claudia borges costa - aluno trabalhador

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CLÁUDIA BORGES COSTA O TRABALHADOR-ALUNO DA EAJA: DESAFIOS NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS MESTRADO EM EDUCAÇÃO GOIÂNIA - 2008

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sociologia - educação

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  • CLUDIA BORGES COSTA

    O TRABALHADOR-ALUNO DA EAJA: DESAFIOS NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM

    UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS MESTRADO EM EDUCAO

    GOINIA - 2008

  • 1

    CLUDIA BORGES COSTA

    O TRABALHADOR-ALUNO DA EAJA: DESAFIOS NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM.

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do Mestrado em Educao da Universidade Catlica de Gois como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Dr Maria Esperana Fernandes Carneiro.

    GOINIA 2008

  • C837t Costa, Cludia Borges. O trabalhador-aluno da EAJA: desafios no processo ensino-aprendizagem / Cludia Borges Costa. 2008.

    131 f.

    Dissertao (mestrado) Universidade Catlica de Gois, Mestrado em Educao, 2008.

    Orientadora: Dr Maria Esperana Fernandes Carneiro.

    1. Educao jovens - adultos. 2. Trabalhador-aluno ensino municipal Goinia (GO). 3. Trabalho educao. 4. Ensino aprendizagem. I. Ttulo.

    CDU: 374.7(817.3)(043.3)

  • .

    BANCA EXAMINADORA

    .........................................................................................

    Prof Dr Maria Esperana Fernandes Carneiro

    ..........................................................................................

    Prof Dra. Lcia Helena Rincn Afonso Universidade Catlica de Gois - UCG

    ...........................................................................................

    Prof Dra. Maria Margarida Machado Universidade Federal de Gois - UFG

    Data: .................................................

  • 3

    Dedico:

    A todos(as) os(as) trabalhadores(as)-aluno-(as), em especial queles(as) pertencentes s trs escolas pesquisadas, pela grande contribuio pesquisa; a

    eles(as), minha admirao pela ousadia e pela garra de enfrentar, todos os dias, as lutas pela sobrevivncia e pela permanncia na escola. Que esta escola possa nos ajudar a compreender que, juntos, poderemos, um dia, construir o tempo livre de ser!

  • 4

    Capito de Indstria Os Paralamas Do Sucesso

    Eu s vezes fico a pensar Em outra vida ou lugar Estou cansado demais Eu no tenho tempo de ter O tempo livre de ser De nada ter que fazer quando eu me encontro perdido Nas coisas que eu criei E eu no sei Eu no vejo alm de fumaa O amor e as coisas livres, coloridas Nada poludas Ah, Eu acordo pr trabalhar Eu durmo pr trabalhar Eu corro pr trabalhar

  • 5

    Agradecimentos

    Ao Deus da vida e da minha histria por fazer parte dessa caminhada e permitir fora, coragem e sade no percurso desta pesquisa.

    Aos meus pais, pessoas valiosas, que me ensinaram muito, principalmente a arte da convivncia. A minha me, minha companheira, pela fora e pelo incentivo em todos os momentos, sobretudo por me substituir muitas vezes nos cuidados com os meninos e da casa. A meu pai, onde estiver, pela dedicao e pelo amor dispensados a mim durante sua existncia.

    Ao Luiz, meu companheiro de todos os momentos. Agradeo tambm pela dedicao em ser o primeiro leitor de meus escritos e por suas valorosas contribuies, com quem pude aprender muito.

    Ao Flvio e ao Daniel, minhas preciosidades, pela compreenso nas tantas ausncias da me e pelo carinho que muito me estimulou para seguir nesta caminhada.

    Professora Maria Esperana Fernandes Carneiro, pelas crticas e pelos incentivos, enfim, pela orientao profissional e humana.

    s professoras Maria Margarida Machado e Lcia Helena Rincn Afonso, pelo carinho, pela dedicao e pela coerncia acadmica com que leram o meu texto. Agradeo imensamente pela valiosa contribuio e pela segurana que me passaram no exame da qualificao.

    Aos colegas do mestrado, com os quais foi possvel compartilhar certezas e muito mais incertezas, mas, enfim, dialogamos e vivenciamos buscas neste difcil processo de construo cientfica.

    A todos os profissionais da educao das trs escolas pesquisadas, por possibilitarem a minha entrada no cotidiano da escola para a investigao cientfica. Afirmo ter aprendido muito com todos(as).

    Aos colegas do Conselho Municipal de Educao, pela torcida incondicional.

    Aos companheiros(as) do Frum Goiano de EJA, pessoas com quem pude partilhar e aprender com as tantas vivncias na EJA.

  • 6

    A Rose, minha irm de alma, pela amizade e companhia de todo dia. Tambm agradeo aos meus amigos Adriano, Bebel e Rodrigo, pela presena fiel em minha vida.

    A minha amiga Salvadora, sempre trabalhadora-aluna e hoje, com grande esmero, trabalhadora na educao, pela fiel torcida.

    s amigas Esmeraldina e Dinor, tambm pesquisadoras da EJA, com quem pude partilhar angstias e incertezas. Agradeo pelas contribuies por meio de seus escritos e tambm pelos dilogos que muito colaboraram no meu texto.

    A uma amiga da histria de tantos anos, pela partilha de seus escritos sobre a EJA, pelos dilogos e, sobretudo, pelo seu exemplo como educadora e pessoa.

    Pelos muitos amigos distantes e prximos que contriburam, ora com seus escritos, ora com dilogos, ora com a torcida, o que foi o bastante para me estimular no percurso deste trabalho.

