso, o fez apenas para aqueles que, em seus boletins, tivessem conceito A. 30 Em 1987, as primeiras turmas do “Pedrinho” de São Cristóvão ingressaram na quinta série do ensino fundamental.
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não sabiam a gramática desejada, e, além disso, não tinham os hábitos convenientes. Eles
chegavam à quinta série bem diferentes daqueles que ingressavam por concurso. Mesmo
hoje, não obstante as transformações havidas de um lado e de outro, parece que certas
imagens persistem. Quando conversei com a coordenadora de Língua Portuguesa31 do
segundo segmento da Unidade São Cristóvão, perguntei a respeito do que sabe sobre as
diferenças entre os alunos. Ela, coincidentemente, lembrou que “o aluno que vem de fora
(...) já vem com um certo ritmo e os do “Pedrinho”, que não vêm com esse ritmo, são mais
lentos na cópia”. 32
(...) é a questão, por exemplo, de o aluno chegar na quinta série e não estar acostumado a fazer cópia do quadro, então o ritmo dele é muito lento. Daí se constatou que ele recebeu muitas folhinhas na quarta série, etcetera e tal, então eles não tinham muito esse hábito de copiar, já recebiam a folha pronta.
Contudo, não só habilidades mecânicas parecem fazer a diferença. A coordenadora,
mesmo com certa reserva, fala também: “Não sei se isso virou um mito, mas uma outra
coisa que se diz muito é que os alunos que vêm do Pedrinho são alunos mais críticos”. São
alunos capazes de discutir um texto lido e “mesmo que eles (...) tenham uma certa
dificuldade de colocar isso no papel, o exercício da crítica eles trazem, e isso é um
diferencial em relação aos alunos que vêm de fora”.
Esta parece ser uma diferença importante, capaz de gerar, inclusive, modificações
no teor da clássica prova para admissão no colégio, a qual, como afirma a coordenadora,
“se alterou em relação à cobrança da gramática pela gramática, [porque] a gente está
tentando trazer pra dentro da escola alunos com leitura e a gramática como suporte, não a
gramática pela gramática, mas a gramática como suporte da leitura". O “Pedrão” deseja
agora “alunos que também tenham, mesmo que não sejam críticos, (...) uma leitura
produtiva, no sentido de ler e de saber o que estão lendo, até chegarem à crítica mesmo”.
Parece que estes são ecos do trabalho do “Pedrinho” ressoando na ‘personalidade’ do
‘irmão mais velho’. Fios da mesma rede tensionando, desconfigurando e reconfigurando,
provisoriamente, o conhecimento tecido no cotidiano da escola?
31 Maria Lucia Cortez Brunner Ramos, professora da casa desde 1993. 32 A professora se reportou, inclusive, a reuniões que já houve entre as coordenações do “Pedrinho” e do “Pedrão” para discutir a questão
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Voltando ao passado, quando lá ingressei, era comum recebermos, sem qualquer
anunciação prévia, a visita do então Diretor-Geral, professor Tito Urbano da Silveira, que
percorria os corredores junto com a diretora da Unidade, parando à porta das salas de aula
para cumprimentar-nos. Diziam que o “Pedrinho” era a “menina dos olhos” do diretor, que
tinha “investido muito” na criação do primeiro segmento. Depois do seu falecimento, um
busto do professor Tito Urbano foi colocado no pátio do “Pedrinho”.
Para concluir, assim se diz que foi o ‘nascimento’ do “Pedrinho”: desejado pelo
Diretor-Geral, rejeitado ao menos por uma parcela significativa dos professores do
“Pedrão”, os quais, diz-se, manifestavam certo desconforto em receber alunos admitidos
através de sorteio, e também não muito querido pela Secretaria de Ensino33, que preferia
manter-se distante do primeiro segmento. Existia, pois, uma divisão interna que até os dias
de hoje paira por ali como um espectro. Embora não seja este o objetivo deste trabalho,
pergunto-me: além do preconceito óbvio com relação ao ingresso por sorteio, que tipo de
ameaça ao já estabelecido representava o incipiente trabalho do primeiro segmento? Teria
também relação com uma renovação do corpo docente e com as concepções pedagógicas
trazidas pelos novos professores?
O primeiro concurso público para a contratação dos professores que comporiam o
corpo docente do primeiro segmento foi realizado em janeiro de 1984. Antes disso, para
pôr em funcionamento a nova Unidade do colégio, fez-se necessário apresentar ao MEC
um projeto com a finalidade de obter a necessária autorização para funcionamento da
escola. Segundo a professora Patrícia Fernandes, era um projeto elaborado segundo as
bases curriculares do Município do Rio de Janeiro. Dalva da Mota, então ocupante de um
cargo administrativo na direção-geral, seria alçada à condição de diretora da Unidade São
Cristóvão II (hoje São Cristóvão I). No entanto, o projeto, como disseram algumas
professoras com quem conversei, era pro forma, jamais foi visto pela grande maioria e não
determinou absolutamente o trabalho pedagógico que o primeiro segmento deveria
desenvolver, porque efetivamente não havia projeto.
33 Secretaria que coordena pedagogicamente todas as onze Unidades do colégio, na época chefiada pelo professor Wilson Choeri, atual da instituição.
57
2.4- O Novo Corpo Docente
Antes da nossa chegada – minha e de algumas companheiras -, houve outras
‘jovens professoras’. Foi no sábado de 28 de fevereiro de 1984, me foi dito, que as
primeiras cinqüenta professoras aprovadas no concurso foram chamadas para conhecer o
local onde desenvolveriam seu trabalho, que começaria atendendo à primeira e à segunda
séries do ensino fundamental. Foram recebidas, com pompa, pelo Diretor-Geral do colégio,
que as levou para conhecer as instalações do “Pedrinho”, um improviso. Fica nos fundos
do grande prédio Unidade São Cristóvão, que pode ser visto por quem passe pela rua.
Antes de ‘nascer’o “Pedrinho”, o espaço era ocupado por depósitos e almoxarifado, porque
um certo projeto do MEC de instalar ali uma escola polivalente não fora à frente (Macedo,
2005). Por isso o prédio não combina muito com a imagem que se costuma fazer em
relação a escolas para crianças. Pudera! Foi feito, originalmente, para abrigar laboratórios
de química e dormitórios para alunos da tal escola polivalente... Mas, voltemos ao
“Pedrinho”: no início, pouco havia, no entanto, além do espaço físico, isto é, o árido
prédio. Isso gerou certa apreensão em algumas pessoas, pois não se sabiam as coisas mais
triviais, como, por exemplo, o horário, o número de alunos que haveria em cada turma, que
aulas as crianças teriam34.
Para a escola começar a funcionar efetivamente, era preciso pensá-la, idealizá-la.
Para isso, após a admissão, foram pedidos os currículos das novas professoras, pois haveria
uma seleção das pessoas que viriam a constituir as equipes de coordenação pedagógica e
administrativa, estrutura já prevista. Inês Barbosa, outra professora que fez parte daquela
equipe, disse-me que a seleção baseou-se em critérios como possuir experiências anteriores
e graduação em Pedagogia. A professora Juliana, aos vinte e quatro anos e com alguma
prática anterior como professora de pré-escola na rede particular, foi uma das escolhidas.
Sua narrativa vem impregnada de paixão:
E nós começamos a montar a escola MESMO35! Foi aí que nós montamos o primeiro PGE36 – mas não foi de imediato, não; foi um pouquinho depois. (...) A gente foi se organizando e fazendo! Era muito bom! A gente trabalhava fora do horário, vinha pra cá... Era MONTAR A ESCOLA MESMO, com TUDO que você imaginar, desde a grade curricular até a seleção de conteúdos, passando por eleger que atividades extra a gente
34 Segundo relato de Juliana Torres, uma das professoras então admitidas. 35 A escrita de alguns termos em caixa alta, aqui e em outras falas, pretende destacar a ênfase que os sujeitos imprimiram a certas palavras, em seus discursos. 36 Plano Geral de Ensino. O primeiro foi escrito em 1984, pelas professoras da equipe pedagógica.
58
poria... Aí nós vimos que tinha que ter “aula de biblioteca”... Eu me lembro, eu que falei “Não, tem que ter aula de Artes.”(...) Nós começamos a pensar que método íamos usar pra alfabetizar... E a Dalva nos deixava totalmente livres!
De conversa em conversa, pude perceber que de fato a Direção-Geral recebia muito
bem as propostas vindas das coordenações dos “Pedrinhos”. Mesmo na introdução dos
primeiros PGEs, como foi feito no de 1985, o professor Tito se desdobrava em “aplausos
à plêiade de jovens professoras recrutadas” para o combate de construir com ele o primeiro
segmento, lamentando o “desapontamento dos céticos que ontem desdenhavam, mas agora
crêem no trabalho que elas vêm realizando”. Conforme Juliana: “A Direção-Geral achava a
gente o máximo, tínhamos o maior prestígio! Porque a escola “andou”, tanto que está aí,
vinte anos depois, com aula de Literatura, com aula de Artes, com tudo.”
Penso agora em Morin (1996), que nos lembra que as partes trazem as marcas do
todo, porque, no caso das organizações sociais, “suas qualidades retroagem sobre os
indivíduos” (ibid.,p.278). Para não perder a dimensão maior em que se inseriam as ações e
os desejos daquelas professoras, vale lembrar que o ano da criação do “Pedrinho” foi
efervescente no Brasil. Vivíamos um momento de afrouxamento do regime militar,
marcado, dentre outras coisas, pelo retorno de exilados políticos, dentre os quais, Paulo
Freire. Foi também o ano dos enormes comícios promovidos pela campanha Diretas Já
país afora. A possibilidade de respirar fora da ditadura oxigenava as esperanças de muita
gente, as minhas inclusive. Na universidade, os ecos desse movimento eram fortes,
ligavam-nos ao pulsar daqueles tempos. Era quase impossível para quem freqüentava a
universidade estar alienado disso tudo. O todo retroagia sobre nós (Morin, ibid.). Ao falar
do início do trabalho no “Pedrinho”, a professora Juliana sublinha esse momento histórico.
Diz que quase todas as professoras, além de muito jovens, estavam se graduando, ou eram
recém-formadas. Na universidade, diz Juliana, tiveram contato com leituras que lhes
instigavam o desejo de fazer uma escola diferente. Isso potencializava as ações do grupo.
Achavam que ali iriam conseguir fazer a escola sonhada.
Fico pensando: de 1837 a 1984, quanta coisa mudou... Mais de cem anos depois do
decreto de Araújo Lima, que dava os primeiros rumos curriculares ao colégio, agora estava
nas mãos daquele grupo de professoras a responsabilidade por definir o início da
construção do trabalho do primeiro segmento no Colégio Pedro II. Tão distantes do
imperador. E, talvez por desconhecimento do assunto, talvez por não vislumbrar as
conseqüências de sua atitude, também ouvi que a Direção-Geral, naquele momento, não
59
interferiu em nenhum aspecto que dissesse respeito à grade curricular ou à metodologia
que seria empregada no “Pedrinho”. Ao invés, confiou ao grupo a tarefa de delinear as
primeiras feições do trabalho. Na página de apresentação do primeiro Plano Geral de
Ensino (1984), escrito pelas professoras que compunham a Coordenação Didático-
Pedagógica, o professor Tito assim coloca:
(...) o Colégio Pedro II reuniu os esforços administrativos à inteligência e capacidade dessas jovens professoras, autoras deste Plano, para demonstrar que está preparado para contribuir na vitória dos ideais que norteiam a política educacional do Governo João Figueiredo.
Com certeza, os ideais que norteavam a política educacional do Governo João
Figueiredo não se assemelhavam aos ideais que norteavam os desejos e as ações das
professoras, que, como já disse, parecem ter visto ali a possibilidade concreta de criar uma
escola progressista. O fato de terem sido admitidas sem que o colégio tivesse um projeto
prévio para o primeiro segmento, o que em princípio gerou ansiedade e insegurança, lhes
proporcionou a oportunidade de criá-lo, pois, deixadas “totalmente livres”, conforme disse
Juliana, buscaram desenhar coletivamente uma escola com características bastante
diferentes dos traços conservadores pelos quais o Colégio Pedro II sempre fora conhecido.
Será por isso que o “Pedrinho” foi crescendo com feições de certo modo tão diferentes de
seu ‘irmão mais velho’?
As narrativas daquele cotidiano, no entanto, revelam que tensões entre as
concepções democrática e conservadora de educação cedo emergiram, sob a forma de
controle institucional das práticas pedagógicas através da avaliação. Apesar da liberdade
oferecida no campo metodológico, já no primeiro ano de funcionamento começou-se a
falar na “prova única”, ou seja, avaliação unificada para todas as turmas de uma série. Isso
não combinava nada com a escola progressista que muitas imaginavam. Mesmo assim, em
1985, foram formalmente impostas ao primeiro segmento as regras de avaliação
consoantes com o modelo já existente no colégio, que, além da “avaliação contínua (...)
realizada pelo professor”37 incluía quatro provas únicas (em maio, julho, setembro e
novembro).38 Tensões e conflitos próprios do cotidiano escolar.
Voltemos, no entanto, ao processo de construção do currículo do “Pedrinho”.
37 In DIRETRIZ DE ENSINO N° 02 do 1° Segmento do 1° Grau, constante do P.G.E. de 1985. 38 A resistência à aplicação da prova única sempre ocorreu, ao menos na USC I. Foi posteriormente revogada, mas hoje a Direção-Geral volta a impô-la no colégio.
60
2.5- O Que Se Fez Do Lugar Vazio? Quanto à história? Tenho muitas lembranças já confusas. Acredito que, pela paixão com que conduzíamos os rumos do “Pedrinho”, estávamos todos errados e certos...39
Durante o período em que escrevia este texto, recebi de Mário, ‘personagem’ desta
narrativa que adiante será conhecido, um e-mail contendo o trecho que uso como epígrafe.
Sou inclinada a concordar com ele. É essa a imagem que hoje me vem, depois de ter
conversado formal ou informalmente com pessoas que participaram daqueles anos. Eram
muito apaixonadas pelo que estavam fazendo. Juliana me disse assim: “Imagina, naquele
ano, eu fui passar o carnaval em Arraial do Cabo e levei dezenas de livros para estudar,
porque a gente tinha que pensar a escola!” Apaixonados como, num momento outro, eu
mesma fiquei. Lembro-me de que, nos primeiros anos, chamavam-me a atenção as ‘brigas’
que emergiam nas Reuniões Pedagógicas Gerais (RPGs)40. Discutia-se muito em São
Cristóvão. Brigas para defender idéias, para defender paixões, para fazer prevalecer
concepções.
Mas, no princípio, era necessário, sobretudo, fazer a escola funcionar. Em apenas
um mês. Em 1984, foram abertas vinte e oito turmas e as aulas se iniciaram em 29 de
março. No exíguo intervalo entre a contratação das professoras e a chegada dos alunos, foi
urgente definir, dentre outras coisas, que método de alfabetização seria empregado. Todas
as professoras se reuniram e, com base nas experiências anteriores da maioria do grupo, o
método natural e o da “Abelhinha” foram escolhidos. Teresa Prallon41, que em 1984 regeu
uma turma, lembra:
Nós tínhamos turmas de 1ª [série] alfabetizadas e não alfabetizadas. Eu comecei trabalhando com as turmas não alfabetizadas, com o método da Abelhinha, que foi uma decisão da escola que a gente aplicaria o método da Abelhinha. Então as pessoas que tinham experiência com esse método ficaram com essas três turmas.
E a escola continuou a ser estruturada. No início de 1985, uma segunda Unidade
Escolar de primeiro segmento foi aberta, no bairro do Humaitá. Fazia-se necessário
articular o trabalho pedagógico nas duas Unidades. Inês lembra que a Direção-Geral fez
uma modificação na estrutura da Secretaria de Ensino e deslocou, de São Cristóvão, uma
39 Mário Bruno, primeiro coordenador de Literatura dos “Pedrinhos”. 40 Reuniões regulares de toda a unidade que aconteciam bimestralmente. 41 Professora responsável pela atividade de Literatura desde o ano de 2001.
61
equipe de cinco professoras, coordenadas por ela, para desempenhar essa função: estava
criada a Secretaria de Ensino de Primeiro Segmento42. Pouco depois, nesse mesmo ano, o
primeiro segmento passaria a constituir um Departamento dentro colégio, aos moldes da
estrutura previamente existente, tendo sido nomeada por chefe a professora Cláudia
Benvenuto, também procedente da Unidade São Cristóvão43.
Cláudia levou ao grupo a proposta de contratar uma especialista para definir melhor
a metodologia de alfabetização e a equipe encampou a idéia. A proposta estendeu-se para
as demais áreas, “conforme o projeto do Laboratório de Currículos do Estado (1977)”, me
disse Inês. Macedo (2005) pontua que aquela “concepção teórico-metodológica estava
sendo bastante divulgada na época e implantada em algumas escolas particulares e redes
públicas, principalmente no primeiro segmento do ensino fundamental.” Nas palavras de
Inês, “houve então uma concordância geral para a introdução do trabalho e para a
contratação da equipe de assessores.” Também a Direção-Geral não se opôs à idéia,
cabendo-lhe remunerar as assessoras.
Assim, a partir de meados de 1985, as assessorias tiveram início. Todos os
professores do Núcleo Comum, quinzenalmente, se reuniam com as assessoras44 e tinham
de desenvolver seu trabalho com base nas orientações que eram feitas. A partir de então, os
“Pedrinhos” se diriam piagetianos e, em Língua Portuguesa, o trabalho alicerçar-se-ia nas
“propriedades da comunicação verbal estabelecidas pela teoria lingüística
contemporânea”.45
Quando chegamos, em 1987, tivemos cursos de uma semana com as Assessoras.
Ali, antes de começarem as aulas, fomos apresentadas à metodologia que deveríamos
obrigatoriamente usar. Em Língua Portuguesa, estavam proibidos os ditados, as cópias, os
exercícios formais de sistematização do conteúdo. Proibido, também, era usar comandos
como “responda”; em vez disso, deveríamos escrever “você poderia/saberia responder?”.
Não se podia ser imperativo, pois soaria autoritário. Então, se adotava a paráfrase do modo
imperativo com questões no futuro do pretérito. Além disso, no caso da primeira série, nós
mesmas deveríamos inventar os textos a serem usados nas aulas para interpretação. De
42 Secretaria vinculada à já existente Secretaria de Ensino. 43 Com isso, segundo Inês, “as funções da equipe da Secretaria de Ensino foram minimizadas, embora oficialmente tivesse sido mantida como tarefa a coordenação do trabalho pedagógico nas unidades.” Pouco a pouco, no entanto, o trabalho da mencionada secretaria foi se esvaziando. 44 Professoras Maria Heloísa Vilas Boas Simões (Língua Portuguesa),Diva Maria Bretas de Noronha (Matemática), Tomoko Yida Paganelli (Estudos Sociais), Maria Antonia Castro Cruz (Ciências) e Zuleika Pinho de Abreu (Fundamentação na Psicogenética de Piaget). 45 Confira-se no Plano Geral de Ensino de 1986, escrito pela assessora de Língua Portuguesa.
62
modo que textos de autores da literatura infantil eram raríssimos em sala de aula. A
palavra-chave era ‘descoberta’. As aulas deveriam favorecer as descobertas das crianças.
Lembro novamente das ‘vozes dos corredores’ dizendo que só as descobertas não eram
suficientes, pois as crianças descobriam mas não incorporavam as descobertas,
principalmente em questões de ortografia.
As assessorias parecem ter contribuído para profundas modificações na prática
pedagógica desenvolvida no colégio. Parece, também, terem contribuído bastante para a
organização mesma da escola, bem como para o crescimento das ‘jovens professoras’
como profissionais da educação. No entanto, não se pode falar que havia homogeneidade
de concepções, em afinidades estritas com aquela proposta. Havia quem pensasse de
maneira diferente.
Conforme já disse, para mim aquilo era interessante, se parecia muito com a
lingüística das aulas da faculdade de Letras, o que me trazia alguma segurança. Mas me
lembro dos ‘fuxicos’ que, durante o ano, comecei a ouvir a respeito de algumas
professoras, as ‘tradicionais’, que resistiam a absorver a metodologia. Falava-se “A
metodologia” como se fala de algo sagrado. E era pecado mortal maculá-la com ditados e
afins. Só que essas professoras vinham já com um certo caminho trilhado, traziam outras
redes de saberes, e, para elas, parecia difícil abandonar tudo o que tinham feito até então
para assumir integralmente aquela proposta. Resistiam ao que negava seus saberes?
Após a interpretação escrita dos textos, faziam-se vários exercícios através de
perguntas pautadas nos constituintes do enunciado. Era mais ou menos assim:
Leia a frase [que deveria estar sempre dentro de uma caixinha]:
O menino comeu o bolo.
* Agora você poderia responder às perguntas? * Quem comeu o bolo? ------------------ -- comeu o bolo. * Quem mais poderia ter comido o bolo? --------------------- comeu o bolo. --------------------- comeu o bolo. --------------------- comeu o bolo.
Fazíamos isso à exaustão. Era muito importante, dentro da metodologia adotada,
que as crianças descobrissem os paradigmas. Lembro-me de certa vez, quando
trabalhávamos as diferenças entre “in como prefixo de negação” e “in como parte do
63
radical da palavra”. A mãe de uma aluna, Aline Polycarpo, me mandou, preocupada, um
bilhete que dizia algo como: “Professora, minha filha não tem condições de, aos sete anos,
distinguir quando o ‘ in’ quer dizer ‘não’ e quando não quer...” Aos vinte e três anos, eu
não podia deixar de lhe dar razão. Mas não sei o que respondi.
Refletindo sobre essas coisas, ficam mais claras para mim as razões dos
desentendimentos que havia entre as orientações de Língua Portuguesa e a compreensão do
trabalho com textos por parte do grupo que trabalhava com a atividade de Literatura. Sim,
porque esta era uma das ‘brigas’ que havia em nossas reuniões gerais. Vamos a elas.
Do mesmo modo que o trabalho do primeiro segmento parece ter trazido
estranhamento e repulsa no âmbito do segundo segmento, o que sinaliza claramente a
divisão existente na instituição, dentro do “Pedrinho” uma outra cisão veio tomando corpo,
ao que tudo indica, a partir do seu segundo ano de funcionamento: aquela entre o trabalho
de Língua Portuguesa e o da Atividade complementar46 de Literatura, cujos professores
pertenciam ao Departamento de Primeiro Segmento47. Esses professores ficaram à parte,
por exemplo, das atividades de assessoria. Quer me parecer que a equipe de coordenação
estava muito mobilizada para dar corpo ao trabalho das áreas de Núcleo Comum. Segundo
os professores de Literatura, a Direção-Geral, que pagava às assessoras, não fazia o mesmo
com relação às Atividades. À primeira vista, isso parece confirmar a impressão que me foi
relatada: o trabalho das Atividades existia, basicamente, a fim de que se pudesse
proporcionar ao ‘Núcleo Comum’ horários livres para encontros de planejamento.
Na opinião de Júlia48,
... o trabalho de Língua Portuguesa deu um encaminhamento interessante para a forma como se investigava a questão da gramática, do estudo de ortografia, de algumas coisas. Agora o trabalho de texto era bastante ruim. Não havia encaminhamento bom.
Embora a proposta pedagógica em Língua Portuguesa fosse avançada, se
comparada ao que se fazia antes, as pessoas que trabalhavam com Literatura na época não
viam com bons olhos a orientação daquele trabalho, no que concerne ao tratamento de
46 Adiante, detalhar-se-á o processo de criação das áreas de Atividades complementares: Educação Física, Música, Artes e Literatura. 47 Os professores de Música e Educação Física pertenciam, assim como hoje, aos respectivos Departamentos, e os de Literatura e Artes pertenciam ao Departamento de Primeiro Segmento. 48 Maria Júlia Cunha Limia, professora da casa desde 1986.
64
textos. Para Júlia, uma das pessoas muito importantes no processo de construção do
trabalho de Literatura, a recíproca era verdadeira. Ela afirma com ironia:
Eu me lembro que quando eu entrei aqui tinha essa coisa da assessoria, os ‘sátrapas’, os sábios, que chegavam aqui e davam as assessorias pras áreas. Mas, como as Atividades ficavam de fora, a gente nunca participava direito desse trabalho e as assessorias, no caso a de Língua Portuguesa, viam com certo desdém mesmo o trabalho de Literatura.
A professora aponta para uma questão bastante complexa e controversa. Há quem
diga que não, como Inês, para quem as atividades eram “o diferencial, o avanço existente
no colégio”, embora admita que, no princípio, elas foram mesmo criadas para que os
professores do Núcleo Comum tivessem oportunidade de encontros para o planejamento
coletivo. Creio ser possível concluir, pelo que disse Inês, que havia diferenças de
entendimento em relação a isso dentro da própria equipe de coordenação, incluindo aí a
chefia do Departamento. Segundo ela, “havia correntes diferentes em luta no staff de
poder.”
Mario Bruno, que teve uma longa história no colégio como coordenador e professor
de Literatura e também uma experiência de dois anos como coordenador de Língua
Portuguesa e Literatura49, afirma que
a visão que a Chefia de Departamento tinha de Língua Portuguesa era uma visão muito presa, ainda, à gramática normativa, porque o trabalho proposto pela assessoria (...) estava voltado para a gramática normativa; por mais criador que ele fosse, por mais diálogo que ela estabelecesse com a lingüística e tudo isso, era um trabalho todo voltado pra gramática normativa e eles não sabiam como trabalhar Literatura (...) Eles não sabiam trabalhar texto, não.
De minha parte, como professora de turma de primeira série em 1987 e 1988, posso
dizer: nas minhas aulas, as crianças não tinham contato com livros e, bissextamente,
aparecia algum texto literário para interpretação, que se compunha, basicamente, das
clássicas perguntas: quem, quando, por quê? E muito exercício gramatical ‘moderno’... O
lugar da literatura era outro. E isso é sério.
49 Em 1989 e 1990, as instâncias superiores do colégio extinguiram a coordenação de Literatura e criaram dois coordenadores de Língua Portuguesa em cada Unidade, que tinham a responsabilidade de coordenarem também a Atividade. Na USC I, Mário foi um dos eleitos ao cargo.
65
Por razões várias, em 1988, as assessorias deixaram de existir, o que não significou
o fim imediato do trabalho que se fazia. No PGE de 1988, a chefe do Departamento
escreveu:
É com muita satisfação que vejo, dentro do nosso corpo docente, um grupo de multiplicadores se formar de acordo com essa proposta metodológica e que, em 88, fará o aperfeiçoamento dos professores mais novos.
Algum tempo depois, no entanto, tendo o controle do trabalho deixado de ser tão
rigoroso, algumas professoras da Classe de Alfabetização iniciaram um processo de
rompimento com aquela metodologia, voltando-se para uma prática relacionada às
investigações de Emília Ferreiro sobre a linguagem e a aquisição da língua escrita.
Analisando o processo, Rocha (op.cit.,p.104-5) afirma: Essa transformação também afetou a ação pedagógica de ensino de leitura de uma parte das professoras. Entre essas ações, está a generalização e intensificação do clube do livro50 (...), a abertura de espaços de leitura e de contar histórias em sala de aula e o questionamento do formato mais tradicional de trabalho com a língua escrita, em busca de alternativas didáticas. Assim, esse processo (...) ocorre junto com a permanência de práticas mais antigas, de acordo com a compreensão de cada professora sobre o que é mais importante no trabalho com a leitura.
Trazer um pouco dessas lutas internas, embora não seja o objetivo precípuo deste
trabalho, pode ajudar a compreender melhor um processo que, diferentemente dos versos
de Cecília51, é isto e também aquilo. Naquele cotidiano – como de resto acontece na vida
vivida -, chuva e sol conviviam, luvas e anéis se usavam, mesmo que se tentasse convencer
os interlocutores de que aquilo ou isto fosse melhor. Foi naquele cotidiano que as aulas de
Literatura nasceram.
Passemos agora a outras flores/fuxicos desta peça. Continuemos o mergulho no
lugar praticado (Certeau, 2003).
50 A influência dos “clubes do livro” na formação dos alunos será discutida adiante 51 Refiro-me ao poema de Cecília Meireles Ou isto ou aquilo.
66
2.5.1- As atividades complementares
O que acontecia fora do Núcleo Comum durante a ‘primeira infância’ do
“Pedrinho”? Como tudo começou? Olhemos, pois, algumas dobras deste ‘fuxico’, em
especial, no que diz respeito à tessitura da Atividade de Literatura.
Observando os PGEs, pude ver que, desde o primeiro ano de funcionamento,
fazem parte grade curricular do “Pedrinho” algumas Atividades complementares. Para
Educação Física e Música – esta, segundo relato52, um pedido do Diretor-Geral, que
desejava a existência de uma “bandinha” no primeiro segmento - foram deslocados
professores dos respectivos Departamentos, que não conheciam a realidade do primeiro
segmento. Mas a equipe do “Pedrinho”, pensando na composição do currículo, sugeriu,
também, que houvesse aulas de educação artística, de teatro53, bem como alguma atividade
na área de leitura.
Em 1984, conforme consta no PGE, dentre as atividades que comporiam a grade, a
equipe reservou de quarenta a sessenta minutos semanais, respectivamente para a primeira
e a segunda séries, a um trabalho chamado Biblioteca 54. As duas professoras que o
realizavam, Dione Coelho e Cristina Vergnano, já não se encontram na instituição, mas
me foi dito que elas escolhiam algumas histórias e as contavam para as crianças, no horário
estipulado. Esse trabalho foi um ‘retalho’ que, alinhavado e franzido, veio a se transformar,
posteriormente, na Atividade de Literatura.
Como o currículo estava em formação, os PGEs mostram que, de ano em ano,
mudanças ocorriam, decorrentes das discussões havidas no cotidiano. Já no PGE de 1985,
consta uma atividade denominada Literatura, com carga horária semanal de quarenta e
cinco minutos (uma hora-aula) para a 1ª e a 2ª séries e de uma hora e trinta minutos (duas
horas-aula) para a 3ª série. No espaço reservado à explicitação do Plano de Ensino, vê-se
52 Informação trazida pela professora Juliana Torres. 53 Se observarmos o PGE de 1984, veremos que as propostas metodológicas de Artes Plásticas, Teatro e Música já são espelhadas na publicação do Laboratório de Currículos do da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro. 54 Embora a atividade apareça na grade, não há, no PGE, registro de plano para ela.
