curso de direito processual civil€¦ · há normas fundamentais do processo civil que são,...

17
2020 1 FREDIE DIDIER JR. revista, atualizada e ampliada 22 a edição Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo do Conhecimento

Upload: others

Post on 11-Aug-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

2020

1

FREDIE DIDIER JR. revista, atualizada e ampliada

22a

edição

Curso de Direito

PROCESSUAL CIVILIntrodução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo do Conhecimento

Page 2: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

C A P Í T U L O 3

Normas Fundamentais do Processo Civil

Sumário • 1. Direito Processual Fundamental – 2. Princípios: 2.1. Princípio do devido processo legal; 2.2. Princípio da dignidade da pessoa humana; 2.3. Prin-cípio da legalidade (juridicidade); 2.4. Princípio do contraditório; 2.5. Princípio da ampla defesa; 2.6. Princípio da publicidade; 2.7. Princípio da duração razoável do processo; 2.8. Princípio da igualdade processual (paridade de armas); 2.9. Princípio da eficiência; 2.10. Princípio da boa-fé processual; 2.11. Princípio da efetividade; 2.12. Princípio da adequação (legal, jurisdicional e negocial) do processo; 2.13. Princípio da cooperação e o modelo do processo civil brasileiro; 2.14. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo; 2.15. Princípio da primazia da decisão de mérito; 2.16. Princípio da proteção da confiança – 3. Regras: 3.1. Regras da instauração do processo por iniciativa da parte e de desenvolvimento do processo por impulso oficial; 3.2. Regra da obediência à ordem cronológica de conclusão – 4. Norma fundamental de interpretação do Código de Processo Civil: o postulado hermenêutico da unidade do Código.

1. DIREITO PROCESSUAL FUNDAMENTAL

Há um conjunto de normas processuais que formam o que se podechamar de Direito Processual Fundamental ou Direito Processual Geral.

As normas processuais podem ser fundamentais sob uma perspectiva formal, material ou formal/material1.

São formalmente fundamentais as normas processuais que recebem expressamente essa designação pelo CPC/2015: é o caso das normas de-correntes nos arts. 1º ao 12 do CPC.

Por sua vez, são materialmente fundamentais as normas que estrutu-ram o modelo do processo civil brasileiro e servem de norte para a compre-ensão de todas as demais normas jurí�dicas processuais civis – é, por isso, também, uma norma de interpretação das fontes do Direito Processual e de aplicação de outras normas processuais. É� o caso de algumas normas dos arts. 1º ao 12 do CPC/2015, mas também de outras presentes ao longo do CPC/2015 e na Constituição, como se verá adiante.

Quando as normas processuais constam dos arts. 1º ao 12 do CPC/2015 e, ao mesmo tempo, estruturam o modelo do processo civil brasileiro, serão

1. Nesse sentido, PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental do processo civil brasileiro: aspectosconceituais, estruturais e funcionais”. Civil Procedure Review, v.9, n.1: 101-124, jan.-apr., 2018, p. 107.

Page 3: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.90

normas fundamentais tanto sob a perspectiva formal, quanto material. É� o caso, por exemplo, da primazia do julgamento de mérito (art. 4º), da boa-fé processual (art. 5º) e da cooperação (art. 6º).

Éssas normas processuais ora são princí�pios (como o devido proces-so legal), ora são regras (como a proibição do uso de provas ilí�citas), ora são postulados (como a razoabilidade e a proporcionalidade). O Direito Processual Fundamental não é composto somente por princí�pios, é bom que isso fique claro2.

A observação é importante. A distinção entre regras e princí�pios tem grande importância prática. São normas com estruturas distintas e formas de aplicação próprias, orientadas por padrões de “argu-mentação especí�ficos, que favorecem o estabelecimento de ônus argumentativos diferentes e impactam diretamente na definição da-quilo que deve ser exigido de forma definitiva”, por meio da solução jurisdicional3.

Uma parte dessas normas fundamentais decorre diretamente da Cons-tituição Federal – é o que se pode chamar de Direito Processual Funda-mental Constitucional.

A outra parte decorre da legislação infraconstitucional, mais especi-ficamente do Código de Processo Civil, que dedica um capí�tulo inteiro a essas normas (arts. 1º a 12, CPC).

Ésse capí�tulo reproduz alguns enunciados normativos constitucionais (art. 3º, caput, p. ex., que praticamente reproduz o inciso XXXV do art. 5º da CF/1988) – e, nesse sentido, não inova. Nos casos em que há mera repetição do texto constitucional, o conteúdo normativo será, sempre, constitucional, não infraconstitucional. Os dispositivos copiados são meras reafirmações de texto da Constituição – exemplo claro de legislação simbólica: repe-te-se, em fonte normativa de ní�vel inferior, o enunciado normativo de ní�vel superior, sem qualquer novidade, nem mesmo a atribuição de maior densidade normativa ao comando constitucional. No particular, a norma constitucional é ventríloqua: fala também por intermédio do texto legal.