  • 7

    SUMRIO

    LISTA DE SIGLAS ........................................................................................................ 09 RESUMO ......................................................................................................................... 11

    ABSTRACT ..................................................................................................................... 12 INTRODUO ............................................................................................................... 13

    CAPTULO I UM OLHAR SOBRE A CONCEPO DE EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS E O MUNDO DO TRABALHO .............................................................. 20 1.1 Contextualizao Social.............................................................................................. 20 1.2 O trabalho como Princpio Educativo ........................................................................ 24

    1.2.1 O trabalho: elemento bsico na constituio do homem .................................. 28 1.3 A Histria da EJA no Contexto da Educao Brasileira ........................................... 33

    1.3.1 A Educao de Adolescentes, Jovens e Adultos - Eaja - no Municpio de Goinia ............................................................................................................. 41

    1.4 A Viso do currculo da Eaja da Rede Municipal de Educao de Goinia sobre os Jovens e Adultos Trabalhadores ................................................................................ 44

    CAPTULO II O MUNDO DO TRABALHO E A ESCOLA: A REALIDADE DOS SUJEITOS ENVOLVIDOS ............................................................................................................... 51 2.1 A EJA em algumas pesquisas e os trabalhadores-alunos da Eaja/Goinia ............... 51 2.2 A escola e seu significado ................................................................................ ......... 67

    CAPTULO III A RELAO DA APRENDIZAGEM NA VIDA DO(A) TRABALHADOR(A)-ALUNO(A) ...................................................................................................................... 81 3.1 Escola espao de encontro, construo de conhecimento e de conflito social .......... 81

    3.1.1 A formao de professores ........................................................................... 92 3.1.2 Relao de Classe no espao da escola ......................................................... 95 3.1.3 Conflitos de Geraes ................................................................................... 98 3.1.4 O processo avaliativo como elemento de tenso ........................................... 102

    3.2 Alguns espaos de tenso e produo do conhecimento nas escolas da Eaja ........... 107

  • 8

    3.2.1 Espao de leitura ............................................................................................ 108 3.2.2 Espao da informtica ..................................................................................... 111

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 117 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 124 ANEXOS ......................................................................................................................... 132

  • 9

    LISTA DE SIGLAS

    ANPED - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao CEB - Cmara de Educao Bsica

    CNE - Conselho Nacional de Educao CEFET - Centro Federal de Educao Tecnolgica

    CFESP - Centro Ferrovirio de Ensino e Seleo Profissional CME - Conselho Municipal de Educao DCN - Diretrizes Curriculares Nacional DEF-AJA - Diviso do Ensino Fundamental - Educao de Adolescentes, Jovens e

    Adultos CONFINTEA - Conferncia Internacional de Educao de Adultos

    EAJA - Educao de Adolescentes, Jovens e Adultos EJA - Educao de Jovens e Adultos ENEJA - Encontro Nacional de Educao de Jovens e Adultos FMI - Fundo Monetrio Internacional IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IDH - ndice de Desenvolvimento Humano INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira IPEA - Instituto de Pesquisa e Anlise LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    MEC - Ministrio da Educao e Desporto; Ministrio da Educao MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetizao

    MOVA - Movimento de Alfabetizao de Jovens e Adultos - Brasil PNAD - Pesquisa por Amostra de Domiclios Projeto AJA - Experincia Pedaggica de 1 a 4 srie do Ensino Fundamental para

    Adolescentes, Jovens e Adultos

    PUC - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo RME - Rede Municipal de Educao

    SECAD - Secretaria de Educao Continuada Alfabetizao e Diversidade SENAC - Servio Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI - Servio Nacional de Aprendizagem Industrial SESC - Servio Social do Comrcio

    SME - Secretaria Municipal de Educao

  • 10

    UNESCO - Organizaes das Naes Unidas para Educao, Cincias e Cultura UFB - Universidade Federal da Bahia UFG - Universidade Federal de Gois UnB - Universidade de Braslia

    Unicamp - Universidade de Campinas

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    RESUMO

    O propsito deste estudo foi investigar a realidade dos jovens e adultos trabalhadores-alunos da 5 8 sries do ensino fundamental noturno, integrantes a Rede Municipal de Ensino de Goinia, na modalidade de Educao de Jovens e Adultos EJA. Buscou-se compreender a correlao entre conhecimento obtido na escola e o mundo do trabalho. A pesquisa, intitulada O trabalhador-aluno da Eaja: desafios no processo ensino-aprendizagem, objetivou refletir sobre as mediaes ou possveis contradies entre a escolarizao formal e o mundo do trabalho; analisar, na proposta poltico- pedaggica da Secretaria Municipal de Educao de Goinia, a articulao entre o ensino bsico e a categoria trabalho; identificar a viso dos alunos sobre o aprendizado na escola e sua relao com a esfera profissional. No que tange metodologia, optou-se por uma abordagem qualitativa, por entender que suas caractersticas permitem melhor apreenso do objeto em estudo. As etapas da pesquisa foram: reviso da bibliografia sobre a temtica EJA e sua configurao no campo da educao brasileira, estudo e anlise da Proposta Poltico-Pedaggica para Educao de Adolescentes Jovens e Adultos da RME/Goinia e pesquisa de campo. Para a pesquisa de campo, utilizou-se os instrumentos tcnicos de investigao: questionrio e entrevistas semi-estruturadas. Nas consideraes finais, ressaltou-se as anlises obtidas por meio da pesquisa de campo e os diversos conflitos e tenses apresentados pelos sujeitos da pesquisa, sobretudo os(as) trabalhadores(as)-aluno(as), o que revelou vrios aspectos relevantes sobre a relao educao/trabalho, bem como as dificuldades em desenvolver, na prtica, a integralidade da referida proposta pedaggica e sua inconsistncia terica em relao aprendizagem destinada ao trabalhador(a)-aluno(a).

    Palavras-chave: Educao; Educao de Jovens e Adultos; Trabalho e Educao; Mundo do Trabalho.

  • 12

    ABSTRACT

    The purpose of the current study is to investigate the reality of the young and adult studying workers of EJA - Education of Youths and Adults - who are enrolled in 5th through 8th grades of night elementary education program of Goiania Municipal School System. Understanding the connection between the knowledge acquired in school and the work environment has been in view. Entitled The studying worker of EJA: challenges of teaching-learning process, the research has aimed to achieve three goals: 1) discussing mediations or possible contradictions between formal education and the world of work; 2) analyzing the connection between the basic education and the work as a category within the limits of the political-pedagogic proposal of Goiania Municipal Education Office; and 3) identifying both the students view of the school learning and its connection with the professional context. Aiming at achieving a more comprehensive apprehension of the object of study, qualitative research methodology has been employed. The research has been accomplished taking into account three stages: 1) revising the bibliography on the theme of EJA and its configuration in the field of Brazilian education; 2) studying and analyzing Goiania Municipal School System Political-Pedagogic Proposal for the Education of Teenage Youths and Adults; and 3) field research. Technical instruments of investigation, such as questionnaires and demi-structured interviews, have been applied in the field research. In final considerations both the analyses carried out with the help of field research and a number of conflicts and emotional tensions undergone by the research subject - especially studying workers - have been highlighted. As a result relevant aspects of the connection between education and work has been revealed, especially the difficulties in developing the mentioned pedagogic proposal as a whole in everyday practice and the theoretical incoherence of such proposal concerning learning methods intended for studying workers.

