a observÂncia dos direitos fundamentais no … · que os direitos fundamentais têm como único...

154
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS Elizabeth Alecrim Soares Coelho Fortaleza - CE Dezembro, 2007

Upload: dangcong

Post on 10-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZUNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFORCENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS

Elizabeth Alecrim Soares Coelho

Fortaleza - CE Dezembro, 2007

ELIZABETH ALECRIM SOARES COELHO

A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS

Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof.ª Dr.ª Joyceane Bezerra de Menezes

Fortaleza – Ceará2007

ELIZABETH ALECRIM SOARES COELHO

A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Joyceane Bezerra de MenezesUNIFOR

___________________________________________________

Prof.º Dr.º Rosendo de Freitas AmorimUNIFOR

___________________________________________________

Prof.º Dr.º José Maria ArrudaUNIFOR

Dissertação aprovada em:

Aos meus pais, José Airton e Sônia, exemplos de vida, força e honestidade, por me amarem a sua maneira, incondicionalmente, por terem me ensinado que a vida é feita de escolhas e que, somente eu, sou responsável pelas minhas, meus amores, minha eterna gratidão. Ao meu marido Máximus, meu porto seguro, que enlouqueceu comigo nos incansáveis finais de semana, meu amor e minha vida.Ao nosso filho Gabriel, alegria de nossa vida, nosso amor e nosso orgulho.Aos meus irmãos Paula, Helena, Luciana, Adriana e José, irmãos que eu mesma teria escolhido, meus amores.Ao Pedro, Victor, Gabriela, Leonardo, Roberta, Eduarda e Suiany, sobrinhos queridos, meus amores.

AGRADECIMENTOS

A vida exige sempre de todos nós muita pressa: agendas repletas de compromissos,

todos inadiáveis, mil atividades, mil obrigações, alguns prazeres. Quase nem temos tempo

para desfrutar de momentos importantes e transcendentes, para interpretá-los, para aprender

com eles, para incorporá-los à nossa existência. Terminar este trabalho, após tão longa

caminhada, me faz pensar em todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para que eu

atingisse meu objetivo, para que eu não desistisse, para tornar, enfim, o fardo mais leve.

São pessoas sem as quais eu não teria chegado até aqui. Assim, meu mais sincero e

comovido agradecimento: a Deus, que esteve comigo em cada momento; a todos os meus

familiares, pelas as horas das quais abdiquei de sua companhia, por terem compreendido e me

estimulado em mais essa ‘loucura’ .

As minhas amigas e companheiras de trabalho, Yélita e Rafaellen, por terem suprido

minha falta, sempre torcendo por mim, e a todos os funcionários do Conselho Regional de

Contabilidade do Ceará, minha segunda casa, que sempre me apoiaram.

Aos meus amigos, em especial José Martônio Alves Coelho, que sempre acreditou que

eu seria capaz, mesmo quando eu mesma duvidava.

À Universidade de Fortaleza – UNIFOR, sem a qual este sonho não se teria

concretizado.

A todos os Doutores, Professores do Curso de Mestrado, que me conduziram com

percuciência por caminhos ainda não percorridos, fazendo-se, desta forma, inesquecíveis.

Aos meus colegas de mestrado, pelo esforço comum, pela troca de experiências e

aprendizado, em especial a Auricélia Melo.

Aos colegas professores da UNIFOR, pela participação, interesse e força.

Aos meus alunos do Curso de Direito, Administração, Comércio Exterior e Ciências

Contábeis da UNIFOR, pelo incentivo, pela torcida, pelo muito que com eles aprendo e por

serem sempre um estímulo ao meu crescimento profissional;

À coordenadora do Curso de Mestrado em Direito da Universidade de Fortaleza –

UNIFOR, Profa. Dra. Lília Sales, um agradecimento especial pelo apoio, pela compreensão,

pela sabedoria com que sempre conduziu o curso de Mestrado, cobrando, lembrando das

‘gralhas’, mas sem perder o bom-humor e o carinho para com todos.

Aos membros de minha Banca de Defesa, Prof. Dr. Rosendo Amorim, por sua grande

capacidade, sabedoria, empenho e boa vontade, e ao Prof. Dr. Tarcísio Leite, pela sua

disponibilidade em participar deste momento.

Intencionalmente, por fim, meus agradecimentos àquela que representou muito mais

que uma Professora, uma verdadeira mestra, que partilha com imenso prazer seus

conhecimentos, ama o que faz e demonstra isso a cada momento - minha orientadora, Profa.

Dra. Joyceanne Bezerra de Menezes, que, com firmeza, discernimento, elegância e sabedoria,

soube incentivar-me a dar o melhor de mim. Creia, Professora, jamais a esquecerei. Meus

respeitos e meu eterno obrigada.

6

“E a dignidade da vida fez-se direito. A própria vida tornara-se conteúdo fundamental dos ordenamentos jurídicos no Estado Moderno. Percebe-se que não basta o viver-existir. Há que se assegurar que a vida seja experimentada em sua dimensão digna, entendida como qualidade inerente à condição do homem em sua aventura universal.”

Cármen Lúcia Antunes Rocha

“Há homens que lutam um dia e são bons;Há outros que lutam um ano e são melhores;Há os que lutam muitos anos e são muito bons;Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.”

Bertold Brecht

RESUMO

Pesquisa sobre a observância dos direitos fundamentais no modelo constitucional pátrio e do princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídico-privadas. Na concepção do paradigma liberal, ainda na origem do constitucionalismo moderno, os direitos fundamentais foram concebidos como direitos do homem em face do Estado, sobretudo no que diz respeito a sua liberdade. Nos últimos tempos observou-se, todavia, um crescimento vertiginoso do poder de outros setores da sociedade, nem sempre atentos à existência de uma carta de direitos e garantias dos indivíduos, os quais acabam sendo menosprezados, ameaçados e até violados em meio às relações jurídicas privadas. Nesse contexto, não há como se sustentar a noção de que os direitos fundamentais têm como único destinatário o Estado, ou melhor, não há como se sustentar a noção de que somente as relações indivíduo-Estado se desenvolvem sob a proteção dos direitos fundamentais, pois mesmo aquelas que envolvem os indivíduos entre si, quer individualmente, quer em grupos, também recebem a força irradiadora dos referidos direitos. Discute-se se essa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais dá-se de forma direta e imediata ou de forma indireta, mediante a intermediação do legislador e do juiz, nessa última hipótese, por meio da concretização das cláusulas gerais, que hoje são uma técnica legislativa de uso corrente no Brasil e que foram amplamente utilizadas quando da elaboração do novo Código Civil. A aplicação dos direitos fundamentais, sob o primado da dignidade da pessoa humana, tornou-se um imperativo da releitura do sistema de normas do direito privado e de sua renovação, com vistas a atender às novas demandas surgidas diariamente na sociedade. O princípio da boa-fé objetiva e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas inserem-se num processo de retomada da consciência ética no Direito Civil, sobretudo no direito das obrigações, libertando-se do cunho estritamente voluntarista e patrimonialista, objetivando a realização dos valores supremos inseridos no Texto Constitucional. Assim, pretende-se demonstrar que a aplicação do princípio da boa-fé objetiva significa uma releitura dos institutos insculpidos no Código Civil, a partir da efetivação de seu significado, urdido no caso concreto e pela perspectiva do sujeito da relação obrigacional.

Palavras-Chave: Boa-fé. Direitos humanos. Direitos fundamentais. Direito privado.

ABSTRACT

This research is about the observation of the fundamental rights in the constitutional patriotic model and of the principle of the objective good faith in the juridical-private relations. At the conception of the liberal paradigm, still at the origin of the modern constitutionalism, the fundamental rights had been conceived as men’s rights in view of the State, especially about their freedom. At the last times we observed, however, a vertiginous growth of the other society sectors power, not always watching out for the existence of a document about rights and individual guarantees, that are despised at last, threatened and even violated in the middle of the private juridical relations. In this context, there is no way to support the basic grasp that the fundamental rights have as only addressee the State, it means, there is no what support the basic grasp that only the individual-state relations are developed under protection of the fundamental rights, because even the ones that approach to the individuals each other, individually or into groups they receive the power of this rights. We discuss if this vinculation from the individual to the fundamental rights happens in the direct and immediate way or in a indirect way, through the mediation of a legislator and a judge, at this last hypothesis, through the carrying out of the general clauses, that today are legislative technique on current use in Brazil being highly used since the elaboration of new Civil Code. The apply of the fundamental rights under the primate-ship of human person dignity, because an imperative for readjust of the rules at the private rights system and its renovation, to deal with new demands that appears everyday at the society. The principle of the objective good faith and apply of the fundamental rights at the private relations are related to process of the resume the ethical conscience at the Civil Rights, especially about the obligation rights, beewg out of the aspect strictly voluntary and related to patrimony, searching for carrying out the supreme valves inside the constitutional text. So, we intend to demonstrate that the apply of the objective good faith principle means a readjust of the institutes sculpted at the Civil Code, from the carrying out of its meaning, up to the real case and by the subject perspective of the compulsory relation.

KEY WORDS – 1. Good faith; 2. Human rights; 3. Fundamental rights; 4. Private rights.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................12

1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS......................17

1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..................17

1.2 A positivação dos direitos fundamentais......................................................................20

1.3 Algumas vertentes téoricas dos direitos fundamentais...................................................23

1.4 Teorias dos direitos fundamentais..................................................................................29

1.4.1 Teoria liberal......................................................................................................30

1.4.2 Teoria institucional..............................................................................................32

1.4.3 Teoria axiológica ou teoria dos valores dos direitos fundamentais.....................33

1.4.4 Teoria democrática funcional dos direitos fundamentais....................................36

1.4.5 Teoria do Estado Social........................................................................................37

1.5 Funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo..................39

2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS...............................................................................................................42

2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................................................................................................42

2.2 Surgimento e consolidação do estado nacional: o modelo liberal.................................43

2.3 O Estado social...............................................................................................................50

2.4 O Estado Democrático de Direito..................................................................................58

3 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...............................................................................................................63

3.1 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................................................................................................63

3.2 Ordem de valores e a Constituição.................................................................................66

3.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais.............................................................70

3.4 A constitucionalização do direito privado......................................................................74

4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS: ALGUNS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS..........................................................................83

4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS: ALGUNS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS...............................................................................83

4.1 Prolegômenos.................................................................................................................83

4.2 Teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas......90

4.3 Teoria da aplicação mediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas.....100

4.4 Argumentação de outras teorias...................................................................................104

4.5 Algumas considerações................................................................................................108

5 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS.............................................................................................................110

5.1 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS.................................................................................................................110

5.2 As cláusulas abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares..............................................................................................................................112

5.3 A boa-fé subjetiva e suas considerações no Código Civil Brasileiro de 1916...........114

5.4 Evolução histórica da boa-fé objetiva..........................................................................117

5.5 A boa-fé objetiva no direito comparado ......................................................................122

5.5.1 A boa-fé objetiva na Alemanha..........................................................................122

5.5.2 A boa-fé objetiva em Portugal...........................................................................125

5.6 A prevalência da observação da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio.......127

5.7 A boa-fé objetiva como parâmetro de observação pelos juízes...................................137

CONCLUSÃO............................................................................................................144REFERÊNCIAS..........................................................................................................149

11

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por tema a observância dos direitos fundamentais no modelo

constitucional pátrio e do princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídico-privadas e

pretende discutir paralelamente ambos os tópicos e estabelecer uma correlação entre eles,

dentro de uma perspectiva de Direito Civil-Constitucional.1 Isso porque, a partir das

transformações pelas quais passam tanto o Direito Civil quanto o Direito Constitucional,

instados a dar respostas aos problemas postos na sociedade contemporânea, complexa e

plural, impõe-se uma nova definição de questões que classicamente se desenvolviam sob o

signo dos paradigmas liberais de autonomia da vontade e abstenção do Estado frente aos

direitos de igualdade e liberdade. É imperioso salientar que a temática não se esgota, por

óbvio, nesta pesquisa.

Noutro contexto, a fragilização do Estado Social ou do Estado Providência já deu

mostras de que seus mecanismos compensatórios não são suficientes para garantir sequer a

propalada dignidade da pessoa humana, valor orientador de todo o ordenamento jurídico.

Assistimos a um crescimento vertiginoso do poder de outros setores da sociedade, nem

sempre atentos à existência de uma carta de direitos e garantias dos indivíduos, os quais

acabam sendo menosprezados, ameaçados e até violados em meio às relações jurídicas

privadas. Os interesses pessoais são hoje coordenados em grupos que congregam grande

parcela de poder, tais como sindicatos, igrejas, grupos econômicos, associações patronais e

desportivas, entre outras tantas. Assim, as mudanças operadas na sociedade afastam a idéia do

Estado como “inimigo público”, pois o poder não é mais considerado uma exclusividade sua,

visto ser compartilhado por toda a sociedade.

1 Adotamos, por oportuna, a definição de Teresa Negreiros (2002, p.58) sobre o significado da perspectiva do direito civil-constitucional que se pretende aplicar ao estudo que ora se inicia. Esclarece a autora que “a perspectiva civil-constitucional constitui, em suma, a perspectiva de análise e de interpretação empenhada em demonstrar e explorar a conexão entre a história do direito civil e a história constitucional - particularmente o projeto de sociedade “justa, livre e solidária” (CF, art. 3°,I) que foi delineado nas Constituições do século XX”.

Nesse sentido, assim se expressa Gustavo Tepedino (1999, p.22):

Novos parâmetros para a definição de ordem publica, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.

Por outro lado, os direitos fundamentais propiciam ao cidadão não só se identificarem

como destinatários da ordem jurídica, mas também como co-autores dessa mesma ordem, pois

de um lado existem os direitos fundamentais que garantem o exercício da autonomia privada

dos sujeitos e, de outro, aqueles que garantem a participação dos sujeitos no processo de

produção do ordenamento jurídico, tais como os direitos fundamentais de exercício de uma

autonomia política a partir da qual o direito legítimo é criado.

Nesse contexto, busca-se o resgate da noção da solidariedade social, como forma de dar

novos contornos ao dogma da liberdade, sobretudo econômica, que imperou no ideário

liberal, de inspiração capitalista, na tentativa de apontar caminhos para a construção de uma

sociedade mais justa e igualitária.

Pretende-se assim com a presente pesquisa sistematizar elementos para contribuir para

uma discussão inexorável, mas à qual os operadores do Direito ainda se apresentam

refratários, como se verá no decorrer da exposição, sobretudo no que concerne à cláusula da

boa-fé objetiva.

No que concerne à questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre

particulares, as pesquisas de direito comparado acerca do tema indicam que a sua discussão

em outros países remonta a fins da década de 50, animada pela convicção de que não basta a

existência de uma carta de direitos formalmente assegurados e sem a possibilidade de

utilização contra outras formas de poder que não o poder político do Estado. Não basta para a

eficácia dos direitos fundamentais, que haja o reconhecimento de sua existência pelo Estado,

mas, ao contrário, é necessário que a estrutura de poder seja compatível com sua salvaguarda,

pois se o que está em causa é a posição da pessoa perante o poder, que não só o estatal, torna-

se ineliminável que existam mecanismos de controle e repartição desse poder, tanto no que

concerne às liberdades públicas, quanto no que diz respeito às liberdades privadas.

No Brasil a discussão é bem mais recente e não tem grande repercussão na

jurisprudência dos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de

13

Justiça). Também não há na legislação pátria dispositivo que discipline a matéria. Não

obstante, o reconhecimento dos direitos fundamentais nas relações interprivadas gera grande

expectativa em relação ao posicionamento e à atuação do Judiciário, pois o torna um dos

responsáveis pela conformação da autonomia privada e dos direitos fundamentais, quer pelo

reconhecimento de eficácia imediata dos mencionados direitos nas relações privadas, quer

pela interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados, inseridos na legislação

privada. Esse o aspecto mais relevante do tema ora proposto. Verifica-se a dificuldade do

operador do direito de identificar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre

particulares na Constituição Federal, pelo fato de não haver referências normativas

textualmente expressas. Ademais, a jurisprudência constitucional não é clara e direta sobre a

matéria. Assim se refere Daniel Sarmento (2004, p.202-293) sobre o tema:

Já na jurisprudência brasileira ocorre um fenômeno de certa forma curioso. Não são tão escassas as decisões judiciais para dirimir conflitos de caráter privado. Porém, com raríssimas exceções, estes julgamentos não são precedidos de nenhuma fundamentação teórica que dê lastro à aplicação do preceito constitucional ao litígio entre os particulares. Na verdade, ainda não encontrou eco nos nossos pretórios a fértil discussão sobre os condicionamentos e limites para aplicação dos direitos humanos na esfera privada.

Na perspectiva social, a importância da pesquisa proposta consubstancia-se na

premência da busca de soluções para os problemas sociais que se apresentam modernamente,

em que o exercício da cidadania não pode ser amesquinhado por fórmulas meramente

retóricas e em que a Constituição não pode ser definida como “uma mera folha de papel”.

Por fim, no âmbito da ciência do direito, a pesquisa tem relevância não só para o Direito

Constitucional, em que a realização da Constituição será estudada à luz dos fatos cotidianos

da vida dos cidadãos, estes seus verdadeiros intérpretes, na lição de Peter Häberle (1997), mas

também para o Direito Privado, pois seus pilares clássicos começam a ceder espaço à

influência dos direitos fundamentais na relação indivíduo-indivíduo.

Tal influência, em termos objetivos, pode ser claramente sentida na leitura do Código de

Defesa do Consumidor e do novo Código Civil brasileiro, que em muitos dispositivos

resguardam o particular contra outros particulares ou entidades privadas que assumem tanto

poder na relação jurídica concreta, que se assemelham ao Poder Público.

14

A partir de um método jurídico-teórico-dogmático2, o estudo será desenvolvido em

cinco capítulos, dos quais os três primeiros destinados a assentar premissas teóricas para

contextualizar a discussão, e os dois últimos destinados à abordagem dos temas principais,

quais sejam: a análise dos principais aspectos do debate doutrinário acerca da aplicação dos

direitos fundamentais nas relações entre particulares e a aplicação da cláusula da boa-fé

objetiva no direito obrigacional.

No primeiro capítulo busca-se fazer uma análise de alguns posicionamentos teóricos

relativos à dogmática dos direitos fundamentais, incluindo o seu processo de positivação, a

tentativa de construção de uma teoria geral dos direitos fundamentais, a influência dos

diversos paradigmas estatais e as chamadas teorias dos direitos fundamentais e, por fim, uma

breve abordagem das funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo moderno. O

objetivo do capítulo não será apresentar um conceito de direitos fundamentais, mas, antes de

tudo, passar em revista alguns aspectos do estudo dogmático dos direitos fundamentais, de

modo a contextualizar o objeto da presente pesquisa.

No capítulo II objetiva-se levar a cabo um estudo histórico dos direitos fundamentais,

desde o surgimento do Estado constitucional, passando pelos modelos liberal, social e

democrático, sempre sob a ótica da relação entre poder político e direitos fundamentais.

Busca-se estabelecer a evolução de alguns conceitos caros ao desenvolvimento dos direitos

fundamentais pela correlação tempo/espaço, numa relação temporal de busca de suas origens.

Já no capítulo III, intenta-se realizar a análise mais aprofundada da chamada dimensão

objetiva dos direitos fundamentais, a partir da noção de Constituição como ordem de valores e

da eficácia irradiante dos direitos fundamentais, sobretudo da noção de dignidade da pessoa

humana. Bem assim, pretende-se discutir a existência de uma constitucionalização do Direito

Civil e de que maneira essa discussão repercute nos contornos clássicos da oposição entre

Direito Público e Direito Privado.

Os principais aspectos do debate doutrinário acerca da aplicação dos direitos

2 Segundo Miracy Barbosa de Sousa Gustin e Maria Tereza Fonseca Dias (2002, p.41-42), existem algumas vertentes teórico-metodológjcas de pesquisa jurídica. Dentre as descritas pelas autoras interessam-nos a vertente jurídico-dogmática e a vertente jurídico-teórica, sendo a primeira definida como aquela que “considera o Direito com auto-suficiência metodológica e trabalha elementos internos ao ordenamento jurídico. Desenvolve investigações com vistas à compreensão das relações normativas nos vários campos do Direito e com a avaliação das estruturas internas do ordenamento jurídico”. Já a vertente Jurídico-teórica acentua os aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários de determinado campo que se deseja investigar, relacionando-se mais diretamente, com a esfera da Filosofia do Direito e com as áreas teórico-gerais dos demais campos jurídicos.

15

fundamentais nas relações interprivadas serão abordados no capítulo IV, partindo-se da teoria

da aplicação imediata, passando pela teoria da aplicação mediata e a análise de outras teorias,

sobretudo no modelo norte-americano.

Por fim, no capítulo V faz-se uma aproximação da cláusula geral da boa-fé objetiva e a

aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, apresentando uma

comparação entre a boa-fé subjetiva e objetiva, notícia do tema no direito comparado, sua

eficácia no ordenamento jurídico brasileiro e a boa-fé objetiva na tarefa dos juízes.

Não é demais reforçar que o presente estudo pretende uma abordagem sistemática de

alguns aspectos envolvidos na discussão acerca da vinculação das relações privadas aos

direitos fundamentais, mormente no que diz respeito ao direito obrigacional. É principalmente

a partir da aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva já positivada no ordenamento

jurídico brasileiro, mas de aplicação ainda muito tímida nas decisões judiciais, que se espera

poder contribuir para o alargamento da abordagem ética dos assuntos postos à apreciação no

dia-a-dia, especialmente, nas decisões forenses, a fim de que os operadores do direito

comecem a se aprofundar sobre o tema e utilizar como fundamento jurídico os direitos

fundamentais, uma vez que contribuirá, ainda mais, para a melhoria da sociedade em um

Estado Constitucional em desenvolvimento.

16

1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O presente estudo versa sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais

nas relações interprivadas e a aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva. Preliminarmente,

porém, impõe-se a análise de alguns aspectos atinentes à conceituação dos direitos

fundamentais, sobretudo em relação ao seu processo de positivação e consolidação nos

ordenamentos jurídicos dos países. Conforme lembra Menelick de Carvalho Netto (2003, p.

141), “os direitos fundamentais, tal como entendemos hoje, são resultado de um processo

histórico tremendamente complexo”, mas que deve ser entendido e contextualizado, pois o

seu reconhecimento e a sua efetiva proteção são a base das Constituições democráticas

modernas, as quais se confundem com a própria história do moderno Estado constitucional.

Por tal razão, não se tem a ousadia de se tentar reconstruir aqui, em sua integralidade, um

conceito tão complexo na atual teoria constitucional, mas, ao contrário, pretende-se um

esforço de depuração e catalogação de opiniões abalizadas, numa tentativa de contextualizar o

tema objeto do presente estudo.

As dificuldades no trato do tema começam já a partir da terminologia dos direitos,

objeto de reflexão da pesquisadora. Muitas expressões são utilizadas para identificar os

direitos ditos fundamentais e, vale aqui a advertência, muito embora se opte pela expressão

direitos fundamentais, para designar o objeto de estudo, em várias passagens, no esteio da

opinião dos diversos autores que serão apresentados. No que pese ainda haver outros autores

que, no trato do tema, se utilizam de expressões como direitos humanos, direitos

fundamentais, direitos sociais e até direitos naturais.

Feita tal advertência, verifica-se que, em grande parte das vezes, direitos humanos e

direitos fundamentais são utilizados freqüentemente como sinônimos, a despeito das

tentativas da doutrina de explicar o alcance de cada uma das expressões. Assim, na lição de

Perez Luño (1988, p.44), a doutrina tem utilizado a expressão direitos fundamentais para

designar os direitos positivados em nível interno, enquanto direitos humanos seriam mais

utilizados para designar os direitos naturais positivados nas declarações e convenções

internacionais, assim como em relação àquelas exigências básicas relacionadas com a

dignidade, liberdade e igualdade das pessoas que não tenham alcançado um estatuto jurídico

positivo. Já Paulo Bonavides (2000, p.514), a pretexto de comentar o que chama de

promiscuidade da literatura jurídica no uso das expressões direitos humanos, direitos do

homem e direitos fundamentais, denuncia:

o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência aliás com a tradição histórica, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita à preferência dos publicistas alemães.

Não obstante, deve-se apresentar a posição de Menelick de Carvalho Netto (2003, p.

142), que assume sua preferência pela expressão direitos fundamentais, entendida como fruto

de uma conquista histórica, socialmente criada, direitos institucionalizados em uma sociedade

improvável e complexa. Mais do que direitos atemporais e a-históricos, os direitos

fundamentais são aqueles previstos em uma ordem constitucional específica, local, sendo

então a expressão que mais se amolda aos fins do presente estudo, sobretudo no que concerne

à análise da aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas e a cláusula da

boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, independentemente da terminologia adotada, traz-se à colação a lição de

Norberto Bobbio (1992, p.20), em seu livro “A Era dos Direitos”, no qual sustenta que o

grande desafio em se tratando da garantia e respeito à universalização dos direitos humanos,

não é o de justificá-los ou reconhecê-los, mas de como torná-los efetivos. Bobbio (1992, p.

25) assevera que o problema dos direitos humanos não é filosófico, mas jurídico e, em um

sentido mais amplo, político, senão veja-se:

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.3

Continuando, o autor afirma que os direitos sociais 4 são mais difíceis de proteger que os

direitos de liberdade ou que o direito internacional é de mais difícil proteção do que o direito

3 Em outro texto, intitulado “A era dos direitos”, o mesmo autor explicita que “Uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil”. (BOBBIO, 1992, p.63-64).4 A expressão direitos sociais é aqui utilizada como uma espécie do gênero direitos fundamentais. A ressalva toma-se importante, pois a mesma não havia aparecido no texto até então. Assim, mais uma vez alertamos para a utilização de muitas expressões a designar o mesmo fenômeno nos diversos autores, mas que nossa opção é pela forma direitos fundamentais.

18

no interior de um determinado Estado, arrematando que são muitos os exemplos “de contraste

entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a

miséria das realizações.” (BOBBIO, 1992, p.25). Conclui afirmando que:

[...] Quando digo que o problema mais urgente que temos de enfrentar não é o problema do fundamento, mas o das garantias, quero dizer que consideramos o problema do fundamento não como inexistente, mas como – em certo sentido – resolvido, ou seja, como um problema com cuja solução já não devemos mais nos preocupar [...]. (BOBBIO,1992, p.26)

A maior questão do constitucionalismo moderno diz respeito à efetivação dos direitos

fundamentais. Como, de fato, fazê-los sair dos textos constitucionais e fazê-los aplicáveis no

dia-a-dia dos indivíduos, da sociedade, enfim, no mundo da vida? Percebe-se que os direitos

fundamentais não mais se aplicam somente contra o Estado e tampouco basta que haja sua

previsão apenas formal no texto constitucional. É necessária a sua proteção contra toda e

qualquer violação, quer do Estado, quer de particulares, quer por imposições de ordem

econômica, social ou mesmo legal.

Sobre o tema, Paulo Bonavides (2000, p.534) sintetiza a tensão entre o que chamou de

velho e novo Direito Constitucional, afirmando que, no velho, a tensão estava voltada para a

regulamentação do próprio funcionamento do Estado, conferindo especial importância à

separação dos poderes. É o que se pode observar:

Enfim, podemos sintetizar que, ao tempo do velho Direito Constitucional – o da separação de poderes – a tensão transcorria menos no campo das relações dos cidadãos com o Estado – a filosofia da burguesia liberal cristalizada na racionalidade jurídica dos Códigos já pacificara grandemente essas relações! – do que no domínio mais sensível e delicado das relações entre os Poderes, donde pendia, perante a força do Estado, e a desconfiança remanescente das épocas do absolutismo, a conservação da liberdade em toda a sua dimensão subjetiva. Nesse contexto avultava e se mantinha sempre debaixo de suspeita o Poder Executivo, sobretudo nas monarquias constitucionais, onde ficava mais ostensivamente sujeito aos freios e controle do sistema parlamentar.

Neste caminho a Constituição adquire semelhanças com a lei comum, perdendo o

significado de ser a vontade política da nação.

Já no que concerne ao que chamou de novo Direito Constitucional, o autor afirma que

se refere:

a tensão traslada-se de maneira crítica e extremamente preocupante, para a nervosa esfera dos direitos fundamentais. A partir de então, a sociedade procura aperfeiçoar o sistema regulativo de aplicação desses direitos em termos de um constitucionalismo assentado sobre as incoercíveis expectativas da cidadania postulante. (BONAVIDES, 2000, p.539).

E conclui Bonavides (2000, p.539) que os direitos fundamentais são a sintaxe da

19

liberdade das Constituições.

Em abono à afirmação de que os direitos fundamentais são resultado de um processo

histórico de sua consolidação, no próximo tópico, analisar-se-á, em linhas gerais, o processo

de positivação desses direitos. O estudo mais aprofundado da história do poder político e sua

relação com os ditos direitos serão levados a cabo no capítulo II.

1.2 A positivação dos direitos fundamentais

A positivação dos direitos fundamentais pode ser vista sob dois aspectos principais, que

não se confundem com o aspecto filosófico da discussão do tema, que será tratada adiante: um

doutrinário, que se consubstancia nas distintas construções teóricas que serviram de base para

o desenvolvimento ideológico do processo de positivação de tais direitos; e outro

institucional, que considera a positivação dos direitos fundamentais um processo geral de

formação das regras jurídicas, relacionado com a validade de um determinado ordenamento

jurídico. Bem assim, as diferenças filosóficas, religiosas e culturais das comunidades

ensejarão concepções teóricas bastante distintas, até mesmo contrárias, o que torna difícil

estabelecer critérios gerais do referido processo de positivação.

Já em referência aos direitos humanos, tem-se o entendimento de Perez Luño (1986, p.

52), de que toda busca para sua fundamentação depara com o secular dilema de optar entre

uma justificação desses direitos derivada de uma ordem natural e transcendente à aceitação do

caráter positivo e empírico de qualquer declaração de direitos. Em linhas gerais, para os

defensores da concepção dos direitos fundamentais como direitos naturais, existem direitos

que o homem possui em razão mesmo de sua condição humana, sendo desnecessária sua

positivação. Já em sua dimensão institucional, importa menos perquirir acerca do fundamento

racional de como deve ser entendida a fundamentação de tais direitos e mais considerar as

instituições jurídico-políticas por intermédio das quais tais direitos são positivados.

Na análise dos principais pontos de vista filosóficos acerca da positivação dos direitos

fundamentais, tomar-se-á por base o texto de Perez Luño (1986, p.54-56), para quem as

correntes que mais contribuíram para dimensionar o referido processo de positivação são: a

jusnaturalista, a positivista e a realista.

De acordo com as teorias jusnaturalistas, a consagração normativa dos direitos

fundamentais tem um caráter essencialmente declaratório, porquanto decorre de direitos

20

inerentes ao homem, relativos a sua própria natureza, ou seja, a positivação é o ponto alto de

um “proceso que tiene su origen en las exigencias que la razón postula como imprescindibles

para la convivencia social” (LUÑO, 1986, p.54). E explica o referido autor que

para el jusnaturalismo el término ‘derecho’ no coincide con el derecho positivo, y, por tanto, defiende la existencia de unos derechos naturales del individuo originarios e inalienables, en función de cuyo disfrute surge el Estado. De ahí que la positivación de los derechos fundamentales se presente bajo esta óptica como el reconocimiento formal por parte del Estado de unas exigencias jurídicas previas que se encarnan en normas positivas para mejor garantía de su protección. (LUÑO, 1986, p.54-55)

As Declarações de direitos do século XVIII expressaram a noção de supremacia dos

direitos naturais, como no caso da Declaração dos Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e a

Declaração Francesa, de 1789, creditando-se a tais declarações a primeira marca de transição

dos direitos humanos de liberdade para os direitos fundamentais constitucionais. Conforme

ensina Ingo Sarlet (2001, p.47), sobre a importância das referidas declarações,

com a nota distintiva da supremacia normativa e a posterior garantia de sua justiciabilidade por intermédio da suprema Corte e o controle judicial da constitucionalidade, pela primeira vez os direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados como direitos fundamentais constitucionais [...].

Ingo Sarlet (2001, p.48) ressalta a importância da Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão, de 1789, uma vez que também possuía inspiração jusnaturalista, com a

vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, como

valores históricos e filosóficos.

É de se ressaltar que, sob o rótulo de jusnaturalismo, se agruparam historicamente

muitas doutrinas heterogêneas e até contrapostas, em alguns casos, o que ensejou críticas ao

caráter vago e contraditório do direito natural. Todavia, as diversas vertentes teóricas

jusnaturalistas possuem em comum o fato de advogarem a existência de postulados de

juridicidade anteriores e justificadores do direito positivo. Assim podem-se citar alguns

teóricos: Samuel Pufendorf, Immanuel Kant, Skinner, entre outros.

No que tange às teses positivistas, a linha de raciocínio é oposta à das correntes

jusnaturalistas, pois partem do pressuposto de que a juridicidade se identifica com o direito

positivo. Falar-se em direito natural, pré-existente ao Estado, anterior ao direito positivo, não

tem sentido, uma vez que a positivação dos direitos fundamentais, para os positivistas, em

linhas gerais, é entendida como um aspecto atinente às regras gerais que presidem a criação

do direito no ordenamento estatal.

21

Na visão de Perez Luño (1986, p.59-60), o progressivo descrédito da teoria dos direitos

naturais, principalmente na Alemanha do final do século XIX, início do século XX, motivado

em grande medida pela crítica positivista, fez nascer uma nova categoria de direitos,

conhecidos como direitos subjetivos públicos. Tais direitos foram concebidos com o intento

de oferecer uma configuração jurídico-positiva à necessidade de afirmar as liberdades

individuais frente à autoridade do Estado, o que lhe impunha o reconhecimento de uma

personalidade jurídica, o qual passou a ter a condição de titular de direitos e obrigações para

com os particulares, com a possibilidade de socorro a uma tutela jurisdicional das situações

subjetivas reconhecidas.

O mais famoso teórico dos direitos públicos subjetivos foi Giorgio Jellinek, no final do

século passado, para quem tais direitos foram se afirmando progressivamente em quatro fases

ou status, onde desenvolveu a doutrina dos quatro status, em que o indivíduo pode achar-se

diante do Estado. A citada doutrina é bem delineada por Robert Alexy (2001, p.247-266).

Abaixo transcreve-se a exposição do tema por Alexandre de Moraes (2002, p.500).5

Assim, uma das posições do status constitucional corresponde à esfera de liberdade dos direitos individuais, permitindo a liberdade de ações, não ordenadas e também não proibidas, garantindo-se um espectro total de escolha, ou pela ação ou pela omissão. São os chamados status negativos. Outra posição coloca o indivíduo em situação oposta à da liberdade, em sujeição ao Estado, na chamada esfera de obrigações; é o status passivo. O status positivo, por sua vez, permite que o indivíduo exija do Estado a prestação de condutas positivas, ou seja, reclame para si algo que o Estado estará obrigado a realizar. Por fim, temos o status ativo, pelo qual o cidadão recebe competências para participar do Estado, com a finalidade de formação da vontade estatal, como é o caso do direito de sufrágio. Conclui-se, portanto, que a teoria dos status evidencia serem os direitos fundamentais um conjunto de normas que atribuem ao indivíduo diferentes posições frente ao Estado, cujo zelo também é função do Ministério Público. Portanto, garantir ao indivíduo a fruição total de todos os seus status constitucionais, por desejo próprio do legislador constituinte, que em determinado momento histórico entendeu fortalecer a instituição, dando-lhe independência e autonomia, e a causa social para defender e proteger é também função do Ministério Público, juntamente com os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Ao contrário da concepção jusnaturalista que enxergava no processo de positivação dos

direitos fundamentais uma natureza declaratória tão-somente, para os positivistas, esse

processo será sempre visto como de natureza constitutiva, na medida em que, antes de sua

positivação, os postulados sociais podem ser definidos como expectativas de direitos, mas não

como direitos já adquiridos.6 (3.1)5 Sobre a teoria dos quatro status, remetemos o leitor ao item 1.4, no final do presente capítulo.6 Adotamos o conceito de “postulado” por Ávila (2004, p.88-89), os postulados normativos seriam normas de “segundo grau” que não impõem um fim ou um comportamento específico, mas estruturam o dever de realizá-lo. São descrições estruturantes da aplicação de outras normas cuja função é otimizar e efetivizar princípios e regras. Desta forma, os postulados não se confundem com os princípios nem com as regras porque não buscam um “fim” nem estabelecem uma “conduta”.

22

Conforme ensina Perez Luño (1986), os direitos subjetivos surgiram como uma

alternativa propositadamente técnica e asséptica da noção de direitos naturais, os quais são

considerados pelo positivismo como uma categoria abertamente ideológica. E argumenta o

autor, ainda, sobre a afirmação da positivação dos direitos fundamentais: “no tienen el

carácter de una mera declaración del derecho natural, sino que pose valor constitutivo. No

se trata, pues, de ratificar los postulados del derecho natural, sino de dar vida en el marco de

un ordenamiento a un conjunto de normas jurídicas” (LUÑO, 1986, p.58).

Por fim, para aqueles que defendem uma concepção realista do processo de positivação

dos direitos fundamentais, estes não possuem uma natureza declaratória, como apregoam os

jusnaturalistas, tampouco uma natureza constitutiva, como querem os positivistas, mas uma

natureza vinculada às condições reais, como produto das exigências econômico-sociais do

homem histórico. Destarte, a positivação dos direitos fundamentais não fica adstrita aos ideais

de direito natural, que inspiram a criação de normas positivas, nem fica condicionada aos

preceitos positivamente estabelecidos, senão que é a positivação urdida na prática concreta

dos homens. Sobre a questão, Perez Luño (1986, p.59) afirma que “será la praxis concreta de

los hombres, que son quienes a la postre sufren o se benefician de esos derechos, y quienes

con sus comportamientos contribuyen a formalos en cada situación histórica, la pauta

orientadora de su significación.”

A concepção realista ora aparece vinculada ao movimento socialista, como no caso da

obra de Karl Marx (1980), em seu livro “O Capital” (Crítica da Economia Política),

Civilização Brasileira, 1980 (3.2), ora é concebida a partir de uma perspectiva sociológica,

como no caso de Luhmann (1983, v. I, p.114). (3.3)

A despeito das três vertentes expostas se basearem em premissas distintas para a análise

da positivação dos direitos fundamentais, Perez Luño (1986, p.62) adverte que, no plano

prático, as três se condicionam mutuamente, “sendo todas ellas necesarias para el desarrollo

positivo de los derechos fundamentales”.

1.3 Algumas vertentes téoricas dos direitos fundamentais

Na busca de uma definição de direitos fundamentais, recorre-se primeiramente a Robert

Alexy (2001, p.36), em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, muito embora se advirta que a

obra vai além da propositura de uma definição de direitos fundamentais. Formula, em

23

verdade, uma teoria geral dos referidos direitos, especialmente no que toca à análise da

estrutura da norma de direito fundamental. Assim, ao identificar o que torna um enunciado da

lei fundamental um preceito de direito fundamental, explica que a resposta pode se apoiar em

aspectos materiais, estruturais ou formais. No que concerne às definições materiais e

estruturais, tem-se que direitos fundamentais seriam aqueles que pertencem ao fundamento

mesmo do Estado, sendo, portanto, aqueles reconhecidos como tal na Constituição. Preleciona

o citado constitucionalista que essa definição foi apresentada por Carl Schmitt, para quem o

fundamento do Estado liberal de direito pertence a um grupo de direitos – aqueles direitos

individuais de liberdade. (ALEXY, 2001, p.63)

A definição estrutural/material de direitos fundamentais sofre a severa crítica de

vincular o conceito de direito fundamental a uma determinada concepção de Estado, o que

excluiria normas de direito garantidoras de condições mínimas de existência, mesmo que

fundadas num catálogo de normas fundamentais, as quais não corresponderiam à estrutura de

direito de liberdade individual do Estado Liberal de Direito.

Ensina Robert Alexy (2001, p.65) que “más conveniente que la fundamentación del

concepto de norma de derecho fundamental sobre criterios materiales y/o estructurales es su

vinculación con un criterio formal, que apunte la forma de positivación”. Por tal critério,

todos os enunciados do capítulo da Constituição intitulado “direitos fundamentais” são

disposições de direitos fundamentais, independentemente do conteúdo e da estrutura que seja

atribuída a eles. Todavia, é o próprio Alexy (2001, p.34) quem adverte que este rol de direitos

fundamentais seria demasiadamente restrito, porquanto não se pode olvidar que existem

outros enunciados de direitos fundamentais, dispersos pelo texto constitucional, além da

questão relativa às normas adstritas aos direitos fundamentais. Assim, Alexy (2001, p.36-37)

argumenta que uma mesma norma estatuída diretamente pelo texto constitucional pode

expressar-se por enunciados diferentes. Tal fato se deve em razão da imprecisão dessas

normas, que são abertas tanto semântica, quanto estruturalmente. No que concerne à abertura

semântica em razão da imprecisão da norma constitucional, ensina Alexy (2001, p.37-38) que

o Tribunal Constitucional fixa o seu conteúdo em suas decisões, o que possui evidente caráter

normativo. Bem assim, no que concerne à abertura estrutural de tais normas, verifica-se que

muitas não estabelecem o titular dos direitos fundamentais ou se o Estado deve agir ou abster-

se no implemento do referido direito. Dessa forma, as decisões do Tribunal Constitucional em

casos que tais também expressam, sem dúvidas, normas. A grande questão que se apresenta,

24

na visão de Alexy (2001, p.38), é: as normas criadas pelo Tribunal Constitucional, a partir das

normas de direitos fundamentais expressas diretamente no texto constitucional, podem

também ser consideradas normas de direitos fundamentais? Concluindo, ensina Alexy (2001,

p.285) que as normas adstritas às normas constitucionais encontram uma conexão mais do que

casual com o texto da Constituição e se apresentam necessárias quando aquelas devem ser

aplicadas a casos concretos, pois somente assim se pode saber o que de fato a norma

constitucional está a proibir, ordenar ou permitir, numa relação chamada de relación de

precisión (ALEXY, 2001, p.245), ou seja, tornando preciso o texto impreciso da Constituição.

Ao complementar a relação de precisão, afirma Alexy (2001, p.246) que existe uma

outra entre as normas de direitos fundamentais diretamente previstas na Constituição e

aquelas deduzidas das decisões dos Tribunais Constitucionais, qual seja, a relação de

fundamentação. Segundo essa relação de fundamentação, o Tribunal Constitucional, ao

interpretar as normas previstas diretamente no texto constitucional, realiza-o exatamente

porque existe um artigo expresso que estabelece um rol de direitos fundamentais diretamente

propostos no texto constitucional. Em outras palavras, o rol de direitos fundamentais previstos

na Constituição não é exaustivo, mas é o que fundamenta a existência de normas adstritas às

normas diretamente previstas. E dessa forma conclui Alexy (2001, p.70) que “las normas de

derecho fundamental pueden, por ello, dividirse en dos grupos: en las normas de derecho

fundamental directamente estatuidas por la Constitución y las normas de derecho

fundamental a ellas adscriptas.”

No que diz respeito à estrutura das normas de direito fundamental, ainda na esteira dos

ensinamentos de Robert Alexy (2001, p.274), considera-se de fundamental importância a distinção

entre regras e princípios. Trata-se da base da fundamentação jusfundamental e uma chave para a

solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. Assim, tanto regras quanto

princípios são prescrições de dever ser, ambos podendo ser formulados com a ajuda de expressões

deônticas básicas de mandato, de permissão e de proibição. Porém, a distinção entre regras e

princípios não se dá em termos de grau, mas em qualidade. Como ensina Alexy (2001), os

princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das

possibilidades jurídicas e reais existentes, consistindo em “mandatos de optimización que están

caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida de

cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas” (ALEXY,

2001, p.86). Já as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível.

25

Assim, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não, pois “si una regla es válida,

entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos.” (ALEXY, 2001, p. 87)

Em linhas gerais, do esboço da visão de Alexy (2001, p.85) ora apresentada, exsurge o

caráter argumentativo e normativo de uma teoria material dos direitos fundamentais, o que só

se mostra possível sob os auspícios de uma teoria dos princípios, que engloba não só a

perspectiva deontológica, mas também uma perspectiva axiológica, centrada em valores.