Mas o capí�tulo também traz novos enunciados normativos, sem pre-visão expressa na Constituição, embora todos eles possam encontrar nela algum fundamento.

2. A ideia foi encampada pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, no enunciado n. 370: “Nor-ma processual fundamental pode ser regra ou princípio”. Igualmente, mas acrescentando, ainda, ospostulados aplicativos e hermenêuticos, PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental doprocesso civil brasileiro: aspectos conceituais, estruturais e funcionais”, cit., p. 111.

3. LIMA, Rafael Bellem de. Regras na teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 52.

Page 4: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

Cap. 3 • NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL 91

O rol desse capí�tulo não é, porém, exaustivo4.

Há outras normas fundamentais do processo civil brasileiro que não estão consagradas expressamente nos doze primeiros artigos do CPC5. Há normas fundamentais na Constituição – devido processo legal, juiz natural, proibição de prova ilí�cita; há normas fundamentais espalhadas no próprio CPC, como o princí�pio de respeito ao autorregramento da vontade no pro-cesso e o dever de observância dos precedentes judiciais (arts. 926-927, CPC). Há, portanto, esquecimentos incompreensí�veis – não seria exagero dizer que os arts. 190 e 926 e 927 são pilares do novo sistema do processo civil brasileiro –, além de ao menos um exagero: a observância da ordem cronológica da decisão, embora realmente seja importante, não merecia o status de entrar no rol das normas fundamentais do processo civil. Mas,no particular, legem habemus.

É� preciso compreender este capí�tulo como se ao seu final houvesse uma cláusula normativa que dissesse: “O rol de normas fundamen-tais previsto neste capí�tulo não exclui outras normas fundamentais previstas na Constituição da República, nos tratados internacionais, neste Código ou em lei” – à semelhança do que já ocorre com os direitos fundamentais (art. 5º, § 2º, CF/88).

Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto, normas fundamentais do processo civil que não possuem o status de norma de direito fundamental, como é o caso das regras decorrentes dos arts. 2º e 12, CPC.

As normas processuais fundamentais são multifuncionais, reunindo, essencialmente, cinco funções: estruturante, definitória, integrativa, in-terpretativa e bloqueadora6. Essas funções serão verificadas ao longo do Curso, quando demonstrados exemplos de aplicação concreta das normas fundamentais.

Éste capí�tulo do Curso dedica-se ao estudo das normas fundamentais do processo civil, sejam elas extraí�das da Constituição Federal, sejam elas extraí�das do Código de Processo Civil.

4. A ideia foi encampada pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, no enunciado n. 369: “O rolde normas fundamentais previsto no Capítulo I do Título Único do Livro I da Parte Geral do CPC nãoé exaustivo”. Igualmente, PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental do processo civilbrasileiro: aspectos conceituais, estruturais e funcionais”, cit., p. 109.

5. Encampou essa percepção, afirmando que “as Normas Fundamentais do Processo Civil Brasileiro sãocompostas por três diferentes núcleos”, PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental doprocesso civil brasileiro: aspectos conceituais, estruturais e funcionais”, cit., p. 109.

6. É o que defende PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental do processo civil brasileiro:aspectos conceituais, estruturais e funcionais”, cit., p. 113-116.

Page 5: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.92

Algumas dessas normas, porém, não serão examinadas neste capí�tulo; optei por examiná-las em capí�tulos outros, que com elas mais proxima-mente se relacionem. Fiz isso com os princí�pios da inafastabilidade da jurisdição e do juiz natural (capí�tulo sobre jurisdição, neste volume do Curso), do estí�mulo da solução do lití�gio por autocomposição (capí�tulo sobre mediação e conciliação, neste volume do Curso) e com as regras fundamentais da motivação da decisão judicial (capí�tulo sobre decisão judicial, no v. 2 deste Curso) e da proibição de prova ilí�cita (capí�tulo sobre prova, no v. 2 deste Curso).

2. PRINCÍPIOS

2.1. Princípio do devido processo legal

2.1.1. Considerações gerais

O inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

A locução “devido processo legal” corresponde à tradução para o português da expressão inglesa “due process of law”. Law, porém, significa Direito, e não lei (“statute law”). A observação é importante: o processo há de estar em conformidade com o Direito como um todo, e não apenas em consonância com a lei. “Legal”, então, é adjetivo que remete a “Direito”, e não a Lei.

Há outras traduções da expressão inglesa. Os portugueses optaram por “processo equitativo”; os italianos, por processo giusto. Na Éuropa utiliza-se muito também a expressão fair trial.

Desse enunciado normativo extrai-se o princípio do devido processo legal, que confere a todo sujeito de direito, no Brasil, o direito fundamental a um processo devido (justo, equitativo etc.).