    Key words: Education; Education of Youths and Adults; Work and Education; World of Work.

  • 13

    INTRODUO

    A presente dissertao, intitulada O trabalhador-aluno da Eaja: desafios no processo ensino-aprendizagem, aborda a formao propiciada aos alunos da referida modalidade que estudam no perodo noturno e as possveis interferncias nas relaes sociais desses sujeitos, sobretudo no trabalho destes(as) educando(as).

    A educao de jovens e adultos EJA tem apresentado um quadro de conflitos, pois os alunos retornam escola depois de um longo perodo sem usufruir do seu direito educao. O motivo que levou esse aluno a deixar a escola geralmente o mesmo que exige o seu retorno o trabalho. Esses jovens e adultos trabalhadores fazem parte de uma parcela da populao marcada pela excluso e pela marginalizao.

    A Terceira Revoluo Industrial, sob a gide da sociedade neoliberal, defende a tese de um Estado reduzido, uma poltica financeira afinada com o Fundo Monetrio

    Internacional/FMI, organismo mundial do capital, processo de privatizao acelerado e, sobretudo, a desconsiderao dos direitos sociais dos trabalhadores. Este atual cenrio marca

    o avano tecnolgico e vem impondo um novo contexto organizao do trabalho1. Observa-se um reforo nas relaes desiguais de poder, com uma diviso ntida entre os detentores do saber, sobretudo o tecnolgico, e os trabalhadores braais. Nessa conjuntura, a formao necessria para que esse trabalhador consiga ocupao e permanncia no mercado de trabalho

    passa pelo conhecimento intelectual, em detrimento do manual. Portanto, ao se pensar educao de jovens e adultos e o mundo do trabalho, deve-se

    considerar que, na atual conjuntura, as relaes que se constituem entre a escolarizao bsica, podem possibilitar, ou no, a insero, a permanncia e tambm a mobilidade dos educandos(as) no mundo do trabalho.

    A experincia prpria como profissional da educao do ensino noturno da rede

    pblica, no interior e na capital, pela Secretaria Municipal de Educao de Goinia, trouxeram muitas inquietaes. Dentre elas, esto a dualidade entre educao bsica e mundo do trabalho

    e a dificuldade de o aluno trabalhador manter-se na escola e terminar com sucesso sua formao escolar. Percebe-se, tambm, a falta de articulao dos contedos trabalhados com a realidade dos sujeitos da EJA.

    1 Conforme afirma Antunes (1999, p. 205), a classe trabalhadora, na passagem do sculo XX para o XXI, mais explorada, mais fragmentada, mais heterognea, mais complexificada, tambm no que refere a sua atividade produtiva: um operrio ou uma operria trabalhando em mdia com quatro, com cinco, ou mais mquinas. Os trabalhadores so desprovidos de direito, seu trabalho desprovido de sentido, em conformidade com o carter destrutivo do capital, pelo qual relaes metablicas sob controle do capital, no s degradam a natureza, levando o mundo beira da catstrofe ambiental, como tambm precarizam a fora humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a, alm de intensificar os nveis de explorao.

  • 14

    Nessa perspectiva, o problema investigado voltou-se para as seguintes interrogaes: -Qual a concepo de trabalho e de mundo do trabalho da proposta pedaggica para o ensino fundamental de adolescentes, jovens e adultos do perodo noturno do municpio de Goinia? -Qual a viso dos educandos(as) sobre o aprendido na escola e sua relao com sua esfera profissional?

    Considerando a importncia da temtica da educao de jovens e adultos no contexto das polticas pblicas desenvolvidas no pas, a pesquisa tem como principal objetivo compreender, analisar e interpretar a aprendizagem do aluno trabalhador da Educao de Adolescentes, Jovens e Adultos Eaja no ensino fundamental e sua relao com o mundo do trabalho.

    Diante da experincia desenvolvida na Rede Municipal de Educao de Goinia, a partir de proposta prpria para a EJA, os objetivos especficos a serem perseguidos sero identificar as concepes de trabalho e de mundo do trabalho que orientam a proposta pedaggica para a educao de jovens e adultos de 5 a 8 srie2 e analisar a viso dos alunos da educao de jovens e adultos das escolas municipais de Goinia sobre o aprendizado na escola e sua relao com o atual mundo do trabalho.

    Na tentativa de alcanar esses objetivos, os estudos tericos realizados na perspectiva marxista possibilitaram um aprofundamento de conceitos e categorias, dentre eles os de educao e trabalho.

    No que se refere perspectiva marxista, o trabalho o centro do processo educativo, uma vez que, nessa concepo, o trabalho o que distingue o homem como gnero humano.

    Nesse sentido, o homem, ao relacionar-se com a natureza, faz-se e educa-se, o que o diferencia das outras espcies. Assim, a educao deve ser percebida como formao ampla

    de homens e mulheres. As relaes sociais vo se construindo a partir da luta pela sobrevivncia. Conforme

    argumenta Enguita (1993), luz de Marx, essa relao concreta da existncia que marca a conscincia do ser humano. Na viso de Marx, o homem no pode ser compreendido como

    uma realidade isolada. Ele , no seu tempo, o conjunto das relaes sociais. Nesta tica, a educao significativa na medida em que prope uma anlise crtica

    da realidade e da sua transformao. Na viso de Freire (1979), a conscincia crtica exige dos sujeitos um compromisso com a transformao de sua realidade. Dessa forma, a educao se afirma como espao de construo do conhecimento e de cultura, em que os homens so

    2 Estas turmas do ensino fundamental tambm so conhecidas como segundo segmento.

  • 15

    sujeitos desse processo. Conforme Gramsci (2004b), os homens so sujeitos do seu tempo; produzem e tambm exercem atividade intelectual. Em sua opinio, no h separao entre o fazer e o pensar. Saviani (2005) percebe que a criao essencialmente humana. Para ele, existe uma ntima relao entre educao e trabalho - alis, educao, nessa ptica, trabalho.

