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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DANILO CARVALHO 1 Considerações sobre a teoria do ator rede e o problema da objetivação na pesquisa em Ciências Sociais em Saúde. Trabalho publicado e apresentado oralmente no Seminário de Pós Graduação em Ciências Sociais do PPGCS da Universidade Federal da Bahia / UFBA 2008. Salvador – Bahia Novembro de 2008 1 Pedagogo – UFBA, Educador Ambiental, Mobilizador Social e Agente de Saúde. [email protected]

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Artigo que trata do problema da conceituação científica e filosófica da "saúde", discutido problemas metodológicos presente nas ciências sociais ao tratar do campo da saúde, apontando para contribuições da Teoria do Ator Rede de Bruno Latur.

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Page 1: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS

SOCIAIS

DANILO CARVALHO1

Considerações sobre a teoria do ator rede e o problema da objetivação na pesquisa em Ciências Sociais em Saúde.

Trabalho publicado e apresentado oralmente no Seminário de Pós Graduação em Ciências Sociais do PPGCS da Universidade Federal da Bahia / UFBA 2008.

Salvador – Bahia

Novembro de 2008

1 Pedagogo – UFBA, Educador Ambiental, Mobilizador Social e Agente de Saúde. [email protected]

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RESUMO Ao tratar de uma abordagem científica de análise social aplicada ao campo da saúde, é

importante partir da discussão a respeito tanto do que se entende por “saúde”, quanto de quais

são as condições através das quais essa noção é produzida, para que seja possível discutir suas

implicações. O estudo crítico dos princípios, dos meios e dos fins da análise social possibilita

melhores considerações sobre a natureza do conhecimento produzido em cada perspectiva

sociológica, de modo a melhor auxiliar na identificação de lacunas e superações teórico-

metodológicas presentes no campo de sua aplicação. Partindo de controvérsias a respeito do

conceito de saúde e dos problemas teórico metodológicos presentes nas perspectivas de análise

social, se discutiu a possibilidade de superação de lacunas historicamente presentes no campo da

pesquisa em saúde, a partir da contribuições da Teoria do Ator Rede.

INTRODUÇÃO Considerando a heterogeneidade de definições sobre o conceito de saúde, no primeiro

capítulo, foi feita uma revisão deste a partir das contribuições do Canguilhem (2005)

(Escritos sobre Medicina), concordando com o apelo do autor ao desenvolvimento de

uma segurança a ser dada ao tratamento deste conceito através da cientificidade, como

proteção contra usos arbitrários, abrindo caminho para uma abordagem que considere

tanto a dimensão subjetiva quanto a objetiva na definição do conceito de saúde.

No segundo capítulo, especialmente a partir das contribuições de Alves (1995), foram

discutidos os problemas de ordem teórico-metodológicos presentes na perspectiva de

análise social no campo da saúde, para que fossem levantadas demandas de superação

de reducionismos historicamente presentes na perspectiva de análise social deste campo

no Brasil. Neste mesmo capítulo será discutida a importância da perspectiva

compreensiva como orientação para o desenvolvimento de uma analise social

apropriada ao campo da saúde.

Com uma visita ao Reassembling the Social do Latour (2005), para tratar da Teoria do

Ator Rede (TAR), foi discutido no terceiro capítulo como uma sociologia das

associações, com as noções de agência e de simetria, propõe uma objetivação que

encontra no relativismo a segurança necessária para acompanhar a dinâmica do campo

da saúde, reunindo metafísica empírica, metalinguagem e ampliando a noção de

agência, sem exagerar no valor dado à etnografia, tampouco à metafísica.

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As bases teórico metodológicas da Teoria do Ator Rede apresentam uma proteção

contra reducionismos e uma objetivação baseada em uma simetria entre o discurso do

ator e o do analista, instaurando um relativismo que é a base para aproximar: a) a saúde

enquanto subjetividade (verdade) situada no corpo e narrada com propriedade; b) saúde

enquanto objeto de análise, enquanto metalinguagem e b) a ampliação sobre a

consideração das agências envolvidas neste campo. Sobre solo do relativismo da TAR,

fica o desafio de proporcionar a segurança necessária ao tratamento científico do tema

saúde.

O campo da saúde é perpassado por diversas perspectivas de análise, tanto por ser uma

área que agrega uma multiplicidade de profissionais - com suas respectivas áreas de

atuação (Medicina, psicologia, pedagogia, ciências sociais, antropologia etc.) - quanto

por haver divergências dentro de uma mesma disciplina, no que diz respeito às

orientações teórico-metodológicas da produção de conhecimento. Discutir o

conhecimento científico produzido no campo da saúde, tendo em vista seus princípios,

meios e fins, é fundamental para que as verdades pressupostas e hegemônicas não criem

entraves ao desenvolvimento da prática científica, enquanto busca de um refinamento

constante entre representações e o fenômeno representado.

Levando em conta que o tema da saúde precisa ser tratado numa perspectiva ampla,

para além de determinismos biológicos ou tecnicistas, acredita-se ser fundamental a

inserção das ciências sociais para que sejam amenizados os reducionismos marcantes no

campo da saúde, tomando os devidos cuidados com os perigos de reducionismo

próprios das ciências sociais. No presente artigo será dado enfoque às teorias

sociológicas e às contribuições da epistemologia, para discutir a abordagem sociológica

no campo da saúde.

Tomando o devido cuidado com o uso de categorias a priori, inicialmente será feita

uma espécie de genealogia do conceito de saúde, para que melhor seja entendido o que

foi reunido para explicar cientificamente o fenômeno. Será discutido um levantamento

de divergências teórico-metodológicas na perspectiva de análise social e suas

implicações sobre o conhecimento produzido, no campo a ser estudado. Por fim, a partir

de considerações a respeito das lacunas e contribuições das teorias sociológicas que

serão levantadas neste trabalho, espera-se discutir a relevância da teoria do ator rede

enquanto orientação teórico-metodológica, para o campo da saúde.

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Para melhor compreender algumas teorias sociais que serão abordadas dentro da análise

sociológica, além da discussão de caráter epistemológico, serão utilizadas referências

sobre a produção de conhecimento em ciências sociais e saúde no Brasil, especialmente

durante os anos 80.

Uma vez discutidas as teorias sociais que serão aqui levantadas, com suas

especificidades teórico-metodológicas e as lacunas, será possível estabelecer as bases

para se pensar uma teoria social que possa contribuir para a superação de problemas

contemporâneos com o estatuto de cientificidade, dos processos de produção de

conhecimento e do conhecimento enquanto produto.

O CONCEITO DE SAÚDE E O CAMPO CIENTÍFICO Nesta breve consideração sobre a noção de campo, para discutir a produção de

conhecimento em ciências sociais, é proposta uma ampliação do olhar para que seja

possível articular a dimensão interna e externa da prática científica. A dimensão interna

estaria relacionada com a especificidade de cada ciência, no lançamento e tratamento de

seus problemas, ou seja, a lógica pela qual a ciência articula seus princípios, meios e

fins. A dimensão externa estaria relacionada com as condições sociais de articulação

política para o exercício da especificidade de cada ciência.