Processo é método de exercí�cio de poder normativo. As normas ju-rí�dicas são produzidas após um processo (conjunto de atos organizados para a produção de um ato final). As leis, após o processo legislativo; as normas administrativas, após um processo administrativo; as normas individualizadas jurisdicionais, enfim, após um processo jurisdicional. Ne-nhuma norma jurí�dica pode ser produzida sem a observância do devido processo legal. Pode-se, então, falar em devido processo legal legislativo, devido processo legal administrativo e devido processo legal jurisdicional. O devido processo legal é uma garantia contra o exercí�cio abusivo do poder, qualquer poder.

Page 6: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

Cap. 3 • NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL 93

Pode-se falar, também, em normas jurí�dicas particulares, criadas pelos indiví�duos a partir do exercí�cio de seu poder de autorregra-mento, direito fundamental conteúdo do direito à liberdade. Neste sentido, exige-se também o respeito ao devido processo legal no âmbito das relações particulares. O tema será examinado com mais vagar adiante.

Este item dedica-se ao estudo do devido processo legal jurisdicional e de suas repercussões no direito processual civil.

2.1.2. Conteúdo

O texto constitucional que consagra o devido processo legal é uma cláusula geral (sobre as cláusulas gerais, ver o capí�tulo introdutório neste volume do Curso). Exatamente em razão disso, o significado normativo desse texto foi modificado ao longo da história.

O texto/fórmula/enunciado devido processo legal (due process of law) existe há séculos (nestes termos, em inglês, desde 1354 d. C., a partir de Eduardo III, rei da Inglaterra).

A noção de devido processo legal como cláusula de proteção contra a tirania é ainda mais antiga: remonta ao É� dito de Conrado II (Decreto Feudal Alemão de 1037 d. C.)7, no qual pela primeira vez se registra por escrito a ideia de que até mesmo o Imperador está submetido às “leis do Império”.

Esse Decreto inspirou a Magna Carta de 12158, pacto entre o Rei João e os barões, que consagrava a submissão do rei inglês a law of the land, expressão equivalente a due process of law, conforme conhecida lição de Sir Edward Coke9. A Magna Carta costuma ser tida como o mais remoto documento normativo histórico de consagração do devido processo legal, até mesmo em razão da forte influência que exerceu na formação dos Direi-tos inglês e estadunidense. A origem, porém, é germânica e um tanto mais longí�nqua (a influência germânica no desenvolvimento do direito comum

7. De acordo com profunda pesquisa histórica de STUBBS, William. Germany in the Early Middle Ages (476-1250). New York: Longmans, Green, and Co., 1908, p. 146-147. Relacionando o decreto de Conrado IIao devido processo legal, PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 18-27.

8. STUBBS, William. Germany in the Early Middle Ages (476-1250), cit., p. 147.9. COKE, Edward. The second part of the Institutes of the law of England. Londres: E. and R. Brooke, 1797, p. 50.

Disponível em: <http://books.google.com.br/books?dq=Edward+Coke+The+Second+PArt&printsec=frontcover&sig=-iEzJMRLXQqCdCa16f587r5PYIBY&ei=nJFLSrXcEov7tgfDu9GbDQ&ct=result&id=WCg-zAAAAIAAJ&ots=1kYi9YDD56>. Acesso em: 01 jul. 2009, 13h50.

Page 7: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.94

inglês deve-se certamente à invasão normanda de 1066 d. C., comandada por William, o Conquistador, duque da Normandia)10.

Obviamente, o que se entendia como devido no século XIV (época de absolutismo monárquico, teocracia etc.) não foi o que se entendeu como devido no iní�cio do século XX (consolidação da igualdade formal, separa-ção entre Igreja e Estado, desenvolvimento acelerado da industrialização etc.), não é o que se entende como devido atualmente (informatização das relações, sociedade de massas, globalização etc.) e nem será o que se entenderá como devido daqui a dois séculos.

Há de ter-se a consciência da historicidade da noção de “correttezza processuale”11.

Um bom exemplo para demonstrar essa historicidade é o direito ao juiz natural, atualmente conteúdo do devido processo legal. Trata-se de “uma conquista moderna. Resultou de fato infrutí�fera a tentativa de remeter suas origens à Magna Charta, pois esta, em seus arts. 20, 21, 39, 52 e 56, limita-se a estabelecer que para a condenação de qualquer cidadão é necessário um ‘legale iudicium parium suorum’, em que a condição de que os jurados sejam pares, ou ‘homens probos da vizinhança’, indica apenas uma qualidade dos juí�zes, e, no máximo, um critério de competência territorial, mas não tem nada que ver com a proibição da instituição do juiz post factum. Essa proibição se afirma só no sec. XVII, contemporaneamente às primeiras manifes-tações de independência e aos conflitos já mencionados entre juí�zes e soberanos”12.

Há, porém, inegavelmente, um acúmulo histórico a respeito da com-preensão do devido processo legal que não pode ser ignorado.