67
que, naquele ano, Literatura estava diretamente ligada ao trabalho de Artes Plásticas. Além
disso, é possível perceber que ainda não havia definição de conteúdos.
Em virtude do caráter experimental do trabalho integrado de Literatura e Artes Plásticas a ser desenvolvido no ano de 1985, a equipe responsável pelo projeto preferiu optar por uma apresentação de objetivos e proposta metodológica apenas, possibilitando, assim, o planejamento de conteúdos ao longo do ano letivo, de acordo com as necessidades observadas. A constatação das dificuldades encontradas pelos alunos nos campos da leitura, interpretação e criação de textos literários [sic] levou-nos a implantar um trabalho específico de Literatura no 1° segmento do 1° grau. A integração artes Plásticas/Literatura, prevista no projeto, deve-se à necessidade de se trabalhar com as mais diversas formas de expressão, facilitando o desenvolvimento das potencialidades criativas globais do aluno.
Os objetivos das áreas integradas eram ainda bastante genéricos, transitando entre o
desenvolvimento do “espírito crítico” e a formação de “hábitos e atitudes”, passando pelo
desenvolvimento da “coordenação motora fina” e chegando a um ponto que futuramente
viria a ser motivo de tensões e embates entre o grupo de Literatura e os defensores da
idéia: “apoiar o trabalho das demais atividades do currículo, principalmente o de Língua
Portuguesa”.
Apesar da denominação, o trabalho então realizado acontecia nas próprias salas das
turmas, e não numa sala específica, como mais tarde, por conquista do grupo de Literatura,
passaram a ser. “No início a gente trabalhava com as crianças nas salas de aula, o que era
bastante complicado, porque a gente queria fazer um trabalho também de corpo, e isso
complicava bastante”, disse Júlia55.
Em 1985, como as professoras de ‘Biblioteca’ faziam no ano anterior, as aulas
quase não passavam de contação de histórias para as crianças no horário determinado,
guardando muito pouca semelhança com o que passou a ser feito posteriormente.
Por quê? O leitor poderá lembrar-se de que, naquele tempo, na rede municipal do
Rio de Janeiro e mesmo na rede estadual, havia propostas de trabalhos de Sala de Leitura
nos colégios e pensar que se assemelhassem. No entanto, não é assim que pensam algumas
pessoas com quem conversei.
Patrícia Fernandes, que teve longa experiência como professora e coordenadora na
rede municipal do Rio de Janeiro e nunca deu aulas de Literatura no “Pedrinho”, lembra do
trabalho coordenado por Maria Mazetti, na rede municipal, no princípio dos anos de 1970.
No município, quando eu entrei, tinha um negócio chamado Sessão de Bibliotecas e Auditório (...) Funcionava muito bem, sabe, mas não era uma
55 Júlia se refere ao ano em que ingressou no colégio, isto é, 1986.
68
coisa tão pretensiosa, vamos dizer assim, quanto é a nossa Literatura aqui, era uma coisa bem mais simplificada. Cada escola tinha, dependendo do número de turmas, uma ou duas professoras de biblioteca, e essas professoras recebiam, semanalmente, pra cada série uma história.
Tereza Prallon, que estava por perto no momento da conversa com Patrícia,
foi chamada a lembrar. Sua experiência no Município é do início dos anos de 1980. Ela
disse:
Na minha escola não tinha biblioteca. A gente fazia um trabalho com Maria Mazetti no C.A.. Era um trabalho feito dentro da escola com os professores, mas não tinha essa parte de biblioteca, até porque na minha escola não tinha biblioteca.
Júlia, de um outro lugar, também fala sobre o assunto:
Esse trabalho não teve influência de trabalho feito no Município, não.(...) O trabalho de sala de leitura que se fazia no município era MUITO diferente do que o que a gente estava propondo, porque a gente queria uma carga horária CERTA, semanal, com as crianças, e no Município o que funcionava era um trabalho de Sala de Leitura, ou seja, havia uma Sala de Leitura, as crianças eventualmente iriam a essa sala pra ler, pra fazer um trabalho com o professor que estivesse lá, mas não tinha uma carga horária semanal em uma sala diferente da biblioteca.
Além disso, diz Júlia, no “Pedrinho”, “nós selecionamos conteúdos específicos de
Literatura e fazemos um trabalho que é acompanhado semanalmente pelo mesmo
professor em dois tempos de aula.”
Antes de isso acontecer, no início de 1985, Mário Bruno56 foi admitido. Tinha
pouco mais de vinte anos e pouquíssima experiência profissional, que, de 1ª a 4ª série, se
resumia a um ano de regência de turma na rede municipal . Assim ele relata sua experiência
inicial:
Em 85, quando eu entrei, eu encontrei esse caos. Porque eu não entendia aquilo, a gente entrava em sala, ia lá na “biblioteca”, pegava um livro (...)... Nós entrávamos na sala de aula, com os alunos sentadinhos, e a gente com um livrinho pra contar uma história e com dois tempos de aula! Imagina, você conta uma história, e depois? “Ah, não sei.” Aí eu falei com as pessoas que eram coordenação... “Ah, você conversa com os alunos sobre a história...”
56 Autor do primeiro Plano de Literatura, constante do PGE de 1986.
69
O caos mitológico é o vazio primordial que precede a criação do mundo. Esse vazio,
ao mesmo tempo que pode amedrontar pela ausência da ordem, nos acena, cheio de
possibilidades. De certo modo, a imagem que daqueles tempos que se desenha para mim se
assemelha à tentativa de agrupamento de partículas flutuantes no lugar informe, num
processo intenso e apaixonado de busca. Morin (1996) traz instigante reflexão a respeito
das possibilidades agregadoras do caos. O nascimento do próprio universo, diz Morin, se
dá a partir da combinação entre ordem e desordem.
Nosso universo é fruto do que chamarei de uma dialógica entre ordem e desordem. (...) A desordem (...) de fato desempenha um papel produtor no Universo. E esse é o fenômeno mais surpreendente. É essa dialógica entre ordem e desordem que produz todas as organizações existentes no Universo. (ibid., p.277)
As organizações sociais não estão fora do processo aludido por Morin. Mário,
como professor, viveu a confusão que havia em 1985 em torno das aulas de Literatura.
Penso que, talvez, seu sentimento inicial possa ter-se assemelhado ao que tive quando
entrei pela primeira vez em sala de aula. Ele observa que, ao contrário do que ocorria nas
áreas do Núcleo Comum, não se estava pensando em nenhuma metodologia especial para
as Atividades. Nesse processo, segundo o professor, o caso de Literatura era singular,
porque, diferentemente do que ocorreu em Artes Plásticas, que, no princípio, se valeu da
proposta do Laboratório de Currículos do Estado, para Literatura não havia nada definido
no colégio; foi criada a partir da prática de contar histórias para as crianças, que Dione
Coelho e Cristina Vergnano iniciaram. Na época, não havia biblioteca na escola.
Guardados numa sala, ficavam alguns livros, que Mário disse serem “de péssima
qualidade”, recebidos como doação. As professoras, então, costumavam levar também seus
próprios livros para contar. Eis aí um exemplo das muitas ações cotidianas de professoras e
professores, que constroem possibilidades onde aparentemente elas não existem.
Do caos à organização, muitas vozes vindas das professoras que trabalharam em
Literatura se referem a Mário Bruno:
Júlia:
... e quem começou a estruturar esse trabalho foram Mário Bruno e Cristina Vergnano.
70
Se você for pegar as diferentes versões do PGE, especialmente na época em que o Mário era Coordenador, você vai ver que tinha modificações constantes, o Mário era uma pessoa interessada em estar constantemente mexendo naquele PGE a partir das discussões do grupo, muitas vezes até bem mais do que o grupo : ele estava puxando lá na frente uma discussão pro PGE e o grupo preocupado com o planejamento do ‘miudinho’. Daí a necessidade de a gente ler, e o Barthes foi uma das leituras, não foi a única, não! O Mário era muito empenhado nisso (...), muito preocupado com essa questão da formação da gente.
Então a preocupação do Mário era trazer textos de autores variados, e como ele era muito ligado em filosofia, a gente lia muito texto de filosofia pra discutir e embasar o trabalho da gente, não só em termos de sala de aula, mas, assim, ter um embasamento teórico para a gente discutir.
Cristina:
Agora, uma parte mais teórica da literatura eu não cheguei a ter, eu tive depois, como o próprio material e os grupos de estudo com o Mário, que o Mário era, digamos assim, o grande centralizador desse eixo teórico da literatura infantil, toda sua fundamentação, seus primórdios, seus melhores autores, a própria Júlia também, todos os dois tinham uma bagagem, e eu fui aprendendo com eles o que de fato era um bom texto, uma boa ilustração. O Mário sempre teve muito gosto, nos planejamentos, de firmar, de a gente tentar conduzir o trabalho indo e vindo nessa história da literatura infantil.
Isso eu aprendi com o Mário, que literatura era arte para ser apreciada!
Teresa:
Nós íamos pegando textos e nós íamos selecionando; o Mário, em grande parte, selecionou esses textos, embora não fossem todos trazidos por ele, mas em grande parte.
De todo modo, na formação continuada que se anunciava, a presença do professor
Mário é tida como fundamental para o desenvolvimento e a consolidação da Atividade no
colégio. Ele, por sua vez, se reporta à importância capital do grupo de professoras que,
com entusiasmo, com paixão, se dedicou junto com ele a criar o trabalho. “Nós éramos um
grupo muito unido”, diz. Pude ver, na pesquisa, a importância da contribuição de cada um,
que trazia diferentes saberes para repartir e confrontar. Era um aprendendo com o outro.
Aquele incipiente e mal definido trabalho com Literatura que havia em 1985
provocou em Mário o desejo de ir além. A formação em Letras, o mestrado em Teoria
71
Literária que cursava, a sua história de participação em grupos de estudo de filosofia lhe
permitiam refletir mais acuradamente sobre a questão da textualidade.
Então eu estava antenado com mil coisas que eu estava lendo e que não tinham nada a ver com a forma com que as pessoas encaram o trabalho de 1ª a 4ª [série] com texto. Eu lia Blanchot, eu lia Barthes, eu lia Foucault, eu lia uma série de autores, eu lia Deleuze trabalhando lógica do sentido, sabe, pensando uma interpretação completamente outra do que vem a ser o sentido, não aquela significação ligada a uma consciência intencional. Então isso pra mim foi muito importante, e eu acho que não era eu sozinho. Havia um grupo com formação, um grupo que tinha qualidades de formação universitária e que tinha interesse em rever isso e rever na prática mesmo, mudar a forma de trabalhar.
O texto literário tem uma especificidade que deve necessariamente ser considerada
ao trabalhá-lo: “não é como trabalhar uma notícia de jornal ou uma receita de bolo”, diz
Mário. Ele não era o único que pensava assim. Ainda naquele ano, Cristina Vergnano,
professora a quem Mário E Júlia atribuem o papel de ter iniciado, em 1984, a atividade de
“biblioteca”, tentou esboçar um plano de trabalho que extrapolasse a mera contação de
histórias e se detivesse nas especificidades da Literatura, mas este se revelou
“completamente inadequado”, mais parecendo um trabalho para o então 2° grau. Por isso
foi logo abandonado.
Buscava-se encontrar o tom para o trabalho com literatura nas séries iniciais, o que
não era tão simples. Tentava-se esboçar alguma proposta, mas se carecia de maiores
definições. A dificuldade existente era que, apesar de ambos, Mário e Cristina, possuírem
formação em Letras, nenhum tinha experiência relevante como professor de primeira a
quarta série, além do que – e aí emerge um problema que diz respeito à formação de
professores – numa faculdade de Letras não se preparava o aluno para trabalhar literatura
com criança. Conforme avalia Mário, Cristina queria transportar para Literatura uma
experiência que se relacionava à formação que haviam tido na área de Letras, muito
voltada para o ensino médio e para o ensino superior. Eles haviam sido contemporâneos na
universidade e jamais haviam cursado uma cadeira de Literatura Infantil. Mesmo que
tivessem conhecimentos trazidos da teoria literária, isso não era suficiente. Foi o cotidiano
das salas de aula que os pôs em contato com “a vida como ela é”, isto é, que trouxe a
possibilidade de saber da aplicabilidade e da não-aplicabilidade de certas formulações
teóricas. A sala de aula é o lugar de aprender na prática. Conforme Mário:
72
... há uma defasagem entre o conhecimento acadêmico e a prática de primeira a quarta série. Quer dizer, o romper com essa defasagem foi em função da prática mesmo, de ir me deparando com as questões que iam surgindo no trabalho com a criança, no trabalho de interpretação do texto com a criança.
A partir do início da década de 1980, convém lembrar, começou a ocorrer um
processo que se costuma denominar por boom da literatura infanto-juvenil no Brasil.
Alguns autores cujas obras se tornaram referência nesse campo (Ziraldo, Ruth Rocha, Ana
Maria Machado, Sylvia Ortoff, Lygia Bojunga, por exemplo) vinham tendo seus trabalhos
publicados e a universidade começava a se voltar para estudos teóricos mais aprofundados
no campo da literatura para crianças e jovens. No cenário marcado politicamente pela
redemocratização do país, o discurso pedagógico progressista também se investia da idéia
– de certo modo, heróica - de construção de uma nova sociedade. Considerando a
necessidade de compreensão das formas diversas como a cultura permeia a sociedade,
Yunes e Pondé, em publicação de 1988, assim se colocam:
Mas, para que isso seja compreendido – um dos papéis da arte na vida social, hoje – é necessária uma renovação pedagógica que tenha como compromisso a formação de um novo homem, uma nova sociedade, uma nova realidade histórica, uma nova visão de mundo que, vislumbradas pelo educando, permita-lhe assumir de fato uma cidadania adulta. (p. 10)
Para as autoras, a renovação da prática pedagógica não dizia respeito somente à
“reformulação de técnicas de ensino ou do currículo, mas sobretudo a uma nova visão do
papel político a ser desempenhado pela educação” (ibid.) onde a leitura literária poderia ser
o instrumento para a sensibilização da consciência, para a expansão da capacidade e interesse de analisar o mundo, lidar com a ciência, a cultura e o processo de trabalho, uma vez que se trata de um discurso que fala da vida, encarando-a sempre de modo global e complexo em sua ambigüidade e pluralidade de faces.(ibid., p.10)
Em julho de 1985, na Universidade Federal Fluminense, foi realizado o Primeiro
Congresso Brasileiro de Literatura Infantil e Juvenil. Naquelas férias, em busca de
experiências que ajudassem a estruturar melhor o trabalho, o grupo participou daquele
congresso (e mais tarde, de outros), onde pôde fazer contato com pessoas que trabalhavam
não só teoricamente com literatura infantil, mas também de forma prática, justamente
aquilo de que se precisava. Conhecer o Clã do Jabuti, um grupo coordenado por Célia
73
Pinto Costa, mudaria o rumo do trabalho com literatura infantil no Colégio Pedro II.
Aquele encontro constituiria mais um retalho que os professores, no ‘artesanato’ cotidiano
da proposta de trabalho, urdiriam à rede que teciam – e que, em contrapartida, também os
tecia, os formava. Mário afirma que:
Era uma espécie de integração de Literatura e Artes, mas que partia da literatura, via na literatura uma possibilidade de interpretação do texto literário que fosse lúdica. Nós ficamos encantados com essas oficinas do Clã do Jabuti! E essa idéia ficou como uma espécie de idéia-germe, um ponto de partida para a gente, pro que a gente queria.
Essa experiência trouxe mais energia para os professores. Eles haviam conseguido
se aproximar do tom que almejavam. Queriam fazer um trabalho que ultrapassasse a
contação de histórias. Queriam criar possibilidades de interpretação lúdica, através das
artes plásticas, da música, de uma integração de linguagens.
Esta marca ficou gravada no trabalho que hoje fazemos. Procuramos fazer das
aulas espaços para criar com a literatura. A partir da palavra literária, propomos criações
verbais e não-verbais, individuais e coletivas. A palavra literária reinventa o mundo e
nossa fantasia, provocada, continua a reinvenção. Barthes lembra que saber e sabor são
palavras cognatas. Na raiz de saber, portanto, está o sabor, a presença indissociável do
corpo que sabe. Na raiz do saber, não só a cabeça, mas o resto do corpo, que o pensamento
cartesiano há tanto insiste em apartar desse processo. Será por sabor que, muitos anos
depois disso, os alunos, ao recordarem o cotidiano do “Pedrinho”, se reportam a essas
atividades lúdicas? Como Taís57, que traz a lembrança do constante processo de fabricação
que ocorria nas aulas.
[Eu lembro] que a gente lia os livros – você lia pra gente -, depois a gente fazia uns desenhos sobre a história, (...) A gente mexia com massinha também, a gente... Ah, a gente fazia um monte de coisas!...
Vejo que esse fazer está estreitamente relacionado ao processo mesmo do fazer
artístico. Crianças amam fazer. Quantas vezes, antes mesmo de ouvir a história, os alunos
se antecipam e perguntam, ávidos: “O que a gente vai fazer hoje?” Fazer liga-se
profundamente à poiésis grega, de onde nasceu a palavra ‘poeta’. Poeta é aquele que faz,
57 Aluna do “Pedrinho” a partir da 2ª série (1988-2000).
74
que cria. Como lembra Walty (1996, p.31), “o homem é marcado pela capacidade de fazer,
de ser poeta.” A literatura é um espaço privilegiado para a fabricação de realidades outras.
Então, voltando ao ano de 1985, além da participação no congresso, outros
acontecimentos foram determinantes: Cristina Vergnano saiu do “Pedrinho”, Gláucia foi
para o Núcleo Comum e Mário passou a coordenar o trabalho. Já no final do ano letivo, ele
recebeu da chefe do Departamento a incumbência de escrever um Plano de Ensino - o
primeiro da área - para todas as cinco séries que passariam a existir a partir do ano de
1986. E, contraditoriamente, teve de fazê-lo praticamente sozinho. Conforme diz, ficou
com a idéia, com a pequena experiência em Literatura que tivera naquele ano
e uma vontade de fazer um trabalho (...) em que a interpretação não fosse aquela interpretação que se faz na escola, de preparar uma folhinha e, a partir dessa folhinha, a criança responder qual é o personagem principal, qual o personagem secundário, porque eu achava que aquilo já não tinha muito a ver com o trabalho de segundo grau e com a compreensão do que eu entendia por ser interpretação e tinha muito menos a ver com um trabalho de primeira a quarta.
2.5.1.1- O primeiro Plano de Literatura e a ampliação de um trabalho coletivo
(...) não existe método pra ensinar ninguém a trabalhar com literatura, não existe método nenhum pra ensinar alguém a pensar. Se pensa pensando, se lida com o teu corpo experimentando, só se aprende a fazer um trabalho coletivo no trabalho coletivo! E você não sabe onde que isso vai dar quando você entra, sabe? Você faz um planejamento, mas isso é totalmente aberto. É isso que eu acho que estava na cabeça da gente. (Mário)
O primeiro Plano foi escrito com dificuldade, a partir da prática anterior do grupo,
que ainda não englobava todas as séries. Com a ajuda de Fátima Reis, professora de
Matemática também pouco experiente no primeiro segmento, que tivera apenas seis meses
de contato com o trabalho de Literatura, as experiências anteriores, que não englobavam as
cinco séries, foram organizadas num Plano formal.
Mário me explicou como pensou inicialmente. Era necessário ter “uma visão
horizontal e vertical do Plano”, para eleger os conteúdos. Grande problema, já que a
experiência anterior se restringia à primeira, segunda e terceira séries. Ele começou a
pensar em termos de uma diversidade de gêneros textuais. Assim, alinhavou a pouca
experiência à intuição, num plano estruturado em termos de objetivos e conteúdos, como
lhe fora solicitado fazer. Mas vejo um pouco mais: ajudando-o a compor aquele Plano,
75
estavam também os fios de outras redes trazidos pelas professoras que antes participavam
do trabalho e pelas experiências que tiveram enquanto grupo. Para a segunda série,
resgatou, do ano anterior, a experiência bem sucedida com ‘contos de fadas’; para a
terceira, da mesma forma, se baseou na linguagem dos quadrinhos, ampliando-a para o
trabalho com ‘comunicação de massa’ e inseriu também ‘narrativas míticas’. Como na
terceira série, em 1985, os professores haviam levado as crianças para assistirem a algumas
peças de teatro infantil, o que as encantou, ele pensou em fazer, na quarta série, um
trabalho mais elaborado com ‘textos dramáticos’; além disso, achou conveniente utilizar
contos, crônicas, textos que “já seriam uma transição de uma literatura infantil para uma
literatura infanto-juvenil.”
No entanto, o problema relativo às duas séries iniciais persistia. Por “intuição”,
Mário acreditava que se devesse fazer algo “que desse continuidade a um trabalho que se
começa a fazer na pré-escola e que não estivesse dissociado de toda uma preocupação com
a criança, com aspectos motores...” Mas como? Para isso, foi importantíssima a chegada,
em 1986, da professora Júlia, que tinha justamente alguma experiência na pré-escola,
‘fuxico’ imprescindível para a rede que pretendiam tecer. Mas não só.
Um outro acontecimento de grande importância veio a se enredar nesse processo, o
qual contribuiu bastante para a tessitura do currículo e o crescimento de um trabalho
coletivo, possibilitando também as contribuições de professoras das outras Unidades do
colégio. No caso das séries iniciais, Mário se lembra de duas delas, Márcia Chaves, do
Humaitá, e Teresa, do Engenho Novo, ambas com bastante experiência em pré-escola.
Então as três montaram esse trabalho de C.A. e 1ª, a partir de experiências que elas já tinham com séries iniciais. Ficou praticamente nas mãos delas essa montagem, ficou muito nas mãos delas. (...) E eu acho que o trabalho de C.A. e 1ª, que, muitos anos depois, foi transformado num Projeto C.A., com um certo sucesso também, deveu muito a essas pessoas que tinham uma experiência com séries iniciais e que foram passando essa experiência.
Mas, o que aconteceu para que professoras de Unidades tão distantes pudessem de
fato articular seus saberes?
Em 198658, o cargo de professor responsável pela Atividade foi transformado e
recebeu nova denominação, coordenador, o que viria a favorecer, de viés, o fortalecimento
do trabalho das Atividades . Diz Mário:
58 Em 1986, foi aberta a Unidade Engenho Novo.
76
Como não havia coordenador de Atividades por Unidade, o que eles criaram foi algo que nos dava um papel quase que de chefes de Departamento, mini-chefes de Departamento.(...) Nós não ficávamos fixados numa Unidade; nós coordenávamos o trabalho como um todo, o que propiciou a criação de um trabalho coletivo.
Olhando à distância, vejo como uma ação vinda do lugar (Certeau, 2003)
tecnocrático, foi taticamente aproveitada, como diria Certeau, de modo a constituir
vantagem. Certeau nos diz que os fortes possuem um lugar e se movem nos espaços
segundo suas estratégias. Os fracos, por sua vez, não possuem lugar algum e precisam da
rapidez de movimentos no tempo, precisam de agilidade. Astúcias. O fraco se move através
de táticas. “A tática é a arte do fraco”, fala Certeau (ibid., p.101). A nova organização
poderia ser lida como descaso em relação às Atividades, já que as áreas de Núcleo Comum
contavam com coordenadores por Unidade; além disso, a atitude da Direção-Geral poderia
revelar, também, a intenção de economizar gastos com gratificações59, em se tratando de
coordenadores de Atividades não tão importantes para o currículo. Mas, ao invés de
questionar a decisão, junto com Eloísa, coordenadora de artes, reivindicando com
veemência para que efetivamente pudessem ter encontros de planejamento com os
professores das três Unidades, Mário conseguiu fazer com que o trabalho fosse sendo
implantado em todas elas. Além desse fato, a situação, segundo ele, “quase de abandono” à
qual estavam relegadas as Atividades, uma vez que estavam à parte dos investimentos
institucionais relativos à orientação teórico-metodológica do Núcleo Comum, permitiu ao
grupo, diferentemente do que ocorria com os demais professores, muita liberdade para
criar e pensar a metodologia que desejava usar.
Interessante pensar esse processo. Se, de um certo ponto de vista, os professores do
Núcleo Comum contavam com a ‘comodidade’ de assessorias 'dadas' pela instituição, era
fato, também, que deviam submeter-se ao controle da execução, de forma que o
‘privilégio’ constituía uma faca de dois gumes. As Atividades, por sua vez, estando à parte
desses investimentos, ficavam também fora do "olhar vigilante" da instituição, como diria
Foucault, e até por isso surgiram possibilidades de ampliar seus horizontes de ação.
59 A coordenação de área é Função gratificada , o cargo de professor responsável não.
77
Assim, a partir da “idéia germe” surgida durante o congresso de que os professores
de São Cristóvão haviam participado no ano anterior, as equipes das diversas Unidades
foram se fortalecendo. Nesse movimento de formação continuada autogestionada, os
congressos injetavam mais fascínio ainda pela literatura infantil. Veja o que diz Cristina
Corção, que passou a fazer parte da equipe em 1987:
Nós éramos enfeitiçados por aquilo. (...) Eu acho que é a relação com os livros e a qualidade de texto, de imagem, a vida de autor, tudo isso nos enfeitiçava, e a gente era louco pra passar aquilo pras crianças, por dividir aquilo com as crianças, e a gente se divertia muito com aquilo, então a gente escolhia um determinado texto, uma história, um ilustrador pra trabalhar com eles, pra dividir esse fascínio que a gente via.
Em 1986, alguns avanços importantes ocorreram: a equipe de Literatura
conquistou, junto à diretora da Unidade, duas salas exclusivas para as aulas, com
dimensões adequadas ao tipo de trabalho proposto; numa delas, a equipe começou a
montar uma espécie de sala de leitura com livros de qualidade, conseguidos através de
doações de editoras, as quais o grupo costumava freqüentar, porque, para fazer o que
desejavam, era preciso pesquisar também as novidades publicadas para crianças. Além
disso, os representantes de editoras pareciam ver ali interessante mercado. A sala deu
origem à biblioteca60 que, anos depois, passaria a servir a toda escola, e não apenas às
aulas de Literatura.
Também no ano de 1986 conseguiu-se, diferentemente do que ocorria antes, montar
o horário de modo que, em todas as Unidades, o planejamento de Literatura se desse
durante as tardes de quarta-feira e reunisse todo o grupo de professores. Isso tornou
possível o encontro das equipes de todas as Unidades para trocarem experiências, quando
houvesse necessidade. Movendo-se pelo “espaço tecnocraticamente construído” foram-se
desenhando “as astúcias de interesses outros”. Táticas de praticantes (Certeau, op.cit.,p.
45).
As reuniões de planejamento foram fundamentais para estabelecer as bases da
proposta de trabalho. Espaço de diálogos, espaço de aprender, espaço de dividir, espaço de
criar. Havia professores sem formação em Letras, como Cristina Corção, para quem os
60 Embora todos a chamemos ‘biblioteca’, a denominação correta seria ‘sala de leitura’, já que não existem bibliotecários no “Pedrinho”, condição para que a sala pudesse ser uma biblioteca .
78
planejamentos desempenharam um papel formativo, cuja experiência (Larrosa,2002;2004)
lhe foi fundamental .
Os livros caíam nos nossos encontros de planejamento e nós ficávamos maravilhados com aquelas novidades, gente comprava coisas, eu saía do planejamento, ia pra Praça Saenz Peña (...) procurar novidades nas livrarias e ver lançamentos. Comprava, trazia, e a gente ficava envolvido com aquelas novidades, pra sempre trazer livros novos, material novo mais atraente para as crianças; porque também nos procuravam muitos divulgadores e pessoas com interesses, não vou dizer comerciais, mas eles também vinham aqui e traziam porcaria, ou empurravam porcaria pra trabalhar com as crianças. E a gente tinha uma análise muito cuidadosa de texto e de imagem pra se trabalhar com as crianças, pra não se adquirir qualquer porcaria.
“E a gente tinha uma análise muito cuidadosa de texto e de imagem pra se trabalhar
com as crianças, pra não se adquirir qualquer porcaria.” Isso que diz Cristina me disseram
também Mário e Júlia. Tudo acontecia naquelas reuniões. Ali o grupo analisava tanto os
textos como as ilustrações dos livros a serem usados, ali eram criadas as aulas, para lá os
professores levavam suas observações sobre a repercussão do trabalho com as crianças, ali
se reformulavam propostas e, além disso, se estudava. Ali, portanto, o grupo se fortalecia.
Júlia lembra que a grande preocupação era justamente fugir de um modelo de interpretação
- muito comum nas escolas – voltado para a apreensão mecânica de informações. Então
o que colocar no lugar disso era sempre um grande ponto de interrogação. E daí as nossas investigações. A gente estava sempre tentando ver o que se podia fazer pra fazer um trabalho instigante com o texto. E alguma coisa que pudesse de alguma forma surpreender as crianças.
Os saberes teóricos modificavam a prática. O que se julgava saber era
desestabilizado e pedia mais investigações.
Era muito comum, por exemplo, a gente entrar em sala, começar a contar a história e a criança virar e dizer: “Já sei o que você vai mandar fazer. Você vai mandar a gente imaginar não sei o quê e depois desenhar não sei o que lá.” Quando isso acontecia, era um termômetro de quê? A gente estava repetindo demais, a criança já conhecia aquele mecanismo e a gente estava caindo no convencional, no tradicional. Como que a gente podia fugir disso? Discutindo, lendo e aprofundando questões teóricas.
Num movimento de prática-teoria-prática (Alves, 2002), o grupo se debruçava na
investigação teórica. Liam Umberto Eco, Barthes, liam “teóricos de Literatura mesmo,
79
para (...) tentar ver para onde (...) caminhar.” Júlia lembra, também, que nem sempre as
aulas eram “fantásticas e mirabolantes”. Mas o processo coletivo lhes permitia analisar as
falhas e tentar corrigi-las. E a investigação teórica era fundamental para “poder aprofundar,
poder buscar novos textos e fazer leituras diferenciadas desses textos.”