Longe de propor uma análise dicotômica para prática científica, considera-se estas duas

dimensões, pressupondo que elas estão articuladas, mas que se compreendidas em suas

especificidades, será possível entender o quanto a prática científica se constitui

enquanto luta política. Mencionar as contribuições do Bourdieu (1983) ao utilizar o

conceito de campo científico2, pode ajudar na compreensão do quão conflituoso, no

sentido de lutas por representação, é este campo, apontado pelo autor como um sistema

de relações objetivas em que se busca o monopólio da autoridade científica. Diante

disto a prática em ciência passa a ser entendida aqui enquanto interessada, onde as

2 A estrutura do campo científico se define, a cada momento, pelo estado das relações de força entre os

protagonistas em luta, agentes ou instituições, isto é, pela estrutura da distribuição do capital específico,

resultado das lutas anteriores que se encontra objetivado nas instituições e nas disposições e que comanda

as estratégias e as chances objetivas dos diferentes agentes ou instituições. (...). (BOURDIEU: 1983., p.

133).

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determinações científicas e as determinações sociais, compõem o conjunto de forças

com as quais se vale a ciência.

Discutida a noção de campo, sem a pretensão de esgotar o assunto, visto que somente

serão levantados elementos básicos para entender a especificidade do campo da saúde, é

importante realizar uma análise conceitual do termo “saúde”, para que a abordagem não

parta do uso acrítico, da extensão de um pressuposto e para que seja possível estabelecer

relações entre os modos de compreender o conceito e os modos de se exercer a prática

científica e as intervenções em saúde.

O tema “saúde”, tão discutido na atualidade, é marcado historicamente por diferentes

tipos de entendimento sobre o que é a doença, como tratá-la e como evitá-la. Devido a

importância da ciência nas práticas de saúde, especialmente pelo exercício da medicina

científica, é importante comentar que no ocidente duas escolas de medicina se

destacaram e se divergiram, ambas, para dar conta do problema da doença como de

causa natural, ou seja, doença como um problema ligado às condições de vida na

natureza, diferenciando-se de outras formas de compreensão da doença enquanto

castigo, feitiço, ação demoníaca, enfim, formas de compreender a doença e a saúde

predominantes especialmente no séc XVII na Europa e em diversas outras épocas e

tradições. Esta busca por referências verificáveis empiricamente é a expressão da

racionalidade e do cientificismo que marcam a passagem do período das “trevas” para o

período das “luzes” a partir da qual o tratamento da saúde precisa ser empiricamente

verificável e tratável racionalmente.

Hipócrates e Galeno, ambos gregos, são reconhecidos pela história como personagens

importantes na defesa de que as causas da doença estão ligadas ao nosso estado

orgânico, ou seja, ao nosso estado de natureza. O primeiro aponta para a doença como

estado de desequilíbrio do funcionamento orgânico e que por isto é importante conhecer

as condições necessárias ao estabelecimento da saúde. O segundo, Galeno, aponta para

o fenômeno da doença, também como de ordem natural e dedica-se ao tratamento da

manifestação da doença, agindo sobre o desconforto de estar enfermo, aqui, recuperar a

saúde seria eliminar os efeitos da doença. Da compreensão de que a saúde é fruto do

funcionamento normal do sistema orgânico, nasce a escola vitalista de saúde,

conhecidas atualmente como Naturologia ou neo-hipocráticas. Da compreensão de que

a saúde é o alívio do sintoma, nasce a alopatia, base da medicina científica.

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Acredita-se que, a partir de contribuições da epistemologia, seguir adiante com o

mapeamento das influentes concepções de saúde dentro deste campo, será uma tarefa

melhor executada com o apoio da Filosofia, através das contribuições do Canguilhem

(2005), visto que assim será possível levantar mais pressupostos que fundamentam os

discursos e práticas em saúde. Nos textos reunidos sobre o nome de Escritos sobre

Medicina, Canguilhem, aborda filosoficamente o conceito de saúde, realizando uma

revisão a partir de contribuições de filósofos e fisiologistas.

O primeiro conceito de saúde apresentado pelo autor, a explica enquanto estado em que

as funções orgânicas se realizariam silenciosamente3, ou insensivelmente, tendo a

doença como estado em que se faz necessário conhecer a verdade do corpo, tida sempre

como oculta. Aqui se inicia uma reflexão sobre a saúde como verdade do corpo, cujo

alcance é duvidoso do ponto de vista científico. Seria cientificamente possível medir,

verificar o estado de saúde?

Ao citar Kant4 o conceito de saúde vai ganhando um caráter não científico, pelo fato

desta ser por ele situada fora do campo do saber. Se considerarmos com Kant,

afirmando que o silêncio dos órgãos não necessariamente é a manifestação de uma

saúde, só através da doença seria revelado o estado até então oculto. Sendo

compreendida desta forma, não seria possível, portanto, um conceito científico de

saúde, tampouco uma ciência da saúde. Finalizando a retomada desta compreensão, o

conceito de saúde é apontado enquanto vulgar. Apresentando as contribuições de

Descartes como marcantes, considerando o fato dele ter apresentado uma concepção

mecanicista das funções orgânicas, Canguilhem ressalta a associação que o filósofo

estabelece entre verdade e saúde, na qual a primeira, assim como a segunda, uma vez

possuída, não mais seria objeto do pensamento.

3 Sobre essa perspectiva, o autor aponta, dentre outras, para as contribuições de Diderot, quando este

afirmar que “ quando estamos bem, nenhuma parte do corpo nos informa sua existência; se alguma delas

nos adverte por meio da dor, é, com certeza, porque estamos mal; se fosse pelo meio do prazer, nem

sempre é certo que estejamos melhor”. (CANGUILHEM, 2005, p.36).

4 (...) Quanto à saúde, diz ele [Kant], encontramo-nos em condições embaraçadoras: “Podemos nos sentir

bem de saúde, isto é, julgar a partir do sentimento de bem estar vital, mas nunca se pode saber se estamos

bem de saúde [...] Ausência do sentimento (de estar doente) não permite ao homem saber se está bem, a

não ser dizendo que vai bem em aparência.” (ibidem, p. 37).

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Em Nietzsche, assim como em Claude Bernard, a concepção de saúde é apresentada

enquanto manifestação de um vigor, de uma potência para absorver e vencer as

tendências mórbidas. Segundo Canguilhem no que diz respeito à manifestação da

saúde, o filósofo utiliza adjetivos como: boa-fé, completude, retidão, fiabilidade e

afirma a existência de uma razão do corpo5, superior em qualidade, em relação à razão

da sabedoria. A partir desta afirmação, reforça-se a idéia de que a apropriação e

explicação sobre o fenômeno da saúde serão aproximativos, tendo-a enquanto verdade

encerrada no corpo.

A partir de referencias da fisiologia, ainda tratando do tema da saúde enquanto

sabedoria ou razão do corpo, Canguilhem comenta sobre as contribuições do

fisiologista inglês Starling, cuja apresentação dos estudos não inclui o termo saúde. Pela

mesma exclusão conceitual, Kayser é citado por não apresentá-lo em seu dicionário de

fisiologia. Segundo Canguilhem, o tratamento científico em ambos os fisiologistas

produz, em relação a essa sabedoria do corpo, conceitos como: Homeostase, regulação

e stress, indicando possível recusa da cientificidade do conceito de saúde. Citando

Claude Bernard6, apesar do mesmo em algum momento utilizar a idéia do estado de

saúde, Canguilhem reforça o não tratamento científico do conceito em questão. Ainda

que focando cientificamente no modo de exercício de uma função orgânica, Starling é

lembrado por alertar que o uso do termo mecanismo não deveria ser levado

demasiadamente a sério. Aqui, Canguilhem encontra base para recusar a saúde como

efeito necessário de relação de tipo mecânico7, afirmando a impossibilidade de atribuir

a qualidade de saudável a um mecanismo, dado que este não poderia ocupar o lugar de

verdade do corpo vivo, visto que não haveria doença de um mecanismo, de uma

máquina.