Ao longo dos séculos, inúmeras foram concretizações do devido processo legal que se incorporaram ao rol das garantias mí�nimas que estruturam o devido processo. Não é lí�cito, por exemplo, considerar des-necessário o contraditório ou a duração razoável do processo, direitos fundamentais inerentes ao devido processo legal. Nem será lí�cito retirar agora os direitos fundamentais já conquistados; vale, aqui, o princí�pio de hermenêutica constitucional que proí�be o retrocesso em tema de direitos fundamentais13.

10. Sobre o tema, com inúmeras referências, PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo, cit., p. 29-45.

11. VIGORITI, Vincenzo. Garanzie costituzionali del processo civile. Milão: Giuffrè, 1973, p. 35 e 38-39.12. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 472.13. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed. Coimbra:

Almedina, 2002, 339-340; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 433 e segs.

Page 8: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

Cap. 3 • NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL 95

Essas concretizações do devido processo legal, verdadeiros corolários de sua aplicação, estão previstas na Constituição brasileira e estabelecem o modelo constitucional do processo brasileiro14.

É� preciso observar o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF/1988) e dar tratamento paritário às partes do processo (art. 5º, I, CF/1988); proí�bem-se provas ilí�citas (art. 5º, LVI, CF/1988); o processo há de ser público (art. 5º, LX, CF/1988); garante-se o juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CF/1988); as decisões hão de ser motivadas (art. 93, IX, CF/1988); o processo deve ter uma duração razoável (art. 5º, LXXVIII, CF/1988); o acesso à justiça é garantido (art. 5º, XXXV, CF/1988) etc. Todas essas normas (princí�pios e regras) são concretizações do devido processo legal e compõem o seu conteúdo mí�nimo.

Como se vê, o devido processo legal é um direito fundamental de conteúdo complexo.

Por isso, “tanto se pode referir ao direito fundamental ao processo devido, como um direito fundamental dotado de um conteúdo complexo, como também é possí�vel referir-se a cada uma das exigências aninhadas nesse conteúdo complexo como constituindo um direito fundamental. (...) A vantagem em se identificar cada uma dessas exigências e denominá-las individualmente é a de facilitar a sua operacionalização pelo intérprete, isto é, auxiliá-lo na solução de questões relacionadas com a concretização de tais valores”. 15

Sucede que esse conteúdo mínimo do devido processo legal, cons-truí�do após séculos de aplicação dessa cláusula, não é suficiente para a solução dos problemas contemporâneos. Ésse longo perí�odo histórico não esvaziou a cláusula geral do devido processo legal, que permanece útil e em vigor.

A construção do processo devido é obra eternamente em progresso16.

14. “Ao instituir esses elementos, a Constituição terminou por tornar obrigatório aquilo que poderia seravaliado como adequado e necessário conforme as circunstâncias de cada caso concreto e, com isso,eventualmente afastado. Enquanto noutros sistemas, como o estadunidense, os elementos do devidoprocesso legal são deduzidos, caso a caso, do ideal de protetividade de direitos, no Brasil vários delessão impostos pela própria Constituição”. (ÁVILA, Humberto. “O que é ‘devido processo legal’?”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2008, n. 163, p. 57.)

15. GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT,2003, p. 100.

16. Há, nesse sentido, uma indissociável relação entre o devido processo legal e as normas fundamentais:“Redigido como cláusula geral, o devido processo legal constitui um projeto aberto pelo qual sãoreconstruídos os conceitos e institutos que o integram, tornando-se plenamente possível, de acordocom o contexto histórico e cultural de uma deter minada sociedade, agregar, incluir ou até mesmoexcluir normas fundamentais que o compõem” (PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. “Norma fundamental do processo civil brasileiro: aspectos conceituais, estruturais e funcionais”, cit., p. 110).

Page 9: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.96

Essa cláusula geral exerceu e exerce plenamente a sua função de per-mitir a mobilidade e a abertura do sistema jurí�dico, como uma “garanzia plastica e flessibile di giustizia nel processo”17. É� por isso que o texto nor-mativo permanece o mesmo há tanto tempo, já tendo sido incorporado aos tratados internacionais de direitos humanos e a inúmeras constituições. A generalidade desse texto normativo garantiu a sua longevidade. Trata-se de uma proteção contra a tirania (contra a produção tirânica de normas jurí�dicas, em ní�veis legislativo, administrativo, jurisdicional e privado). As palavras de Winston Churchill sobre a Magna Carta aplicam-se inclusive e principalmente ao devido processo legal: “E quando, nas idades subsequen-tes, o Estado, dilatado com sua própria autoridade, tentou impor sua tirania sobre os direitos ou liberdades dos súditos, foi a essa doutrina que vezes e vezes se dirigiram apelos, nunca até hoje sem resultados”18.