    De acordo com Bruno (1996), desde o incio o capitalismo tem registrado, na histria, uma educao com o papel de cumprir a necessidade da formao atrelada ao

    mercado de trabalho, atendendo formao ideolgica de submisso ao capital. No atual contexto, a educao tem recebido a incumbncia de ser um instrumento bsico para qualificao das foras de trabalho. Na viso de Frigotto (2001), os conceitos de competncia, competitividade, habilidades, qualidade total e empregabilidade assumem importncia no

    processo de educao e aparecem como imposio ideolgica de sustentao dos valores do mercado e do capital, em detrimento aos valores humanos. Estes conceitos terminam por

    afirmar, na presente relao de trabalho, a fragmentao, a precarizao e a intensificao da explorao do trabalhador. Refora-se a viso individual de adquirir conhecimentos e condies adequadas to somente para insero no mercado de trabalho.

    O caminho a perseguir conceber a EJA como formao permanente. , portanto, o caminho da continuidade, ou seja, para alm da alfabetizao ou da formao tcnica especfica. A defesa de uma educao permanente para todos os sujeitos significa a confirmao de um direito formalmente constitudo e, entretanto, concretizado apenas para uns poucos e, ainda, para atender demanda da formao em funo exclusiva do mercado.

    No entendimento de Oliveira e Paiva (2004), a interveno pedaggica a ser realizada com jovens e adultos deve partir da concepo de que a aprendizagem deve estar na realidade desses sujeitos, o que aponta para uma discusso de produo da existncia por meio do trabalho; e mais, para a elaborao de sua identidade, sua participao como cidado e sua leitura crtica como ser social.

    A discusso principal da EJA passa pela conduo de reflexes, prticas e aprendizagens traduzidas a partir do direito humano a acesso e permanncia na escolarizao.

    Conforme Machado (2007), tem-se travado uma luta histrica para assegurar, nas polticas pblicas, a oferta, no mnimo, da educao bsica para jovens e adultos no pas.

    Por ltimo, os enfoques insero e permanncia, interfaces da categoria trabalho, sero estudados a partir das reflexes sobre o atual contexto social em que o trabalho vive a subordinao ao capital. De acordo Frigotto (2001), o atual mundo do trabalho utiliza de uma parte dos trabalhadores no campo da formalidade e empurra uma grande parcela para a

    informalidade.

  • 16

    Essa investigao empreendeu uma pesquisa do tipo qualitativa, por entender que suas caractersticas bsicas permitem uma melhor apreenso do objeto em sua totalidade, pois se desenvolve numa situao natural, rica em dados descritivos, tem um plano aberto e flexvel e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada. (LUDKE; ANDR 1986, p. 18).

    Os estudos qualitativos, com o olhar da perspectiva scio-histrica, contriburam na valorizao dos aspectos descritivos e as percepes pessoais, as quais focalizaram o particular como elemento constituinte na globalidade do contexto social.

    A pesquisa de campo foi iniciada em outubro de 2006, em trs escolas escolhidas em bairros localizados em trs regies da grande Goinia. Essas escolas tornaram-se lcus deste estudo por apresentarem as seguintes caractersticas: foram instaladas no final da dcada de 1960, desde o incio trabalhavam com EJA e, assim, vivenciaram a experincia do antes e do depois da proposta da SME/2000, especfica para a atuao na educao de jovens e adultos; tm tempo de experincia no segundo segmento (5 a 8 srie) e possuem aproximadamente 260 alunos no turno noturno, no segundo segmento. Esse conjunto de condies possibilitou espaos favorveis para o desenvolvimento da pesquisa e a busca das respostas para as indagaes feitas.

    Inicialmente, procurou-se realizar um levantamento das pesquisas referentes EJA, na perspectiva de perceber as contribuies desses estudos para a referida modalidade e tambm para esse objeto de estudo. Buscou-se estudos acadmicos referentes ao tema no perodo de 1997 a 2007. Por meio de consultas Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao (ANPED), algumas bibliotecas virtuais de universidade pblicas, sobretudo da Universidade Federal de Gois (UFG), e na Universidade Catlica de Gois (UCG). Esse levantamento permitiu perceber a carncia de pesquisas sobre a temtica da EJA, principalmente no que se refere ao segundo segmento do ensino fundamental.

    A partir da reviso bibliogrfica, foi possvel obter o conhecimento da histria da EJA no Brasil, bem como entrelaar essa modalidade de ensino com a educao em geral, por meio de uma constante discusso de idias com os vrios autores e pesquisadores da educao e do mundo do trabalho. Outra fonte importante refere-se participao da pesquisadora no Frum Goiano de EJA3, que possibilitou o encontro com diversas experincias vivenciadas

    3 Em 1999, foi constituda uma comisso para a criao do Frum Goiano de Educao de Jovens e Adultos, que promoveu reunies peridicas e constituiu-se em Frum Goiano de Educao de Jovens e Adultos, em 29 de novembro de 2002, dando continuidade iniciativa daquela comisso, e procurando agregar o poder pblico, entidades de classe, organizaes no-governamentais, empresas e outras instituies, no sentido de fortalecer a EJA no Estado de Gois. Centrado em seus objetivos na proposio de temticas pertinentes ao pensar e fazer da EJA e na possibilidade de construo de uma poltica democrtica para a modalidade. (Relatrio-Sntese do V Encontro Estadual do Frum Goiano de EJA, abril de 2006).

  • 17

    pela modalidade de EJA no Estado de Gois, alm de permitir a insero nas vrias discusses propiciadas em encontros temticos4: estaduais, nacionais e preparatrios para a conferncia internacional, a ser realizada em 2009, na cidade de Belm- Par.

    Para a coleta de dados e informaes, foram utilizados vrios procedimentos metodolgicos, mediante as seguintes tcnicas: anlise documental (leis, resolues, pareceres, diretrizes e propostas pedaggicas referentes Educao de Jovens e Adultos), questionrios para compor o perfil dos sujeitos pesquisados, entrevistas com alunos, professores e outros profissionais da educao que compreendem o quadro do ensino noturno, bem como a realizao de observaes de campo.