5 Canguilhem (Ibidem p. 39) cita Nietzsche: (...) “O corpo é uma grande razão, uma multidão de um só

sentimento, uma guerra em paz, um rebanho e um pastor.” Por fim: “Há mais razão em teu corpo que em

tua melhor sabedoria.”

6 Canguilhem (Ibidem, p. 40) citando Claud Bernard: “Em fisiologia, não há senão condições próprias a

cada fenômeno que é preciso exatamente determinar, sem se perder em divagações sobre a vida, a morte,

a saúde e outras entidades da mesma espécie”.

7 Recusando o tratamento da saúde enquanto qualidade de um mecanismo, Ganguilhem afirma que “A

saúde, verdade do corpo, não está referida a uma explicação por teoremas” (Ibidem, p. 40).

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De acordo com as observações do Canguilhem, a condição de vivo possibilita a

expressão da saúde do corpo, enquanto potencialidades e poderes que o constituem e

que possibilitam ou não uma resposta adaptativa na relação com o seu meio ambiente.

Prosseguindo nas considerações sobre o corpo, o autor aborda-o enquanto dado e

enquanto produto, sendo a saúde tanto um estado, quanto uma ordem em relação ao

corpo. Mas o que isso significa exatamente? Segundo a resposta dada por Canguilhem,

o corpo seria um dado enquanto padrão genético, onde estariam ocultos determinantes

sobre a verdade do corpo8, condicionado em sua presença no mundo. Considerar o

corpo enquanto produto é reconhecer as implicações que o modo de inserção em um

ambiente dado exerce sobre ele, modificando sua estrutura morfológica, num processo

que o autor nomeou de singularização de suas [do corpo] capacidades.

Sustentado sobre a consideração do corpo enquanto produto, o discurso da Higiene é

apontado como produzido pelos interesses sociopolítico-médicos para controlar a vida

dos indivíduos e produzir a saúde pública. Se considerarmos o conceito de saúde até

aqui enquanto de difícil definição do ponto de vista científico, o que significaria uma

saúde pública? Sem mais delongas, Canguilhem alerta para o efeito desta conceituação,

na medida em que ela oculta o sentido existencial de saúde para contabilizá-la,

abandonando a significação de verdade, para ganhar estatuto de facticidade. A

expansão do campo da administração da saúde a nível mundial desembocou, segundo o

autor, na criação da Organização Mundial de Saúde, que para defender seus interesses e

justificar sua intervenção, criou sua própria concepção de saúde9.

Reivindicando a idéia de saúde enquanto estado do corpo dado, o autor propõe

considerá-la enquanto segurança de vida, em qualquer potencialidade que garanta a sua

existência viva. Considerando que qualquer estado que mantenha a vida, expressa a

saúde enquanto segurança de existência, Canguilhem (Op. Cit. p. 43) afirma que o

estado de má saúde seria a restrição das margens de segurança orgânica, a limitação

do poder de tolerância e de compensação das agressões do meio ambiente e portanto,

da sua condição em vida. Sendo assim, saúde poderia ser compreendida como estado

em que, enquanto vivo, haveria a manutenção das margens de segurança para a

8 Quanto a isto Ganguilhem (Ibidem, p.42) afirma que “A não verdade do corpo pode ser manifesta ou

latente”

9 Estabelecendo relação entre a orientação e a intervenção da Organização Mundial de Saúde,

Canguilhem (Ibidem, p. 43) cita a idéia de saúde desta Organização: “A saúde é um estado de completo

bem-estar físico, moral e social, não consistindo somente na ausência de saúde ou de doença.”

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continuidade da existência. Seguindo com esta perspectiva de saúde enquanto segurança

de vida, a doença, segundo autor, citando Descartes, seria uma oportunidade para que o

homem, uma vez superando-a, torne-se mais válido.

Retomando a idéia de saúde enquanto expressão do corpo produzido, o autor a atribui a

este um duplo sentido: o de garantia contra o risco e o de audácia para corrê-lo,

situação em que seria possível ultrapassar capacidades iniciais, no desenvolvimento de

habilidades ainda não experimentadas, o que expressaria a potencia de expansão e de

dominação sobre o corpo. Dando um caráter de liberdade para a saúde, enquanto

possibilidade de experimentação, o autor critica a tentativa dos especialistas,

especialmente dos higienistas, em gerir uma saúde coletiva, ou pública, implicando em

controle sobre a expressão individual da saúde e sugere, para tal intervenção, o uso do

conceito de salubridade como mais conveniente que o de saúde.

Na tentativa de justificar a proposição que considera a saúde enquanto verdade do

corpo10, Canguilhem aponta para a impossibilidade de representá-lo em sua própria

constituição, ou em sua autenticidade de existência. Analisando criticamente11 a prática

médica, o autor questiona a posição de exegeta do profissional desta área, na relação

com o paciente, para que lhe seja também questionada a legitimidade da sua posição de

reparador. Justifica-se aqui a idéia de expropriação da saúde.

Para melhor definir o sentido de saúde enquanto verdade do corpo, o autor levanta

algumas questões: primeiro, se como conseqüência de uma inspiração cartesiana, sobre

a noção de auto-gestão da saúde, deve-se estender a identificação para o preceito

cartesiano de usar da vida e das convenções comuns; segundo, se tal uso não estaria

vinculado a alguma tradição de naturalismo anti-racionalista e terceiro, se será através

da preconização da saúde selvagem, pelo retorno para a saúde fundadora, ou pelo

desenvolvimento de comportamentos sabiamente controlados que se chegará à verdade

do corpo. Aproximando-se do final das suas considerações sobre saúde enquanto

10 Canguilhem (Ibidem, p. 44) busca “justificar a proposição de considerar a saúde como verdade do

corpo em situação de exercício, expansão originária de sua posição como unidade de vida, fundamento da

multiplicidade de seus órgãos próprios.” (...)

11 Sobre a crítica dirigida por Canguilhem (Ibidem, p.45) à prática interpretativa e reparadora à qual se

propõe o médico, sobre a saúde de outrem, cito: “A definição de saúde que inclui a referência da vida

orgânica ao prazer e à dor experimentados como tais introduz sub-repticiamente o conceito de corpo

subjetivo na definição de um estado que o discurso médico acredita poder descrever na terceira pessoa.”

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conceito vulgar e questão filosófica, Canguilhem pontua que na ocupação com o corpo

subjetivo, é importante considerar a liberação do efeito repressivo da medicina e das

ciências que participam da sua aplicação.

Por fim, o autor sugere que a consideração da saúde enquanto verdade do corpo, no

sentido ontológico, deve abarcar o controle, a proteção da verdade no sentido lógico, a

ser desenvolvida na abordagem científica que permita conhecer as possibilidades do

corpo vivido. Encerrando esta discussão citando Merleau-ponty, Canguilhem justifica

ter feito da saúde uma questão filosófica pelo fato de que na filosofia, aquele que

questiona é, ele próprio posto em causa pela questão.

Os questionamentos feitos até aqui para considerar a saúde como verdade do corpo, por

fim, segundo o apelo do autor, não deve excluir sobre a busca da sua compreensão, o

exercício da razão, característico da produção científica. Resta conhecer o modo pelo

qual, no campo da saúde, as diferentes ciências e os diferentes cientistas, fazem uso do

estatuto de cientificidade na luta por suas representações e na imposição de sua

objetividade.