O princípio do devido processo legal tem a “função de criar os ele-mentos necessários à promoção do ideal de protetividade”19 dos direitos, integrando o sistema jurí�dico eventualmente lacunoso. Trata-se da função integrativa dos princí�pios, examinada no capí�tulo introdutório deste vo-lume do Curso. Desse princí�pio constitucional extraem-se, então, outras normas (princí�pios e regras), além de direitos fundamentais ainda sem o respectivo texto constitucional.

Assim, além de público, paritário, tempestivo etc., adjetivos que corres-pondem às normas constitucionais expressamente consagradas (citadas acima), o processo, para ser devido, há de ter outros atributos. Um processo, para ser devido, precisa ser adequado, leal e efetivo.

Cada novo atributo corresponde a um princí�pio constitucional do processo, que, embora implí�cito, é de grande relevância. Surgem, então, os princí�pios da adequação, da boa-fé processual e da efetividade. Esses três princí�pios, corolários do devido processo legal, serão examinados em itens especí�ficos mais adiante.

Humberto A�vila defende que os princí�pios estruturantes, aqueles que prescrevem o âmbito e o modo da atuação estatal, não podem ser afastados no caso concreto, após um juí�zo de ponderação, em razão da colisão com outro princí�pio. “Toda atuação estatal, e não apenas uma parte dela, em todas as situações, não apenas em uma parte delas”, deve observar os princí�pios do Éstado de Direito, da sepa-ração de poderes, do pacto federativo, do sistema democrático e do

17. VIGORITI, Vincenzo. Garanzie costituzionali del processo civile, cit., p. 34.18. CHURCHILL, Winston S. História dos povos de língua inglesa. Aydano Arruda (trad.). São Paulo: IBRASA,

1960, v. 1 (o berço da Inglaterra), p. 225.19. ÁVILA, Humberto. “O que é ‘devido processo legal’?”, cit., p. 57.

Page 10: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

Cap. 3 • NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL 97

regime republicano etc.20 Tais princí�pios funcionam como “condição estrutural” da atuação estatal.O princí�pio do devido processo legal é um desses princí�pios.

2.1.3. Devido processo legal formal e devido processo legal substancial

O devido processo legal é direito fundamental que pode ser compre-endido em duas dimensões.

Há o devido processo legal formal ou procedimental, cujo conteúdo é composto pelas garantias processuais que vimos no item precedente: di-reito ao contraditório, ao juiz natural, a um processo com duração razoável etc. Trata-se da dimensão mais conhecida do devido processo legal.

Nos ÉUA, desenvolveu-se a dimensão substancial do devido processo legal21. Um processo devido não é apenas aquele em que se observam exigências formais: devido é o processo que gera decisões jurídicas subs-tancialmente devidas.

A experiência jurí�dica brasileira assimilou a dimensão substancial do devido processo legal de um modo bem peculiar, considerando-lhe o fun-damento constitucional das máximas da proporcionalidade (postulado22, princí�pio23 ou regra da proporcionalidade24, conforme seja o pensamento doutrinário que se adotar) e da razoabilidade. A jurisprudência do Su-premo Tribunal Federal extrai da cláusula geral do devido processo legal os deveres de proporcionalidade ou razoabilidade. Convém transcrever trecho da decisão proferida pelo Min. Celso de Mello, no RE n. 374.981, em 28.03.2005, publicada no Informativo do STF n. 381:

“Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conte-údo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua

20. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.126.21. Sobre essa evolução, amplamente, MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção

de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 29-90.22. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 5ª ed., cit., p. 148 e segs.23. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 1998; GUERRA FILHO,

Willis Santiago. “Princípios da isonomia e da proporcionalidade e privilégios processuais da FazendaPública”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1996, n. 82; GÓES, Gisele. O Princípio da Proporcionalidadeno Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2004.

24. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais – conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:Malheiros Ed., 2009, p. 168-169.

Page 11: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.98

dimensão material, o princí�pio do ‘substantive due process of law’ (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da pró-pria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 – RTJ 178/22-24, v.g.): ‘O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rí�gida observância de diretriz fundamental, que, encontrando su-porte teórico no princí�pio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princí�pio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercí�cio de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princí�pio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Éstado constitui atribuição jurí�dica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juí�zo meramente polí�tico ou discricionário do legislador’ (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).”

Fala-se, então, em um devido processo legal substantivo ou substancial25.

“Essa semelhança entre proporcionalidade e devido processo legal substancial é, a nosso ver, muito interessante para a nossa análise, por vários motivos: a) como adiantado acima, ajuda a esclarecer o con-teúdo do devido processo legal substancial, que, abstratamente con-siderado, é vago e impreciso; b) ajuda a desfazer a ideia equivocada de que a acepção substancial do due process of law não seria aplicável em paí�ses do sistema romano-germânico, com menor liberdade para

25. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 46 e segs.; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoa-bilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, passim; LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 274; FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “Do amálgama entre razoabilidade e proporcionalidade na doutrina e na jurisprudência brasileiras e seu fundamento no devido processo legal substantivo”. Direito constitucional. Barueri: Manole, 2007, p. 37-46; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. “Devido processo legal substancial”. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras complementares de processo civil. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 382; ASSIS, Carlos Augusto de. Antecipação da tutela. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 63; BRAGA, Paula Sarno. Aplicação do Devido Processo Legal nas Relações Privadas. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 188 segs.; FERNANDES, Daniel André. Os princípios da razoabilidade e da ampla defesa. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 41- 42; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 91-100.