A teoria geral criada por Alexy não se encontra infensa a críticas, como de resto a obra

de todos os autores que pretenderam a criação de uma teoria geral dos direitos fundamentais.

Juan Carlos Gavara de Cara (1994, p.74) argumenta que Alexy (2001) pretende a fixação de

um esquema explicativo aplicável a todos os direitos fundamentais de uma determinada

Constituição ou todos os direitos fundamentais de um determinado tipo, como os direitos de

liberdade, de igualdade e assim por diante. No entanto, afirma Gavara de Cara (1994, p.75)

que uma teoria geral dos direitos fundamentais é uma teoria ideal, que trata de resolver em um

único esquema de explicação, e, portanto, de maneira integrativa, os diversos problemas

relativos aos direitos fundamentais. Gavara de Cara (1994) adverte que tal fato pode levar a

uma vinculação teórica de distintos tipos de direitos fundamentais, o que vai de encontro ao

objetivo de uma teoria geral, uma vez que seu escopo é, contrariamente, estabelecer um

sistema de princípios neutro e que dê conta de todos os elementos da realidade descrita, para

que possa ser considerada como correta. Ademais, acrescenta que as classificações que

distinguem direitos diferentes, tais como os de liberdade, igualdade e prestação, são

construções doutrinárias não deduzidas do sentido dos direitos fundamentais que agrupam,

correndo o risco de tentar explicar, de maneira conjunta, diferentes objetos de direitos

fundamentais. (DE CARA, 1994, p.75)

Assinaladas as advertências de Gavara de Cara (1994) sobre a problemática da teoria

geral dos direitos fundamentais, sobretudo no que concerne à proposta de Alexy (2001),

verificou-se que as observações feitas não invalidam o modelo interpretativo por este

proposto, o que pode ser observado a partir das análises de outros autores de nomeada, a

exemplo de J.J. Gomes Canotilho (1993), no mesmo esforço de construção de uma teoria

geral dos direitos fundamentais.

Para J. J. Gomes Canotilho (1993), uma teoria geral dos direitos fundamentais deve

fundamentar-se em três traços principais: é uma teoria dos direitos consagrados na

26

Constituição; é uma teoria jurídica e deve ser geral, afirmando, já de início, que seus estudos

sobre direitos fundamentais dizem respeito a uma teoria dos direitos fundamentais

positivamente vigentes. Bem assim, afirma que os direitos fundamentais constituem uma

categoria dogmática, podendo ser analisados sob uma perspectiva analítico-dogmática, a qual

se encarrega de formular e analisar conceitos fundamentais; sob uma perspectiva empírico-

dogmática, pois os direitos fundamentais, para ter verdadeira força normativa devem tomar

em conta as suas condições de eficácia e o modo como o legislador, os juízes e a

administração os aplicam nos casos concretos e, por fim, uma perspectiva normativo-

dogmática, a qual impõe a fundamentação racional e jurídico-normativa dos juízos de valor.

(CANOTILHO, 1993, p.496-497)

Ressalta Canotilho (1993, p.497) que o estudo dos direitos fundamentais só se mostra

cabível a partir daqueles direitos jurídico-positivamente constitucionalizados e, citando Cruz

Villalon, conclui que “sem esta positivação jurídico-constitucional, os ‘direitos do homem são

esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou até, por vezes, mera retórica política’, mas não

direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional.”7

Não obstante, a despeito do reconhecimento de que os direitos fundamentais devem ser

estudados a partir daqueles positivados constitucionalmente, Canotilho afirma que tal

positivação não lhes retira a qualidade de “elementos legitimativo-

fundamentantes” (CANOTILHO, 1993, p.498) da ordem jurídico-constitucional positiva.

Tampouco lhes reconhece a condição de realidades jurídicas efetivas por sua simples

positivação, sendo necessário o processo de constitucionalização, assim entendido, como “a

incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se

o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário” (CANOTILHO,

1993, p. 498). Também José Carlos Vieira de Andrade (1987, p.32) ressalta a importância do

estudo dos direitos fundamentais em sua dimensão constitucional positiva, não só pelo fato de

estarem previstos em preceitos da Constituição, mas, sobretudo, porque mesmo que as

formulações sejam idênticas às de direitos naturais,

o sentido dos direitos fundamentais não é o mesmo quando estão integrados numa constituição concreta. As normas que os contém são interpretadas, reguladas e aplicadas num quadro global da Constituição e sofrem, por isso, pelo seu lado e necessariamente, a influência das fórmulas de organização do poder político, dos

7 Ressalta Canotilho (1993, p.497) que o estudo dos direitos fundamentais só se mostra cabível a partir daqueles direitos jurídico-positivamente constitucionalizados e, citando Cruz Villalon, conclui que “sem esta positivação jurídico-constitucional, os ‘direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou até, por vezes, mera retórica política’, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional.”

27

princípios constitucionais gerais e mesmo das posições relativas entre os diversos direitos.

Bem assim, ressalta esse constitucionalista português que os direitos fundamentais

previstos numa Constituição são mais concretos e específicos, pois são mais próximos do real,

por serem de aplicação imediata, o que obriga a formulações mais claras e “de mais perfeita

intencionalidade” (ANDRADE, 1987, p.32), além da possibilidade de seu desdobramento em

novos aspectos ou mesmo em novos direitos, diante da pressão das necessidades práticas de

proteção jurídica dos particulares.

Noutro dizer, Jorge Miranda (1998, p.9) define direitos fundamentais nas dimensões

formal e material, esses entendidos como “os direitos ou as posições jurídicas subjetivas das

pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na constituição,

seja ela formal ou material”. Todavia, adverte para o fato de que tal definição implica

necessariamente dois pressupostos básicos: não há direitos fundamentais sem reconhecimento

de uma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político, e não há

direitos fundamentais em Estados Totalitários. Afirma ainda, o citado autor, que não há

verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o

poder, beneficiando-se de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das

condições a que pertençam; não há direitos fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem

comunidade política integrada. (MIRANDA, 1998, p.8)

Como conclusão acerca de uma teoria geral dos direitos fundamentais, impende

mencionar a lição de Marcelo Campos Galuppo (2003), para quem os direitos fundamentais

representam a constitucionalização daqueles direitos humanos que gozaram de alto grau de

justificação ao longo da história dos discursos morais e que são, por isso, reconhecidos como

condições para a construção e o exercício dos demais direitos. Há, portanto, um conteúdo

mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático e,

apesar de os direitos básicos originalmente consistirem em direitos de defesa do cidadão

contra o Estado ou direitos negativos, eles agora se transformaram nos princípios basilares da

ordem jurídica, transformando assim o conteúdo das liberdades individuais ou subjetivas no

conteúdo de normas fundamentais que penetram e moldam o direito objetivo. Para o referido

autor, existem alguns direitos que revelam o conteúdo básico dos direitos fundamentais, que

são:

a) Direitos à maior medida possível de iguais liberdades individuais de ação;

28

b) Direitos fundamentais que resultam da elaboração politicamente autônoma do

status de membro de uma associação voluntária sob o direito;

c) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de adjudicação

de ações protetivas e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica

individual;

d) Direitos fundamentais a iguais oportunidades de participação em processos de

formação da opinião e da vontade pública nos quais os cidadãos exercitam sua

autonomia política e através dos quais eles positivam um direito legítimo;

e) Direitos fundamentais à provisão de condições de vida que sejam socialmente,

tecnologicamente e ecologicamente assegurados. (GALUPPO, 2003, p.235)

Uma definição dos direitos fundamentais não pode se basear em um critério absoluto e

único. Por serem construídos historicamente, não são redutíveis a uma única realidade.

Segundo ensina Marcelo Galuppo (2003), a definição de direitos fundamentais deve

considerar que o direito moderno só existe na tensão entre o seu caráter histórico e

contingente que o liga indissoluvelmente ao fato de ser um sistema de ação que recorre

inclusive à força para sua concretização (faticidade) e sua dimensão de justificação racional

que o liga indissoluvelmente à exigência de fundamentação (validade). Afirma que “estes são

os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado

momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja,

democrático” (GALUPPO, 2003, p.236). Por fim, esclarece que a menção ao fato de que os

cidadãos precisam reconhecer uns aos outros e não que o Estado precisa lhes atribuir, diz

respeito ao núcleo do Estado Democrático de Direito, que, ao contrário do Estado Liberal ou

do Estado Social, “não possui uma regra pronta e acabada para a legitimidade de suas normas,

mas reconhece que a democracia é não um estado, mas um processo que só ocorre pela

interpenetração entre autonomia privada e autonomia pública que se manifesta na sociedade

civil, guardiã de sua legitimidade.” (GALUPPO, 2003, p.237)

1.4 Teorias dos direitos fundamentais

No estudo dos direitos fundamentais, verifica-se que seu sentido foi se tornando cada

vez mais complexo, a partir da reunião de realidades diferentes, tais como a liberdade pessoal,

o direito a voto e o direito à segurança pessoal. Isso porque os direitos fundamentais

29

pressupõem concepções de Estado e de constituição que influenciarão a atividade

interpretativa das normas constitucionais. Assim, preleciona Gomes Canotilho (1993, p.505)

que a interpretação da constituição “pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais, no

sentido de uma concepção sistematicamente orientada para o caráter geral, finalidade e

alcance intrínseco dos direitos fundamentais.”

Na lição de Vieira de Andrade (1987, p.54), “nesse domínio, nota-se que pouco ou

quase nada desaparece: num processo acumulativo, cada mudança é um acrescento e o

passado permanece, ainda que também modificado.”

Dessa forma, existem várias teorias que buscam uma unidade de sentido ao conjunto de

direitos fundamentais, expondo, “em medida mais ou menos exacta, a diversidade de aspectos

existente, com suas tensões, permitindo, a partir daí colocar toda uma série de questões de

sentido importantes para a interpretação em geral e para a solução de problemas concretos de

regime.” (ANDRADE, 1987, p.55)

A doutrina dos direitos fundamentais contemporânea anota a existência de diversas

teorias de direitos fundamentais. O professor Bockenford (1993, p.47-66) apresenta o resumo

mais conhecido e importante de tais teorias, no qual abordam-se cinco delas. Em tais teorias,

anota Alexy (2001, p.36-37), estão expressas as concepções básicas do tipo de direito

fundamental a que se reportam, mas elas são genéricas quanto ao fim e à estrutura dos direitos

fundamentais. Assim, não se pode afirmar a superioridade, nem a aglutinação de qualquer das

teorias, mas tão-somente a importância de seu conhecimento e estudo para a própria teoria da

Constituição8 (4.1). É mister o conhecimento das mesmas para entender o objeto do presente

estudo sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas e o princípio da

boa-fé objetiva.

Segue-se à análise de algumas dessas teorias acerca dos direitos fundamentais, a

começar pela teoria liberal.

1.4.1 Teoria liberal

No constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de

liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente em direitos de

8 É importante destacar também que a classificação apresentada pelo professor Canotilho (1993, p.516 e ss.) apresenta a mesma tipologia.

30

autonomia e direitos de defesa (CANOTILHO, 1993, p.506). Trata-se de uma teoria

subjetivista, pois “o indivíduo (o sujeito) é a medida jurídica real dos direitos” (ANDRADE,

1987, p.56), limitando-se a competência do Estado à garantia e à regulação da liberdade em

abstrato e relegando aos titulares dos direitos a competência para estabelecer o momento e o

modo de seu exercício. A liberdade, para tal teoria, não aparece qualificada por nenhum

objetivo ou fim, pois a determinação de seu uso compete ao seu titular, dentro dos limites

estabelecidos pela norma geral.

Gavara de Cara (1994, p.76), reportando-se à análise de Carl Schmitt, ao denominado

princípio de distribuição do Estado burguês, assim se manifestou:

Dicho principio plantea que la esfera de libertad del individuo es anterior al Estado, o que permite deducir que la libertad del individuo es ilimitada en principio, mientras que la facultad del Estado de invadirla es limitada en principio. Los derechos fundamentales serían la concreción del principio de distribución en el sentido de plasmar las competencias que los individuos poseen. Esta esfera de los individuos no se define como presocial (anterior a la formación de la sociedad), sino como preestatal (anterior al momento de creación del Estado.)

Ainda na concepção liberal, qualquer intervenção legislativa, salvo aquelas

imprescindíveis em caso de colisão de direitos, com vistas a resguardar a liberdade dos

envolvidos, seria considerada restrição desses direitos, não podendo o Estado reclamar para si

a intervenção no cumprimento das tarefas constitucionais relativas aos direitos fundamentais.

É, como ensina Vieira de Andrade (1987, p.57), “corolário da idéia de laissez faire, da

omissão como regra do comportamento estatal.”

A concepção liberal de direitos fundamentais recebeu algumas críticas, sendo a primeira

delas o fato de que concebe a liberdade em abstrato, pressupondo uma autonomia privada

absoluta e que muitas vezes não leva em conta as reais condições sociais de exercício da

liberdade, muitas vezes essenciais para o dito exercício. Ademais, tal concepção não considera

a própria restrição da liberdade necessária ao convívio social, sendo a liberdade, pois, limitada

já em princípios.

No que concerne à atuação do Estado, consoante referida teoria o Estado não tem

nenhuma obrigação de garantir a liberdade jurídica, uma vez que a sua realização material fica

a cargo exclusivo do indivíduo e da sociedade. Seria “el individuo es considerado de un modo

autárquico y autosuficiente.” (DE CARA, 1994, p.77)

Por fim, como assinala Gomes Canotilho (1993, p.507), a efetivação real da liberdade

constitucionalmente garantida não é hoje apenas tarefa de iniciativa individual, mesmo em se

31

tratando das liberdades clássicas,

pois não é possível a garantia da liberdade sem a intervenção dos poderes públicos [...] o homem situado, não abdica de prestações existenciais estritamente necessárias à realização de sua própria liberdade, revelando, nesse aspecto, a teoria liberal uma completa cegueira em relação à indispensabilidade dos pressupostos sociais e econômicos da realização da liberdade.

Os defensores atuais da teoria liberal não pretendem a abstenção do Estado na garantia

dos direitos fundamentais, pois, na visão de Vieira de Andrade (1993), está demonstrada a

necessidade de intervenção estatal para a realização da liberdade, por meio da implementação

de condições jurídicas, políticas, sociais de que depende o gozo de tais direitos por parte dos

cidadãos. Trata-se não obstante de uma reação ao processo de objetivação e socialização dos

direitos fundamentais, que “manifesta acentuação do caráter defensivo e subjetivo dos

direitos, reconhecendo aos dados sociais apenas o papel de condição de exercício, para que

não se subverta o entendimento tradicional das liberdades como direitos subjectivos contra o

poderes públicos.” (ANDRADE, 1987, p.58).

1.4.2 Teoria institucional

A teoria institucional dos direitos fundamentais, cujo expoente máximo é Peter Häberle,

na dicção de J. J Gomes Canotilho (1993, p.1304), parte da afirmação de que os direitos

fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, ou seja, não possuem uma dimensão

exclusivamente subjetiva, mas possuem um caráter duplo: individual e institucional. Assim,

não são apenas direitos subjetivos, mas princípios normativos de tipo institucional, que

regulamentam as relações sociais e os fatos materiais em que ditas relações são válidas. A

medida dos direitos não é mais o indivíduo, como na teoria liberal, mas a instituição.

As considerações acerca da dimensão institucional dos direitos fundamentais definem a

própria liberdade como uma instituição, tendo os titulares de direitos como partícipes da

instituição, o que orienta sua ação com vistas à realização de certos fins. Trata-se, pois de uma

“liberdade consignada” (ANDRADE, 1987, p.59). Nos escólios de Gavara de Cara (1994, p.

77):

estas consideraciones sobre los derechos fundamentales no son válidas únicamente para las garantías institucionales o las garantías de instituto, sino para todos los derechos fundamentales en general y, en particular, para los derechos de libertad. Esto es posible si se considera que la libertad jurídica es un instituto, un hecho objetivo que se desarrolla y se realiza mediante una configuración jurídica. La libertad individual necesita relaciones sociales garantizadas institucionalmente, complexos de normas que determinen su orientación, su garantía, su contenido y su finalidad.

32

No mesmo sentido, explica Böckenförde (1993, p.53) que a concepção institucional dos

direitos fundamentais parte da noção da liberdade como instituto “que se opone en forma

objetivada, según la peculiaridad del correspondiente ámbito vital, como algo dado y

configurado.” Ainda no dizer do mesmo autor, dentre as conseqüências jurídicas dessa teoria

para a interpretação dos direitos fundamentais, pode-se destacar, principalmente, que a mesma

abre um espaço para uma configuração e normatização legais dos direitos fundamentais

consideravelmente maior do que na teoria liberal, tendo em vista que a lei não se apresenta

como uma intervenção e limitação na esfera de liberdade do indivíduo, mas como forma de

favorecimento e realização dessa liberdade, escapando, assim, da rigorosa limitação

legislativa da competência de regulação resultante do princípio da distribuição do Estado de

Direito. Bem assim, a liberdade dos direitos fundamentais não é mais tida como uma

liberdade em si, como na teoria liberal, mas sim orientada a determinados interesses,

“concretamente a la realización del sentido objetivo-institucional de la garantía de la

libertad.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.54)

Gomes Canotilho (1993) ressalta, de outra sorte, que muito embora a teoria institucional

dos direitos fundamentais tenha o mérito de ter salientado a dimensão objetiva dos direitos

fundamentais, é passível de algumas críticas substanciais, pois a faceta institucional dos

direitos fundamentais é apenas uma de suas dimensões, mas não a única, aparecendo ao lado

das dimensões individual e social dos mesmos. Alerta ainda que o enquadramento dos direitos

fundamentais no “mundo institucional” pode acarretar a “paragem” dos próprios direitos, “na

medida em que as instituições sejam consideradas mais como subsistemas de estabilização do

que como formas de vida e relações sociais e jurídicas, necessariamente mutáveis no mundo

evolutivo do ser social” (CANOTILHO, 1993, p.508). Por último, aduz que o critério de

ponderação de bens utilizado pela teoria institucional conduz a uma perigosa relativização dos

direitos fundamentais, além de não oferecer clareza e segurança no caso de conflito de bens

constitucionais.

Ainda como restrição à aplicação da teoria institucional, alerta Vieira de Andrade (1987,

p.60) que a mesma pode contribuir para fortalecer objetivamente certos direitos fundamentais,

“mas corre o perigo de transformar os direitos em meros reflexos jurídicos, dependentes afinal

dos deveres institucionais e, portanto, vulneráveis à estatização.”

1.4.3 Teoria axiológica ou teoria dos valores dos direitos fundamentais

33

Para esta teoria, tanto quanto em relação à teoria institucional, os direitos fundamentais

adquirem prioritariamente o caráter de normas objetivas, pretendendo regular um sistema de

valores, de bens, um sistema cultural, o qual se constituem em fatores de integração. A

legitimação do ordenamento positivo estatal e jurídico se dá na medida em que representa

esse sistema de valores. Assim, os direitos fundamentais são valores jurídico-

constitucionalmente protegidos, resultando daí, conforme preleciona Vieira de Andrade (1987,

p.61), que não se está mais diante de posições jurídicas subjetivas, “mas perante normas,

princípios objectivos que reconhecem ou atribuem um certo estatuto aos indivíduos”

Assevera, ainda, o referido constitucionalista, que a liberdade individual corresponde à

realização do valor respectivo e só se justifica no quadro geral de valores comunitariamente

estabelecido.

Segundo ensina Böckenförde (1993, p.57), a teoria axiológica dos direitos fundamentais

tem seu ponto de partida na teoria da integração de Rudolf Smend, caracterizando seu

conteúdo do seguinte modo:

Así como el Estado mismo en su ser social se presenta en permanente estado de integración y, a decir la verdad, como proceso de integración (en) de una comunidad de valores, de culturas y de vivencias, así también los derechos fundamentales se presentan como factores constitutivos determinantes de este proceso, son elementos y medio de la creación del Estado. Fijan valores fundamentales de la comunidad, norman un sistema de valores o de bienes, un sistema cultural, a través del cual los individuos alcanzan un status material, se integran (deben integrarse) objetivamente como un pueblo y en un pueblo de idiosincrasia nacional.

Segundo esta teoria, a liberdade, bem como os direitos em geral, tornam-se relativos,

podendo ser, inclusive, objeto de controle jurídico. A liberdade passa a ser liberdade para a

realização dos valores expressos nos direitos fundamentais e no marco de uma ordem de

valores instaurado pelos direitos fundamentais em seu conjunto. Segundo Rafael Naranjo de

la Cruz (2000, p.46), “se relativiza la libertad, en la medida en que se justifica una

diferenciación de su uso, en función de que contribuya o ponga en peligro al valor.”

Abre-se espaço para que as normas jurídicas venham a interpretar e concretizar o

sentido dos preceitos de direitos fundamentais. Da mesma forma, os direitos fundamentais

passam a não ser mais direitos de defesa e de oposição contra o Estado, mas assumem o

caráter de normas comunitárias assumidas pelos cidadãos.

Vieira de Andrade (1987), analisando a posição de Smend, afirma que o Estado

constrói-se por meio de um processo de integração (cultural) em que, ao lado da integração

34

pessoal e funcional, cabe um papel importante à integração material ou real. É nesse contexto

que o citado autor compreende os direitos fundamentais como um sistema cultural de bens e

valores que cria para os indivíduos um estatuto integrador, “isto é, capaz de os inserir na

continuidade espiritual que constitui o Estado.” (ANDRADE, 1987, p.62)

As conseqüências jurídicas da aplicação da teoria axiológica para a interpretação dos

direitos fundamentais são comparáveis àquelas da teoria institucional, no que tange à

objetivação e orientação material da liberdade de direito fundamental. Não obstante,

consoante lembra Böckenförde (1993), se os direitos fundamentais se apresentam como

decisões axiológicas, sua interpretação deve ser, em primeiro plano, uma questão de

averiguação do sentido de valor neles expressos e da inserção desse valor no sistema de

valores que lhe serve de base, “lo que solo es averiguable a través de la correlación con la

consecuencia valorativa espiritual-cultural del momento.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62).

Em igual medida, a liberdade se relativiza de modo especial pela referência axiológica de

cada direito fundamental, pois está determinada à realização e cumprimento do valor expresso

pelo direito fundamental, ensejando a conclusão de que só se protege a “liberdade valiosa”,

sendo certo que o conceito de valor ou do que é valioso se dá em virtude da competência

definidora estatal. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62)

Rafael Naranjo (2000, p.46) consigna que se critica a teoria ora apresentada, em razão

de possibilitar a exposição do direito a correntes valorativas de cada época, o que faria com

que os direitos estivessem sujeitos a um contínuo processo de configuração social, com

destaque para o papel do Estado na definição do que é valioso.

Por fim, merece registro a observação de Gavara de Cara (1994) de que a lógica da

concepção valorativa sobre os direitos fundamentais não se esgota na determinação de uma

escala de valores superiores sobre inferiores, alertando para a possibilidade da ordem de

valores, utilizada para justificar decisões sobre ponderações em matéria de direitos

fundamentais, poder converter-se, na prática, em fórmula de encobrimento de um

decisionismo judicial ou interpretativo, o que faz nestes termos:

La lógica de la concepción valorativa sobre los derechos fundamentales no se agota en la determinación de una escala de valores superiores sobre inferiores. El orden de valores se utiliza para justificar decisiones sobre ponderaciones en materia de derechos fundamentales, lo que en la práctica puede convertir la utilización del orden de valores en una formula de encubrimiento del decisionismo judicial o interpretativo. (DE CARA, 1994, p. 78)

A teoria axiológica dos direitos fundamentais, baseada na teoria da Constituição como

35

integração de Smend, abre caminho para a idéia de dimensão objetiva dos direitos

fundamentais e sua função irradiadora no sistema jurídico, o que será analisado mais adiante

no presente estudo: a idéia de que os direitos fundamentais proclamam um sistema de valores

sobre o qual repousa a unidade.

1.4.4 Teoria democrática funcional dos direitos fundamentais

Para a teoria democrático-funcional dos direitos fundamentais, a garantia do âmbito de

liberdade que esses podem significar verifica-se em virtude da importância que possuem no

processo democrático de construção da vontade política, pois o ponto de partida de tal teoria é

a concepção dos direitos fundamentais com base na sua função pública e política.

Conforme explica Böckenförde (1993), os direitos com referências democráticas, tais

como os de liberdade de opinião, liberdade de imprensa e liberdade de associação, ganham

papel preponderante em relação aos demais, pois os direitos fundamentais assumem seu

sentido e principal significado como fatores constitutivos de um livre processo de produção

democrática do Estado e um processo de formação da vontade política. Na sua percepção

los derechos fundamentales alcanzan su sentido y su principal significado como factores constitutivos de un libre proceso de producción democrática (esto es, que transcurre de abajo a arriba) del Estado – en ello radica la coincidencia con la doctrina de la integración – y de un proceso democrático de formación de la voluntad política. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 60)

Vieira de Andrade (1987, p.64) destaca que a referida teoria tem simultaneamente uma

perspectiva “situacionista” e funcionalizante, na medida em que parte de uma perspectiva

jurídico-política e se situa numa posição constituinte, buscando a matriz constitucional de

reconhecimento dos direitos fundamentais. Sob tal ponto de vista, os direitos fundamentais só

são inteligíveis a partir da relação com a função pública e democrática que desempenham.

Entre as conseqüências da aplicação da mencionada teoria para a interpretação dos

direitos fundamentais, pode ser destacado o fato de a liberdade deixar de ser encarada como

uma faculdade do particular, para se converter em garantia do processo democrático, como

resumiu Böckenförde (1993, p.61), ao afirmar que “los derechos fundamentales no se le

reconocen al ciudadano para que disponga libremente de ellos, sino en su calidad de

miembro de la comunidad y, con ello, también en interés público.” Releva também destacar

que o caráter voluntário da liberdade de direito fundamental se torna vinculado, considerando-

se que, se relevância jurídica da liberdade acontece em virtude da realização de uma função

36

pública politicamente necessária, então não se pode admitir que seu exercício esteja cometido

à análise subjetiva do titular da liberdade. Esta se converte “en un servicio publico (Amt),

también en un deber.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62)

No mesmo sentido, Vieira de Andrade (1987) assevera que os direitos, segundo a teoria

ora apresentada, não são medidos pelos seus portadores, assim como não são livremente

disponíveis: são deveres ou competências vinculadas. Deduz-se, pois, que a teoria exprime

uma preocupação da sociedade em garantir uma ordem político-estatal estável e efetiva,

mesmo com prejuízo da livre decisão individual, convertendo-se a liberdade em um meio e

não em um fim, “como se o processo democrático fosse o verdadeiro sujeito dos direitos

fundamentais.” (ANDRADE, 1987, p.65)

Rafael Naranjo de la Cruz (2000) critica a teoria democrático-funcional dos direitos

fundamentais por entender que não se pode pôr em dúvida a existência de determinados

direitos fundamentais, nos quais se manifesta de forma particularmente evidente seu caráter

objetivo, como pressuposto da construção da vontade democrática do povo, como no caso das

liberdades de opinião e informação ou de reunião. Não obstante, isso não permite condicionar

sua própria existência como direito a esse efeito, pois prescinde do componente de liberdade

individual que reside em cada um dos direitos fundamentais, concluindo que:

la puesta de los derechos fundamentales al servicio de una función no es compatible con su consideración como fines en si mismos en nuestro Derecho constitucional. La medida de su valor se encuentra, así, en su propio contenido, no por el contrario, en principios ajenos a ellos. (LA CRUZ, 2000, p.48)

1.4.5 Teoria do Estado Social

Na lição de Gomes Canotilho (1993), a teoria social parte da tripla dimensão que deve

ser assinalada aos direitos fundamentais: a dimensão individual (pessoal), a dimensão

institucional e a dimensão processual. A dimensão individual caracteriza-se pela permanência

da concepção subjetiva de liberdade, mas não nos termos preconizados pela teoria liberal, mas

com uma dimensão social, tendo em vista que não se exige mais a abstinência estatal em face

dos direitos, mas, ao contrário, exige-se a intervenção pública estritamente necessária à

realização desses direitos: “a intervenção estadual é concebida não como um limite, mas

como um fim do Estado.” (CANOTILHO, 1993, p.509)

Com efeito, a dimensão processual da teoria impõe ao Estado não só a realização dos

direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao

37

seu livre desenvolvimento.

Esta teoria, conforme assevera Vieira de Andrade (1987, p.67), distingue-se de todas as

outras anteriores, pois é compatível, pelo menos em parte, com elementos liberais,

institucionais ou de valor. Define direitos sociais como direitos de um novo tipo que, por

pressuporem a administração de recursos escassos, “só podem ter uma medida legislativa, não

podendo a constituição, nem determinar-lhes o conteúdo, nem delegar essa determinação à

autonomia privada.”

A teoria social dos direitos fundamentais pretende superar a dicotomia existente entre

liberdade jurídica e liberdade real, pois considerando que a garantia jurídica da liberdade

delimitativa, concebida sob a égide da teoria liberal, mostra-se insuficiente para assegurar a

liberdade dos direitos fundamentais como liberdade também real, a teoria reconhece que os

direitos fundamentais têm um caráter não só delimitativo-negativo, mas que ao mesmo tempo

facilitam pretensões de prestação social perante o Estado.

Böckenförde (1993, p.64) salienta o duplo aspecto que exsurge da concepção acima

exposta:

De un lado, la obligación del Estado derivada de los derechos fundamentales de procurar los presupuestos sociales necesarios para la realización de la libertad de los derechos fundamentales, una especie de posición de garante para la implantación de la libertad e a realidad constitucional, y, del otro, el procuramiento de pretensiones de derecho fundamental a tales prestaciones estatales, o, en su caso, a la participación en instituciones estatales o procuradas por el Estado que sirven a la realización de la libertad de los derechos fundamentales.

Depreende-se da exposição da teoria que a mesma não se mostra incompatível com a

dimensão subjetiva dos direitos fundamentais e tampouco pretende destruí-la, mas acresce

que o Estado deve intervir para que as liberdades individuais se realizem na prática. Apregoa

que a liberdade não pode ficar reduzida a sua formulação nominal no texto constitucional,

tudo reconhecendo a dependência, a interdependência e as diferenças de condição dos

indivíduos ou grupos.

A teoria social trouxe considerável avanço na compreensão multidimensional dos

direitos fundamentais, o que não lhe afasta as críticas, pois, como preleciona Gomes

Canotilho (1993, p.509), a teoria não esclarece quais as garantias efetivamente concedidas aos

cidadãos quanto à realização dos direitos sociais, bem como não esclarece se haverá

efetivamente direitos de quota-parte dos cidadãos na realização dos direitos fundamentais ou

se se trata tão-somente da simples questão de organização e administração.

38

Na lição de Vieira de Andrade (1987, p. 68), a teoria, ao tempo em que contribui para o

alargamento da visão global dos direitos fundamentais, levanta a grande questão relativa à

harmonia do conjunto dos referidos direitos, “mostrando como, ao lado dos direitos

tradicionais, outros aparecem, a exigirem uma reconsideração dogmática equilibrada que evite

os exageros de um liberalismo reducionista ou de uma socialização total.”

Da análise das teorias acima apresentadas, verifica-se que todas encontraram fervorosos

defensores e críticos severos. O que importa no âmbito do presente estudo é demonstrar que

não existe uma única forma de apresentar uma abordagem dogmática dos direitos

fundamentais, pois estes apresentam concepções que variam em função das diversas formas

de organização social, sobretudo no que tange à contenção de abusos nas múltiplas relações

de poder na sociedade. Não obstante, no presente estudo assumem especial relevo as teorias

que ressaltam o aspecto objetivo dos direitos fundamentais. Isso porque, foi a partir da

aceitação dessa dimensão objetiva e da força irradiante dos valores constitucionais por todo o

ordenamento jurídico, inclusive na esfera privada, que se apresentou a discussão sobre uma

possível vinculação dos particulares aos direitos constitucionalmente assegurados, e, no caso

do princípio da boa-fé objetiva, como essa eficácia irradiante adentra a interpretação das

cláusulas gerais do direito privado.

1.5 Funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo

Na afirmação de Perez Luño (1988), o constitucionalismo atual não seria o que é sem os

direitos fundamentais, pois as normas que estabelecem os direitos fundamentais, juntamente

com aquelas que consagram a forma de Estado e o sistema econômico, são decisivas para

definir o modelo constitucional de uma sociedade. Há um estreito nexo de interdependência

“genético y funcional, entre el Estado de Derecho y los derechos fundamentales, ya que el

Estado de Derecho exige e implica para serlo garantizar los derechos fundamentales,

mientras que éstos exigen e implican para su realización al Estado de Derecho.” (LUÑO,

1988, p.19)

Nessa perspectiva, reconhecem-se os direitos fundamentais como possuidor de uma

dupla dimensão: uma objetiva e outra subjetiva. Em sua significação objetiva9 os direitos

fundamentais representam as bases do consenso sobre os valores de uma sociedade

9 A questão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e suas implicações, sobretudo no que concerne ao tema do presente estudo, qual seja, a sua aplicação nas relações privadas e o princípio da boa fé objetiva, será analisada com mais profundidade no capítulo III. (DIMOULIS; MARTINS, 2007).

39

democrática, ou seja, sua função é a de sistematizar o conteúdo axiológico objetivo do

ordenamento democrático escolhido pelos cidadãos, comportando a garantia essencial de um

processo político livre e aberto, como elemento informador do funcionamento de qualquer

sociedade pluralista.

Ainda na visão de Perez Luño (1988), na medida em que o Estado Liberal de Direito

evoluiu para formas de Estado Social, os direitos fundamentais dinamizaram sua significação,

agregando à sua função de garantidor das liberdades existentes, “la descripción anticipadora

del horizonte emancipatorio a alcanzar” (LUÑO, 1988, p.21), pois, com o tempo, os direitos

fundamentais deixaram de ser meros limites ao exercício do poder político, para definir um

conjunto de valores ou fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos.

Outrossim, como conjunto de valores básicos de uma sociedade, os direitos

fundamentais, em sua dimensão objetiva, passaram a ter uma função de conformadores do

ordenamento infraconstitucional, sendo ponto de partida para a interpretação e aplicação de

dito ordenamento.

Já em sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais têm a função de tutelar a

liberdade, a autonomia e a segurança dos cidadãos, não só em suas relações com o Estado,

mas em relação aos demais membros da sociedade. Não se trata, pois, da dimensão subjetiva

classicamente estruturada em bases liberais, mas de uma dimensão subjetiva repensada a

partir dos influxos axiológicos constitucionais, superando-se a concepção puramente formal

de igualdade entre os diversos membros da sociedade. Isto porque, com a passagem do Estado

liberal para o Estado social de Direito, supõe-se a extensão da incidência dos direitos

fundamentais a todos os setores do ordenamento jurídico, incluindo não só as relações

públicas, mas também as relações entre os particulares, tema objeto do presente estudo.

Além das funções descritas pelas dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais,

vale registrar o esforço de sistematização que se tornou clássico, desenvolvido por Jellinek10[6], e

que se tornou ponto de partida para outros estudos doutrinários, conhecido como teoria dos quatro

status. Tal teoria tomou por base as posições que o indivíduo pode assumir perante o Estado, quais

sejam: status subjectiones ou passivo; status negativo; status civitatis ou positivo e status ativo.

Em apertada síntese, o status passivo diz respeito à posição do cidadão frente ao Estado,

na condição de submissão aos deveres impostos pelo mesmo. O status negativo é consectário

10 Sobre o tema, ver Luño (1988, p.24-25).

40

da personalidade de que são detentores os homens, pois enseja uma parcela de liberdade em

relação à interferência dos poderes públicos. O status positivo diz respeito à possibilidade de o

cidadão exigir do Estado algumas prestações em seu favor e, por fim, o status ativo é

concernente aos direitos políticos exercidos pelos cidadãos, como forma de possibilitar a

interferência direta destes sobre a formação da vontade estatal.

Perez Luño (1998) adverte que tais status foram concebidos prioritariamente como

instrumentos de defesa dos interesses individuais, mas, na medida em que se foi adquirindo

consciência de que o desfrute de direitos e liberdades por todos os membros da sociedade

exigia garantir cotas de bem-estar econômico que permitissem a participação ativa na vida

comunitária, surgiu a necessidade de agregar-se um novo status aos demais previstos por

Jellinek, a saber, o status positivus socialis, na forma a seguir transcrita:

Este nuevo status, que comprende el reconocimiento de los denominados ‘derechos económicos, sociales y culturales, no tiende a absorber o anular la libertad individual, sino a garantizar el pleno desarrollo de la subjetividad humana, que exige conjugar, a un tiempo, sus dimensiones personal y colectiva. Por ello, estos derechos se integran cabalmente en la categoría ovni comprensiva de los derechos fundamentales, a cuya conformación han contribuido decisivamente. (LUÑO, 1988, p. 25).

Ante as teorias expostas, pode-se assim considerar que a teoria do efeito horizontal,

surgido na Alemanha, numa reflexão política, tendo por ênfase a proteção dos interesses de

classes e grupos sociais mais fracos diante do poder de particulares que, diante da ficção

jurídica da igualdade de todos, exerciam um poder social. Entretanto, diante do caráter direto

da aplicação da norma constitucional, as relações entre particulares ficam submetidas aos

direitos fundamentais mediante atuação do Estado-juiz. O particular está diretamente ligado

ao direito infraconstitucional, sobretudo ao direito privado e penal, do qual é o destinatário

normativo por excelência. Assim, no decorrer deste estudo, vai-se verificar que a teoria do

efeito horizontal é meramente indireto, necessitando dos medias, isto é, da intermediação das

cláusulas gerais do direito infraconstitucional, como a da boa-fé objetiva, sobre a qual incide

o “efeito de irradiação” e, evidentemente, da decisão do juiz que interpreta e aplica tal

cláusula. (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p.113-114)

41

2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O estudo histórico dos direitos fundamentais assume grande importância não só como

mecanismo hermenêutico, mas considerando que sua análise remonta ao surgimento do

moderno Estado Constitucional, justamente no seio do qual se asseguram e se reconhecem a

dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais do homem. Assim, afirma Ingo Sarlet

(2001, p.38) que a história dos direitos fundamentais pode ser considerada, de certa forma,

também a história da limitação do poder.

Nesse diapasão, cumpre primeiramente fazer uma pequena análise do estudo da história

das instituições e sua importância para a compreensão do fenômeno que se dispõe a estudar,

qual seja, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e sua correlação com o

princípio da boa-fé objetiva.

Isso porque a história pode se constituir em fértil campo de reflexão para o jurista, pois,

na feliz advertência de Rodrigo Pelais Banhoz e Luiz Edson Fachin (2002, p.72) “desconhecer

propositadamente o passado é, de alguma forma, negar o que o presente pode ter de

contraponto” advertência lançada a propósito de analisar as possibilidades, entre outros

fatores, de aprofundamento dos estudos jurídicos com a utilização da história e em crítica à

acepção jurídica conceitualista e avessa à experiência que dominou os estudos jurídicos, sob a

influência, sobretudo, do positivismo jurídico.

O estudo dos direitos fundamentais, independentemente do prisma de sua abordagem,

não pode prescindir do estudo da história. Gisele Cittadino (2001, p.102) explica que os

direitos fundamentais positivados recebem uma validação da comunidade, enquanto fazem

parte da consciência ético-jurídica de uma coletividade histórica, formada por homens

concretos. Nesse sentido, os estudos do direito, da hermenêutica e da história apresentam-se

absolutamente indissociáveis. 11

Noutra toada, Hespanha (1997) adverte para o fato de que o estudo da História do

Direito constitui-se importante fonte de estudo crítico das disciplinas dogmáticas jurídicas,

tendo por missão questionar o pressuposto básico de tais disciplinas, qual seja, o de que o

direito dos dias atuais é sempre “o racional, o necessário, o definitivo”. E afirma que essa

missão acometida ao estudo histórico do direito é levada a cabo, sublinhando que

o direito existe sempre em sociedade e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, econômicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). São, nesse sentido, sempre locais. (HESPANHA, 1997, p.15)

Assim, para a compreensão do conjunto dos direitos fundamentais que se extrai da

Constituição brasileira, passa-se a analisar os contributos dos diversos estágios evolutivos do

Estado moderno, quais sejam, o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de

Direito.

2.2 Surgimento e consolidação do estado nacional: o modelo liberal

Na fase anterior à instauração do poder político da burguesia ascendente, vigia na

Europa o Direito Canônico, que regulava a conduta dos membros da Igreja, fixando, a partir

de uma rigorosa censura, suas relações hierárquicas e seus tribunais. Na visão de Rogério

Gesta Leal (1997, p.46), essa formatação do Direito Canônico explica em grande medida a

origem formal da concepção do Direito e das leis, até hoje dominante no Ocidente. Em que

pese o predomínio da Igreja nas relações de poder, sobretudo ligado à autoridade espiritual do

Papa, nos diversos reinos europeus e na vida comunitária, impõe-se uma prática jurídica e

administrava que afirma a autoridade de um poder real, que é exercido não em razão da

divindade, mas em razão de princípios profanos. Isso acontece na medida em que o poder

deixa de ser exercido sobre um território ocupado por pessoas protegidas e passa a existir

sobre um território cujos habitantes possuem cada vez mais direitos e deveres definidos, os

quais não podem ser infringidos sequer pelo monarca que governa de maneira absoluta.

Assim, a Europa desse período vai assistir à formação dos Estados-nação monárquicos, cujo

11 A mencionada autora afirma que “os direitos fundamentais positivados constitucionalmente recebem uma validação comunitária, na medida em que fazem parte da consciência ético-jurídica de uma determinada comunidade histórica. A dignidade humana, assegurada pelos direitos fundamentais vistos como princípios, não significa um valor abstrato, mas autonomia ética de homens concretos. Ao adotar tais compromissos, o constitucionalismo comunitário consegue estabelecer não apenas um vínculo entre direitos fundamentais e democracia participativa, mas, ao mesmo tempo, revela como o direito, hermenêutica e história são temas absolutamente indissociáveis.’’ (CITTADINO, 2001, p.102).

43

apogeu se deu com Luís XIV.

Na dicção de Rogério Gesta Leal (1997, p.48), esse é o período do Renascimento, que

pretende a ruptura com o dogmatismo em favor de uma crítica científica, substituindo a fé

pela razão, e torna o homem o centro das preocupações existenciais. Nesse período “a figura

do Estado confunde-se com a pessoa do Rei, e sua função é muito mais política e de

manipulação dos interesses do soberano do que em relação a qualquer outra situação.”

De grande importância no contexto de nascimento dos Estados modernos, os

movimentos da revolução comercial e o mercantilismo, justamente por fazer emergir um novo

setor na economia, qual seja, a burguesia, que vai revolucionar as relações de poder na idade

moderna. Na verdade, o governo monárquico controlava todos os ramos da atividade

econômica, direta ou indiretamente. Essa postura, em linhas gerais, desagradava à burguesia,

que, de início, pretendia ver garantidas apenas suas liberdades comerciais, de modo a não ter

que repartir lucros ou vencimentos com o setor público.

Esse o contexto em que surge o Renascimento, o qual se caracterizou como um

movimento cultural cujos objetivos principais eram o rompimento com os valores e tradições

de um passado, juntamente com a criação de uma nova postura que identificasse as propostas

da burguesia emergente. Da perspectiva do poder político, desfaz-se a idéia de poder

medieval, fundado sobre a dupla autoridade do Papa, em questões espirituais, e do Imperador,

em questões temporais, superando-se a escolástica, doutrina oficial da Igreja católica, a partir

da libertação de valores como a admiração, a adoração, a obediência, o respeito e o desapego,

para a assunção de novos valores, como individualidade, liberdade, criatividade, participação

e enriquecimento. É a razão, pois, que assume a tarefa de fundamentar os novos valores,

assim como o poder real torna-se ilimitado e absoluto.