Considerando que neste artigo, busca-se estabelecer relação entre o campo da saúde e a

Teoria do Ator Rede como perspectiva de análise social, será dada a partir de agora

atenção especial às teoria sociais, com o objetivo de levantar referências sobre quais

destas teorias são influentes e quais os problemas levantados na contemporaneidade

quanto a essa abordagem no campo da saúde.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE A PESQUISA, EM CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE. Neste capítulo será discutido como as pesquisas em ciências sociais situam-se teórica e

metodologicamente dentro do campo da saúde, a partir das contribuições de Alves

(1995). Na introdução do seu artigo, o autor considera a perspectiva de análise, ou

“metateoria”, enquanto representação fundamentada em uma construção teórica, dentro

da qual são definidos os problemas e as soluções a serem dadas em sua aplicação na

pesquisa, marcando a distância entre os pressupostos e o referencial empírico, na

tentativa, em ciências sociais, de tratar por diversas perspectivas o fenômeno humano.

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Do ponto de vista sociocultural, diferentes atribuições de sentido à natureza do social

estão presentes nos tratamentos do fenômeno da saúde e da doença. É sobre a relação

entre a abordagem teórico-metodológica e a existência de problemas no estatuto de

cientificidade que se dedica Alves.

O autor desdobra seu artigo em duas partes: primeiro trata dos fundamentos das

perspectivas de análise social, focando nas orientações utilizadas na construção da

objetivação; segundo, se propõe a aprofundar a perspectiva de análise dominante nas

pesquisas sociais em saúde, através da identificação de suas premissas e especificidades

metodológicas. Na conclusão de Alves, são levantadas questões relevantes ao presente

artigo, tanto no âmbito destas disciplinas da pesquisa social em saúde, quanto na teoria

social em geral.

Iniciando pelas considerações sobre a questão da objetivação nos estudos dos

fenômenos sociais, o autor apresenta a imagem de cientificidade como expressão de

uma idéia reguladora contextualizada historicamente, situada num dado momento de

aperfeiçoamento da prática científica. Discutindo sobre a imagem de cientificidade das

ciências sociais, o autor aponta para a dificuldade12 de se criar um paradigma que

estabelecesse consensualmente os princípios reguladores do conhecimento social.

Caracterizando essa dificuldade como uma especificidade das ciências sociais em

relação às outras, o autor aponta para: a) a falta de um corpo integrado de leis abstratas;

b) a natureza de sua linguagem e c) para o acordo intersubjetivo quanto aos métodos e

resultados da abordagem.

Apresentando primeiras divergências no campo teórico-metodológico Alves (Ibidem, p.

65) pontua a tensão existente entre as vertentes racionalistas e empiristas. A primeira,

ligada à racionalização do conhecimento e à desconfiança da percepção sensível e a

segunda, também caracterizada pelo autor como cautelosa com as categorias e

operações do pensamento. Tal dilema residiria na relação sujeito e objeto do

conhecimento, na qual seriam produzidas diferentes tentativas de dar conta de uma

objetivação do referencial empírico. O campo das ciências sociais é reconhecido pelo

12 Nas ciências sócias a reflexão epistemológica não conseguiu até agora, formular uma imagem da cientificidade que seja admitida por todos de maneira totalmente satisfatória. (ALVES, 1995 p. 64).

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autor enquanto constitutivo de domínios do saber, sustentado sobre uma variedade13 de

perspectivas epistemológicas e teórico-metodológicas, o que não tira destas ciências,

segundo o autor, nem as suas contribuições do ponto de vista teórico, nem o prestígio

diante das diversas instituições e grupos sociais.

Dentre os problemas ligados ao alcance da cientificidade, o autor propõe concentrar-se

nos processos lógicos de produção de conhecimento, focando em um aspecto desta

problemática: o processo de objetivação da pesquisa social. Ao explicar o que seria

esse processo14, o autor aponta para a presença da fundamentação e da adequação da

construção discursiva, como regulação constante sobre a abordagem do real.

Independente de qual seja a natureza da objetivação, importa aqui verificar o estado das

teorias, da metodologia e dos procedimentos técnicos de investigação. No que diz

respeito à análise do processo de objetivação, o autor propõe que sejam considerados: o

campo semântico e a formalização de conceitos e definições destinados à apreensão

racional de um dado objeto.

Considerar o campo semântico seria identificar no conhecimento produzido a respeito

de um referencial empírico, a significação reunida pelo pesquisador. Considerar a

formalização de conceitos e definições, seria identificar como se dá o processo de

redução dos fenômenos objetivados em idealizações e generalizações. Neste enfoque

discute-se sobre como esta explicação é formalizada e estruturada logicamente,

enquanto proposição analítica.

Na discussão sobre o problema da estruturação lógica das ciências sociais, geralmente

são apontadas dicotomias para firmar, de um lado a faticidade objetiva da sociedade

sobre o indivíduo e de outro, a força da subjetivação. Optar simplesmente por uma das

dimensões na objetivação do conhecimento implicaria na redução da abrangência e

adequação da abordagem sobre a dinâmica intrínseca do referencial empírico, visto que

por este caminho não é feita a opção pela simultaneidade e complementaridade destas

dimensões.

13 Quanto a falta de consenso sobre as bases teórico-metodológicas em ciências sociais, o autor comenta

que (...) “isso não significa dizer que as pesquisas, desenvolvidas por essas ciências, sejam construídas

arbitrariamente e que não consigam aperfeiçoar métodos que regulem as condições de seu próprio

crescimento.” (...). (Ibidem, p. 65).

14 A objetivação do conhecimento científico é a arrumação de uma rede conceitual que possa dar conta do

real, explorá-lo, expressá-lo de forma fundamentada e adequada. (Ibidem, p. 66).

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Para melhor abordar os fundamentos das associações lógicas presentes na dicotomia

apontada pelo autor, as teorias sociais são divididas em duas perspectivas de análise: A

holística, conhecida também como sistêmica e a compreensiva, ou atomística. A

primeira, enquanto produtora de macro análises em que o sujeito geralmente é

considerado enquanto sujeito ao determinismo do social, valoriza no conhecimento

produzido o aspecto sistêmico e conceitual, tendendo para uma abordagem explicativa

de análise social. A segunda situa-se na experiência primeira do sujeito, valorizando

uma abordagem compreensiva, dando importância aos processos de interpretação dos

fenômenos objetivados, com foco nas significações internas no comportamento dos

agentes sociais. Em sua investigação, Alves se dedica a observar como essas

perspectivas tendem a abordar a objetivação e como estabelecem a relação entre o

campo semântico e o conceitual na dinâmica da pesquisa social.

Considerando que a perspectiva predominante em saúde é a sistêmica, o autor dedica a

ela mais atenção, discutindo a perspectiva compreensiva simplesmente para estabelecer

uma relação de contraste. No processo de objetivação dos fenômenos sociais da

perspectiva sistêmica, valoriza-se a habilidade combinatória das unidades conceituais

expressa na explicação, ao passo em que na compreensiva, a objetivação dos fenômenos

sociais parte do princípio de que a investigação precisa fundamentar-se no ator social

enquanto elemento originário e específico. Sobre esta abordagem o autor afirma que o

campo semântico diz respeito tanto a um sentido, quanto a uma referência, e enquanto

compreensiva, atesta para a pré-existência do mundo empírico, tornando, portanto,

imprescindível ao empreendimento científico não se deter em pressuposições

preliminares sobre o que ainda será verificado. Dentro da perspectiva compreensiva, a

concepção de fenômeno social só adquire sentido a partir de sua contextualização,

expressa nas representações e práticas dos atores sociais.