Page 12: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

C A P Í T U L O 1 3

Teoria da Cognição JudicialSumário • 1. Conceito de cognição – 2. Conceito de questão – 3. Resolução das questões: resolução incidenter tantum e resolução principaliter – 4. Objeto do processo e objeto litigioso do processo – 5. Objeto da cognição judicial (tipologia das questões): 5.1. Consideração introdutória; 5.2. Questões de fato e questões de direito; 5.3. Questões prévias: questões preliminares e questões prejudiciais; 5.4. Pressupostos processuais e mérito: questões de admissibilidade e questões de mérito – 6. Espécies de cognição.

1. CONCEITO DE COGNIÇÃO

Segundo Kazuo Watanabe, a cognição é “prevalentemente um ato deinteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do iudicium, do julgamento do objeto litigioso do processo”.1 A cognição revela a função epistêmica (investigativa, em sentido amplo) que todo processo tem.

A cognição é um dos mais importantes núcleos metodológicos para o estudo do processo. Basta ver que a própria noção que se tem de cadatipo de processo (conhecimento ou execução) estrutura-se a partir dograu de cognição judicial que se estabelece em cada um deles.

A análise da cognição judicial é, portanto, o exame da técnica pela qual o órgão julgador tem acesso e resolve as questões que lhe são postas paraapreciação. É� importante perceber que o objeto da cognição é formadopor essas questões.2

Frise-se, ainda, que a cognição não é atividade solitária do órgão jurisdicional. Ela se realiza em um procedimento estruturado em con-traditório e organizado segundo um modelo cooperativo, o que torna a participação das partes na atividade cognitiva imprescindí�vel, e, por isso, muito importante3.

1. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 41.2. Sobre o objeto da cognição, com análise um pouco diversa, mas muito proveitosa, CÂMARA, Alexandre

Freitas. Lições de direito processual civil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 267-277.3. A propósito, precisamente, MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de Conhecimento & Cognição: uma inserção

no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2010, p. 118.

Page 13: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.546

2. CONCEITO DE QUESTÃO

Questão é palavra que assume, na dogmática jurí�dica processual, aomenos dois significados.

Em um primeiro significado, que pode ser qualificado de restrito, ques-tão é qualquer ponto de fato ou de direito controvertido, de que dependa o pronunciamento judicial. “Nessa acepção, dir-se-á com propriedade que a solução das ‘questões’ é o meio de que se vale o juiz para julgar: a ‘questão’ não constitui, em si, objeto de julgamento, mas, uma vez resolvida, insere--se entre os fundamentos da decisão, entre as razões de decidir”.4 Essa é aacepção utilizada pela quase totalidade da doutrina, a dispensar, inclusive,maiores referências.5 Cumpre apontar, também, que é esse o significadoutilizado no inciso II do art. 489 do CPC.

Mas o vocábulo “questão” também pode ser entendido como “o pró-prio thema decidendum, ou, ao menos cada uma das partes em que ele se fraciona”.6 Aqui, a palavra “questão” assemelha-se a “mérito”, que nada mais é do que a “questão principal” do processo, o seu objeto litigioso. “Havendo mais de um pedido, ou – o que afinal é o mesmo – compondo-se o pedido de mais de um item, estarão subpostas à cognição judicial tantas “ques-tões” quantos forem os pedidos, ou os itens do pedido”.7 Essa é a acepção utilizada no inciso III do art. 489 do CPC.

Um estudo sobre a cognição judicial não pode prescindir desta cons-tatação.

3. RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES: RESOLUÇÃO INCIDENTER TANTUM ERESOLUÇÃO PRINCIPALITER

Como visto, é importante frisar uma distinção: há questões que são postas como fundamento para a solução de outras e há aquelas que são colocadas para que sobre elas haja decisão judicial. Em relação a todas

4. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade dereiteração noutro processo”. Temas de direito processual civil. 2ª série. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.243.

5. “Os litigantes formulam no processo afirmações, que constituem ‘pontos’ a examinar. Se uma dessasafirmações (ponto) é contrariada pelo antagonista de quem a formulou, surge a questão, que é, por-tanto, o ‘ponto controverso’.” (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro:Aide, 1992, p. 254).

6. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade dereiteração noutro processo”, cit., p. 243.

7. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade dereiteração noutro processo”, p. 243.

Page 14: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

C A P Í T U L O 2 0

Audiência Preliminar de Conciliação ou Mediação

Não sendo o caso de indeferimento da petição inicial ou de improce-dência liminar do pedido, o juiz determinará a citação do réu e designará audiência de conciliação ou mediação (art. 334, caput, CPC; art. 27 da Lei n. 13.140/2015).