No que concerne ao domínio jurídico, observa-se que a unificação do direito é um dos

objetivos almejados pelos reis absolutistas, como forma de eliminar particularismos regionais

e locais e destruir os privilégios de certos grupos sociais. Os costumes são cada vez mais

substituídos por leis, tanto quanto o processo oral é substituído pelo processo escrito, com o

intuito de dar maior segurança jurídica. Não obstante, a despeito do processo de substituição

do costume pela legislação escrita, em se tratando de Direito Civil, aquele ainda permanece

como fonte principal. John Gilissen analisa o fenômeno descrito da seguinte forma:

O costume permanece assim a fonte principal do direito civil. Mas muda de caráter: os soberanos ordenam a redução a escrito dos costumes; uma vez escrito e

44

homologado (o que quer dizer reconhecido oficialmente), deixa de ser um verdadeiro costume para se tornar uma lei de origem consuetudinária. Os soberanos reservam-se o direito de o modificar e interpretar. (GILISSEN, 1986, p.248)

Observa-se ainda uma crescente influência do Direito romano, com o rápido declínio do

Direito canônico, como fonte do Direito laico. O Direito romano era encarado como um

direito erudito e era usado em caráter supletivo das leis e costumes, com vistas a preencher as

lacunas do direito em vigor. A Alemanha, no século XVII, até meados do século XVIII,

tornou-se o principal centro de estudos do Direito romano na Europa, sendo que, somente

com a entrada em vigor do Código Civil alemão, o Direito Romano deixou de ser o direito

supletivo na maior parte daquele país. Assim, ensina John Gilissen, o Direito romano

encontrou nesse país, no século XIX, seus mais brilhantes representantes, como Hugo

(1764-1844) e Savigny (1779-1861), ambos da Escola Histórica do Direito. Daí resultou o

desenvolvimento de uma dogmática de Direito privado, baseada no positivismo científico e na

ciência das Pandectas.

Voltando à questão do surgimento dos Estados modernos, estes se formam a partir do

reforço recebido pelo poder dos reis e grandes senhores territoriais, sendo que esse reforço de

poder ensejou o enfraquecimento constante do feudalismo. Ao mesmo tempo, cada reino

desenvolveu um sistema jurídico próprio, centrado nas tradições e costumes locais, nas

legislações e decisões reais ou senhoriais e assim foram paulatinamente se formando os

direitos dos Estados modernos.

É importante registrar que esses numerosos sistemas não evoluíram todos da mesma

forma, sofrendo a influência de fatores políticos, econômicos e sociais, o que explica a

unificação do direito sob o signo dos particularismos locais.

Já sob a influência das idéias políticas e jurídicas dos pensadores dos séculos XVII e

XVIII12, tais sistemas sofreram grandes transformações, desaparecendo os últimos vestígios

do feudalismo. Em linhas gerais, John Gilissen (1979, p.131) resume o período nos termos a

seguir transcritos:

As revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) concretizam as idéias novas nos textos das constituições e de leis. Os últimos vestígios de feudalismo desaparecem, com algumas exceções apenas; as liberdades públicas garantem direitos subjetivos aos cidadãos, livres e iguais perante o direito; a soberania passa das mãos dos reis e dos príncipes para a Nação; a unificação do direito prossegue no quadro estatal. Cada Estado soberano tem o seu próprio direito, fixado por órgãos legislativos; a lei torna-se, quase por toda parte, a fonte principal do direito.

12 Sobre o tema, remetemos à leitura das obras de Gilissen (1979) e Leal (1997).

45

Não sem razão, as leis se tornam a principal fonte do direito nesse período. Como foi

dito anteriormente, a razão assumiu o papel de conformadora dos valores do novo segmento

social ascendente: a burguesia. Assim, o racionalismo iluminista, calcado na idéia da razão

como a base de uma ordem política abstratamente realizável, é que explica a idéia de uma lei

ou constituição que seja a criadora de uma comunidade política.

Para Gomes Canotilho (1993, p.252), é a dimensão “abstratizante” do racionalismo

iluminista que “explicará a crença dos políticos e doutrinadores liberais não só na validade

geral e universal das suas construções constitucionais, mas também no dogma da força

conformadora absoluta das normas abstractas e gerais”. E conclui o citado constitucionalista

português que daí advém a “teoria da lei geral e abstracta, produto da razão, manifestação da

vontade geral, inquebrantavelmente vinculativa de todos os cidadãos e aplicável a todas as

situações por ela contempladas.”

De par com o Renascimento como movimento cultural da burguesia, há que se

mencionar o liberalismo, tanto como doutrina política, como movimento econômico, base do

capitalismo e da economia de livre mercado. Eric Hobsbawm (1995, p.114-115) resumiu os

principais valores liberais como sendo

a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso com um governo constitucional com ou sob governos e assembléias representativas livremente eleitos, que garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, publicação e reunião. O Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão do debate público, da educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente de perfeição) da condição humana.

Da perspectiva econômica, em linhas gerais, o liberalismo propunha o lucro, o

desenvolvimento industrial e a propriedade privada como centro das prioridades para as

iniciativas governamentais. A agricultura também passou por profundas modificações,

assumindo a terra o papel de mercadoria, um bem lucrativo a ser monopolizado por grupos

privados.

A princípio na Inglaterra e posteriormente nos outros países europeus, o processo de

industrialização trouxe profundas mudanças na vida da sociedade, a começar pelo significado

do trabalho. Conforme afirmam Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick (1999, p.273),

acerca do significado de trabalho “o que antes significava dor, humilhação e pobreza passou a

designar fonte de propriedade, riqueza, produtividade e até mesmo a expressão da condição

humana. O trabalho passou a dignificar o homem e a qualificá-lo, tornando-se indicador de

46

posição social.”

No que tange ao sistema de Direito, ensina Gomes Canotilho (1993, p.254) que toda a

construção constitucional liberal tem em vista dar segurança jurídica, protegendo a economia

das intervenções do príncipe na esfera jurídico-patrimonial dos súditos, inclusive com a

possibilidade de revogação e alteração de leis. Assim, “o laço que liga ou vincula às leis

gerais às funções estaduais protege o sistema de liberdade codificada do direito privado

burguês e a economia de mercado.”

Bem assim, ao lado da perspectiva econômica do liberalismo burguês, há que se

mencionar o liberalismo político e sua função de permitir a implantação da política burguesa,

a partir da influência parlamentar. No ordenamento político burguês, o que Habermas (1984,

p.93) chama de esfera pública passa a ser o princípio organizador dos Estados de Direito e,

assim,

a esfera pública com atuação política passa a ter o status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda às suas necessidades. O pressuposto social dessa esfera pública ‘desenvolvida’ é um mercado tendencialmente liberado, que faz da troca na esfera da reprodução social, à medida do possível, um assunto particular das pessoas privadas entre si, completando assim, finalmente, a privatização da sociedade burguesa.

As constituições liberais concebiam o indivíduo como sujeito unificador da ordem

jurídica, mormente sob duas perspectivas diferentes: de um lado a que acentua o

desenvolvimento do sujeito moral e intelectual e, de outro, a que parte do desenvolvimento do

sujeito econômico livre no meio da livre concorrência.

É sob a égide da doutrina liberal que surge o Estado de Direito, cujo arcabouço

constitucional foi dirigido à contenção do exercício arbitrário, abusivo e ilegítimo de poder.

Assim, os poderes públicos passam a ser regulamentados por leis gerais, devendo ser

exercidos nos estritos limites das leis que os regulam. Também se assiste à

constitucionalização dos direitos naturais. No Estado de Direito, pugna-se não só pela

submissão dos poderes públicos às leis gerais, mas também pela subordinação das leis a um

limite material de reconhecimento de alguns direitos fundamentais, considerados

constitucionalmente invioláveis.

47

No resumo de Carlos Ari Sundfeld (2000, p.40), as pedras de toque no novo modo de

conceber as relações entre indivíduo e Estado são: “(a) a supremacia da Constituição; (b) a

separação de poderes; (c) a superioridade da lei; e (d) a garantia dos direitos individuais.”

O Estado de Direito, da perspectiva teórica, assume seu pleno desenvolvimento a partir

da concepção positivista-formalista, sobretudo na obra de Hans Kelsen, intitulada Teoria Pura

do Direito (1999). Para Perez Luño (1986, p.222-223), os traços principais do Estado de

Direito podem ser resumidos a uma aparente despolitização do Estado, o qual aparece como

um mero instrumento neutro e disponível para garantir o laissez faire, ou seja, para garantir

juridicamente o livre jogo dos interesses econômicos e uma identificação do conceito de

Estado de Direito com o princípio da legalidade, significando a submissão da administração à

lei e a possibilidade de controle judicial de seus atos.13

Nessa época, e de grande importância para o Direito privado até os dias atuais, vêm à

lume os primeiros códigos, significando a união material de vários elementos antes dispersos.

O esforço de codificação atingiu na França seu apogeu, na medida em que Napoleão

conseguiu dar azo a um grande esforço de sistematização legislativa, pois de 1804 a 1810

foram sucessivamente promulgados um Código Civil, um Código Comercial, um Código de

Processo Penal, um Código Penal e um de Instrução Criminal. Tais Códigos influenciaram a

codificação de muitos países, entre eles o Brasil.

A necessidade de codificação, na França, foi afirmada desde o início da Revolução

Francesa, sendo o Código Civil um documento que é o reflexo das questões políticas e sociais

de seu tempo. Como assevera Gilissen (1979), o mesmo fora redigido e discutido no momento

em que Bonaparte consolida seu poder pessoal, refletindo “a tendência para conciliar as

conquistas civis e políticas da Revolução com o desejo de estabilidade econômica e social,

13 Aqui, a integra do pensamento de Perez Luño (1986, p.222-223). sobre os traços principais do Estado de Direito na visão de Hans Kelsen, os quais podem resumir-se a: “a) Una aparente despolitización del Estado, que, lejos de proponerse la realización de fines políticos propios, aparece como un mero instrumento neutro y disponible para asegurar el laissez faire. esto es. para garantizar el libre juego de los intereses económicos. Para ello se consuma la fractura entre sociedad y Estado al independizar la organización y reproducción del poder político de cualquier conexión con la sociedad. Estos presupuestos se traducen, en la practica, en la cobertura ideológica de los intereses de la burguesía. El Estado liberal de Derecho funciona como un Estado al servicio de la burguesía para lo que dificulta el ejercicio del derecho de asociación, abandona el mercado a los económicamente poderosos y reconoce una libertad e igualdad en el plano formal que no tienen correspondiendo en el social y económico; b) Tendencia hacia a la identificación del concepto de Estado de Derecho con el principio de legalidad, lo que implica lo sometimiento de la administración a la ley, así como la posibilidad del control jurisdiccional de sus actos. Ahora bien. la supresión de cualquier referencia al contenido material de la legalidad y del Estado de Derecho o, lo que es igual entre el Estado y el Derecho. De ahí resulta sencillo concluir, como Kelsen hará expresamente, que todo Estado, pero el mero hecho de serio, es Estado de Derecho”.

48

baseada na família e na propriedade. Mantém-se a abolição dos direitos feudais; é garantida a

liberdade civil de todos os indivíduos: liberdade de contratar, de testar etc.” (GILISSEN,

1979, p.454)

Os Códigos tinham por escopo dar maior conhecimento do direito e maior segurança

jurídica a todos os cidadãos e não apenas aos juristas, recebendo caráter oficial do Estado e

formando um sistema. A maior crítica ao processo de codificação de base liberal é que, sob o

manto de uma racionalidade e abstração, os Códigos criaram categorias congruentes com o

momento histórico de sua criação, mas com pretensões de validade perpétua. Bem assim, a

partir de um cientificismo e de uma neutralidade, o sujeito foi apresentado como um ente

abstrato e distanciado da realidade social, o que ensejou um afastamento cada vez maior das

regras previstas, sobretudo no Código Civil, da realidade vivida pela sociedade.

A derrocada do liberalismo consolidou-se a partir dos movimentos das classes

trabalhadoras, dos movimentos não tradicionais da direita radical, os quais surgiram, a partir

do que ensinou Eric Hobsbawm (1995, p.122-123), “do ressentimento de homens comuns

contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes

movimentos trabalhistas de outro” mas, sobretudo, do movimento de extrema direita, rotulado

de “fascismo”, principalmente em sua forma italiana com Mussolini e na sua versão alemã,

com Hittler.

Aliás, vale registrar a crítica ao estadualismo oitocentista formulada por Hespanha

(1997), ao afirmar que a instituição Estado, na forma concebida pela teoria política liberal

(rigorosa separação entre sociedade civil e Estado; distinção da natureza dos poderes do

Estado e poderes conferidos aos particulares; criação de mecanismos de participação do

cidadão na sociedade política, notadamente a representação; identificação do direito com a lei

e instituição da justiça oficial como única instância solucionadora de conflitos), apresenta-se

em crise. Nesse sentido, destaca que:

a igualdade como objectivo político, vê-se confrontada com as pretensões de garantia da diferença; o interesse geral tende a ceder perante as pretensões corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com todas as formas de regionalismo; o império da lei é atacado, tanto em nome da irredutibilidade de cada caso e da liberdade de apreciação do juiz a isso ligada, como em nome de ideais de concertação e de negociação; a intenção racionalizadora capitula diante das pretensões liberais mais radicais. Em suma, o Estado abandona progressivamente o imaginário político. (HESPANHA, 1997, p.32)

No que tange às relações entre o Estado Liberal e os direitos fundamentais, remete-se ao

texto presente no item 1.4.1 do capítulo 1.

49

Deixa-se registrado que, nesse período, a relação interindividual na compreensão do

contrato era tido apenas segundo o pacta sunt servanda. Havia aqui apenas influência da boa-

fé subjetiva, nem cabendo a discussão quanto à boa-fé objetiva. A prestação contratual

circunscrevia ao pactuado no instrumento contratual, porquanto não cabia a inclusão dos

deveres anexos da boa-fé.

2.3 O Estado social

Como ponto de partida, pode-se afirmar que o Estado social representa historicamente o

intento de adaptação do Estado tradicional – Estado liberal-burguês – às condições sociais da

civilização industrial e pós-industrial, com os seus novos e complexos problemas, mas

também com suas grandes possibilidades técnicas, econômicas e organizativas. É, pois, uma

fase, ou o resultado de uma longa transformação por que passou o Estado Liberal clássico e,

conseqüentemente, é parte do histórico Estado de Direito, quando incorpora os direitos sociais

para além dos direitos civis.

A idéia do mercado como ente regulador da vida em sociedade e garantia do livre

desenvolvimento dos indivíduos tornou-se incompatível com o ideal do Estado, pois a força

deste, estando diretamente ligada ao nível moral e material de seus cidadãos, apresenta-se

contraditória com a miséria econômica da maioria da população. De igual forma, a

estabilidade do Estado de Direito ou burguês apresentava-se ameaçada por um incipiente

movimento em prol da revolução social, surgido a partir do momento em que as classes

oprimidas começam a ter acesso à cultura e, com isso, a tomar maior consciência de sua

situação. Como conclui Manuel García-Pelayo (1982, p.15), “la corrección por el Estado de

los efectos disfuncionales de la sociedad industrial competitiva no es solo una exigencia

ética, sino también una necesidad histórica, pues hay que optar necesariamente entre la

revolución o las reformas sociales.”

O Estado social representa assim a tentativa de adaptação do Estado burguês, dito

tradicional, às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com suas novas

demandas, principalmente a tentativa de remediar as péssimas condições de vida das camadas

mais desamparadas da população. Não obstante, o que começou como uma política setorial de

alguns países, tornou-se uma política social generalizada, que não pretende mais ser uma

reação às demandas sociais, senão uma tentativa de programação integrada e sistemática da

atuação do Estado.

50

Segundo adverte Habermas (1984, p.261), a transformação sócio-estatal do Estado

liberal “se caracteriza pela continuidade, e não por algo como uma ruptura com as tradições

liberais.”

Assim, o Estado Social propôs a substituição do individualismo, apolitismo e

neutralidade do Estado Liberal, incapaz de satisfazer a exigência de liberdade e igualdade

reais, por mecanismos que fossem capazes de implementar uma justiça social.

Mais uma vez citando Habermas (1984, p.262), este, ao comentar o processo de

transformação sócio-estatal do Estado Liberal de Direito, explicita que o Estado Social, na

continuação da tradição jurídica do Estado Liberal e na tentativa de assegurar um

ordenamento jurídico global do Estado e da sociedade, avança cada vez mais no sentido de ele

mesmo tornar-se o portador da ordem social, com a necessidade de assegurar, “para além das

definições negativas e denegatórias dos direitos liberais básicos, uma determinação positiva

de como se deve realizar a justiça com a intervenção social do Estado.”14

O Estado social considera tarefas próprias ajudar seus cidadãos, assegurando-lhes

assistência frente à enfermidade, à falta de condições de vida ou à degradação do meio

ambiente. Daí porque esse modelo de Estado ser chamado de Estado assistencial ou Estado do

bem-estar (welfare state)

Um dos marcos legislativos mais importantes da fase inicial de implantação do Estado

Social pode ser apontado como sendo a Constituição de Weimar, a qual representou um

abandono do primado do não intervencionismo estatal (laissez faire) em favor de um

intervencionismo dos poderes públicos no processo econômico, com vistas ao implemento da

produção, como forma de garantia do pleno emprego e valorização do trabalho.

No dizer de Perez Luño (1986), a mudança do Estado Liberal para o Estado Social de

Direito suscitou uma série de questões teóricas e práticas, sobretudo envolvendo o papel dos

órgãos públicos no desenvolvimento existencial dos indivíduos. Assim é que a Administração

passa a ser responsável pela tarefa

de proporcionar a la generalidad de los ciudadanos las prestaciones necesarias y los servicios públicos adecuados para el pleno desarrollo de su personalidad reconocida no solo a través de las libertades tradicionales, sino también a partir de la consagración constitucional de los derechos fundamentales de carácter

14 É importante que se esclareça que apesar de utilizarmos o texto de Habermas na definição de elementos do Estado Social, da leitura de sua obra depreende-se que o mesmo é critico desse modelo estatal, o que não invalidade a sua análise estrutural aqui apresentada.

51

económico, social y cultural. Al propio tiempo, el Estado social de Derecho pretende asumir el cometido de reestructurar y equilibrar las rentas mediante el ejercicio de la política fiscal [....]. (LUÑO, 1986, p. 224)

De outra parte, o Estado Social pressupõe o fim da separação entre Estado e sociedade,

passando o Estado a assumir a responsabilidade pela transformação do ordenamento

econômico e social, com vistas à realização material de igualdade. A questão funda-se no fato

de que a concepção liberal de lei foi esvaziada “em seus dois elementos – a generalidade

como garantia da igualdade e a correção, isto é, a verdade como garantia da justiça – a tal

ponto que o preenchimento de seus critérios formais não basta mais para uma normatização

adequada da nova matéria”. Assim, “no lugar de uma garantia formal, precisa aparecer, pelo

contrário, uma garantia material que prescreve, aos pactos de interesses, regras programáticas

de uma justiça distributiva.” (HABERMAS, 1984, p.262)

Diferentemente do Estado Liberal, no qual Estado e sociedade eram concebidos como

sistemas autônomos, no Estado Social, aquele assume a competência e responsabilidade para

a estruturação da ordem social.

Merece registro, por oportuno, a apresentação feita por García-Pelayo (1982, p.21)

acerca da interação de Estado e sociedade no Estado Social, afirmando que o Estado Liberal

era concebido como una organización racional orientada hacia ciertos objetivos y valores y dotada de estructura vertical o jerárquica, es decir, construida primordialmente bajo relaciones de supra y subordinación. Tal racionalidad se expresaba capitalmente en leyes abstractas (en la medida de lo posible sistematizadas en códigos), en la división de poderes como recurso racional para la garantía de la libertad y para la diversificación e integración del trabajo estatal, en una organización burocrática de la administración.

Já o Estado Social, por seu turno, na dicção do mencionado constitucionalista,

parte da experiencia de que la sociedad dejada total o parcialmente a sus mecanismos autorreguladores conduce a la pura irracionalidad y que solo la acción del Estado hecha posible por el desarrollo de las técnicas administrativas, económicas, de programación de decisiones, etc, puede neutralizar los efectos disfuncionales de un desarrollo económico no controlado. Por consiguiente, el Estado no puede limitarse a asegurar las condiciones ambientales de un supuesto orden social inmanente, ni a vigilar los disturbios de un mecanismo autorregulado, sino que, por el contrario, ha de ser el regulador decisivo del sistema social y ha de disponerse a la tarea de estructurar la sociedad a través de medidas directas o indirectas […]. (GARCÍA-PELAYO, 1982, p. 23)

Da perspectiva econômica, o Estado Social teve por base a preocupação com o respeito

à economia de mercado capitalista, bem como o respeito à propriedade dos bens de produção,

mas com a garantia de uma transformação democrática, abandonar o dogma do laissez faire

em nome de um intervencionismo dos poderes públicos no processo econômico, tendente ao

52

incremento constante da produção.

No que diz respeito aos valores basilares do Estado Social, tem-se que os principais

valores do Estado Liberal não são repudiados, antes, ao contrário, pretende-se fazê-los mais

efetivos, conferindo, desta feita, um conteúdo material à liberdade, à propriedade individual, à

igualdade e à segurança jurídica.

Assim, não existe a possibilidade de se redefinir a liberdade individual sem que esta seja

dotada de condições existenciais mínimas que tornem possível seu exercício real. A partir

desse novo posicionamento acerca da liberdade, assiste-se a uma mudança no papel

desempenhado pelo princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico: se nos

séculos XVIII e XIX se pensava a liberdade como uma exigência da dignidade da pessoa

humana, para o Estado Social, a dignidade humana, materializada em pressupostos

socioeconômicos, é uma condição para o exercício da liberdade.

Segundo preleciona Manuel García-Pelayo (1982, p. 26), a propriedade individual passa

a ter como limite os interesses gerais da comunidade e setoriais daqueles que participam da

produção. Da mesma forma, a segurança formal tem de ser acompanhada de segurança

material, por intermédio de instituições como salário mínimo, segurança de emprego,

assistência médica, entre outras, de modo que a segurança jurídica e a igualdade perante a lei

sejam complementadas com condições mínimas de vida com a correção das desigualdades

econômico-sociais.

O mesmo autor, ao analisar os principais valores e fins do Estado Social, traça, com

precisão, a linha divisória entre o modelo liberal e o social. De um lado, se o Estado

tradicional sustentava-se na justiça comutativa, o Estado Social sustenta-se na justiça

distributiva. Se aquele assegurava direitos sem menção de conteúdo, este distribui bens

jurídicos de conteúdo material. Se para o primeiro a função básica era a legislativa, para o

segundo o papel do Estado é de gestor, cujas condições impor-se-ão à legislação mesma.

Enquanto o primeiro limitava-se a assegurar uma justiça legal formal, o Estado Social busca

uma justiça legal material. Se na esfera liberal os valores burgueses se contrapunham a um

aumento da atuação estatal, no Estado Social o único que pode assegurar a vigência dos

53

valores sociais é o Estado, a partir de mecanismos institucionais adequados.15

Uma das principais características do Estado Social foi sua conversão em empresário,

principalmente a partir da estatização de empresas, seja pela criação de empresas sob a forma

jurídica privada, seja pela participação conjunta com o capital privado em empresas mistas.

Tal fenômeno se deu por razões distintas e provocou uma hipertrofia do Estado, que

atualmente caminha no sentido oposto, ou seja, no sentido da diminuição do seu tamanho, a

partir de conceitos como liberação, privatização e desregulação.

No que diz respeito ao sistema jurídico, é justamente nessa redefinição dos papéis do

Estado, no Estado Social, que vai acontecer a ruptura do sistema clássico de Direito Privado,

pois a evolução jurídica, após o término da Primeira Guerra Mundial, acompanha a evolução

social e “acarreta o surgimento de uma complicada mistura de tipos que, de início, foi

registrada sob a rubrica publicização do Direito Privado” e que mais tarde reconheceu-se que

“elementos de Direito Público e elementos de Direito Privado se interpenetraram mutuamente

até a incognoscibilidade e a indissolubilidade.” (HABERMAS, 1984, p.178)

Nessa toada, merece registro o novo papel que a separação de poderes assumiu no

Estado Social. Indiscutivelmente, o dogma da separação dos poderes foi um dos pilares do

constitucionalismo liberal16, que, entre outros méritos, recebe o crédito de ter servido de base

para a luta pelos ideais de liberdade e democracia, implantando na consciência ocidental o

“sentimento valorativo dos direitos e garantias individuais” (BONAVIDES, 2001, p.64).

Todavia, no Estado Social não merece mais o mesmo destaque, considerando-se que o

constitucionalismo deixou de basear-se no individualismo clássico, tradicional, para aceitar

uma dimensão social, que não apenas assegure a proteção dos direitos fundamentais do

homem perante o Estado, mas que assegure a sua participação na formação da vontade do

Estado, de modo a capacitar esse Estado a garantir, de forma cada vez mais efetiva, a

15 García-Pelayo (1982, p.27), ensina que a partir dos pressupostos acima descritos, “el Estado social ha sido designado por los alemanes como el Estado que se responsabiliza por ‘la procura existencial’ (Deseinvorsorge), concepto formulado originalmente por Forsthoff y que puede resumirse del siguiente modo. El hombre desarrolla su existencia dentro de un ámbito constituido por un repertorio de situaciones y de bienes y servicios materiales e inmateriales, en una palabra. por unas posibilidades de existencia a las que Forsthoff designa como espacio vital.” 16 Sobre o tema leciona Paulo Bonavides (2001, p.64) que o principio da separação de poderes teve seu apogeu nos primórdios do constitucionalismo moderno, que norteou a organização política do novo Estado liberal-democrático, afirmando que “esse princípio - que nas origens de sua formulação foi, talvez, o mais sedutor, magnetizando os construtores da liberdade contemporânea e servindo de inspiração e paradigma a todos os textos de Lei Fundamental, como garantia suprema contra as invasões do arbítrio nas esferas da liberdade política”.

54

realização concreta, e não meramente formal, dos direitos dos cidadãos.

No que concerne aos direitos fundamentais, com o advento do Estado Social

observaram-se muitas mudanças na concepção de tais direitos se comparados com o modelo

liberal. A principal delas, e que será estudada com mais detalhamento no próximo capítulo,

diz respeito à assunção de uma faceta positiva por parte dos direitos fundamentais, ou seja,

não basta a abstenção estatal diante dos ditos direitos, mas sua atuação efetiva de modo a

propiciar ao cidadão o direito de participar desse bem-estar social.

Assim, os direitos fundamentais passam a ser definidos como direitos de segunda

dimensão, caracterizados pela prestação, por parte do Estado, dos chamados direitos sociais.

Na visão de José Afonso da Silva (2001, p.289), os direitos sociais são definidos como

dimensões dos direitos fundamentais do homem, que devem ser proporcionados pelo Estado

de maneira direta ou indiretamente, a partir de normas constitucionais que “possibilitem

melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização dos

desiguais.”

Nesse modelo de Estado, a função principal é garantir a ordem social e a segurança

jurídica, assumindo os direitos fundamentais o papel de garantia da liberdade individual,

sendo que uma teoria dos direitos fundamentais do Estado Social centra-se nos pressupostos

sociais da liberdade, pretendendo superar um desdobramento entre liberdade jurídica e

liberdade real, desdobramento próprio do modelo liberal, num quadro de maior distribuição

das riquezas sociais.

Esse processo de “socialização” dos direitos fundamentais redundou numa maior

“objetivação” dos mesmos ou, melhor dizendo, o homem, que antes era visto como portador

abstrato de direitos e interesses “pré-sociais”, agora é situado e inserido na sociedade, razão

por que os direitos são concebidos em planos sociais ou pós-sociais. A conseqüência mais

imediata dessa chamada objetivação dos direitos fundamentais enseja o reconhecimento de

uma função social dos direitos, que ultrapassa o limite individual, como no caso do direito de

propriedade, por exemplo. Demais disso, em se tratando de direitos de prestação, os limites de

seu exercício já não se encontram mais na vontade individual e sim na existência de recursos

sociais, politicamente definidos, trazendo ao Estado o ônus de criar condições efetivas para a

realização dos direitos.

55

Nesse diapasão, direitos clássicos, sobretudo a liberdade contratual (além do direito de

propriedade acima mencionado), são bastante modificados. A autonomia da vontade passou a

sofrer limitações, pois, como lembra Habermas (1984, p.179), “à medida que as relações

jurídicas se equivalem de modo social-típico, os próprios contratos também procuram tornar-

se esquematizados.” Assim, a noção de liberdade contratual, que havia sido concebida como

projeção da liberdade individual, passou a contar com outros pontos de intervenção do

Estado, quer por parte do legislador, quer pelo poder de revisão da vontade dos contratantes

pelo juiz.

Especialmente no que diz respeito às relações contratuais, tema que interessa mais de

perto em razão da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, que será estudado mais

detalhadamente no capítulo V, verificou-se que no final do século XIX, início do século XX, a

autonomia privada passou a ser contida pela interferência do Estado, na busca por uma justiça

social não alcançada pelo modelo liberal de contrato.

Sobre a questão afirmou Rogério Ferraz Donnini (1999, p.6) que o “modelo liberal de

contrato causa perplexidade àqueles que buscam a justiça, pois situações absolutamente

desiguais e desproporcionais, que causavam prejuízos a um dos contratantes, eram

consideradas legais, embora evidentemente imorais.”

Destarte, passou a existir uma limitação à liberdade de contratar, de modo que fossem

contidos abusos nas relações contratuais advindos, sobretudo, de desigualdades econômicas

das partes, concluindo o citado civilista que houve “a proclamação efetiva da preeminência

dos interesses coletivos sobre os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio

da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela intenção das partes, já que a vontade destas

obrigatoriamente tem de submeter-se àquele.” (DONINI, 1999, p.8)

É nesse contexto que surge a discussão acerca da aplicação dos direitos fundamentais

nas relações privadas, considerando-se que o Estado deve resguardar o indivíduo não só

contra sua ingerência indevida, mas também garantir a autonomia individual em face de

interferências de detentores do poder, mesmo que nas relações interprivadas. Isso porque,

conforme preleciona Juan Maria Ubillos (1997), o direito formal e igual para todos tende a

fazer o forte cada vez mais forte e o fraco cada vez mais fraco, pois quem carece de um poder

social próprio ou de uma proteção, acaba por não poder realizar sua liberdade jurídica frente

aos detentores de poder social. Assim, os poderes privados hoje constituem uma ameaça ao

56

desfrute efetivo dos direitos fundamentais não menos inquietante do que a representada pelo

poder público. E arremata o citado autor: “la libertad realizable para todo el mundo en

principio, se volatiza, se va progresivamente convirtiendo en una formula vacía. La

desigualdad social se convierte en la falta de libertad social.” (UBILLOS, 1997, p.243)

Por fim, torna-se necessário, ainda que de forma breve, analisar a validade das

concepções do Estado Social ou se este modelo se encontra defasado. Isso porque, nos dias

atuais, debate a doutrina um retorno a concepções liberais no que concerne ao modelo de

atuação do Estado, ou melhor, o neoliberalismo, assentado, sobretudo, na denúncia de um

papel excessivamente ativo do Estado e na sua ineficiência na produção de resultados. Os

teóricos liberais contemporâneos criticam o Estado Social sob o argumento de que a

redistribuição de bens que este opera “é globalmente ineficaz e que leva até a efeitos

contrários ao que era desejado” (ROSANVALLON, 1997, p.49). Assim, afirmam tais teóricos

que a redistribuição almejada pelo Estado social apresenta-se como uma forma de

regulamentação das relações sociais e das situações sociais e, em assim sendo, mesmo que

não seja perfeito, o mercado seria o mais indicado para assegurar “em todos os casos uma

melhor conjunção dos imperativos de eficácia e justiça.” (ROSANVALLON, 1997, p. 49)

Verifica-se que o debate está circunscrito à estatização/privatização, deixando duas

únicas possibilidades de realização das demandas de progresso social: ou o Estado ou o

mercado.

No entender de Pierre Rosanvallon (1997), entretanto, é possível um futuro para o

Estado social que deve ser necessariamente plural, com a substituição da lógica unívoca da

estatização por uma combinação de três elementos:

a) socialização, esta entendida como a desburocratização e racionalização da gestão de

grandes equipamentos e funções coletivas;

b) descentralização de serviços públicos para torná-los mais próximos dos usuários;

c) autonomização, ou seja, transferência para coletividades não públicas tarefas de

57

serviço público. (ROSANVALLON, 1997, p.85-86) 17

Noutro giro, ainda que existam críticas ao modelo do Estado Social, no que tange aos

direitos fundamentais, forçoso é reconhecer que este representou a superação do caráter

negativo desses direitos, os quais deixam de ser considerados uma mera limitação do poder

estatal para se transformarem em instrumentos de controle de sua atividade positiva, que deve

ser orientada para a participação dos indivíduos e dos grupos no exercício do poder. Isso sob a

égide do princípio democrático da soberania popular e os limites que dito princípio estabelece

aos órgãos que dela dependem. Esse o tema do próximo tópico, qual seja, a influência dos

princípios democráticos na construção do chamado Estado Democrático de Direito.

2.4 O Estado Democrático de Direito

A constatação prática de desvirtuamento da aplicação da necessidade de realização

material dos anseios reais e dos direitos dos cidadãos, sobretudo em razão de fenômenos

claramente contrários aos cânones do Estado social18 ensejaram um esforço da doutrina no

sentido de tentar estabelecer uma conexão dos princípios democráticos com os postulados do

Estado Social e do Estado de Direito.

Com efeito, buscou a doutrina uma forma de demonstrar a correlação direta entre a

liberdade de participação política do cidadão, como possibilidade de interferir no processo

decisório do Estado e as demais liberdades individuais. Assim, os direitos fundamentais

passaram a ser considerados como parâmetros de legitimação da ordem democrática, na

medida em que buscam reconhecer a igualdade, perante a lei e em oportunidades, a liberdade

real e o direito de participação na conformação do processo político.

Existe, pois, estreita correlação entre os direitos fundamentais e a realização do

17 Muito embora não seja objetivo do presente estudo uma analise aprofundada do remodelamento do Estado Social ou Estado Providência a partir dos três elementos acima descritos, atualmente observa-se no Estado brasileiro que, a despeito da “desestatização” promovida na estrutura da administração pública, sobretudo em relação à descentralização de serviços públicos pela via contratual e da tentativa de fortalecimento do chamado terceiro setor, os resultados ainda não se apresentam expressivos em relação a uma redução da demanda do Estado e uma maior qualidade na prestação de serviços públicos-essenciais. Ademais, as mudanças em nome de uma maior autonomia dos entes estatais não representam uma novidade na história administrativa brasileira, pois “no Brasil já de há muito existem entidades, sobretudo autárquicas, com certo grau de independência em relação ao Poder Executivo, como é o caso das universidades públicas e da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como inúmeras entidades que exercem função reguladora, sendo exemplos o CADE, o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional, entre outras.” (LOPES; SAMPAIO, 2002, p.68). 18 Perez Luño (1986, p.229) aponta como fenômenos contrários aos postulados do Estado Social, sobretudo o “centralismo de Estado, marcadas desigualdades sociales y económicas, sociedades multinacionales y grandes monopolios típicos del neocapitalismo e manipulación de la opinión publica a través de mass-media”.

58

princípio democrático.19

A democracia, nesses termos, deve incorporar, antes de tudo, as mais importantes

conquistas da teoria democrática representativa, com suas técnicas de representação, seus

procedimentos, apontando o conjunto de eleitores de uma comunidade como base de

determinação do convívio social. Dessa forma, a democracia participativa no Estado

Democrático de Direito, com espeque na lição de Mário Lúcio Quintão Soares (2003, p.407) ,

“se manifesta na estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos possibilidades efetivas

de aprendizado de democracia, de participação nos processos decisórios, de exercício do

controle crítico nas divergências de opinião e da produção de inputs políticos democráticos.”

Gomes Canotilho (1993, p.409) define a teoria da democracia participativa como sendo

aquela que almeja a realização da idéia de democracia como “poder do povo”, juntando todas

as suas componentes, quais sejam, as individualistas, coletivistas, ideal radical democrático,

autodeterminação individual e domínio do povo.

Existe, pois, uma dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio

democrático. Em abono a essa tese, Gomes Canotilho (1993) aponta o fato de que o princípio

democrático, ao pressupor a participação igual de todos os cidadãos, liga-se aos direitos

subjetivos de participação e associação. Da mesma forma, os direitos fundamentais, como

direitos subjetivos de liberdade, autorizam a atuação pessoal na defesa do poder

antidemocrático e asseguram o exercício da democracia mediante exigências de garantias de

organização e de processos com transparência, consubstanciadas no princípio majoritário e na

justiça eleitoral.

Os direitos fundamentais, os quais irradiam sua influência por todo o ordenamento jurídico,

atuam legitimando as ações do Estado, garantindo a liberdade individual e limitando o poder estatal,

sendo, por conseguinte, de vital importância para a concretização do Estado Democrático de

Direito.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 estabeleceu, em seu art. 1°, caput, que a

República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem por

fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do 19 Segundo ensina Gomes Canotilho (1993, p.431), “os direitos fundamentais tem uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos [...] para seu exercício; (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio princípio democrático); (3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural.”

59

trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Verifica-se assim que os direitos fundamentais e a realização do princípio democrático

estão organicamente ligados por expressa determinação constitucional. A soberania afirma a

independência do Estado brasileiro e sua autonomia, consubstanciada na capacidade de criar a

sua própria ordem jurídica. Demais disso, a soberania, qualificada de popular, nos termos

preconizados pelo art. 14 da Carta Magna, será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto

direto e secreto, com igual valor para todos. A vontade popular é o conceito basilar do

princípio democrático, pois acrescido ao fato de a soberania ser um dos fundamentos do

Estado brasileiro, o parágrafo único do citado art. 1° consigna que todo o poder emana do

povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos, nos termos da

Constituição. Assim, na lição de Vital Moreira e Gomes Canotilho (1984, p.70), “a vontade

popular não é apenas fundamento da ação do Estado, mas sim também, antes disso,

fundamento da organização e legitimação do próprio Estado.”

De outra parte, o direito de sufrágio possui natureza de direito subjetivo dos cidadãos,

não sendo simples forma de organização do princípio democrático, mas base objetiva desse

princípio.

Já a dignidade da pessoa humana apresenta-se como referência constitucional

unificadora de todos os direitos fundamentais, incluindo não só os direitos pessoais, mas

também os direitos sociais, econômicos e políticos.20

Para Ingo Sarlet (2001, p.103), com o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa

humana como princípio fundamental da Constituição, reconheceu a Carta Constitucional que

“é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não contrário, já que o homem

constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.”

A afirmação no texto constitucional da observância da dignidade da pessoa humana,

que, de início parece óbvia, pretende a garantia contra tantas iniqüidades praticadas ainda nos

dias de hoje contra os seres humanos. Sem adentrar à questão, mas a título de exemplificação,

pode-se mencionar a aniquilação de culturas minoritárias, exploração do trabalho infantil, da 20 Merece aqui o registro da posição precursora de José Afonso da Silva (2000, p.147) sobre a posição de eminência da dignidade da pessoa humana, afirmando que “a eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, principio constitucional fundamenta] e geral que inspira a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Portanto não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural Daí a sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional”.

60

prostituição infantil, escravização de trabalhadores do campo, péssima qualidade dos serviços

de saúde gratuitos, dos serviços de educação, que não garantem um serviço público de

qualidade, prerrogativa daqueles que podem pagar caras mensalidades escolares, enfim,

dominação, exploração, humilhação, principalmente dos integrantes das camadas da

população menos aquinhoadas economicamente.

Ainda sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, este atua a um só tempo como

limite e tarefa do Estado. Como limite, o princípio impõe ao Estado o respeito à dignidade

inerente a cada ser humano e que é inalienável. Como tarefa cometida ao Estado, a dignidade

da pessoa humana obriga a este que

guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade. (SARLET, 2001, p.108)

Como conclusão do presente tópico, vale transcrever o entendimento de Mário Lúcio

Quintão Soares (2003, p.419) acerca da relação entre direitos fundamentais e o princípio

democrático, para quem

o desenvolvimento do sistema de direitos fundamentais no Estado democrático de direito e sua efetividade exigem que se recorra aos princípios da proteção jurídica, da defesa dos direitos e abertura da via judiciária (como imposição constitucional ao legislador), à garantia de processo judicial, à criação de direito subjetivo público em círculo de situações juridicamente protegidas, às garantias de justiça e aos direitos processuais fundamentais, e, finalmente, ao principio da constitucionalidade. Este sistema de direitos fundamentais, dotado de princípios norteadores e assecuratórios, propicia a concretização da cidadania plena e coletiva, consubstanciando a legitimidade do estado democrático de direito.

A preocupação com o fator social, no capítulo da ordem econômica da Lei Maior de

1988, é notória. Os princípios que norteiam a atividade econômica estão atrelados à noção de

democracia política, estando nitidamente permeados, de um lado, por finalidades, tais como a

justiça social, desenvolvimento econômico (redução das desigualdades regionais e sociais),

proteção ao consumidor e ao meio ambiente e, de outro, pela garantia da liberdade de

iniciativa. Têm-se, assim, visão social extremada, legítima garantia para possível intervenção

estatal, mas que encontra limites na livre iniciativa e na livre concorrência, como também nas

normas constitucionais e legais disciplinadoras dos processos administrativos.

Em síntese: o paradigma mudou e o Estado passou a intervir no campo econômico,

regulando-o, sendo sujeito participante direto da concretização das garantias sociais. Surgiu,

61

então, a necessidade de busca da plenitude democrática, uma vez que o Estado não poderia

continuar sendo somente o garantidor e regulador das relações interindividuais, incumbindo-

lhe, sobretudo, a tarefa de compor a sociedade, mediante a redistribuição da plus valia a

camadas cada vez mais amplas da população.

No próximo capítulo será aprofundada a análise da dimensão objetiva dos direitos

fundamentais, sob a ótica das mudanças que essa teoria representou para o estudo dos ditos

direitos.

62

3 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No constitucionalismo liberal, conforme visto nos capítulos precedentes, os direitos

fundamentais possuíam uma dimensão subjetiva e caracterizavam-se exclusivamente como

direitos de defesa do cidadão contra o Estado, tendo como parâmetro tão somente a liberdade

e autonomia do indivíduo. Ao Estado cabia, pois, a regulação da liberdade em abstrato, tendo

o indivíduo a competência para fixar o modo de sua utilização, de acordo com o marco

estabelecido pelas leis.

As primeiras mudanças na abordagem subjetivista dos direitos fundamentais

começaram a ser observadas com o surgimento da teoria institucional e a teoria da

integração.21 Em linhas gerais, para a primeira, os direitos fundamentais deixam de apresentar

somente uma dimensão subjetiva, mas se entremostram também como princípios normativos

de tipo institucional, que regulamentam as relações sociais e os fatos materiais em que ditas

relações são válidas. Já para a segunda, a teoria da constituição como integração, a dimensão

meramente subjetiva dos direitos fundamentais resta superada, porquanto esta concebe o

Estado em permanente processo de integração de uma comunidade, de seus valores e de sua

cultura. Como os direitos fundamentais fixam os valores principais de uma comunidade e

normatizam um sistema de valores, tornam-se meios determinantes desse processo de

integração e criação do Estado.

Ao aprofundar a análise da teoria da integração, ensina Gavara de Cara (1994) que entre

as distintas formas de integração destacam-se a integração pessoal, a funcional e a material. A

integração pessoal implica que a integração do Estado se faz por meio de pessoas capazes de

criar uma coesão parlamentar que integre não somente os cidadãos ligados aos governantes,

mas a totalidade do povo, de modo a estabelecer uma unidade política. As formas de

integração funcional ou processual, esclarece o citado autor, tendem a criar um sentido

coletivo, mediante processos que desenvolvam a substância espiritual da comunidade que

21 Sobre a conceituação das teorias mencionadas, remetemos à leitura do capitulo I itens 1.2.3 e 1.2.4.

constitui seu conteúdo objetivo, ou seja, a integração funcional se realiza mediante “procesos

de conformación de la voluntad comunitaria en el sentido de la permanente creación de las

condiciones necesarias para el establecimiento de una comunidad basada en las distintas

voluntades.” (DE CARA, 1994, p.81).