O problema da perspectiva sistêmica quanto ao processo de objetivação, seria o

afastamento do referencial empírico como ponto de partida para a definição de

problemas e para a elaboração de questões. Sobre o campo empírico, são enxertadas

conclusões dedutivamente derivadas. Por outro lado, aparece a ameaça de uma suposta

irracionalidade associada à abordagem compreensiva de extremo empiricismo. Como

evitar o inconveniente de situar-se na dicotomia para dar conta de um processo de

objetivação? Alves propõe mediar a transição do subjetivo para o objetivo, e sugere a

Page 14: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

14

concepção de tipo ideal15 para que a objetivação seja construída num teste empírico, no

qual a regulação e adequação das abstrações só ganhariam sentido enquanto referidas a

especificidades empíricas. Seguindo tal sugestão a prática científica pautar-se-ia na

relevância tanto da abordagem compreensiva quando da explicativa na construção da

teoria social e da cientificidade.

Tratando da perspectiva de análise social no campo da saúde o autor foca no contexto

brasileiro16, considerando que nele, a saúde enquanto objeto das ciências sociais passa a

ser tratada inicialmente entre os anos 60 e 70. No mapeamento das predominâncias

teórico-metodológicas que se sucederam a partir deste início da diversificação de

perspectivas, após a primeira predominância do estruturalismo e da Escola de Chicago

na década de 50, são citados como influentes o funcionalismo, o interacionismo

simbólico, a fenomenologia, a teoria da troca, da escolha racional e o marxismo, com

destaque para o status paradigmático alcançado pelas duas primeiras influências,

predominantes até os anos 50.

Após a década de 50, o marxismo predomina na orientação teórico-metodológica na

América Latina, assim como o pós-estruturalismo, geralmente referindo-se às

contribuições do Michel Foucault. É neste contexto de controvérsias que a saúde passa a

ser abordada enquanto objeto de pesquisa em Ciências Sociais no Brasil. Ao considerar

a realidade social enquanto configuração geral, em qualquer destas tendências corre-se o

risco de impor um modelo de abstração sobre os fenômenos a serem verificados,

15 Sobre o uso do tipo ideal como mediação, sugerido por Alves, cito Weber : “Quanto mais se trata de

classificações de processos que se manifestam na realidade de uma forma maciça, tanto mais se trata de

conceitos genéricos. Pelo contrario, quanto mais se atribui uma forma conceitual aos elementos que

constituem o fundamento da significação cultural, específica das relações históricas complexas, tanto

mais o conceito, ou o sistema de conceitos adquirirá o caráter de tipo ideal. Por que a finalidade da

formação de conceitos de tipo ideal consiste sempre em tomar rigorosamente consciência não do que é

genérico mas, muito pelo contrário, do que é específico a fenômenos culturais.” (WEBER, 1979, p. 116)

16 Em um nível macroscópico é possível identificar quatro ordens de fatores, entre outras, que se

articulam no momento da formação e posterior desenvolvimento dos estudos em saúde no Brasil: a) a

magnitude dos problemas médico-sociais e o processo de reformulação do sistema médico; b) a

formulação dos seus pesquisadores; c) as transformações teóricas e metodológicas das ciências sociais nas

grandes instituições internacionais de ensino e pesquisa, principalmente nos EUA; d) o enfoque histórico-

cultural na análise dos fenômenos sociais (como a teoria da dependência) na América Latina. (...)

(ALVES, 1995, p. 71)

Page 15: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

15

procedimento que implicaria em considerar os atores sociais do ponto de vista

substantivo, tipificando-os e classificando-os previamente, operação típica das teoria

sistêmicas17, que hipostasia a razão como única possibilidade de ordenar e explicar os

fenômenos sociais, esses, subordinados à apreensão intelectual.

Buscando a origem da teoria sistêmica, Alves a localiza nas ciências naturais,

justificando que a sua presença nas ciências sociais está associada ao fato desta, no

momento de sua definição, ter necessitado de uma legitimação e no campo científico,

para o alcance do estatuto de verdade sobre os frutos de sua objetivação no substratos

sociais18. Reconhecendo a complexidade de tal substrato, considerando-o enquanto

campo de possibilidades de significação, o autor (1995, p. 77) afirma que o fato

sociocultural, portanto, é antes de mais nada uma relação íntima de compenetração

entre o substrato e o sentido. Diante dos problemas19 com a teoria sistêmica, é proposta

uma abordagem que se desenvolva na intersubjetividade, em busca do significado no

contexto objetivo da vida cotidiana e das definições dos atores de sua situação.

Na conclusão do seu artigo, Alves retoma o fato de que na análise social do campo da

saúde no Brasil, predomina a abordagem sistêmica e que é importante se estabelecer os

princípios para o alcance de uma perspectiva de análise que possa integrar realidades

estruturais e as ações individuais, enquanto dimensões interdependentes do processos

de objetivação nas ciências sociais em saúde.

17 Toda teoria sistêmica, embora guarde marcantes diferenças conceituais entre si, parte de um mesmo

princípio, que pode ser resumido nos seguintes itens: a) admite-se a existência de um todo a ser analisado;

b) este todo está composto de unidades que se configuram distintamente entre si; c) as unidades, contudo,

estão agregadas a outras, sendo mutuamente independentes; d) essa interdependência está regulada por

uma morfologia, uma estrutura. Assim, é pela forma em que se relacionam os componentes do sistema,

ou seja, pela estrutura do sistema, que se explica um determinado objeto de estudo. São teorias, portanto,

que pressupõem uma determinada codificação do sistema e a tarefa principal do pesquisador é decifrá-la.

(Ibidem, p. 74).

18 (...) “Os substratos sociais constituem na realidade campos de possibilidades sobre as quais são

construídas significações, intencionalidades e valores e através das quais os indivíduos viabilizaram suas

ações e seus projetos específicos, mesmo que sejam contraditórios (Velho, 1994)” (Ibidem, p. 77).

19 Considerar que a sociedade está em nossa experiência apenas como uma inferência e não como uma

observação é não reconhecer plenamente que os construtos, por mais elaborados que sejam, não

substituem o mundo das interações enquanto entidade real. Eles têm a capacidade de produzir imagens de

eventos, mas não são eles mesmos os próprios eventos. (ALVES, 1995: p. 81).

Page 16: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

16

A TEORIA DO ATOR REDE Para testar a hipótese de que na perspectiva de análise social da Teoria do Ator Rede

encontram-se superações para problemas na objetivação em ciências sociais discutidos

anteriormente - tanto a respeito da teoria sistêmica, quanto da teoria holística presentes

no campo da saúde no Brasil - vejamos como nela pode-se realizar a integração da

realidade estrutural com as ações individuais e que outras contribuições são importantes

para se pensar a superação de dicotomias e reducionismos. Neste capítulo será feita uma

análise da TAR, de forma a caracterizar o seu processo de objetivação, identificando

seus princípios e finalidades. Para esta discussão serão fundamentais as contribuições de

Latour (1997 e 2005) e de Law (s.d.)

Considerando que a sociologia precisa despir-se de pressuposto que reduzem a

abrangência representativa dos fenômenos analisados, Latour (2005), caracteriza o fato

social enquanto um emaranhado de forças e interações, usando a categoria de sociologia

das associações, diferenciando-a da sociologia do social, cujo objeto seria fruto

geralmente de reducionismos (do indivíduo, do social, do inconsciente, do econômico

etc), marca da busca de uma legitimação científica inicial. Esta sociologia parte de um

rigor metodológico que recorta, sobre a amplitude das associações que definem o social,

um grupo de variáveis reunidas enquanto adequação a um modelo paradigmático.