    Com fundamento em Bogdan; Biklein (1997), foi possvel compreender que, na investigao qualitativa de cunho scio-histrico, o campo o lcus privilegiado em que se abre a possibilidade de responder questo orientadora da pesquisa, a saber, qual a contribuio do processo ensino-aprendizagem da Eaja para o(a) aluno(a), sobretudo em seu trabalho/profissionalizao. Na expectativa de buscar respostas a essa indagao, foi necessria uma aproximao com a realidade por meio das observaes, dos encontros,

    atravs de discursos verbais, gestos e expresses, alm dos registros nos dirios de campo, que contriburam para a composio do panorama social.

    O dirio de campo possibilitou registrar as observaes realizadas em sala de aula, nos intervalos das aulas e nas conversas informais com os(as) alunos(as). Por meio desse instrumento, registraram-se os encontros com educadores(as), diretoras das escolas e outros funcionrios. Foram analisados tambm os planejamentos e conselhos de turmas.

    As entrevistas foram marcadas pela dimenso do social. Dessa forma, no se cumpriu a regra geral de perguntas e respostas fechadas, previamente preparadas, mas enfatizou-se uma produo de linguagem dialgica. Nas palavras de Paulo Freire (2004, p.136), o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relao dialgica em que se confirma como inquietao e curiosidade, como inconcluso, em

    permanente movimento na histria.

    Foram aplicados 246 questionrios nas trs escolas, com posterior tabulao e lanamento dos resultados em grficos. Posteriormente, foram realizadas 63 entrevistas semi-

    4 II Encontro Temtico Avaliao na EJA maro/2006; V Encontro Estadual do Frum Goiano de EJA Uma Poltica de Estado: alfabetizao e continuidade enquanto direito abril/2006; III Encontro Temtico Financiamento da EJA agosto/2006; VI Encontro Estadual do Frum Goiano de EJA EJA educao bsica e formao continuada maio/2007; II Seminrio Nacional de Formao de Educadores da EJA maio/2007; VI Encontro Temtico EJA e o mundo do trabalho: o que isso? novembro/2007 e Encontro Estadual Preparatrio para a VI CONFINTEA Brasil Educao e Aprendizagens de Jovens e Adultos ao Longo da Vida maro/2008.

  • 18

    estruturadas com os alunos. Aps analisar o discurso dos alunos, percebeu-se a necessidade de ouvir professores e outros profissionais das escolas pesquisadas. Em tais encontros, buscou-se criar um dilogo respeitoso e reverente, no sentido propiciar um ambiente favorvel busca de aspectos relevantes da histria de vida dos(as) entrevistados(as), bem como a forma peculiar de perceberem e experienciarem a existncia. O mundo do trabalho do educando e sua correlao com o aprendizado na escola foram focalizados na investigao.

    As entrevistas realizadas foram transcritas na ntegra. Assim, esta dissertao apresenta a trajetria e concluso da presente pesquisa e, para

    isso, foi estruturada em trs captulos, a seguir descritos. O primeiro captulo, intitulado Um olhar sobre a concepo de educao e o mundo

    do trabalho, foi subdividido em quatro aspectos: o trabalho como princpio educativo; o trabalho-elemento bsico na constituio do homem; a histria da EJA no contexto da

    educao brasileira e da Eaja no municpio de Goinia e, por ltimo, a viso do currculo da Eaja da RME de Goinia sobre os jovens e adultos trabalhadores. Houve, ainda, uma contextualizao terica do objeto de estudo, apontando a relao entre educao e mundo do trabalho. A especificidade da Eaja da Rede Municipal de Ensino de Goinia foi tambm abordada.

    O segundo captulo, O mundo do trabalho e a escola: a realidade dos sujeitos envolvidos, foi subdividido em dois campos. O primeiro, a Eaja em algumas pesquisas e os trabalhadores-alunos da Eaja/Goinia, preocupou-se em apresentar um breve resumo de algumas pesquisas pertinentes a essa temtica; em seguida, mostra-se a realidade dos

    trabalhadores-alunos das trs escolas pesquisadas. O segundo, a escola e seu significado, traz os dados revelados pelos sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem da Eaja, turmas de 5 a 8 srie. Esse captulo trabalhou com os discursos, com dados sociais e especficos dos trabalhadores-alunos e procurou compreender as contribuies apreendidas nos estudos dos vrios autores e pesquisas no campo de EJA.

    Os discursos dos sujeitos da Eaja trouxeram inmeras experincias vivenciadas dentro e fora da escola. Dessa forma, indicaram dificuldades, sobretudo na experincia vivenciada na escola. Tais dificuldades e tenses sero especialmente abordadas no terceiro

    captulo: A relao da aprendizagem na vida do(a) trabalhador(a)-aluno(a). Essas tenses trazem desde questes sociais at os fatores internos da escola, como os aspectos da infra-estrutura, pedaggicos e das relaes pessoais.

    Nas consideraes finas, pretende-se retomar a discusso da relao entre educao e

    trabalho, como uma reflexo sobre as dificuldades impostas aos trabalhadores-alunos, bem

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    como sobre os(as) educadores(as). Retomar a experincia vivenciada pelas escolas, a partir da proposta da Eaja/Goinia, e pensar nas reais condies de se realizar, de fato e integralmente, essa proposta, significa romper com uma formao que ainda no a desejvel. Significa buscar uma alternativa de educao que propicie condies para a conscientizao do ser

    humano, para que esteja atento, mesmo em tempos difceis, denuncie e combata a injustia social, pois, conforme afirma Hobsbawm (2002, p.455), o mundo no vai melhorar sozinho. Outro projeto de sociedade possvel, no qual a centralidade esteja nos seres humanos e em suas relaes com o outro e com a natureza.

  • CAPTULO I UM OLHAR SOBRE A CONCEPO DE EDUCAO E O MUNDO DO TRABALHO

    Mesmo assim, no nos desarmemos, mesmo em tempos insatisfatrios. A injustia social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo no vai melhorar sozinho.