Por fim, a forma de integração material, que é assinalada como a que mais interessa,

uma vez que os direitos fundamentais estão incluídos como fatores de seu conteúdo material,

implica a existência de conteúdos substantivos para a realização do Estado, concebidos como

fins estatais.22

Essa visão conferiu novos contornos ao estudo dos direitos fundamentais, até então

analisados sempre à luz do princípio da legalidade. A partir desse princípio, os direitos

fundamentais eram considerados, no âmbito de atuação da Administração Pública, como

direitos administrativos especiais. Entretanto, verificou-se que os direitos fundamentais não

poderiam ser estudados como parte do Direito Administrativo, nem do direito de polícia e

tampouco como parte do Direito Privado, sendo parte do Direito Constitucional.

A teoria da integração constitui o antecedente mais próximo da concepção axiológica

dos direitos fundamentais, que embasa a dimensão objetiva desses direitos. Essa nova

dimensão abre outras possibilidades de utilização dos mesmos, ligadas à legitimação do

Estado e à hermenêutica em geral, pois como os direitos fundamentais proclamam um sistema

de valores, que dão unidade à ordem jurídica, então seus efeitos se irradiam por todo esse

ordenamento. Muito importante no processo de consolidação da concepção objetiva dos

direitos fundamentais foi o advento dos direitos de segunda geração, os quais dominaram o

século X.

Conforme explica Paulo Bonavides (2000, p.518), os direitos de segunda geração23 são

os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social, depois que geminaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste século.

A par das teorias acima expostas, outro marco muito importante para o reconhecimento

da dimensão objetiva dos direitos fundamentais foi a decisão da Corte Constitucional alemã,

em 1958, no caso Lüth, a qual reconheceu que cláusulas gerais de Direito Privado devem ser

interpretadas à luz dos valores sobre os quais se assenta a Constituição, com base nos direitos

22 Na dicção de Gavara de Cara (1994, p.82). “La integración material expresaría el contenido material que posibilitaría la integración del pueblo de modo permanente, renovándose y desarrollándose continuamente.”

64

fundamentais.24 Ingo Sarlet (2001, p.143), ao comentar a decisão mencionada, afirma que o

julgamento da Corte Constitucional alemã deu continuidade a uma tendência que já se

manifestava em outros arestos daquela Corte, ficando consignado que

os direitos fundamentais não se limitam à sua função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra os atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.

Böckenförde (1993, p.107), ao analisar as mudanças introduzidas pelo novo

posicionamento do Tribunal Constitucional no citado caso, esclarece que a decisão apresenta

uma evidente estrutura dual, pois junto aos direitos fundamentais como direitos subjetivos

tradicionais frente ao poder público, aparecem os direitos fundamentais como normas

objetivas, que expressam conteúdo axiológico de validade universal e estabelecem um

correlativo sistema de valores.

Desde então, a questão envolvendo a dimensão objetiva dos direitos fundamentais

tornou-se uma das mais debatidas não só na doutrina e jurisprudência alemãs, como também

em outros países, como é o caso da Espanha.25

23 As gerações ou dimensões dos direitos fundamentais dizem respeito às fases de transformações históricas pelas quais passaram os referidos direitos tanto em relação ao seu conteúdo, como em relação à sua titularidade, eficácia e efetivação. Assim, na lição de Ingo Sarlet (2001, p.49), fala-se em três gerações de direitos, “havendo, inclusive, quem defenda a existência de uma quarta geração”. Em linhas gerais, os direitos de primeira geração são marcados pelo individualismo, típico do pensamento liberal-burguês, notadamente a doutrina iluminista e jusnaturalista, segundo a qual o fim precípuo do Estado é a realização da liberdade do indivíduo. São de primeira geração o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, incluindo ainda os direitos de liberdade de expressão coletiva. Já os direitos de segunda geração são direitos de liberdade por meio do Estado e englobam não só direitos de cunho positivo, mas as denominadas liberdades sociais ligadas ao indivíduo. Por fim, os direitos de terceira geração, também chamados de direitos de solidariedade ou de fraternidade (SARLET, 2001, p.2) os quais se desprendem do indivíduo e destinam-se à proteção de grupos humanos, sendo de titularidade difusa ou coletiva. São exemplos o direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito à comunicação.24 Segundo ensina Daniel Sarmento (2003) “tratava-se de discussão relativa à legitimidade de um boicote contra um filme dirigido pela cineasta Veit Harlan, de passado nazista, organizado pelo presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, Erich Lüth, em 1950. A produtora e a distribuidora do filme insurgiram-se contra o boicote e obtiveram decisão injuntiva da Justiça Estadual de Hamburgo, determinando sua cessação, com base no art. 826 do Código Civil alemão, segundo o qual ‘quem causar danos intencionais a outrem, e de maneira ofensiva aos bons costumes, fica obrigado a compensar o dano’. Irresignado com o julgamento, Lüth interpôs queixa constitucional (verfassungsbeschwerde) para o Tribunal Constitucional. Este acolheu o recurso, fundamentando-se no entendimento de que cláusulas gerais do direito privado, como os ‘bons costumes’ referidos no art. 826 do BGB, tem de ser interpretados ao lume da ordem de valores sobre a qual se assenta a Constituição, levando em consideração os direitos fundamentais, o que não fora feito pela Corte de Hamburgo”. (SARMENTO, 2003, p.261-262). Sobre o tema, ver também Hesse (1995, p.58).

25 Daniel Sarmento (2003, p.263) traz à colação um precedente do Tribunal Constitucional, qual seja a sentença 21/81, em abono à afirmação feita de que a jurisprudência constitucional espanhola recepcionou a dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

65

A objetivação dos direitos fundamentais deu-se sob a égide dos processos de

democratização e socialização, sendo certo que, para a comunidade, a relevância desse

processo não se limita ao reconhecimento de que a liberdade é um valor social e, portanto,

que aos poderes públicos impende assegurarem, além de respeitarem, efetivamente as

condições de autonomia da vontade individual. Mais além, os direitos fundamentais agora

pressupõem também a solidariedade, a responsabilidade comunitária pelos indivíduos, de

modo a garantir o exercício efetivo de tais direitos.

A despeito do reconhecimento da importância da superação da perspectiva

individualista dos direitos fundamentais, típica do pensamento liberal, algumas críticas

também são lançadas pela doutrina à aceitação incondicional da dimensão objetiva de ditos

direitos. A seguir far-se-á uma análise de ambas as vertentes.

3.2 Ordem de valores e a Constituição

Após impor-se sobre uma larga tradição positivista, que na sua versão mais radical

pretendeu um absoluto distanciamento entre Direito e Moral, bem como a visão

jusnaturalista26 de que ambas as esferas se fundem, baseando-se o Direito em valores

universais e transcendentais, desvinculados de qualquer cultura, surge a aceitação da força

normativa dos valores no ordenamento constitucional. Contudo, não são valores relativos a

uma moral imutável e supra-histórica, mas valores que possuem uma dimensão cultural e que

se integram à consciência ético-jurídica de uma comunidade histórica concreta.

Assim, ao se afirmar a aceitação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, isso

não significa somente que as posições jurídicas subjetivas pressupõem um preceito de direito

objetivo que as preveja. Significa, isso sim, que os direitos fundamentais não podem ser vistos

apenas do ponto de vista dos indivíduos, mas valem juridicamente também do ponto de vista

da comunidade, como valores ou fins consagrados por seus integrantes.

Vieira de Andrade (1987) preleciona que essa dimensão comunitária se expressa sob

duas diferentes perspectivas de vista, a saber: a dimensão objetiva sob a perspectiva ou

dimensão valorativa, que vai integrar o próprio conteúdo de sentido dos direitos

fundamentais, e a dimensão objetiva como perspectiva ou dimensão jurídica estrutural, a qual

26 Convém salientar que não é objetivo do trabalho proceder a uma análise exaustiva acerca das linhas de pensamento positivista e jusnaturalista, cingindo-se a pesquisa à abordagem dos referidos marcos teóricos como importantes referenciais para a estruturação da teoria da ordem de valores da maneira como a mesma se apresenta nos dias atuais.

66

produz autonomamente, para além das posições jurídicas subjetivas, outros efeitos jurídicos.

Será legítimo afirmar a dimensão objetiva dos direitos fundamentais como dimensão

valorativa, desde que esta seja tomada a partir da noção de responsabilidade social dos

indivíduos e não somente tendo por base a vontade de seus titulares. Não se trata, pois, de

simplesmente negar o caráter absoluto e incondicional dos direitos fundamentais, mas de se

admitir a possibilidade de condicionamento e “até sua restrição para salvaguarda de interesses

da comunidade ou dos direitos dos outros.” (ANDRADE, 1987, p.146)

Noutro pensar, não se trata também de aceitar uma natureza dupla aos direitos

fundamentais, ou seja, de reconhecer que os direitos são simultaneamente deveres dos

indivíduos por representarem valores coletivos.27

Conclui o citado constitucionalista português que a previsão dos direitos implica a

afirmação de valores sociais, e que estes impõem tarefas de responsabilidade estatal, mas isso

não significa que cada direito possua, como reverso, um dever fundamental de seu titular

ativo, com uma instrumentalização dos poderes subjetivos em relação a finalidades sociais e

que “o Estado, através de sua competência para definir o interesse público e vigiar o seu

cumprimento, determine o conteúdo e controle do exercício dos deveres e, por essa via, dos

direitos individuais - Isso seria a destruição da liberdade e da autonomia da pessoa

humana.” (ANDRADE, 1987, p.149)

De outra parte, a dimensão objetiva como dimensão jurídica estrutural é definida como

produtora de efeitos jurídicos, os quais, diferentemente da dimensão objetiva enquanto

expressão de valores, ensejam uma visão complementar e suplementar da dimensão subjetiva.

Não é demais lembrar que segundo a concepção da dimensão objetiva enquanto expressão de

valores, os valores comunitários são tidos como contrapostos aos direitos individuais.

Já no que tange à dimensão objetiva como dimensão jurídica estrutural, alguns preceitos

constitucionais produzem efeitos que não são remetidos integralmente às posições jurídicas

que reconhecem, ou ainda, porque estabelecem deveres e obrigações, sem a correspondente

atribuição de direitos aos indivíduos, daí porque atuam numa dinâmica complementar e 27 Conforme propõe Vieira de Andrade (1987, p.147) acerca do tema: “Se assim fosse, os direitos fundamentais constituiriam ‘uma unidade essencial com deveres fundamentais de natureza jurídica ou cívica, quer perante os outros cidadãos, quer perante a colectividade’, tendo ‘não apenas uma função pessoal e individual, mas também uma função extra-individual em relação ao estado democrático e ao empenhamento na construção do socialismo’. Julgamos, porém, que assim não é e que o relevo da dimensão objectiva não pode ser levado tão longe: nem a generalidade dos direitos tem a natureza de deveres, nem a sua função, ou se assim se quiser, a sua função principal e caracterizadora é outra que não seja a dignidade da pessoa humana individual’’

67

suplementar da dimensão subjetiva. Assim, “a dimensão objectiva, em vez de comprimir,

reforça agora a imperatividade dos direitos individuais e alarga a sua influência no

ordenamento jurídico e na vida da sociedade.” (ANDRADE, 1987, p.161)

Na visão do citado autor, em matéria de direitos fundamentais, mais do que aceitar o

direito subjetivo como um mero reflexo do direito objetivo, existe uma autonomização da

dimensão subjetiva, já que toda a disciplina da matéria visa à garantia de valores ligados à

dignidade humana dos indivíduos. Nada obstante, não se trata de representar a dignidade

como um valor abstrato, senão como uma autonomia ética das pessoas humanas concretas, o

que enseja a conclusão de que

ao predomínio no plano axiológico e funcional de uma (irredutível) dimensão subjectiva há-de naturalmente corresponder, no plano jurídico-estrutural, lugar central da posição jurídica subjectiva. [...] Estas posições subjectivas constituirão, assim, o núcleo de cada preceito ou conjunto de preceitos conexos em matéria de direitos fundamentais: será com base nessas posições, à volta delas e a partir delas que se organiza todo o sistema constitucional de protecção e promoção da dignidade da pessoa humana. (ANDRADE, 1987, p.162)

A concepção dos direitos fundamentais como ancorados em valores provocou intensas

reações. A crítica mais conhecida contra a ordem de valores foi desenvolvida por Ernest

Forsthoff, defensor da concepção liberal dos direitos fundamentais. Este considerava que uma

argumentação com base em valores significava o abandono da positividade do direito, pois os

valores possuem uma dimensão espiritual e, portanto, sem caráter jurídico, senão filosófico.

68

Ademais, ressaltou que esse método de interpretação supõe a supressão da lei

constitucional, a insegurança do Direito Constitucional, a desformalização da Constituição e

implica a impossibilidade de controlar o subjetivismo nas sentenças que aplicam e

estabelecem valores, o que poderia levar à tirania dos valores. (FORSTHOFF apud DE

CARA, 1994, p.84)

No Brasil, cumpre destacar a visão crítica de Giselle Cittadino (2001) em relação à

concepção dos direitos fundamentais como ordem de valores, pois, segundo a autora, essa

visão teleológica dos direitos fundamentais se organiza em torno da concepção de que as

normas, práticas e instituições apenas podem ser justificadas em seus próprios contextos

históricos e, em algumas circunstâncias, há um aniquilamento da confiança nas tradições28.

Assim é que verdadeiras atrocidades são praticadas sob a roupagem de normalidade,

tornando-se necessário um certo distanciamento reflexivo em relação às tradições que

conformam a identidade da comunidade. Principalmente quando não se pode confiar nas

tradições, é possível tomar “os direitos fundamentais como resultado de um processo

reflexivo a partir do qual os indivíduos podem conservar uma certa distância em relação às

suas próprias tradições e aprender a entender a figura do outro a partir de sua própria

perspectiva.” (CITTADINO, 2001, p.105-106)

Dessa forma, ainda que os direitos fundamentais representem uma idéia normativa de

uma cultura particular, no caso a Europa, tais direitos, afirma a autora, possuem uma

pretensão de universalidade que não se compraz com a idéia de valores enquanto bens

preferidos, inclusive porque os mesmos, ao contrário de representar um eurocentrismo

incompatível com valores culturais distintos, podem ser aplicados em outros contextos e

outras culturas. Nesse sentido, enquanto idéia moral, “os direitos fundamentais podem ser por

todos compartilhados a partir de experiências comuns de violação da integridade e de

ausência de reconhecimento.” (CITTADINO, 2001, p.105-106). Não se trata aqui de uma

moral objetiva que pressupõe a existência de princípios universais e inalteráveis, mas

historicamente construída, que decorre de uma razão prática, propagada por meio da história.

E conclui sua crítica aos direitos fundamentais como valores, afirmando que

28 A autora cita como exemplos das mencionadas circunstâncias “as câmaras de gás na Alemanha nazista, as múltiplas formas de violação da dignidade humana nas experiências totalitárias do leste europeu, a tortura e os desaparecimentos nas ditaduras militares latino-americanas”, as quais, quando praticadas sob uma aparência de normalidade, aniquilam qualquer confiança nas tradições e impedem uma vida “consciente’’ sem desconfiar de toda continuidade que se afirme indiscutivelmente e que pretenda extrair sua validade desse caráter não questionável. (CITTADINO, 2001, p.105).

69

os direitos fundamentais são normas legítimas de caráter obrigatório e não podem ser vistos como valores que, ao contrário das normas, estabelecem relações de preferência. De outra parte, mesmo na hipótese de um contexto histórico favorável –quando podemos confiar nas tradições – a visão teleológica dos direitos fundamentais, ao considerá-los uma expressão valorativa de seu próprio sistema cultural e, portanto, um bem preferido e compartilhado por todos, parece desconhecer as relações de poder assimétricas presentes nas democracias contemporâneas. Afinal, as intervenções ilegítimas do poder social, engendradas tanto pelos imperativos do poder administrativo-burocrático como pelos mecanismos do mercado, constituem, nas sociedades contemporâneas, limites à visão teleológica dos direitos fundamentais [....]. (CITTADINO, 2001, p.106)

Como adverte José Eduardo Faria, em prefácio ao livro Pluralismo, direito e justiça

distributiva, de Gisele Cittadino (2001), a globalização dos mercados e a internacionalização

do sistema financeiro, com valores como ganhos incessantes de produtividade, acumulação

ilimitada e livre circulação de capitais, contaminaram todas as demais esferas da vida social.

Bem assim, com a ampliação da pobreza e da marginalização, nem mesmo o respeito ao outro

como ser moral é reconhecido, impedindo o reconhecimento dos mesmos direitos e garantias

que cada cidadão reconhece para si. Nesse contexto, com tamanho prevalência da lógica

mercantil,

os anseios e expectativas formadas ao longo de tensos e conflitivos processos de construção e reconstrução política, em cujo âmbito o tipo de sociedade corresponde a uma certa concepção de moralidade, são sumariamente desqualificados e desconfirmados. (FARIA. In: CITTADINO, 2001, prefácio)

Não obstante, afirma o citado autor que, em reação a todas essas mudanças, impõe-se a

tentativa de retomar o debate ético, retornando-se a questões como o reconhecimento da

dignidade da pessoa humana, da manutenção das redes sociais, da atribuição ao poder público

da responsabilidade pela equalização de oportunidades, “enfim, as velhas, porém muitas vezes

esquecidas, questões de justiça distributiva e do bem comum, que vinculam Estado e

cidadania.” (FARIA. In: CITTADINO, 2001, prefácio)

As críticas aqui lançadas, muito embora aparentemente pertinentes, na verdade, não

infirmam a concepção dos direitos fundamentais como ordem de valores, haja vista que é

justamente essa retomada do debate ético o cerne da teoria da dimensão objetiva.

Esse é o argumento que justifica a opção do presente estudo pela dimensão objetiva dos

direitos fundamentais, quer na análise da sua aplicação nas relações entre particulares, quer na

abordagem do princípio da boa-fé objetiva.

3.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais

70

O reconhecimento da eficácia irradiante dos direitos fundamentais apresenta-se como

uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos mesmos direitos

fundamentais, significando que os valores que os respaldam exercem influência por todo o

ordenamento jurídico, apresentando-se como vetor de interpretação das normas legais e

vinculando o legislador, a administração e o Judiciário. Conforme afirma Daniel Sarmento

(2003, p.279)

a eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a humanização da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substancial e da justiça social, impressas no tecido constitucional.

Dos efeitos irradiante e vinculante dos direitos fundamentais, importa salientar que o

artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988 menciona que: “as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Emerge daí que

todas as disposições que definem direitos e garantias individuais, sociais e políticas são

diretamente e imediatamente vinculantes.

No que concerne à interpretação constitucional e controle de constitucionalidade, o

consectário mais importante da eficácia vinculante dos direitos fundamentais é a interpretação

conforme o direito.

Nesse tipo de interpretação, decorrente do método hermenêutico-concretizador29

reconhece-se a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, não só sob a

perspectiva de sua supremacia hierárquica, ou seja, uma supremacia formal, mas como

parâmetro de controle da constitucionalidade das leis, reconhecida como supremacia material.

Esse método de interpretação torna imprescindível que não se permita que um preceito legal

fique sem qualquer função útil ou acolha critérios e soluções absolutamente contrárias às do

legislador constituinte, significando, assim, que as leis é que devem ser interpretadas de

acordo com a Constituição e não o contrário.

29 O método hermenêutico-concretizador é definido por Canotilho (1993, p.214) como aquele que “arranca da idéia de que a leitura de um texto se inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete. A interpretação da Constituição também não foge a esse processo: é uma compreensão de sentido, um preenchimento de sentido juridicamente criador, em que o intérprete efectua uma actividade prático-normativa, concretizando a norma para e a partir de uma situação histórica concreta”. Esse método, ainda no dizer de Canotilho, assenta-se no pressuposto do primado do texto constitucional em face do problema.

71

Conforme preleciona Paulo Bonavides (2000, p.474), esse método de interpretação

constitucional30 decorre da natureza rígida da Constituição31, da hierarquia das normas

constitucionais e do caráter de unidade que a ordem jurídica necessariamente ostenta.

Essa hierarquia das normas, aliás, é o meio de atuação da própria Constituição, que não

se restringe a mecanismos de solução de conflitos entre normas dimanadas de diversas fontes,

mas abarca os valores consubstanciados no modelo constitucional vigente. Assim, o respeito à

Constituição, na visão de Pietro Perlingieri (1997, p.10), “implica não somente a observância

de certos procedimentos para emanar a norma (infraconstitucional), mas, também, a

necessidade de que o seu conteúdo atenda aos valores presentes (e organizados) na própria

Constituição.” Ainda sobre a importância da interpretação conforme a Constituição, ensina

Paulo Ricardo Schier (1999, p.145), ao tratar do conceito de filtragem constitucional, que esta

toma como ponto de partida a noção de preeminência normativa da Constituição, expressando

a idéia de que “toda a ordem jurídica deve ser lida à luz da Carta Fundamental e passada pelo

seu crivo”. Destarte, as normas que não se coadunem com os valores constitucionais devem

ser eliminadas, e essa aferição de compatibilidade deve ser feita a partir de três componentes

principais: primado da interpretação conforme com a Constituição - impondo a interpretação

das normas infraconstitucionais a partir do sentido mais concordante com a Constituição;

anulação das normas de direito ordinário desconformes com a Constituição, porquanto

inválidas e, em terceiro lugar, o reconhecimento de que as normas constitucionais aplicam-se

diretamente, salvo quando não sejam exeqüíveis por si mesmas, independentemente da

existência de lei ordinária.32

A interpretação conforme a Constituição, que teve seu desenvolvimento ligado à

jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, dá-se, para além dos limites da presunção

de constitucionalidade das leis e atos do poder público, quando entre várias possibilidades de

interpretação plausíveis e alternativas, existe alguma que permita compatibilizá-la com a

Constituição. Trata-se da escolha de uma linha de interpretação da norma entre outras tantas

que o texto comportaria, impondo-se seu aproveitamento sempre que possível, de modo a se

30 Paulo Bonavides (2000, p.474) ressalta que em rigor não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição. 31 É importante salientar que os constitucionalistas em geral apontam o princípio da supremacia da Constituição como decorrência lógica do princípio da rigidez constitucional. Contudo, no Brasil, Nagib Slaibi Filho ensina que se dá exatamente o inverso, ao entendimento de que o princípio da rigidez para a reforma da Constituição é um dos consectários da supremacia constitucional. (SLABI FILHO, 2000, p. 40).32 Sobre a questão da filtragem constitucional, da preeminência normativa da Constituição e do primado da interpretação conforme, ver Schier (1999).

72

buscar uma interpretação que não seja a mais óbvia do dispositivo. Igualmente, a

interpretação conforme a Constituição determina a exclusão da interpretação ou interpretações

que sejam contrárias à Constituição.

Feita uma análise, ainda que perfunctória, da interpretação conforme a Constituição,

cumpre assinalar que a eficácia irradiante dos direitos fundamentais assume especial

importância no Brasil, pois a Constituição de 1988 apresenta-se fortemente marcada pelos

valores de solidariedade e valorização da dignidade da pessoa humana, o que impõe a

releitura da legislação infraconstitucional, muitas vezes editada em contextos diversos, como

é o caso do novel Código Civil, que mesmo vindo à lume sob a égide do citado diploma

constitucional, ainda conserva forte influência individualista, patrimonialista e liberal, nem

sempre privilegiando a pessoa humana em suas disposições.33

Tal eficácia dos direitos fundamentais manifesta-se, sobretudo, em relação à aplicação e

interpretação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, aspecto que assume

especial relevo na presente pesquisa no que tange à interpretação do princípio da boa-fé

objetiva na legislação civil.

De outra parte, a partir do reconhecimento da eficácia irradiante, tem-se destacado o

processo de constitucionalização do Direito Civil, o que, no dizer de Daniel Sarmento (2003,

p.281), “representa verdadeira virada copernicana para esse ramo do Direito, ao infiltrá-lo

com novos valores menos individualistas e patrimonialistas e mais voltado para a tutela da

personalidade humana, nas suas múltiplas dimensões.” Ainda no paralelo dos direitos

fundamentais e relações privadas, pontifica o citado autor:

Uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante . Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante nesse sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.(grifo do autor) (SARMENTO, 2004, p.154 -158)

33 Esse o entendimento de Teresa Negreiros (1998), que por oportuno, merece ser transcrito: “O direito civil voltado para a tutela da pessoa humana é chamado a desempenhar tarefas de proteção, e estas especificam-se a partir de diferenciações normativas correspondentes a diferenciações que implodem a concepção outrora unitária de indivíduo, dirigindo-se, não a um sujeito de direito abstrato dotado de capacidade negocial, mas sim a uma pessoa situada concretamente nas suas relações econômico-sociais (é o caso, no âmbito do direto contratual, das normas de proteção do consumidor, ao locatário, ao usuário de plano de saúde etc. - as chamadas person-oriented rules).

73

Trazendo ao tema desta pesquisa, a eficácia irradiante dos direitos fundamentais

manifesta-se, sobretudo, em relação à interpretação e aplicação das cláusulas gerais e

conceitos jurídicos indeterminados, presentes na legislação infraconstitucional. Conceitos

como boa-fé, ordem pública, interesse público, abuso de direito, bons costumes, dentre tantos

outros, abrem-se, pela sua plasticidade, a uma verdadeira reconstrução, edificada à luz dos

direitos fundamentais.

Por fim, releva destacar a profunda alteração dos limites entre Direito Público e Direito

Privado, o que será analisado a seguir mais detalhadamente.

3.4 A constitucionalização do direito privado

O Direito, como ciência social que é, deve ser permeável aos influxos das mudanças

sociais, pois viver é conviver e ninguém vive isolado, o que impõe a conclusão de que a

conduta do homem deve compatibilizar-se com a dos demais homens, e isso significa que

haverá uma interferência intersubjetiva de condutas. Nessa toada, o Direito surge como um

conjunto de princípios e regras destinados a ordenar a coexistência dos homens, representando

a dimensão normativa da estrutura social. Assim qualquer alteração na realidade social

implica a transformação dessa dimensão normativa e vice-versa.

A definição positivista de que Direito é norma, representando uma disciplina autônoma

em relação à ordem social, já há muito não atende aos reclamos da sociedade contemporânea,

estando superada, o que representa profundas mudanças no Direito Civil dos dias atuais.

Segundo ensina Luis Edson Fachin (2000, p.1),

o jurista, sob pena de omissão e cumplicidade farisaica, deve captar a mensagem para o seu tempo, não lhe cabendo acastelar-se em elucubrações vãs, na ânsia de interpretar fossilizados textos legais, em função de vírgulas ou reticências. Não pode limitar-se a uma postura estática na defesa de uma ordem senil, que não assimila o impacto das exigências sociais.

No mesmo sentido assevera Pietro Perlingieri (1997, p.2) que a afirmação da autonomia

da ciência jurídica em relação à realidade social é herança que ainda pesa sobre os juristas e

que “levou à criação de uma cultura formalista, matriz de uma teoria geral do direito sem

(explícitas) infiltrações de caráter político, econômico, sociológico: como se o direito fosse

imutável, eterno, a-histórico. insensível a qualquer ideologia”.

Não obstante, até agora os civilistas em geral não aceitam sem reservas a normatividade

constitucional como fonte de padrões hermenêuticos passíveis de fundamentar as novas

74

condições sociais a que se dirige a atuação dos institutos de Direito Privado. Ao contrário,

tende-se a afirmar a separação entre Direito Público e Direito Privado, como campos

normativos que traduzem interesses dicotômicos, tudo isso se refletindo na dogmática civil

clássica, que não apresenta uma abertura para as mudanças ocorridas.34

A separação entre Direito Público e Direito Privado, que remonta ao Direito romano,

assumiu para a Escola da Exegese o caráter de ramos rigidamente separados, pois, segundo

essa Escola, os princípios constitucionais equivaleriam a normas políticas, destinadas ao

legislador e, apenas excepcionalmente, ao intérprete das normas de Direito Privado. Gustavo

Tepedino (2000, p.3) ressalta que o equívoco de tal concepção, até hoje, é bastante difundida,

acaba por relegar a norma constitucional, situada no vértice do sistema a elemento de integração subsidiário, aplicável apenas na ausência de norma ordinária específica e após terem sido frustradas as tentativas, pelo intérprete, de fazer uso da analogia e da regra consuetudinária.

Todavia, a despeito da crítica apresentada, alerta o autor que tal entendimento

apresentava-se consentâneo com a lógica individualista oitocentista, tendo o Código Civil

como referência legislativa exclusiva no âmbito das relações de Direito Privado.

(TEPEDINO, 2000, p.3)

A vinculação entre as premissas do Estado Liberal e o surgimento das codificações de

Direito Privado é bastante estreita. Como foi visto no capítulo precedente, o Estado Liberal

surge para salvaguardar a liberdade individual frente ao seu maior inimigo, representado então

pelo Estado Absolutista, e isso se traduz na idéia de que o Direito vincula positivamente o

Estado, o qual só pode fazer o que a lei expressamente permite, e negativamente o cidadão,

que pode fazer tudo que não esteja proibido em lei. Um dos postulados básicos do liberalismo

assenta-se na separação entre Estado e sociedade civil, aquele sem qualquer possibilidade de

interferência no jogo das forças sociais.

Segundo a concepção liberal, a posição do Estado na economia tem um conteúdo

eminentemente negativo, pois a riqueza e o bem-estar coletivos são o somatório da riqueza e

bem-estar individuais, que, por sua vez, resultam da atividade particular, sem qualquer

intervenção do Estado.

34 Segundo explica Teresa Negreiros (2001, p.344), existe uma tendência a se “buscar nos instrumentos clássicos da dogmática civil frestas que não chegam a iluminar a amplitude das mudanças ocorridas, restando comprometida a sua abordagem sistemática. A ineficiência ou, quando menos, a insuficiência de tais instrumentos dogmáticos deve-se, a nosso ver, à invalidade do seu postulado fundamental, qual seja, a demarcação de uma linha divisória precisa entre o direito público e o direito privado, como dois campos normativos que traduzem interesses, por natureza, dicotômicos”.

75

A liberdade, no liberalismo, é considerada uma função social, porquanto atua como

ponto de equilíbrio entre os interesses particulares e o interesse geral, então satisfeito. Ana

Prata (1979/80, p.27), citando Adam Smith, resume essa visão de que a soma dos interesses

individuais leva à satisfação do interesse geral, afirmando que

o assegurar a liberdade individual garante a racionalização do processo produtivo e distributivo dos bens e da satisfação das necessidades: o empresário livre, que corre o risco da sua actividade por sua conta exclusiva, organizará da melhor forma a sua produção, com base na sua própria experiência e nos seus próprios problemas, pois o interesse em que a empresa funcione em condições ótimas é o seu interesse exclusivo e ninguém melhor que ele é juiz das condições de sua prossecução; o consumidor, por seu lado, é o melhor juiz das suas próprias necessidades, pelo que a procura livre no mercado é o melhor orientador da produção, e, simultaneamente, das condições da oferta, pois, num mercado fluido, cada produtor tem de lutar para colocar os seus produtos a preço sempre mais baixo e com qualidade cada vez maior, sem o que sua produção não será comprada.

A partir dessa perspectiva, a sociedade era decomposta em sociedade civil, definida

como o conjunto dos indivíduos privados e o Estado, assim como decomposto era o

ordenamento jurídico, apresentando-se, de um lado o ius privatum, como direito regulador da

sociedade civil, e o ius publicum, como direito regulador do Estado.

Essa a explicação, segundo Juan Maria Bilbao Ubillos (1997, p.237), para o fato de ter o

Código Civil se transformado no centro do sistema normativo, “tornando-se a verdadeira carta

constitucional da sociedade autosuficiente” ao assegurar a autonomia da vontade e a liberdade

contratual como fontes de regulação da sociedade privada.

Assim, o Direito Privado constituía-se em autêntico baluarte da liberdade, sendo certo

que essa liberdade burguesa não era uma liberdade política, e sim uma esfera de autonomia

sem intromissão do Estado em relação, sobretudo, à propriedade. Por tal razão afirmou

Konrad Hesse (1995, p.38) que o Direito Privado regula as relações dos particulares do ponto

de vista da liberdade individual, à margem das relações políticas e das Constituições,

concluindo que “llegó el Derecho Privado a ser el Derecho constitutivo de la sociedad

burguesa, junto al cual el Derecho Constitucional tenia una importancia secundaria.”

Nesse mesmo sentido é a conclusão de Ana Prata (1979/80, p.33), ao afirmar que a

Constituição traduzia a forma de organização do poder político, definindo os limites à

atividade do Estado, ao tempo em que garantia os cidadãos contra os abusos daquele, ou seja,

“daí que a Constituição não fosse, não a lei fundamental da ordem jurídica de uma

colectividade politicamente organizada, mas sim e apenas o estatuto da organização política

da sociedade.”

76

O modelo liberal, com sua filosofia abstencionista, de desconsiderar as demandas de

igualdade real, entra em crise, quando a consciência da marginalização se generaliza e essa

população excluída passa a organizar-se politicamente para combater o modelo vigente.

Exatamente sob os influxos do princípio democrático, o Estado passou a intervir ativamente

na ordenação das relações sociais, de modo a que estas se ajustem, na medida do possível, aos

valores consagrados na própria Constituição. Sobre a questão ensina Jurgen Habermas (1984,

p.173) que

por um lado, concentração de poder na esfera privada do intercâmbio de mercadorias e, por outro, a esfera pública estabelecida, com a sua institucionalizada promessa de acesso a todos, reforçam uma tendência dos economicamente mais fracos: contrapor-se, agora com meios políticos, a quem seja superior graças a posições de mercado.[...] Apoiadas nessa possibilidade formalmente permitida de participação política, as camadas pobres, bem como as classes ameaçadas de pauperização, procuravam conquistar uma influência que deveria compensar politicamente a igualdade de oportunidades que é violada no setor econômico.

No que concerne aos direitos fundamentais e o Direito Privado, observa-se que muitas

são as causas que vão gradualmente dando ensejo à intervenção do Estado nas relações

privadas. Primeiramente, passou o Estado a atuar como garantidor da concorrência do

mercado, o que não conseguiu impedir que este se afastasse do modelo concorrencial e

assumisse uma dimensão monopolista. Tal fato evidenciou que a simples garantia formal de

igualdade, consubstanciada na autonomia individual, não assegurava a realização das

necessidades do homem. Assim, o Estado vai paulatinamente assumindo tarefas de realização

do bem-estar dos cidadãos e de garantidor de valores mínimos da sociedade, à medida que

tenta minimizar as conseqüências que as desigualdades reais acarretam.

É dessa forma, sob os influxos da idéia de igualdade e do princípio democrático, que a

concepção liberal dos direitos fundamentais passa por acentuadas transformações, pois, ao

lado de uma dimensão subjetiva, a qual resguardava o indivíduo contra o abuso do Poder do

Estado, os direitos fundamentais assumem uma dimensão objetiva, lastreada, como foi visto

anteriormente, na noção de igualdade de todos no uso e fruição de tais direitos. A democracia

passa então a ser uma condição e uma garantia dos direitos fundamentais de própria liberdade

do homem.

Com o trânsito do Estado Liberal para o Estado Social de Direito35 se desmascara a

ficção que vinculava o desfrute da liberdade na esfera social somente à afirmação do princípio

da igualdade jurídica. Segundo Bilbao Ubillos (1997, p.264) “el Estado no se limita a su 35 Sobre a questão da mudança de paradigmas do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, chamamos a atenção para o capítulo II do presente estudo.

77

función tradicional de garante das libertades, asume también el papel de promotor de esas

mismas libertades, para que no se conviertan en meras fórmulas vacías y pueden ser

disfrutadas por todos.”

Neste ponto assume relevo a relação entre o Direito Constitucional e o Direito Privado,

pois na sociedade industrial organizada como Estado Social multiplicam-se relações que não

podem ser enquadradas nem como Direito Público nem Direito Privado, constatando

Habermas que após a Primeira Guerra Mundial,

a evolução jurídica também acompanha até certo ponto a evolução social e acarreta o surgimento de uma complicada mistura de tipos que, de início, foi registrada sob a rubrica publicização do direito privado, mais tarde aprendeu-se a considerar o mesmo procedimento também sob o ponto de vista imerso, o da privatização do Direito Público: elementos do Direito Público e elementos de Direito Privado se interpenetram até a incognoscibilidade e a indissolubilidade. (HABERMAS, 1984, p.178)

As mudanças das relações entre o Direito Privado e o Direito Constitucional expressam

uma transformação nas tarefas, na qualidade e nas funções de cada um dos setores jurídicos. A

relação entre ambos os ramos do Direito alterou-se de uma inicial autonomia para uma

complementariedade e dependência. É o que conclui Konrad Hesse (1995, p.81):

Si la valoración precedente de la naturaleza y de las tareas del actual Derecho Constitucional y del actual Derecho Privado es correcta, ambos aparecen como partes necesarias de un orden jurídico unitario que recíprocamente se complementan, se apoyan y se condicionan. En tal ordenamiento integrado, el Derecho Constitucional resulta de importancia decisiva para el Derecho Privado y el Derecho Privado de importancia decisiva para el Derecho Constitucional.

A clássica nitidez caracterizadora da distinção entre Direito Público e Direito Privado

encontra-se hoje arrefecida com a crescente publicização do direito aplicado às relações

interprivadas e uma privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado. No dizer de

Ana Prata (1979/80, p.52-53), a crise de separação entre o Direito Público e o Direito Privado

vai além da simples reorganização de categorias conceituais: “a orientação mais comum é a

que se pode reconduzir à fórmula ‘publicização do direito privado’, mas também não falta

quem fale em recontratualização da vida econômica, isto é, numa espécie de reprivatização do

direito público.”

Não obstante, vale analisar com um pouco mais de detalhamento o que se chama na

doutrina de constitucionalização do Direito Civil. Seria lícito afirmar que, a partir do processo

de objetivação dos direitos fundamentais e do arrefecimento das fronteiras entre o Direito

Privado e o Direito Constitucional, ocorre um processo de publicização do Direito Civil?

78

Uma análise da aproximação do Direito Civil e do Direito Constitucional exige, de

início, uma avaliação do conceito de Constituição como norma jurídica, bem como da

importância da normatização dos princípios jurídicos, pois, na lição de Teresa Negreiros

(2001, p.348), “parece correto afirmar que a cruzada empreendida no sentido de normatização

dos princípios – pressuposta pelos estudos da doutrina especializada – encontra estreitas

conexões com a consolidação da nova ordem constitucional.” Registre-se, por oportuno, que a

teoria dos princípios teve o importante papel de flexibilizar a interpretação dos Códigos e da

legislação de Direito Privado, textos esses que pretendiam regulamentar, de maneira

exaustiva, as relações de Direito Privado. Todavia, fazer referência à supremacia da

Constituição como ordem de valores é fazer referência aos princípios. Como resume Gustavo

Kloh Muller Neves (2002, p.14), além do fato de que os princípios são fundamentais para

uma funcionalização dos institutos jurídicos de Direito Privado,

qualquer bandeira levantada por uma ordem justa em uma sociedade cujos patamares jurídicos contemplem o pluralismo não pode prescindir dos princípios, os quais, metodologicamente, são de todo adequados para a flexibilidade e as quebras necessárias em um sistema que contemple a discordância.

Segundo Joaquim Arce y Florés-Valdez (1991, p.22 e ss), a Constituição, tomada em

sua base jurídica, significa uma superação de sua antiga condição de mero documento

político, de origem popular ou comunitária e que se limita a garantir os direitos individuais e a

separação de poderes, concepção esta que remonta ao final do Séc. XVIII. A Constituição, de

um lado, configura e ordena os poderes por ela construídos e, de outro, estabelece os limites

do poder e o âmbito das liberdades e dos direitos fundamentais. E sintetiza o referido autor

que

La Constitución, de esta suerte, limitando al poder, reconoce u otorga verdaderos derechos al ciudadano frente a la organización estatal. Y, porque así lo determina, vincula también, además de los poderes públicos, a los propios ciudadanos, erigiéndose, en definitiva, en verdadera norma jurídica de carácter general. Logra, pues, superar una condición meramente política, no ausente pero tampoco exclusiva y, desde luego, compatible con aquella condición normativa. (FLÓRES-VALDEZ, 1991, p.23)

A Constituição situa-se, pois, no ápice do ordenamento jurídico, acima, portanto, das

demais normas desse ordenamento, principalmente porque incorpora o sistema de valores

essenciais de convivência da sociedade, que vão nortear e informar a interpretação desse

ordenamento, nos limites estabelecidos pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais,

acima exposta. Sobre o tema afirma Gustavo Tepedino (2000, p.11) que o legislador

contemporâneo deve valer-se de prescrições que consagrem expressamente valores a serem

preservados, princípios axiológicos com teor normativo e eficácia imediata, levando todas as

79

demais regras do sistema a serem interpretadas de maneira homogênea e de acordo com um

critério objetivamente definido.36

A força normativa dos princípios e a Constituição como um conjunto de regras e

princípios, na esteira do estudo realizado no capítulo I, é definida por Gomes Canotilho

(1993) como uma perspectiva teorético-jurídica, tendencialmente principalista do sistema

constitucional, como sistema processual de regras e princípios, assumindo particular

importância, não só porque fornece suportes rigorosos para solucionar certos problemas

metódicos, mas porque permite respirar, legitimar, enraizar e caminhar o próprio sistema.37

Concorda-se com Gustavo Muller Neves (2002) quando este afirma que em uma ordem

constitucional pluralista como a brasileira, o papel dos princípios é fundamental para a efetiva

consecução dos objetivos do Estado Democrático de Direito, voltado para a valorização da

pessoa humana e a criação de uma sociedade justa, livre e solidária. E o que se depreende do

excerto a seguir colacionado

é inegável que a renovação e a funcionalização do Direito Civil, voltadas para a valorização da pessoa, e a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, não prescindem da teoria dos princípios como marco teórico, nem da Constituição como repositório primaz destes princípios.

Em uma ordem constitucional que admita uma interpretação pluralista e aberta, como a nossa, o conhecimento do papel dos princípios por parte dos operadores do direito é imprescindível. Apenas assim poderemos dar o correto atendimento aos objetivos fundantes de nosso Estado Democrático de Direito, que são compromissórios, amplos, flexíveis e normativos, e, portanto, princípios.” (NEVES, 2002, p.16)

O reconhecimento dessa força normativa dos princípios constitucionais consolida a

noção de que o Direito Privado só pode ser interpretado à luz dos princípios como o da

solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade, entre

outros, os quais foram consagrados na Constituição de 1988, princípios que imprimem novos

contornos às situações estritamente patrimoniais prevalentes no Código Civil em obséquio a

36 Eis o que diz na íntegra o nominado civilista: “o legislador contemporâneo, instado a compor, de maneira harmônica, o complexo de fontes normativas, formais e informais, nacionais e supranacionais, codificadas e extracodificadas, deve valer-se de prescrições narrativas e analíticas, em que consagram expressamente critérios interpretativos, valores a serem preservados, princípios fundamentais como enquadramentos axiológicos com teor normativo e eficácia imediata, de tal modo que todas as demais regras do sistema, respeitados os diversos patamares hierárquicos, sejam interpretadas e aplicadas de maneira homogênea e segundo conteúdo objetivamente definido.” (TEPEDINO, 2000, p.11).37 Na lição de Gomes Canotilho (1993, p.170) “a respiração obtém-se através da textura aberta dos princípios; a legitimidade entrevê-se na idéia de os princípios consagrarem valores (liberdade, democracia, dignidade) fundamentadores da ordem jurídica; o enraizamento prescruta-se na referência sociológica dos princípios a valores programas, funções e pessoas; a capacidade de caminhar obtém-se através de instrumentos processuais e procedimentais adequados, possibilitadores da concretização, densificação e realização prática (política, administrativa, judicial) das mensagens normativas da constituição”.

80

situações existenciais, em que o sujeito passa a ser o centro do sistema normativo.