O réu deve ser citado com no mí�nimo vinte dias de antecedência em relação à data da audiência. Na carta (art. 248, § 3º, CPC) ou no mandado de citação (art. 250, IV, CPC), o réu será intimado para comparecer, acom-panhado de advogado ou de defensor público, à audiência de conciliação ou de mediação, com a menção do dia, da hora e do lugar do comparecimento. Na carta ou no mandado, o réu deve ser advertido de que sua ausência injustificada será punida com a multa do art. 334, §8º, CPC1.

Importante o registro do art. 154, VI, do CPC, segundo o qual cabe ao oficial de justiça “certificar, em mandado, proposta de autocomposi-ção apresentada por qualquer das partes, na ocasião de realização de ato de comunicação que lhe couber”.

Certificada a proposta de autocomposição prevista no inciso VI, o juiz ordenará a intimação da parte contrária para manifestar-se, no prazo de cinco dias, sem prejuí�zo do andamento regular do processo, entendendo-se o silêncio como recusa (art. 154, par. ún., CPC).

A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado (art. 334, § 3º, CPC).

A audiência é de conciliação ou mediação, pois depende do tipo da técnica a ser aplicada – e o tipo de técnica depende do tipo de conflito. De acordo com o §§ 2º e 3º do art. 165 do CPC, será de conciliação “nos casos em que não houver ví�nculo anterior entre as partes”; será de mediação, “nos casos em que houver ví�nculo anterior entre as partes”. O tema foi exa-minado no capí�tulo sobre mediação e conciliação, neste volume do Curso.

1. Nesse sentido, enunciado 273 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Ao ser citado, o réudeverá ser advertido de que sua ausência injustificada à audiência de conciliação ou mediação con-figura ato atentatório à dignidade da justiça, punível com a multa do art. 334, § 8º, sob pena de suainaplicabilidade”.

Page 15: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.762

Diferentemente do que ocorria no CPC-1973, a audiência de concilia-ção ou mediação será realizada antes do oferecimento da defesa. É� , real-mente, uma audiência preliminar – o CPC generalizou, neste ponto, a regra o modelo já existente há muitos anos no âmbito dos Juizados Éspeciais,embora com regramento bem diverso.

Esta audiência deve realizar-se no centro judiciário de solução con-sensual de conflitos (art. 165, CPC); somente em casos excepcionais a audiência deve realizar-se na sede do juí�zo, com a condução pelo próprio juiz. A audiência pode realizar-se por meio eletrônico, como sistema de videoconferência (art. 334, § 7º, CPC). A pauta das audiências de conci-liação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mí�nimo de vinte minutos entre o iní�cio de uma e o iní�cio da seguinte (art. 334, § 12, CPC). De acordo com o art. 28 da Lei n. 13.140/2015, o procedimento de mediação deve ser concluí�do em até sessenta dias,contados da primeira sessão, salvo se houver acordo das partes quantoà prorrogação. Como o art. 28 da Lei n. 13.140/2015 é posterior ao CPC,vale o prazo nele previsto: sessenta dias, em vez do prazo de dois mesesprevisto no § 2º do art. 334 do CPC – prazo em dia somente é contadoem dia útil, o que torna as regras muito diferentes; fica, assim, revogado,no ponto o § 2º do art. 334 do CPC. Além disso, o art. 28 prevê expressa-mente o acordo para prolongação do prazo de término do procedimentode mediação, que não está previsto expressamente no CPC.

O centro de solução consensual dos conflitos pode ser externo ao Poder Judiciário. Nada impede que entidades de classe, serventias extraju-diciais, associação de moradores, escolas (art. 42 da Lei n. 13.140/2015), Defensoria Pública (art. 43 da Lei n. 13.140/2015), outros entes privados etc. criem centros de mediação e conciliação que, conveniados com o tri-bunal, prestem esse serviço.

A audiência deve ser conduzida por conciliador ou mediador, confor-me o caso (art. 334, § 1º, CPC). Se não houver conciliador ou mediador, em caráter excepcional poderá ser conduzida pelo juiz 2.

Há, porém, duas hipóteses, previstas em lei, em que a audiência de conciliação ou mediação não deverá ser designada (art. 334, § 4º, CPC):

I – se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual. Note que há necessidade de manifestação

2. Nesse sentido, enunciado 23 da Jornada de Processo Civil do Conselho da Justiça Federal: “Na ausência de auxiliares da justiça, o juiz poderá realizar a audiência inaugural do art. 334 do CPC, especialmentese a hipótese for de conciliação”.

Page 16: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

Cap. 20 • AUDIÊNCIA PRELIMINAR DE CONCILIAÇÃO OU MEDIAÇÃO 763

expressa de vontade de ambas as partes3. O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição (art. 319, VII, CPC), e o réu, por petição, apresentada com dez dias de antecedência, contados da data da audiência (art. 334, § 5º, CPC).