    - ERIC HOBSBAWM -

    1.1 Contextualizao Social

    A proposta deste estudo conhecer e interpretar a realidade, o processo, os avanos, os limites e as possveis mudanas no projeto da Educao de Jovens e Adultos (EJA) do municpio de Goinia. No campo da legislao, a EJA destinada queles que no puderam cursar, em idade apropriada, o ensino regular. Entretanto, a educao pensada na concepo

    de continuidade e para a vida toda, no se justifica utilizar os termos idade apropriada e ensino regular, pois no retratam a realidade da aprendizagem como um processo permanente. , j se sabe que a sada de alunos das escolas decorre, na maioria das vezes, da necessidade de insero, de forma precoce, no mercado de trabalho. Neste sentido, o foco do presente

    estudo so os(as) trabalhadores(as)-alunos(as) que esto inseridos(as) no processo ensino-aprendizagem na referida rede de ensino e, para tanto, trs escolas municipais foram

    escolhidas para o desenvolvimento da pesquisa. Pensar a educao de jovens e adultos implica, sobretudo, voltar o olhar para os

    sujeitos, trabalhadores-alunos, e sua realidade, no seio das relaes sociais de produo da sociabilidade do capital. A realidade dos jovens e adultos brasileiros est presente em indicadores5 que apontam um percentual de 10,4% de analfabetos, entre jovens com at 15 anos e de 23,6% para aqueles com mais de 15 anos, identificados como analfabetos funcionais.

    O trabalho tem sido prioritrio para aqueles que no podem escolher profissionalizar-se via educao formal, mas que necessitam, muito cedo, prover sua sobrevivncia. neste sentido que se busca desvelar quais e como devem ser as condies para resgatar o acesso ao conhecimento produzido social e cientificamente, no sentido de propiciar, no futuro, melhores

    condies de trabalho e de vida para os jovens trabalhadores.

    5 ndices de analfabetismo informados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica/IBGE, por meio da pesquisa por amostra de domiclio/PNAD de 2006, em relao populao total de aproximadamente 173.000.000 de brasileiros acima de cinco anos de idade.

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    As anlises referentes funo exercida pela educao formal, no modo de produo capitalista, tm revelado a natureza reprodutora6 e excludente assumida pela escola. Entende-se isso a partir do pressuposto de que as relaes sociais no capitalismo so expresses dos diferentes interesses das classes sociais que, no raro, so antagnicas, mas acabam

    prevalecendo os interesses da classe que domina. Pode-se perceber esse fenmeno de excluso a partir de alguns indicadores:

    O analfabetismo atingia, em 2005, cerca de 14,6 milhes de brasileiros. Esse elevado contingente de pessoas, no entanto, distribui-se de forma bastante desigual em termos regionais, em relao localizao domiciliar (rural/urbana) e segundo as faixas etrias. Por exemplo, a taxa de analfabetismo na Regio Nordeste superava em mais de trs vezes a observada no Sul. Na rea rural, abrangia 25% da populao, o que equivale a uma proporo cinco vezes maior que a taxa da rea urbana metropolitana (PNAD/IBGE-2005).

    Esses dados possibilitam constatar as desigualdades ainda existentes entre diferentes regies que, grosso modo, apresentam um panorama de precariedade na formao/

    profissionalizao formal, que tambm se explicita em escala mundial, apontando uma crise no apenas nas reas urbanas, como tambm no campo. Esse contexto est marcado por um painel de excluso e marginalizao, principalmente em pases em desenvolvimento como o Brasil.

    Apesar dos ndices de crescimento econmico atingidos nos ltimos anos, o processo de concentrao de renda nas mos de poucos continua em curso. De acordo com o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), de 2006, no total de 177 pases, o Brasil encontra-se na 69 colocao no ranking, com um ndice de 0,792 (mdio desenvolvimento humano). Apesar de ter melhorado nos critrios educao e longevidade, o Brasil caiu no critrio renda. Entretanto, os dados estatsticos recentes, contidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), mostram uma distribuio de renda favorvel aos mais pobres, porm insuficiente ainda para garantir

    qualidade de vida como se segue: entre 2001 e 2004, a renda dos 20% mais pobres cresceu cerca de 5% ao ano enquanto os 20% mais ricos perderam 1%.

    Os privilgios ainda continuam se mantendo, dada a enorme disparidade de renda, e a educao configura uma diferena de possibilidades, embora o crescimento dos indicadores de alfabetizao seja insuficiente, enquanto patamar educacional, para uma melhor insero no mercado de trabalho e para a obteno de maiores salrios, j que o ensino mdio completo

    6 Dentre essas anlises, conforme Silva (1999, p.30), destacam-se os estudos de Paulo Freire (1970) Althusser (1970), Bourdieu/Passeron (1970), Baudelot/Establet (1971), Basil Bernstein (1971), Michael Young (1971), Bowles/ Gintis (1976), Pinar/Grumet (1976) e Apple (1979).

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    o patamar de referncia para melhores condies de vida. Dessa forma, estamos distantes de vislumbrar, de fato, a socializao do saber

    No perodo de 1992-2005, a taxa de analfabetismo da populao de 15 anos ou mais apresentou reduo anual mdia de 0,5 ponto percentual. Entretanto, nos ltimos anos, o ritmo de queda tem sido reduzido, o que tende ampliar tempo necessrio para que o Brasil se equipare, no que concerne a esse indicador, maioria dos pases latino-americanos e, em particular, Argentina (2,8%, em 2001) e ao Chile (4,3%, em 2002). (IPEA, 2005).

    A ampliao do nmero de vagas, ao longo dos ltimos anos, para o ensino bsico, no diminuiu o complicador referente continuidade dos estudos de grande parte da

    populao. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas/INEP aponta dados significativos que confirmam o cenrio de desigualdade, pois cerca de 41% dos estudantes brasileiros continua sem concluir sequer o nvel obrigatrio de escolaridade.