Pietro Perlingieri (1997, p.23), em lapidar síntese, exprime o sentimento acerca da

necessidade de mudança na aplicação e interpretação das normas de Direito Privado,

baseando-se na realidade de seu país, o que não torna a lição menos oportuna para o caso

brasileiro, como se depreende do texto transcrito:

É impossível verificar o que de relevante aconteceu nestes últimos anos na justiça civil e na cultura jurídica, tão condicionadas no nosso país por um desenvolvimento econômico nem sempre apreciável pela qualidade e assim (tão) profundamente diversificado e desequilibrado. Não é suficiente evidenciar a grave diferença entre as garantias formais e potenciais e aquelas que concretamente encontram atuação na jurisprudência vivente, na história de todos os dias, que é sim, história da empresa, dos problemas produtivos, distributivos e financeiros, mas é também história dos desfavorecidos, dos tantos marginalizados, por escolha ou necessidade do ciclo produtivo. [...] É necessário que, com força, a questão moral entendida como efetivo respeito à dignidade da vida de cada homem e, portanto, como superioridade deste valor em relação a qualquer razão política da organização da vida em comum, seja reposta ao centro do debate na doutrina e no Foro, como única indicação idônea a impedir a vitória de um direito sem justiça.

Admite-se, assim, que a Constituição vincula tanto o legislador, ao editar normas de

Direito Privado, quanto o juiz e os demais órgãos estatais, quer no que tange às relações de

família, quer nas novas concepções acerca da função social do contrato ou da propriedade

privada. A Constituição possui “uma força geradora do Direito Privado”. (FACHIN, 2000, p.

72).

Nesse processo de aplicação da Constituição nas relações com o Direito Privado,

assume o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1°, III, da Constituição

Federal, um valor central, galgando a posição de “valor-fonte de todos os

valores.” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 181)

Quando o tema é o princípio da dignidade da pessoa humana, a doutrina parece

convergir em relação ao reconhecimento de sua posição de supremacia, pois é a dignidade da

pessoa humana o valor supremo para cuja proteção se orienta ideologicamente o sistema

jurídico. E a possibilidade de reconhecimento das diferenças, em nome de um princípio

democrático, deixa de ser um mero sistema político e passa a revestir a própria noção de

Estado de Direito, pois este não é somente aquele que cumpre os princípios formais de

legalidade, do equilíbrio entre os poderes e da publicidade. É, antes de tudo, “o Estado que

reconhece e protege o exercício mútuo das liberdades.” (RABENHORST, 2001, p.47)

E conclui Eduardo Rabenhorst (2001, p.48-49) sobre a dignidade da pessoa humana e a

81

democracia:

O que caracteriza a democracia é exatamente a falta de fundamentos absolutos (transcendentes e religiosos) e a diversidade de valores. Se existe algum fundamento último para democracia, ele não pode ser outra coisa senão o próprio reconhecimento da dignidade humana. Mas tal dignidade é, ela própria, destituída de qualquer alicerce religioso ou metafísico. Trata-se apenas de um princípio prudencial, sem qualquer conteúdo pré-fixado, ou seja, uma cláusula aberta que assegura a todos os indivíduos o direito à mesma consideração e respeito, mas que depende, para sua concretização, dos próprios julgamentos que esses indivíduos fazem acerca da admissibilidade das diversas formas de manifestação da autonomia humana. Assim concebida, a dignidade humana deixa de ser um conceito descritivo para tornar-se o próprio ethos da moralidade democrática.

Por fim, cumpre registrar que uma das discussões mais intrigantes advindas da aceitação

da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e de sua eficácia irradiante consiste naquela

referente à aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, pois a

depender da corrente doutrinária que se adote, exsurgirá o reconhecimento de uma eficácia

imediata ou mediata desses direitos. Advirta-se, entretanto, que independentemente da

aceitação de uma possível eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações inter-

privadas, interessa, para um posterior cotejo com o princípio da boa-fé objetiva, a aplicação

de tais direitos por intermédio da interpretação das cláusulas abertas, ínsitas na legislação

infraconstitucional. Esse o tema do próximo capítulo, qual seja, a análise dogmática das

correntes teóricas acerca da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.

82

4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS: ALGUNS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS

4.1 Prolegômenos

Das conseqüências advindas da discussão acerca da publicização do Direito Privado ou

mesmo da superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, certamente uma

das mais importantes e que mais tem provocado discussões doutrinárias diz respeito a uma

vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, seja direta ou indiretamente, ou,

melhor dizendo, até que ponto influi a Constituição na órbita privada, no que tange à eficácia

dos direitos fundamentais. As mudanças políticas operadas na sociedade e no Direito

Constitucional trouxeram à baila a certeza de que os contornos clássicos de definição e

aplicação dos direitos fundamentais não mais atendem aos reclamos de uma sociedade

complexa como a sociedade contemporânea. Cada vez mais autores estão convencidos da

unidade do ordenamento jurídico e da imperiosa necessidade de proteger as liberdades

também frente aos poderes de fato, baseados na noção de que a tutela dos direitos

fundamentais seria incompleta se não protegesse de algum modo os indivíduos frente aos

ataques que provenham de sujeitos privados, discussão que, como visto anteriormente, sempre

foi obscurecida pela definição clássica de vinculação somente do poder público aos direitos

fundamentais.

Na feliz lição de Vieira de Andrade (1987, p.274), o Estado, a partir de sua concepção

social e democrática, vai aparecer na vida social metamorfoseado em várias figuras jurídicas

e, em alguns casos, equiparado a um sujeito privado. De outra parte, algumas entidades

privadas passaram a exercer tarefas de interesse coletivo ou passaram a atuar de forma

decisiva nas condutas dos cidadãos em áreas sociais, o que ensejou um arrefecimento da

dicotomia público versus privado, e, em conseqüência, na diferença entre Direito Público e

Direito Privado como critério distintivo da relevância dos direitos fundamentais. Assim, a

importância do tema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações particulares surge,

de acordo com o citado constitucionalista, a partir de uma dupla abordagem, consubstanciado

em duas direções concorrentes: a primeira diz respeito aos direitos fundamentais como

princípios constitucionais que não podem deixar de aplicar-se em toda a ordem jurídica,

inclusive em relação ao Direito Privado, o que foi amplamente analisado no capítulo

antecedente, a partir do estudo da dimensão objetiva; e a segunda privilegia a noção de que

existe a necessidade de proteger os particulares não apenas perante o Estado, mas também

perante outros indivíduos ou entidades privadas que, pelo menos, estejam equiparadas a

verdadeiros poderes, jurídicos ou de fato.

É nesse sentido que Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da Silva (1982, p.43) afirma

que, a partir do crescimento horizontal do Estado e do alargamento do rol dos atores políticos,

e com a introdução do sufrágio universal, houve uma multiplicação das instâncias mediadoras

das relações entre o indivíduo e o Estado, acarretando para essas relações uma dimensão

coletiva, fruto da mediação de organismos como partidos políticos, sindicatos e associações,

que, entre outros, “não se limitam a pretender conquistar ou influenciar o poder, mas que vão,

elas próprias, adquirindo, gradualmente, um estatuto de poder”. Nesse contexto, o poder deixa

de ser um privilégio do Estado e passa a ser compartilhado pela sociedade, o que impõe a

discussão acerca da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, em

contraposição à clássica concepção de validade somente contra o Estado, uma vez que não faz

sentido limitar tal aplicação se este (o Estado) deixou de ser a única fonte de poder

potencialmente violadora dos direitos fundamentais do cidadão.

Afora os entes coletivos de intermediação entre indivíduos e Estados, cumpre registrar

também a pressão de grupos ou empresas multinacionais ou transnacionais no exercício dos

direitos fundamentais individuais, dentro de um contexto globalizado. Globalização, segundo

ensina Habermas (2001, p.84), “caracteriza a quantidade cada vez maior e a intensificação das

relações de troca, de comunicação e de trânsito para além das fronteiras nacionais” alertando

o autor para o fato de que o conceito de globalização descreve um processo e não um estado

final. Ainda segundo o autor alemão, a dimensão mais importante da globalização constitui a

globalização econômica, caracterizada pelo fato de que

as transações econômicas globais, comparadas às atividades voltadas para o nacional, movimentam-se em um nível nunca antes atingido e influenciam – de modo imediato e mediato – as economias nacionais em escala até então desconhecida. (HABERMAS, 2001, p. 85).

84

Como consectário da globalização econômica, afirma o autor que há uma unanimidade

quanto à ascensão vertiginosa da influência das empresas transnacionais com suas cadeias de

produção mundiais (HABERMAS, 2001, p.85).

Assim, o fenômeno do poder, como manifestação de uma situação de desigualdade, não

é prerrogativa do Estado, mas inerente a toda a organização social. Esse poder já não está

mais concentrado no aparato estatal, mas disseminado na sociedade. Juan Maria Bilbao

Ubillos (1997, p.242) afirma que o poder, que coloca um sujeito ou grupo em condições de

influir eficazmente no comportamento de outros, é precisamente a capacidade de determinar

ou condicionar de algum modo a conduta de outras pessoas.

Nesse contexto é que se torna importante a proteção dos direitos fundamentais do

cidadão não somente em face do Estado, mas em relação a todas as situações de poder. Sobre

a questão, afirma Vasco Manoel Pereira da Silva (1982, p.43):

Na verdade, tendo sido os direitos fundamentais concebidos para a defesa do cidadão face ao poder e tendo deixado este de ser privilégio do Estado, não faria, mais, sentido, não alargar a proteção dos cidadãos através dos direitos fundamentais a todas as situações de poder. A liberdade do cidadão contra o poder não se pode dirigir, apenas, contra o poder do Estado, mas, também, contra o poder econômico, o poder empresarial, o poder sindical, o poder da comunicação social, etc.

O exercício dos direitos fundamentais do cidadão frente ao poder dos órgãos do Estado

se encontra assegurado de forma institucional e procedimental por meio das garantias

fundamentais da Constituição do Estado de Direito e da legislação infraconstitucional. Assim,

na defesa contra o abuso do poder estatal, os indivíduos contam com grande aparato

constitucional e legal de meios de salvaguarda de seus direitos, inclusive judiciais, o que

enseja a conclusão de que “el poder estatal ha perdido así sustancialmente su aspecto

terrorífico y amenazador para el ciudadano” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.84).

Noutra toada, a segurança da liberdade do cidadão frente ao poder social não obedece

ao mesmo regramento, até mesmo pelo fato de que a liberdade geral e igual para todos é

abstrata e não real. Sobre a questão preleciona Böckenförde (1993, p.85) que

la moderna sociedad, en la forma que se ha hecho realidad por obra y desde la Revolución Francesa, recibe su constitución fundamental en el ámbito socioeconómico desde una triple garantía jurídica: de la igualdad jurídica, de la libertad de adquisición y de la garantía de la propiedad adquirida. Ciertamente, esta constitución fundamental no asegura aún, ciertamente, desde si misma la libertad y la posibilidad de desarrollo reales, ya que la libertad, como libertad de la personalidad general e igual para todos, continua siendo abstracta: solo oportunidad y posibilidad.

85

E continua o mencionado autor, afirmando que as relações socioeconômicas de poder

podem impedir o surgimento da liberdade como liberdade real, fazendo com que não se possa

verificar a realização da liberdade juridicamente garantida. E isso acontece quando o

indivíduo ou grupos inteiros de pessoas não dispõem de quase nenhuma segurança e

independência social, de maneira que lhes faltam os pressupostos para a realização de sua

liberdade jurídica. E conclui Böckenförde (1993, p.85):

para que exista libertad para todos, el Estado mismo debe también canalizar, delimitar, más allá de la garantía jurídica formal de la libertad, el poder social existente o en formación, e impedir que ponga en juego por entero su superioridad frente a los no-poderosos, y ahogue la libertad jurídica de estos. Solo así se puede producir, al menos de manera aproximada, ‘la igualdad de los puntos de partida’, entendida como la oportunidad para la realización de la libertad.

Todavia, a própria realização da liberdade jurídica igual para todos traz em si novas

desigualdades sociais, na medida em que os próprios indivíduos são diferentes. Pretender

anular as diferenças individuais em nome de uma liberdade real de desenvolvimento do

indivíduo é anular a própria liberdade, pois liberdade significa necessariamente a assunção da

desigualdade social. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.86).

Impõe-se, pois, a conclusão de que o princípio da legalidade, em seus contornos

clássicos, está, de fato, a exigir uma releitura e ampliação em face do poder privado e das

desigualdades sociais. Com isso preconiza-se que as normas constitucionais devem ser

aplicadas não somente em relação ao Estado e aos agentes do Poder Público, mas também aos

particulares.

A liberdade geral, sob pena de tornar-se cláusula vazia, deve ser protegida mediante a

salvaguarda dos direitos fundamentais.

As relações assimétricas de poder representam limites ao pleno exercício dos direitos

fundamentais pelos cidadãos. Tais relações são caracterizadas pelas intervenções ilegítimas do

poder social, quer pelo poder administrativo-burocrático, quer pelos mecanismos de mercado,

e põem em risco a visão teleológica dos direitos fundamentais, ou seja, a visão segundo a qual

tais direitos são considerados “uma expressão valorativa de seu próprio sistema cultural e,

portanto, um bem preferido e compartilhado por todos.” (CITTADINO, 2001, p.106).

Ainda na seara da obrigação de proteger os cidadãos nas relações privadas, outra

realidade não pode ser desconsiderada: a ameaça dos poderosos que controlam os

mecanismos do mercado de produção e de consumo, na forma denunciada por Carlos Roberto

86

Siqueira Castro (2003, p.237), que em síntese muito oportuna, assim se manifesta:

tendo a desigualdade em todas as escalas se tornado a argamassa de sustentação das sociedades na era pós-industrial, a implantação da segregação entre indivíduos e grupos que detêm o poder gerou o surgimento de uma nova fonte de ameaça social: a ameaça dos poderosos, que controlam os mercados de produção e consumo de que depende a vida humana, contra a multidão de debilitados social e economicamente que se esfola nas engrenagens da sobrevivência na sociedade de massas. Na verdade, as ameaças que hoje o Estado faz pesar sobre o exercício dos direitos humanos tornam-se cada dia mais secundárias nas nações de desenvolvimento cultural e político, comparada as agressões que os indivíduos e detentores de poder social fazem pesar sobre as liberdades daqueles destituídos de influência ou sem condições materiais de participar minimamente da concorrência pela vida em padrões aceitáveis de dignidade.

Tal fato, e isso interessa muito especialmente ao desenvolvimento do tema da boa-fé

objetiva, conforme se verá adiante, enseja a conclusão de que, de um lado os detentores do

poder social podem não só impor sua própria vontade em uma situação jurídica concreta,

como se torna evidente que as partes envolvidas nos pactos não possuem a mesma liberdade

para discutir e estabelecer as cláusulas pactuadas e exigir seu cumprimento, mormente quando

a uma das partes não resta outra alternativa a não ser aceitar uma proposta ou condições

impostas unilateralmente, caso típico dos contratos de adesão, tão comuns nos dias atuais. Na

dicção de Juan Maria Ubillos (1997, p.244-245), “el ejercicio de la libertad contractual por

el contratante en posición de superioridad anula la libertad de la parte más débil, que se

encuentra en un estado de necesidad”.

Dessa forma, o poder privado manifesta-se como tal nas situações em que haja uma

assimetria entre as partes, de modo a estabelecer-se, de um lado, uma relação de dominação

de uma das partes, quer por razões econômicas ou sociais, e, de outro, de sujeição da parte

hipossuficiente.

O aspecto mais inquietante na análise do poder social é que, diferentemente do poder

público, que tem suas decisões controladas pelo Judiciário, aquele tende a receber uma certa

dose de impunidade em relação a eventuais abusos, em nome da autotutela de determinados

poderes privados. Isso porque existe uma tendência de subtrair suas decisões do controle

judicial.

Assim, mister reconhecer que as relações entre os cidadãos e o Estado não esgotam a

área de conflitos entre o poder e a liberdade do indivíduo. Não é demais lembrar que o poder

de influência e comando na vida dos cidadãos já não é mais monopólio do Estado e sim de

outros centros de comando social, que decidem sobre o mercado de bens e serviços

87

indispensáveis à vida humana e, por conseguinte, sobre a existência dos indivíduos e da

coletividade.

Como arremata Juan Maria Ubillos (1997, p.250), em se tratando de aplicação dos

direitos fundamentais nas relações privadas,

El derecho no puede ignorar el fenómeno del poder privado. Tiene que afrontar esa realidad y dar una respuesta apropiada, que no podrá venir, desde luego, por la vía de una adhesión incondicional al dogma de la autonomía privada. La sacralización de este principio, que hoy aparece seriamente erosionado en la experiencia del tráfico jurídico privado, ha servido tradicionalmente para apuntalar la inmunidad de estos poderes, privando de garantías efectivas a quienes ven menoscabada injustificadamente su libertad.

Por fim, sobre o exercício de poder privado e a necessidade de extensão da eficácia dos

direitos fundamentais também nas relações privadas, cumpre lembrar que não se pode admitir

que existam duas concepções acerca da proteção dos direitos do homem, uma pública e outra

privada. Explicando melhor o raciocínio, não se pode admitir que o homem tenha seus

direitos resguardados contra o Estado e que nas relações sociais, com seus semelhantes, não

possa se valer da mesma proteção.

Tal entendimento equivaleria a legitimar a contraposição de duas éticas baseadas no

mesmo fundamento da dignidade humana: a ética pública, vinculada ao respeito dos direitos

fundamentais, ao lado da ética privada, liberada de semelhante dever. (CASTRO, 2003, p.

240).

Noutro dizer, a resposta pura e simples à questão da vinculação dos entes privados aos

direitos fundamentais traz mais inquietações do que certezas. Hoje, doutrina e jurisprudência,

tanto pátria quanto alienígena, não apresentam dissensão no que concerne aos ditos efeitos

horizontais dos direitos fundamentais. Existe, de certa maneira, um sentimento constitucional

generalizado de que o Direito Privado, ainda que com regramentos e contornos diferentes

daqueles de Direito Público, não pode existir como um “gueto” infenso aos princípios

insculpidos no texto constitucional, sobretudo quando a questão versa sobre o reconhecimento

e a observância do princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, primeiramente cabe assinalar que se os direitos fundamentais surgiram como

forma de proteção dos indivíduos frente ao poder do Estado, qual seria o fundamento apto a

justificar a extensão dessa proteção às ações privadas? Tal questionamento inicial resta

superado a partir das considerações tecidas acima em relação ao poder privado e da forma

como o mesmo pode interferir na vida dos indivíduos e das coletividades, merecendo,

88

portanto, a proteção quanto a eventuais abusos. Contudo, se o fundamento de extensão da

proteção constitucional dos direitos fundamentais é a necessidade de proteção contra os

abusos do poder privado, resta estabelecer o modo como se deve dar a propalada vinculação:

se de maneira direta ou indireta, o que será analisado nos tópicos que se seguem.

Um segundo ponto a ser examinado diz respeito à convivência da racionalidade própria

do direito privado com as técnicas de proteção dos direitos fundamentais. Como

compatibilizar a proteção pública a tais direitos e à autonomia da vontade individual, que se

apresenta como um dos pilares dessa mencionada racionalidade do Direito Privado? E

compatibilizados os mecanismos de atuação de um e outro sistema, a quem estaria cometida

essa tarefa de analisar as questões relativas à vinculação? Ao legislador ou aos juízes?

Com efeito, argumenta-se que a liberdade individual encontra-se ameaçada se os

direitos fundamentais constitucionais começarem a ser impostos aos direitos de propriedade

privada e à liberdade de contratação. De outra parte, existem aqueles que, mesmo sem negar a

influência dos direitos fundamentais nas relações privadas, não admitem uma aplicação direta

dos mesmos nas relações particulares, como é o caso dos defensores da vinculação mediata,

que será objeto de estudo mais adiante.

Por fim, cabe indagar se os direitos fundamentais vinculam em graus diferentes as

entidades privadas. As entidades privadas mais dotadas de poder social estariam mais

diretamente vinculadas aos direitos fundamentais? Vale aqui, desde já, lembrar que quando se

trata de relações interprivadas, as partes envolvidas são igualmente detentoras de direitos

fundamentais protegidos constitucionalmente. Tal indagação também será objeto de análise,

sobretudo no tópico relativo às conclusões.

De toda sorte, o reconhecimento da ineficiência dos mecanismos de defesa dos cidadãos

frente ao poder privado constitui-se um dos mais fortes argumentos à necessidade de revisão

da doutrina tradicional acerca dos direitos fundamentais. A conexão das teorias relativas à

aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e o princípio da boa-fé objetiva

exsurgem a partir da existência de correntes doutrinárias diferentes que militam em favor da

aplicação direta de tais direitos nas relações privadas ou em favor de sua aplicação apenas

indireta ou mediata, a partir da intermediação do legislador e do julgador nos casos concretos.

Essas as questões que serão analisadas a seguir.

89

4.2 Teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas

O fato de reconhecer-se a aplicação dos direitos fundamentais nas relações

interprivadas, por si só, não esclarece muito acerca da amplitude, forma e força de tal

aplicação. Primeiramente, a questão da vinculação de particulares aos direitos fundamentais

foi discutida na doutrina alemã, e recebeu o nome de “eficácia externa dos direitos

fundamentais”, inspirada no direito das obrigações. Segundo Vasco Manoel Pereira da Silva

(1982), no âmbito das obrigações, a idéia de que os direitos de crédito possuíam uma eficácia

somente entre as partes envolvidas foi dando lugar à afirmação de que possuiriam um duplo

efeito: um interno, dirigido ao devedor e que lhe impõe a obrigação de saldar a prestação

assumida, e um efeito externo, segundo o qual as demais pessoas têm obrigação de respeitar o

direito de crédito, devendo, outrossim, não dificultar ou impedir o cumprimento da obrigação.

Dessa forma, “enquanto que o primeiro constitui o fulcro da própria relação obrigacional, o

segundo, obrigando os terceiros a uma atitude negativa, de respeito pelo direito constituído

pelos titulares primários da relação creditícia, aparece como seu complemento.” (SILVA,

1982, p. 41).

Entretanto, a doutrina tem combatido a terminologia “eficácia externa dos direitos

fundamentais”, pois não se trata de uma mera transposição de uma relação obrigacional

concebida entre o particular e o Estado, para a esfera das relações privadas. Trata-se, isso sim,

de saber se as normas de direitos fundamentais, válidas nas relações entre o indivíduo e o

Estado, podem ou não ser aplicadas nas relações entre particulares e em que medida essa

vinculação acontece.

A primeira corrente que despontou acerca do tema milita em favor de uma aplicação

imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, com início na Alemanha, a partir da

formulação de Hans Cari Nipperdey, posteriormente seguida por Walter Leisner, ao

estabelecer a doutrina do Drittwirkung der Grundrechte, ou da eficácia imediata ou direta dos

direitos fundamentais nas relações privadas. Segundo Nipperdey, consoante lição de García

Torres e Jiménez-Blanco (apud UBILLOS, 1997, p.271), na atual sociedade de massas,

determinados grupos dispõem de importantes parcelas de poder social e econômico, poder

este capaz de atingir os direitos de um grande número de indivíduos, sendo certo que a

Constituição garante alguns desses direitos contra a interferência indevida ou mesmo contra o

abuso do poder público, como é o caso dos direitos de liberdade de locomoção, de liberdade

90

de reunião, de inviolabilidade do domicílio, entre outros. De outra parte, existem preceitos

constitucionais que reconhecem direitos fundamentais que garantem a cada cidadão uma

esfera de liberdade que não se dirige tão-somente contra o Estado. É o caso da garantia

constitucional da dignidade da pessoa humana, do direito do livre desenvolvimento da

personalidade, da liberdade de expressão, da liberdade de consciência, da proibição de

discriminação ou da liberdade de associação, entre outros.

Ainda como prelecionam García-Torres e Jiménez-Blanco, a Constituição alemã

assegura proteção expressa aos direitos violados pelos poderes públicos, bem como somente

as violações de direitos levadas a cabo por tais poderes possuem a proteção da reclamação

constitucional. Partindo desse material normativo, Nipperdey afirma que existem alguns

direitos fundamentais que vinculam somente o poder público. Não obstante, existem normas

sobre direitos fundamentais que não só dizem respeito a uma esfera de liberdade que deve ser

protegida frente ao Estado, mas também garantem a cada cidadão um status em suas relações

com outros particulares e, em especial, com outros grupos e organizações cujo descomunal

poderio na sociedade moderna ameaça o indivíduo isolado e impotente. Mas advertem os

autores citados que a eficácia horizontal não se detém aos casos de manifesta desigualdade

entre as partes, pois o direito constitucional concede aos particulares uma determinada

posição jurídica em suas relações com outros particulares.38

A noção da aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas tem

respaldo na concepção de que os direitos fundamentais são aplicáveis a toda ordem

constitucional, em razão dos princípios da unidade da Constituição e de sua força normativa e,

dessa forma, seriam invocados por seu titular como direitos subjetivos, cujo limite de

exercício seria encontrado na dignidade da pessoa humana.

38 Segue transcrito o texto original de García Torrez e Jiménez-Blanco (1986, p.22): “existen normas sobre derechos fundamentales que no solo dicen relación a una esfera de libertad que proteger frente al Estado, sino que también garantizan a cada ciudadano un status sociales en sus relaciones jurídicas con los demás y, en especial, con los formidables Sozialmãthte, los grupos y organizadores cuyo descomunal poderío en la moderna sociedad amenaza al individuo aislado e impotente y frente a los que el Estado debe intervenir justamente para defender el inerme ciudadano. Pero la Drittwirkung no se detiene en esos casos de manifiesta desigualdad entre las partes porque el Derecho constitucional, con efecto constrictivo u obligatorio (mit zwingender Wirkung), concede a los particulares una determinada posición jurídica en sus relaciones con los otros particulares, abstracción hecha de su poder e influencia.”

91

Isso porque não se pode admitir que o direito privado permaneça à margem da

Constituição, não havendo como sustentar que os direitos fundamentais vinculem apenas o

poder público. Ingo Sarlet (2000, p.122) chegou mesmo a defender o que chamou de eficácia

absoluta dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado e das relações entre

particulares. Para tanto, buscou apoio em Smend e adotou um conceito de Constituição como

ordem de valores39da qual se podem extrair diretamente regras para resolver juridicamente os

casos concretos. (UBILLOS, 1997, p.271).

No mesmo sentido, Walter Leisner (apud UBILLOS, 1997, p.273), partindo de uma

analogia entre as formas de ingerências públicas e privadas nas esferas jurídicas protegidas

pelos direitos fundamentais, afirma que é cada vez menos relevante a situação jurídica do

agressor de tais direitos, pois a consciência jurídica não pode resultar indiferente diante do

que ocorre com as posições subjetivas de valor nas relações entre horizontais. Bem assim,

afirma que a liberdade deve ser entendida em sentido global, não se admitindo que os direitos

fundamentais signifiquem algo somente em relação ao Direito Público e nada em relação ao

Direito Privado, pois estes se constituem na última proteção do conteúdo nuclear da liberdade.

A partir da discussão na doutrina alemã, a questão ganhou outros contornos e espalhou-

se para outros países.

Em Portugal, a Constituição, em seu art. 18, 1, preconiza que “os preceitos

constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e

vinculam as entidades públicas e privadas”. Segundo a lição de Vieira de Andrade (1987, p.

281), a simples determinação do referido art. 18 sobre a aplicação dos direitos fundamentais,

por si só, não se apresenta suficiente para resolver a questão acerca da aplicação direta ou

indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, na medida em que o

preceito não diz em que termos se processa essa vinculação e se tal vinculação far-se-á nos

mesmos moldes da vinculação em relação aos poderes públicos.

Argumenta o citado constitucionalista português que a solução da questão também não

pode ser deduzida do conceito de liberdade previsto na Constituição portuguesa. Esta

apresenta uma tendência socializante e deve compatibilizar as forças e interesses do Estado e

da sociedade, que não se apresentam apartados entre si. Deve ainda garantir a justiça social.

39 Sobre a questão da Constituição como ordem de valores e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, remetemos o leitor para a leitura dos capítulos I e III, respectivamente.

92

De outra parte, a mesma Constituição reconhece o valor da autonomia privada. Assim, a

liberdade que os direitos fundamentais visam a garantir não é apenas um valor abstrato, mas,

sobretudo, o poder de autodeterminação dos indivíduos concretos, e “é por sua vez em nome

da liberdade geral ou da liberdade negocial que se defendem certas compressões à

aplicabilidade dos preceitos constitucionais nas relações entre particulares.” (ANDRADE,

1987, p.282).

Conclui assim Vieira de Andrade (1987) que o problema da vinculação direta ou

indireta dos particulares aos direitos fundamentais continua em aberto, a despeito do referido

artigo 18 e sua determinação de aplicação às entidades particulares.

Não é esse o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (1984, p.166) acerca do

tema. Ambos defendem uma aplicação imediata/direta dos direitos fundamentais nas relações

entre particulares, como conseqüência do mandamento constitucional acima mencionado.

Assim argumentam os autores:

O texto da Constituição não faz qualquer restrição, e o facto de se dizer que os direitos fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam as entidades privadas parece não poder deixar de ler-se no sentido de que os direitos fundamentais previstos nesse artigo têm uma eficácia imediata perante entidades privadas. Aplicam-se também às relações entre os particulares e o Estado.

Mesmo admitindo-se a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas,

ainda remanesce a questão acerca da extensão dessa eficácia, ou seja, vale para todos os

direitos e para todas as relações privadas em que se exprime uma relação de poder ou de

dependência. Na visão dos referidos autores portugueses, a Constituição lusitana faz aplicar

diretamente os direitos fundamentais nas relações privadas, sem qualquer restrição ou

limitação, não sendo legítimo limitar essa eficácia. E concluem os autores que

a aplicação dos direitos, liberdades e garantias às relações entre particulares só não tem lugar no caso daqueles direitos que expressamente ou pela natureza só podem valer perante o Estado [...] e só pode ser restringida legalmente nos mesmos termos em que o pode ser nas relações entre os particulares e o Estado ou outras entidades públicas, podendo princípio da autonomia negocial privada, na medida em que seja um bem constitucionalmente protegido, funcionar como fundamento dessa restrição. (CANOTILHO; MOREIRA, 1984, p.166).

No Brasil, Ingo Sarlet (2000, p.151) defende a aplicação imediata dos direitos

fundamentais nas relações privadas, à exceção daqueles direitos que são exclusivamente

dirigidos ao poder público. Ensina o mencionado constitucionalista que a discussão acerca da

aplicação direta ou indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, além dos

argumentos jurídicos, sempre apresenta um viés político e ideológico, sendo que uma opção

93

pela eficácia imediata traduz uma decisão por um constitucionalismo de igualdade, com vistas

à realização efetiva dos direitos fundamentais no âmbito do Estado Social e Democrático de

Direito. Bem assim, aduz o professor que mesmo aqueles que advogam a tese da aplicação

apenas mediata dos direitos fundamentais entre privados, como no caso de Dürig e Hesse,

admitem a necessidade de proteção de tais direitos na hipótese de atores privados poderosos.

Acresce a sua tese o argumento de que todos os direitos fundamentais, independentemente da

discussão acerca de sua qualidade suprapositiva ou jusnaturalista, encontram guarida no

princípio, igualmente positivado, da dignidade da pessoa humana, o qual vincula diretamente

não só o Estado, mas também os particulares.

Na mesma linha de raciocínio milita Daniel Sarmento (2004, p.277), afirmando que o

ordenamento brasileiro tem como base uma Constituição fortemente voltada para o social, e,

por conseguinte, não se configura como mero limite ao poder do Estado em favor da liberdade

individual, nos seguintes termos:

A Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem apenas aos governantes, mas a todos: que têm de conformar seu comportamento aos ditames da Lei Maior. Isto porque, a Constituição de 1988 não é apenas a Lei Fundamental do Estado brasileiro. Trata-se, na verdade, da Lei Fundamental do Estado e da sociedade, porque contém os principais valores e diretrizes para a conformação da vida social do país, não se limitando aos papéis mais clássicos das constituições liberais, de organização da estrutura estatal e definição das relações entre governantes e governados.40

No mesmo sentido, é o entendimento de Carlos Roberto Siqueira Castro (2003, p.238),

ao afirmar que

o sentimento constitucional contemporâneo passou a exigir que o princípio da dignidade do homem, que serve de estrutura ao edifício das Constituições da era moderna, venha fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas, ou seja, a eficácia externa, também denominada direta ou imediata, que na prática coincide com o chamado efeito horizontal do elenco de direitos, de liberdades e de garantias que através dos tempos granjearam assento nos estatutos supremos das nações.

Em nível jurisprudencial, as decisões dos Tribunais Superiores brasileiros não se

apresentam infensas à aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,

muito embora ainda se apresentem como decisões isoladas e não como uma tendência na

adoção da teoria aqui discutida. Assim é que são registradas algumas decisões no Supremo

Tribunal Federal, como no caso do Recurso Extraordinário (RE) n. 161.243, publicado no

40 É de se registrar que o autor reconhece, apesar de expressar sua opinião favorável a vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais, que a simples afirmação de que a Constituição dirige-se a todos não basta para resolver a questão, sendo necessário estabelecer os graus em que os direitos fundamentais vinculam os particulares. (SARMENTO, 2004, p.278).

94

Diário de Justiça de 19/12/1997, sendo relator o Ministro Carlos Velloso, no qual se discutia a

aplicação de benefícios concedidos a trabalhadores franceses e que estavam sendo negados a

um trabalhador, em razão deste não possuir a mesma nacionalidade dos demais. O tribunal

entendeu descabida a discriminação, que não deveria prevalecer em face da autonomia da

empresa.

Em outro precedente, o Recurso Extraordinário n. 160.222, publicado no Diário de

Justiça de 1/9/1995, sendo relator o Ministro Sepúlveda Pertence, no qual se discutia a afronta

ao direito fundamental à intimidade de funcionárias da empresa de roupas íntimas De Millus,

as quais eram submetidas a revista íntima após o expediente de trabalho. A questão envolvia

ainda a aceitação, por parte das funcionárias de cláusula do contrato de trabalho que

autorizava tal procedimento, sob pena de dispensa das mesmas. O Tribunal entendeu que o

direito à intimidade deveria prevalecer em relação ao ajuste de vontades firmado, ainda que

livremente.

Já no Recurso Extraordinário n. 158.215, publicado no Diário de Justiça de 7/6/1996,

sendo relator o Ministro Marco Aurélio, o Tribunal reconheceu a necessidade de observância

do devido processo legal mesmo em se tratando de entidade privada, pois o caso versava

sobre a exclusão de associado de uma cooperativa, sem a garantia do contraditório e ampla

defesa no caso.

No Superior Tribunal de Justiça destaca-se a decisão do Ministro Ruy Rosado de Aguiar

Jr. no HC 12547/DF, publicado no Diário de Justiça de 12/2/2001, no qual entendeu o relator

ser atentatória ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana a prisão civil de

devedora que, em alienação fiduciária em garantia, deixou de pagar dívida bancária assumida

para comprar um veículo táxi, dívida esta que se elevou de R$ 18.700,00 (dezoito mil e

setecentos reais) para R$ 86.858,24 (oitenta e seis mil, oitocentos e cinqüenta e oito reais e

vinte e quatro centavos), em 24 meses. A ordem, no caso, foi concedida por unanimidade, sob

o fundamento de que se exigir o total da remuneração da devedora, pelo resto de seu tempo

provável de vida, a título de pagamento de juros, constitui-se uma “ofensa ao princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana, aos direitos de liberdade de locomoção e de

igualdade contratual e aos dispositivos da LICC sobre o fim social da aplicação da lei e

obediência aos bons costumes”. Por seu brilhantismo e por assentar algumas premissas

básicas da teoria que ora se apresenta, vale transcrever alguns trechos do voto do relator:

95

A Constituição de 1988 enuncia no seu primeiro artigo que o estado democrático de direito tem como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc. III). No seu artigo terceiro define a construção de uma sociedade justa como objetivo da República (art. 3°, inc. I) e inclui, entre os direitos fundamentais, os direitos à liberdade e à igualdade (art. 5°, caput). Com isso, considerou a dignidade da pessoa humana como núcleo do sistema, norma orientadora do ordenamento constitucional e do infraconstitucional, dignidade que deve ser preservada porquanto sem ela não a efetivação dos direitos da personalidade.

[...]

Cuida-se de estabelecer a vinculação entre aquele princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e mais os direitos fundamentais e definem os valores da personalidade, com a norma judicial a ser aplicada no caso concreto. 3. Surge então a questão relacionada com a eficácia horizontal ou em relação a terceiros, da norma constitucional sobre a relação de direito privado.

[...]

Não me parece que a eficácia na relação de direito privado seja somente indireta, pois bem pode acontecer que o caso concreto exija a aplicação imediata do preceito constitucional, quando inexistir norma infraconstitucional que admita interpretação de acordo com a diretiva constitucional, ou faltar cláusula geral aplicável naquela situação, muito embora esteja patente a violação ao direito fundamental. Cumpre atentar para a advertência de Robert Alexy: ‘Se algumas normas da Constituição não devem ser tomadas a sério, afigura-se difícil fundamentar, porque outras devem ser consideradas quando surgir alguma dificuldade. Há uma ameaça de dissolução da Constituição. Assim, a decisão fundamental sobre os direitos fundamentais há que ser em favor de uma completa vinculação jurídica no contexto da possibilidade de sua judicialização’. (Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, in Recht. Vernut. Diskurs, tradução Gilmar Ferreira Mendes). Ingo Sarlet observa, acredito, com absoluto acerto, que há possibilidade de se transpor diretamente o princípio vinculante dos direitos fundamentais para a esfera privada quando se cuida de relações desiguais de poder (p.338) entre as grandes corporações empresariais e o particular, porque similar à desigualdade que se estabelece entre o indivíduo e o Estado.

Nos Tribunais estaduais, a questão não se apresenta diferente dos Tribunais superiores.

No Tribunal de Justiça do Distrito Federal, destaca-se decisão em matéria de direito de

família, numa ação negatória de paternidade, em que o fundamento para o provimento da

apelação foi o da preservação da dignidade da pessoa humana, princípio inserido no Texto

Constitucional de 1988. A ementa é a que se segue:

Ação negatória de paternidade. Indeferimento da inicial. 1 - A Constituição de 1988 insere em seus princípios fundamentais o da dignidade da pessoa humana, do qual decorre a possibilidade de a pessoa saber quem são seus pais e quais são seus filhos, o que, com o atual avanço científico, que possibilita a realização de exame de paternidade com certeza quase absoluta, pode ser feito a qualquer tempo, sem limitação temporal. 2 - Segue-se daí que a ação negatória de paternidade, a exemplo da de investigação, atende não apenas ao interesse do pai, mas também dos filhos, interessados que são na verdadeira paternidade, fato que os irá marcar para o resto de vida, com reflexos, inclusive, na personalidade. 3 - É ação que, em última análise, preserva a dignidade humana, reflete na personalidade, afasta incertezas, fortalece laços afetivos ou os torna tênues ou até pode lhes colocar fim:. (APC 20010510044605. 4ª Turma, Relator: Desembargador Jair Soares. DJ de 12/06/2002).

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, precursor na aplicação direta dos direitos

96

fundamentais nas relações entre particulares, registra uma série de decisões41 que abonam a

tese acima apresentada. Entre elas destaca-se a Apelação Cível 70004348763, na qual se

considerou descabida a anulação de doação feita entre cônjuges casados pelo regime da

separação obrigatória de bens, quando o casamento tenha sido precedido de união estável. A

decisão partiu do regramento constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, para

considerar descabida a presunção de incapacidade por implemento de idade, afirmando:

a restrição imposta no inciso II do art. 1641 do Código vigente, correspondente ao art. 258 do Código Civil de 1916, é inconstitucional, ante o atual sistema jurídico que tutela a dignidade da pessoa humana como Cânone maior da Constituição Federal, revelando-se de todo descabida a presunção de incapacidade pelo implemento de idade. (APC 700043487769. Relator: Desembargador Maria Berenice Dias. Julgado em 27/08/2003).

No Tribunal de Justiça do Paraná foi julgado um caso curioso em que se reconheceu a

aplicação da proteção constitucional diretamente no caso concreto que envolvia particulares.

Na hipótese, um taxista de cabelos compridos fora punido pela associação de motoristas com

o desligamento da freqüência de rádio instalado em seu veículo, sob o fundamento de que a

legislação municipal e as normas internas da associação exigiam que os motoristas dirigissem

com cabelos curtos. Decidiu o Tribunal em tal caso que as regras estatutárias e regimentais da

associação são inconstitucionais, pois afrontam os princípios constitucionais da liberdade

individual, isonomia e dignidade da pessoa humana, concluindo que constitui discriminação

injusta exigir que o motorista de táxi tenha que dirigir de cabelos curtos, porquanto acaba por

restringir, indevidamente, o âmbito da personalidade uma vez que o corte de cabelo deve ser

entendido como expressão da personalidade e individualidade da pessoa que deve ser

protegido e não amesquinhado pelo Estado Democrático de Direito (APC 124094600.

Relator: Desembargador Accacio Cambi. Julgado em 9/9/2002).

Como visto a doutrina e a jurisprudência constitucional brasileiras assumem a

possibilidade da eficácia direta dos direitos fundamentais; já entre os civilistas que advogam a

tese da aplicação direta dos direitos fundamentais, destaca-se Pietro Perlingieri, reconhecendo

que

as normas constitucionais- que ditam princípios de relevância geral - são de direito substancial, e não meramente interpretativas; o recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se; do mesmo modo que qualquer outra norma, como expressão de um valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se.

41 Merecem registro ainda as decisões de 2003 do mesmo Tribunal, de números 70006535876, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, e 70005342548, Relator Desembargador Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. A primeira diz respeito a direito real de habitação de imóvel que servia de residência aos companheiros e a segunda diz respeito ao conflito entre a liberdade de manifestação de opinião crítica e a honra.

97

A partir da força normativa dos princípios, como categoria de normas que são, o citado

civilista admite expressamente a aplicação imediata, afirmando que

Não existem, portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte de disciplina de uma relação jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a preeminência das normas constitucionais – e dos valores nela expressos – em um ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos. (PERLINGIERI, 1997, p.11).

Entre os civilistas brasileiros que explicitamente advogam a tese de aplicação direta dos

direitos fundamentais nas relações entre particulares, a partir de sua interferência direta no

Direito Civil, destacam-se Gustavo Tepedino e Luiz Fachin.

Gustavo Tepedino afirma que o constituinte definiu princípios e valores bastante

específicos no que concerne às relações de Direito Civil, mormente quando se trata de

propriedade, dos direitos de personalidade, na política de relações de consumo, da atividade

econômica privada, da empresa e da família, deslocando para a tábua axiológica da

Constituição o ponto de referência antes localizado no Código Civil. Assim, não parece haver

dúvidas, afirma o citado civilista, de que o texto constitucional deverá intervir nas relações de

Direito Privado, determinando os critérios interpretativos de cada uma das leis especiais

(TEPEDINO, 1998, p.160).

Já para Luiz Fachin (2000, p.34), o Direito Constitucional penetra, hoje, em todas as

disciplinas e, em conseqüência, de igual forma no Direito Civil, na medida em que as normas

constitucionais, com destaque para os princípios vinculantes e de caráter normativo, são

aplicáveis no domínio juscivilístico. A aplicação dos princípios constitucionais, no entender

do referido autor, não pode ser reduzida pelas regras de Direito Privado nas relações concretas

entre particulares, pois “as coordenadas constitucionais só têm limite nos próprios princípios,

não podendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou

ordinária, contrastar essa diretiva máxima do Estado Democrático de Direito”. Por essas e

outras razões, afirma o autor: “os princípios e as regras constitucionais se aplicam direta e

imediatamente nas relações interprivadas” (FACHIN, 2000, p.33).

A despeito dos argumentos lançados em prol de uma eficácia direta dos direitos

fundamentais nas relações particulares, doutrina e jurisprudência consignam críticas a esse

posicionamento. Merecem registro, entre os argumentos mais utilizados, as posições

doutrinárias que não reconhecem os direitos fundamentais como sistema de valores, bem

como as que militam em favor da necessidade de preservação da liberdade de decisão, da

98

autonomia da vontade e dos indivíduos em suas relações com outros particulares.42 Aliás,

alguns civilistas, receosos de que a aplicação dos direitos fundamentais venha a acabar com a

própria disciplina do Direito Privado, afirmam que a recepção de princípios constitucionais

com eficácia vinculante, sem a mediação do legislador de Direito Privado, acabaria com a

autonomia desse Direito, representando um risco à liberdade contratual e à segurança jurídica,

pois, em se tratando da esfera privada, os princípios constitucionais não poderiam ter primazia

em relação à autonomia da vontade.