Lembrando Kuhn20 é preciso ter cuidado com o efeito de pré-moldagem que a

orientação paradigmática pode exercer sobre uma objetivação, na qual o cientista

distanciar-se-ia do seu papel fundamental: compreender o mundo e ampliar a precisão e

o alcance da ordem que lhe foi imposta.

Latour (2005), realizando uma introdução à Teoria do Ator Rede, parte da controvérsia

a respeito do sentido de social21, colocando o cientista a um passo atrás de sua

20 (...) Por que a realização científica, como um lugar de comprometimento profissional, é anterior aos vários conceitos leis, teorias e pontos de vista que dela podem ser abstraídos? Em que sentido o

paradigma partilhado é uma unidade fundamental, para o estudo do desenvolvimento científico, uma

unidade que não pode ser totalmente reduzida a componentes atômicos lógicos que poderiam funcionar

em seu lugar? (KUHN, 2002, p.31).

21 In most situations, we use ‘social’ to mean that which has already been assembled and acts as whole, without being too picky on the precise nature of what has been gathered, bundled, and packaged together. When we say that ‘something is social’ or ‘has a social dimension’, we mobilize one set of features that, so to speak, march is step together, even though it might be composed of radically different types of entities. (LATOUR, 2005 p. 43).

Page 17: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

17

intervenção para revisar a serviço de que substantivação ele dedica a sua investigação,

ao definir algo enquanto “social”, diante da heterogeneidade dos elementos que

compõem o referencial empírico. Apoiando-se no fenômeno social enquanto

complexidade de interações, a discussão sobre quem e o que participa deste fenômeno é

imprescindível para o autor, o que o faz levantar as seguintes questões: a) quem mais

age durante a nossa ação? b) quantos agentes estão presentes? c) por que somos todos

influenciados por forças que não são de nossos próprios feitos? Inicia-se assim a

discussão sobre a agência.

A questão da agência

Propondo que a ação seja compreendida enquanto um “nó”, enquanto algo fora do

controle da consciência, Latour cita Hegel ao usar a expressão other-taken, no sentido

de “tomada por outro”, para adjetivar a ação, atribuindo-lhe caráter de

imprevisibilidade, de mistério a ser desvendado empiricamente. A ação é então

reconhecida em sua complexidade, diversidade e heterogeneidade. O autor propõe que a

ação permaneça como surpresa, o que torna ainda mais importante não partir de

pressupostos a respeito, por exemplo, de determinismos sociais sobre a ação, da força

do indivíduo, ou do poder do inconsciente.

Se a ação é um nó, um mistério, nem a sociedade, nem a força do indivíduo podem

ocupar lugar determinante sobre ela, pois estas são apenas algumas dentre as agências

que configuram a situação. A noção de ator-rede exprime um atravessamento exercido

por outros elementos do arranjo da realidade, que muitas vezes o deslocaria de uma

livre imposição da vontade. Prestando atenção nestes “dirigentes” da ação, Latour

sugere que se torne produtiva novamente a intuição central das ciências sociais,

despindo-as dos reducionismos, para que então seja possível encarar a complexidade do

fenômeno social.

A noção de agência presente em Latour coloca sobre questão a noção de causalidade

apoiada em operações de redução, visto que segundo a TAR apresentar o movimento

das concatenações22 e mediações que explicariam um fenômeno enquanto social,

22 which agencies are invoked? Which figurations are they endowed with? Through which mode of action are they engaged? Are we talking about causes and their intermediaries or about a concatenation of mediators? ANT is simply the social theory that has made the decision to follow the natives, no matter which metaphysical imbroglios they lead us into-and they quickly do as we shall see now! (Ibidem, p. 62)

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18

aproximaria o conhecimento da amplitude de associações que constituem a massa de

realidade.

A simetria e a agência dos não humanos Diferenciando-se da maioria das teorias sociológicas que ocuparam-se

predominantemente sobre a questão de qual agência escolher, a sociologia da

associação procura compreender como cada uma delas exerce presença. Se afirma-se

alguma influência de um “poder”, ou da “sociedade” nesta perspectiva, isto seria não o

ponto de partida para explicar o fenômeno social, mais sim, a identificação destes

elementos enquanto parte de um processo verificado empiricamente, ao lado de outras

agências que se façam relevantes.

Propondo a diversificação e o aumento das agencias como forma de aproximar-se da

complexidade do fenômeno observado, Latour trata a definição de social enquanto

reunião de entidades. Para a TAR o “social” seria uma associação momentânea

caracterizada pela forma com que são arrumados os elementos que compõe a

especificidade do que está sendo representado enquanto social, dada a complexidade

mesma dos fenômenos objetivados.

O fato de que as diferentes análises sobre o mesmo fenômeno produzem singularidades

de conhecimentos não impede que através de uma reunião de abordagens, seja possível

identificar nas regularidades, o que seria representativo enquanto constância a respeito

de um determinado fenômeno observado. Na TAR as especificidades geradas nas

representações sobre o referencial empírico comprovam a existência de outras agências

Ao dissolver a noção de “social”, removendo bases pré-determinantes de seu

significado, Latour considera que as associações entre as agências são momentâneas e

que é importante trocar a predefinição de uma constância pela verificação empírica da

duração de interações ou de novas associações. Diante disto, fixar uma causalidade, um

determinante, seria aprisionar em uma constante uma agência pontual e disposta numa

rede de inter-ações que compõem um dado fenômeno enquanto social. Por este caminho

incorre-se em tautologias que, retendo uma agência (econômica, do poder, do indivíduo

etc) associam a explicação ao empírico “retirando-lhe” um sentido que é,

metodologicamente falando, muito mais a aplicação e reaplicação cíclica de operações

lógicas através da dedução.

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19

Apelar para a extensão das conexões entre as agências na explicação de fenômenos

sociais é uma operação típica das teorias sistêmicas discutidas no capítulo anterior. Tal

extensão da durabilidade de algumas poucas agências para a definição de um fenômeno

enquanto social, é um passo que limita23 a identificação da diversidade de agências

presente no referencial empírico. Isso implica na exclusão e desconsideração de certos

tipos de agências, como é o caso de agências não humanas dentro do que se define

enquanto social. Em relação a presença de objetos24 não humanos na ação coletiva a ser

explicada enquanto social, estes não devem ser considerados a priori na TAR e a sua

apresentação enquanto participante deve ser uma constatação empírica.

Segundo Latour a ausência dos objetos em considerações sociológicas é um indício do

quanto a fixação de determinadas agências exclui questões básicas para o

empreendimento científico: quem e o que participam da ação. A divisão entre material e

social dificulta a compreensão de como uma ação dita ‘coletiva’ é possível, se

considera-se, segundo a TAR, que o que se dá é uma associação de diferentes tipos de

forças. O autor propõe o uso da palavra “coletivo” em substituição ao termo “social”

para possibilitar uma ampliação da consideração de agências. Se em uma sociologia do

social as agências reunidas atribuem a centralidade da participação humana, usar o

conceito de coletivo é criar a abertura para o exercício de uma sociologia das

associações, ou seja, para a consideração de que na ação dita social, estariam reunidas

influências diversas, inclusive a de objetos não humanos. Na TAR usar o conceito de

coletivo é uma forma de evitar confusões com o uso do termo social, associado a

explicações reducionistas de conexões humano-humano ou objeto-objeto.