Não se liam somente teóricos da literatura. Mário lembra que, nesses encontros,
circularam muitos textos que tratavam de teoria da literatura infantil. O que ficou na
memória de cada um? Cristina me trouxe um exemplar dos Cadernos da PUC61, onde se
publicavam muitos textos sobre Literatura infantil; Júlia lembra A Gramática da Fantasia,
de Gianni Rodari, que os ajudou bastante a criar propostas diferentes para as aulas; Mário
recorda que se lia o que de novo estava sendo feito por profissionais teóricos da área.
Desse modo, por conta própria, o grupo buscou, em conjunto, se preparar para o
tipo de trabalho que escolheu fazer, seja pagando pelas oficinas em arte-educação que
fizessem durante os períodos de férias, seja estudando, no cotidiano do planejamento
coletivo. Era a prática trazendo a necessidade da teoria e as táticas dos praticantes
(Certeau, 2003) aproveitando as brechas e burlando bloqueios institucionais.
Segundo a avaliação de Mário, Literatura “nasceu em 1986” e em 1987 começou a
“dar frutos”. Naquele início de ano, os esforços do coordenador atrelados ao desejo das
professoras tornaram possível reunir todas as equipes de Literatura e fazer um
planejamento integrado para todas as Unidades, que aí já eram quatro, contando com a
U.E. Tijuca, aberta naquele ano. Foi assim que “o trabalho começou a crescer”, ganhando
potência e “um rosto de trabalho coletivo”.
Cristina chegou exatamente naquele momento. Era antes professora de educação
física no segundo segmento da rede municipal, gostava de trabalhar com muitas turmas e
tinha algum conhecimento de práticas de recreação. Mergulhou intensamente na proposta,
buscando aprender aquilo que não sabia. Trouxe-me uma pasta com alguns guardados, que
bem parecia um ‘baú da memória’. Ali havia papéis dispersos com rascunhos dos
planejamentos coletivos das aulas, muitas anotações feitas nos cursos e oficinas de que
participava, cartões e fotografias recebidos de alunos, uma fita de vídeo gravada para a
TVE, em que ela contava uma história na biblioteca, e tantas outras coisinhas, que, para
mim, demonstram sua relação afetiva com a Atividade.
61 Coleção de publicações dos diversos Departamentos da PUC- RJ. As publicações relativas a literatura eram organizada por Eliana Yunes.
80
Remexendo seus guardados, vejo, como num cristal de tempo, a primeira página de
um caderno usado por Cristina em 1987, assim que nos duas ingressamos no colégio.
Poder ver este
sempre que assisto ao
Muitas vezes estou na
oficiais da turma. Fotó
quase sempre se desarr
sou testemunha do ma
mostrará. Momentos, m
pronta. Mas também,
fixados pela escritura,
sujeitos caminhantes, q
Epistemologia Genétic
Literatura, os acréscim
caderno me provoca um sentimento que conheço bem. Explico:
momento em que fotografias são tiradas, sou tomada de emoção.
escola e vejo um grupo se preparando para aquelas fotografias
grafo com a máquina pronta, professora arrumando as crianças, que
umam tão logo são arrumadas. Eu, como elemento estranho à foto,
king off de uma cena que permanecerá. Vejo o que a foto não
ovimentos. Ver a página do caderno de Cristina, é como ver a foto
por outro lado, o ensaio do devir. Por detrás dos apontamentos
pulsa o cotidiano. Pulsam fragmentos labirínticos das trajetórias dos
ue escrevem um texto sem poder lê-lo (Certeau, 2003). O curso de
a que nos era oferecido, os estudos nos cursos e oficinas de
os ao primeiro dia na sala de aula. Tudo dispersamente anotado.
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Indícios que tornam mais nítido o processo coletivo vivido naquele espaço-tempo. Que até
agora chegou ao leitor mediado pela interpretação (Pais, 2003) que faço dos relatos, das
narrativas dos sujeitos que o viveram. O tempo me co-move.
2.5.1.2- Sujeito, poder e arte Nas tramas dos ‘fuxicos’, pude ir percebendo as grandes perguntas que os
professores se faziam, bem antes que eu começasse a participar da equipe. O que é o
sujeito? Qual o papel da arte na vida das pessoas? O que difere a literatura de outros tipos
de escritura? Como trabalhar pedagogicamente com a literatura sem ferir a essência
artística do texto? Parece que estas questões permeavam incessantemente as investigações
do grupo de professores de Literatura. E muitos anos antes de os especialistas escreverem
os PCNs. Desejavam e perseguiam um modo de abordagem do texto que fosse lúdica.
Palavra gasta, mas essencial. Ludus, jogo, divertimento, recreação. Literatura, brincadeira
com a linguagem, trapaça com o autoritarismo da língua, com as sintaxes do poder
(Barthes,2002).
Muito influenciados pela filosofia, começaram a pensar, como me disse Mário: o
sujeito, em sua constituição, é indissociavelmente cabeça e corpo. No entanto, a escola
parece ser o lugar da mente, cartesianamente falando, da res cogitans. Mesmo que nas
aulas de ciências nos seja ensinado, e ensinemos, que o ser humano é ‘cabeça, tronco e
membros’, parece que ao cruzar os portões da instituição escolar, nossos corpos nos
escapam, se invisibilizam, e ali, soberanas, pairam as cabeças. Ora, como trabalhar com
arte expulsando nossos corpos, se a arte é por definição o lugar de busca dessa inteireza
primordial que nos constitui, se a arte é uma arena de luta contra a fragmentação humana?
A proposta de trabalho se ancorava nessa compreensão. Por isso pensavam que, para
poder realizar uma abordagem criativa do texto, era necessário que o grupo de professores
mergulhasse também num trabalho anterior no sentido de procurar romper os
“engessamentos”, as limitações que a “ordem disciplinar” na qual somos formados lhes
impunha. “Como você vai exigir que a criança seja criativa se você, professor, não é
criativo?”, pergunta Mário.
As professoras lembram de alguns daqueles cursos:
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Em dois anos a gente fez um trabalho com o Tear (...), a gente fez [oficinas] com o Clã do jabuti, com o Clãdestino, fiz uns quatro cursos desses. (Júlia) Então nós fizemos oficinas no Tear, que é um curso na Tijuca que trabalha com essas diferentes linguagens, literatura, teatro, artes plásticas, música; e, além do Tear, também teve uma convidada do grupo do Teatro do Oprimido, que fez uma série de vivências com a gente, que tanto eram aulas que serviam para serem utilizadas em Artes, como em algumas partes da Literatura também. (Cristina)
As oficinas em arte-educação de que o grupo participava eram, para Mário, um
modo de mexer com os corpos dos professores. De liberar as potencialidades criativas de
cada um. Daí a força para o grupo das noções de coletividade e de processo, abrangendo
tanto os processos dos professores, como os processos dos alunos e sua articulação. Tinha-
se como pressuposto que a maneira de trabalhar ‘metaforizava’ as intenções. Pela
preciosidade desse ‘fuxico’, preciso, novamente, dar voz a Mário:
Então [havendo] o fato de o aluno sair de uma sala de aula onde ele senta em fileiras, que é uma ordem disciplinar, fascista, onde está o lugar do professor lá na frente, e ir pra uma outra sala, em que o espaço é aberto, onde ele vai ter que fazer uma rodinha ali no chão, ou não faz uma rodinha, ele vai ter que sentar com os colegas, e depois ele vai pra uma mesa que já não é mais a mesa individual, mas é uma mesa em que ele vai ter que repartir materiais com o grupo, pra criar alguma coisa com o grupo a partir de uma história que ele ouviu em grupo e que aquilo é uma questão coletiva, é preciso também que o professor tenha o mínimo de vivência de coletividade. O professor que faz o seu planejamento sozinho, com a sua res cogitans, num quarto, e vai pra sala de aula, ele vai reproduzir isso na relação com o aluno. Agora, o professor que senta e pensa em grupo vai querer trabalhar com os alunos como um grupo e vai formar essa visão de grupo! É isso que a gente tinha, então tinha uma questão muito maior no nosso trabalho que era discutir a especificidade da especificidade do texto literário, uma questão que estava além de uma mera discussão teórica, no plano do pensamento separado do corpo. Era uma questão política da relação professor/professor, da relação aluno/aluno, da relação professor/aluno. Que coloca em xeque uma postura de senhor e escravo, de mestre e aluno que ainda existe na escola.
A questão trazida pelo professor é de extrema importância para discussão da
formação dos nossos alunos. Trago, aqui, a fala de Aline Polycarpo, a mesma aluna cuja
mãe, quando eu era sua professora em 1987, me mandou um bilhete dizendo da
incapacidade que tinha a filha de distinguir quando o in era prefixo de negação e quando
era parte do radical da palavra. Encontrei-a no Orkut. Reitero que fui sua professora na
primeira série, em 1987, quando ela e eu entrávamos na escola. Perguntei-lhe ‘o que tinha
virado’ depois que cresceu. Respondida a questão, falei-lhe que virara professora de
83
Literatura, mas bem depois de ela ter saído do “Pedrinho”. Então ela me enviou o seguinte
recado:
Aline: Literatura, que legal! Lembro-me bem das aulas de Literatura. Adorava! As leituras sentadinhos em roda, o clima da sala... Ainda tenho alguns livros que li no “Pedrinho”. Tem um que tínhamos que completar a história com desenhos... Desenhei o Gênio da Lâmpada...Tenho até hoje! 03:27 2/11/2005
Vivia-se, naquele cotidiano, uma luta política contra o autoritarismo nas relações.
Um espaço de utopia. Mas penso ser necessário refletir um pouco sobre o que diz Mário.
Certamente não apenas a disposição das carteiras instauram uma ordem não-fascista, já que
um professor ou uma professora podem ser libertários ou autoritários independentemente
da arrumação da sala de aula. E também não é somente disso que aqui se trata. Por detrás
do manifesto, existem algumas dobras importantes. O trabalho não era uma receita para
trabalhar literatura, senão um caminho, que, por definição, pressupõe movimentos: de
análise de possíveis trajetórias, de paradas, de recuos, de prosseguimento. Sempre feito
coletivamente, sempre entendendo a participação de todos os envolvidos na coletividade
pretendida. A disposição das mesas, portanto, não estava isolada do contexto mais amplo
que caracterizava a proposta. Claro que sentar em grupo pode facilitar o processo coletivo,
mas há garantias de que ‘intenção e gesto’ sempre se encontrem?
As equipes de Literatura das diversas Unidades eram compostas por pessoas de
modo geral muito jovens e com formação e experiências heterogêneas em educação. A
presença de alguns professores com formação em Letras que já se voltavam para a
pesquisa em cursos de pós-graduação e da professora Teresa, da Unidade Engenho Novo,
psicanalista com “vasta experiência em pré-escola” e muito interessada em textos teóricos,
segundo Mário, potencializou o processo de investigação que o grupo começava a
desenvolver.
Então, com essas pessoas conjugadas, nós passamos a tentar fazer coincidir o que nós líamos sobre literatura com um trabalho de Literatura que não é feito de primeira a quarta. (...) Era REVER NA PRÁTICA MESMO, mudar a forma de trabalhar.
Na prática, o grupo se debruçou no estudo da textualidade. Incomodava-o, dentre
outras coisas, o afastamento das práticas escolares em relação às formulações teóricas em
torno do que fosse o texto e do que fosse o processo de interpretação. Mário lembra:
84
Uma coisa que eu dizia, e eu acho que nós pensamos e tentamos pensar isso, é que quando você pega o estudo de Literatura no século XX, você tem grandes correntes, que vêm do marxismo, do pensamento nietzschiano, do pensamento freudiano, em que a questão do inconsciente está ali presente o tempo todo. E aí você vai pra escola, tanto no ensino do primeiro segmento, como de ensino médio, e o professor ainda está calcado numa noção de consciência intencional – “eu quero saber o que o autor pensou, o que o autor disse”... Então você tem uma série de correntes, e é aí que entra a questão do Barthes, que entra a questão do Derrida... [Tratava-se] de a gente começar a dar conta de um outro universo que não entra na primeira à quarta.
A preocupação com a formação em níveis prático e teórico que o relato resgata
reflete o grande interesse do grupo em “propiciar um encontro adequado entre a criança e
os textos” (Kaufman & Rodriguez, 1995). Tal encontro, que muitas vezes constitui mesmo
um desencontro, é objeto da discussão feita por Lajolo (2002). Abordando as dificuldades
no tratamento do texto literário em nossas salas de aulas - algumas das quais cedo aquele
grupo procurou resolver - a autora discute a complexidade presente no processo de
escolarização da leitura literária no Brasil.Um dos problemas destacados é a falta de
autoria dos professores em relação à sua prática:
Não parece que o que fazer com o texto literário em sala de aula seja ainda de sua competência. Já faz alguns anos que decidir isso é da competência de editoras, livros didáticos e paradidáticos, muitos dos quais se afirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar, na razão direta em que tiraram dos ombros dos professores a tarefa de preparar as aulas. O que há, então, para o professor, é um script de autoria alheia.(ibid.,p.14-15)
Outro aspecto dessa complexidade é o distanciamento da escola, em seu cotidiano,
de um estudo teórico mais aprofundado a respeito do tema.
O que fazer com ou do texto literário em sala de aula funda-se, ou devia fundar-se, em uma concepção de Literatura muitas vezes deixada de lado em discussões pedagógicas. Estas, de modo geral, afastam os problemas teóricos como irrelevantes ou elitistas diante da situação precária que, diz-se, espera o professor de Literatura numa classe de jovens.(Ibid.p.11)
Conforme pontuei anteriormente, os grupos de Artes e Literatura enfrentaram certa
resistência dentro da escola relativamente à validade dos trabalhos que propunham
desenvolver. É possível discorrer sobre alguns dos seus aspectos a partir da visão dos
professores da área.
85
Maria Júlia afirma que “algumas pessoas achavam que não era importante, ou então
achavam que tinha que integrar com Artes.” Os professores de Literatura, no entanto,
defendiam que o trabalho tinha uma especificidade. Por isso também se fazia necessário
estar embasado teoricamente para as ocasiões em que houvesse os “embates, as
discussões.” Esta, segundo ela, esta foi a outra razão que justificava as leituras feitas pelo
grupo: estudar para resistir.
Mário diz que, já em 1987, ano em que “o trabalho foi totalmente coletivo”,
começaram a pesar os interesses da instituição, que desejava que eles atuassem “atrelados a
Língua Portuguesa”, apoiando “o professor de Núcleo Comum em trabalhos com redação,
com uma interpretação formal de texto.” Isto coincide, segundo o que me foi dito por
alguém que nunca trabalhou com Atividades, com a vitória de um grupo mais conservador
na direção do projeto da escola. Foi um ano difícil, ouvi.
Então, isso que foi uma coisa extremamente criativa, que foi uma coisa extremamente rica pro colégio, não era o que interessava à chefia de Departamento naquele ano. E aí começaram os cortes. Era uma luta todo ano pra manter as salas de Atividades, porque a escola não acreditava nisso... Todo ano era uma briga em todas as Unidades pra se manterem salas de Atividades, porque eles lutavam pra que nós fizéssemos um trabalho formal. E havia também uma briga no sentido de produzir cortes políticos: acabaram com a coordenação, essa coordenação que era de todas as Unidades, o que começou a dificultar o encontro... Em 88 já foi assim, foi na base da resistência mesmo, né? (...) E essa mobilidade que a gente tinha, de poder estar em contato com todas as Unidades começou a diminuir, mas de certa forma, o coletivo já estava implantado, e isso é que é uma coisa interessante. E nós continuávamos funcionando como um trabalho coletivo.
Por que a resistência ao atrelamento que se desejava impor? A que se resistia?
Segundo Mário, “na escola, se queixavam de que tinham muito trabalho de redação” e
queriam dividi-lo com os professores de Literatura, “queriam dividir o trabalho de
interpretação de texto, porque eles tinham uma quantidade ENORME de coisas de
gramática pra trabalhar e queriam passar aquela interpretação formal que era feita em
Língua Portuguesa para Literatura.”
Os anos seguintes também não foram dos melhores. No início dos anos de 1990, as
coisas ficaram bastante complicadas. Houve uma época em que, em São Cristóvão, o grupo
foi quase que completamente desmantelado. Nesse período, houve ano letivo em que nada
mais nada menos que onze professores trabalhavam com Literatura, isto é, se completava a
86
carga horária de alguns professores (que desconheciam o modo como o trabalho era feito)
dando-lhes algumas turmas em Literatura. Isto significa que os encontros de planejamento
já não eram coletivos. A espinha dorsal do trabalho fora quebrada. Júlia, coordenadora da
Atividade no período, fazia com os professores diversos encontros isolados para ‘passar-
lhes o plano’. E o que era caminho percorrido junto, quase que se transformou em mera
receita.
Porém, por mais dificuldades institucionais que se interpusessem, o trabalho não
morreu. O significado daquela prática, de algum modo, deixou sementes. Os sentidos não
morrem, porque “não há limites para o contexto dialógico” (Bakhtin, 2003, p.410). Mesmo
os sentidos nascidos do diálogo do passado jamais se estabilizam, afirma o autor; “eles
sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do
diálogo”. Novos contextos propiciam a lembrança de sentidos esquecidos e sua renovação.
Afinal, “não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação.”
Em outro tempo, outra possibilidade de diálogo com os sentidos do passado se
apresentou. Dessa vez, com a minha presença.
CAPÍTULO 3 ENREDAMENTOS COTIDIANOS: PASSEIO POR UM BOSQUE DE ‘FUXICOS’
Convido o leitor a adentrar comigo neste bosque de fuxicos, por cujas veredas
faremos algumas paradas, para observar mais detidamente certas flores, suas dobras e
inter-relações. Nossa andança não será muito linear. Certas estampas aparecerão mais de
uma vez, mas em flores diferentes, cerzidas nas nossas memórias de formação. Não nos
perderemos, contudo.
Conforme escrevi lá no início, uma simples diferença de turnos adiaria meu
‘encontro com a Literatura’ por cerca de dez anos. Chegamos, enfim, a ele. A partir de
agora, meus retalhos e agulhas também passarão a fazer parte dessa rede, de modo que, na
narrativa, o pronome nós aparecerá com freqüência.
Em 1996, Mário, que estivera afastado do colégio, retomou a coordenação do
trabalho. Tinha como meta tentar “recuperar a idéia de um trabalho coletivo”, pois, nos
anos anteriores, tal havia se perdido. Para isso, primeiramente, conseguiu junto à Direção
da Unidade, montar uma equipe composta por quatro professoras com horário conjunto
para o planejamento. Eram Tereza e Celeida no primeiro turno e Cristina e eu, no segundo.
Cada uma de nós tinha oito turmas e nos encontrávamos com Mário às quintas-feiras para
planejar.
88
Entrei para a equipe de Literatura no mesmo ano em que a maioria dos alunos
entrevistados ingressaram no colégio. De certo modo, a Literatura se inaugurava para nós
todos. Mas não para Mário, que, depois de onze anos, nas suas palavras, sentia-se um
pouco como Sísifo dentro da instituição. Aquela foi sua última tentativa. Ficou na
coordenação do trabalho até 2000 e, em 2001, saiu definitivamente do “Pedrinho”. Aquele
foi também o ano em que cinco dos alunos em foco passaram para a quinta série.
No entanto, o que Mário viveu como um ocaso, para mim era apenas a aurora.
Nascia, enfim, a hora de satisfazer meu antigo desejo de penetrar nos mistérios de trabalhar
literatura com crianças.
A formação em Letras me ajudou bastante. A formação primeira no caudal da
oralidade também. O conhecimento acadêmico imiscuído àqueles aprendidos nas práticas
familiares às vezes funcionava muito bem. Por exemplo: na minha infância, era comum
que alguns se reunissem para cantar. Eles gostavam de música caipira e de fazer
‘desafios’62. Eu, criança, assistia apenas. Mas isso penetrou em mim de tal forma que
consigo criar rapidamente, com a métrica própria a esse tipo de produção poética,
quadrinhas, paródias etcetera. Quando o impasse criativo estava nesse campo, entrava com
meu ‘baú popular’, que felizmente não foi tragado pelos esquemas escriturísticos (Certeau,
2003). Penso ter levado para aquele espaço muitos conhecimentos que tinha de poesia,
advindos de ler, escrever e também ter algum estudo teórico do assunto. Embora nunca
tivesse feito isso antes, sentia-me perfeitamente à vontade lendo as histórias, contando-as
nas aulas. É que sempre gostei muito de ler em voz alta. Minha iniciação se deu na igreja,
ainda bastante pequena. Pela fluência com que lia, o padre constantemente me escalava
para alguma leitura durante a missa. E eu adorava! Creio ter juntado todas as experiências
de minha vida no desempenho da nova função. Estava inteiramente entregue. Ou
enfeitiçada, como diria Cristina Corção.
Os dias em que nos reuníamos para criar as aulas me eram especiais. Extenuantes,
porém divertidos. Penso, lembrando Oswald de Andrade, que “a alegria é a prova dos
nove”. Embora Mário, talvez por estar tomado de entardecer, não se refira àqueles tempos
62 Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa: Rubrica: Literatura, música. Regionalismo: Brasil. Disputa poética em forma de diálogo cantado e improvisado, geralmente acompanhada de música, em que os cantadores se alternam na composição de versos que obrigam a uma resposta da parte contrária, sendo derrotado aquele que se engasga numa rima difícil, titubeia ou fica sem resposta.
89
como especialmente profícuos, para mim, reluziam feito ouro. Trago com bastante nitidez
lembranças do quanto conseguimos criar e reformular o trabalho em vários aspectos.
Agora, através dos meus próprios guardados, posso relembrar certas mudanças que
fizemos em dois anos de trabalho. Do mesmo modo que a partir das fotografias aéreas -
uma visão totalizadora - mergulhamos no colégio, desejo penetrar no cotidiano do nosso
trabalho começando por um olhar sobre seu planejamento formal, que, através dos
‘fuxicos’ levados por cada professor, também foi se transformando ao longo do tempo.
Cada um de nós interferia levando fios das redes de saberes (Alves, 2000; 2002) de que
participávamos e nas quais nos formávamos.
Se compararmos a proposta de divisão anual do Plano trazida por Mário no
primeiro ano de seu retorno à coordenação, 1996, com aquela feita em 1998, depois de dois
anos de trabalho daquela equipe, veremos que houve algumas mudanças. De onde vieram?
Das discussões coletivas que travávamos no cotidiano dos planejamentos.
Proposta de divisão anual do Plano de Literatura em 1996
1996 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série 1ª Unidade Linguagem Narrativa
1- Narrativas de encantamento;
1- Contos de fadas e outras narrativas de encantamento;
1-Linguagem de comunicação de massa: - linguagem dos quadrinhos; - utilização criativa das técnicas de informação; - os meios audiovisuais como fato estético; -letras das canções de consumo
1- A estrutura da linguagem narrativa ns contos e crônicas
2ª Unidade Linguagem Poética
2- Brinquedos falados e cantados Introdução à poesia;
2- Poesia: forma de expressão e forma de conteúdo;
2- Linguagem dos textos folclóricos e outras criações populares: - mitos, lendas etc. - canções folclóricas, parlendas etc.
2- A estrutura da linguagem poética
3ª Unidade Linguagem Dramática
3- Brinquedos dramatizados.
3- Diferentes tipos de teatro: - sombra - vara - fantoche
3- A estrutura da linguagem dramática.
90
Proposta de divisão anual do Plano de Literatura em 1998
1998 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série
1° bim.
Contos de fadas Narrativas contemporâneas Tema: Bruxas
Narrativas contemporâneas: Autores nacionais
Narrativas míticas
2° bim.
Folclore Narrativas contemporâneas Tema: Duendes e gnomos
Narrativas contemporâneas: Autores nacionais
Contos fantásticos (suspense e terror)
3° bim.
Narrativas contemporâneas Fadas (?)
Poesia Quadrinhos Texto dramático Conjunto da escritura; conjunto da ação
4° bim.
Narrativas contemporâneas Tema: narrativas que contenham situações e figuras de infância
Conto maravilhoso
Narrativas contemporâneas (clássicas) Hipertexto (?)
Poesia (?)
A proposta de divisão anual nos era trazida para que a discutíssemos e a tivéssemos
como referência. As mudanças ocorridas entre um ano e outro eram frutos do diálogo
polifônico (Bakhtin,2003) entre nós, professores, que para aquele espaço levávamos nossas
considerações, nossas concordâncias e discordâncias, nossas palavras, enfim.
A proposta levada pelo coordenador em 1996 trazia os traços do trabalho tecido no
passado. Após dois anos de permanência daquele grupo, a divisão anual do Plano mostra
algumas diferenças significativas. Conforme lembra Tereza Prallon, que passou a
participar da equipe de Literatura em 1993, “o trabalho era dividido por ‘temas’”, e não por
‘tipologia textual’, como fazemos hoje. “Ao longo do tempo, nós fomos organizando (...) o
trabalho mais voltado mesmo para literatura.” O que ela quer dizer com isso? Explica que,
quando começou a trabalhar em Literatura, a partir de um determinado tema (por exemplo,
‘temas ligados ao universo da criança de C.A. (S.I.), da 1ª série, da 2ª série...’), o grupo de
professores selecionava os textos a serem usados; havia, também, um trabalho extenso com
‘jornal’ e os ‘textos de curiosidade’ eram freqüentes nas aulas.
Como O monstro do lago Ness, a questão de múmias, mas não múmias enquanto histórias de literatura.(...) O trabalho que a gente tinha na quarta série era de histórias extraordinárias, mas eram histórias “ditas verídicas”, não eram narrativas [literárias]. Como se fossem... Eram textos mesmo ‘de curiosidade’.
91
Então, ao longo do tempo, fomos fazendo certas modificações no trabalho,
passando a uma abordagem focada em ‘tipologia textual’, como diz Tereza, dividindo tipos
de texto de diferentes gêneros (narrativo, poético, dramático) ao longo das séries,
abandonando os ‘temas’. A proposta de divisão anual do Plano de 1998 dá mostras dessas
mudanças, que não pararam por aí.
Tereza lembra, como eu, que
Quando o Mário voltou para a coordenação, a gente teve, na verdade, uma confluência interessante, porque a gente teve um HORÁRIO GRANDE de planejamento em que TODO MUNDO planejava junto... (...) a gente passou a ter momentos de planejamento EM COMUM, nós tínhamos GRUPOS DE ESTUDO em comum e as MESMAS PESSOAS PERMANECENDO NA EQUIPE. Nós tínhamos uma carga horária menor em turma e nós tínhamos OITO TEMPOS, se não me engano, entre planejamento e grupo de estudos. Porque a equipe estava junto, nós podíamos estudar textos ligados ao nosso trabalho, planejar com maior tranqüilidade as atividades que a gente ia fazer, nós criávamos as atividades, algumas A PARTIR desses estudos que a gente fazia, nós tínhamos um tempo em comum maior pra montar o trabalho e ir avaliando aquilo que nós fazíamos. Isso quando o Mário entrou. Aos pouquinhos, a gente foi perdendo isso, não é?
Naquele tempo, ainda tínhamos oito horas-aula, num mesmo dia, para nos
reunirmos (hoje, são quatro). Muitas vezes, passávamos horas tentando inventar uma forma
interessante de trabalhar um determinado texto e vivíamos juntos a angústia de não
conseguir. Então chegava um momento em que alguém tinha uma idéia. À idéia primeira
se costurava outra, e depois mais outra, de modo que o ‘fuxico’ se arrematava. Talvez
vivesse, já num outro espaço-tempo, a satisfação do ‘nada pronto’ aludido por Mário ao
lembrar-se dos primórdios. O prazer de me sentir também autora das aulas, e não apenas
executora de algo pensado por outrem, o “script de autoria alheia” imposto aos professores
de que fala Lajolo (2002).
Um Plano, no entanto, não passa de esqueleto, não passa de projeto. Como uma
gramática, sustenta, mas não personifica. Ou, como um risco para um bordado, carece da
intervenção do artesão para atualizar-se. Um dia, tive vontade de anotar os títulos que
havíamos usado para abordar os contos de fadas na primeira série, com os principais
conteúdos que desejávamos focar, em 1997 e 1998. Por sinal, os alunos participantes da
pesquisa estavam, em 1997, justamente na primeira série. Eis os títulos:
93
Verso da figura anterior
As páginas aci
tecido muscular que se
o desenho riscado. Ve
intenções formais que
articulações entre as ca
desejávamos focar nas
ma mostram um pouco mais. Talvez possam ser comparadas ao
sobrepõe ao esqueleto. Ou às primeiras agulhadas do artesão sobre
mos uma diversidade de histórias, clássicas e contemporâneas, e as
tínhamos ao trabalhá-las em sala de aula. Podem ser notadas certas
racterísticas das narrativas e os elementos estruturais dos textos que
aulas. Mas ainda não dizem muito.
94
3.1- ‘Fuxicos’ Da Imaginação
Muitos anos depois disso, trabalhando na biblioteca em 2004, por um acaso,
encontrei um “tesouro”: reunidas em forma de livro, estavam à minha frente justamente os
textos que a primeira série de 1998 escreveu depois do ‘bingo’, quando fechamos a
Unidade Contos de Fadas. Aquele material foi um ‘achado de campo’ que me surgiu na
imprevisibilidade do cotidiano. Como costumávamos fazer, reunimos as histórias escritas
pelos alunos, fizemos uma capa artesanalmente e depois doamos nossos ‘livros’ para a
biblioteca. Como neste outro trabalho:
Livros’ escritos a partir da história Os casamentos da Bruxa Onilda. 2ª série, 1997.
Seis anos passados, reencontrei nossos ‘livros’, sem que os estivesse procurando.
Eu ainda não sabia que também reencontraria justamente com alguns dos autores daquelas
histórias durante a pesquisa. Surpresas do deus Tempo. Lendo o ‘livro’, pude aproximar-
me, ainda que na distância temporal, do trabalho vivo, de um bordado feito também pela
criança, não mais apenas um sistema músculo-esquelético, não mais apenas risco e
primeiros pontos, mas algo dos movimentos e da imagem que se formaram naquele
presente.