Konrad Hesse (1995)foi quem melhor sistematizou as críticas à aplicação direta dos

princípios constitucionais a começar pelo reconhecimento de que a ausência de intermediação

legislativa, acrescida da abertura semântica dos princípios constitucionais, seria uma fonte de

insegurança jurídica e poderia representar uma sobreposição do Poder Judiciário ao papel da

lei, esta fundamental no processo democrático. Para Hesse (1995), em um conflito entre

privados, todos os interessados gozam de proteção dos direitos fundamentais e se estes atuam

a favor e contra as partes de uma relação jurídico-privada, produzir-se-á então uma colisão de

direitos fundamentais, cometendo, conseqüentemente, ao Direito Civil a complicada tarefa de

“encontrar por si mismo el modo y la intensidad de la influencia de los derechos

fundamentales que entran en consideración. (HESSE, 1995, p.60). Outra crítica de Hesse

(1995) diz respeito ao fato de que, mediante o recurso imediato aos direitos fundamentais,

ameaça perder-se a identidade do Direito Privado, principalmente no que tange ao seu

princípio fundamental, a autonomia privada “si las personas en sus relaciones recíprocas no

pudieran renunciar a las normas de derechos fundamentales que son indisponibles para la

ación estatal.” (HESSE, 1995, p.61).

Tais críticas, entretanto, não merecem acolhida. No que diz respeito à segurança

jurídica, tem-se que tal princípio hoje deve ser interpretado à luz do conteúdo socializante das

Constituições, especialmente a brasileira. Assim, os valores de cunho individualista cedem

espaço aos valores de solidariedade social, buscando a promoção do pleno desenvolvimento

do ser humano. A aplicação da Constituição, quer por intermédio da legislação

infraconstitucional, quer diretamente, só pode ser considerada fator de insegurança se o que

estiver em jogo for o interesse particular e não o da coletividade. Para Teresa Negreiros (2002,

p.88), ao reconhecer-se a função promocional do Direito, “a aplicação direta da Constituição,

ao invés de uma ameaça, funcionará como fator de reforço e de garantia para a consecução

42 Segundo preleciona Juan Maria Bilbao Ubillos, entre os maiores críticos da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas encontram-se E. Forslhoff, G. Amato e Scheuner.

99

das mudanças necessárias à transformação do status quo”.

Também em relação à atuação judicial, a mesma só se legitima se desenvolvida dentro

dos parâmetros ditados pelo legislador, quer constitucional, quer de direito privado. O que se

busca é a releitura funcionalizante do sistema à luz dos valores impressos nos princípios

constitucionais, de modo a lhes dar efetividade. Não se trata, pois, do fim do Direito Civil,

mas de reconhecer-se que a pessoa é o seu centro e não mais o patrimônio ou simplesmente o

indivíduo. Aliás, cumpre lembrar que, até mesmo para a garantia da preservação da

personalidade do homem, sua autodeterminação e privacidade, faz-se necessária a

salvaguarda dos direitos fundamentais contra os abusos do poder privado, como se

demonstrou nos itens antecedentes.

Finalmente, quanto à autonomia privada, a aplicação direta dos princípios

constitucionais nas relações privadas, antes de buscar seu aniquilamento, visa a, cada vez

mais, garantir seu exercício real. A autonomia da vontade, plasmada na pressuposição de uma

liberdade meramente formal, nos moldes do modelo vigente no Século XIX, não garante o

efetivo exercício dessa vontade. Isso porque, uma liberdade real jamais será produzida a partir

somente da autonomia da vontade das partes, principalmente considerando-se as relações

assimétricas de poder como as estabelecidas em sociedades complexas e plurais como as

atuais. Reafirma-se com isso que o temor de dissolução do sistema de Direito Privado e de

seu pressuposto básico, a autonomia da vontade, não tem fundamento. Ao contrário, com a

Constituição como centro do sistema, seus princípios ganham força normativa, contribuindo

para a renovação das técnicas de interpretação a serem aplicadas pelo intérprete do Direito

Civil.

Rebatidas as críticas apresentadas à teoria da vinculação imediata das relações

interprivadas aos direitos fundamentais, passar-se-á a analisar as premissas da corrente que

defende a aplicação apenas mediata dos direitos fundamentais entre privados, o que será feito

no próximo tópico.

4.3 Teoria da aplicação mediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas

A teoria da eficácia mediata (Mittelbare Drittwirkung) desenvolveu-se a partir das idéias

de Günther Dürig, o qual defendia um caráter objetivo dos direitos fundamentais, porquanto

reflexos de uma ordem de valores aplicáveis a todo o ordenamento jurídico. Não obstante,

100

opunha-se o autor à possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais nas

relações entre privados, pois tal concepção acabaria por gerar uma estatização do Direito

Privado e um virtual esvaziamento da autonomia privada.

Na lição de Juan Maria Bilbao Ubillos, a aplicação mediata dos direitos fundamentais

entre privados se consegue condicionando a operatividade de ditos direitos à mediação de um

órgão do Estado, quer seja o legislador, quer seja o juiz, estes sim vinculados aos direitos

fundamentais. A concepção dos direitos fundamentais como direitos subjetivos públicos tem

por base, em todo seu desenvolvimento, a idéia da proteção da autonomia da vontade como

motor do tráfico jurídico e do Direito Privado em geral. Assim, na esteira do pensamento de

Dürig, a partir do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua

eficácia irradiante no ordenamento jurídico, tais direitos aplicar-se-iam nas relações privadas,

somente na ausência de normas específicas jurídico-privadas, e indiretamente, a partir da

interpretação e integração de cláusulas abertas e conceitos indeterminados, criados pelo

legislador, este sim destinatário precípuo dos direitos fundamentais. Para esse autor, em

síntese apresentada por Vieira de Andrade (1987, p.276),

os direitos fundamentais serão, primariamente, os direitos de defesa da liberdade contra o poder do Estado e não se justifica que eles vinculem também os particulares. Submeter a actividade dos sujeitos privados aos mesmos vínculos que limitam a acção do Estado significaria transformar os direitos em deveres, invertendo o sentido. É certo que o Estado, precisamente enquanto sujeito passivo dos direitos fundamentais, tem também o dever de proteger esses direitos contra ataques que lhe sejam movidos (mesmo) por entidades privadas. Só que essa proteção deveria fazer-se através do direito privado.

Os defensores da vinculação mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas

entendem que os direitos fundamentais, a despeito de constituírem-se em uma ordem objetiva

de valores que irradiam seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, não governam as

101

relações privadas, mas somente as influenciam.43 Assim, os conflitos são disputas de Direito

Privado, a serem resolvidos por regras de direito privado, mas tais regras devem ser

interpretadas à luz das normas de direitos fundamentais.

Entre os adeptos de tal corrente doutrinária destaca-se Konrad Hesse (ano), autor

segundo o qual a aplicação imediata dos direitos fundamentais é ao legislador, em primeiro

lugar, porquanto a quem se comete a tarefa de estabelecer o alcance concreto desses direitos,

impondo uma sistemática e indispensável adequação dos valores de liberdade à peculiar

estrutura de relações formalmente igualitárias. Dessa forma, os direitos fundamentais teriam

eficácia frente aos particulares na proporção estabelecida pelo legislador. Nesse sentido a

dicção de Vieira de Andrade (1987, p.264), ao afirmar que a força vinculativa dos direitos

fundamentais em relação aos agentes públicos “dirige-se, em primeiro lugar, ao legislador,

enquanto órgão do Estado”, afirmando que o poder de livre escolha do legislador é

especialmente restringido ou limitado pela Lei Fundamental, “que se preocupa mais uma vez

em acentuar muito particularmente a força jurídica vinculante dos direitos dos cidadãos mais

intensamente ligados à sua dignidade de homens livres” (ANDRADE, 1987, p.264).

Ao lado do legislador como intermediário entre os direitos fundamentais e as relações

privadas, assume destaque o papel exercido pelos juízes, ao tomarem tais direitos

constitucionalmente assegurados como critério de integração e interpretação das normas de

Direito Privado, balizando o conteúdo preciso das cláusulas gerais e dos conceitos

indeterminados típicos do Direito comum. Nessa perspectiva, partindo-se da noção de que os

direitos fundamentais são concebidos como um sistema de valores e expressão de uma

determinada concepção de dignidade da pessoa humana, é que tal conceito pretende ter 43Essa corrente doutrinária foi desenvolvida a partir da decisão do Tribunal Constitucional alemão no caso Luth (ver capítulo Hl, item, 3.1). A referida decisão assim explicava a questão: “No existe duda que el propósito principal de los derechos básicos es proteger la esfera de libertad del individuo contra la invasión del poder publico: ellos son la fortaleza del ciudadano contra el estado. Ello emerge como resultado del desarrollo de su historia intelectual y su adopción en las constituciones de diversos estados como lo muestra su historia política.... Pero es igualmente indudable que la Constitución, lejos de pretender ser un ordenamiento valorativamente neutral (referencias) ha establecido un orden objetivo de valores en su capitulo de derechos fundamentales. y que en consecuencia expresa y refuerza la validez de los mismos (referencias). Este sistema de valores, centrado en el libre desarrollo de la personalidad humana y de su dignidad en la comunidad social, debe aplicarse, en tanto que axioma constitucional, en todos los âmbitos del derecho: debe dirigir e informar el legislador. la administración y ai poder judicial Del mismo modo influye naturalmente sobre el derecho civil ninguna regia de derecho privado puede estar en contradicción con él y cada una de esas regias debe ser interpretada conforme a su espiritu. La influencia del sistema de valores de los derechos fundamentales es clara en aquellas disposidones del derecho privado que son imperativas y forman parte del orden publico.....JMS cláusulas generales como el articulo 826 del BGB, por medio del cual el comportamiento humano se mide con estándares supralegales tales como “conducta debida “, permiten a los tribunales responder a esta influencia desde que ai decidir lo que se exige por dichos mandatos sociales en un caso particular, deben partir desde el sistema de valores adoptado por la sociedad en su constitución en un momento dado de su desarrollo espiritual y cultural” (LINETZKY, 2003, p.14).

102

vigência em todo o ordenamento jurídico, servindo de parâmetro para o juiz. Esse

entendimento reforça a posição central dos direitos fundamentais dentro do sistema

constitucional, como expressão da escolha realizada pelo constituinte.

Não se trata, pois, de uma interpretação voluntária ou subjetiva do juiz a aplicação dos

valores sociais às normas privadas, muito menos de uma aplicação mecânica intrínseca ou

própria dos conceitos indeterminados do Direito Privado, mas a aplicação das normas

constitucionais a partir de sua supremacia no ordenamento. Essa a discussão mais importante

no que concerne à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e à cláusula da boa-fé

objetiva, que será objeto de análise no próximo capítulo.

Forte na lição de Juan Mana Ubillos (1997, p.307) esse caráter de fundamento material

de todo o ordenamento jurídico e a peculiar força vinculante de que estão dotados convertem

os direitos fundamentais em valores absolutos em todo tipo de relações, incluindo as jurídico-

privadas.

A grande crítica à doutrina da aplicação mediata dos direitos fundamentais por

intermédio da lei se faz considerando que esta não tem o poder de reconhecer todas as

possibilidades de afronta aos direitos inscritos no texto constitucional, inclusive porque a

atuação do legislador, no que tange aos direitos fundamentais nas relações privadas, tem

caráter meramente declaratório e não constitutivo.

Ademais, existe sempre o risco de, em vez de dar ensejo a uma interpretação das regras

de Direito Privado a partir de valores consubstanciados nos direitos fundamentais, de se

modificar, derrogar ou até mesmo criar uma nova regra, sobretudo no que respeita à atuação

judicial.

Contudo, a despeito da disputa acerca da aplicação direta dos direitos fundamentais ou

apenas indireta nas relações privadas, existem evidentes pontos de convergência entre ambas

as correntes. O principal deles diz respeito ao fato de que os que admitem a eficácia indireta

reconhecem que os direitos fundamentais têm influência nas disputas privadas, principalmente

como princípios norteadores da decisão concreta. Já os que advogam a eficácia imediata

reconhecem que o grau dessa vinculação será diferente, dependendo do direito e do tipo de

relação privada de que se trate e, ainda, que será diferente da forma como impõe sua

vinculação contra os atos do Estado. Assim, o conteúdo dos direitos subjetivos advindos da

aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares deve ser

103

analisado também no caso concreto.

Da análise dos pontos divergentes e convergentes das teorias acima expostas, verifica-se

que a diferença da perspectiva prática entre uma e outra corrente doutrinária apresenta-se

mitigada, na medida em que em ambos os casos há necessidade de ponderação de elementos a

partir do caso concreto, quer se admita a aplicação imediata, quer a mediata, a partir da

mediação do legislador e da atuação dos juízes. A esta pesquisa, entretanto, interessa a

aplicação dos direitos fundamentais a partir das cláusulas gerais e dos conceitos

indeterminados já previstos na legislação privada. Não que com isso se esteja negando a

possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,

pois se concorda com os argumentos lançados de que as normas constitucionais não são

meramente interpretativas e sim de direito substancial, e que os direitos fundamentais não se

dirigem apenas aos governantes e sim a todos, aí incluída, a toda evidência, a sociedade. Não

obstante, mesmo em se tratando de aplicação de cláusulas gerais, entendem-se os direitos

fundamentais como tendo posição central no sistema de valores e como expressão de um

modelo de dignidade da pessoa humana e, nesse sentido, repita-se, não se apresentam como

de aplicação voluntária ou subjetiva do juiz, mas de aplicação vinculada das normas

constitucionais a partir de sua supremacia no ordenamento. Daí a importância da discussão da

aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e o princípio da boa-fé objetiva,

conforme se verá no capítulo V.

4.4 Argumentação de outras teorias

Além das teorias da vinculação imediata ou direta e mediata ou indireta dos direitos

fundamentais, outras teorias são apresentadas pela doutrina, com destaque para o

desenvolvimento da questão nos Estados Unidos, onde o tema assumiu contornos bastante

diversos do que se desenvolveu na Europa.

Assim, a doutrina registra as teorias da convergência estadista, desenvolvida

principalmente por Jurgen Schwab, bem como a teoria da state action americana. De acordo

com a primeira teoria, as intromissões de particulares nos direitos fundamentais poderiam ser

imputadas ao ordenamento jurídico estatal, que, de maneira implícita ou explícita, autorizou-

as, negando qualquer tipo de eficácia direta dos direitos fundamentais em relações privadas,

de vez que tais direitos só podem ser opostos em face do poder jurídico estatal.

104

Segundo prelecionam García Torres e Jimenez-Blanco (1986), Schwab, ao criticar a

influência direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, a doutrina acerca do tema

traduz-se num problema de instâncias processuais. Com efeito, o autor alemão parte da idéia

de que qualquer direito privado que se projete sobre a esfera jurídica de outra pessoa tem por

base sempre o ordenamento estatal, na medida em que o Direito Privado, como todo o Direito,

desenvolve-se como um sistema de mandatos ou proibições. Dessa forma, qualquer agressão a

um direito fundamental provém, em última análise, do próprio Estado e deve desencadear

idênticos mecanismos de proteção. E arrematam os autores espanhóis, sobre a teoria de

Schwab:

todos los derechos privados están al menos en partes cubiertos por un derecho fundamental, y si cualquier poder jurídico del Estado define los derechos de los particulares contraviniendo el derecho fundamental que los protege, este debe desarrollar su función defensiva propia en el campo del Derecho público. (GARCÍA TORREZ; JIMENEZ-BLANCO, 1986, p.36).

Já em relação à segunda teoria, esta preconiza que a Corte Suprema americana define os

direitos fundamentais como sendo direitos primariamente dirigidos contra o Poder Público, o

que não exclui a possibilidade de ofensa aos direitos fundamentais por particulares, mas a

indagação sobre se a lesão partiu de uma ação estatal ou de uma ação privada não enseja uma

resposta positiva ou negativa e sim o fato de saber-se qual o direito a prevalecer no caso

concreto, ou seja, a posição mais relevante na estrutura constitucional deve ser reconhecida

como digna de proteção fundamental.

Segundo Juan Maria Bilbao Ubillos (1997, p.XV), manteve-se nos Estados Unidos a

tese liberal de que a Constituição é um limite à atuação dos poderes públicos, sendo uma

norma que tem como única finalidade a regulação das relações entre os indivíduos e o Estado.

Como conseqüência dessa concepção, tem-se que os direitos reconhecidos nas sucessivas

emendas acrescidas ao texto original da Constituição somente vinculam o listado e não podem

ser invocados senão na presença de uma ação estatal (state action), sendo que as condutas

privadas, por não estarem vinculadas ao crivo constitucional, não têm que se ajustar aos

cânones constitucionais. No mesmo sentido é a lição de Ingo Sarlet (2001, p.134), ao aduzir

que

105

nos Estados Unidos continua prevalecendo a tese liberal de que os direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos apenas vinculam o Estado e são invocáveis tão-somente em face de uma atuação estatal (state action) presumidamente ilícita, de tal sorte que as condutas eminentemente privadas encontram-se imunes a este tipo de controle e não são aferidas em face da Constituição.

Além da tese liberal, Daniel Sarmento (2004, p.228) aponta outra justificativa para a

adoção da doutrina da state action nos Estados Unidos, vinculada ao pacto federativo.

Naquele país compete aos Estados e não à União legislar sobre Direito Privado e, dessa

forma, a state action preservaria o espaço de autonomia dos Estados, evitando, assim, que haja

intervenção na disciplina das relações privadas, a pretexto da aplicação da Constituição pelas

cortes federais.

Assim, a doutrina americana costuma definir o fenômeno da state action como sendo o

endereçamento de certas normas constitucionais somente ao Estado e a seus agentes, restando

liberadas as pessoas privadas da mesma regulamentação.

Esse o entendimento de Bernard Schwartz, que, ao tecer comentários sobre racial

equality, afirma que a proibição de discriminação dirige-se tão-somente ao Estado e ao

legislador e não ao particular, que não estaria proibido de discriminar, como uma forma de

expressão de suas preferências pessoais. É o que se depreende quando afirma o autor que a

proibição de igual proteção refere-se à ação estatal. Ao Estado e não ao particular é

endereçada a cláusula da igual proteção, que não se aplica no campo das condutas privadas,

ainda que discriminatórias.44

De outra parte, ainda segundo a lição do mencionado autor norte-americano, a

aplicação da state action acontece quando a ação foi praticada por um agente ou agência

formalmente identificada como integrante da estrutura do Estado. Principalmente se a

ação discriminatória parte do legislador, não restam dúvidas acerca da presença da state

action, não fazendo diferença se a legislação é ou não justa, mas se foi aplicada de

maneira discriminatória. Em resumo, o que constitui a state action é a atual aplicação da

lei e não a maneira como foi escrita.45

Não obstante, diante do alargamento das funções do Estado e do crescente

44 Confira-se o texto original do mencionado autor “The prohibition against denial of equal protection refers ex-clusively to state action. The state, not the private individual is the addressee of the Equal Protection Clause. It erects no shield against merely private conduct, however discriminatory; it does not forbid a private party to discriminate on the basis of race in the conduct of his personal affairs as an expression of his own personal predilections.” (SCHWARTZ, 1972, p.317).

106

arrefecimento dos limites entre público e privado, sobretudo em razão do chamado poder

privado, os órgãos judiciais norte-americanos ampliaram os conceitos de poder público e ação

estatal, de modo a resguardar a aplicação de direitos fundamentais em relação ao indivíduo.

Isso porque se apresentou muito difícil uma precisa distinção de atos dos poderes públicos e

atos de particulares ou de organizações privadas em alguns casos concretos.

Duas foram as principais linhas de ação encontradas para ampliar o conceito de ação

estatal. Em primeiro lugar, a Suprema Corte Americana passou a estender a tutela dos direitos

constitucionais interprivados quando um particular ou entidade privada exerce função própria

do Estado e quando existem pontos em comum entre a atuação do particular e do Estado, de

modo que se possa imputar ao Estado a responsabilidade pela conduta oriunda do particular.46

Assim, para que algumas controvérsias entre particulares, em princípio excluídas da

proteção constitucional, pudessem ser amparadas, aumentou-se o conceito de poder público e

de ação estatal, de modo a compatibilizar-se a necessidade de proteção com o princípio de que

os direitos fundamentais vinculam somente as autoridades e órgãos estatais, tão caro àquela

cultura jurídica.

Vitor Ferreles Comella afirma que mesmo em se tratando de uma concepção restrita ao

âmbito de aplicação constitucional, existem muitos exemplos de conflitos entre particulares

que se apresentam como conflitos entre o particular e o Estado. Assim, afirma o autor que um

possível conflito entre a liberdade de expressão e o direito à reputação, nos Estados Unidos se

transforma em uma colisão entre a liberdade de expressão e o interesse do Estado em que os

particulares sejam compensados por uma lesão indevida em sua reputação, eliminando-se o

componente interindividual do conflito, que aparece como um conflito entre um direito

individual e um interesse estatal.47 45 É o que diz o texto de Schwartz (1972, p317), ao afirmar que: “The requirement of ‘state action’ is met when action has its source in a person or an agency formally identifiable as a state instrumentality, regardless of the position of the particular officer or agency in the govenmental hierarchy. When the source of challenged action is legislatíve in nature, there can be no doubt that state action is involved, whether it involves a statute, an ordi-nance, or an administrative rule or regulation. It makes no difference that the legislation is fair on its face, if it is applied in a discriminatory manner: the actual administration of the law, not the manner in which it is written, constitutes ‘state action’. ” 46 Nesse sentido as lições de Ubillos e lngo Sarlet. O primeiro o faz nos seguintes termos: “dos han sido las vias apuntadas en la jurisprudência da La Corte Suprema para ampliar con carácter excepcional el radio de acción de las garantias constitucionales: el ejercicio por un sujeito aparentemente privado de una función propia del Estado y la existência de contactos o complicidades suficientemente significativas como para implicar al Estado en la conducta de un actor privado.”(UBILLOS, 1997, p.XV). Já Ingo Sarlet afirma que existem duas linhas de argumentação que se destacam em casos que tais: “a) quando um particular ou entidade privada exerce função estatal típica; b) quando existem pontos de contato e aspectos comuns suficientes para que se possa imputar ao Estado a responsabilidade pela conduta oriunda do particular.” (SARLET, 2001, p.134).47 GERTZ, ROBERT WELCH, 1974

107

Outro exemplo trazido à colação pelo autor diz respeito ao limite admissível das

expressões de ódio racial. Apresenta-se, na hipótese, uma possível tensão entre a liberdade de

expressão e o direito de igualdade, mas, em termos constitucionais, diz-se existir um conflito

entre a liberdade de expressão e os interesses estatais em proteger os direitos de grupos que

historicamente tenham sido objeto de discriminação.48

Por último, menciona o exemplo de uma associação privada e a possibilidade de excluir

mulheres. A princípio trata-se de um conflito entre a liberdade de associação e o direito das

mulheres de não serem discriminadas. Todavia, a tradução constitucional desse conflito

estabelece-se como uma colisão entre a liberdade de associação e o interesse do Estado em

erradicar a discriminação contra mulheres.49

4.5 Algumas considerações

Como já foi mencionado anteriormente, no que diz respeito à vinculação dos

particulares aos direitos fundamentais, quer direta, quer indiretamente, releva destacar que o

debate teórico tende a receber um tratamento conciliatório da doutrina, no sentido de arrefecer

a dicotomia apresentada. Assim, diz Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da Silva (1992) que

na verdade o problema posto à análise até o presente ponto deste estudo, ou seja, da aplicação

imediata ou mediata dos direitos fundamentais é um falso problema, à medida que, partindo

da noção de unidade do sistema jurídico, quando se aplica uma norma não é ela só que está

sendo aplicada, senão todo o sistema jurídico, razão pela qual “entre Constituição e norma de

Direito Privado a aplicar não se verifica um hiato, mas um contínuo fluir” (SILVA, 1982, p.

46). E conclui o citado autor que a questão da aplicabilidade mediata ou imediata não possui

muito sentido, pelo menos nos termos em que tem sido colocada, pois a expressa

determinação do texto constitucional de aplicação imediata dos direitos e garantias

individuais, dispositivo este que também se encontra plasmado no texto da Constituição

brasileira de 1988 (art. 5°, § 1°)50 só pode significar que tais preceitos buscam a regular

situações concretas da vida, quer sua aplicação seja mediata ou imediata. O que se pretendeu

em verdade foi estabelecer-se uma forma de compatibilização dos preceitos constitucionais

com os de Direito Privado, o que pode dar-se tanto no âmbito do Direito Constitucional,

quanto no do Direito Privado.

No mesmo sentido a lição de Gomes Canotilho (1993, p.595), que, ao analisar as 48 R. A. V. v. CITY OF ST. PAUL, 1992 apud COMELLA.49 ROBERTS v. UNITED STATES JAYCEES, 1984 apud COMELLA.

108

tendências atuais do tema, afirma que “o problema da eficácia dos direitos, liberdades e

garantias na ordem jurídica tende hoje para uma superação da dicotomia eficácia

mediata/eficácia imediata a favor de soluções diferenciadas” reconhecendo-se, de início, que a

eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares insere-se no âmbito da função de

proteção destes direitos, a partir de sua dimensão objetiva e irradiadora de valores para todo o

ordenamento jurídico.

A partir dos argumentos lançados, impõe-se a conclusão de que não devem existir

fórmulas apriorísticas, uniformes e definitivas para a questão, senão uma análise da aplicação

dos direitos fundamentais a partir do caso concreto.

Como foi dito na parte final do item 4.2 deste capítulo, a diferença da perspectiva

prática entre a corrente da aplicação imediata ou apenas mediata apresenta-se mitigada, na

medida em que em ambos os casos há necessidade de ponderação de elementos a partir do

caso concreto, quer se admita a aplicação imediata, quer a mediata; a partir da mediação do

legislador e da atuação dos juízes.

Não obstante, cabe novamente a advertência de que no presente estudo interessa a

aplicação dos direitos fundamentais a partir dos princípios e das cláusulas gerais já previstos

na legislação privada, principalmente a boa-fé objetiva, o que será objeto de discussão no

próximo capítulo.

50 Cumpre aqui esclarecer o sentido da aproximação dos textos das Constituições brasileira e portuguesa. Ambos os textos constitucionais expressamente consignam a aplicação imediata dos direitos individuais, muito embora a Constituição portuguesa reconheça, além da mencionada aplicação imediata, a vinculação direta das entidades privadas aos ditos direitos. Todavia, mesmo com a inscrição dessa vinculação imediata no texto constitucional, os debates doutrinários sobre o assunto em Portugal apresentam-se acalorados, não havendo um consenso sobre a forma de vinculação. O mesmo acontece no Brasil, cujo texto constitucional não consigna expressamente a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, mas que apresenta entre os fundamentos do Estado a dignidade da pessoa humana, o que propicia a aplicação desses direitos nas relações interprivadas, sobretudo como forma de garantia contra os abusos do poder privado. Assim, a aproximação dos dispositivos retromencionados tem o escopo de demonstrar que mais do que uma questão formal de redação dos dispositivos constitucionais, trata-se de uma questão de estabelecer-se a forma de correlação entre o Direito Privado e o Direito Constitucional.

109

5 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS

O princípio da boa-fé objetiva é um locus privilegiado a abrigar a discussão da eficácia

dos direitos fundamentais.

A positivação desse princípio se dá, sobretudo, por intermédio da cláusula geral da boa-

fé objetiva, que no Direito brasileiro encontra-se inserida na legislação privada, tanto no

Código de Defesa do Consumidor, quanto no novo Código Civil, a qual possibilita a aplicação

dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, quer de maneira mediata, quer

imediata, consoante visto nos capítulos precedentes.

A importância da abordagem centra-se precisamente no fato de que o contrato

tradicional, que tem por base o modelo liberal, estritamente lastreado na autonomia da

vontade, não mais corresponde aos anseios da sociedade, porquanto vinculado a um momento

histórico superado, o que tem levado não só o Direito Civil, mas o Direito em geral, a buscar

novas possibilidades de abordagem, sob pena de entrar em irremediável declínio. Lembrando

Luiz Edson Fachin, os fatos impõem-se ao Direito, ainda que contra a letra estrita dos

Códigos.

Aliás, torna-se oportuno lembrar que todo o processo de “codificação” do Direito,

baseado nos postulados de serem ilimitadas tanto a propriedade privada quanto a livre

manifestação da vontade do sujeito, perderam prestígio nos temas atuais. Grande parte desse

prestígio foi granjeada a partir da necessidade de construção de uma doutrina neutra e

atemporal, a-histórica, baseada em operações lógicas, tendendo, assim, à imutabilidade.

Entretanto, conforme se pretendeu demonstrar nos capítulos precedentes, mormente no

capítulo II, as profundas mudanças sociais advindas das mais variadas experiências históricas

impuseram a conclusão da inviabilidade do dogma da neutralidade dos sistemas. Os

ordenamentos jurídicos são formados a partir de processos históricos e não são neutros. No

entanto, tal afirmação, ao contrário de desmerecer o sistema jurídico de Direito Privado,

impõe sua releitura a partir dos valores fundamentais insertos na Constituição.51

O princípio da boa-fé objetiva insere-se num processo de retomada da consciência ética

no Direito Civil, sobretudo no direito das obrigações, libertando-se do cunho estritamente

voluntarista e patrimonialista, objetivando a realização dos valores supremos inseridos no

texto constitucional, com destaque para o valor relativo à dignidade da pessoa humana.

Pretende-se demonstrar que a aplicação do princípio da boa-fé objetiva significa uma releitura

dos institutos insculpidos no Código Civil, a partir da efetivação de seu significado, urdido no

caso concreto e pela perspectiva do sujeito da relação obrigacional.52

Releva destacar que a ética da boa-fé não se circunscreve aos contratos já firmados, mas

tem aplicação desde a fase pré-contratual e deve ser trazida à discussão de modo a aumentar

sua aplicação no Direito brasileiro. Assim, deve a mesma servir de parâmetro tanto para as

partes que têm interesse em sua aplicação quanto para a doutrina e jurisprudência,

possibilitando uma melhor aplicação no âmbito das discussões judiciais.

Nos tópicos que se seguem, analisar-se-ão mais detidamente a relação das cláusulas

abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, e, no que

concerne especificamente ao princípio da boa-fé objetiva, apreciar-se-á sua relação com a

boa-fé subjetiva, seu desenvolvimento histórico, a boa-fé no direito comparado e, por fim, a

boa-fé objetiva na tarefa dos juízes.

51 Conforme afirma Maria Celina Bodin, em prefácio ao livro de Teresa Negreiros (2002, p.10), “reconhece-se como inadequada a concepção do direito civil como sendo politicamente neutro, da sociedade como apartada do Estado e, sobretudo, da Constituição como indiferente às relações interprivadas.” 52 ‘‘Essa mudança de paradigma do Direito Civil no sentido de sua “despatrimonialização” em favor do sujeito foi oportunamente resumida por Teresa Negreiros (2002, p.18) como sendo um consectário da noção do Direito Civil voltado para a tutela da dignidade da pessoa humana. Para tanto, este ramo do Direito é “chamado a desempenhar tarefas de proteção, e estas especificam-se a partir de diferenciações normativas correspondentes a diferenciações que implodem a concepção outrora unitária de indivíduo, dirigindo-se, não a um sujeito de direito abstrato dotado de capacidade negociai, mas sim a uma pessoa situada concretamente nas suas relações econômico-sociais [...].” Em outra obra de sua autoria a mesma autora se refere a essa “despatrimooialização” do Direito Civil a partir da funcionalização das relações inter-subjetivas a princípios-valores como os da dignidade da pessoa humana , da justiça social e da igualdade substantiva. (NEGREIROS, 1998, p.171).

111

5.2 As cláusulas abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

As cláusulas abertas ou gerais podem ser definidas como uma técnica de legislar em que

se estabelecem modelos jurídicos abertos ou indeterminados, os quais, pela vagueza

semântica, autorizam a incorporação de princípios, normalmente estranhos ao corpo das leis

que integram os Códigos. A conseqüência mais direta de sua incorporação às leis modernas é

a possibilidade de renovação de sua leitura a partir de indicações de programas voltados para

a realização do bem da coletividade.53

Em contraposição à técnica legislativa das cláusulas gerais, menciona a doutrina a

técnica casuística, também chamada de técnica de regulamentação por fattispecie54. Karl

Engish ensina a diferença entre ambas, ressaltando que a casuística “é aquela configuração da

hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que

circunscreve particulares grupos de casos na sua espécie própria” (ENGISH, 1983, p.228). Já

as cláusulas gerais, em contrapartida, são uma “formulação da hipótese legal que, em termos

de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de

casos” (ENGISH, 1983, p. 229).55 Ainda sobre a diferença das cláusulas gerais e do casuísmo,

escreveu o citado autor:

o verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica legislativa. Graças à sua generalidade, elas tornam possível sujeitar um mais vasto grupo de situações, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamento, a uma conseqüência jurídica. O casuísmo está sempre exposto ao risco de apenas fragmentária e ‘provisoriamente’ dominar a matéria jurídica. Este risco é evitado pela utilização das cláusulas gerais. (ENGISH, 1983, p.234).

Assim, como são dotadas de grande abertura semântica, as cláusulas gerais56[53] não se

prestam a dar respostas a todos os problemas da realidade, tampouco podem ser aplicadas aos

casos concretos pelo processo de subsunção do fato à norma, processo típico da

regulamentação por fattispecie. Como ensina Judith Martins-Costa (1998, p.29), em artigo

53 Judith Martins-Costa ensina que as cláusulas gerais constituem uma técnica legislativa característica da segunda metade do Século XX que transformou radicalmente o modo de legislar casuisticamente, típico do movimento codificatórío do Séc. XIX, assumindo a lei características de concreção e individualidade peculiares aos negócios privados. (MARTINS-COSTA, 1998, p.27).54 A técnica de regulamentação pela fattispecie é muito utilizada no direito penal em que as condutas devem amoldar-se o mais exatamente possível ao tipo descrito pela norma para que esta tenha incidência no caso concreto. Assim, o legislador fixa no texto da norma todo o regramento que fará com que ela tenha incidência sobre o fato concreto.55 Karl Engish adverte que, embora apareçam como conceitos contrapostos, a casuística e as cláusulas gerais nem sempre são mutuamente excludentes. Ao contrário, podem ser complementares, como no caso dos dispositivos legais exemplificativos. Sobre a questão ver Engish. (1983, p.228 e seguintes).

112

lapidar sobre as cláusulas gerais,

Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou para outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, de usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão dessas características essa técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial e não legal.

Noutro pensar, como crítica ao atual sistema de cláusulas gerais no direito brasileiro,

Gustavo Tepedino (2000, p.11) afirma que “uma cláusula geral, só por si, pouco ou nada

significa”, pois se aplicadas sob a perspectiva estritamente formal, nos moldes como é feita a

aplicação no sistema das codificações, não traduzem qualquer novidade. Tanto é fato que a

cláusula geral da boa-fé prevista no Código Comercial brasileiro, desde 1850, portanto, não

teve qualquer aceitação na jurisprudência brasileira.

Contudo, o citado autor salienta a necessidade de se desenvolver a técnica das cláusulas

gerais, tanto pelo legislador quanto pelo intérprete das normas, pois o legislador

contemporâneo deve valer-se de prescrições normativas, nas quais fiquem expressos os

critérios interpretativos, os valores a serem preservados, princípios fundamentais como

enquadramentos axiológicos com teor normativo e eficácia imediata, “de tal modo que todas

as demais regras do sistema, respeitados os diversos patamares hierárquicos, sejam

interpretadas e aplicadas de maneira homogênea e segundo conteúdo objetivamente

definido” (TEPEDINO, 2000, p. 11).

Exsurge, pois, evidente o reconhecimento da imposição do catálogo de direitos

fundamentais, previsto na Constituição como fonte de aplicação e interpretação das cláusulas

56 De grande didatismo é o estudo do Professor Nelson Nery Júnior (2003, p.406) na tentativa de estabelecer os conceitos e diferenças entre princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Na visão do citado autor, princípios gerais de direito “são regras de conduta que norteiam o juiz na interpretação da norma, do ato ou negócio jurídico” e que não se encontram positivados no sistema normativo. Quando um princípio geral é positivado deixa de ser princípio geral e passa a ser considerado cláusula geral. Já em relação aos conceitos jurídicos indeterminados, aos quais o Professor prefere chamar de princípios “legais” Indeterminados, estes são definidos como “palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos” (NERY JÚNIOR, 2003, p.407) que estabelecem as soluções aplicáveis aos casos concretos, mas delegam ao juiz a função de realizar a subsunção do fato à norma, de modo a dizer se a norma atua ou não no caso. É, pois, a lei que enuncia o conceito indeterminado e dá as conseqüências advindas, razão pela qual não se pode falar em atividade judicial criadora. Finalmente, o autor define cláusulas gerais como sendo as “normas orientadoras sob forma de diretrizes , dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstraio, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz. autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz.” (NERY JÚNIOR, 2003, p.408). A diferença entre as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados radica precisamente no fato de que estes, uma vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já indicam a solução preestabelecida na lei e aquelas, ao contrário, permitem ao juiz uma escolha de valores que vão preencher os claros para aquele caso concreto.

113

gerais. Não que não se reconheça a aplicabilidade direta dos ditos direitos fundamentais,

independentemente da existência de tais cláusulas, nas relações entre particulares, mas a par

da vinculação de todos aos ditames constitucionais, existe a questão de “como” se dará essa

vinculação. A simples afirmação vaga e desprovida de mecanismos concretos de sua

efetivação não é suficiente para o reconhecimento desses direitos na prática diária da

sociedade. Assim, a renovação da perspectiva não só de aplicação direta dos direitos

fundamentais, mas também de previsão pelo legislador das cláusulas gerais, mais

especificamente da boa-fé objetiva, é importante instrumento de efetiva realização de valores

constitucionais.

A cláusula da boa-fé objetiva é uma das mais célebres cláusulas gerais, positivada pela

primeira vez no § 242 do Código Civil alemão. E como se verá mais adiante, é dirigida

precipuamente ao juiz, com vistas a conferir-lhe um mandato de adequação das normas

jurídicas aos casos concretos, para que este crie ou desenvolva ditas normas por intermédio da

utilização de elementos que podem estar fora do sistema de Direito Privado.

5.3 A boa-fé subjetiva e suas considerações no Código Civil Brasileiro de 1916

O princípio da boa-fé não somente no Direito brasileiro, mas na quase totalidade dos

ordenamentos jurídicos dos países, sempre teve muita importância no direito das coisas,

principalmente ligado à teoria do usucapião e à da aquisição dos frutos. No âmbito do direito

das obrigações, teve aplicação restrita o princípio, notadamente em razão de fatores históricos,

tais como a existência do Estado Liberal, o predomínio absoluto do voluntarismo jurídico, a

obediência ao direito estrito e a metodologia da escola da exegese, a qual, em nome da

aplicação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu, reduziu em muito o poder

criativo da jurisprudência.

114

Nesse contexto veio à lume o Código Civil brasileiro de 1916, baseado no mais puro

voluntarismo e numa visão patrimonialista do Direito Civil, razão pela qual não se encontrava

insculpida regra geral que se referisse expressamente à boa-fé na formação ou execução dos

contratos. Entretanto, a inexistência de artigo explícito sobre a aplicação da boa-fé não

impediu sua vigência no direito das obrigações pátrio, sobretudo em razão da atuação

jurisprudencial, a qual sempre reconheceu, no processo hermenêutico de interpretação dos

pactos, a necessidade de estabelecer-se a justa medida à vontade que se interpreta, pois como

ensina Clóvis do Couto e Silva(1976, p.33), “o contrato não se constitui de duas volições, ou

de uma oferta ou uma aceitação, isoladamente, mas da fusão desses dois elementos”, de modo

a “evitar-se o subjetivismo e o psicologismo a que se chegaria sem dificuldade, caso o

interesse de ambas as partes não fosse devidamente considerado”.

Assim, na análise da boa-fé no Código Civil brasileiro, exsurge o conceito de boa-fé

subjetiva, a qua, no dizer de Orlando Gomes (1995, p.42), é mais um vetor de interpretação

do contrato do que um imperativo de sua estrutura, significando que “o literal da linguagem

não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela

inferível”. Esta a regra inserida no art. 85 do antigo Código Civil, a qual determinava que

“nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da

linguagem”.

Como nos contratos existem quase sempre interesses antagônicos das partes

contratantes, e o que se busca é a harmonização de tais interesses, impõe-se uma atuação ética

das partes durante toda a relação jurídica contratual, sendo defeso o emprego de astúcia e de

deslealdade.

Assim, a chamada boa-fé subjetiva é definida como um “estado de consciência”, um

estado psicológico da pessoa, sua intenção, seu convencimento de estar agindo de forma a não

prejudicar a outrem, forte na lição de Alinne Arquete Leite Novais (2000, p.22). Segundo

preleciona Judith Martins-Costa (1999, p.411-412),

a expressão boa-fé subjetiva denota ‘estado de consciência, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé objetiva é a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

E complementa a mencionada doutrinadora que

115

a boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a usucapião), seja uma errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.) (MARTINS-COSTA, 1999, p.411-412).

Entretanto, essa concepção de boa-fé fundada no voluntarismo e no individualismo,

consubstanciada no Código Civil, passou a não mais atender às novas exigências criadas pela

sociedade moderna, que passou a clamar por mais segurança e razoabiliadade nos pactos

firmados, fugindo do sentido subjetivo e interior. Conforme ensina Bruno Lewicki (2000, p.

56),

para além de uma análise de uma possível má-fé subjetiva no agir, investigação eivada de dificuldades e incertezas, faz-se necessária a consideração de um patamar geral de atuação, atribuível ao homem médio, que pode ser resumido no seguinte questionamento: de que maneira agiria o bonus pater familiae, ao deparar-se com a situação em apreço? Quais seriam suas expectativas e as suas atitudes, tendo em vista a valoração jurídica, histórica e cultural do seu tempo e da sua comunidade?

Dessa forma, foi ganhando importância a noção de boa-fé como regra de conduta,

pautada nas circunstâncias do caso concreto, a partir da concepção de comportamento do

homem médio diante de cada situação. Tal regra de conduta cria uma previsibilidade de

atuação dos outros nos ajustes firmados, pois “não seria seguro nem razoável que, sob o olhar

complacente do Direito, pairasse entre as pessoas um eterno ponto de interrogação sobre a

conduta dos outros, num hobbesiano cenário de desconfiança generalizada” (LEWICKI, 2000,

p.57).

Nesse sentido foi concebida a doutrina da boa-fé objetiva, em contraposição à boa-fé

subjetiva, esta caracterizada pela crença e aquela balizada pela lealdade, o que será abordado

nos próximos tópicos.57

57 Teresa Negreiros (1998, p.11-12) afirma que em sistemas jurídicos nos quais existe uma diferença ortográfica ou semântica para a boa-fé objetiva e subjetiva, como no caso do alemão, não existem dúvidas acerca da dualidade de sentidos imputáveis à boa-fé, o que já não ocorre em sistemas nos quais não existe tal diferenciação. Assim, trás a autora â colação exemplos de autores que entendem não haver a distinção entre boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva, apesar de consignar que a doutrina dominante admite a dualidade de sentidos para a expressão. Ainda sobre o tema, merece registro a lição de Menezes Cordeiro em torno da diferença semântica do direito alemão em matéria de boa-fé. Segundo esse autor, O BGB refere-se à boa-fé objetiva como sendo Treu und Glauben ao passo que a expressão utilizada para designar a boa-fé subjetiva é guter Glauben. Por tal razão, conclui o autor, o BGB, que refere de forma repetida a boa-fé, “aproveitando a diversidade lingüística possibilitada pela língua alemã, contrapõe com clareza, a boa-fé objectiva e subjectiva”. (CORDEIRO, 2001, p. 327).