23 Os cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos através da educação ou da literatura a que são

expostos posteriormente, muitas vezes sem conhecer ou precisar conhecer quais as características que

proporcionam o status de paradigma comunitário a esses modelos. Por atuarem assim, os cientistas não

necessitam de um conjunto completo de regras. A coerência da tradição de pesquisa da qual participam

não precisam nem mesmo implicar a existência de um corpo subjacente de regras e pressupostos, que

poderia ser revelado por investigações históricas ou filosóficas adicionais. (...) (KHUN, 2000, p. 70).

24 (…) The main reason why objects had no chance to play any role before was not only due to the

definition of the social used by sociologists, but also to the very definition of actors and agencies most

often chosen. If action is limited a prior to what ‘intentional’ , ‘meaningful’ humans do it is hard to see

how a hammer, a basket, a door closer, a cat, a rug, a mug, a list, or a tag could act. They might exist in

the domain of ‘material’ ‘causal’ relations, but not in the ‘reflexive’ ‘symbolic’ domain of social relations

(…). (LATOUR, 2005, p. 71).

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20

Latour alerta para que a TAR não seja entendida enquanto proposta de simetria absurda

entre humanos e não humanos, visto que nesta teoria ser simétrico é simplesmente não

colocar a priori alguma assimetria entre a ação intencional humana e o mundo material

das relações causais. A simetria é parte da postura científica que valoriza a imersão no

referencial empírico para identificar e explicar como as forças que movem a ação

coletiva se manifestam, deixando evidência em diversos “suportes” que compõe uma

associação momentânea, uma fatia do social enquanto totalidade de forças.

Um estudo científico orientado pela da TAR precisa articular25 tanto a continuidade

quanto a descontinuidade entre os modos de ação. Neste sentido a aceitação de objetos

não humanos enquanto integrantes de uma associação (momento ou configuração do

social) se dá desde que esses se manifestem enquanto comensuráveis e que sejam

reconhecidos em sua incomensurabilidade fundamental, como proteção contra a

extensão dedutiva de forças cujo desdobramento empírico é imprevisível.

Mas como identificar a presença de objetos nos processos objetivados pela TAR?

Considerando que o movimento de forças expressa-se pelos elementos presentes na

ação coletiva, a identificação de objetos se dá num fenômeno social desde que este se

manifeste enquanto marcante, presente, relevante, enquanto relevo sobre a superfície

observada. A multiplicação de ocasiões em cuja visibilidade das força é momentânea

vai dando pistas para que o pesquisador exercite sua rapidez na compreensão do

movimento observado.

O estudo de inovações e controvérsias enquanto ponto de partida para a investigação

possibilita a consideração de objetos não humanos desde que estes se façam evidentes

no curso dos fatos observados, antes de deixarem de ter relevância para dar espaço a

novas associações, com possíveis novos objetos. O exercício do pesquisador

fundamentado pela TAR está centrado no mapeamento de mudanças na associação de

forças e de posições dos atores presentes. Nesta direção, considerar objetos, longe de ser

uma vaga para firmar um determinismo dos materiais sobre os humanos, é preencher a

25 (…) We have to become able to follow the smooth continuity of heterogeneous entities and the

complete discontinuity between participants that, in the end, will always remain incommensurable. The

social fluid does not offer to the analyst a continuous and substantial existence, but rather puts up only a

provisional appearance much like a shower of physical particles in the brief instant it’s forced into

existence. You begin with assemblages that look vaguely familiar and you end up with completely

foreing ones. (…). (Ibidem, p. 77).

Page 21: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

21

lacuna deixada por considerações de uma sociologia do social que considera os objetos

uma extensão do determinismo do social. No momento em que um objeto deixa de ser

um intermediário para “saltar” para o lugar de mediador, como um texto, ou um

protocolo, a importância do objeto não pode ser negada.

A objetivação

A partir da TAR a sociedade é compreendida enquanto rede heterogênea, considerando

que ao observarmos um fenômeno dito social, há um feixe de influências que se

configuram em algo dado. Essa “massa” de realidade será ordenada e organizada pelo

diagnóstico científico, este mesmo, considerado por John Law (s.a.: p.2) enquanto

“engenharia heterogênea”, para caracterizar as variações no resultado desta

objetivação, ainda que sobre o mesmo referencial empírico. Na TAR, encontrar os

conflitos, os deslocamentos, as incertezas e as confusões no campo empírico é o ponto

de partida para a observação do fenômeno social reconhecido enquanto associação e

cujas especificidades dizem respeito tanto às configurações contextuais a serem

observadas e descritas, quanto à forma do tratamento dado no processo de objetivação.

O pesquisador orientado pela TAR precisa exercitar a ampliação26 do seu olhar,

seguindo no sentido contrário ao do exercício de redução causal e de forças, presente

em perspectivas de objetivação reducionistas e meramente explicativas. A linguagem do

analista desta perspectiva precisa ser um instrumento que o auxilie a estar atento à

metalinguagem própria dos atores, como uma consideração reflexiva a respeito do que

estes dizem. Como propõe Law (s.a), o cientista, na tentativa de dar conta do fenômeno

observado, fará uso de uma tradução contingente27. O mapeamento das controvérsias é

o caminho para encontrar o que Latour chama de metafísica empírica. Tal conceito é

atribuído à explicação própria atribuída pelos atores sociais a respeito dos fenômenos

26 Here again, as soon as the decision is made to proceed in this direction, traces become innumerable and

no study will ever stop for lack of information on those controversies. Every single interview, narrative,

and commentary, no matter how trivial it appear, will provide the analyst with a bewildering array of

entities to account for the hows and whys of any course of action. Social scientists will fall asleep long

before actors stop deluging them with data. (Ibidem, p. 47)

27 Assim, a análise da luta pelo ordenamento é central à teoria ator-rede. O objeto é explorar e descrever

processos locais de orquestração social, ordenamento segundo padrões, e resistência. Em resumo, o objeto

é explorar o processo freqüentemente chamado de tradução o qual gera efeitos de ordenamento tais como

dispositivos, agentes, instituições ou organizações. (LAW, s.d, p. 06)

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22

observados pelo pesquisador. A noção de simetria aqui é importante para explicar o

fato de que o pesquisador coloca-se, na perspectiva da TAR em igualdade de

condições28 de produzir explicações ao lado do ator que também produz a sua. Surge a

questão a respeito de como mapear a metafísica empírica.

Sem deixar de afirmar a dificuldade que é mapear uma infinidade de agências num

processo de objetivação na TAR, o autor acha cientificamente mais apropriado seguir

com a mobilidade dada por um deslocamento de estruturas de referência, como

segurança contra absolutismos e pontos de vista arbitrários a respeito do real. Apesar da

incerteza que marca a questão da agência, ao discutir sobre indicadores para a sua

identificação enquanto relevante para um dado fenômeno, é importante considerar: a) se

a agência faz alguma diferença, se altera o estado das coisas observadas, produzindo

transformações e deixando traços; b) se a agência, enquanto coisa, apresenta algum

contorno, alguma forma (ainda que vaga) que a defina e que possibilite representação;

c) atores engajam-se em críticas sobre outras agências, tratando-as eventualmente

enquanto: falsas, arcaicas, absurdas, irracionais artificiais ou ilusórias (LATOUR,

2005: p.56); d) atestando a produção de suas próprias teorias da ação, os atores

apresentam explicações próprias sobre como se dão os efeitos das agências.

Em relação ao engajamento dos atores ao criticarem a legitimidade de outras agências,

o que impossibilita uma escuta atenta às suas representações por parte do analista –

especialmente os cientistas sociais da sociologia crítica - é o fato de que estes,

freqüentemente, encaram os atores sociais enquanto ingênuos e acrítico. Na TAR o

pesquisador precisa atentar para não se prender a nenhuma explicação extensiva de um

fenômeno social, visto que nesse, caleidoscopicamente são produzidos acontecimentos

no qual os humanos e os não humanos compõem um movimento de posições, cujos

estados de associação precisam ser objetivados.