Veja o que escreveu Clara63:
63 “Era uma vez uma princesa que vivia numa torre que se chamava Tatiane. Ela queria um anel do pai. O pai atendeu o pedido da filha. Aí a mãe da princesa faleceu e o rei e a princesa ficaram muito tristes. Mas tinha
95
N
cartões,
comum
muito a
uma madtodos do
osso bingo não continha numerais, pois era o ‘bingo dos contos de fadas’. Nos
cuidamos de inserir personagens-tipo, lugares, objetos e sentimentos/ações
ente presentes nesses contos. Esse jogo é sempre um acontecimento que mobiliza
s crianças. Essa, como algumas outras, é uma atividade apreciada pelos alunos, de
rasta que se chamava Amanda. E o nome do rei se chamava Vinícius, mas o rei matou a madrasta e reino viveram felizes para sempre.”
96
modo que faz parte da nossa ‘galeria de clássicos’, tomando uma expressão usada por
Cristina Corção. Interessante que a disputa não é pelo campeonato; na verdade, ‘disputa’
não é o termo exato, porque as crianças não se importam em não serem as primeiras a
completar o cartão, mas se envolvem impetuosamente em completá-lo, ainda que seja por
último. Muitas vezes durante esses anos, observei que, mesmo acabando em último lugar,
elas gritam em polvorosa: “É campeão, é campeão!”
Quando ‘canto’ as palavras, costumo fazer rodeios para excitar a imaginação e
mobilizar os conhecimentos. Por exemplo, em vez de falar simplesmente ‘princesa’, posso
dizer: “É um personagem...” “Rei!” “Rainha!” “Príncipe!” Antecipam-se. “É mulher...”,
restrinjo. “Sempre encontra um príncipe encantado.” Ou a definição que na hora me
ocorrer.
Depois do jogo, hora de escrever. O novo jogo: cada um copiar na sua folha as
palavras que estavam no cartão do bingo e depois inventar uma história em que aqueles
elementos apareçam. Mas é um trabalho de certo modo difícil. Um desafio à capacidade de
articulação, num texto, dos elementos colocados nos cartões que ganharam, num estágio
ainda inicial de conhecimento da organização da linguagem escrita.
Gosto de pensar que ler um texto é penetrar caminhos no bosque da narrativa, como
quer Eco (2002). A narrativa mesma é o bosque. E “um bosque é um jardim de caminhos
que se bifurcam”, segundo a metáfora de Borges (apud Eco,2002). Desejo fazer um
mergulho no bosque de Clara. Como leitora, vou escolher meus caminhos, certa de que há
outros possíveis. E que caminhos me chamam? Aqueles das redes de saberes que se
imbricam na tessitura do conhecimento.
Conhecendo parte do contexto extra-verbal (Bakhtin,1976) que a levou a ser
produzida, quando olho a história, vejo certos enredamentos. A menina demonstra ter feito
algumas operações intertextuais ao tecer o enredo. Para começar, a história de Clara tem o
nome do velho livro que costumamos usar nas aulas: Fábulas Encantadas. Um livro antigo
de tamanho grande cheio de histórias de Grimm, Perrault, Andersen e com várias
ilustrações de página inteira. Mas o texto dialoga com os contos de fadas de outros modos,
que talvez tenham a ver com o que chamo de “experiência estética” de ouvir histórias.
A primeira ‘conversa’ que vejo aparecer é com Rapunzel. Tal como a personagem
do conto, a princesa da história vivia dentro de uma torre. A segunda possibilidade de
diálogo que vejo vem de que, durante as aulas, sempre comparamos as “coisas parecidas
que existem entre as histórias”: o tempo indefinido do “era uma vez”, a estrutura do
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enredo, os personagens-tipo, herói, o obstáculo, a ajuda, o final feliz. O texto de Clara nos
recebe com o padrão formal dos contos fadas e se despede da mesma forma. Talvez a
necessidade de usar a palavra ‘tristeza’ a tenha conduzido para a procura de uma saída,
mas o interessante é que, através da morte da mãe, Clara faz aparecer um obstáculo a ser
vencido: a madrasta, um típico personagem opositor dos contos, da qual ela não diz nada,
talvez porque o próprio personagem seja tão carregado de significados compartilhados que
tenha julgado dispensável.
Além dessas, outras trilhas me convidam, aquelas que conjecturo que a menina
desejava experimentar. Mais comum em crianças no início da alfabetização é escrever com
orações coordenadas, pela menor complexidade das relações sintáticas nelas presentes.
Mas, nos contos de fadas, os períodos são longos e costumam conter relações sintáticas
mais complexas (ao menos nas boas versões disponíveis). E Clara começa a escrever a
história tentando construir um período composto com duas orações adjetivas: “Era uma vez
uma princesa que vivia dentro de uma torre que se chamava Tatiane.” Parecem-me
hipóteses testadas no início da caminhada pelo bosque da escritura. Forma que eu não pedi,
mas que parece compor a rede de possíveis aprendizagens escolares.
Todavia, há algo no texto que escapa à ‘rede do aprendido’ e que não diz respeito
apenas à história de Clara. Ela, como várias outras crianças da sala, usa os nomes dos
colegas de turma para os personagens. Se tratamos a escrita de forma lúdica, por que não
arranjar um modo de se divertir ao escrever? Vejo que aquelas crianças, por si mesmas,
trataram de tecer uma outra rede, onde podiam brincar com os colegas (ou mesmo
provocá-los), colocando-os para participar daqueles enredos.
Penso que alguns traços do que Clara viveu nas aulas aparecem no seu texto.
Acredito, como Larrosa (2004), que vivemos uma experiência quando o vivido nos deixa
marcas, e creio estar vendo algumas delas na história de Clara. É verdade que, em casa, a
mãe também costumava ler histórias para ela, o que, sabidamente, significa muito no
estabelecimento das relações iniciais das crianças com a leitura. Mas Clara, nove anos
depois de ter escrito esse texto, ao se lembrar das aulas de Literatura, me disse sorrindo e
com os olhos obliquamente voltados para o alto:
Ah, eu lembro que a gente fazia vários textos, várias redações, e as redações foram se aprofundando na quarta série. (...) E a gente fazia historinhas com personagens, fazia um tipo de teatrinho com os personagens, fazia os personagens, a gente desenhava, recortava as coisas, inventava histórias, criava nossas próprias histórias... Nossa imaginação voava com isso!
98
Antes de dizer, Clara falou que lembrava “mais ou menos” de como eram as aulas.
E, a seguir, despejou sobre mim essa torrente de recordações, acrescida de uma opinião,
proferida no plural: “Nossa imaginação voava com isso”. Mais de uma vez, durante a
entrevista, ela se referiu aos ‘vôos da imaginação’ que vivia. E vive ainda hoje. Uma
imaginação que, segundo ela, além de voar, “flui” em situações de escrita: “A criatividade
voa! Quando eu pego, pego mais de trinta linhas pra fazer...”, me disse rindo.
A imaginação é elemento importantíssimo no cotidiano do trabalho que
pretendemos fazer com a linguagem. A literatura é espaço privilegiado para os vôos da
imaginação, de modo que tratar de textos literários como se trata de textos referenciais é
um equívoco que amputa suas possibilidades expressivas e, por conseguinte, a liberdade do
leitor. Como disse no prólogo, acredito que, na leitura literária, “o verbo tem que pegar
delírio”. Ou somos nós que temos que alcançar os delírios do verbo. Porque estamos diante
de um tipo de escrita que subverte certas lógicas de relações entre as coisas do mundo, que
transpõe o real imediato, que foge à modalidade puramente referencial do discurso, dando
forma a algo novo, estabelecendo novas coerências no interior da própria linguagem. O ser
humano cria não apenas porque quer, porque gosta, mas sim porque precisa. “O homem
(...) só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma,
criando.” (Ostrower,1991, p.10).
Gostaria de trazer, agora, o texto escrito por outro aluno da turma de Clara: Pedro.
Pretendo focar, através dele, alguns ‘vôos da imaginação’ e certas marcas de fios de outras
redes de conhecimentos articulados no texto.
No dia em fui entrevistar Pedro, levei o ‘livro’ da turma para mostrar-lhe seu texto.
Num certo momento da conversa, mostrei. “Achei um tanto quanto louca!”, disse ele,
rindo, ao ler a história64.
64 “Em um castelo existia uma princesa com muito amor e foi batizada com o nome de princesa Amorizada. Tinha até uma música homenageando (Ai, que alegria, a minha filha vai se casar com o irmão!!! !!!) – ui – ela disse – acabou a ópera. Então vou embora, não vou ficar aqui à toa. No outro dia ela se casou e deu para o marido uma árvore de aliança.” (ver texto na página seguinte)
99
Olhando para as palav
não ajudavam muito; na verda
complexa rede de operações
trabalho. O texto de Pedro co
bastante inusitada. Parece que
da narrativa, escrita no verso
o que a princesa “deu para o m
É uma história que, de
escolares. O enredo tem algo
instituição escolar, é aceito co
nem termina com “e foram fel
Por outro lado, seu te
contos de fadas feita nas aula
parece não temer inventar. A
ras (amor, princesa, árvore, alegria) do cartão, sinto que elas
de, vejo-as como obstáculos. Por isso, valorizo mais ainda a
de que o menino se valeu para conseguir inseri-las no
ntém todas as quatro palavras propostas. Mas de uma forma
ele assumiu o desafio proposto e o levou até a última linha
da página, a qual ele pede ao leitor para virar. Ali, saberemos
arido”: era “uma árvore de aliança”.
um certo ponto de vista, quebra com algumas expectativas
meio nonsense, que nem sempre, na lógica predominante na
m tranqüilidade. Também, não começa com “era uma vez”
izes para sempre”.
xto traz várias marcas de outras redes, que não a leitura de
s. Além disso, ou junto a isso, é uma história em que o autor
começar pelo inusitado nome de batismo da personagem:
100
Princesa Amorizada. O autor, com a maior simplicidade, rompe com o clássico tabu do
incesto, assunto tratado, por exemplo, no conto Pele de Asno65, lido nas aulas. Essa
princesa veio a se casar justamente com o irmão, e com a anuência paterna ou materna; o
pai (ou mãe), além de concordar com a união, parece ficar tão alegre que aparece como
sujeito da enunciação, na ópera que homenageava a princesa: Ai que alegria a minha filha
vai se casar com o irmão!!!!!!
O narrador afirma que a música era uma “ópera”, não qualquer canção. De onde
veio esse conhecimento? De outro lugar, não de nossas aulas, asseguro. Do mesmo modo,
percebo que a forma da escrita traz traços da linguagem dos quadrinhos e da animação. O
fio narrativo, que começa em terceira pessoa, é quebrado logo depois, pois o autor insere o
discurso direto, com personagens falando, cantando, e cantando com muitos pontos de
exclamação, como nos quadrinhos. É também um texto com muito movimento, como nos
desenhos animados a que as crianças assistem.
Pensar nos rompimentos presentes no texto - com a norma, com o previsível, tanto
nos aspectos lingüísticos quanto sociais - leva-me a Barthes (2002), que identifica na
língua o lugar do poder, embora não o vejamos. “Esse objeto em que se inscreve o poder,
desde toda a eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão
obrigatória: a língua” (ibid.,p.12). O fascismo da língua não está, conforme o autor, no que
ela nos impede de dizer, mas na forma como nos obriga a nos expressarmos, no que ela nos
obriga a dizer66. As crianças não sabem de Barthes, mas sabem de rompimentos.
Os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; (...) em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão colhendo aquilo que se arrasta na língua. (ibid., p.15)
Quando o menino de sete anos nos brinda com o nonsense, penso que está, de certo
modo, operando diretamente onde Barthes diz que o autoritarismo da língua deve ser
combatido: dentro dela. Através do rompimento com o gregarismo do signo, através dos
desvios, da trapaça com a norma.
Mas a nós (...) só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite
65 Conto de Perrault cuja ação é desencadeada devido à decisão do pai de casar-se com a própria filha. 66 Esta afirmativa de Barthes se apóia nos estudos de Lingüística feitos por Jakobson.
101
ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (ibid.,p. 16)
Literatura, escritura ou texto. Barthes usa indistintamente os três termos para se
referir ao “grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever.” Qualquer
escrita? Não, aquela “em que as palavras não são usadas como instrumentos, mas postas
em evidência (encenadas, teatralizadas) como significantes”, como esclarece Leyla
Perrone-Moisés, no pósfácio de Aula (2002).
Pedro está com quinze anos. Ao conversarmos, descobri que ele, até hoje, é leitor
de quadrinhos, como seu pai, o qual, nas suas palavras, “é ‘quadrinhomaníaco’.” Além
disso, gosta também de escrever roteiros, inclusive para histórias quadrinhos. Talvez esses
traços já despontassem no seu texto da primeira série. Talvez.
Fato é que não podemos prever as ressignificações que as crianças farão daquilo
que lhes apresentamos, tampouco amarrá-las numa estrutura rígida previamente
determinada que, se não for seguida, está errada. E, penso, quantas vezes nós, professores,
não procedemos assim...
Chamo Calvino (apud Geraldi, 2005) para contribuir para esta reflexão sobre/em
rede, dizendo:
... quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (ibid.,p.212)
Até onde as práticas pedagógicas (des)convidam as crianças a combinarem
experiências, informações, leituras e imaginações que estão fora do previsto/previsível?
Até onde conseguimos ler os textos escritos pelos alunos atentando para a intertextualidade
neles presentes e procurando farejar os enredamentos que ali estão? Até onde conseguimos
nos despir das algemas da norma e libertar nossos olhares para ali encontrar, quiçá,
riquezas escondidas além das estruturas formais mais ou menos bem empregadas?
Ostrower (1991) diz que os processos de criação relacionam toda a experiência
possível aos indivíduos. De caráter basicamente intuitivo, “tornam-se conscientes na
medida em que são expressos”, que lhes damos forma.
102
Ainda que permaneçam subconscientes, os processos criativos teriam que referir-se à consciência dos homens, pois só assim poderiam ser indagados a respeito dos possíveis significados que existem no ato criador. Entende-se que a própria consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando no exercício de si mesma, num desenvolvimento dinâmico em que o homem, (...) ao transformar a natureza, se transforma também. E o homem não somente percebe as transformações como sobretudo nelas se percebe. (op.cit., p.10)
Bastante corriqueiro nos momentos em que dialogamos sobre as histórias é surgir a
pergunta: “Isso é verdade, tia? Isso aconteceu mesmo?” Ao que costumo responder mais
ou menos assim: “É verdade na nossa imaginação.” Algumas crianças têm a necessidade
de indagar sobre isso, para ir tecendo a compreensão do mundo da literatura, de como a
linguagem o constitui e nele se constitui, penso. Acredito muito na importância desse tipo
de diálogo. A intenção é não afirmar que haja uma separação rígida entre o que
imaginamos e o que é real (ou verdade, usando a palavra com que as crianças expressam).
Acerca disso, Larrosa (2002, p.135) lembra que a fronteira entre imaginário e real nem
sempre existiu; houve um tempo em que a imaginação era a principal mediadora entre o
sujeito e o conhecimento. Mas a ciência moderna modificou por completo seu estatuto,
enclausurando-a no âmbito informe do psicológico, subtraindo-lhe o valor cognoscitivo.
Clara me disse do prazer que tem em ler – é capaz de se emocionar diante um texto,
na interação com a obra. Fala, por exemplo, do quanto foi tocada por uma leitura indicada
pelo atual professor de Português e Literatura, já no primeiro ano do ensino médio: “O
romance de Tristão e Isolda. Muito lindo, muito lindo... Eu chorei quando eu terminei de
ler, eu chorei! [riso] Eu me debulhei em lágrimas!”
Ela afirma que adorava e ainda adora escrever e, além disso, ama a linguagem
musical. Está com quinze anos e tem um sonho: “tocar flauta transversa na Orquestra
Sinfônica Brasileira.” Diz, sorrindo, que está “com muita expectativa de fazer isso!” Seu
caminho pelas vias musicais começou ainda durante o “Pedrinho”.
Eu comecei no “Pedrinho” com a professora Cida, na quarta série. E desde aí eu toco flauta transversa, entrei no grupo de flauta, a gente toca a flauta doce soprano, a doce contralto e a flauta doce barroca (tenor). (...) tem um espaço musical aqui no colégio que tem essa oportunidade pra gente, dá essa oportunidade pra poder a gente desenvolver a nossa... (como se diz?) a nossa criatividade, a nossa curiosidade musical.
103
Diz não saber de onde vem sua criatividade, mas acha que a escola contribuiu
bastante para isso. “Ah, [a escola teve] muita, muita importância! O meu ‘Pedrinho’ foi
muito bom! Muito bom pra desenvolver tudo isso!”
Clara não foi a única que destacou a importância que as aulas de Atividades no
“Pedrinho” tiveram para a sua formação. Costumo dizer que, nessa pesquisa, atirei num
alvo e acertei em vários, como esse das Atividades, do qual tratarei adiante. Ana Beatriz67
fala das aulas de Literatura:
Engraçado que, lá no “Pedrão”, na hora em que eu cheguei lá, na quinta série eu não tive partes, assim, de Idade Média, mas na sexta série começou a ter Idade Média, tempo das Expedições e tal, aí eu me lembro que eu respondia um montão de coisas! Cara, foi a melhor série que eu tive em História por causa disso! Porque eu me lembro de TODAS as coisas que eu passava aqui... Aí eu sabia por que eles [os navegantes] tinham medo... Eles nunca enfrentavam o mar, né? DEPOIS que eles começaram a perder o medo do mar, que eles pensavam que tinha bichos dentro do mar que engoliam as pessoas e depois não voltavam mais...(...). Eu me lembro também que eles não passavam do horizonte, achavam que iam cair do outro lado... [sorri] Bem divertido!
A menina está se reportando a conteúdos que foram trabalhados no ano 2000,
quando cursava a quarta série. Para ela, foram “bem divertidos”, o que vai ao encontro do
que pretendemos, a leitura como um jogo (Barthes, 2002) . Como, em 2000, fazia
quinhentos anos da chegada de Colombo à América, inserimos, na Unidade Mitologia do
currículo da quarta série, vários textos que tratavam de navegação e dos mitos marinhos
que assombravam os navegantes de então. Ao final, fizemos uma atividade em que cada
um deveria criar um personagem monstruoso68 e lhe atribuir algumas características69,
delineando os traços básicos do personagem. Assim:
67 A aluna cursa o primeiro ano do ensino médio e está com dezessete anos. 68 O desenho apresentado é de outra aluna da turma, e aqui está porque o de Ana Beatriz não ficou comigo. 69 Nome: Brócolis; local de origem: Ásia; características: Ele come gente com sua língua, hipnotiza com os olhos e arranha com suas garras (vide ilustração na página seguinte).
104
Depois diss
aparecesse. Eis o te
Lisb
D. Mmais
quanmuittínhacantao caapenentão“coisque eleão
70 O desenho que fez ntendo o cuidado de made fichário.
o, o desafio foi criar uma ‘aventura marinha’ em que o monstrengo
xto que Ana Beatriz70 escreveu como rascunho:
oa, 24 de setembro de 1500
Hoje, eu Ana Beatriz Tavares escrevo esta carta ao excelentíssimo rei anuel para dizer que avistamos terra nova, não sabemos se tem riquesas vou ditar como foi a viagem.
Saímos dia 22 de agosto, estava indo muito bem com 13 caravelas do teve um temporal o mar começou a ficar muito forte, já estávamos o longe para voutar a terra. O mar tenebroso estava ainda muito forte, mos perdido uma caravela quando avistamos sereias que estavam ndo, eu pedi que tampasem os ovidos para não serem enfeitiçados pelo
nto delas, mas duas caravelas com homes foram enfeitiçados, ficamos as com dez caravelas, derepente perdemos 4 caravelas no redimuinho, ficamos com 6 caravelas. Foi aí que avistamos terra, mais vi uma a” vuando e atacou as 4 caravelas. Só tendo duas caravelas atacou a stava do nosso lado / essa “coisa” apilidamos de manon por ter jubas de nas costas corpo de homem, pernas de cavalo, cara de papagaio e
ão ficou comigo, mas o rascunho do texto, sim. A fim de facilitar a leitura, transcrevi, nter a grafia como no original. Ali, o texto ocupa trinta e uma linhas de folha grande
105
brassos com escamas / quando aviste que a “coisa” estava vindo para atacar a minha caravela eu e minha amiga nos jogamos ao mar sendo só nós duas mulheres na embarcação geral. Vimos um rapas pular também, e resolvemos sauvalo, nos três nadamos até a borda das novas terras e estávamos sauvos / pegamos os distroços das duas caravelas e fisemos um barco que foi o que nós voutamos a Lisboa.
“A imaginação está ligada à capacidade produtiva da linguagem”, diz Larrosa
(2002, p.135). Recorda que sua raiz, fictio, deriva de facere, fazer, de modo que aquilo
que ficcionamos é algo fabricado, ativo. “A imaginação, assim como a linguagem, produz
realidade, a incrementa e a transforma.” Ana, em seu texto, incorpora o personagem-
narrador. Transforma-se numa marinheira, que começa a escrever ao rei de Portugal à
maneira do escrivão Pero Vaz de Caminha, carta que, provavelmente, conheceu nas aulas
de Estudos Sociais. Transpõe o tempo e o espaço. Vai à Lisboa do século XV, dialoga com
a aventura de Ulisses na Odisséia, trazendo ao texto a ameaça das sereias, e encontra
Manon, o monstrengo forjado na sua imaginação.
Se fosse deter-me em aspectos formais, como ortografia, pontuação, paragrafação,
poderia dizer que é um texto de certo modo complicado, que ainda precisa melhorar. Mas
uma produção textual há que ser considerada para além da forma. Embora o texto
apresentado não represente exatamente o padrão de escrita dos alunos do “Pedrinho”, será
por questões desse tipo que os professores do segundo segmento se espantam com certos
textos escritos por nossos alunos, conforme o que disse a coordenadora de Língua
Portuguesa do segundo segmento me leva a concluir? Parece-me que, se entendemos o
conhecimento como tecido em rede, há razões para pensar que outros fios podem ser
puxados nos anos posteriores da escolaridade, apoiando-se na “bagagem de leitura muito
grande” que a coordenadora reconhece nos alunos oriundos do “Pedrinho” e aprofundando
suas experiências de reflexão sobre a língua.
Os conhecimentos adquiridos ludicamente foram resgatados, anos depois,
contribuindo para que Ana Beatriz se saísse bem nas aulas de História. Isto é de certo
modo avalizado também pela coordenadora, quando diz:
Por exemplo, esse livro que a quinta série leu, esse dos mitos e lendas (...) Gostaram muito. Até porque eles já conheciam algumas lendas e alguns mitos, era um assunto sobre o qual eles poderiam debater muito além, parece que eles já têm algum conhecimento, principalmente os que vêm do “Pedrinho”, algum conhecimento sobre isso têm. (...) Eles vêm com informação, aí eles recuperam nessas leituras, eles gostaram.
106
Até que ponto os conhecimentos com que as crianças chegam ao segundo segmento
podem ser tidos simplesmente como ‘informações’? “Porque eu me lembro de todas as
coisas que eu passava aqui”, diz Ana Beatriz. Certamente ela não lembra tanto, mas a frase
enfática que enunciou me remete ao que diz Larrosa (2002) a respeito da potência
formativa que pode ter a leitura. As coisas não passavam fora do sujeito que era ela. Ao
invés, ela passava as coisas, isto é, as coisas se passavam nela: viveu experiências?
Consumimos arte, mas a arte que consumimos nos atravessa sem deixar nenhuma marca em nós. Estamos informados, mas nada nos co-move no íntimo. Pensar a leitura como formação supõe cancelar essa fronteira entre o que sabemos e o que somos, entre o que passa (e o que podemos conhecer) e o que nos passa (como algo a que devemos atribuir um sentido em relação a nós mesmos). (id., p. 136)
Gostaria de refletir um pouco sobre a questão trazida por Larrosa. Àquilo que nos
passa, nos toca, nos acontece Larrosa chama de experiência. A noção de travessia, de
passagem de um lugar a outro, com todos os riscos e perigos que disso possa advir, está
enraizada no cerne dessa palavra 71, lembra o autor (2004). O sujeito da experiência tem
algo de pirata, esse “ser fascinante que se expõe e atravessa o espaço indeterminado e
perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião” (ibid.,
p.162). A experiência demanda envolvimento, entrega. O sujeito da experiência “é um
território de passagem” (ibid., p.163), que se deixa tocar, que se ex-põe.
A leitura, quando se torna experiência, é formativa, nos constitui como sujeitos, nos
lança aos mares desconhecidos da existência, nos impele a querer buscar sempre mais, se
inscreve em nossas subjetividades de forma oposta à obviedade de informações
simplesmente colhidas em textos, sejam eles quais forem. A leitura, quando é experiência,
deixa marcas naquele que lê.
Depois de tantos anos, quais as representações que os ex-alunos fazem em torno das
aulas de Literatura no “Pedrinho”? Para André, “a aula de Literatura era tipo um
santuário”, onde ele entrava e encontrava com os assuntos de que mais gostava. Metáfora
densa, que nos remete ao sagrado. Ana Beatriz, que hoje tem dezessete anos, sorrindo, me
disse, esticando a vogal, que “adoraaava a aula de Literatura” e mencionou particularmente
71 O autor faz interessante abordagem da etimologia da palavra. Vem do latim experiri, provar. O radical periri está também em periculum, perigo. À raiz per relaciona-se primeiramente a idéia de travessia e, depois, a idéia de se pôr à prova. A palavra grega peiratês, pirata, tem essa raiz.
107
as atividades plásticas decorrentes das histórias ouvidas. Já Clara disse que o que mais a
agradava nas aulas era o momento de ouvir as histórias.
3.2- Ouvindo Histórias
Contando “Ziraldo” numa turma de 3ª série (2004).
Aproveito a fala de Clara para adentrar e parar um pouco noutra trilha do mesmo
bosque: que magia existe nessa atividade tão antiga quanto a linguagem, que é a narrativa?
Que sedução, que fascínio o ato de parar um pouco o movimento frenético e sentar-se em
roda para ouvir alguém contando uma história exerce sobre crianças das mais diferentes
idades? Qual pode ser a potência formativa desse ritual?
As aulas de Literatura costumam agradar bastante as crianças. É difícil observar
nelas o que chamaria de indiferença. Quais seriam as razões para que isso aconteça? Será
porque, nas salas, temos espaço para sentar ou deitar no chão? Será porque ouvir alguém
contando é gostoso? Será pela forma como contamos as histórias ou lemos os poemas
ou...? Será porque conversamos coletivamente sobre o que foi ouvido? Será pelo teor de
ludicidade que procuramos imprimir ao trabalho com os textos? Fato é que, de vez em
quando, espontaneamente alguém vem me dizer o quanto gosta.
108
No processo de pesquisa, quando era possível, anotava um pouco do que acontecia
no cotidiano, para que não se perdesse no turbilhão de ocorrências diárias. Alguns desses
registros talvez possam auxiliar na compreensão do que as crianças sentem.
Em novembro de 2004, numa ida rápida ao bebedouro enquanto dava aula,
encontrei João Lukas, um menino da primeira série, que dali saía. Virou-se e me disse:
“Oi, tia Sônia! Depois de amanhã tem aula!” Respondi apenas: “É?” E então ele
arrematou: “Eu sei TODOS os dias que tem a sua aula!”
Eu dava aulas para a turma de João Lukas nos dois últimos tempos do dia, após o
recreio. Quando isso acontece, as crianças vão deixando as mochilas na sala antes de irem
merendar. Naquele dia, eu ainda estava sentada à mesa escrevendo algo e Matheus, um
outro da mesma turma, parou à minha frente e falou: “Sabia que eu gosto muito dessa
aula?” “É? Por quê?”, perguntei. “Porque aqui é mais forte.” “Mais forte como?” “Ah, não
sei, eu GOSTO.”
Em outra turma, a 108, na algazarra da chegada à sala, alguém comentou que
gostava de Literatura e então Giovanni, pulando, disse assim: “Eu não gosto de Literatura.”
E pausou. “Eu ADORO!”, completou, continuando a pular.
Antes disso, no ano de 2003, houve uma greve curta da qual, como de costume,
participei. A professora da 202 no Núcleo Comum não aderiu, de forma que a turma vinha
tendo aulas quase normalmente. Eu trabalhava com eles numa quinta-feira, nos dois
tempos “do meio”, sendo os demais ocupados pela professora do Núcleo Comum.
O reinício das aulas foi justamente numa quinta. Naquele dia, todas as crianças da
turma chegaram à minha sala com uma carta para mim, que haviam escrito nos dois
tempos anteriores, junto à professora de Núcleo Comum, que parece ter aproveitado a
ocasião como uma oportunidade para uma produção escrita significativa. Eles me ‘fizeram’
ler todas elas para o grupo ouvir.
As ‘cartas’ eram decoradas por pequenos desenhos. Flores, balões, estrelas,
corações coloridos reforçavam a imagem de alegria e festa expressa nos textos. Parece que
o imaginário das crianças em relação às aulas transita por esse campo semântico. Veja a de
Karina72:
72 Diz o texto: “Querida Sônia, eu estava com saudade de você e das histórias que você conta para a gente e apesar delas serem grandes são legais igual a você. Você é a melhor professora de que eu já tive de literatura, sabia? Um abraço da sua aluna Karina.”(Vide ilustração na página seguinte.)
109
Várias das cartinhas se referiam às características das histórias e ao prazer de ouvi-
las. As histórias que eu contava eram mesmo grandes, faziam parte do livro As mil e uma
noites, porque, na segunda série, costumamos fazer um longo trabalho com esses contos
maravilhosos. Mas as crianças não se cansam.