116

5.4 Evolução histórica da boa-fé objetiva

A noção de boa-fé no Direito remonta aos romanos, principalmente ligada a três setores

principais, quais sejam, as relações de clientela, os negócios contratuais e a proteção

possessória. Em relação à clientela, ensina Judith Martins-Costa (1999) que por traduzir

relações entre indivíduos juridicamente desiguais, o cidadão livre e o cliente, as relações eram

dominadas pela fides, consubstanciada tanto no poder do patrão quanto no dever do Cliens e

na promessa de proteção. No que tange aos contratos, registra-se a presença da fides em

contratos internacionais (MARTINS-COSTA, 1999, p.113)58, o que acabou incorporando, em

última análise, à prática jurídica romana os contratos consensuais, considerando-se que a

regra até então eram os contratos formais. A difusão dos contratos despidos de formalidade

fez com que a fides já não se definisse como fit quod dicitur, mas como uma fides não formal,

traduzida na fórmula age quod agis, ou seja, “informa o teu comportamento àquele desenho

de ação ao qual tu e tua contraparte consentiram”. A esta fides, preleciona Judith Costa, é que

se agrega a qualidade de “bona” (MARTINS-COSTA, 1999, p.115).59 Já no período clássico,

especialmente em relação ao campo dos negócios jurídicos, o conceito de fides bona se

modifica, assumindo a conotação de norma de comportamento no tráfico negocial, fazendo da

mesma fonte de criação de deveres de cumprimento e fonte de exigibilidade judicial desses

deveres, expurgando-se a conotação de regra moral. Já no que tange aos direitos reais,

sobretudo em relação ao instituto da usucapio, a expressão assumiu significado de “estado de

ignorância” do beneficiário da usucapião (COUTO E SILVA, 1980, p.45).60

58 Menciona Judith Martins-Costa (1999, p.115) o tratado firmado entre Roma e Cartago, do qual dá noticia Políbio, que continha regra segundo a qual “cada uma das partes contraentes prometia sobre a própria fé - publica fides, ou seja, sobre a fé que liga a coletividade ao respeito das convenções livremente pactuadas - a assistência do cidadão da outra cidade para a proteção dos interesses nascidos dos negócios privados.” 59 Segundo Paolo Frenzza, citado por Judith Costa, “é uma fides que constringe a quem prometeu a manter sua promessa não segundo a letra, mas segundo o espírito; não tendo em vista o texto da fórmula promissória, mas ao próprio organismo contratual posto em si mesmo: não seguindo valor normativo externo ao negócio concretamente posto em si (o contexto verbal da promessa), mas fazendo do próprio concreto intento negocial a medida da responsabilidade daqueles que fizeram nascer.” (FRENZZA apud MARTINS-COSTA, 1999, p.115).60 Sobre a questão do significado da boa-fé no Direito Romano, Clóvis do Couto e Silva(1980, p.45) ressalta a polêmica travada entre os romanistas Bruns e Watcher a respeito da boa-fé. Discutiam ambos, partindo do conceito de boa-fé necessária à aquisição da usucapião, se o conceito possuía significado unívoco no direito romano tanto para o direito das obrigações como para os direitos reais, como defendia Bruns, ou se, ao contrário, possuía uma significação para o direito obrigacional de caráter objetivo e outro para os direitos reais, de caráter subjetivo, como pregava Watcher.

117

No Direito Canônico a boa-fé fora tratada considerando-se dois setores principais.

Primeiramente a boa-fé em relação à proteção possessória foi considerada mais do que um

“estado de ignorância”, pois introduziu-se o conceito de boa-fé “como ausência de pecado” ou

como estado contraposto à má-fé. Também a boa-fé fora tratada no âmbito dos contratos

consensuais atribuindo à igreja um valor moral à promessa ou ao consentimento, e a quebra

da promessa ou do consentimento era considerada mentira, consistindo esta num pecado

semelhante aos “pecados da língua”. Verifica-se, pois, que a boa-fé para o Direito Canônico

passou a ter significado uníssono, diferentemente do Direito romano, em que a boa-fé poderia

assumir uma feição subjetiva ou técnico-objetiva, conforme se referisse a questões

possessórias ou do direito das obrigações, respectivamente. No Direito Canônico a boa-fé

passou a ser definida como “a consciência íntima e subjetiva da ausência de pecado, isto é, de

se estar agindo corretamente, de não se estar lesando regra jurídica ou direito de

outrem” (MARTINS-COSTA, 1999, p.131).

Com o fim da idade média tem início a economia capitalista e as ciências passaram a ter

como modelo o racionalismo individual. A autoridade, que na idade média dava legitimidade

ao conhecimento, deixa de ter importância, passando a razão humana a questionar as verdades

estabelecidas por este critério61. Nesse momento a ratio se desprende definitivamente da fides,

em nome da criação de instrumentos jurídicos mais simples e mais afinados com os novos

tempos, surgindo como corolário da necessidade de simplificação e sistematização, a noção

de codificação e unificação das fontes do direito.

Inspirado pelo mito da lei, como fonte suprema de produção jurídica, a ascensão

econômica, política e cultural da burguesia, o racionalismo jurídico, o contratualismo, o

individualismo e o liberalismo, vem à lume o Código Civil francês, marco inicial dos grandes

sistemas codificados.

A boa-fé, já definida como uma cláusula geral, tem sua aplicação diminuída em razão da

escola exegética, a qual concebia o Código como um sistema completo e pleno de todas as

relações jurídicas civis, sem a possibilidade de interpretação dos dispositivos legais, uma vez

que as respostas aos casos concretos já estariam todas previamente estabelecidas nas normas.

Trata-se da aplicação do brocardo amplamente divulgado in claris non fit interpretatio. Nas

relações privadas ganha tamanha importância o princípio do consensualismo que a autonomia

61 Sobre essa mudança de paradigmas da idade média para o Estado Liberal remetemos o leitor ao capitulo II do presente estudo.

118

da vontade é erigida à categoria de dogma.

Assim, não se admitiam limites legais ou judiciais à vontade das partes livremente

ajustada. Igualmente, considerava-se que a justiça contratual já estaria assegurada

simplesmente pelo fato de ser decorrente da vontade livre dos contratantes. Como ensina

Judith Costa (1999, p.203)

essas ‘vontade livre’ e ‘igualdade’ eram a tradução jurídica da concepção econômica do liberalismo. A liberdade de iniciativa econômica, que está na base do capitalismo. era a liberdade efetivamente perspectivada pelos autores do Código para derrubar, de uma vez por todas, os entraves decorrentes do Ancien Régime à liberdade de circulação de mercadorias, impostos pelos privilégios feudais, pelas corporações, grêmios e monopólios fiscais.

A autonomia da vontade passou a significar também a segurança contra a atuação do

Estado na esfera privada, o que fez com que a referida autonomia se tornasse o eixo central de

toda a teoria dos contratos. Nesse contexto, o princípio da boa-fé foi esvaziado pela noção da

força obrigatória dos contratos e pela manifestação da vontade livre dos contratantes.

Ademais, como o Código foi concebido como um sistema completo, a sua aplicação judicial

não autorizava a interpretação, por mais injustas que fossem as conseqüências de sua

aplicação.

Diante da importância que o Código Napoleônico viria a exercer pelo mundo, a vertente

objetiva da boa-fé restaria relegada a um segundo plano nos diplomas oitocentistas.

Entretanto, a primeira guerra mundial trouxe substanciais mudanças no que tange às

relações contratuais, principalmente na Alemanha, o que ensejou o surgimento do BGB, em

1896, e da Constituição de Weimar, em 1919.

É justamente no Direito germânico que se desenvolve a doutrina da boa-fé objetiva, da

forma como é modernamente concebida, pois a cláusula geral de boa-fé, insculpida no § 242

do BGB, espraiou seus efeitos por toda a teoria contratual alemã.

É certo que o reconhecimento do princípio da boa-fé, inserto no dispositivo acima

mencionado, não se deu de imediato após a vigência do BGB. Na lição de Clóvis do Couto e

Silva (1980, p. 46),

nas codificações européias do inicio do século, sobressai pela sua importância o Código Civil germânico. Este Código Civil tem a característica de conter o § 242. que mais tarde, deveria constituir o elemento fundamental para uma compreensão absolutamente nova da relação obrigacional. Não se pense: contudo, ser o aludido § 242, no pensamento dos autores do Código Civil alemão, algum dispositivo específico, conferindo ao juiz poderes extraordinários de criação jurídica, ao ponto

119

de transformar a sua figura no símile do pretor romano. Nada mais inexato: o § 242 não significava outra coisa senão mero reforço ao § 157, no qual se determinava a regra tradicional de interpretação dos negócios jurídicos segundo a boa-fé.

Dessa forma, iniciou-se o reconhecimento de que o princípio da boa-fé é uma fonte

autônoma de direitos e obrigações, principalmente a partir do estudo realizado por Hermann

Staub62, publicado em 1902, o qual estabeleceu no direito germânico o conceito de violação

positiva do contrato63. A partir da “descoberta” de Staub, ensina Clóvis Couto e Silva (1980, p.

49), “começa a grande transformação da relação obrigacional, admitindo-se a existência de

deveres acessórios ou implícitos, instrumentais e independentes, ao lado da obrigação

principal”.

O contexto histórico mais uma vez se altera, pois com a revolução industrial inicia-se a

revolução do consumo, tendo como característica principal a massificação das relações

privadas, em que a contratação individual é substituída pela contratação coletiva.

Como ensina Cláudia Lima Marques, existe uma outra realidade contratual que enseja

uma nova definição de contrato, diferentemente da relação estabelecida pelo contrato

tradicional, pois

62 Segundo ensina José Carlos da Silva Filho (2003, p.315-316), a expressão violação positiva do contrato, ou quebra positiva, foi cunhada por Staub, partindo da tese de que, no sistema alemão, existiam outras formas de inadimplemento contratual que não as duas previstas no BGB quanto ao tema, quais sejam, a impossibilidade de cumprimento e a mora. Essas duas formas de inadimplemento diziam respeito a uma inatividade do devedor, mas existiam outros casos em que o devedor violava o contrato por meio de uma atuação positiva, quer pelo cumprimento defeituoso da avença que causasse danos, quer pela realização de atos que deveriam ser omitidos, sugerindo o autor que fosse aplicada analogicamente a mesma solução para a mora, prevista no § 326 do BGB. 63 Muito embora exista uma diferença conceitual entre a violação positiva do contrato e a quebra antecipada do contrato, assinalada na doutrina brasileira por Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.124-130) e Jorge Cesar Ferreira da Silva (2002, p.215-230), entende Clóvis do Couto e Silva (1980) que o conceito de violação positiva do contrato desenvolvido por Staub revela a aplicação no Direito germânico do conceito da common low de antecipated breach of contract e o faz nos seguintes termos: “Um aspecto não suficientemente salientado é a circunstância de a aplicação do principio da boa-fé, com a criação ou compreensão científica dos deveres secundários ou anexos, aproximar o conceito de relação obrigacional vigorante no Direito germânico com o da common law. Começava a reconhecer-se no princípio da boa-fé uma fonte autônoma de direitos e obrigações; transforma-se a relação obrigacional manifestando-se no vínculo dialético e polêmico, estabelecido entre devedor e credor, elementos cooperativos necessários ao correto adimplemento. Fundamental para essa modificação foi o estudo de H. Staub, Positive Vertragsverletzung, publicado em 1902, no Festschrififur das deutsche Juristentag, e, que, AO MEU VER, REVELA A APLICAÇÃO NO DIREITO GERMÂNICO DO CONCEITO DA COMMON LAW DE ANTECIPATED BREACH OF CONTRACT. (COUTO E SILVA, 1980, p.47). Em outra passagem do mesmo texto, novamente retoma o autor a discussão acerca das idéias de Staub, mais uma vez afirmando que “a partir da obra de H. Staub, em que se manifesta no Direito germânico o conceito de “quebra antecipada do contrato”, inicia-se uma nova concepção de relação obrigacional, com deveres secundários vinculados ao princípio da boa-fé.” (1980, p. 49)

120

na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratual? entre empresas e consumidores. (MARQUES, 1999, p.49).

Diante de tal quadro, a jurisprudência, libertando-se cada vez mais da concepção restrita

de separação de poderes e reconhecendo no ordenamento positivado um sistema aberto,

passou a responder aos novos fatos, aceitando que a boa-fé possui valor autônomo, não

relacionado com a vontade. Por ser autônomo, preleciona Clóvis do Couto e Silva (1980, p.

54) que

a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela (a vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes.

A modificação operada pela jurisprudência contribuiu para o arrefecimento do dogma

da autonomia da vontade, propiciando um tratamento objetivo da relação obrigacional. E

mais, assistiu-se a um crescente intervencionismo do Estado nas relações contratuais, de

modo a garantir a aplicação de uma justiça contratual, uma vez que a propalada liberdade das

partes contratantes, na concepção liberal, era meramente formal.

Forte na lição de Rogério Ferraz Donini (2000, p.74-75), segundo o qual “o princípio da

autonomia da vontade não autoriza que se pactue contrariamente aos ideais de justiça”, o

contrato passou a ter uma função social, que sempre esteve presente na teoria contratual, mas

“só não foi utilizada porque se acreditava que ela seria obtida pela simples atuação dos

contraentes, o que não aconteceu satisfatoriamente”.

Nesse contexto surge a teoria da boa-fé objetiva, de início, como já ressaltado

anteriormente, a partir da atuação jurisprudencial e, na atualidade, expressamente consignada

no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil brasileiro. Tal aplicação tão ampla

baseia-se no fato de que a boa-fé encontra-se identificada com valores fundamentais do texto

constitucional e apresenta-se como importante instrumento de garantia de aplicação dos

direitos fundamentais em geral, mas especialmente nas relações entre particulares. Sobre a

questão merece destaque o entendimento de Célia Slawinski (2000, p.85), a seguir transcrito:

Assim sendo, é igualmente incontroverso que a presença da cláusula geral da tutela da dignidade da pessoa humana - princípio constitucional fundamental - através do qual restou evidenciada a imposição de valores existenciais sobre as situações patrimoniais, consistiu em fator decisivo para a nova postura metodológica adotada pelo legislador infraconstitucional. Nessa linha, é possível dizer que foi, atendendo às diretrizes ditadas pelo Constituinte de 1988, que o legislador do Código de Defesa

121

do Consumidor [...], em momento de extrema felicidade, no tocante à observância dos princípios fundamentais - da dignidade da pessoa, da solidariedade social e da igualdade substancial, integrantes do Estado Social de Direito, optou por prestigiar incisivamente os princípios da boa-fé e do equilíbrio das prestações, que inequivocamente, restringem a importância antes conferida à vontade individual.

Do que foi exposto, pode-se concluir que o reconhecimento do princípio da boa-fé

objetiva, como instrumento de realização dos direitos fundamentais nas relações

interprivadas, é fruto da consolidação histórica de valores ligados à dignidade da pessoa

humana. No próximo item ter-se-á uma ligeira noção do desenvolvimento da boa-fé objetiva

no direito comparado. Diz-se aqui ligeira noção, pois apesar de ser inegável contribuição um

estudo aprofundado de Direito comparado, nesta pesquisa o objetivo precípuo é analisar a

questão no cenário brasileiro.

5.5 A boa-fé objetiva no direito comparado

5.5.1 A boa-fé objetiva na Alemanha

O sistema de codificação alemão diferiu em grande medida do sistema francês, marcado

pelo formalismo exegético. Primeiramente o conceito da boa-fé no direito das obrigações

originou-se da prática comercial alemã e da influência das decisões do OAG Lubeck

(Oberappelationsgericht zu Lubeck) (MARTINS-COSTA, 1999, p.209)64, decisões que

destacavam a boa-fé de forma tópica. Bem assim, do ponto de vista teórico, algumas correntes

de pensamento influenciaram a estruturação e sobrevivência do BGB, com destaque para o

jusracionalismo, as escolas histórica e pandectista, além da jurisprudência dos conceitos.

Segundo Maria Cristina Cereser Pezzella (1998, p.134), o legislador alemão não aderiu

sem restrições à teoria da vontade, preferindo a teoria da declaração, e em menor medida, a

teoria da confiança, quando da elaboração do BGB. Para a teoria da vontade, defendida por

Savigny e prevalente na doutrina alemã durante a passagem do século passado para o atual,

“engendrava a invalidade do negócio sempre que fosse verificada uma divergência entre a

vontade interna e a declaração, desprezando quaisquer requisitos”. Já a teoria da declaração

centra sua atenção no que foi exteriormente manifestado, subdividindo-se em duas formas: a

primeira privilegia a expressão literal da declaração, produzindo efeitos desde que observada

a forma, independentemente do objetivo querido; a segunda forma, um pouco mais branda,

64 Confronte Judith Costa (1999, p.209), trata-se de um Tribunal superior de apelação comercial criado para atender às necessidades comerciais das quatro cidades livres de Lubeck, Hamburg, Bremen e Frankfurt, fundado em 1815 e com sede em Lubeck.

122

chamada teoria da confiança, “considera inválido o negócio se a divergência existente entre a

vontade real e o sentido objetivo da declaração foi conhecida ou passível de ser conhecida

pela contraparte” (PEZZELLA, 1998, p.134).

Coube a Jhering, em 1861, a concepção da teoria da culpa in contrahendo, fundada na

divergência entre a vontade interna e a declaração, desprezados quaisquer outros requisitos na

teoria da vontade. Segundo tal teoria, surgiria para o declarante a obrigação de indenizar

quando o negócio findasse anulado por haver desconformidade entre a declaração e a vontade.

A indenização teria o escopo de resguardar o interesse contratual negativo, repondo a parte

lesada na situação que estaria se o negócio não se tivesse concluído.

Conforme ensina Menezes Cordeiro (2001, p.530), para Jhering a culpa in contrahendo

é um instituto de responsabilidade civil pelo qual, “havendo nulidade no contrato, uma das

partes que tenha ou devesse ter conhecimento do óbice, deve indenizar a outra pelo interesse

contratual negativo”.

Entretanto, reconhecendo insuficiente a teoria da culpa in contrahendo, a teoria da

responsabilidade passou a considerar valido o negócio sempre que divergisse a declaração da

vontade, em caso de dolo ou culpa, mas que estivesse de boa-fé a contraparte. Passou-se a

privilegiar a aparência exterior da vontade, presumindo-se desejado esse efeito aparente65.

Assim, a partir da Primeira Grande Guerra Mundial e sob os influxos de uma crescente

preocupação ética com o enquadramento do indivíduo e sua responsabilidade, ampliou-se o

uso do princípio da boa-fé objetiva na integração da vontade, em obséquio à proteção da

65 Nesse contexto é que ganha importância a teoria dos atos existenciais, oriundos das relações contratuais de fato, denominada ainda de teoria dos atos socialmente típicos (NEGREIROS, 1998, p.243). Segundo tal teoria, operou-se a máxima objetivação da vontade, identificando-se o suporte fático da vontade, sem conexão da mesma com seu lastro psicológico ou subjetivo quer em relação a atos praticados por incapazes, quer em relação a contratos massificados, retirando-se a vontade do indivíduo do centro do sistema do direito obrigacional em tais casos. È o que ensina Tereza Negreiros (1998, p.245-6) ao comentar decisões judiciais acerca da aplicação da mencionada teoria, quando conclui: “ é precisamente com base na boa-fé objetiva que se justifica, à luz da referida teoria, a criação de vínculo obrigacional resultante de uma radical objetivação da vontade [...]. Firma-se, portanto, a tese segundo a qual o comportamento das partes, num contexto de massificação dos contratos, é suficiente para qualificar, em razão da tipicidade social de uma tal conduta, aquela relação como uma relação jurídica, de natureza contratual , da qual surgem obrigações que, descumpridas, ensejam a responsabilização do devedor inadimplente. Trata-se de mais um aspecto das transformações por que vem passando o direito das obrigações desde que se lhe retirou a vontade do indivíduo como centro de toda investigação jurídica.” Impõe-se, ainda sobre a aludida teoria lembrar que a doutrina ainda se divide acerca de considerar tais atos como sendo negócios jurídicos ou simples ato-fato, pois como lembra Clóvis do Couto e Silva (1980, p.71-2), tais atos independem da vontade, sendo portanto, suscetíveis de anulação. Salienta o autor, entretanto, que ambas as concepções “têm sua base no fato de não parecer ético, nem razoável, pretender invalidar um ato jurídico que recai sobre coisas necessárias, sem as quais não pode uma pessoa razoavelmente existir”. E conclui o autor “Assim, explica-se porque o ato existencial, por não depender da vontade, constitui-se em ato-fato ou ato material, em que não se cogita, nem se investiga a existência da vontade.”

123

confiança, com vistas ao restabelecimento da justiça contratual material.

Para o estudo da boa-fé na Alemanha, de especial importância é a referência ao já

mencionado § 242 do BGB, o qual estabelece a cláusula geral de boa-fé, assim redigido: “o

devedor deve cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes

do tráfego jurídico” (MARTINS-COSTA, 1999, p.187).66

Tal dispositivo contribuiu para uma nova visão da relação jurídica obrigacional,

limitando muito a importância da autonomia da vontade67, ensejando a atuação criativa dos

juristas, mormente dos juízes, no preenchimento da cláusula geral insculpida no dispositivo

mencionado. Outro fator importante é o fato de reconhecer-se à boa-fé um valor autônomo,

baseando-se o mencionado § 242 nas mesmas idéias que fundamentaram a exceptio doli

generalis do Direito romano, frente à qual poderia evitar-se que se exigissem de modo não

eqüitativo as prestações. Conforme ensina Luis Díez-Picazo, na tradução espanhola de Franz

Wiacker, (1986, p.20) a exceptio doli “fue el instrumento jurídico a través del cual los

juristas romanos hicieron posible una aplicación de la bona fides, dotandola de una

protección mayor y más eficaz y arbitrando los médios necesarios para una solución más

equitativa de los problemas jurídicos”. Assim, a execptio doli “es una medida de defensa del

demandado frente a la actio ejercitada dolosamente que permite paralizarla precisamente a

causa de la contravención de la buena fé que ella producé” (1986). Na visão do citado autor,

não se pode dizer que subsista a exceção de dolo no direito atual, exatamente como prevista

no direito romano. Sem embargo, afirma que o reconhecimento da boa-fé como um limite ao

exercício dos direitos subjetivos obriga a reconhecer ao sujeito passivo do direito subjetivo

exercido contra os ditames da boa-fé, “unos medios de defensa per exceptionem que llevan a

enervar, repeler o detener la pretensión del titular del derecho y que estos medios se les

puede llamar genéricamente de exceptio doli” (1986, p.21).

66 Esclarece a autora que o texto apresentado é tradução de Menezes Cordeiro.67 Segundo Clóvis do Couto e Silva (1980, p.54), o aspecto mais importante da boa-fé em relação à criação judicial no caso concreto é o fato de que esta possui um valor autônomo, não relacionado com a vontade. “Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fitos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes”.

124

De grande importância, outrossim, é o estudo de Hermann Staub, já mencionado no

tópico anterior, o qual acresceu às formas de inadimplemento contratual até então aceitas a

noção de violação positiva do contrato, ou seja, o comportamento do devedor que faz o que

não deveria fazer e, com seu comportamento, traz dificuldades para o cumprimento da

avença. O referido estudo foi fundamental para o reconhecimento da boa-fé como fonte

autônoma de direitos e obrigações. Esses deveres secundários advindos da boa-fé vão

surgindo no desenrolar da relação obrigacional, pois sua existência demanda uma análise das

circunstâncias do caso concreto, desde antes da celebração do contrato até seu integral

cumprimento, e interessam à “exata satisfação dos interesses globais envolvidos nas relações

obrigacionais complexas. Os deveres secundários são relativos à pessoa e ao patrimônio da

contraparte” (PEZZELLA, 1998, p.137).68

Na visão atual, o princípio da boa-fé norteia todo o ordenamento jurídico e permite ao

juiz a elaboração da solução aplicável não só ao caso concreto, mas também às conseqüências

jurídicas daí decorrentes, num processo de concreção indispensável ao preenchimento de

cláusulas gerais, de sentido indeterminado, como é o caso do conceito de boa-fé objetiva.

5.5.2 A boa-fé objetiva em Portugal

Segundo ensina Clóvis do Couto e Silva, o Código Civil português contém quatro

artigos da mais alta relevância a respeito da boa-fé. Assim é que o art. 227 do referido

diploma estabelece que quem negocia com outrem para a conclusão de um contrato deve,

tanto nas preliminares, quanto na formação dele, proceder segundo regras de boa-fé, sob pena

de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte. Tal dispositivo admite que

não só no cumprimento do contrato, mas desde a fase de negociação, existem direitos e

deveres resultantes da boa-fé.

68 Jorge Cesar Ferreira da Silva (2002, p.78-9), citando Stoll, autor a quem coube a sistematização da idéia de deveres acessórios na relação obrigacional no ordenamento alemão, afirma que “toda relação obrigacional implica uma duplicidade de interesses. Num primeiro plano, as partes vinculam-se visando o objeto da prestação, cabendo ao resultado da atuação do devedor atingir o cumprimento. Trata-se, pois, de um interesse positivo: há que se fazer algo para que um determinado resultado seja atingido. De fundo, por sua vez, há outro interesse. Toda relação expõe a pessoa ou os bens de uma parte à atividade da outra, que pode, com essa atividade, provocar danos a tais bens ou colocá-los em perigo. Incide então a boa-fé, a regular uma série de deveres dedicados a evitar situações danosas. Esses deveres, assim, ao contrário dos anteriores, veiculam um interesse negativo: há que se fazer algo (ou tomar determinadas medidas) para que um determinado resultado não seja atingido. Esses deveres são por ele chamados de “deveres de proteção” (schutzpflichten), frequentemente representados em deveres de aviso e de conservação (Anzeige - und Erhattungspfflichten)”.

125

Ainda com base na lição do civilista, o art. 239 contém disposição peculiar do Direito

português, estabelecendo a regra mais importante a respeito da interpretação integradora da

vontade e do princípio da boa-fé.

Determina o referido dispositivo que na falta de disposição especial, a declaração

negocial deve ser integrada em harmonia com a vontade que as partes teriam tido se

houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa-fé, quando outra

seja a solução por eles imposta (COUTO E SILVA, 1980, p.67).

Assim, de acordo com o aludido dispositivo, chega-se à concreção da boa-fé se não for

possível integrar a vontade das partes e

Nesse sentido, afirma-se que a boa-fé enriquece o conteúdo da obrigação de modo que a prestação não deve apenas satisfazer os deveres expressos, mas também é necessário verificar a utilidade que resulta para o credor da sua efetivação, quando por mais de um modo puder ser cumprida. (COUTO E SILVA, 1980, p.68).

Já o art. 762, n. 2, do Código português determina que no cumprimento da obrigação,

assim como no exercício de direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.

Assim, muito embora o cumprimento da avença deva ser integral, a formulação do referido

dispositivo impõe a boa-fé como limite ao exercício do direito relativo ao cumprimento do

contrato, quando o exercício de resolução configurar-se como abusivo.

Na hipótese, o que se verifica é que a resolução da avença torna-se impossível de um

lado e, em contrapartida, o beneficiário não pode recusar-se a aceitar a prestação não integral.

Por fim, o já tantas vezes citado civilista, ao analisar o art. 434, n. 2, do Código

português, o qual estabelece a hipótese mais comum de aplicação da boa-fé, pois determina

que desde que haja um adimplemento substancial está legitimado o contratante ao preço

estipulado, sujeito tão-somente a uma reconvenção ou a uma ação em reparação por omissões

ou defeitos na execução, conclui que o princípio agasalha a possibilidade de revisão das

cláusulas contratuais ou até mesmo a rescisão do contrato, caso as circunstâncias em que se

realizou a avença sofram alteração anormal, afetando desmesuradamente os princípios da boa-

fé e desde que não sejam cobertas pelos riscos normais do contrato.

O Código Civil português contempla, dessa forma, a teoria da base negocial, a mais

drástica forma de intervenção no princípio da autonomia da vontade, atrelada à aplicação da

teoria da imprevisão no direito português.69 69 No que concerne as modificações supervenientes que atingem o contrato, temos que no Direito brasileiro,

126

Vista, em apertada síntese, a aplicação da cláusula da boa-fé no Direito alemão e no

Direito português, passar-se-á, no próximo tópico, a uma análise da aplicação do princípio da

boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro.

5.6 A prevalência da observação da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio

Conforme foi visto no tópico que tratou do conceito de boa-fé subjetiva, o Código Civil

brasileiro de 1916 não consignava uma regra genérica que se referisse expressamente à boa-fé

na formação ou execução dos contratos.

Entretanto, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátrias reconheciam que o princípio

da boa-fé, independentemente de sua positivação, poderia ser aplicado, pois seria um

consectário direto de necessidades éticas essenciais, sem as quais inexiste qualquer sistema

jurídico.70

diferentemente do Direito português, o Código Civil de 2002 adotou a teoria da onerosidade excessiva, na esteira do que está previsto no Código Civil Italiano sobre a questão. É o que se depreende da leitura do art 478 do citado diploma legal, a seguir transcrito: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para outra em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Parágrafo único: os efeitos da sentença que decretar a resolução do contrato retroagirão à data da citação.” Não obstante, ensina Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.52). que o Código Civil de 16, por não contemplar expressamente a regra a ser aplicada em casos de modificação ou extinção dos contratos por força de circunstâncias supervenientes, permitia “a aplicação da teoria da alteração da base objetiva do negócio, de maior flexibilidade”. Ainda sobre o tema observa Otávio Luiz Rodrigues Júnior (2002, p.155) que houve a inserção de uma nova figura no campo contratual que é a da resolução do contrato como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual, em contraposição à sistemática vigente antes da edição do novo Código Civil, segundo a qual praticamente só se poderia rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. E assim, fundamenta o autor o surgimento da nova figura mencionada: “o direito de resolução obedece a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função social, tanto como a propriedade. Reconhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude do advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente venham a alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes excessivamente onerosa”. 70 O Superior Tribunal de Justiça registra alguns casos em que figurou como relator o então Ministro Ruy Rosado Aguiar, como é o caso do RESP 32890/SP, DJ de 12/12/94, no qual se afasta a incidência de fraude à execução na circunstância em que o credor, com o objetivo de resguardar seu crédito, deveria ter registrado a execução intentada contra a construtora, que acabou vendendo dezenas de apartamentos a terceiros de boa-fé, que não tinham como desconfiar da transação, até porque foi esta efetuada com a concorrência da CEF. Em tais circunstâncias entendeu o relator que o credor tinha obrigação de adotar medidas oportunas para evitar a alienação dos imóveis aos adquirentes de boa-fé, dever que era decorrente da boa-fé objetiva. Em outro excerto, também da lavra do Ministro Ruy Rosado Aguiar Jr., publicado no DJ de 18/12/95, p. 44573, verificou-se que em razão de compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, por intermédio de “memorando de entendimento”, de que haveria a suspensão de execução judicial de dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gerou nos mutuários a justa expectativa de que essa suspensão ocorreria uma vez preenchidos os requisitos. Assim, entendeu o Relator que o direito à suspensão apresentava-se fundado no principio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito a lealdade. Já no RESP 10721 l/SP DJ de 3/2/97, Relator Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior, restou assentado o dever de proteção, advindo da boa-fé objetiva, a cliente de estabelecimento comercial que estaciona seu veículo em lugar destinado pela empresa, como um serviço extra destinado a seus clientes e tem seu veiculo furtado. Entendeu, ainda, que não houve um contrato de depósito, mas a empresa que se beneficia do estacionamento tem dever de proteção, como consectário do princípio da boa-fé objetiva. Outro acórdão que merece registro é o RESP 256274/SP, DJ de 18/12/00, 4ª. Turma, sendo Relator mais uma vez o pioneiro Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior,

127

No que tange às relações de consumo, a Lei n. 8.078/90, o Código de Defesa do

Consumidor, expressamente consignou o princípio da boa-fé em dois dispositivos, quais

sejam, o art. 4° e o art. 51. Este, ao tratar das cláusulas abusivas nos contratos de consumo,

afirma serem nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao

fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações iníquas, abusivas, que

coloquem o consumidor em desvantagem, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade.

Aquele, o art. 4°, ao estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo, determinou que

esta tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua

dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua

qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo,

estabeleceu, ainda, que a referida política deverá obedecer, entre outros, ao princípio da

harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização

da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico,

de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base

na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Quanto à regra insculpida no art. 4°, verifica-se que a mesma tem o caráter de princípio

orientador da interpretação dos contratos, de modo a conciliar a proteção do consumidor e os

ditames constitucionais sobre a ordem econômica71, ou seja, a boa-fé atua não só na defesa do

débil, mas em garantia da ordem econômica, à medida que enseja a compatibilização de

interesses antagônicos.

Conforme lição de Ruy Rosado Aguiar Jr., a aproximação dos termos ordem econômica

e boa-fé serve para realçar que esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico,

ligado à funcionalidade econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que

o contrato persegue. Nessa perspectiva, o princípio assume duas facetas, uma externa, na qual

o contrato assume uma função social, definido como um dos fenômenos da ordem econômica,

e outra interna, definindo-se como um vínculo funcional que estabelece uma planificação

econômica entre as partes, que devem comportar-se com o objetivo de garantir a realização

dos fins do contrato e a plena satisfação das expectativas dos participantes do negócio. Assim,

no qual se discute o direito a lucros cessantes e o período a ser considerado para a sua fixação. Entendeu o Relator que a avaliação do período a considerar para os lucros cessantes deve ser feita de acordo com a boa-fé objetiva, que impõe ao lesado colaborar lealmente, praticando atos que estavam ao seu alcance, para evitar a continuidade do prejuízo.71 Na visão de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1995, p.23), esse aspecto acima mencionado traz à tona um aspecto nem sempre considerado na boa-fé, consistente com sua vinculação com os princípios socioeconômicos que presidem o ordenamento jurídico nacional no âmbito da economia.

128

ensina o citado civilista,

o art. 4° se dirige para o aspecto externo e quer que a intervenção na economia contratual, para a harmonização dos interesses, se dê com base na boa-fé, isto é, com a superação dos interesses egoísticos das partes e com a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica através do comportamento fundado na lealdade e na confiança. (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p. 22).

A disciplina do Código do Consumidor impõe a conclusão de que o princípio da

autonomia da vontade deve ceder passo aos ditames éticos da boa-fé objetiva. Aliás, como

preleciona Célia Barbosa Slawinski (2000, p.85), é preciso salientar que “existe uma íntima

relação entre as razões que levaram o legislador do Código de Defesa do Consumidor (CDC)

a prestigiar a boa-fé objetiva e os valores fundantes do texto constitucional”, principalmente

dos valores ligados à dignidade da pessoa humana, por intermédio do qual ficou evidenciada a

imposição da prevalência dos valores existenciais72. sobre as situações patrimoniais,

precisamente sob os influxos de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua força

irradiante a partir do texto constitucional, para todo o ordenamento jurídico, conforme visto

no capítulo III do presente estudo.

Quanto à previsão estabelecida no art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, a

mesma tem âmbito de atuação mais extenso do que a exceptio doli generalis do Direito

romano, o que, aliás, já foi demonstrado anteriormente, quando analisado o princípio da boa-

fé na Alemanha.

O referido artigo trata de determinar as cláusulas contratuais consideradas abusivas. Do

disposto no aludido dispositivo, verifica-se que a abusividade pode ser detectada tanto a partir

da principal obrigação pactuada, como também a partir da violação de deveres de conduta

anexos ou acessórios, impostos pela boa-fé objetiva.73

72 Sobre a prevalência de princípios existenciais sobre situações patrimoniais, ver a obra de Teresa Negreiros (2002, p.29), na qual a autora propõe uma nova classificação dos bens a partir do que chama de paradigma da essencialidade, segundo o qual o critério que deve ser utilizado para a distinção dos contratos é o da imprescindibilidade e utilidade do bem existencial contratado, substituindo-se o critério de sua utilidade exclusivamente patrimonial. É o que se depreende do trecho a seguir transcrito: “a intenção desta pesquisa é relacionar algumas das mais importantes inovações que a teoria contratual vem sofrendo - mediante o estudo dos chamados “novos princípios do contrato”: boa-fé, equilíbrio econômico e função social [...] Com base em tais princípios e na metodologia que os mesmos encarnam, propõe-se o reconhecimento do paradigma da essencialidade [...], procurando-se demonstrar a sua utilidades como meio de adequação da dogmática contratual à ordem civil-constitucional. 73 Nesse sentido merece destaque o entendimento de Cláudia Lima Marques (2002, p.788) ao propor a sistematização dos vários tipos de cláusulas abusivas inseridas no art. 51 do CDC, o que faz nos seguintes termos: “se na quarta edição identificamos 15 tipos de cláusulas identificados pela jurisprudência, agora, gostaríamos de organizá-las conforme a dogmática alemã, isto é, partindo da cláusula geral de boa-fé para identificar o abuso. Se a abusividade nas cláusulas é violação de um dever de conduta (anexo, acessório ou principal) imposto pela boa-fé ou é a autorização contratual para uma prática que viole a boa-fé objetiva, que deve guiar todas as condutas dos fornecedores perante os consumidores.” E conclui a citada civilista,

129

No que tange ao novo Código Civil brasileiro, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a

boa-fé objetiva foi incorporada em três dispositivos diferentes, a saber: os arts. 113, 187 e

422, com três funções básicas. A primeira função, inserida no art. 113, é a de ser uma norma

de interpretação dos negócios jurídicos. Reza o referido dispositivo que os negócios jurídicos

devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Na atividade

interpretativa, conforme ensina Judith Costa (2002, p.61), a boa-fé tem a função de restringir

a autonomia da vontade, impondo certos deveres nem sempre presentes nas declarações de

vontade, “limitando o exercício de direitos na formação e execução dos contratos, reforçando

o poder das declarações negociais no seu sentido habitual”.

A boa-fé como cânone interpretativo deve considerar a “finalidade da relação jurídica

sub judice, e, neste (sic) sentido, condicionar a sua interpretação às circunstâncias concretas

do caso em exame na medida em que reveladoras desta (sic) finalidade” (NEGREIROS, 1998,

p.233). Assim, a boa-fé como regra de interpretação deve seguir a finalidade da relação

jurídica à luz das circunstâncias concretas, mas sempre lembrando que o princípio da boa-fé

não permite, em sua concreção, a existência de parâmetros prévios, tamanha é a importância

das circunstâncias específicas de cada caso concreto.

Conforme ensina Menezes Cordeiro (2001, p.649), nessa perspectiva a boa-fé objetiva

tem uma “natureza supletiva tendencial”, significando que não é possível determinar-se, em

termos abstratos, áreas imunes à boa-fé, pois “ela é susceptível de colorir toda a zona de

permissibilidade, actuando ou não consoante as circunstâncias”. Daí porque conclui o autor

português que a boa-fé “reduz a margem de discricionariedade da actuação privada, em

função de objetivos externos”. (CORDEIRO, 2001, p.649)

Ressalte-se, pois, dos comentários acima colacionados que na função de cânone

interpretativo dos contratos, a boa-fé deve ser analisada sob uma perspectiva teleológica, ou

seja, a partir das expectativas das partes quanto à produção dos efeitos dos pactos, sendo então

vedados atos que sejam prejudiciais ou estranhos a essa produção de efeitos desejada pelas

partes. A feliz conclusão de Menezes Cordeiro (2001, p.649) “a boa fé não contemporiza,

pois, com cumprimentos formais; exige, numa atitude metodológica particular perante a

realidade jurídica, a concretização dos escopos visados”.

apresentando o que chama de ponto “c” das cláusulas abusivas: “c.l) as que violam deveres principais de prestação ou deveres impostos pelo CDC, c.2) violam deveres anexos de cooperação; c.3) violam deveres anexos de informação; c.4) violam deveres anexos de cuidado, deveres auxiliares ou anexos ã prestação principal.

130

Ainda sobre o tema, impende destacar que essa finalidade a que remonta a boa-fé como

cânone de interpretação dos contratos não deve ser posta em termos individuais, mas em

termos sociais, o que pode impor deveres que não necessariamente têm origem na vontade das

partes. Essa a opinião de Teresa Negreiros (1988, p.235), com a qual se concorda, e que se

encontra vazada nos seguintes termos:

Deve-se anotar que esta finalidade é posta em termos sociais, e não individuais, donde se justifica que a sua consideração resulte em deveres não necessariamente reconduzíveis à vontade das partes. Na verdade, mesmo quando limitada aparentemente a uma função interpretativa, a boa-fé acaba por configurar-se como uma fonte de deveres ou de limitação a direitos subjetivos.

Dando prosseguimento à análise das funções da boa-fé no Código Civil brasileiro, tem-

se que no art. 187, que se encontra assim redigido, “também comete ato ilícito o titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou

social, pela boa-fé e pelos bons costumes”, a boa-fé caracteriza-se como limite para o

exercício de um direito subjetivo, pois aquele que for exercido em desconformidade com a

boa-fé será caracterizado como ilícito.74

Essa função limitadora do exercício de direitos subjetivos “veda ou pune o exercício de

direito subjetivo quando caracterizar abuso da posição jurídica” (AGUIAR JÚNIOR, 1991, p.

248) 75.

É justamente no âmbito dessa função limitadora que são estudadas as situações do

venire contra factum proprium, tu quoque, suppressio e surrectio. Para Teresa Negreiros

(2002), a função limitadora da boa-fé objetiva em relação ao exercício de direitos subjetivos,

na tradição da Europa continental, resulta na teoria dos atos próprios. Por tratar-se de resumo

extremamente feliz, vale transcrever a lição da mencionada professora:

de uma forma geral, a teoria dos atos próprios importa reconhecer a existência de um dever por parte dos contratantes de adotar uma linha de conduta uniforme, proscrevendo a duplicidade de comportamentos, seja na hipótese em que o comportamento posterior se mostrar incompatível com atitudes indevidamente tomadas anteriormente (tu quoque), seja na hipótese em que, embora ambos os comportamentos considerados isoladamente não apresentem qualquer irregularidade, consubstanciam quebra da confiança se tomados em conjunto (venire contra factum proprium). (NEGREIROS, 2002, p.142)

74 Sobre as críticas formuladas ao referido dispositivo, ensina Judith Costa que o mesmo tem caráter objetivo e prescinde de comprovação de dolo ou culpa, mas que o titular exceda os limites impostos pelo fim económico ou social, pela boa-fé e os bons costumes. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p.62-63).75 Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.248) colaciona como exemplo de limitação do exercício de direito subjetivo a proibição do exercício de resolver o contrato por inadimplemento, ou de suscitar a exceção do contrato não cumprido quando o incumprimento é insignificante, em relação ao contrato total. Trata-se do princípio do adimplemento substancial, que, segundo o citado autor, deriva da boa-fé e “exclui a incidência da regra legal que permite e resolução quando não observada a integralidade do adimplemento”.

131

Sobre o venire contra factum proprium, este significa a proteção contra a atuação

contraditória da parte em relação a um comportamento assumido anteriormente. Segundo Ruy

Rosado Aguiar Jr. (1991, p.248), “depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta

seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de

lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e

prejuízo à contraparte”.76 Explicitando o princípio, Menezes Cordeiro (2001, p.745) explicita

que o venire contra factum proprium enseja dois comportamentos da mesma pessoa, “lícitos

em si e diferidos no tempo”. Todavia, o primeiro, o factum proprium, é contraditório em

relação ao segundo.

Não obstante, adverte Teresa Negreiros (2002, p.147) que não basta afirmar-se que o

princípio do venire contra factum proprium consubstancia o exercício de uma posição jurídica

em contradição com o comportamento anterior que enseja a quebra da boa-fé porque se volta

contra as expectativas criadas, pois não são todas as expectativas criadas na outra parte

contratante que são contrárias à boa-fé, mas apenas aquelas que “à luz das circunstâncias do

caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente em indícios)

praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na

manutenção da situação assim gerada”. Nessa linha, a boa-fé objetiva pode ser invocada como

forma de preservar o contratante que sofreu prejuízos com a quebra da confiança por parte do

outro contratante que agiu de forma injustificada.