28 (...) A acusação de relativismo ou de autocontradição só é pesada para aqueles que acham que a

verdade se enfraquece quando dela se faz uma construção ou um relato. Nós, que só buscamos os

materiais dessa construção e a natureza desses relatos, consideramo-nos em igualdade de condições com

aqueles que estudamos. Eles contam, nós contamos, eles experimentam, nós experimentamos, eles

constroem, nós construímos. As diferenças virão depois. Estaremos, portanto, tão atentos à elaboração de

nossos próprios relatos quanto aos relatos dos cientistas. É a reflexividade que esperamos para garantir a

nossa saúde. (LATOUR, 1997, p. 30)

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23

O campo de pesquisa segundo Latour, não pode estar aberto o suficiente para o

empreendimento da investigação se a priori é mantida a diferença entre a ação humana e

a causalidade material. A abertura deste campo depende também da consideração

levantada por Law (s.d.: p.3) de que ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos,

como retirada da ameaça de reducionismos

CONSIDERAÕES FINAIS

Se afirmarmos que através da linguagem podemos atribuir sentido aos fenômenos, e

ainda mais, se consideramos, como na semiótica, que verdade é uma construção

discursiva, interessante seria verificar o alcance dos meios pelos quais se produz

conhecimento dentro da perspectiva sociológica, através de um estudo crítico de seus

pressupostos à luz de demandas contemporâneas de aperfeiçoamento da prática

científica.

Visto que historicamente predominou a perspectiva sistêmica de análise sociológica no

campo da saúde no Brasil, ao lado de uma extrema valorização do discurso nativo em

etnografias, percebe-se em discussões contemporâneas sobre a cientificidade na

perspectiva de análise social, a importância de superar dicotomias entre o valor dado de

um lado à metafísica empírica e de outro o valor da metalinguagem. A revisão tanto do

conceito de “saúde” quanto do conceito de “social”, é fundamental para que sejam

identificados que elementos são reunidos na explicação e quais as implicações de

determinadas definições.

Reconhecendo que o campo científico é um espaço de luta pela autoridade no qual

muitas vezes arbitrariedades são postuladas sobre o crivo da cientificidade, é importante

relembrar a discussão sobre a rejeição do conceito de saúde, aplicada a uma noção de

saúde pública, tratada no primeiro capítulo, visto que a intervenção sobre indivíduos

implica em uma questão política na qual a autoridade dos profissionais de saúde pode

incorrer em uma expropriação da saúde do outro. Não se tratando de um apelo à hiper

valorização das narrativas no campo da saúde, para oferecer a devida segurança contra

arbitrariedades na perspectiva de análise social, é fundamental verificar empiricamente

o que dizem os atores sociais em seus discursos subjetivos da saúde.

A segurança científica que propõe Canguilhem sobre o tratamento do conceito de saúde

não pode ser entendida enquanto uma orientação para o pesquisador, no sentido de

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24

munição de pré-conceitos e pré-definições que melhor o guie para explicar, ou melhor,

para “aplicar” a sua metateoria. Tampouco a realização desta segurança em ciências

sociais deixa de incorrer em reduções de causalidades para a representação dos

fenômenos sociais observados. Se o conceito de saúde permanece apoiado em reduções,

a sua aplicação será conveniente a quem interessa a arrumação explicativa escolhida.

Atentar para o que se entende por saúde nos contextos objetivados com base na

perspectiva de análise social pode levar a controvérsias que ajudem o pesquisador a

mergulhar na complexidade das explicações apresentadas pelos atores, sobre o que é a

saúde e quais são os processos que a ela se referem. Se o papel do cientista é apresentar

evidências de algo dado e observado enquanto verdade, o conhecimento precisa valer-se

do campo empírico para nele encontrar sentido. A observação torna-se fundamental para

que se dê conta da aproximação entre a dimensão subjetiva e a objetiva, no tratamento

científico do referencial empírico do campo da saúde.

Recordando que na TAR há proteção contra a hiper valorização da metalinguagem e

contra a hiper valorização da metafísica empírica, a abordagem desta teoria parece

importante para se regular a cientificidade do conceito de saúde, protegendo-a de usos

arbitrários. Retomando a questão de Canguilhem a respeito da inexistência de uma

saúde pública, para a qual o mesmo propõe a substituição pelo termo salubridade

pública, uma pesquisa que a esse campo se dedique precisa considerar a dimensão

individual, social, assim como ampliar o olhar para compreender que controvérsias se

apresentam em um programa de ação social.

Pensando no projeto de proteção da compreensão de saúde contra usos arbitrários que

impliquem em processos de exclusão, manipulação e invasão, discutidos no segundo

capítulo, parece importante que a pesquisa no campo da saúde, especialmente em saúde

pública em um regime democrático, considere a metafísica empírica enquanto fonte de

informação autentica e interessante para a avaliação e o aperfeiçoamento da

administração pública, na aproximação simétrica entre os discursos interessados dos

atores envolvidos e as condições sobre as quais, também os seus feitos, se sustentam.

Considerando o problema da objetivação reducionista, tanto no paradigma explicativo

quanto no compreensivo discutidos por Alves (1995), o que Latour propõe não é uma

ruptura, mas sim, uma aproximação que preenche a lacuna apontada pelo primeiro

autor, sobre a necessidade de uma abordagem que reúna contribuições de ambas as

Page 25: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

25

perspectivas. A explicação científica29 para a TAR é instrumento de arrumação-para-

representação das associações expressas nos e pelos fenômenos sociais, sobre os quais,

as forças em jogo não são consideradas à priori, mas, identificadas enquanto constatação

empírica, caso se apresentem, ou sejam percebidas enquanto agências sobre o

observado.

As bases teórico metodológicas da Teoria do Ator Rede apresentam uma armadura contra

reducionismos e uma objetivação baseada em uma simetria entre o discurso do ator e o do

analista, instaurando um relativismo que é a base para tratar a questão da saúde: a) enquanto

subjetividade (verdade) situada no corpo e narrada com propriedade; b) enquanto objeto de

análise - metalinguagem, b) a partir da extensão da lista de atores e agências envolvidos

nos processos sociais; c) pelo abandono da divisão artificial entre dimensão social e

técnica; d) tendo as controvérsia como ponto de partida par a investigação, mais seguro

que os a prioris; e e) reunindo teoria social, metalinguagem, reflexividade e os atores,

geralmente considerados enquanto meros informantes. Sobre solo do relativismo da TAR, fica o

desafio de proporcionar a segurança necessária ao tratamento científico do tema saúde.

29 Discutindo sobre a aplicação da orientação teórico metodológica da TAR à etnografia de laboratório,

Latour (1997, p. 26) afirma que: “Nossa pesquisa tem por finalidade abrir um caminho diferente:

aproximar-se da ciência, contornar o discurso dos cientistas, familiarizar-se com a produção dos fatos e

depois voltar-se sobre si mesma, explicando o que fazem os pesquisadores, com uma metalinguagem que

não deixe nada a dever à linguagem que se quer analisar. Em resumo, trata-se de fazer o que fazem todos

os etnógrafos, e de aplicar à ciência a deontologia habitual às ciências humanas: familiarizar-se com um

campo, permanecendo independente dele e à distância.

Page 26: Considerações sobre a tar e o problema da objetivação na pesquisa em ciências sociais em saúde por Canilo Carvalho

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