    Embora o nmero de concluintes do ensino fundamental e mdio venha crescendo rapidamente nos ltimos anos, as taxas de concluso do Brasil so muito baixas em comparao com os demais pases que constam no relatrio de indicadores educacionais da Unesco/OCDE. De 1994 a 1999, o nmero de concluintes do ensino fundamental saltou de 1 milho e 588 mil para 2 milhes e 383 mil, um crescimento de 50,1%. No mesmo perodo, o nmero de concluintes do ensino mdio aumentou 67,8%, indo de 915 mil para 1 milho e 535 mil. Mesmo assim, o total de concluintes do ensino fundamental representa apenas 58% da populao com 14 anos de idade, ou seja, com a idade correta para a concluso da 8 srie. No ensino mdio, o total de concluintes representa apenas 38% da populao com a idade adequada para a concluso deste nvel de ensino, ou seja, 17 anos. O atraso escolar faz com que 42% dos concluintes do ensino fundamental tenham 15 anos ou mais de idade e 62% dos concluintes do ensino mdio tenham 18 anos ou mais, idade suficiente para estar cursando o nvel superior. (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, 2000).

    O contexto apresentado pelo INEP representa um desafio social para a escola, pois cabe a ela contribuir com a transformao dessa realidade educacional. Nas palavras de Santos (1992, p. 19), a educao escolar deve colaborar na superao da marginalidade a que so submetidos os grupos sociais e indivduos pobres. Na viso desse autor, o significado da escola como instituio passa necessariamente pela partilha do saber que foi construdo e

    acumulado socialmente ao longo da histria da humanidade. Assim, educao e transformao social se relacionam, pois essa pode abrir um caminho para que homens e mulheres participem de forma ativa da realidade em que vivem. Uma educao integral, que

    propicie aos indivduos autonomia e capacidade de sair da condio de explorado e dominado. O relatrio de Pochmann (2007), contendo um balano da situao do jovem no

    mercado de trabalho e na escola, inicialmente aponta, a partir dos dados do IBGE, um acrscimo da populao jovem, tomando como evoluo temporal 10 anos (1995 a 2005).

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    Do acrscimo de 32 milhes de pessoas no total da populao verificado no mesmo perodo de tempo, verifica-se que 6,3 milhes estavam situados na faixa etria de 15 a 24 anos de idade, o que representou 19,7% do adicional total da populao nos ltimos 10 anos (POCHMANN, 2007, p. 3).

    A questo do desemprego, dado revelado pelo relatrio, apontou crescimento da juventude sem trabalho, sobretudo as mulheres, conforme assevera Pochmann (2007)

    observa-se que a cada 100 jovens que ingressam no mercado de trabalho no perodo de tempo em referncia [1995 a 2005], somente 45 encontraram algum tipo de ocupao, enquanto 55 ficaram desempregados. Quando se trata da situao por gnero, observa-se que cada 100 jovens do sexo feminino que entram no mercado de trabalho, somente 40 conseguiram uma ocupao e 60 ficaram desempregadas, enquanto a cada 100 jovens do sexo masculino que tambm ingressam no mercado de trabalho, 50 tornaram-se desempregados e 50 arrumaram algum tipo de ocupao (POCHMANN, 2007, p. 4).

    Sobre a questo do estudo, nesses 10 anos o relatrio indica que houve um aumento do nmero de jovens na escola, mas, ainda assim, a maior parcela no se encontra no espao escolar, (53,2%) da faixa etria de 15 a 24 anos no estuda, sendo menor entre as mulheres (52,4%) do que em relao aos homens (53,6%). O autor constata ainda que 39,4% dos jovens no pararam de trabalhar entre 1995 e 2005, ou seja, viveram a dualidade estudo e trabalho.

    Os indicadores apresentados sobre a realidade de vida dos jovens no Brasil reafirmam a entrada precoce e precria no mercado de trabalho, sem as condies desejveis para a sua integrao social. O que se constata o agravamento da condio juvenil [que] aparece como inexorvel, reproduzido pela decadncia educacional e pela degradao social (POCHMANN, 2007, p. 2).

    Esta realidade gera desesperana quando se constata que, em sociedades complexas como a brasileira, os indivduos no s tm de ser preparados para vida social e poltica, mas tambm para o trabalho, para o desenvolvimento de suas habilidades e, ainda, para a sistematizao e organizao do conhecimento universal, a produo cientfica, as conquistas

    da tecnologia e da cultura mundial. (SANTOS, 1992, p. 18). esta situao complexa que vem exigindo, como patamar de empregabilidade o

    ensino mdio, quando no at mesmo o superior. Neste sentido, os trabalhadores-alunos da EJA voltam escola no s em busca do saber para continuar trabalhando, como tambm para construir novas possibilidades de trabalho.

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    Por outro lado, a formao humana coloca o trabalho como um elemento indispensvel educao. No trabalho, a educao parte integrante, intrnseca, articulando teoria e prtica, conforme ser abordado a seguir.

    1.2 O Trabalho como Princpio Educativo

    Na viso marxista, o trabalho o centro do processo educativo, pois ele que distingue o homem como gnero humano. A forma como o homem se relaciona com a natureza , ao mesmo tempo, um fazer e se educar, um elaborar e aprender e, dessa forma,

    constituir-se enquanto ser humano, diferenciando-se das outras espcies. Enguita (1993) enfatiza:

    Neste ponto, a diferena colocada por Marx entre o animal que se reproduz a si mesmo e o homem que reproduz a natureza inteira s pode ser compreendida atentando-se para o aspecto consciente que distingue a produo humana do animal; efetivamente, o homem, no seu trabalho produtivo, prope-se a conservar ou modificar a natureza, coisa que no se pode dizer do animal (ENGUITA, 1993, p. 104).

    Embora Marx tenha concentrado seus estudos cientficos na crtica da economia poltica e no tenha se preocupado com as especificidades da educao escolar, importante

    salientar que o trabalho constitui-se em um princpio educativo por excelncia. Enguita (1993, p. 85), compartilha da concepo de que a educao inicia-se e se desenvolve na prtica social e afirma:

    se fugimos da identificao estreita da educao com a escolarizao e tratarmos de compreender aquela como o processo geral e mais amplo de formao do homem -, e com ou sem Marx, existem razes suficientes para faz-lo -, ento no h dvida de que a obra de Marx, uma vez restaurada em toda sua complexidade e livre de simplificao, tem muito que dizer a respeito.

    Esta concepo indica que as relaes sociais so estabelecidas na produo da vida material. Os homens desenvolvem foras produtivas, que mudam no decorrer do processo

    histrico, assim como mudam o modo de produo e as relaes sociais. Estas so, portanto, estabelecidas a partir da produo material da vida, que tambm desenvolve princpios, idias, categorias, enfim, o conjunto dessas relaes de produo forma a estrutura econmica da sociedade e essa realidade que determina a conscincia do homem.