Já em relação ao tu quoque, ensina Menezes Cordeiro (2001, p.837) que se trata de uma

fórmula que traduz “com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole

uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma

norma lhe tivesse atribuído”. Assim, o contratante que descumpriu norma, seja contratual, seja

legal, não pode, posteriormente, exigir do outro contratante que cumpra a norma que eleja

descumprira, sob pena de afronta à boa-fé objetiva.77

O princípio inspirador do tu quoque é, em última análise, o mesmo que inspira o

76 Como exemplo cita Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.249) aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos sob o fundamento do uso indevido de sua inscrição. Outro exemplo diz respeito ao credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência do cumprimento literal da avença. 77 Como exemplos de tu quoque cita Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.250) o caso de condômino que viola regra do condomínio e deposita móveis em área de uso comum, ou a destina para uso próprio, não pode exigir do outro comportamento obediente ao preceito. Ou ainda, quem já está em mora, ao tempo em que sobrevêm circunstâncias modificadoras da base do negócio, não pode pretender a revisão ou resolução judicial.

132

princípio da exceção do contrato não cumprido, qual seja, o de preservação do sinalagma

genético nos contratos bilaterais, pois se o equilíbrio contratual deve ser preservado nos

termos da avença pactuada, não se pode permitir que o contratante faltoso pretenda obter

qualquer vantagem a partir da sua própria falta. E nessas hipóteses pode haver invocação da

boa-fé objetiva com vistas à preservação do sinalagma original.

No que concerne à suppressio, tem-se que “um direito não exercido durante um

determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa fé”78 (AGUIAR

JÚNIOR, 1991, p.249). Menezes Cordeiro (2001, p.799) ensina que a suppressio teve origem

na jurisprudência, sendo suas manifestações mais antigas constatadas no domínio da venda de

ofício comercial. A favor do comprador, nas seguintes circunstâncias:

A questão esquematiza-se desta forma: os §§ 346 ss. HGB, na versão em vigor na altura, permitiam ao vendedor na compra e venda comercial, havendo mora do comprador no levantamento da coisa, a sua venda de ofício, atribuindo-lhe, ainda, uma pretensão pela diferença do preço. A lei não fixava, porém, um prazo para o exercício destas faculdades. Podia, pois acontecer que o vendedor, dando a impressão de se ter desinteressado do contrato viesse, mais tarde, inesperadamente, a actuar as pretensões, de modo ruinoso para o comprador. Entendeu-se, bem, haver aí, em certas circunstâncias, uma demora desleal no exercício do direito, contrária à boa-fé.

A consagração dogmática da suppressio dar-se-ia, entretanto, de forma definitiva, a

partir das perturbações econômicas causadas pela Primeira Grande Guerra Mundial, em

alguns casos em razão do desequilíbrio extremo entre as partes, advindo do exercício

retardado de alguns direitos, somado à alteração imprevisível nos preços de certas

mercadorias; em outros, funcionando como um contrapeso do interesse do devedor em relação

ao direito de revalorização monetária do credor. Mais uma vez, vale-se da expressão de

Menezes Cordeiro, que com a precisão peculiar, assim explicou esse fenômeno:

A revalorização monetária conta-se entre os avanços mais significativos proporcionados pela boa fé à Ciência do Direito. Na sua base está a superação, por razões sociais imperiosas, do princípio nominalista, fixado por lei, através de pura acção jurisprudencial. Admitindo a possibilidade de revalorização monetária, por força da inflação, o RG protege, no essencial, a posição do credor. A suppressio vai funcionar como contrapeso dessa protecção, assegurando, desta feita, o interesse do devedor: a boa fé requer pela equivalência das prestações e pelo equilíbrio das situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a depreciação monetária (CORDEIRO, 2001, p.801).

Já a surretio é definida por Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991) como a outra face da

suppressio e consiste “no nascimento de um direito, sendo nova fonte de direito subjetivo, 78 O comprador que não retira as mercadorias não pode depois obrigar ao vendedor a guarda dos bens por tempo indeterminado; o contrato de prestação duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo tempo, por falta de iniciativa do credor, não pode ser exigido, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigação e programou sua vida nessa perspectiva. Exemplos de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.249).

133

conseqüente à continuada prática de certos atos”. Menezes Cordeiro (2001) preleciona que

quem desenvolveu a noção de surretio foi Jürgen Schmidt, analisando a possibilidade de

discrepância entre o sentido social de uma regulação jurídica e a efetividade social e a

tentativa que faz o Direito de eliminar essa discrepância. Nesse contexto, Menezes Cordeiro

(2001, p.816) assim resume o pensamento de Jürgen Schmidt:

Para Jürgen Schmidt, as regras codificadas quanto ao influxo da efectividade sobre a regulação jurídica constituem, até pela sua diversidade, legis speciales. Sobre elas, como complementação do Direito legislado, ergue-se a lex generalis, susceptível de revestir dois aspectos: ora faz desaparecer um direito que não corresponda à efectividade social – é a suppressio – ora faz surgir um direito não existente antes, juridicamente, mas que, na efectividade social, era tido como presente – é a surretio.

Por fim, retomando as funções da boa-fé previstas no Código Civil brasileiro, tem-se o

art. 422, que determina: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do

contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.” Tal preceito, que deve

informar todos os contratos, uma vez que se encontra nas disposições gerais do capítulo,

estabelece uma norma de conduta para os contratantes, a ser observada durante todo o

processo obrigacional. Fixa assim o novo Código uma base ética para o cumprimento dos

contratos, que resgata a noção de solidariedade e respeito às expectativas dos contratantes no

direito contratual.

Além da função integradora da obrigação, a boa-fé apresenta-se ainda como fonte de

direitos e obrigações, também chamados deveres secundários ou anexos, os quais atuam desde

a fase de formação do contrato. Tais deveres oriundos da aplicação da boa-fé objetiva

remontam à necessidade de cooperação e proteção dos interesses recíprocos, ínsitos na relação

obrigacional. Sobre a questão comenta Clóvis do Couto e Silva (1976, p.39) que, em termos

gerais,

há no contrato o dever bilateral de proteção. que impede que uma das partes cause à outra algum dano, em razão da sua atividade. Existem, assim, deveres do credor, que não são deveres para consigo mesmo, mas sim deveres jurídicos. Muitos deles consistem em conduta determinada, em comunicar algo, em indicar alguma circunstância, em fornecer informações, cuja omissão pode causar dano ao outro figurante.

O primeiro aspecto que deve ser ressaltado em relação aos deveres acessórios impostos

pela boa-fé objetiva à relação obrigacional diz respeito ao fato de que tais deveres não têm sua

origem necessariamente na vontade dos contratantes. Esse o entendimento de Menezes

Cordeiro (2001, p.615) ao afirmar que:

Os deveres acessórios de proteção nada têm a ver com a regulação contratual e com a sua execução fiel pelas partes. Visam, na verdade, obstar a que, na ocasião do

134

efectivar das prestações e dadas as possibilidades reais de agressão e ingerência provocadas por essa conjuntura, as partes se venham a infligir danos mútuos. A relação com o contrato, caso exista e seja ela qual for, não explica nem orienta esses deveres: eles radicam em níveis diversos da ordem jurídica, profundos sem dúvida, mas alheios à autonomia privada.

Na visão de Jorge César Ferreira da Silva (2002, p.54),

os deveres decorrentes da boa-fé podem [...] não ser declarados pelas partes, não ser por elas queridos ou ser por elas totalmente desprezados. Não obstante, participarão do conteúdo jurídico da relação, assim como participa desse conteúdo toda normatividade legal (em sentido estrito) não declarada ou querida pelas partes.

Isso porque toda obrigação envolve um complexo de relações jurídicas voltadas para o

adimplemento do ajuste feito entre as partes. Entretanto, a relação jurídica obrigacional enseja

duas espécies de deveres, quais sejam, deveres de prestação e deveres de proteção ou deveres

genéricos de conduta.

Nessa toada, verifica-se que “toda relação obrigacional possui deveres que a

identificam, centrados na espécie de prestação que a obrigação em questão veicula” (SILVA,

2002, p.70). Esses deveres são aqueles que identificam o tipo de obrigação assumida e são

chamados de deveres principais. Ao lado dos deveres principais, existem aqueles que também

dizem respeito diretamente à prestação, “mas que não apresentam qualquer particularidade

que as individualize” (SILVA, 2002, p.71). Esses são os chamados deveres secundários,

também denominados na doutrina como laterais, instrumentais ou anexos.79

Sobre a natureza dos mencionados deveres acessórios, afirma Menezes Cordeiro (2001,

p. 641) que se obteve uma certa unidade “em torno da sua natureza legal”. Já para Jorge César

Ferreira da Silva (2002), grande parte da doutrina tem sustentado a natureza contratual dos

deveres laterais, aí incluídos os deveres de proteção, principalmente em razão da atuação do

princípio da boa-fé como regra de colmatação da normatividade obrigacional, deslocando-se a

questão central do tema da seara da identidade de tais deveres para “os limites da

contratualidade de deveres que não diretamente se vinculam à realização da prestação

primária ou secundária” (SILVA, 2002, p.88), com o propósito de se evitar um alargamento

exagerado dos deveres abrangidos pelo vínculo.

Diante de tal quadro, coube à doutrina sistematizar os deveres acessórios, com vistas a

estabelecer quais aqueles incluídos no vínculo obrigacional, ainda que não ligados

79 Não faz parte do objetivo do presente estudo traçar o histórico do desenvolvimento da noção de deveres acessórios e suas subdivisões, razão pela qual remetemos à leitura da obras de Menezes Cordeiro, Ruy Rosado Aguiar Jr. e Jorge César Ferreira da Silva.

135

diretamente ao cumprimento da prestação dos deveres principais.

Em síntese muito feliz, Judith Martins-Costa (1999, p. 439) assim enumerou os deveres

acessórios oriundos da aplicação da boa-fé objetiva: a) os deveres de cuidado, previdência e

segurança; b) os deveres de aviso e esclarecimento; c) os deveres de informação; d) o dever

de prestar contas; e) os deveres de colaboração e cooperação; f) os deveres de proteção e

cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; e g) os deveres de omissão e de segredo.

Os mencionados deveres incumbem tanto ao devedor quanto ao credor e, como ensina a

mencionada autora,

não estão orientados diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais [...]. Estão, antes, referidos ao exato processamento da relação obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais envolvidos, em atenção a uma atividade finalística, constituindo o complexo conteúdo da relação que se unifica funcionalmente. Dito de outro modo, os deveres instrumentais ‘caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes’, servindo, ‘ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (MARTINS-COSTA, 1999, p.440)

Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991) apresentando outro critério para a classificação dos

deveres acessórios, afirma que estes podem ser classificados quanto ao momento de sua

constituição, dividindo-se em: a) deveres próprios do momento de constituição do contrato

(de informação, de segredo e de custódia); b) deveres da etapa de celebração do contrato

(equivalência das prestações, clareza, explicitação); c) deveres da etapa do cumprimento do

contrato (dever de recíproca cooperação para garantir os fins do contrato; satisfação dos

interesses do credor); e d) deveres após a extinção do contrato (dever de reserva, dever de

segredo, dever de garantia da fruição do resultado do contrato).

Especificamente no que pertine ao dever de informar, tem-se que o mesmo já se

encontrava expresso no antigo Código Civil, no art. 94, que disciplinava a omissão dolosa, e

nos arts. 1.443 a 1.446, que regulavam o contrato de seguro. Com o advento do Código do

Consumidor, várias regras foram incluídas com o escopo de regulamentar o dever de

informação. Entre outras, destaca-se a regra insculpida no art. 6°, III, o qual prescreve como

direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e

serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e

preço; bem como os riscos que apresentam”.

Bem assim, o capítulo relativo às práticas comerciais, regulado pelos arts. 29 e

136

seguintes do Código do Consumidor, estabelece uma série de condutas relativas ao dever de

informação, concernentes à veracidade da oferta e da publicidade.

Como visto, a boa-fé objetiva resta eficazmente disciplinada na perspectiva legislativa,

incumbindo aos juízes a sua realização no âmbito da aplicabilidade ao caso concreto. Essa a

questão a ser tratada no próximo tópico.

5.7 A boa-fé objetiva como parâmetro de observação pelos juízes

A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, como já

salientado anteriormente, está a exigir novas posturas do juiz, com vistas a conceder proteção

a direitos que extrapolam a ordenação privada e não se esgotam no âmbito do Direito Civil,

mas são uma imposição dos dias atuais, principalmente diante da constatação de que o Direito

Civil clássico, mesmo depois da edição do novo Código Civil, não é bastante para fornecer

essa mencionada proteção. Menezes Cordeiro (2001, p.654), em sua obra clássica sobre boa-

fé, chega mesmo a afirmar que “a colocação, no Direito privado, do tema do controle, pelo

juiz, do conteúdo dos contratos, pressupõe o abandono, também no Direito Privado, da

autonomia, como mero dogma formal, e a substituição pela regra da autonomia efectiva”.

Alguns elementos do Direito Civil clássico, mormente igualdade formal, a absoluta

autonomia da vontade, o princípio intangível da força obrigatória dos contratos, não podem

mais servir de parâmetro exclusivo para aplicador do Direito na análise dos casos concretos

postos a sua apreciação. Como lembra Luiz Edson Fachin (2000, p.258),

dada a ligação entre a sociedade e o fenômeno jurídico, não obstante a preocupação a partir de conceitos, faz-se mister que o operador do direito esteja atento à realidade circundante; é necessário ter em mente o contexto social e histórico, reconhecendo-se, então, o conjunto de normas, preceitos, princípios e valores desta sociedade e deste momento histórico.

Segundo preleciona Clóvis do Couto e Silva (1980, p.53), o princípio da boa-fé

direciona-se, sobretudo, ao juiz, pois o instiga a “formar instituições para responder aos novos

fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da

relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte”. O

conceito da boa-fé, como conceito aberto que é, exige do juiz a tarefa de adequar a aplicação

judicial aos novos fatos sociais, pois toda cláusula geral permite atividade criadora do mesmo.

No mesmo sentido é o entendimento de Franz Wieacker (1986, p.37), ao analisar a

criação judicial do direito a partir da concretização das cláusulas abertas. Vale transcrever sua

137

lição:

La ética social puede perfectamente establecer máximas hic et nunc, esto es, líneas directrizes de la conducta social, pero no esquemas normativos de validez general bajo los cuales pueda subsumirse un determinado supuesto de hecho mediante juicios analíticos. ‘Buena fe’ o ‘buenas costumbres’ no son moldes acabados, que el juez calca sencillamente sobre el material que há colocado debajo, sino una extraordinaria tarea que tiene que realizar el próprio juez en la situación determinada de cada caso jurídico.

Como um princípio que está permanentemente a exigir sua conformação a partir dos

elementos do caso concreto, o princípio da boa-fé objetiva permite ao juiz uma margem de

livre apreciação para sua concreção.80 A despeito disso, essa livre apreciação em absoluto se

confunde com o arbítrio81, pois a missão do julgador é a materialização das valorações ou dos

princípios encontráveis na Constituição, onde ao menos encontra uma direção previamente

traçada pelo legislador.

A boa-fé tem função integradora da obrigação, servindo como fonte de direitos e

obrigações paralelas ao acordo de vontades, a par de servir de vetor de interpretação das

cláusulas do contrato. Segundo lembra Ruy Rosado Aguiar Jr., os voluntaristas insistem em

reduzir o âmbito de atuação da boa-fé nos contratos ao que restou manifesto pelas partes na

avença, mas a aplicação da boa-fé extrapola esses limites, na medida em que a sua utilização

implica a criação da regra para o caso, de acordo com dados objetivos que o próprio caso

apresenta, “atendendo à realidade social e econômica em que o contrato opera, ainda que isso

leve para fora do círculo da vontade” (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p.25). Nessa toada,

consoante ensina Clóvis do Couto e Silva (1980, p.54),

o aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir valor autônomo em relação à vontade. Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e, sim pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se ‘construir’ objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes.

80 Ensina Maria Cristina Pezzella (1998, p.140) que “a concreção é um método que utiliza padrões, parâmetros identificáveis para a solução de casos concretos, admitindo um tipo de construção jurisprudencial, pois os princípios gerais do direito e os conceitos jurídicos indeterminados são pautas de valoração que carecem de preenchimento valorativo”. 81 José Carlos Moreira da Silva Filho (2003, p.377-378) estabelece etapas para a aplicação de um rigor metodológico na atuação do juiz para uma correta aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Assim, o juiz, ao deparar-se com uma relação contratual específica, deve: a) analisar o âmbito da norma, isto é de que modo o tipo de relação contratual se desenvolve no contexto da região e do país, quais as conseqüências de sua aplicação, que finalidades busca a atingir e quais os efeitos demandados pelos destinatários, qual o influxo que recebe das dimensões da vida social que lhe são conexas; b) conhecer os que os principais trabalhos doutrinários encerram sobre o tema; c) pesquisar a jurisprudência pátria e as próprias decisões tomadas anteriormente; d) atentar para as circunstâncias peculiares do caso sub judice e confrontar com todo esse material produzido, procurando cimentar em todos esses passos um fluxo coerente, de modo a permitir uma maior clareza e a construção de uma objetividade, sempre a partir do caso analisado, que se apóia profundamente na própria revelação do fenômeno jurídico.

138

Nesse passo, a par de facultar ao juiz a determinação da existência de deveres

acessórios, não expressamente previstos pelas partes, mas inerentes à finalidade buscada na

avença, observa-se ainda a necessidade de aplicação de uma máxima de conduta ético-

jurídica, que impede a atuação contrária à boa-fé.

Por força da lealdade a que as partes reciprocamente estão coligadas, não se permite que

o comportamento prévio de uma delas, gerador de justificada expectativa, seja contrariado

posteriormente em prejuízo da outra.82

Na aplicação da cláusula da boa-fé, o juiz parte do princípio de que toda “a inter-relação

humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e lealdade indispensável para o

próprio desenvolvimento normal da convivência social” (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p.25).

De todo o exposto acerca do princípio da boa-fé e a atuação judicial, resta consignar que

os juristas em geral, e em especial os juízes, na esteira do ensinamento pontificado por Mário

Júlio de Almeida Costa (1980, p.75), devem ter não só a consciência da “missão fundamental

que lhes pertence no encontro da massificação, pluralismo, tecnicismo e tecnocracismo que

caracterizam a sociedade contemporânea, mas, ainda, que saibam ser-lhes possível corresponder

à tarefa solicitada, dispondo de metodologia, normas, conceitos e princípios adequados”. Esse

papel do juiz em face dos fatos concretos se revela a partir da dinâmica da vida, em

contraposição aos sistemas cristalizados representados pelos códigos de leis, pois a vida, na sua

protéica diversidade, constantemente apresenta ao Direito novas ou renovadas exigências de

tutela, assim como reclama a solução de paralelos conflitos de interesses.

E, em correspondência a essas permanentes sugestões e solicitações, também no mundo axiológico-normativo e da construção dogmática se produzem verdadeiras descobertas, que não são outra coisa do que tentativas para melhor compreender e solucionar a realidade jurídica - portanto, ao serviço de mais uma justa e realizada existência individual e coletiva. Progresso moral acompanhando progresso técnico (COSTA, 1980, p.75).

É fato que a tradição do Direito Constitucional é mais recente se comparada à tradição

privatista que remonta aos romanos. Tal fato gera uma grande dificuldade para alguns juristas

que trabalham com Direito Civil em aceitar a Constituição como fonte do sistema. Sobretudo

no Brasil, quando se trata de atuação judicial, essa constatação se faz de modo mais

contundente. Tanto é assim que o Ministro José Delgado (2002, p.183), do Superior Tribunal

de Justiça, citando Celso Albuquerque de Mello, afirma que o Poder Judiciário,

82 Excerto colhido da Apelação Cível 589073956, relatado pelo então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Ruy Rosado Aguiar. (BRASIL. Tj, 2007, 0n line)

139

principalmente os tribunais superiores em Brasília, adota uma postura ultrapassada em Direito

Constitucional, sendo que seus integrantes ignoram que o espírito da Constituição de 1988

“era de ser, como dito pelo Presidente da Assembléia Constituinte, Ulisses Guimarães, uma

Constituição cidadã e os nossos Tribunais Superiores transformaram em uma Constituição

reacionária dentro do espírito de seus ministros”.

O fato é que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros ainda apresenta-se reticente em

relação à aplicação dos princípios correlatos da dignidade da pessoa humana, da solidariedade

social e da boa fé. Numa pesquisa aos bancos de dados do STF, verifica-se que nos últimos

três anos não foram proferidas decisões que consignassem expressamente a dignidade da

pessoa humana ou a solidariedade social como fundamentos de qualquer decisão.83 No STJ a

realidade não é mais alentadora, muito embora se possa registrar um número maior de

decisões baseados na dignidade da pessoa humana e no princípio da boa-fé objetiva.84 Como

exemplos da aplicação do princípio da boa fé objetiva na resolução ou modificação de

cláusulas contratuais, podem-se destacar os arestos da lavra da Ministra Nancy Andrighi

relativos a contratos de leasing mercantil, com índice de correção em moeda estrangeira,

reconhecendo que a liberação da limitação cambial gerou excessiva desproporção entre os

contratantes na prestação da avença, com a conseqüente quebra do princípio da boa-fé

objetiva.

83 A mencionada pesquisa foi realizada no site oficial de jurisprudência do STF, cujo endereço é www.stf.gov.br. considerando como critérios de pesquisa as expressões dignidade da pessoa humana e solidariedade social.84 Pesquisa realizada no site oficial de jurisprudência do STJ, cujo endereço é www.stj.gov.br. considerando como critérios de pesquisa as expressões dignidade da pessoa humana e boa fé objetiva.

140

Bem assim, em julgamento do RESP 35682 l/RJ, reconheceu a mesma relatora que

deveria ser mantida situação na qual proprietários de duas unidades condominiais faziam uso

de áreas de propriedade comum, exclusivamente, pois eram os únicos com acesso ao local, e

por mais de trinta anos, manutenção devida em respeito à boa fé objetiva, conforme

demonstrado a partir das circunstâncias concretas do caso.85 Ainda no âmbito do STJ, convém

destacar a atuação do Ministro Ruy Rosado Aguiar, hoje aposentado, na relatoria de alguns

expressivos precedentes86. Entre os mais interessantes é de se mencionar o RESP 272739/MG,

versando a causa sobre alienação fiduciária, tendo sido formulado pedido de busca e

apreensão de veículo. Reconheceu o relator a quebra do princípio da boa fé objetiva, com base

no adimplemento substancial das prestações, pois faltava o pagamento da última apenas.87

Tratando-se de seguro acidente, em caso em que era discutido o termo a quo para

cobrança do referido seguro, reconheceu o citado relator que a boa fé objetiva impede que

uma parte alegue contra outra um fato que ela mesma não aceita. A ementa do acórdão está

vazada nos seguintes termos:

Seguro acidente. Invalidez permanente. Prescrição.Termo ‘a quo’.

- A prescrição da ação de cobrança do seguro por acidente no trabalho somente flui desde a data em que o seguro toma conhecimento inequívoco da existência da invalidez permanente, através de laudo médico elaborado para esse fim, indicando causa, sua natureza e extensão, não se considerando suficiente ter realizado consultas, tratamentos ou recebido diagnósticos.

- Não aceitando a seguradora os dados de que dispunha em seu departamento médico como suficientes para caracterizar a incapacidade coberta pelo seguro, nem reconhecendo como bastante o laudo apresentado pelo segurado ao propor a ação, o que determinou a realização de perícia em juízo, não pode ela invocar aquelas datas anteriores para a fluência do prazo prescricional, pois se ela mesma não aceita aqueles fatos como reveladores da incapacidade, não pode esperar que sejam considerados para a contagem do prazo que marcaria a inércia do titular do direito.

- A boa fé objetiva, que também está presente no processo, não permite que uma parte alegue contra a outra um fato que ela não aceita e para o qual exige prova judicializada. Recurso conhecido e improvido.88

No âmbito dos Tribunais estaduais, a realidade é muito semelhante, pois se registram

alguns precedentes que tomam como fundamento decisório diretamente o princípio da

dignidade da pessoa humana ou da boa fé objetiva, sem que os mesmos representem uma

rotina ou se apresentem em número expressivo. É o caso do acórdão proferido na Apelação

Cível 2002.01.1.0453576 - DF, da lavra do Desembargador Mário Machado, versando sobre

contratos conexos de financiamento hipotecário de seguro de vida. No que tange à boa fé 85 RESP 356821/RJ. Rel Min. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, DJ de 5/08/2002.86 Conferir também o AGA 47901/SP; 4ª. Turma, DJ de 31/10/1994, sobre furto de estacionamento.87 RESP 272739/MG. Rel: Min. Ruy Rosado de Aguiar. 4ªTurma.88 DJ de 2/4/2001. RESP 184573/SP. 4*Tunna. DJde 15/03/1999.

141

objetiva, assim se manifestou:

O princípio da boa fé objetiva, consagrado na legislação consumerista, e, agora, também, no Código Civil (art. 422), entre outras, na moderna teoria contratual, possui a função de fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os denominados deveres anexos. São eles os deveres de informação, de cooperação e de cuidado. Interessa, no caso, o segundo, o de cooperação. Por este dever, o contratante, na execução do contrato tem a obrigação de colaborar para o cumprimento do contrato, conforme o paradigma da boa fé objetiva, agindo com lealdade e transparência, não impedindo ou obstruindo a normal consecução das finalidades contratuais.

Entretanto, mesmo com todos os precedentes jurisprudenciais citados, o fato é que

comparando-se o número de excertos encontrados com o número de precedentes localizados,

estes ainda são minoria, considerando-se o universo pesquisado. Esse fato não passa

despercebido à doutrina que reconhece a timidez da aplicação do princípio da boa fé, como se

depreende da opinião de Teresa Negreiros (2002, p.21), ao firmar que “ainda pouco veiculada

pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, a tutela da dignidade da pessoa humana é

expressamente invocada pela jurisprudência em outros países”

No mesmo sentido a lição de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.159) ao aduzir que a

prática judiciária brasileira é arredia ao uso de cláusulas gerais, tratando da boa fé objetiva,

bem como se apresenta amplamente dominada pelo dogma da supremacia da vontade.

Não obstante, é no texto constitucional que se encontram os objetivos, princípios e

valores que devem permear todo o ordenamento jurídico. Urge reconhecer-se que o Direito

Civil não é politicamente neutro, como preconizou o projeto liberal, e que a Constituição

aplica-se diretamente às relações entre os particulares.

A releitura funcionalizante dos institutos clássicos do Direito Civil, a partir dos

princípios constitucionais, traz em si a noção de que a idéia de que os sujeitos são iguais e

livres não atende mais às necessidades da sociedade atual. Dessa forma, assim como os

direitos fundamentais assumem uma função tutelar, não só contra o Estado, mas contra todas

as formas de seu amesquinhamento, também assim o Direito Civil assume a mesma feição

tutelar. Onde antes reinava absoluto o indivíduo, sua liberdade e sua vontade, imperam agora

a pessoa, sua dignidade e solidariedade em relação aos demais integrantes da sociedade.

Mas o que significa, na prática, essa função tutelar e como compatibilizá-la com a

autonomia da vontade, que ao fim e ao cabo, ainda se apresenta como postulado fundamental

do Direito Civil? Na verdade, partindo do princípio fundante da dignidade da pessoa humana,

142

é que se fará o equacionamento entre a vontade individual e a solidariedade social,

acentuando-se a “dimensão social dos valores individuais” (NEGREIROS, 2002, p. 38).

Na lição de Teresa Negreiros (2002, p.93), a textura aberta dos princípios

constitucionais em comparação à técnica predominantemente casuística presente nos Códigos

faz com que a valorização da Constituição contribua para “a renovação das técnicas de

interpretação que passam a ser utilizadas pelo intérprete do direito civil”. E essa propalada

mudança de postura no sentido de uma maior efetividade das normas constitucionais passa,

necessariamente, pelo impulso da militância jurídica, aqui compreendida não só a

magistratura, mas membros do Ministério Público, defensores públicos, advogados,

professores de direito, entre outros.

Quando se considera a boa-fé e a tarefa dos juízes, conclui-se que há, na aplicação do

mencionado princípio, uma verdadeira criação do Direito por parte do juiz, sempre vinculada

à pauta axiológica fixada pela Constituição, pois ao juiz não é dado, na sociedade atual, fixar-

se somente no princípio da estrita legalidade, que, como foi visto anteriormente, assume, nos

dias de hoje, novos contornos. E mais, as categorias e conceitos do Direito Civil devem ser

preenchidos pelos valores constitucionais, principalmente a partir da força normativa atribuída

aos seus princípios, pois isso impõe ao aplicador do direito “a tarefa de reordenar

valorativamente o direito civil”. (NEGREIROS, 2002, p.56). Vale, por absolutamente

oportuna, a afirmação de Teresa Negreiros (2002, p.56-57), a seguir transcrita:

A leitura do direito civil segundo o modo de ver constitucional concebe o intérprete e aplicador do Direito como protagonista da reconstrução do sistema jurídico, não mais centrado no Código, mas na Constituição. Neste (sic) contexto tem-se bem a medida da importância dada ao intérprete, a quem compete, nas palavras convidativas de Pietro Perlingiere, a elaboração de um sistema fundado nos valores presentes no ordenamento jurídico vigente.

E sob essa perspectiva, tem-se que o reconhecimento da aplicação dos direitos

fundamentais nas relações entre particulares assume uma função decisiva em se tratando da

aplicação do princípio da boa fé pelos Tribunais brasileiros. Essa aplicação dos direitos

fundamentais na esfera interprivada se dá não nos moldes do Direito Civil e seus contornos

clássicos, mas a partir do arcabouço constitucional e, somente a partir da difusão desse

entendimento, é que se terá o efetivo reconhecimento da dignidade da pessoa humana como

princípio reorientador das relações patrimoniais.

143

CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais, conforme restou assentado, são uma conquista histórica,

previstos em uma ordem constitucional específica e se constituem no grande desafio do

Direito Constitucional moderno, pois mais do que reconhecê-los, importa hoje saber como

torná-los efetivos. Como impedir que, a despeito das declarações solenes, esses direitos sejam

violados.

Ditos direitos caracterizam o “direito” de um Estado Democrático e, apesar de terem

sido caracterizados em princípio como direitos de defesa contra o Estado, hoje se

transformaram nos princípios basilares da ordem jurídica, transformando, assim, o conteúdo

das liberdades individuais ou subjetivas no conteúdo de normas fundamentais que penetram e

moldam o direito objetivo.

Parte-se, pois, da análise de algumas vertentes teóricas da dogmática dos direitos

fundamentais, para, em seguida, s realizar um estudo histórico desses direitos, considerando

não somente a importância hermenêutica de tal abordagem, mas também o fato de que seu

surgimento remonta ao surgimento do moderno Estado constitucional, no seio do qual se

reconhece e se busca assegurar a dignidade da pessoa humana.

Conforme visto no decorrer da pesquisa, de grande importância para o estudo realizado

é a mudança do paradigma liberal, segundo o qual os direitos fundamentais possuíam uma

dimensão apenas subjetiva, cujo parâmetro era tão-somente a liberdade e autonomia do

indivíduo, em sua perspectiva formal e abstrata. Segundo esse modelo, ao Estado era

cometida a tarefa de resguardar a liberdade individual, abstendo-se de interferir na esfera

pessoal dos cidadãos, sendo que os direitos fundamentais representavam uma garantia contra

a ingerência do Estado na liberdade individual.

Sob os influxos dos processos de socialização e democratização, a liberdade

paulatinamente passou a ser conceituada como um valor social, passando o Estado a assumir a

tarefa de assegurar, além de respeitar, o efetivo exercício da liberdade individual.

Demonstrou-se que os direitos fundamentais assumem uma dimensão objetiva,

significando que não podem ser vistos apenas da perspectiva do indivíduo, mas valem

juridicamente do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins consagrados por seus

integrantes.

Consectário direto da dimensão objetiva dos direitos fundamentais foi o reconhecimento

de sua eficácia irradiante, ou seja, os valores manifestos nos direitos fundamentais exercem

influência por todo o ordenamento jurídico, apresentando-se como vetor de interpretação das

normas legais e vinculando o legislador, a administração e o Judiciário.

Dessa forma, o Direito Privado, antes o grande baluarte da liberdade individual, agora

passa a ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, ensejando um arrefecimento da

distinção público/privado. A Constituição situa-se no ápice do ordenamento jurídico, acima,

portanto, das demais normas, principalmente porque incorpora o sistema de valores essenciais

de convivência da sociedade, que informa a interpretação desse ordenamento.

Nesse contexto é que se desenvolveu a presente pesquisa, pois de um lado reconhece-se

a necessidade de se proteger o indivíduo não somente contra o Estado, mas contra todas as

formas de agressão, ainda que advindas de entes privados. De outro, conclui-se que é

imperiosa uma renovação e funcionalização do Direito Civil, a partir da valorização da pessoa

humana e com vistas à criação de uma sociedade livre, mais justa e solidária. Isso tudo sem

desconsiderar o sistema próprio do Direito Privado e a existência ainda da autonomia da

vontade.

A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares apresenta-se,

assim, a partir de uma dupla abordagem, sendo a primeira que considera os direitos

fundamentais como princípios constitucionais, com dimensão objetiva, que não podem deixar

de ser aplicados em toda a ordem jurídica, inclusive no Direito Privado, e uma segunda

abordagem que privilegia a noção de que há a necessidade de proteger os indivíduos não

somente contra o Estado, mas, de igual forma, contra outros indivíduos ou entidades privadas

que sejam equiparadas a poderes quer jurídicos, quer de fato. Como ficou demonstrado, o

poder, como manifestação de desigualdade, não é prerrogativa do Estado, mas inerente e

disseminado na sociedade.

145

Os direitos fundamentais são normas de caráter obrigatório e não valores que expressam

relações de preferência. Desconhecer as relações assimétricas de poder nas sociedades

contemporâneas significa pêr em risco a própria teleologia dos direitos fundamentais: a

liberdade individual fica ameaçada diante da desigualdade entre a força daqueles que

controlam os mercados de produção e de consumo e a debilidade dos excluídos desse

processo.

Na verdade, forçoso é reconhecer que as ameaças advindas do Estado são hoje cada vez

menores se comparadas às ameaças oriundas da própria sociedade. Acresça-se a isso o fato de

que as decisões do poder público são controladas pelo Judiciário, o que nem sempre acontece

com as interferências do poder privado, que tende a receber uma parcela de impunidade, em

nome da autotutela dos interesses privados.

Por tudo isso se reconhece a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre

particulares, justificando-se a extensão desses direitos às relações privadas pela premência de

proteção contra os abusos do poder privado.

Bem assim, é possível a convivência da racionalidade própria do Direito Privado com as

técnicas de proteção dos direitos fundamentais, que buscam regular situações concretas da

vida, quer se admita a aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre

particulares, quer se admita essa aplicação de maneira apenas mediata.

O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua força

irradiadora no ordenamento jurídico fazem arrefecer a dicotomia eficácia imediata/mediata,

nos termos apresentados na pesquisa, em nome do reconhecimento de que as soluções devem

ser apresentadas no caso concreto. Ou seja, não existem fórmulas apriorísticas, uniformes e

definitivas para se determinar se os direitos fundamentais têm aplicação direta nas relações

privadas ou aplicação indireta, por intermédio da atuação do legislador e do juiz no processo

de concreção das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados. O fato é que se reconhece

possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, sendo

que, independentemente de se admitir uma aplicação imediata ou somente mediata, da

perspectiva prática, em ambos os casos há a necessidade de ponderação de elementos a partir

do caso concreto.

146

Os direitos fundamentais não são normas meramente interpretativas, e sim direito

substancial. Não se dirigem apenas aos governantes, mas a toda sociedade. Assim, opina-se

que sua aplicação no Direito Privado, a partir do princípio da boa-fé objetiva, dá-se dentro da

perspectiva de que os direitos fundamentais são o centro do sistema de valores e constituem-

se como expressão de um modelo de dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, os direitos

fundamentais não são de aplicação voluntária ou subjetiva do juiz, mas de aplicação

vinculada, tendo em conta a supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico.

O princípio da boa-fé é materializado, sobretudo, na cláusula da boa-fé objetiva, a qual

constitui-se numa cláusula geral que demanda um esforço de concretização do aplicador do

direito, a qual foi positivada em dois diplomas legais recentes: o Código de Defesa do

Consumidor e o novo Código Civil brasileiro. Seu reconhecimento, como ficou demonstrado,

insere-se num processo de retomada da consciência ética no Direito Civil, principalmente no

direito das obrigações, imprimindo novas feições ao cunho patrimonialista e voluntarista que

sempre orientou o estudo desse ramo do Direito. Sua aplicação busca a realização de valores

supremos inseridos no texto constitucional, principalmente a dignidade da pessoa humana.

O princípio da boa-fé objetiva estabelece, sobretudo, a obrigatoriedade de respeito às

expectativas dos contratantes com a realização da avença, antes, durante e depois da

realização do contrato. Possui, assim, uma função integradora da obrigação, que impõe um

dever de lealdade entre as partes.

É ainda fonte de direitos e obrigações acessórias que remontam à necessidade de

cooperação e proteção dos interesses recíprocos na relação obrigacional. Dessa forma,

conclui-se que a relação jurídica não se define mais somente a partir da autonomia da

vontade, mas consubstancia-se como uma relação de cooperação entre as partes, que impõe a

obrigação de agir com lealdade e correção. Por isso, apresenta-se ainda como limitadora do

exercício de direitos subjetivos.

Por fim, verificou-se que a boa-fé objetiva direciona-se, sobretudo, aos juízes, exigindo-

lhes a assunção de novas posturas, com vistas a conceder proteção a direitos que extrapolam a

ordenação privada, mas não se esgotam no âmbito do Direito Civil. Por exigir uma

conformação do Direito a partir dos elementos do caso concreto, a boa-fé possibilita ao juiz

realizar a materialização dos princípios encontráveis na Constituição.

147

Não obstante, a aplicação do referido princípio, tanto quanto a proteção dos direitos

fundamentais nas relações entre particulares, principalmente no caso brasileiro, está a

demandar uma mudança de mentalidade da militância jurídica. Só a partir do efetivo

reconhecimento e aplicação da dignidade da pessoa humana como centro das ações

interprivadas é que se poderá sonhar com uma sociedade mais justa, mais solidária, que

reconheça no outro um indivíduo também detentor de direitos e de expectativas, merecedor de

respeito. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los,

incorporando-os ao dia-a-dia dos cidadãos para que a eficácia dos direitos fundamentais nas

relações entre particulares tenha por escopo alcançar restrições em que os agentes econômicos

provocam vulnerações aos bens jurídicos tutelados constitucionalmente.

Finaliza-se o presente trabalho homenageando o jurista Paulo Bonavides (2000, p.601),

a quem, com muita propriedade, enfatiza o problema central trazido pelo presente estudo:

Quem governa com grandes omissões constitucionais de natureza material menospreza os direitos fundamentais e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. Governa, assim, fora da legítima ordem econômica, social e cultural e se arreda da tridimensionalidade emancipativa contida nos direitos fundamentais da segunda, terceira e quarta gerações.

148

REFERÊNCIAS

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Revista Direito do consumidor. [SI], v. 14, p.20-27, abr./jun.1995.

______. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). Rio de Janeiro: Aide, 1991.

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

ALVES, José Carlos Moreira. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Revista Roma e América, Roma, v. 7, 1999.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.

AZEVEDO, António Junqueira de. A boa-fé na formação dos contratos. Revista da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 87, p.79-89, jan./dez. 1992.

BARBOSA Heloísa Helena. Perspectivas do direito civil para o próximo século. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 6/7, 1998/99.

BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Contornos atuais da teoria dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagfgesellschaft, 1993.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

______. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

______; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1984.

CASTRO, Roberto Siqueira. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas: Estudos em homengem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CITTADINO, Gisele. Pluralismo direito e justiça distributiva: Elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

______. Princípios constitucionais, direitos fundamentais e história: Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

COMELLA, S. La eficácia horizontal de los derechos constitucionales frente a los particulares. Disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/lawfac/fiss/scomella.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2003.

CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais: Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Aspectos modernos do direito das obrigações. In: COSTA, Mário Júlio de Almeida et al. Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português: (I Jornada Luso-brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In: COSTA, Mário Júlio de Almeida et al. Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português: (I Jornada Luso-brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976.

DE CARA, Juan Carlos Gavara. Derechos Fundamentales y Desarrollo legislativo: La garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley fundamental de Bonn. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994.

DELGADO, José Augusto. A evolução conceitual dos direitos fundamentais e a democracia. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva. Brasília, STJ, v. 12, n. 2, p. 161-196, jul./dez. 2000.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

DONTNI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999.

______. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: VIANA, Ruy Geraldo Camargo (Org.). Temas Atuais de Direito Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Batista Machado 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkia, 1983.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

______; BANHOZ, Rodrigo Pelais. Crítica ao legalismo jurídico e ao historicismo positivista: ensaio para um exercício de diálogo entre história e direito, na perspectiva do Direito Civil

contemporâneo. Diálogos sobre direito civil. Construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e directo: O exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El Derecho Civil Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1991.

GALLUPO, Marcelo Campos. O que são direitos fundamentais? Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

GARCIA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporâneo. Madrid: Alinaza Editorial, 1982.

GARCIA TORREZ; JIMENEZ BLANCO. Derechos fundamentales y relaciones entre particulares: La Drittwirkung en la jurisprudência del Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas Editorial, 1986.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.

GOMES, Orlando. Contratos. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Porto Alegre: Sérgio António Fabris editor, 1997.

HABERMAS, Jürgea. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria de sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kote. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

______. A constelação pós-nacional e o futuro da democracia. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Litera Mundi, 2001.

HESPANHA, António M. Panorama Histórico da cultura jurídica européia. Portugal: Europa-América, 1997.

HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Madrid: Editorial Civitas, 1995.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos Gerais. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo. LTr, 2003.

LA CRUZ, Rafael N.de. Los limites de los derechos fundamentales en Ias relaciones entre particulares: la buena fe. Madrid: Centro de Estúdios Politicos Y Constitucionales, 2000.

LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado: Cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

LEWICKL Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

LINETZKY, Andrés Jana. La eficácia horizontal de los derechos fundamentales. Disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/lawfac/fiss/sjana.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2003.

LOPES, Carla Patrícia Frade; SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Curso básico de direito administrativo. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

LUÑO, António Enrique Perez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986.

______. Los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1988.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2002.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

______;BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Direito privado como um “sistema em construção” – as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.753, jul. 1998.

MENDES, Gilmar et al. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

______. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos, 1999.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Editora. Coimbra, 1998.

MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo: Moderna, 1999.

NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

______. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

______. Teoria do contrato. Novos paradigmas. Rio de Janeiro. Renovar. 2002.

NERY, Rosa Maria de Andrade;VIANA, Rui Geraldo Camargo (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

NEVES, Gustavo K. M. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

NOVAIS, Aline Arquete Leite. Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

PERLINGEERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. O princípio da boa-fé no direito privado alemão e brasileiro. Revista Síntese Trabalhista, ano VIII, n. 103, p.131-157, jan.1998.

PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Lisboa: Almedina, 1979/80.

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.

RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial dos contratos. Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo. Atlas, 2002.

ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Trad. Joel Pimenta de Ulhôa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Breves reflexões sobre a eficácia atual da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil-constitucional. Renovar: Rio de Janeiro, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2001.

______ (Org.). A Constituição concretizada. Construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de janeiro: Lumen Júris, 2004.

______. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio António Fabris editor, 1999.

SILVA, Jorge César Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro. Renovar, 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2001.

______. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000.

SILVA, Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da. Vinculação das entidades privadas pelos

direitos, Iibertades e garantias. Revista de Direito Público, n. 82, p 41-52, abr./jun. 1987.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Processo constitucional, democracia e direitos fundamentais. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

SUNFELD Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito civil - constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

______. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. Anais do Seminário Luso-brasileiro sobre as novas tendências do direito civil, v. 52, 1998.

______. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares: Analisis de la jurisprudência del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Politicos y Constitucionales, 1997.

WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Trad. José Luís Carro. Madrid. Civitas, 1986.

______. Los derechos fundamentales en la frontera entre lo publico y lo privado. Madrid: Mcgraw Hill, 1997.