A manifestação bilateral de desinteresse pode ser feita em conven-ção processual, celebrada antes do iní�cio do processo, em que as partes previamente dispensam a realização do ato (negócio processual atí�pico celebrado com base no art. 190 do CPC). Nesse caso, caberá ao autor trazer o instrumento da convenção juntamente com inicial.

Se o réu manifestar o desinteresse na solução por autocomposição, o prazo para a sua resposta começa a correr da data do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu (art. 335, II, CPC).

O legislador preferiu não impor a audiência no caso em que ambas as partes manifestam expressamente o seu desinteresse. A solução parece boa: elimina a possibilidade de a audiência não se realizar porque apenas uma parte não a deseja, mas ao mesmo tempo respeita a vontade das partes no sentido de não querer a autocomposição, o que está em conformidade com o princí�pio do respeito ao autorre-gramento da vontade e com o princí�pio da cooperação. Repita-se o que já se disse neste Curso: a vontade das partes não pode ser nem é um dado irrelevante para o processo.

Se houver litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes (art. 334, § 6º, CPC). Há, aqui, um problema: a solução por autocomposição (transação, renúncia ou reconhecimento da procedência do pedido) não pode ser imposta a um litisconsorte que não a deseja. Assim, se o caso for de litisconsórcio simples, não há problema em que apenas um deles resolva o lití�gio con-sensualmente; se o caso for de litisconsórcio unitário, ou todos concordam com a autocomposição, ou nada feito.

II – Também não será marcada a audiência de conciliação ou mediação no processo em que não se admita a autocomposição.

Não se pode confundir “não admitir autocomposição”, situação que autoriza a dispensa da audiência, com ser “indisponí�vel o direito litigioso”. Ém muitos casos, o direito litigioso é indisponí�vel, mas é possí�vel haver autocomposição. Ém ação de alimentos, é possí�vel haver reconhecimento

3. Em outro sentido, que é contrário à literalidade do texto normativo, entendendo que basta a oposiçãode uma das partes para que não haja a audiência, CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civilbrasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 189.

Page 17: Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL€¦ · Há normas fundamentais do processo civil que são, também, direitos fundamentais – encontram-se no art. 5º da CF/1988. Há, no entanto,

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL • Vol. 1 – Fredie Didier Jr.764

da procedência do pedido pelo réu e acordo quanto ao valor e forma de pagamento; em processos coletivos, em que o direito litigioso também é indisponí�vel, é possí�vel celebrar compromisso de ajustamento de conduta (art. 5º, § 6º, Lei n. 7.347/1985).

Na verdade, é rara a hipótese em que se veda peremptoriamente a autocomposição. Mas há exemplos: não será marcada essa audiência no processo da ação rescisória e no processo da reclamação, por exemplo.

O Poder Público somente pode resolver o conflito por autocomposi-ção. Antes havia a proibição expressa de autocomposição em improbidade administrativa, mas a mudança de redação do § 1º do art. 17 da Lei n. 8.429/1992 e a inclusão do §10-A no mesmo artigo eliminaram qualquer dúvida quanto à possibilidade de solução consensual no âmbito da impro-bidade administrativa também.

O tema vem sendo examinado com atenção. A propósito, dois enuncia-dos doutrinários sobre o tema: n. 573 do Fórum Permanente de Processu-alistas Civis: “As Fazendas Públicas devem dar publicidade às hipóteses em que seus órgãos de Advocacia Pública estão autorizados a aceitar autocom-posição”; n. 24 da Jornada de Processo Civil do Conselho da Justiça Federal: “Havendo a Fazenda Pública publicizado ampla e previamente as hipóteses em que está autorizada a transigir, pode o juiz dispensar a realização da audiência de mediação e conciliação, com base no art. 334, § 4º, II, do CPC, quando o direito discutido na ação não se enquadrar em tais situações”.

Também é preciso que o juiz pondere a conveniência de marcar essa audiência nos casos em que há afirmação de violência doméstica à mulher. Nesse sentido, enunciado 639 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de media-ção ou conciliação nas ações de famí�lia, quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva”.

Em todos esses casos, o réu será citado para apresentar resposta, no prazo legal, sem a intimação para comparecer à audiência, que não se realizará (art. 335, III, CPC).

Isso não quer dizer que não haja possibilidade de autocomposição nos processos de que faça parte ente público4. Há, ao contrário, forte tendência legislativa no sentido de permitir a solução consensual dos conflitos envolvendo entes públicos. A criação de câmaras adminis-trativas de conciliação e mediação é um claro indicativo neste sentido (art. 174, CPC). Cada ente federado disciplinará, por lei própria, a forma e os limites da autocomposição de que façam parte.

4. Nessa linha, enunciado 673 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A presença do ente público em juízo não impede, por si, a designação da audiência do art. 334”.