Os bilhetes, de forma geral, falavam da saudade da professora e da saudade das
aulas de Literatura. Não faço uma leitura personalista da saudade das crianças. Lembro que
era boa a relação que tínhamos, cujos laços se reforçavam pelo fato de eu ter sido
professora da turma também no ano anterior. No entanto, não vejo a saudade da professora
apartada da saudade das aulas de Literatura, das histórias que, através de mim, eles
passavam a conhecer. Cotejando todas as falas que me chegaram por meio das cartas,
parece claro que ouvir histórias é um dos motivos pelos quais as crianças são atraídas para
a atividade. André, por exemplo, me disse assim: “Eu sempre gostei de ouvir, de ler, de
escrever... Era muito bom ouvir... Eu gosto, gosto muito.”
Ao escrever sobre isto, sou mais uma vez levada a me recordar de meus pais,
camponeses analfabetos e excelentes narradores, que, nas já longínquas noites da minha
infância, costumavam reunir os filhos para nos contar casos. Eram sempre narrativas
fantásticas ou cotidianas, povoadas de mistério e experiências de um tempo quase mágico
110
vivido por meus antepassados, coisas que diziam ter acontecido lá na roça de minhas
origens e que eu, naquele tempo, e mesmo depois de adulta, muitas vezes pedia, como hoje
ouço de meus alunos, assim que acabam de ouvir certas histórias: conta de novo!
Já não posso lembrar somente do que vivi. Na rede de minha existência, outros fios
se entremearam, trazendo-me vozes que vieram de mais longe, saberes outros. Pensar
sobre isso me impele a evocar Benjamin (1996), que reflete sobre o valor da experiência
comunicada aos jovens e a asfixia que se operou nesse processo pela sobreposição da
técnica ao homem.
Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que sabem contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará sequer lidar com a juventude invocando sua experiência?(ibid.,p.114)
Benjamin afirma que “a experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que
recorreram todos os narradores” e que “entre as narrativas escritas, as melhores são aquelas
que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos”(ibid.,p.198). Contos de fadas, contos maravilhosos, contos folclóricos, histórias
mitológicas. Narrativas fundadoras espalhadas no cotidiano das aulas de Literatura,
ocupando lugar privilegiado no currículo que tramamos. Será uma forma de resistência à
“pobreza de experiência”? Em caso afirmativo, que potência terá para interferir na
formação de nossas crianças?
Também não posso deixar de me referir a Manguel (2002), que, ao recuperar a
história da “leitura ouvida”, lembra de sua própria infância, das noites em que sua babá lia
para ele “os aterrorizantes contos de fadas dos irmãos Grimm”, quando por vezes ele
dormia, outras se excitava para descobrir rapidamente o que aconteceria na história.
Mas na maior parte do tempo eu simplesmente gozava a sensação voluptuosa de ser levado pelas palavras e sentia, num sentido muito físico, que estava de fato viajando por algum lugar maravilhosamente longínquo, um lugar que eu dificilmente arriscava espiar na última e secreta página do livro. (ibid., p. 132)
O prazer por ele sentido foi bloqueado quando tinha “uns nove ou dez anos” devido
ao que lhe disse o diretor de sua escola: ouvir alguém ler só é apropriado para crianças
pequenas. “Somente muito mais tarde, quando a pessoa amada e eu decidimos ler um para
111
o outro (...), foi que recuperei a delícia havia muito esquecida de ter alguém lendo para
mim”, diz (ibid., p.132).
Já em 2005, numa segunda-feira às 8:30, dois alunos da 403 chegaram à sala antes
dos outros. Estava sentada escrevendo e ouvi um dizendo para o outro: “Tava doido pra
aula...” Indiscretamente, me intrometi: “É? Por que, Alden?” “Porque essa é a melhor aula
que tem.” “Por quê?” “Porque eu gosto de ouvir história.” Alden confirma Manguel. Como
também muitas outras crianças que tenho conhecido.
A professora Júlia, a partir de 1996, quando deixou de trabalhar com Literatura no
colégio, passou a dar aulas na terceira ou quarta série. Na conversa que tivemos durante a
entrevista, abordou a “relação de afeto” que as crianças criam com certos livros.
A criança, por exemplo, que vai pra sala de aula e que vai ouvir uma história que foi contada em Literatura, ouve de novo aquela história com MUITO MAIS PRAZER! Às vezes, por exemplo, uma história que já foi contada no C.A. e eles voltam a ouvir na segunda ou na terceira série, é... Retoma,(...) retoma uma coisa gostosa que ele viveu na vida dele. O livro tem esse papel.
Continuando o ‘fuxico’, perguntei-lhe como ela, do lugar de professora de
Português há tantos anos, vê as influências do trabalho de Literatura na formação das
crianças. Respondeu – e com ela concordo – que, por trabalharmos somente ali, perdemos
um pouco o referencial, não temos muitos termos de comparação.
Eu acho que a gente só tem esse referencial quando entram alunos novos na escola e ficam enlouquecidos quando vêem livros rolando pela sala e crianças comentando sobre livros e OUVINDO HISTÓRIAS COM ATENÇÃO, porque ouvir uma história parece uma coisa muito simples, mas não é. Exige todo um trabalho de atenção, uma postura determinada, é um ritual ouvir uma história. E as crianças têm essa idéia do ritual muito entranhada nelas: eles gostam de ouvir história e eles SABEM ouvir uma história.
Júlia, enquanto fala, relembra experiências que fazem parte do seu passado como
professora de Literatura. Hoje em dia, não levamos mais contadores de histórias ao
colégio. Apesar disso, reconheço no que ela diz minha própria experiência em sala de aula,
pois, no dia-a-dia, as crianças também reagem da maneira como descreve em relação às
histórias contadas:
112
A gente já teve a prática, por exemplo, de trazer contadores aqui e os contadores, quando iam contar, as crianças ficavam num silêncio absoluto e com os olhos fixos no contador, sem esperar ver a figurinha, ver o livrinho, porque eles GOSTAM de ouvir histórias. Eles aplaudem quando a história é boa, assim como eles são capazes de não ter NENHUMA ATENÇÃO quando a história está sendo contada de um jeito desagradável, ruim, de qualquer jeito. Eles são EXTREMAMENTE CRÍTICOS com relação a isso. Essa formação NÃO É a formação de sala de aula. Essa formação é... Não é nem do leitor, é do ouvinte, né... Essa formação é a formação que eles adquiriram no trabalho de Literatura.
Uma das problematizações trazidas por alguns autores a respeito da leitura
escolarizada, como, por exemplo, Lajolo (2003), é que a leitura hegemonicamente presente
na escola, “dirigida, planejada e limitada no tempo e no espaço” anula a liberdade do leitor.
De fato, isso pode ser uma tragédia, dependendo do que se dá a ler e das estratégias
empregadas para a leitura. Manguel (2002), ainda tratando da leitura ouvida, diz que essa
“é uma experiência muito menos pessoal do que segurar o livro e seguir o texto com
nossos próprios olhos”, o que, por um lado, empobreceria o ato de ler. Porém, lembra
também que “a formalidade ritual” inerente a esse processo “dá ao texto versátil uma
identidade respeitável, um sentido de unidade no tempo e uma existência no espaço que ele
raramente tem nas mãos volúveis de um leitor solitário.” (ibid.,p.147) Creio que o mais
importante seja a possibilidade de experimentar também, mas não apenas, essa forma de
contato com a literatura.
Ana Beatriz me contou como era para ela a experiência de ouvir histórias na escola
quando criança. Sua mãe também lhe contava histórias, mas, no colégio, havia uma
diferença curiosa:
Eu achava diferente porque tinha mais emoção do que as que minha mãe contava. [riso] Eram enredos mais, assim, ‘puxados’... mais curiosos... que aguçavam a minha curiosidade, sabe? ‘Qual vai ser o final da história?’ [risos] Eu me lembro que a gente ficava na rodinha, aí sempre tinha uma colega minha, a Ana Paula, que ficava [dizendo]: “Ah, você acha que vai acabar assim?” [risos] Aí eu [dizia]: “Psss! Fica calada, senão a gente não vai escutar!” [risos]
Gostei muito de poder saber, tantos anos depois, da rede que se formava dentro da
rede que ‘oficialmente’ tecíamos: a roda de histórias. Fuxicavam entre si sobre as
narrativas. Acrescentavam seus retalhos às imagens suscitadas pelos textos, envolviam-se
na composição de possíveis sentidos, participavam ativamente do pacto de leitura
proposto pelos textos.
113
André estava com quinze anos quando o entrevistei. Repetia a oitava série, por
problemas com Matemática. Logo no começo de nossa conversa, perguntei-lhe se ele se
lembrava de que tinha aulas de Atividades. Ele respondeu assim: “Lembro das histórias e
que eu ficava fazendo desenhos. Ficava desenhando com os amigos em grupo. Era
maneiro!” [ri] “Na aula de Literatura?”, perguntei. “É. Mas o que eu mais lembro é das
histórias, eu gostava muito.” Ele falou sorrindo e eu me lembrei do sorriso de Eduardo,
quando nos encontramos no pátio. Com André conversei muito sobre histórias, livros e
temas dos seus tempos de “Pedrinho”.
Voltando à turma de Alden, o menino que estava “doido” para ouvir uma história,
naquele mesmo dia, quando os alunos já faziam o trabalho, eu fui pegar papéis num
compartimento que fica na parte de trás da sala, a “cafua” onde guardamos materiais.
Apareceram duas meninas para me pedir coisas. Enquanto eu estava mexendo na papeleira,
uma delas olhou para o chão – tudo estava bem bagunçado – e, como se tivesse visto algo
“de outro mundo”, abaixou-se, pegou o que vira, voltou-se a mim e disse com uma voz
estupefata: “Nossa! Professora, lembra disso?” Olhei. Estava em sua mão uma medalhinha
dourada, dessas com que se enfeitam fantasias de cigana. “Eu lembro, e você?” “Foi
daquela história que você contou pra gente na primeira série! Eu me lembro... Era a
história de uma escravinha...” Então a outra menina falou: “A minha eu guardo até hoje.”
Estupefata quem ficou fui eu, com os prodígios da memória. De fato, peguei aquela
turma na primeira série e a estava revendo na quarta. A história referida chama-se A botija
de ouro, que faz parte de uma série de narrativas folclóricas resgatadas e recontadas por
Joel Rufino dos Santos. Conta sobre uma “escravinha sem nome” que, de tanto “comer
parede” (tinha vermes), por ordem do senhor é presa no quarto escuro. Lá, raspando a
parede com as unhas, acaba encontrando a “BOTIJA DE OURO DO TEMPO DE
CARLOS MAGNO”, que – vovó Belquisse revelou – tem a propriedade de “fazer
dinheiro”. Depois disso, a personagem passa por muitas agruras até resolver entregá-la ao
senhor. Este danou a fazer dinheiro, mas, como não perguntara como se fazia para
interromper o processo, acabou soterrado no ouro, junto com a casa grande.
Gosto muito dessa história e da maneira como a usamos nas aulas. Ela faz parte da
nossa ‘galeria de clássicos’, maneira como Cristina Corção se referiu às histórias que, no
seu tempo como professora de Literatura, eram sempre eleitas para serem contadas. É
escrita numa linguagem popular, com fortes traços da oralidade e traz a possibilidade de
conversar com as crianças sobre escravidão, negritude, preconceitos e tudo o que surgir
114
como questão, dependendo da turma. No segundo momento da aula, costumamos fazer
brincadeiras com leitura de trava-línguas e, como um brinde-lembrança da escravinha,
damos a cada aluno uma daquelas moedinhas, que é “pra dar sorte”.
Certamente Carolina, esse é o nome da menina, tinha mesmo visto uma “coisa de
outro mundo”. Um mundo onde estão guardados resquícios de experiências, ou mesmo
lembranças inteiras, que aquela medalhinha caída ao acaso teve o poder de trazer de volta.
O que será que isso significa?
3.3- Um Emaranhado De Sentidos E Sentimentos: Leitura, Literatura E Outras Artes
Ponho-me a pensar, nesse momento, sobre um dos movimentos que, na visão de
Alves (2002), devem ser feitos ao pesquisarmos na complexidade do cotidiano: dispormo-
nos ao mergulho com todos os sentidos na realidade do campo; aludindo Drummond, ela o
chama de sentimento do mundo. Quando aponta que é necessário que o pesquisador “se
ponha a sentir o mundo”, está tentando dizer que o mergulho nos chama a usar sentidos
outros, não apenas o olhar soberbo que se lança do alto ou de longe (p.16). O mergulho nos
chama a tentar penetrar inteiramente nas lógicas do cotidiano, buscando, também,
referências em sons e paladares e cheiros e texturas.
Tarefa um tanto difícil, já que, nos últimos quatro séculos, vimos ‘ficando cegos’
de tanto olhar. Quero dizer: a maneira mais freqüente de perceber o mundo vem sendo
através do sentido da visão, que tem supremacia sobre as demais formas de percepção.
Além de que é limitado, como qualquer monismo, penso, é preciso dizer, também, que o
olhar engana. Já não podemos nos fiar na ‘modernidade’ do pragmatismo de São Tomé,
“ver para crer”. Von Foerster (1996, p.59-74) me ensinou que o questionamento das
certezas do olhar já vem sendo feito pela própria neurociência. Por um lado, devido ao
chamado ponto cego, nossos olhos nem sempre podem ver tudo o que se mostra; por outro,
se não compreendemos o que vemos, não o vemos. Por isso, é preciso crer para ver. Não
havendo garantias de que realidade que vemos corresponde ao real, o que podemos fazer?
Apoiarmo-nos também nos olhares alheios para ver o mundo.
115
Mas não só nos olhares. Também no que os outros ‘vêem’ feito filme, feito
quadros, feito vultos com sua memória. As memórias dos outros provocam, desafiam a
minha própria memória, questionam minhas certezas, às vezes se unem, às vezes se
distinguem das minhas impressões, convocando-me a mudar, a deslocar-me, a trans-
formar-me.
Pensando em sentidos, pensei, também, se poderia haver outros movimentos para
perceber o cotidiano. Então me ocorreu que, no caso da minha pesquisa com os alunos, que
busca mergulhar duplamente no presente e no passado, além dos demais sentidos
conhecidos, talvez seja preciso usar, também, o ‘sentido’ da imaginação. Penetrar nas
narrativas dos sujeitos e, a partir delas, tentar imaginar o cotidiano vivido, do lugar das
crianças, na medida do que me for possível.
Agora lembro, novamente, do que me ensinou Pais (2003): o cotidiano, aparente
lugar de rotinas, de repetições, traz em si, dialeticamente, as tensões da ruptura.
No entanto, as raízes etimológicas de rotina apontam para outro campo semântico, associado à idéia de rota (caminho), do latim via, rupta, donde derivam as expressões “rotura” ou “ruptura”: acto ou efeito de romper ou interromper; corte, rompimento, fractura (ibid.p.29)
Gostaria de fazer algumas considerações sobre um aspecto do cotidiano no
“Pedrinho”. Ali, a ‘rotina’ das crianças é constituída por trinta tempos semanais de aulas,
seis por dia. Em vinte e dois desses tempos, os alunos estão em companhia da professora
regente no Núcleo Comum, mesmo durante as aulas de Laboratório de Ciências e
Informática73. Nos oito outros, têm as aulas de Educação Física, Música, Artes e Literatura,
com professores específicos.
Desta forma, além das rupturas que, por definição, fazem parte dos próprios
movimentos cotidianos, vejo que, mesmo a rotina entendida como campo de ritualidades
(Pais, 2003) pressupõe um outro ritual, que é o de quebrar a rotina das aulas do Núcleo
Comum através das aulas de Atividades. Da S.I. à quarta série, as crianças se acostumam a
ter em sua rotina escolar essa ruptura. Como será para elas?, pergunta minha imaginação.
Além disso, uma outra indagação me acompanha. Se entendo que experiência é
aquilo capaz de se inscrever na subjetividade de alguém, deixando ali a marca do vivido
73 São Atividades desenvolvidas por professoras específicas, mas as regentes do Núcleo Comum acompanham as turmas nas aulas.
116
(Larrosa, 2004), é possível perceber nos discursos sinais que possam indicar se o vivido
deixou marcas, ficando como experiência?
Os adolescentes com quem conversei narraram de forma positiva o que viveram
durante os tempos do “Pedrinho”. Dentre os seis entrevistados, apenas Luís, que tem treze
anos e é aluno da sétima série, não demonstrou muito entusiasmo ao falar da escola. Os
demais foram até bastante efusivos nesse aspecto.
Trago André como exemplo. O menino mora ao lado do colégio. No dia do nosso
encontro, chegou antes de mim. Quando o vi usando uniforme, estranhei e perguntei a
razão. Respondeu-me que o vestira para não ter problemas na portaria. Achei também
estranha a resposta, mas não insisti. Então, na salinha de Artes onde paramos para
conversar, disse, já no início, visível e audivelmente emocionado, o quanto gosta do
colégio: “...eu amo aqui, eu sempre gostei muito daqui. Eu não me imagino em outro
lugar.” Eu quis saber o que o fazia gostar tanto.
Tudo! Acho que é o meu segundo mundo, depois da minha casa, a minha família. Aqui é a minha segunda família também, os meus amigos, professores... É isso! Eu gosto muito daqui.
Enquanto falava, pude ver e ouvir sua voz embargada, imaginar a amplitude do
sentido do que dizia e, como interlocutora, também sentir a importância daquela
enunciação (Bakhtin,1976). Compartilhei com ele da sua emoção.
Tempos depois, soube, através da mãe de Pedro, que a mãe de André vinha falando
em tirá-lo do colégio. Pude, assim, me aproximar um pouco do tema da enunciação
naquele instante único (Bakhtin, 1976).
Para ficar apenas entre os extremos, trago também o que disse Luís. No decorrer de
nossa conversa, perguntei quais são as recordações boas que ele poderia dizer que tem do
“Pedrinho”. Sua primeira lembrança foi esta: “As brincadeiras no pátio que a gente ficava
fazendo...” De modo oposto ao de André, nele não pude perceber um entusiasmo especial
pelo colégio.
Os demais alunos falam com carinho do colégio de primeiro segmento, de modo
geral. No entanto, algo capturou minha atenção. É que eles dão especial destaque às aulas
de Atividades artísticas (Artes, Literatura e Música). Mesmo Luís, que não demonstra
paixão especial pelo ambiente escolar, falou com animação das aulas de Artes, que foi a
segunda lembrança boa do “Pedrinho” que ele me relatou. Experiências?
117
3.3.1- As Atividades: rotina de rupturas?
Parece que as Atividades complementares criadas na ‘primeira infância’ do
“Pedrinho”, não se restringiram a apenas ocupar os espaços vazios na grade, mas foram
além. Vinte e um anos depois, os alunos presentes no processo de pesquisa me ajudaram a
ver – ao menos no que lhes diz respeito - que extrapolaram bastante a mera possibilidade
de recreação.
Os alunos mostraram, sem que eu diretamente lhes perguntasse, que as atividades
artísticas foram muito importantes na sua formação. Ao narrarem a rotina vivida no
primeiro segmento, falaram do prazer que sentiam nas aulas de Atividades.
Sem que o dissessem, eles disseram à pesquisadora que eu era enquanto comigo
conversavam que, para eles, a imaginação teve forte valor cognoscitivo. Trouxeram-me à
mente a máxima do aristotelismo medieval, que eu havia lido em Larrosa (2002, p.135):
nihil potest homo intelligere sine phantasmate, isto é, não há compreensão possível para o
homem sem imaginação.
Eu mesma reitero, depois de ouvi-los, que as linguagens artísticas não podem estar
afastadas do currículo escolar, ou ser tidas como de importância menor. Continuo a
lembrar Larrosa (2002). Ele fala que “a imaginação era a faculdade mediadora entre o
sensível e o inteligível, entre a forma e o intelecto, entre o objetivo e o subjetivo, entre o
corporal e o incorporal, entre o exterior e o interior” (ibid., p.135), e por isso é que existe
analogia entre esta e a experiência. O fazer artístico na rotina do primeiro segmento parece
que significou bastante para eles.
Dentre os alunos que terminaram a quarta série em 2000, Taís é a única que não
entrou para o colégio na Série Inicial (alfabetização). Ao ser matriculada, já havia
concluído a segunda série em outra escola, mas precisou repeti-la. Para ela, um mundo
novo se descortinou ao começar a freqüentar o colégio. No princípio da entrevista, pedi
que falasse de quando entrou no colégio. É interessante observar suas impressões,
expressas na resposta à primeira pergunta que lhe fiz:
Foi na segunda série, em 98. Eu estou agora no primeiro ano [do ensino médio], estou há oito anos lá e foi muito diferente [a escola], porque eu tive que repetir a segunda [série] lá no Pedro II, porque eu vinha de uma escola
118
fraca, e o trabalho do Pedro II era incomparável com o das outras [escolas], porque [nelas] não tinha Literatura, não tinha Artes, não tinha nada.
A menina, ao afirmar que “o trabalho do Pedro II era incomparável” com o que se
fazia nas outras escolas, usa como justificativa para tal não o modo de se trabalhar no
Núcleo Comum (que também tem diferenças significativas), mas as aulas de Atividades.
Disse-me, a seguir, que então ‘jogou tudo para o alto’ e se dedicou mais às coisas do Pedro
II. Fiquei curiosa a respeito de suas impressões e perguntei como se sentiu, ao ver todas
aquelas coisas diferentes. Ela disse que
Achava legais... Eu gostava. Tinha um dia que era só de Educação Física, Artes e Literatura... E tinha festas lá no colégio... Foi... Foi bastante bom... Hoje em dia eu falo que eu posso... Tenho orgulho de falar que eu estudo no Pedro II, sabe? Apesar de ter greve [a entrevista foi feita ainda durante a greve], essas coisas assim, é bom, tem um conteúdo bom. Se eu não tivesse ido pra lá, eu não sei se eu teria a mesma oportunidade de ter aulas de Literatura, Desenho, de Artes, Educação Física, sabe? As festas que tinha lá no “Pedrinho”... Tinha até festa de carnaval, antes do carnaval tinha... [Aulas] de Música também... A gente aprendeu a tocar flauta...
Taís parece ter ficado encantada com as diferenças. Lembra até de algo que
ninguém lembrou: os bailes pré-carnavalescos que começamos a fazer a partir do tempo
em que as aulas passaram a se iniciar mais cedo. E fala de algo que foi importante para
alguns outros: as aulas de Música, especialmente o aprendizado da flauta doce, que
costuma ser feito na quarta série.
Clara foi muito enfática em relação às aulas de Música. Ela sonha alto: pretende
seguir carreira na área musical. Como tudo começou?
Eu comecei no “Pedrinho” com a professora Cida74, na quarta série. E desde aí eu toco flauta transversa, entrei no grupo de flauta [do colégio], a gente toca a flauta doce soprano, a doce contralto e a flauta doce barroca (tenor).
Talvez tenha tido contato com música em outros espaços, que não o colégio, pensei.
E perguntei. Ela foi muito veemente e exclamou, enfática: “Foi a escola!” Disse-me que a
escola contribuiu “MUITO, MUITO” para que desenvolvesse a imaginação em todos os
sentidos. E voltou a falar de música: Afora a imaginação, a minha criatividade, assim, pra música, principalmente, com a professora Cida, de Música, eu ADOREI, porque a gente treinou muito – eu treinei flauta na quarta série – e hoje o meu sonho é tocar flauta transversa na OSB, na Orquestra Sinfônica Brasileira. [Eu estou]
74 Maria Aparecida Etelvina Ivas Lima, professora de Música da Unidade São Cristóvão I desde 1985.
119
com MUITA expectativa pra fazer isso! [fala sorrindo] Na sexta série, eu fiz flauta transversa – tem um espaço musical aqui no colégio que tem essa oportunidade pra gente, dá essa oportunidade pra poder a gente desenvolver a nossa... (como se diz?) a nossa criatividade, a nossa curiosidade musical.
André é outro que tem relação mais estreita com música. Estuda fora do colégio.
Está aprendendo a tocar baixo na Villa-Lobos75. Mas também gosta de tocar flauta. “Eu
tive aula aqui, só que a maioria das coisas eu toco ‘de ouvido’. Ouço e aí aprendo, é só
tocar as notas, eu aprendo rapidinho.” No “Pedrão”, onde tiveram aulas de música até a
sétima série, encontrou uma professora que também estimulava os alunos na área musical:
“A professora Virgínia, ela incentivava... Até toquei na Aliança Francesa com ela, tinha
um coral lá e ela me chamou pra tocar.”
André me disse, também, que está tentando formar uma banda. Isto já fez Ana
Beatriz, que participa de uma banda formada apenas por garotas, onde toca guitarra. Ela
não aludiu ao colégio quando abordou seus interesses por música, e sim à avó, que era
professora num conservatório. Apesar disso, sua primeira lembrança, no início de nossa
conversa, foi justamente de como, na S.I., gostava das aulas de Música. “Eu sempre me
amarrei em música!”, disse rindo. Recorda do que aconteceu quando a professora precisou
deixar a turma:
O que aconteceu? A professora deu uma música – uma outra: “Cativou” – e aí a gente começou [a dizer]: Ah, não, a gente também tem que ‘bolar’ a nossa, vamos fazer alguma coisa pra ela! Então eu me lembro que a gente fez bilhetinhos, musiquinha, tudo. [riso]
Por um motivo ou por outro, três entre os seis alunos entrevistados estão envolvidos
diretamente, em maior ou menor grau, com a linguagem musical. A quantidade é
expressiva. Pensando sobre isso, pergunto-me: será que Clara e André teriam enveredado
pelas sendas da música se não tivessem começado na escola?
A outra Atividade lembrada pelos alunos foram as aulas de Artes. Essas aulas, do
mesmo modo que as demais Atividades, acontecem em grandes salas-ambientes, onde os
alunos trabalham com os mais diversos tipos de materiais. Têm um certo ‘parentesco’, já
na origem, com as aulas de Literatura. As aulas eram estruturadas em dois eixos: no
primeiro momento, os alunos participavam de ‘propostas cênicas’(jogos corporais e de
75 Escola de Música situada no centro do Rio de Janeiro.
120
imaginação etc.) e depois aconteciam as ‘propostas plásticas’, que eram bastante
diversificadas.
Quando Ana Beatriz entrou no Pedro II, já tinha cursado a Classe de Alfabetização.
Mas, da mesma forma que Taís, precisou repetir. Seus pais a inscreveram no sorteio para o
então C.A. no ano anterior; como não foi contemplada, estudou em outra escola. Um ano
depois, tentaram novamente, dessa vez, com sucesso. Diz que, por isso, ficou um ano
atrasada no colégio.
Perguntei-lhe o que mais chamava sua atenção quando começou a estudar no
“Pedrinho”. “As aulas de Artes. Até hoje.”, disse.
Ao conversar com Luís, fiz-lhe a seguinte pergunta: “E hoje, por exemplo, se você
parar para pensar no “Pedrinho”, você tem alguma recordação boa? Quais são as
recordações boas que você poderia dizer que tem?” De imediato, como já disse, ele falou
das brincadeiras no pátio. E depois disse: “Tinha... Deixa eu ver... As aulas de Artes, que
aqui eram bem melhores que lá no “Pedrão”.” Por quê? “Ah, aqui a gente fazia mais
coisas, lá não. É só... teoria.” Como era no “Pedrinho”?, perguntei. “Ah, a gente
desenhava, fazia coisinhas com argila... Fazia várias coisas.”
Penso que as aulas de Atividades inseridas no cotidiano quebravam, de maneira
positiva para nossos ex-alunos, a rotina, entendida como ‘repetição’. Colocadas também na
rotina dos alunos, instauravam uma ruptura. Naquelas aulas, ocorridas fora das salas de
aulas de todos os dias, era possível ampliar as oportunidades de expressão das crianças.
Acredito que o grande diferencial das Atividades era justamente a possibilidade de um
constante fazer impregnado de ludicidade. E, novamente, peço licença para repetir-me: a
arte da poiésis que sobrevive no poeta é aquela que nasce com a criança. A criança quer
fazer. Muito. Gosta de fabricar realidades outras através da expressão artística. Gosta de
interferir na realidade pronta, de inventar possibilidades. Fazendo arte, as crianças vão,
também, fazendo-se a si mesmas como sujeitos criativos.
Parece que nossos companheiros do princípio do “Pedrinho” também atiraram no
que viram e acertaram no que não viram.
121
3.4- As Aulas De Literatura Chamo o leitor, agora, para adentrar mais um pouco no bosque de fuxicos sobre a
Literatura no “Pedrinho”. Muitas coisas foram ditas, muito foi lembrado, como já pudemos
ver. Mas, antes de trazer as memórias dos alunos, falo eu, para tornar o roteiro mais
familiar.
Nossas aulas, hoje, costumam ser assim: contamos uma história ligada aos
conteúdos com que estamos trabalhando, conversamos um pouco sobre o texto ouvido e
fazemos uma proposta de trabalho. Esta é, mais ou menos, a nossa rotina.
Preocupamo-nos bastante em não repetir demais os modos de trabalhar.
Espalhamo-nos entre desenhos, escrita, massa de modelar, recorte e colagem,
dramatizações, jogos verbais. De vez em quando, ousamos usar tintas e argila.
Alunos de 2ª série (2004) modelando “O jardim dos Encantos”, a partir da história do livro As mil e uma noites.
Essas atividades já não são como no tempo em que Mário começou a dar aulas no
colégio. As propostas de desenhos que fazemos estão articuladas aos conteúdos de
Literatura que estamos trabalhando. Costumo dizer aos pais que os desenhos feitos nas
122
nossas aulas são, também, atividades de interpretação de texto, só que realizadas de forma
diferente do convencional. E o mesmo acontece com qualquer outra proposta plástica ou de
escrita.
Figura 3: Alu
Acredit
palavras, é fab
magia da pala
oferecer às cri
conosco.
nos da 3ª série (2004) trabalhando na criação de um personagem.
amos na poiésis. Acreditamos que literatura é jogo, é brincadeira com
ricação de novas realidades, é descongelamento do mundo. Acreditamos na
vra e na magia do fazer. Acreditamos no sabor do saber e procuramos
anças um cardápio variado de textos e atividades, convidando-as saboreá-los
O grupo da foto anterior apresentando seu trabalho à turma.
123
O leitor há de se lembrar que o primeiro grupo de Literatura sonhava alto e que a
estrutura das aulas metaforizava a questão política que estava por detrás. Pensava-se na
contação de histórias em roda, em trabalhar em grupo, dividindo materiais, confrontando e
compartilhando idéias, porque se apostava no coletivo. Pensava-se num trabalho mais solto
porque a concepção de interpretação se afastava do modelo tradicional de ‘pergunta e
resposta’.
Pois bem, quando comecei a conversar com os alunos, tinha algumas perguntas a
fazer, que visavam a alcançar memórias mais factuais. Desejava saber o que ficou de
memória de histórias, de assuntos trabalhados. Hoje, posso afirmar que fui ingênua. As
marcas que ficaram estão aquém e além disso. E, mesmo aquém, vão mais longe do que
pensei.
Os alunos disseram bastante. Foi muito interessante encontrá-los, depois de tantos
anos, e poder saber um pouco de mim e do coletivo de professores através dos seus olhares
e dos seus sentimentos.
3.4.1- Histórias e rodas de conversas
Parte considerável do tempo de aula passamos lendo/ouvindo um texto e
conversando sobre o que ele nos suscita. Não existe tempo pré-definido para esse
momento, porque sua duração depende do diálogo que se estabeleça na turma. A conversa
pode, inclusive, começar antes da leitura, quando anunciamos o que vamos contar.
Ter
eza contando história na 1ª série (2005)124
O processo de leitura pode começar pelo título de um livro, conto, poema... E, às
vezes, podemos nos alongar bastante já aí. O título é um poderoso elemento antecipador de
expectativas para o leitor. Como observam Brait e Melo (2005, p.69), bakhtinianamente,
esse enunciado é a porta de entrada para um outro texto, um outro enunciado, do qual faz
parte e cujo sentido integra. A partir dele, qualquer pessoa pode ser atraída ou não para a
leitura do texto. A partir dele, começamos a imaginar o que encontraremos. A partir daí, é
possível que o diálogo com o texto se inicie.
Conversamos sobre os textos com vistas a compreendê-lo. Uso essa palavra
baseada no conceito de compreensão ativa, formulado por Bakhtin (2004), para quem a
consciência nunca é algo acabado, mas sempre em processo, durante toda a nossa vida. A
compreensão é um fenômeno ativo e responsivo, é uma forma de diálogo. Ele afirma que
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é nossa compreensão. (ibid., p.131-2)
No processo do diálogo, da interação verbal, a cada enunciação com que
encontramos, damos uma resposta, isto é, opomos uma contrapalavra. Se, no cotidiano das
aulas, buscamos estabelecer o diálogo entre alunos e textos, entre alunos-alunos e
professora, acredito estarmos favorecendo o desenvolvimento da consciência de cada um,
que se vai ampliando.
Nas turmas de quarta série, em 2005, antes de começar a ler o conto “Com sua voz
de mulher”76, de marina Colasanti, anunciei apenas o título e perguntei o que os alunos
achavam que iria acontecer na história. O título carece de elementos para que o leitor possa
apreender seu sentido, pois o enunciado se completará no texto. Mas, evocando o sentido
historicamente construído (Bakhtin, 1998 apud Cereja, 2005)77 em torno da expressão “voz
de mulher”, e com a ajuda da imaginação, as crianças tentaram.
Trago um trecho da conversa travada na turma 403, para que o leitor possa
compreender melhor o que pode acontecer em interações cotidianas:
76 Conto integrante do livro 77 Bakhtin, M. Questões de literatura e estética. Trad. Aurora Bernardini et. Al., São Paulo,: Hucitec,1998, p. 100.
125
Prof. – Quando eu falei o nome da história, “Com sua voz de mulher”, o Leandro logo falou o quê, Leandro? Leandro – Uma voz muito bela. Prof. – Uma voz muito bela... O Igor levantou o dedo! Igor – Uma voz bela e doce. Prof. –Olhem, o título da história é “Com sua voz de mulher” [enfatizando] e mais nada. E aí? Aluna – É uma mulher que tem uma voz muito bonita e que encanta todos. Prof. – E você? Caroline– Pra mim é um homem que tem voz de mulher! [risos] Prof. – Tá bom... Rayza. Rayza- Pra mim é uma mulher que em vez de encantar todos, encanta só um homem. Prof. - Essa mulher? Com sua voz de mulher? E você, Alden? Aluno – Eu acho uma mulher que tem a voz muito doce. Prof. – Também? Alguém mais acha alguma coisa pra falar? Vitória. [vários alunos falam ao mesmo tempo. “Bonita.” “Ela disse que é uma voz do além!”] Prof. – Uma voz do além? Por que, Vitória? Outra aluna – É uma voz de uma mulher do além! [tentando traduzir a amiga] Prof. –Pode ser e pode não ser... Mas não será muita’ viagem’?[risos] Bom, o que mais? Aluno – Uma voz de mulher do além. Prof. – [misteriosa] Uma voooz de mulher do aléeem... Mas é [devagar] “Com sua voz de mulher”.[Alguém dá outra opinião, mas todos falam juntos] Prof. – Ó, assim a gente não se ouve. Aluno – Eu acho que ela é uma moça muito feia, só que a voz dela é muito muito, muito, muito bonita. Prof. – É? Alden – Eu acho que é uma mulher que seduz os homens com sua voz. Prof. – O Alden, olhem, ele acha que é uma mulher que seduz os homens com sua voz. Alunos – Ihhh... Ihhh... Prof. – Mas tem gente que tem uma voz tão bonita, não tem? Hein, gente: não tem isso? Tem gente que tem uma voz tão bonita que encanta as pessoas com a voz, não é? Fala, Ronaldo. Ronaldo – Eu acho que é uma voz charmosa, assim, que encanta os homens. Prof. – Eu estou vendo que vocês acham algumas coisas, mas vocês vão se surpreender com a história... Que vai começar, hein! Aluna – Ah, vai ver que é um animal com voz de uma pessoa. Prof. - Vocês vão se surpreender!
É muito interessante prestar atenção na rede de conversa que vai se formando, cada
um emendando um elo à cadeia infinita da comunicação verbal (Bakhtin,2004). Bakhtin
afirma que não é no interior do sujeito que está o centro organizador da atividade mental,
mas fora dele, na própria interação verbal. Assim, é a expressão que organiza atividade
mental, modela e determina sua orientação. E é no território social que tal acontece.
126
Depois da história, continuamos a conversar sobre o texto. Falamos de vários
aspectos, buscando trazer para a roda as possíveis leituras que tivessem feito os alunos. Na
turma 403, avançamos na discussão até chegar ao machismo da sociedade, sugerido por
uma aluna, ao opinar sobre o desenvolvimento da ação no texto.
Já na turma 404, alguns alunos disseram não terem gostado muito da história,
porque faltava emoção. A história fala que um deus observou que as pessoas de um certo
lugar não eram felizes. Resolveu transmutar-se em mulher e vir à terra descobrir o porquê.
Empregou-se numa casa e, assim, convivendo entre os humanos, viu que não lhes faltava
nada de material, mas ali o silêncio reinava. Trabalhavam em silêncio dia a dia, noite a
noite. Ninguém ria, ninguém falava, ninguém contava. Até que um dia, não suportando
mais o peso do silêncio, com sua voz de mulher, o deus começou a contar. Contou histórias
do seu mundo, que logo começaram a ser espalhadas pelos que as ouviam. Os humanos
voltaram a sorrir. Vendo que tinha conseguido chegar ao seu objetivo, do mesmo modo
repentino com que apareceu por ali, o deus se foi. E foi justamente a conversa de depois
que levou o assunto descambar para a vida mais concreta de alguns, que sentiram
necessidade de falar de suas próprias solidões. A literatura tem esse poder.
Clarice – [Faz uma série de considerações, algumas ininteligíveis sobre possuir coisas e ser feliz] ...tem milhares de brinquedos no seu quarto, tem um quarto cheio de coisa, mas está sozinho, sempre está triste, sempre querendo mais e mais o meu primo. Daqui a pouco está fazendo uma doação internacional, de tanta coisa que se tem, mas sem que a felicidade [fala do equívoco de relacionar felicidade com bens materiais] Thaís – Eu sou assim. Outro – Eu! Prof.- Assim como? Thaís– Como a Clarice falou, eu sou sozinha. Prof.- Mas você fica querendo sempre mais e mais? Thaís– Não. Eu sou sozinha. Prof- Você não tem irmão não? Thaís- Não. Prof.- Nem colega? Thaís – Eu não sou feliz. Outro – Eu sou. [Muitas falas paralelas] Caroline – Eu tenho irmão... Eu não tenho MUITOS brinquedos, não, mas o importante é ter carinho, atenção... Meu primo é assim: ele tem um quarto enorme, cheio de brinquedos e quer sempre mais. Não empresta... Léo- Eu acho que ser filho único é muito ruim.
A partir daí, a aula foi embora para um lugar não previsto. A menina que trouxe a
questão da própria felicidade para a roda falou mais de sua vida, outras crianças que não
tinham irmãos falaram de seus sentimentos e talvez tenham podido compreender-se
127
melhor, para muito além do texto. Não seria isso o que Larrosa (2002) chama de
experiência? Como disse Barthes (2002), “a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas
que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre
os homens.” A literatura tem esse mistério.
Mas, o que disseram os alunos do passado? O que daquele cotidiano ficou na
memória? As narrativas mostraram que a dinâmica das aulas ficou marcada. Lembram de
que as professoras contavam histórias em roda, lembram da maneira como fazíamos os
trabalhos. Alguns lembraram espontaneamente das conversas que tínhamos depois das
histórias, já com outros foi necessário provocar a lembrança. Taís descreveu assim:
E nas aulas de Literatura, a gente fazia uma roda e a gente escutava a história e depois você fazia algumas perguntas, aí a gente respondia, pra ver se a gente entendeu mesmo a história, pra ver se a gente entendeu sobre o que falava o livro...
A hora da conversa, que para nós, professoras, é especial, não ficou tão nítida na
lembrança dos alunos. Lembram-se de que havia esse espaço, mas, de modo geral, não
conseguem dizer se costumavam participar ou não. Por quê? Conjecturo que o apelo das
histórias e dos trabalhos concretos possa ter sido mais forte para eles, de modo que esses
momentos ficaram gravados.
No entanto, algo me chamou a atenção, por ter-se repetido em algumas falas. Como
Taís, outros alunos disseram que a conversa objetivava saber se eles tinham entendido a
história. Não vejo pecado em conversar para compartilhar entendimentos e dúvidas. Mas
será que é possível encontrar nesses relatos indícios de outros sentimentos capturados das
nossas práticas?
A repetição desse discurso poderia, também, revelar que assimilaram uma
representação do conhecimento tal como classicamente ele costuma acontecer na escola:
espaço onde alguém – o mestre - pode chancelar os saberes, dizer se a interpretação é certa
ou errada? Poderá ter acontecido que, mesmo naquele espaço, onde pretendemos a
liberdade de opiniões, onde no princípio estava Eco falando da abertura da obra, da
liberdade do leitor, o poder da interpretação dos textos fosse propriedade da professora?
No movimento de ler e reler as entrevistas, percebi também o mesmo tipo de
compreensão em relação a outros momentos das aulas. Clara, por exemplo, disse que eles
escreviam histórias “pra poder se preparar para começar o ensino fundamental da quinta à
oitava série”.
128
Na minha memória, não era para isso que conversávamos e escrevíamos. Terão
vivido realmente isso ou os relatos desses alunos estarão impregnados das experiências
vividas mais intensamente posteriormente? O nosso (ou o meu) trabalho também estava
embebido dessa cultura escolar e eu não percebia?
Outra coisa desejo destacar: Luís e Ana Beatriz disseram que não costumavam falar
na roda de conversa. Ele disse que tem “vergonha de falar” e ela, que “era meio
encabulada, (...) mais de observar do que falar.” Desde que ouvi o que disseram, pus-me a
pensar bastante na avaliação que fazemos dos alunos.
As Atividades trabalhavam com conceitos78, que iam de Insuficiente a Muito Bom.
Para chegar aos conceitos, observávamos, dentre outras coisas, a participação dos alunos
nas rodas de conversas. Aqueles que davam muitas opiniões se destacavam positivamente.
Quantas vezes, no entanto, tive imensas dificuldades e até avaliei mal as crianças! Ana
Beatriz é um claro exemplo de que, mesmo não falando muito, não expressando suas
opiniões, ela certamente estava envolvida na discussão coletiva. Será que eu era capaz de
perceber isso? A memória, que carrega em si também a armadilha do esquecimento, me
falha.
Larrosa (2004), ao tratar da leitura enquanto formação, resgata Benjamin, opondo o
sujeito da experiência ao sujeito da informação. O mundo de excessos em que vivemos
talvez nos cegue, talvez encubra o que escapa à sua lógica. O excesso de opinião é um dos
problemas que atingem o sujeito moderno, do qual diz Larrosa:
O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e às vezes supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre aquilo do qual tem informação. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se num imperativo. (ibid.,p.155)
Ana me mostra que também no silêncio há diálogo. Todavia, não quero dizer com
isso ser desnecessário observar a participação da criança na roda de discussões, mas penso
que seja preciso o olhar cuidadoso que possa perceber as diferentes nuances do silêncio.
Voltando à questão da memória, lembro do que diz Benjamin (1996, p.37). “Cada
manhã, ao acordarmos, (...) seguramos nas mãos apenas algumas franjas da tapeçaria da
existência vivida, tal como o esquecimento a teceu para nós.” Taís, que costumava falar
78 Atualmente, nas turmas de S.I., 1ª e 2ª séries, todas as áreas usam uma ficha de avaliação que contém os “descritores de desempenho dos alunos”; na 3ª e 4ª séries, as Atividades continuam avaliando através dos conceitos e o Núcleo Comum, com médias de 0 a 100.
129
bastante quando era minha aluna, hoje só lembra de um dia em que não prestou atenção e
eu fiquei fazendo a ela várias perguntas. Isto me leva a pensar: será que Thaís, a aluna que
falou ao grupo de sua infelicidade, vai se lembrar disso no futuro? Ainda que não lembre,
arrisco dizer que aquela aula lhe deixou alguma marca. Em mim, com certeza.
Como deixou marca, também, uma certa manhã de segunda-feira, em 2005. Uma
dentre as muitas ‘segundas’ em que começava a dar aulas para turmas de quarta-série às
8:30 e só terminava às 18:00. Estávamos trabalhando com textos da mitologia grega. Na
semana anterior, tínhamos lido a história de Prometeu, aquele que rouba o fogo dos deuses
e de quem Zeus se vingou mandando, pelas mãos de Pandora, linda mulher criada
especialmente para isso, um ‘presente’ a seu irmão, Epimeteu: uma belíssima caixa que,
aberta, traria a nós, humanos, o enorme elenco de desgraças que tão bem conhecemos: dor,
doenças, fome, miséria, enfim. No fundo da caixa, entretanto, como lenitivo, jazia a
esperança.
Eu estava em pé em frente ao quadro conversando com a turma. Estávamos
recordando a história, com os alunos já sentados nas mesas para fazer a atividade. De
repente, Pedro, que estava de costas para mim, virou-se e disse: “As drogas são a caixa de
Pandora de hoje em dia.” “Como?”, quis ouvir melhor. E ele repetiu. “Por quê?”, indaguei.
“Porque, quando a gente olha, acha que é maravilhoso, mas quando abre só saem
desgraças. Mas no fundo está a esperança, a esperança de um dia se livrar disso.” Ele falou
assim mesmo. Sua frase gravou-se em minha memória feito um decalque.
O que pode isso significar? Que diálogo uma história grega de mais de dois mil
anos teve o poder de suscitar àquele menino carioca do século XXI?! Quanta humanidade
está contida num texto que alguns olhares podem considerar até impróprio para se
trabalhar com crianças, podem ver, inclusive, como traços de um requinte elitista, porque
representante de uma cultura clássica, tão distante da realidade cotidiana! Que leitura de
metáfora e mundo conseguiu fazer o menino de dez anos! A mesma indagação que me fiz
em relação ao que disse Thaís faço-a novamente: será que Pedro vai se lembrar desse
assunto?
Os alunos do passado até lembraram de algumas histórias que conheceram nas
aulas. André, por exemplo, lembra de uma das suas favoritas: “O gato preto”, um enorme
conto de Edgar Allan Poe, que não faz parte da chamada literatura infanto-juvenil, mas que
nós arriscamos levar para as aulas, com muita boa aceitação. Quando André me falou
disso, imediatamente veio-me à memória um fato ocorrido em 1998. Depois de ouvir “O
130
gato preto”, Bárbara, filha de uma colega de trabalho, chegou em casa com o texto
recebido na aula e disse para a mãe: “Mãe, você tem que ler isto, é demais!” E entregou a
ela o texto. A mãe, na época, me contou.
Tenho algo a dizer sobre esse detalhe: este não é o único texto tido como literatura
para adultos que levamos para as aulas. Nós não partilhamos da concepção de que criança
só pode ouvir histórias e conhecer poemas feitos para crianças. E nossa prática nos
confirma que essa limitação não faz sentido. Guardadas as devidas proporções, a boa
literatura não é boa para qualquer idade?
Lembro-me, agora, de uma aula do passado. A turma era de segunda série e
estávamos iniciando o trabalho com poesia. Antes, preparamos uma diversidade muito
grande de poemas, colamos em folhas de papel-cartão para levar para as salas. Havia
poemas de todos os tamanhos e tipos – rimados e metrificados, versos livres e brancos, etc.
Nesse conjunto, pusemos poemas feitos para crianças e também outros: Manuel Bandeira,
Drummond, Leminsky...
Pedi às crianças que ‘passeassem’ pelos poemas, que estavam espalhados pela sala,
e que cada um escolhesse algum para levar para a mesa. Depois, cada um poderia ler seu
poema para a turma do modo que achasse melhor. Michael ficou encantado – e eu, mais
ainda, com seu encantamento – justamente por um poema de Leminsky que não tem nada a
ver nem em temática, nem formalmente, com a poesia que se costuma apresentar às
crianças. E daí ele ensaiou, fez de tudo para decorar, e falou para os colegas, todo contente:
VENTO QUE É VENTO FICA
PAREDE PAREDE PASSA
MEU RITMO BATE NO VENTO
E SE DES
PE
DA
ÇA
Se os alunos não lembram de histórias, lembram muito de as terem ouvido. Uma
coisa disso tudo parece ter ficado: algo do enredamento de prazeres e conhecimentos
presentes na palavra literária e possíveis a partir dela.
131
As trilhas que agora começaremos a explorar vão levar-nos a conhecer um pouco
da articulação entre as experiências vividas por nossos alunos em torno da leitura e da
escrita, no passado e no presente, e a refletir sobre os processos de tessitura de
conhecimentos enredados no cotidiano escolar.
3.5- O Prazer De Escrever
Vento de calor De pensamento em chamas Inspiração Arte de criar o saber Arte, descoberta, invenção79
Independentemente do que tenham dito sobre leitura, uma unanimidade apareceu
entre os alunos com quem conversei: TODOS disseram que gostavam e ainda gostam de
escrever. Isto me chamou a atenção: por que a unanimidade? Se todos tivessem dito que
gostam de ler, talvez o prazer da escrita não me tivesse estranhado, pois existe no
imaginário social a representação de que aqueles que lêem bastante escrevem melhor e,
portanto, são fadados ao sucesso escolar.
No entanto, encontrei num ensaio de Anne-Marie Chartier (2005) informações
interessantes a esse respeito. Na França, vêm-se fazendo pesquisas que apontam para “uma
dissociação bem marcada entre o fato de gostar de ler e o fato de ser reconhecido como
bom aluno no âmbito escolar”. As pesquisas referidas apontam tanto para a existência de
adolescentes que são grandes leitores em processo de fracasso escolar, quanto para o
fenômeno inverso: alunos que têm excelente expressão escrita nas atividades escolares,
mas que, entretanto, afirmam que não gostam de ler e que lêem muito pouco. A autora
afirma: “Pode-se ler aquilo que é necessário para ter sucesso na escola, mas sem grandes
investimentos e sem experimentar nenhum prazer pessoal” (ibid., p.137). Do mesmo modo,
penso, alguém pode dominar as regras de construção de um texto escrito sem, contudo, ter
prazer em escrever.
Foi justamente o aspecto do prazer pessoal de escrever que me incitou à reflexão.
Todos os alunos, mesmo os que afirmam não gostar muito de ler, revelaram que gostam de
escrever, não necessariamente que sabem fazê-lo bem.
79 Gilberto Gil, “Quanta”, 1997.
132
É importante que eu diga: na época em que fazia as entrevistas, eu não estava
interessada especialmente pela questão da escrita, de modo que não me pus a indagar os
alunos sobre atividades de escrita no cotidiano do segundo segmento, nem os induzi a falar
mais detalhadamente sobre seu prazer de escrever. Na primeira conversa que tive, por
exemplo, que foi com Pedro, o assunto da escrita apareceu bastante naturalmente, enquanto
lhe mostrava o texto que escreveu na primeira série. A pergunta que fiz foi esta: você
gostava de fazer histórias? Ele então disse que gostava e que gosta até hoje. Depois disso
foi que surgiu a oportunidade de ele falar que lhe apraz criar roteiros para quadrinhos,
apenas porque quer, sem que lhe seja solicitado. Mas eu me ressinto por não ter tido a
presença de espírito necessária para perceber que poderia aprofundar o diálogo sobre o
tema, o que aconteceu também nas demais entrevistas.
Nas aulas de Literatura do “Pedrinho”, o texto aparece de maneiras várias,
articulado à necessidade que se estabelece, em determinadas circunstâncias, de comunicar
alguma coisa por escrito. Chamamos a isto ‘produção de textos’. O professor Geraldi
(2003), discutindo o uso da escrita na escola, em especial nas aulas de Português, faz
importante distinção entre a escrita em que o sujeito diz a sua palavra e aquela em que a
modalidade escrita constitui apenas uma simulação, “para que o aluno se exercite no uso
da escrita, preparando-se para de fato usá-la no futuro.” Chama a isto redação (ibid.,
p.128).
Texto criado depois da história “As fadinhas brincam de modelagem”.80
80 In ALMEIDA, Fernada Lopes de. A fada que tinha idéias. 21 ed. São Paulo: Ática, 1994. O texto do menino diz: “Rinoceronte, eu fiz você com tanto carinho que nunca vou te esquecer. Amor. Assinado: Matheus.”
133
Qual o sentido da escrita na escola? Geraldi lembra que “qualquer proposta
metodológica é a articulação de uma concepção de mundo e de educação (...) e uma
concepção epistemológica do objeto de reflexão.” (ibid.) O que podem revelar sobre isso
as atividades de escrita desenvolvidas em sala de aula?
Texto de apresentação da deusa grega, colocado junto ao desenho, no mural.81
Luís - se o leitor não se lembra -, quando conversamos, estava na sétima série. Não
demonstra muito interesse por leitura em geral. Diz que prefere ler gibis e que, de vez em
quando, lê o jornal Lance, para se informar sobre o seu time e sobre futebol. Atualmente,
gosta, também, de ler o Guinnes, que toma emprestado do irmão mais novo (também ex-
aluno do “Pedrinho” e, por sinal, leitor inveterado), “porque tem fatos interessantes e
surpreendentes.”
Ao ser indagado sobre a parte de escrita das aulas de Português do “Pedrinho”,
Luís perguntou, buscando certificar-se do sentido da minha pergunta: “Redação?”
Confirmei, porque é assim que, no “Pedrão” as produções escritas são chamadas. “Eu
gosto de fazer redação”, disse ele. Mas por quê? “Ah, porque é legal inventar e é melhor
81 O texto diz: “Olá, meu nome é Ártemis, sou a deusa da lua e da caça. Sou irmã gêmea de Apolo e irmã de Atena por parte de pai. Sou protetora das mulheres grávidas./ Adoro caçar veados, minhas flechas são tão fortes que em um tiro certeiro nos animais uma conversão de luz se forma!/ Admiro muito a lua!? Tchau, pessoal!!!
134
que aula de gramática”. Diz que não gosta de Português, que, hoje, as aulas são “mais
chatas” que no “Pedrinho”, “porque o professor bota muita coisa no quadro, não fala
muito, usa mais o quadro. Aqui a gente falava mais sobre as matérias.” Chamado a
lembrar-se de suas impressões sobre as aulas de Português desde a quinta série, ele diz:
No início era legal, porque ainda era uma matéria mais fácil... Mas aí depois foi ficando mais difícil, porque tinha muita coisa pra decorar... Sujeito, orações... Orações ‘subordinativas’ agora... Mas na sexta [série] tinha redação, que era legal.
Explica que, naquele tempo, “tinha o livro de redação, que a gente podia escolher
qual fazer... Tinha os temas e a gente escolhia qual tema e fazia a redação. Aí entregava
pra ele [o professor]”, que dava nota aos textos e os devolvia, apenas.
Para que e para quem se escreve nas aulas? “Na redação, diz Geraldi (2003), não
há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita
pela escola.” O que é avaliar uma redação? Numa concepção de linguagem como
interação, os professores tornam-se parceiros dos alunos, “concordando, discordando,
acrescentando, questionando, perguntando etc.” (ibid.,p.128-9). Não é assim que
procedemos na vida?
Luís diz que gosta de desenhar e de imaginar. Mesmo um mínimo de possibilidade
de escolha que se apresente – como é o caso do uso (Certeau,2003) que o ex-professor de
Português fazia do livro de redação - parece ser atraente para o menino. Segundo ele,
Não tem mais redação na sétima. (...) Antigamente eram aulas separadas: Português, redação. Só que agora o professor faz segunda-feira aula normal, terça-feira redação e sexta aula normal. Só que ele quase nunca dá, nunca pede redação...
Bakhtin (1976) ressalta a fundamentalidade da entoação na constituição dos
sentidos. É através dela que o “discurso entra em contato com a vida” (ibid.,p.8). Ela “está
na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado”, imprime a energia que vem de
uma situação de vida para o discurso verbal (ibid.,p.10). Como traduzir para a linguagem
escrita a potência da enunciação de Luís quando pude ouvi-lo? O menino que não gosta
muito de ler e que também não gosta de estudar Português, curiosamente, fala da pouca
freqüência com que se pede que escrevam ‘redações’ em tom de lamento, decepcionado.
Usei as reticências buscando aproximar minimamente a frase escrita do “seu momento
135
histórico vivo”, de caráter único, que somente poderia ser captado ouvindo entoação de
seu discurso.
Bakhtin afirma:
Qualquer locução realmente dita em voz alta ou escrita para uma comunidade inteligível (...) é a expressão e produto da interação social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor) e o tópico (o que ou quem) da fala (o herói). (ibid.,p.9 – grifo do autor)
Interessa-me aqui pensar um pouco no terceiro elemento destacado por Bakhtin,
isto é, o tópico da fala (o herói). Luís dirige-se a mim, interlocutor, mas sua enunciação
não se relaciona inextricavelmente ao tópico, isto é, à ausência de oportunidades
interessantes de escrita?
A queixa me estranha, porque, no universo escolar, não costuma ser comum que os
alunos reclamem por não terem que escrever. Na nossa sociedade escriturística (Certeau,
2003), a escritura é de tal modo sacralizada que costuma provocar nos sujeitos comuns
uma certa insegurança. Escrever, segundo Certeau (ibid., p.225), supõe a fundação de um
espaço próprio. Escrever, como prática iniciática fundamental em uma sociedade
capitalista e conquistadora (ibid., p.227) significa ter poder. E é justamente o mesmo
menino que afirma não ter muito interesse por leitura que se ressente da quase inexistência
de possibilidades de escrita criativa. Meu “sentido da imaginação”, alerta, me diz, tentando
explicar-me o fato: não é de qualquer atividade escrita que ele fala, mas sim de alguma
possibilidade de escolha. Que antes era trazida pelo uso (Certeau) que o professor fazia do
livro de redação.
Meu ‘sentido da imaginação’ me leva a retornar às possibilidades criativas que se
abriam nas aulas de Atividades no “Pedrinho”, semanalmente. Talvez as Atividades
preenchessem, de modo mais constante, naquele tempo, essa necessidade de criar, de fazer
arte que é própria de nós, humanos, principalmente quando crianças. Como será que se
sentem quando isso deixa de acontecer? Diante do universo de certo modo restrito que os
alunos encontraram, a partir da quinta série, quando a Educação Artística passou a ser mais
“teórica”, como também disse Luís, quando passaram a inexistir os clubes do livro e as
aulas de Literatura, onde constantemente eram desafiados, de maneiras múltiplas, a, por
exemplo, criar personagens e delinear seus perfis, inventar espaços narrativos, enredos e
histórias, como afirmaram outros, imagino que aquele livro de redação, usado daquela
maneira, significasse para ele uma oportunidade de reencontrar um pouco do que se
136
acostumara a fazer no primeiro segmento: “arte, descoberta, invenção”, como diria
Gilberto Gil. Talvez.
Comparo as impressões de Luís com as informações que obtive da coordenadora de
Língua Portuguesa do “Pedrão”. São Cristóvão é a maior Unidade do colégio. No segundo
segmento, há quarenta e uma turmas, que têm, em média, de trinta e cinco a trinta e nove
alunos. Ao todo, são onze professores de Português, cada um com quatro turmas. Cada
turma tem cinco tempos semanais de aulas.
Não existe, na equipe de Português, qualquer determinação em relação ao uso
desses tempos. Segundo Maria Lúcia, o programa tem de ser cumprido, mas fica a critério
de cada professor a distribuição dos conteúdos de gramática e redação na carga horária.
Concluo, assim, que o professor de Luís na quinta e sexta séries tinha por hábito trabalhar
com produção de textos semanalmente, mas não há obrigatoriedade de que isso aconteça.
Parece que a prática é um pouco diferente. “Olha, estourando... pelo menos duas
por mês, vamos dizer assim.” A coordenadora me falou da freqüência com que fazem
redações no segundo segmento. Mas pode acontecer de fazerem apenas uma. Talvez isso
acontecesse durante a sétima série, quando, nas palavras de Luís, o professor “quase
nunca” dava produções de texto.
As redações normalmente valem pontos: “Alguns professores fazem uma redação,
elas são corrigidas mas não valem ponto, em algumas situações. Mas, na sua grande
maioria, vale sim.” Os professores têm autonomia para definir como distribuirão esses
pontos.
Uma outra coisa que descobri através da coordenadora é que os textos escritos
pelos alunos são entregues ao professor, que o corrige e devolve ao autor. Os textos não
costumam circular em sala, os colegas não tomam conhecimento do que outros escrevem.
Como Luís falou: “Não, devolvia só.” Mas, mesmo assim, ele gostava.
Estaria sendo muito parcial se afirmasse que as práticas com a escrita no segundo
segmento se restringem a isso, embora, segundo a coordenadora, em relação às redações,
as coisas costumem acontecer assim. Ela disse também:
Pois é, olha só, de qualquer maneira, deficiências gramaticais, os alunos trazem em maior ou menor escala, agora, a questão é que… Vou falar especificamente de produção textual, nunca se trabalha do zero, ou seja, ninguém mais... há muito tempo que ninguém vai lá e coloca um tema da redação, ‘hoje vamos falar sobre isso’, a coisa não rola assim.
137
Dessa vez, a professora usou a expressão ‘produção textual’, e acho que não foi
acaso. Maria Lúcia me deu notícias de alguns modos de fazer (Certeau,2003) em que as
atividades escritas parecem mais significativas, relacionadas a situações lingüísticas
concretas. Agora, ela relata um trabalho que ela mesma fez :
Funciona justamente com a discussão, a gente leva um tema. Por exemplo, juntando com Internet, ano passado eu tinha a oitava também, aí saiu na revista falando sobre determinado assunto, foi “o que os jovens gostavam de conversar com os pais, com os colegas”... que temas eles gostavam de conversar, veio essa estatística na revista Mega Zine, do Globo. Eu trouxe, xeroquei, conversei com eles sobre isso, a gente conversou, saiu uma tentativa… Tentativa não, aconteceu mesmo, ‘vamos fazer na escola, fora da escola, fica a seu critério’. A gente só fez o questionário, ‘quantos da idade tal, quantos do sexo masculino, quantos do sexo feminino’... ‘Vamos fazer, nós, a nossa pesquisa’. Eles foram, tiveram um prazo, mas era a pesquisa deles, trouxeram, e aí eles fizeram uma redação em que eles colocariam essa estatística, mas não a estatística pela estatística, a estatística interpretada, queria os números interpretados, assim como a Mega Zine fez. (...) “O que vocês concluíram daí? O que vocês pensaram?” E saíram redações muito boas. Na verdade, não foi nem na Internet, a gente só usou o computador, um software de estatística, que aí eles montaram a estatística, ele colocaram aquilo no papel e anexaram as redações. As redações tinham o suporte das suas pesquisas. Isso é um texto muito… Porque eles conseguiram, realmente, transpor o mundo, simplesmente não disseram “tantos falaram isso, tantos falaram isso, porque”… E aí eles tiraram suas conclusões. Então, foi alguma coisa… E eles gostaram. Então a redação sempre nasce de uma discussão.
Como pesquisadora do cotidiano e entendendo os limites de uma pesquisa como a
que faço, penso que, para tentar compreender um pouco da complexidade que envolve o
ensino de língua no “Pedrão” e, a partir das compreensões tecidas, poder concluir algumas
coisas, muito mais deveria ser feito: seria preciso mergulhar (Alves, 2002) no cotidiano
das aulas. Portanto, não me cabe aqui muito mais que tentar compreender o que sentem os
alunos participantes da pesquisa.
Taís é outra que não tem grandes afinidades com a leitura. Até chegarmos a esse
ponto da entrevista, falava sobre leitura com uma entoação muitas vezes insegura, quase
culpada por preferir fazer outras coisas que não ler. No entanto, ao falar de escrever, sua
voz muda de tom, fica segura, firme. Ela diz: “Ah, eu gosto de escrever à beça!” Após
breve interrupção, continua:
Pra mim é fácil. Que eu gosto de escrever, eu acho que eu SEI escrever... Eu uso uma... Quando eu vou escrever sério, eu escrevo com umas palavras bonitas, assim, sabe, que eu aprendo, né...
Pergunto onde ela aprende. “A minha mãe fala... E em textos também... E eu gosto
bastante de escrever, e eu acho que eu sei escrever bem.” Fala com desenvoltura,
138
comparando seus conhecimentos ortográficos aos de sua irmã mais velha, também aluna
do colégio, que ainda tem dúvidas que para ela não existem, são muito fáceis. “Acho que o
“Pedrinho” ajudou bastante, que sempre [se] ‘puxava a orelha’ de escrever certo, com
pontuação, não usar palavras repetidas...”, concluiu.
Ao perceber que escrever bem para ela poderia significar escrever
ortograficamente, perguntei se, no “Pedrinho”, havia a preocupação com o
desenvolvimento do texto. Afirma que sim, com veemência. Fala das orientações que eram
dadas, em Língua Portuguesa, para que parafraseassem, para “passar [o conteúdo dos
textos] para as nossas palavras, essas coisas assim...” Embora diga que não sabe fazer isso
tão bem, afirma que “o “Pedrinho” foi bastante importante pra TODOS NÓS que passamos
pro “Pedrão”, nós que fomos da quarta pra quinta série, acho que o “Pedrinho” foi bastante
importante pra gente.”
Quando conversei com Clara, o tema ‘escrita’ também foi lembrado por ela, que, ao
recordar da Literatura no “Pedrinho”, falou:
Ah, eu lembro que a gente fazia vários textos, várias redações, e as redações foram se aprofundando na quarta série, depois que a gente fez MUITAS redações, mais na quarta série, pra poder se preparar para começar o ensino fundamental da quinta à oitava.
E ela prosseguiu, falando de outras coisas que fazíamos. Mais adiante, ela disse que
adorava e ainda adora escrever. E credita ao “bom ‘Pedrinho’ que fez a oportunidade de
desenvolver a imaginação, que a ajuda muito em circunstâncias de produção de textos.
Nas aulas de Literatura, a escrita pode aparecer em circunstâncias diversas. E a
lembrança de Clara corresponde ao que acontecia durante sua quarta série. De fato,
criamos, naquele ano, várias histórias grandes, com temáticas diversas, como aquela de
Ana Beatriz, que antes apresentei. Eu gostava de chamar cada autor à minha mesa, para
que ele lesse para mim e, a partir daí, fôssemos encontrando possíveis problemas e
aprimorando o texto.
Uma outra coisa que costumamos fazer é arranjar um modo para que as histórias
possam ser lidas e conhecidas pelos colegas. Podemos colocá-las num mural, ler em voz
alta fazer um ‘livro’... Mas, sobretudo, fazer os textos circularem.
E eu continuo perscrutando a escrita. Quando mostrei a Ana Beatriz seu texto da
quarta série, em que ela começa dizendo “escrevo esta carta ao excelentíssimo rei de
Portugal”, perguntei de onde veio a palavra “excelentíssimo”. “Aula de Português!”, ela
139
disse. E se pôs a lembrar de Drácula, livro lido em sala de aula no início do ano do ano
letivo, junto com a professora Mary: “(...) aí ele [o autor] escrevia todo formal e eu achava
aquilo liindo! (...) Eu me lembro que a gente leu o Drácula e aí a gente escreveu – a gente
escrevia tão bem!” Diante da sua apreciação, perguntei: “Escreviam, é?” E ela concluiu:
“Aí eu tinha que escrever também bonito, igual a ele .”
Todo esse bloco de recordações veio junto com risos. De prazer, parece. E a
recordação de Ana me leva a Vítor Lourenço, aluno da quarta série em 2005.
Tudo começou assim: ao chegarmos à sala, Guilherme perguntou se podia ler para a
turma uma história que escrevera. Disse que sim. Era um texto que contava aventuras
fictícias vividas pela “Família 406” (este era o título, alusivo ao número da turma). Ao
final da aula, Vítor, timidamente, como é o seu jeito, perguntou-me se também ele poderia
levar sua história para mostrar, ao que assenti.
O texto que o menino levou para a aula seguinte foi uma história de aventura muito
bem escrita, com dezenas de capítulos, cada qual com um subtítulo, copiada com esmero
num caderno grande cujas páginas ele numerou: 36. Começa assim:
140
Eu fiquei tão impressionada com aquela surpresa que achei por bem conversar com
ele mais amiúde para saber como se originara o texto. Foi na hora do recreio e com
gravador. Ele me disse que aquela não era sua primeira história, mas as outras “nunca
foram tão grandes e tão organizadas”. Segundo ele, aquela era “a primeira história oficial”.
Foi grande minha surpresa quando ele me revelou: “Ela foi inspirada num jogo de
videogame que eu tenho.” Alguns personagens fazem parte do jogo e “os outros vieram da
minha cabeça.” Assim, fui colocada diante de um sujeito que inventava um uso diferente
do previsto (Certeau, 2003), “porque no videogame não é muito bem história; você tem
que lutar contra eles e você ganha deles”. Durante a entrevista, Vítor deixou transparecer
toda a satisfação que tivera ao interferir no já-dado, ressignificando o já-dito, fazendo
emergirem, no emaranhado das redes que o constituem, suas contrapalavras
(Bakhtin,2004).
Vítor mostra que assimilou os esquemas da linguagem do videogame
astuciosamente, como diria Certeau (2003). Não se conformou à ordem estabelecida, mas
se apropriou daquela linguagem, aproximando-a daquilo que ele é. Subverteu-a,
ressignificou-a. Trançando os fios de outras redes, Vítor deu vida ao que lhe parecia
estanque.
Peço licença para uma digressão: isto me lembra o que responde à sua mãe Clara
Luz, personagem de uma história82 que sempre apresentamos às crianças. A Fada-mãe,
preocupada com a falta de interesse que a filha demonstrava por aprender a fazer as
mágicas ensinadas no velho Livro das Fadas, a interpelou:
- Mas minha filha (...), todas as fadas sempre aprenderam por esse livro. Por que só você não quer aprender? - Não é preguiça, não, mamãe. É que eu não gosto de mundo parado. - Mundo parado? - É. Quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda. Quando ninguém inventa nada, o mundo fica parado. Nunca reparou?
E o mundo das histórias também andou, através da ‘mágica’ que Vítor fez com o
jogo.
No decorrer da nossa conversa, eu quis saber o que o menino sente quando está
escrevendo.
82 ALMEIDA, Fernanda Lopes de. A fada que tinha idéias. 21 ed. São Paulo: Ática, 1994, p.3.
141
Ah... Quando eu escrevo... Primeiro, eu só escrevo na hora que eu estou com muita vontade mesmo, aí eu escrevo, aí sinto mais vontade, mais vontade... Aí, quando eu começo, eu só paro quando eu tenho que fazer alguma coisa. Porque a minha história é uma história de aventura, né... Aí eu sinto uma... sinto, é... Me sinto bem escrevendo quando eu tô com vontade... Porque é ruim fazer quando não está com vontade...
Ele prosseguiu falando do seu modo de fazer:
Algumas coisas que os autores fazem eu faço na minha, entendeu? Por exemplo: no texto, no livro, do Harry Potter, quando a fala era muito grande, ela usava aspas; quando a fala tinha mais de um parágrafo, entendeu? Aí eu usei isso, mas foi recente.
Como tinha me chamado à atenção o uso constante dos verbos no pretérito-mais-
que-perfeito que Vítor fazia na sua história, perguntei: “Pretérito-mais-que-perfeito. Você
sabe o que é isso?” Ele disse que era uma forma verbal, mas teve dificuldade em dizer
como era, disse que já tinham estudado isso havia “muito tempo”, na terceira série. “Eu
quero saber como você usa o pretérito-mais-que-perfeito tão bem no texto. Onde você
aprendeu isso?” De propósito, eu estava fazendo uma pergunta inútil, pois ele não sabia do
que eu falava. Foi aí que completei: “Você escreve ‘fizera’, ‘acontecera’, ‘nascera’...”
Então ele sorriu com um prazer indescritível e falou assim: “Ah... Eu gosto de usar isso. Às
vezes eu vejo nos livros... Eu gosto de usar o pretérito-mais-que-perfeito.”
“Às vezes eu vejo nos livros.” E eu, às vezes, vejo na vida os fios de tantas redes se
entrelaçando na formação das crianças. Às vezes, sou presenteada com situações assim.
Num ensaio em que compara a produção textual de um aluno reprovado na segunda
série com a de um vestibulando, Geraldi (2001) é levado a perguntar: “O que acontece no
processo escolar que torna autores dos inícios da escolarização em repetidores de leituras
mal digeridas no final da escolarização?” O professor afirma que, tentando aproximar a
sala de aula do mundo cotidiano, a escola promoveu uma diversificação de gêneros
textuais a se trabalharem, mas que esse movimento, “em benefício da presença de
inúmeros outros gêneros discursivos, de modo geral textos pragmáticos ou referenciais”,
acabou por ocasionar, em contrapartida, o distanciamento da literatura dessas mesmas salas
de aula. Tal procedimento vem sendo responsável, segundo sua hipótese, pela progressiva
falta de habilidade que demonstram os alunos em produzir seus textos. Isto porque
“enquanto o texto literário exige maior autoria do leitor no processo de produção de
142
sentidos, autoria que se espera deste mesmo leitor quando escreve um texto, é
precisamente este gênero de texto que a escola marginaliza.”
As observações de Geraldi e os depoimentos de Ana Beatriz e Vítor Lourenço me
induzem a retomar o diálogo que tive com a professora Patrícia, que, tendo acompanhado
uma turma por quatro anos como regente do Núcleo Comum, analisa o desempenho de
seus alunos de modo a confirmar a importância da Literatura. Perguntei se ela conseguia
ver, no dia-a-dia, algum retorno que pudesse se relacionar a experiências vividas nas aulas
de Literatura, interessada que estava em perceber a influência da literatura no processo de
conhecimento das crianças.
Eu acho que se não houvesse a Literatura, essa turma que eu acompanhei... Eu posso falar disso, tenho quatro anos [com eles]: S.I., primeira, segunda e terceira [séries], estou deixando agora. Então eu percebi isso, quer dizer, quando eu ia falar de algum ‘estilo literário’, as crianças já tinham noção daquilo. Uma história que eu dava - porque eu não me preocupava especificamente em falar de estilo, eram textos para interpretação -, mas se eu lia, por exemplo, uma história do folclore, eles já conheciam aquilo ali. Quando eu trabalhei “contos de medo”, eles já tinham trabalhado esses personagens na Literatura, as características etc. Isso enriquece muito o trabalho, a interpretação, a compreensão da leitura, entendeu?
Patrícia, de certo modo, pensa de modo similar a Júlia, que, se o leitor está
lembrado, também me falou da recepção positiva que os alunos demonstram em relação a
livros e temas conhecidos nas aulas de Literatura.
Além disso, Patrícia considera que essas experiências também interferem nos textos
que os alunos são capazes de produzir, “porque a criança lê mais, se interessa mais pela
leitura”. Disse que viu crianças fazendo coisas que ela não tinha ensinado, ousando estilos
de escrever que ela supõe terem surgido pela experiência da leitura, como Vítor Lourenço
me disse ter acontecido com ele.
A professora, a partir do relato do que viu as crianças escreverem, fez uma reflexão
sobre o desenvolvimento de competências relativas à linguagem escrita, baseada na sua
experiência como professora do Núcleo Comum.
Eu acho que há erros e há erros. Entre uma criança chegar na terceira série começando uma palavra com “ç” e uma outra que mistura tempos verbais na história, a que mistura tempos verbais está muito mais adiantada. Porque ela percebeu, ao ler livros, que existe o ‘presente histórico’. Então ela conta “Fulano chega à sua casa e não sei o quê...” Só que ela não tem maturidade pra desenvolver uma história toda no presente e aí no final ela acaba usando
143
o pretérito perfeito. Mas, se você comparar, em termos de construção da língua escrita, ela está muito mais avançada que outras que cometem [ininteligível]. Então eu vi as crianças fazendo isso. E toda essa questão dos personagens, como eles trabalham os personagens, como engendram histórias, entendeu?
Vejo Vítor nessa rede. O cuidado que o menino demonstra na apresentação dos
personagens da sua história e das suas inter-relações, por exemplo, para mim, revelam que
a experiência de leitura o leva a buscar aplicar seus conhecimentos de leitor no próprio
texto.
A professora prosseguiu sua análise, dessa vez, comparando o passado com o
presente:
Quando eu comecei a dar aula, mesmo aqui no Pedro II, eu não via crianças fazendo histórias tão bem elaboradas, com o personagem, as características do personagem e não sei o quê, e é o lado bom e é o lado ruim... Eles inventam esse tipo de coisa na história!... Quer dizer, isso NÃO É uma coisa comum e NÃO ERA comum. A criança, antigamente, fazia aquela história “O boi viu a vaca, não sei o quê” e acabou... Ainda que a gente pague um preço por isso, porque eles não têm maturidade pra escrever tanta coisa corretamente. Se você for ver em termos ortográficos, eles até erram mais do que aqueles antigos, que escreviam tudo certinho, mas escreviam “O boi viu a vaca bebendo água não sei onde”. Mas eu acho que é um trabalho fundamental.
O depoimento de Patrícia revela-me a extensão dos fios que os sujeitos podem tecer
pela experiência da leitura literária. A alfabetização plena pressupõe a inclusão dos sujeitos
numa rede de práticas em torno da leitura. Aquilo que Chartier (1994) denomina
comunidade de leitores não é parte dessa rede?
Certeau (2003), opondo-se às concepções tradicionais que encaram a leitura como
uma atividade de decifração e reprodução de sentido, apóia-se em pesquisas da
psicolingüística e afirma que o aprendizado da leitura na escola é paralelo à aprendizagem
da decifração do código, e não posterior a ela.
(...) ler o sentido e decifrar as letras correspondem a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem. Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um texto afina, precisa ou corrige.(ibid.,p.263)
144
Ler também é arranjar formas de diálogo imprevistos e imprevisíveis. Ou, como
disse Certeau (2003), numa das mais belas definições de leitura que já pude conhecer:
Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antigamente mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. (ibid., p.269-270)
Talvez de tanto passearem por terras alheias, nossos leitores-viajantes quiseram
levar um pouco do que caçaram e também fundar seus lugares próprios. Ana Beatriz
queria escrever com estilo bonito que nem o autor; Vítor experimenta /arrisca escrever
como nos livros que lê, os alunos da turma de Patrícia engendram muitas artimanhas nas
narrativas que criam. Em todos esses casos, os alunos demonstram uma relação de sujeitos
dos discursos que escrevem. Escrevem textos, e não redações (Geraldi, 2003).
Parece que os alunos em questão levam, das oportunidades de leitura encontradas
na escola possibilidades de reflexão sobre o mundo e a palavra escrita. Para alguns, o
prazer de ler parece influir diretamente no prazer de escrever.
3.6- Os Clubes De Leitura No “Pedrinho”, as atividades com leitura de textos literários não se circunscrevem
às aulas de Literatura, como já se disse anteriormente. As outras professoras também têm
práticas em torno da literatura, também lêem histórias para as crianças, porque, afinal,
estamos num ambiente com finalidade alfabetizadora, e tudo leva a crer que a escola
entende como necessária a presença do texto literário nesse processo. Porém, um aspecto
não deve ser desconsiderado: há quem invista mais no trabalho com tais textos em sala e há
quem invista menos, ou com certa limitação.
Considerando que, em Literatura, somos herdeiras diretas das práticas iniciadas no
passado, é preciso deixar claro que uma das diferenças existentes entre o nosso trabalho e o
das demais professoras é que nós trabalhamos exclusivamente com textos literários. Dessa
forma, ainda que a professora regente, em seu cotidiano, não se atenha tanto à exploração
das possibilidades desse gênero textual, a existência da Atividade, a meu ver, constitui uma
145
garantia de que todos os alunos possam ter a experiência do contato com a literatura da
forma como fazemos.
Há muitos anos, no “Pedrinho”, uma outra prática vem se disseminando em torno
da leitura, integrando uma rede estimuladora de relações mais próximas e prazerosas das
crianças com os livros. São os Clubes de Leitura ou Clubes do Livro.
Não existe aí propriamente uma novidade. Em outras escolas, podem se chamar,
por exemplo, ‘rodas de leitura’, ‘bibliotecas de classe’ etc.; não importa. São nomes vários
para designar projetos semelhantes, frutos do desejo que tantos professores acalentam de
assumir o cotidiano escolar como um lugar privilegiado para formar leitores.
Os “clubes” são uma atividade de promoção da leitura feita pelas professoras do
Núcleo Comum. Consiste na arrecadação de uma certa importância em dinheiro junto aos
responsáveis para a compra de livros, em sua maioria de ficção e poesia, para formar uma
espécie de biblioteca da turma. Explicam melhor as professoras Marta e Valéria83:
Logo no início do ano letivo, propomos às crianças a formação de uma biblioteca de sala de aula onde possamos ter livros que sejam escolhidos por eles e que contenham histórias e outros textos de seu interesse. Nas turmas de SI, (...) que acabam de ingressar na escola, essa proposta vem no bojo do trabalho de organização do espaço e reconhecimento da sala de aula, respondendo à pergunta: o que mais podemos ter em nossa sala? As crianças opinam e os livros freqüentemente fazem parte das sugestões. Quando não ocorre, é a vez do professor, que também faz parte do grupo e atua nesse espaço, propor a presença de livros, revistas e outros materiais impressos, tendo em vista o momento especial em que todos estão envolvidos: da apropriação do código escrito. Nas séries seguintes, a proposta do Clube de Leitura vem como uma continuidade do trabalho iniciado na S.I., e de como podemos renovar o nosso acervo, adquirir livros novos que atendam à nossa nova condição de leitor.
Os livros adquiridos são escolhidos pelas crianças em conjunto com as professoras,
através, principalmente, do exame de catálogos das editoras. Durante o ano, os alunos vão
tomando emprestados os livros para ler em casa. A dinâmica de empréstimo e as atividades
realizadas em torno da leitura feita, bem como o destino que se dá aos livros no final dos
períodos letivos, obedecem a critérios que variam de turma para turma, dependendo de
como a professora e os alunos entendam o processo.
83 CHAMARELLI, Marta Alarcon & SILVA, Valéria Cristina da. “Um lugar para a formação de leitores na escola. Clube de leitura. Relato de experiência”. Comunicação apresentada no II Encontro de Professores da Associação de Docentes do Colégio Pedro II – Escola: substantivo plural. Rio de Janeiro, 2005.
146
Escolhidos os títulos e adquiridos os livros, as turmas promovem sua inauguração,
tratando, antes, de escolher o nome que terá o “clube” e de criar a logomarca que o
representará. As famílias são convidadas a comparecerem e, para isso, as crianças criam
também os textos dos convites. No dia da inauguração, fazem uma apresentação para os
responsáveis, que são estimulados a participar da leitura feita em casa junto com as
crianças.
Ina(S.
Os “club
dizer de quem f
prática, mas, co
coordenação de
que, hoje, não h
É uma at
maneira diferent
existentes entre
ler e a leitura
necessariamente
conteúdo progra
uguração do Clube do Livro na turma da professora Marta I. 6, 2006)
es” começaram a acontecer há mais de uma década, mas ninguém sabe
oi a primeira iniciativa. No princípio, apenas algumas pessoas tinham essa
m o passar do tempo e com o estímulo representado pelo referendo da
Língua Portuguesa, outras professoras foram aderindo à idéia, de forma
á quem não o tenha em sala.
ividade interessante porque promove o encontro da criança com o livro de
e da realizada nas aulas de Literatura. No “clube”, guardadas as diferenças
as práticas das diversas professoras, o aluno pode escolher o livro que quer
é feita individualmente, num lugar e num tempo que não são,
, os da sala de aula. Já na sala de Literatura, as histórias estão ligadas ao
mático do trimestre e são ouvidas em grupo.
147
No cotidiano da escola, pode-se perceber o envolvimento que essa atividade
provoca entre as crianças. “Tia, no ‘clube’ tem um livro que fala disso!” “Ah, isso eu vi
num livro lá do ‘clube’.” Frases como essas, muitas vezes surgidas por causa do assunto
que estamos discutindo no momento, eu costumo ouvir bastante freqüentemente nas
minhas aulas.
Quando conversei com nossos ex-alunos, os “clubes” foram lembrados. E
lembrados de tal forma que eu não poderia deixar de referenciá-los nas trajetórias que vêm
tendo aqueles adolescentes como leitores. Não tratarei da diversidade de práticas que
existem na escola em torno do “clube”, mas sim de como os alunos me apontaram sua
influência na relação que eles têm (ou tinham) com os livros.
A maior parte dos alunos lembrou espontaneamente da existência desses clubes, ao
tratarem das atividades de leitura no “Pedrinho”. Apenas a André precisei perguntar se ele
se lembrava daquilo que se chamava Clube do Livro. “Lembro, claro. Tinha todo ano, até a
quarta série”, ele me respondeu.
Para que se lia nos “clubes”? “Era só pra ler”, me disse Ana Beatriz. “De vez em
quando a gente fazia uma redação... De vez em quando mesmo! Só sobre o que você leu...
se você gostou ou não...”, concluiu.
Outros alunos lembraram de outras atividades que aconteciam a partir das leituras
que faziam, mas ninguém me disse que elas tinham qualquer relação com notas e pontos.
Nesses “clubes”, a leitura alcançava uma circularidade. Na sala, em que “todo
mundo ficava trocando os livros”, como disse Luís, ou mesmo fora da escola, conforme
lembrou Taís: “Eu gostava de ler. Depois eu até mostrava para a minha mãe, que a minha
irmã também era do “Pedrinho”, a gente lia também as coisas... A gente fazia com prazer,
sim.”
Isso que disse Taís também me falou Cristina Corção, ao dar sua opinião sobre os
clubes no “Pedrinho”:
A grande vantagem, a inegável vantagem do clube de leitura, que eu aqui, como professora de Literatura, não posso deixar de citar, é o fato de a gente ser uma escola pública, de esses livros serem caros e, através de clube de leitura, você socializar, você democratizar essa leitura. Então você tem um menino simples, da classe popular, levando às vezes um livro de R$38,00 pra casa, porque a professora do clube do livro consegue comprar, com as suas economias (...) Então, muitas vezes esse livro de R$38,00, capa dura, papel cuchê, um trabalho de alta qualidade, ele leva aquilo pra casa e vira um elemento na casa dele, vira um objeto de arte que circula naquela casa, que talvez eles não tivessem oportunidade de ver, de sentir, de sentir, diria
148
eu. Uma vez uma mãe de um aluno, o Daniel Almeida, (...) me contou que ele levou um livro do Clube de Leitura pra casa e ela entrou no quarto pra mandar os meninos estudarem. Ela tem ele e um outro menino, e o mais velho, que não é nosso aluno, estava lendo o livro do Clube de Leitura do Daniel, fascinado; e ela ralhou com ele, porque ele é mais velho, ele tinha que fazer o dever de Matemática (...) e ele estava se deliciando com o livro do Clube de Leitura do irmão.
Ana Beatriz lembrou de um fato que, pelas conversas informais na escola, eu sei
que é comum nas atividades do “clube”. Falou disso depois de dizer que achava “bem
divertido (...), bem interessante mesmo” a possibilidade de ‘ler por ler’.
Eu lembro que tinha, também, disputa por um livro só! O livro era Arquivo Z! Eu me lembro que tinha, acho, uns três diferentes, mas SEMPRE tinha uns moleques que iam lá correndo tentar pegar o livro pra ler! (...) Todo mundo queria ler aquele livro. É porque era assim meio... meio investigativo, meio... Era bem interessante.
Crianças disputando livros são a própria imagem do paraíso para tantos professores
que sonham ver seus alunos leitores. E parece que isso acontecia/acontece pelo mesmo
motivo que, fora das formalidades escolares, os leitores são, muitas vezes, levados a ler
determinados livros: a opinião de alguém sobre eles. Falando na roda sobre o livro que
leram, as crianças influenciam as outras em relação à leitura de um livro ou de outro.
Clara, a cuja memória escapam alguns detalhes, como, por exemplo, quem escolhia
os livros, de que modo eles ‘apareciam’ na sala de aula, ainda é capaz de opinar sobre eles:
“Ah, eu gostava, sim, eram livros bastante interessantes, de histórias, assim, clássicas; na
maioria das vezes histórias clássicas, mas tinha também outras histórias que me
fascinavam muito.”
Luís tocou num outro aspecto importante, ao falar sobre a qualidade dos livros da
sala de aula: “Tinha uns livros engraçados, de animais, piadas... E tinha uns chatinhos lá...”
Disse que não era obrigado a pegar os livros que achasse desagradáveis, “pegava só os que
quisesse.”
Há diferentes práticas, no “Pedrinho”, em relação aos Clubes de Leitura, mas isso
não concerne à minha pesquisa. Importante, do meu ponto de vista, é que esse espaço ficou
na memória porque, de uma forma ou de outra, ampliou oportunidades para que ler se
constituísse numa experiência prazerosa para esses meninos e meninas.
149
3.7- A Leitura No Segundo Segmento: Pedras No Caminho?
Durante todo esse tempo de pesquisa, venho ouvindo os ‘fuxicos’ de muitos
praticantes do cotidiano escolar, tentando descobrir sentidos no que me é dito e refletir
sobre a escola, a partir deles. Como o leitor bem sabe, chegou um dia em que a caminhada
pelo espaço (Certeau, 2003) do “Pedrinho” chegou ao fim. Mas a trajetória (ibid.) pelas
vias da leitura não.
Sei que estou em meio a uma complexidade (Morin, 1996) e tenho que escolher
possibilidades para com ela me relacionar. Muita coisa me foi dita, mas não posso, neste
trabalho, esmiuçar todas elas. Todavia, não posso, também, se trato de trajetórias,
desprezar o que vem sendo vivido no “Pedrão”. Impossível não olhar, ouvir, cheirar,
provar e imaginar um pouco do cotidiano com a literatura no segundo segmento.
A passagem para o “Pedrão” trouxe ao cotidiano dos alunos, em relação às práticas
de leitura, mudança significativa: os livros deixaram de freqüentar as salas de aulas, dando
lugar às leituras dos textos dos livros didáticos e às chamadas ‘leituras extra-classe’. A
leitura passou a ser avaliada quer por meio de provas, quer através de trabalhos, ou mesmo
dos dois modos. Mas sempre cobrada com instrumentos de avaliação que
atribuíam/atribuem pontos ao ato de ler, ou, melhor dizendo, ao produto de tais
certificações.
Enquanto falávamos dos Clubes de Leitura, tive oportunidade de conversar com os
alunos sobre as diferenças que eles sentiram no campo da leitura literária. Embora este
trabalho não tenha a intenção, ou a presunção, de avaliar a prática do segundo segmento,
para tentar compreender aspectos que favorecem ou dificultam a formação dos alunos
como leitores, é impossível desprezar o que eles relataram de suas experiências posteriores
ao “Pedrinho”.
Perguntei a Pedro se, ao passar para a quinta série, alguma coisa tinha mudado na
relação que ele tinha com a leitura. “No ‘Pedrão’, eu comecei a ler menos”, disse de
imediato. Por quê? “Porque lá não tinha o Clube do Livro, não tinha... digamos que uma...
ah, alguma coisa que incentivasse a gente a ler”, ele me disse. E depois: “Tinha uma prova,
que você lia o livro e fazia (...), mas isso até ‘desincentivava’ a pessoa a ler, porque você
lia obrigado.”
Pedro se mostrou extremamente crítico em relação à leitura cobrada, fazendo clara
oposição entre os efeitos desta e a leitura livre. Fala taxativamente que, na sua formação
150
como leitor, o “Pedrinho” teve influência, mas o “Pedrão” não, porque, no primeiro
segmento, as professoras incentivavam bastante a leitura. Afirma com veemência que ler
por incentivo “faz toda a diferença”: “quando a gente lê porque GOSTA é diferente de
quando a gente lê porque TEM QUE LER. A gente começa a gostar mais de ler.”
Ele me disse que, mesmo não lhe sendo possível escolher os livros, “lia tudo, eu
gostava...”. Ele lembrou que o mesmo não acontecia com outras pessoas:
“ Eu até gostava, mas um monte de amigos meus pararam de gostar de ler por causa disso, porque era obrigado a ler não sei o quê, e aí ficaram sem ler um montão de tempo. (...) Aí diziam ‘ah, que se dane essa prova, não sei o quê, não vou ler livro nenhum, não!’”
Depois, revelando-se uma pessoa bastante observadora, me falou assim:
Eu via que as pessoas começavam a ler cada vez menos quando eram obrigadas a ler. Mas tem muita gente que voltou a ler bastante agora, pelo que eu tenho observado... Quando chegou no primeiro ano já estava lendo bastante. Eu sempre via alguém com um livro na mão.
André, respondendo sobre como passou a ser a leitura na escola a partir da quinta
série, disse simplesmente: “No colégio nunca mais teve Clube do Livro, que eu nunca mais
peguei livro na escola!...”
Para ele, talvez isso não tenha constituído um problema, já que seu interesse por
livros era grande desde antes e, hoje, extrapola as indicações escolares. Esse parece ser
também o caso e Pedro, Clara e Ana Beatriz, para quem a leitura literária e outras fazem
parte de seus prazeres, independentemente do colégio. Mas não é o caso de Taís, que, a
julgar pelo que me disse, ainda precisava de mais estímulos para reforçar suas relações
com a leitura. Ainda falando sobre as aulas de Literatura, ela disse: “E depois das aulas de
Literatura, assim, quando a gente saiu do “Pedrinho”, a gente só lia... Eu, por exemplo, só
lia mesmo os livros que mandavam, entendeu?”
A formação do leitor, mesmo sendo responsabilidade da escola, também envolve
outros espaços, outras redes. Na entrevista que fiz com Taís, diferentemente do que me
disseram os outros, a pessoa que aparece várias vezes falando, estimulando, tentando
aproximá-la mais do universo da leitura é sua mãe. No “Pedrinho”, disse que lia contos de
fadas e que havia os livros do “clube”. Mas, depois, a voz da escola emudeceu. Parece que,
tendo ficado distante da leitura gratuita, suas influências positivas desvaneceram.
151
Taís não tem , ou não quis revelar, uma visão crítica em relação à leitura cobrada
em provas. Perguntei-lhe se gostava da prova de leitura e ela disse:
Gostava. Mas outro dia a minha mãe estava falando pra eu me interessar mais por leitura, essas coisas assim, aí eu falei pra ela que eu não gosto de ler, aí ela falou que a pessoa aprende a gostar praticando. Quando eu pego um livro pra ler, eu gosto, entendeu? [riso] Mas eu acho que é mais por preguiça mesmo, não sei, né... Porque eu já li vários livros de... Anne Frank, essas coisas assim, e eu gostei! Aí ela falou pra eu ler O mundo de Sofia, A moreninha... Aí eu vou... Vou tentar ler... [riso]
Imediatamente após falar que gostava das provas, Taís afirma não gostar de ler.
Poderia ter sido diferente se o cotidiano na escola tivesse sido diferente?
Já Ana Beatriz se recorda de suas expectativas:
Aí eu me lembro que cheguei e pensei que... FOSSE TER LITERATURA.(...) Porque sempre era assim, sempre a gente tinha Literatura... Aí a começou a ter, mas com Português, mas não tinha nada a ver com o que era aqui!... (...) Aí eu... fiquei meio decepcionada... Mas depois eu comecei a me acostumar. (...) Aí a gente começou a ter mais maturidade... A princípio foi decepcionante, mas depois comecei a pensar: Não, mas também a gente tem que amadurecer, ver como que é diferente, o mundo pega a gente...
Enquanto falava, a menina lembrou que, lá, “ninguém contava historinha” para
eles. Amadurecer pressupõe perder prazer? Será que foi isso que ela aprendeu?
Disse-me a coordenadora de Português que os Clubes do Livro não acontecem no
“Pedrão” porque
Tem que ter um controle, tem que ter prazo, o livro tem que rodar, você tem que ter uma proposta de trabalho que você consiga abarcar toda aquela gama de… E por mais que seja dentro de um gênero, são enredos diferentes, então você tem que fazer alguma coisa que unifique, que você consiga cobrar de uma forma… “Eu não vou poder fazer, posso até fazer pontual, fulano leu tal obra e tal obra”, mas aí já vai ficar uma coisa muito dispersa, talvez mais trabalhosa, e isso acabe desestimulando o professor a trabalhar dessa forma.
A professora lembrou que já houve, no passado, quem organizasse um clube de
leitura em sala, mas
Nem que fosse um fichamento, algum controle tinha, mesmo que fosse um mero fichamento, de ele fazer um resumo, até pra você ter um controle de que aquele aluno realmente leu aquele livro, porque senão também a proposta… Eu sei que a gente tem que incentivar a leitura, etc. e tal, mas a gente sabe que existe aluno que pega o livro e não lê.
152
A preocupação com o controle e a cobrança ficou bastante explícita na fala da
coordenadora. Esse modo de conceber o processo de ensino não é, sabemos, uma
característica somente dos professores do segundo segmento, nem mesmo apenas desse
colégio. Para Fonseca e Geraldi (2003, p.110), esse tipo de preocupação tem muito mais
relação com o controle do aluno do que com a avaliação de um processo. Por isso dizem
que
Recuperar na escola e trazer para dentro dela o que dela se exclui por princípio – o prazer de ler sem ter que apresentar à função “professor-escola” o produto deste prazer – exige que se repense a avaliação, não como controle de produtos mas como revisão do processo. (ibid.)
Enquanto conversávamos, falei a Maria Lúcia do quanto os alunos do “Pedrinho”
estão acostumados a conviver com os Clubes do Livro e que eles marcaram essa diferença
ao falarem da passagem para a quinta série. Disse ter havido quem dissesse que a leitura
obrigatória cobrada desestimulava a ler e perguntei sua opinião. Ela respondeu:
Eu não sei se cobrar uma leitura desestimula não, eu acho que, se o aluno gosta de ler, isso independe; nem todo livro que cai na mão de quem gosta de ler é um livro que realmente vai agradar, ele tem liberdade de fechar o livro ou não, a única inconveniência é que teve que ler o livro até o fim. Mas não sei, não dá pra você agradar a todos. Por mais que a gente tente...
E prosseguiu, dizendo um pouco qual o processo que usam para escolher os livros a
serem indicados:
Olha que a gente faz uma seleção de leituras que a gente considera que o aluno vai gostar, a gente fica lendo muitas vezes o livro, às vezes a gente demora a escolher o livro exatamente porque a gente lê e percebe… Porque a gente não vai pelo título pura e simplesmente, a gente pega o livro, lê, vê se interessa (...)
A professora mostra os esforços feitos pela equipe de Português para escolher os
livros que os professores consideram que vão agradar. Deu a entender que todos os
professores devem ler os livros antes da escolha, como costumamos fazer em Literatura, no
“Pedrinho”. A diferença é que, num trimestre, os alunos do primeiro segmento ouvem
coletivamente muitas histórias diferentes, já, a partir da quinta até a oitava série, a leitura
de livros é individual e, no máximo, trimestral.
153
No processo de formação de leitores, “parece necessário que haja uma experiência
de prazer do texto”, diz Luzia de Maria (2002). O desejo fala mais alto que a ordem. A
autora resgata a afirmação de Pennac: “O verbo ler não suporta o imperativo”. Lembra que
“a exigência de leitura de um certo texto (...) muitas vezes produz o resultado inverso ao
desejado: em vez de propiciar a formação de leitores, produz o afastamento desses alunos
de qualquer tipo de livro”. E indaga: “Mas o objetivo primeiro da escola não seria
justamente inserir o aluno na dinâmica da leitura?” (ibid. p., 53)
Que outras relações os alunos relataram que vêm tendo com as leituras propostas
pela escola? Emendo nesse ‘fuxico’ uma outra flor, que ajuda a refletir mais um pouco
sobre suas trajetórias.
Entre os que estão no ensino médio, quatro foram capazes de lembrar de “leituras
obrigatórias” que fizeram no “Pedrão”, alguns em detalhes. Para minha surpresa. Dentre
todos, o mais lembrado foi o livro lido na quinta série, do qual André fala:
A Eliane, de Português, pediu pra gente ler Sete faces da fábula na quinta série... É um livro que tem várias fábulas e uns contos que têm algo ver com as fábulas. Tem uma fábula – tipo aquela da coruja e da águia – e depois uma história, um conto, que corresponde, que tem alguma ligação com a fábula.
Como não conheço o livro, perguntei quem escreveu. “De vários autores. Márcia
Kupstas e vários outros. Todo conto tem um autor [diferente]”, disse ele.
Pedro não só se lembrou do livro como também do trabalho – para ele prazeroso-
que fizeram depois da leitura. Um trabalho que o marcou. Além disso, opinou criticamente
sobre os textos:
Eu lembro de um trabalho, até hoje, que eu fiz na quinta série. Você tinha que ler um conto, uma fábula e fazer quadrinhos sobre ela, sobre todas elas. (...) foi um livro sobre fábula, tinha várias fábulas. Aí tinha uma adaptação pra... como se fosse alguma coisa atual. Essas adaptações eram chatas, as fábulas eram legais.
As fábulas também foram marcantes para Ana Beatriz, que me falou, depois de
pensar um pouquinho, da sua opinião sobre as leituras cobradas:
Ah, ler por ler... Assim: vontade de ler aqueles livros, ler por vontade própria, eu acho que eu não teria naquela época... Mas, agora, se eu parar pra pensar, [digo]: ‘Caraca’, mas aquilo... Eu comecei a pensar diferente por causa daquele livro! Aquilo me influenciou.
154
Você lembra de algum que tenha te influenciado?, perguntei. “Aquele das fábulas!
Porque sempre tinha a moral da história. Eu me lembro de uma, aquela da Raposa que
queria as uvas, aí a uva caiu... Ela ficava desdenhando as uvas direto... [riso] Eu pensei:
Bem ‘maneiro’!” Quis saber se aquilo a tinha levado em pensar em alguma coisa. “É uma
educação que a gente acaba tendo, pra não desdenhar a coisa que você quer bastante!” E
riu.
Ela disse, também, de outro livro que deixou marcas.
Imaginário cotidiano, na sétima série. (...) Eram crônicas. O autor pegava o título de uma entrevista ou de uma matéria no jornal e fazia uma história daquilo, com a imaginação dele. Ele fazia uma crônica dos tempos atuais sobre aquele texto. Eu achei bem interessante.
Lembro-me novamente de Pais (2003), quando diz da necessidade de, na pesquisa,
ver o que é nosso como se fosse estrangeiro. Nas conversas com os alunos, eles falaram de
obras e autores. De minha parte, não achei nada de especial nisso, tal a naturalidade com
que falamos, também no “Pedrinho”, de livros e autores. Desde a S.I. trabalhamos com
autoria e talvez por isso nos seja comum falar disso. No entanto, uma pessoa que não
trabalha no colégio, ao ler a entrevista de André, comentou comigo: “Aos quinze anos,
lembrar autores? Que máximo!”
E não foi somente ele. Clara também falou disso enquanto opinava sobre as leituras
extra-classe e, espontaneamente, avaliava as professoras:
(...) na sexta série, eu não peguei uma professora tão boa assim (não sei se foi na sexta ou na sétima, eu não estou lembrada direitinho)... Mas ela deu um livro que foi “show”, nota dez! (...) Um livro da Coleção dos Karas, do Pedro Bandeira: foi A droga da obediência que ela deu pra gente. MUITO BOM ESSE LIVRO, eu recomendo, muito bom!
Disse ter gostado muito do trabalho que fizeram depois da leitura. “Tudo o que a
gente aprendeu no livro a gente tinha que botar no trabalho. Tudo o que a gente leu no
livro o trabalho perguntava (...). Eu achei muito bom.”
A leitura teve tal impacto sobre ela que a levou a comprar os outros títulos da
coleção. “Porque eu gostei do primeiro, li o segundo e comprei a coleção inteira! São cinco
livros: A droga da obediência, O pântano de sangue, A droga do amor, O anjo da morte e
Droga de americana. É muito boa essa coleção do Pedro Bandeira.”
155
Ter ouvido que a leitura obrigatória não teve efeitos nefastos na formação desses
alunos, no entanto, não me faz esquecer de Taís. Ela não falou sequer de um título que
tenha conhecido durante os anos da quinta à oitava série, tampouco do ensino médio.
Talvez ela faça parte de um grupo que, ao chegar à quinta série, ainda não gostasse tanto
de ler e por isso - retomando a fala da coordenadora - não teve vontade de ler de qualquer
jeito. Poderia ter sido diferente?
Luís, neste ano letivo, já está na oitava série. Ele não me disse de nenhum livro lido
nos três anos do segundo segmento que o tenha marcado. Lembrou de que, na sétima série,
tinha sido pedida a leitura de Vito Grandan, de Ziraldo, e de um livro “chatinho” lido na
sexta série, chamado Histórias de detetive. Na prova, no entanto, ele foi bem. “Foi em
dupla e eu e o meu amigo discutimos sobre o livro, aí a gente foi botando lá as respostas.”
Foram ‘escrevendo lá’ as respostas numa prova feita com consulta, tiraram boa nota, mas
nada parece ter mexido com ele, nada parece ter ficado como experiência de formação
(Larrosa, 2002).
André disse algo curioso. Conversamos um pouco sobre A hora da estrela, de
Clarice Lispector, que foi lido na oitava série, em 2004, e agradou. Disse ter assistido ao
filme na aula. Perguntei se o aproveitamento da leitura feito em sala satisfez. Ele explicou
o que fizeram. “Foram discutidos vários pontos, a gente fez dois trabalhos. Um foi,
digamos, mais superficial, falando dos personagens, ‘quem era quem’, e o outro, mais
aprofundado, de interpretação.”
Parece que ser leitor não o ajuda muito a ter sucesso na escola, pois encontra
problemas em Português. “Se a gramática dependesse disso...” Não gosta e não entende
gramática e também tem alguma dificuldade nas interpretações dos textos escolarizadas.
Em relação à “interpretação aprofundada” de A hora da estrela, disse: “Nesse eu me dei
mais ou menos, nunca fui tão bom em interpretação como eu sou em entender o texto...”
Sei que, na nossa caminhada pelo bosque da leitura, repentinamente, algo
surpreendente pode sair de trás de uma árvore, nos enfeitiçar e fazer com que mudemos de
rota, e fazer com que a paisagem e a vida ganhem novo sentido. Em outras palavras, nada
determina definitivamente que continuemos a ser os mesmos. Como sugere Von Foerster
(1996), somos devires humanos , por isso sempre inacabados. Mas penso que a escola tem
o dever de fazer valer sua extrema importância no processo de aproximar os alunos dos
livros. Insisto nisso.
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos chegando ao fim desse passeio pelo tempo da memória no cotidiano da
escola. Não porque as possibilidades de andança tenham se esgotado, mas sim porque há
uma hora em que um ponto final, ainda que provisório, deve ser colocado.
Antes de pôr o ponto, tenho, ainda, que emendar a esta trama os últimos ‘fuxicos’.
E é com bastante dificuldade que começo a escrever estas considerações.
Devo dizer que, no princípio, tudo foi muito mais difícil. Eu, que nunca tivera
qualquer experiência anterior de pesquisa, me vi enredada nos modos de fazer pesquisa no
campo do cotidiano, que se revelou diferente de tudo o que concebia (ou imaginava) sobre
o ato acadêmico de pesquisar. Por isso, preciso começar dizendo das minhas
(des)aprendizagens.
Desaprendi muito nesse percurso. Desaprendi o conforto das certezas e não conheci
a segurança dos métodos. Senti as pedras do caminho e as angústias da corda bamba.
Achava que a trajetória de minha pesquisa fosse ser linear, mas o que encontrei foram
redes de mil incertezas. Achava que fosse descobrir a resposta exata, mas, na verdade,
permeei-me de mais dúvidas.
Pensar em tudo o que venho (des)aprendendo durante esse tempo me faz perceber
concretamente o quanto o conhecimento é provisório. Não consegui dar conta de tudo o
que planejei fazer, muito menos ter as respostas fechadas que almejava antes. Acho mesmo
que me tornei mais humana. Porque algo em mim derrete, transformando-me.
Poder retornar, através da reflexão chamada pelo processo de pesquisa, às
experiências que vêm me constituindo professora e pessoa foi de uma importância cujas
conseqüências eu só poderei conhecer de verdade a partir do momento em que retornar à
sala de aula. Essa importância, afirmo, se deve ao fato de que percorri o caminho da
pesquisa e da reflexão não apenas com o auxílio de uma memória pessoal e solitária, mas
através da articulação entre a minha subjetividade e todas aquelas que fui encontrando
nessa trajetória. Muitas memórias e as agulhas que usei para urdi-las são minhas, é
verdade; mas estão enredadas no coletivo da escola. Refletir sobre elas me aguçou os
sentidos para continuar meu mergulho nesse espaço de tantos encontros, mas também de
157
desencontros. Acho que minha forma de perceber a realidade amadureceu, (porque) se
humanizou. Refletir é , de algum modo, reinventar-me.
Como o leitor bem sabe, o acaso fez sua obra e me levou por caminhos inesperados.
Cheguei mais perto da escola. Aproximei-me das (re)invenções do lugar praticado
operadas por alguns dos tantos sujeitos anônimos que dão vida à escola pública. Poder
conhecer, pelas vozes de quem viveu, pelas vozes dos praticantes do cotidiano escolar,
um pouco de uma das possíveis histórias do “Pedrinho” me foi muito significativo. Os
olhares dos companheiros de trabalho, refletidos nas memórias que me trouxeram,
permitiram-me conhecer uma nuance da história do colégio bastante singular, que
continuaria invisível, caso nosso encontro não tivesse acontecido. Tendo podido me
aproximar de um processo coletivo vivido por eles, no princípio, pude compreender melhor
a realidade que também passei a viver posteriormente. Nas redes do cotidiano, tudo se
imbrica.
Saber um pouco de um processo que se deu no coletivo me confirma o quanto o
grupo nos potencializa. Qualquer trabalho, por mais produtivo que seja, permanece aquém,
se realizado solitariamente. Qualquer trabalho pode crescer infinitamente se tecido no
diálogo com as diferenças, com o outro.
O movimento reflexivo desencadeado por essas experiências me mostrou, também,
o quanto ainda precisamos avançar, no coletivo do colégio, em direção à ampliação do
diálogo, para potencializar nossas ações de modo geral e, especificamente, no campo da
leitura. Refiro-me tanto aos processos internos do “Pedrinho” quanto ao diálogo entre os
diferentes segmentos do colégio. Porque nem o “Pedrinho” conhece o trabalho do
“Pedrão”, nem o “Pedrão” sabe ao certo o que fazemos no “Pedrinho”. E estamos todos
dentro da mesma escola.
Muito do que venho dizendo não teria sido possível se tudo tivesse saído como o
planejado. Se o inesperado não tivesse irrompido e nocauteado aquela conhecida ilusão de
que temos controle sobre os fatos, sobre a vida. De que de determinamos sempre.
As (des)aprendizagens por que venho passando me exibem outras faces. Aprendi
que ir à pesquisa é lançar-se em direção ao incerto, ao que, muitas vezes, nem
vislumbramos vir a saber. Por isso, a humildade é desejável.
A pesquisa com os alunos, por exemplo, me mostrou muito mais do que pude
desenvolver no texto. Nas entrevistas, abordamos vários outros aspectos da relação que
eles estabelecem com a leitura, dos livros e do mundo, na escola e fora dela. Falamos de
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biblioteca, de leituras não indicadas pelos professores, das imagens que cada um vem
construindo a respeito do ato de ler, de seus gostos e atitudes leitoras, enfim.
Mesmo que os sujeitos trazidos até mim pelo acaso não tenham atitudes leitoras
tão diversas quanto a pesquisa que eu imaginava mereceria, eles me propiciaram perceber
parte do enredamento que os vem constituindo (ou não) como leitores. Apesar disso, por
um lado, termino com a certeza de que muito mais poderia ter sido compreendido se eu
tivesse atentado para detalhes que, no instante único de cada diálogo, não pude perceber.
Muitas vezes, ao reler as entrevistas, lamentei não ter explorado melhor o assunto trazido
por este ou aquele aluno, ter perdido a oportunidade de fazer alguma pergunta para a qual o
momento se abria, como também me ressenti por ter feito algumas interrupções que, se
fosse experiente como pesquisadora, muito provavelmente não tivesse feito. Muitas vezes.
Mas os desacertos não inviabilizaram as descobertas.
As pesquisas de perfil quantitativo em torno da leitura da palavra escrita costumam
destacar, em primeiro lugar, as práticas familiares, e, em segundo, as práticas escolares de
leitura como proeminentes no processo de formação de leitores. No entanto, nesse terreno,
não existem certezas de que uma ação redundará exatamente no que se espera. Formar
leitores é um processo para o qual não há um método, se se entende método como um
conjunto predeterminado de passos a serem seguidos, com garantia de sucesso. Embora
essa receita não exista, parece que, de fato, alguns caminhos podem ter maiores
possibilidades de êxito. Falo de possibilidades, não de garantias.
Em relação ao papel da escola, os ex-alunos do “Pedrinho” me mostraram que as
experiências vividas em seus primeiros anos de escolaridade, não só nas aulas de
Literatura, mas em diversas outras atividades escolares, foram importantes para a
constituição de subjetividades mais sensíveis à linguagem artística. Essas atividades
semearam possibilidades. E, no que tange à sensibilidade para a literatura, a escola de
primeiro segmento deixou marcas mais definidas em quatro dos seis entrevistados, que
carregam, em seu baú de memórias, lembranças de prazeres com a leitura literária vividos
nesse tempo. Apesar das contribuições significativas do “Pedrinho”, dois daqueles alunos
não ficaram suficientemente mobilizados para a leitura durante os anos em que foram
nossos alunos. A relação não é matemática.
Mas nos interessa formar leitores. O entrecruzar dos fios de saberes de tantas redes
– familiares, escolares e outras – me parece promissor. Se nossas subjetividades são
forjadas na e pela linguagem, no que tange à escola, me parece que justamente quando,
159
naquele espaço privilegiado para tal, se faz do texto lido matéria de reflexão, crescem as
chances de que a leitura possa ser, para os sujeitos, experiência de formação, experiência
de pensar o mundo pensando a si mesmos, e vice-versa. Isso não significa que sempre
teremos sucesso. Ou, ao menos, respostas imediatas e visíveis.
A imagem das práticas escolares em torno da leitura ocorridas no segundo
segmento, conforme me foi descrita pelos sujeitos da pesquisa, não coincide exatamente
com idéia que acabei de expor. Talvez ali o foco principal do trabalho esteja no estudo dos
textos, e não propriamente na educação pela leitura, o que é bem diferente. Mas penso que
uma compreensão mais apurada da escola de segundo segmento poderia ser propiciada por
uma outra pesquisa, que mergulhasse exclusivamente nas práticas cotidianas de leitura ali
desenvolvidas, buscando apreender os diferentes processos que ocorrem. Porém, não
poderia me furtar a fazer algumas observações.
Entendendo o conhecimento como algo que é tecido em rede e considerando que a
rede tramada na escola pode ter grande importância para a formação de leitores, há razões
para pensarmos que as ações do colégio nesse sentido precisam ser ampliadas ao máximo.
Não há espaços a perder. Para tal, vejo na realização de encontros não burocráticos entre os
segmentos para a troca de experiências uma possibilidade auspiciosa. E muitas outras
coisas poderiam ser inventadas.
Parece que todos os enredamentos de que os alunos vêm fazendo parte ao longo de
suas vidas se insinuam no movimento que eles estabelecem em relação à leitura tal como
ela vem se dando depois que deixaram o primeiro segmento. Porém, a julgar pelo que ouvi,
indago: teria a relação de Pedro, André, Clara e Ana Beatriz com a leitura continuado tão
próxima, não fossem suas outras inserções sociais? Mesmo esses alunos não poderiam ter
desenvolvido muito mais sua competência leitora, caso seu envolvimento com a leitura
fosse mais instigado pelas atividades escolares?
Todavia, pensar que, pelas características mais conservadoras da escola de segundo
segmento, os alunos estariam fadados a não ler é estar cego às muitas nuances que podem
estar presentes no complexo processo que é a formação de leitores. Apesar de me parecer
claro que, para certos alunos, as influências do “Pedrinho” tiveram grande potência, as
leituras obrigatórias e avaliadas através de notas não chegaram a afastá-los do prazer de
ler. Certas leituras indicadas pela escola chegaram, inclusive, a ser tão marcantes para
alguns, que hoje fazem parte de seu “baú de experiências” com a leitura literária. Quem
saberá dizer ao certo quando uma leitura pode se constituir em experiência?
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É por não existir método que nos faça assegurar como ou quando o encontro
apaixonante com a leitura acontecerá, e mesmo se ele ocorrerá, que temos que insistir
sempre. E insistir, para mim, é também procurar driblar astuciosamente os duros esquemas
institucionais que nos cobram uma rigidez inaceitável quando se trata de atrair alunos para
os livros e tentar fazer das aulas espaços onde o desafio do conhecimento esteja presente e
possa ser prazeroso. É por transitarmos sempre no terreno da incerteza que nos cabe não
economizar sementes, que nos cabe lançá-las sempre e incessantemente. Tendo como norte
a constante reflexão sobre nossas práticas, podemos ter maiores condições de perceber se
aquilo que pensamos serem sementes está sendo recebido como tal. Além disso, não
podemos abandonar uma única certeza: a de que não podemos prever o futuro dos frutos,
sequer se eles existirão.
Nas redes de subjetividades que somos, muitas vozes estão presentes. Algumas se
fazem ouvir claramente, outras, por não serem tão eloqüentes, parecem nem existir. Mas
tudo está ali. Mesmo que hibernando. Não sabemos ao certo se ou quando serão acordadas.
Por isso, desejo concluir contando do diálogo para o qual fui chamada, bem depois
do dia em que entrevistei Taís. Conversei com ela em novembro de 2005. Depois disso, ela
se mudou para Portugal, onde sua mãe está estudando.
Se o leitor está lembrado, Taís me mostrou, na entrevista, que um ambiente
leiturizador doméstico, mesmo que possa exercer forte influência sobre a pessoa, também
não garante absolutamente a formação de seus membros como leitores.
Estava eu, num dia de fevereiro, com o computador conectado ao Msn. De repente,
veio o aviso de que a menina tinha acabado de se conectar ao site. Muitas vezes antes
daquela ocasião, isso aconteceu. Mas, naquele dia, algo fez a diferença: pela primeira vez,
ela me chamou.
-Taís diz: Sônia! - Sônia diz: Oi! -Taís diz: Não sei se vai adiantar alguma coisa, mas gostaria de acrescentar naquela entrevista que fizemos, que estou lendo Poesias de Fernando Pessoa. Comprei aqui em Portugal. No Chiado, tem uma estátua dele sentado, ontem tirei foto com ele. Quer ver? -Sônia diz: Jura?? Tá lendo poesia, é? - Taís diz: Estou. - Taís diz:
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Posso mandar as fotos que tirei? - Sônia diz: A poesia às vezes é meio "difícil", mas é só deixar rolar, entender pelo contexto! Manda a foto! - Taís diz: É mesmo. Percebo isso também! - Sônia diz: VOLTA LÁ E TIRA UMA COM O LIVRO DELE NA MÃO! - Taís diz: Pode deixar. Sônia diz: E manda pra mim! Quem sabe, se você deixar, eu não ponho na minha dissertação... Iria ficar um barato! Mas, se não quiser, eu guardo de lembrança! Você já tinha lido algo dele? - Taís diz: Eu deixo, claro! - Sônia diz: Mas fala: você conheceu o Pessoa aí ou aqui? Foi sua mãe? - Taís diz: Já conhecia as poesias dele, algumas só. - Taís diz: Minha mãe que me ofereceu e eu aceitei. - Sônia diz: Essa sua mãe vale ouro! - Taís diz: Obrigada!
Já alguma coisa parece ter se modificado no mundo de Taís. Tanto que ela desejou
dividir comigo. A constante insistência da mãe, as memórias de outros contatos, as
atividades escolares... Quem saberá dizer quantas sementes dormem em cada
subjetividade? Quem saberá dizer o que ou quem as acordará?
Continuemos fazendo nossa parte.
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