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    Nas palavras de Enguita (1993, p. 85), retomando Marx, o modo de produo da vida material condiciona o processo de vida social, poltica e intelectual em geral. No a conscincia dos homens o que determina a realidade; pelo contrrio, a realidade social que determina sua conscincia.

    Na viso de Marx, os homens fazem, eles mesmos, sua histria, embora nem sempre demonstrem ter conscincia do significado histrico de suas aes. Os homens fazem histria

    a partir da vida concreta no tempo de cada sociedade em que esto inseridos. Isso significa dizer que o homem no pode ser compreendido como uma realidade isolada: ele , no seu tempo, o conjunto das relaes sociais. Enguita (1993, p. 91) argumenta sobre a idia de Marx que no nega a existncia do indivduo; o que nega sua existncia abstrata, fora das

    relaes sociais.

    De acordo com Bruno (1996), a atuao de construo e reconstruo humana sobre a natureza e a sociedade no significa uma ao isolada e estanque, mas uma manifestao que se faz a partir das estruturas institucionais e das relaes sociais. Essas relaes vo compondo um contexto histrico e delineando o perfil da sociedade em cada tempo.

    Na atualidade, as relaes sociais estabelecidas seguem o caminho da fragmentao, da heterogeneidade e da complexidade do trabalho. Desde a Terceira Revoluo Industrial, o mundo globalizado, com as novas tecnologias da informao, a micro eletrnica, a informtica e tcnicas afins, tem a caracterstica de empregar novas formas de organizao do trabalho. Essa revoluo vem fixando marcas da excluso; a fora de trabalho dividida em trabalhadores do centro e da periferia, dicotomizando o grupo que possui conhecimento,

    sobretudo tecnolgico, produzindo relaes desiguais de poder pelo saber e pelo controle econmico. Neste sentido, a formao das novas geraes de trabalhadores no atual contexto

    impe exigncias amplas e complexas, desde o deslocamento do foco da explorao, do componente muscular para o componente intelectual (BRUNO, 1996, p. 96).

    Na viso da autora Lcia Bruno (1996), a qualificao7 e as novas formas de trabalho a partir do capitalismo vm demonstrando historicamente que as habilidades de trabalho do

    proletariado tm assumido caractersticas determinadas em cada etapa. Numa primeira etapa, a Primeira Revoluo Industrial, de 1750, a qualificao dos trabalhadores voltava-se para a realizao de operaes que exigiam grande esforo fsico e habilidades manuais mais aprimoradas. A segunda etapa, a Segunda Revoluo Industrial, ocorrida nos sculos XIX e

    7 Bruno (1996, p. 92), prope trabalhar com uma definio de qualificao bastante ampla, mas clara. Em suas palavras a qualificao um conjunto estruturado de elementos distintos, hierarquizados e reciprocamente relacionados. Esta hierarquizao decorre de contextos histricos e situaes de trabalho bem definidas. Isto , decorre imediatamente das relaes sociais estabelecidas em contextos dados.

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    XX, reforou o adestramento muscular e manual e, concomitantemente a essa formao inicia-se uma preocupao com os componentes intelectuais. Na terceira e atual etapa, a

    Terceira Revoluo Industrial, iniciada em 1970, a autora aponta como caracterstica predominante a qualificao dos componentes intelectuais da fora de trabalho.

    Trata-se hoje, pelo menos nos setores mais dinmicos da economia mundial, de explorar no mais as mos do trabalhador, mas seu crebro. Este deslocamento do foco da explorao, do componente muscular para o componente intelectual do trabalho, constitui o elemento fundamental do processo de reestruturao do trabalho, encontrando viabilidade tcnico-operacional na chamada Tecnologia de Informao (microeletrnica, informtica e outras teorias afins, que tem a virtude de possibilitar processos de trabalho mais integrados e flexveis e nas formas sistmicas de organizao do trabalho) (...) (BRUNO, 1996, p. 92).

    A autora argumenta que a formao das novas geraes um processo complexo que envolve vrios campos sociais e inmeras instituies, sobretudo a escola. Em sua opinio,

    embora a esfera do trabalho tenha implementado maior qualificao e, conseqentemente, de forma seletiva, esta qualificao s acontece para aqueles que j apresentam conhecimentos bsicos; neste sentido, a esfera trabalho apenas consolida aptides j adquiridas.

    Foi s com a complexificao crescente dos processos de trabalho e o aprofundamento da diviso social do trabalho que a educao escolar passou a desempenhar papel importante na formao das novas geraes, assumindo inclusive carter obrigatrio. (BRUNO, 1996, p. 100).

    Numa perspectiva histrica, Bruno (1996) lembra que, no incio do capitalismo, o papel da escola era ideolgico, inculcando a submisso da classe trabalhadora aos ditames do

    capital; durante muito tempo a educao tem-se revelado como formadora da moral e da obedincia do operariado ao sistema vigente. No perodo atual, a educao ganha espao preponderante como suporte bsico de qualificao das foras de trabalho. A competncia e a educabilidade so bsicas para a aquisio de conhecimentos necessrios produo da fora

    de trabalho; nesse sentido, a escolaridade deve ser progressiva. o trabalho produtivo que se faz presente na proposta de educao de Marx. Enguita

    (1993) esclarece que Marx crtica a escola, pois ela seria um reflexo ideolgico burgus que separa teoria e prtica. Gramsci tambm visualiza uma escola diferente em sua concepo: uma escola capaz de construir novas maneiras de pensar aquela que se liga vida, vida

    coletiva, ao universo do trabalho, buscando a realidade para uma reflexo crtica e histrica. Na viso de Gramsci, a formao da cultura geral no pode estar distante da formao especfica e profissional. Conforme Rodrigues (2005, p. 15):

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    a escola, cuja atuao trabalho, que tem por funo preparar as novas geraes para o trabalho. Preparar para o trabalho em Gramsci, no significa preparar para o mercado de trabalho, mas preparar o homem omnilateral, na sua totalidade , na sua capacidade transformadora, o que no significa se submeter ao mundo da produo.

    Por meio do trabalho, o ser humano constri sua prpria histria, reunindo conhecimentos cientficos e transformando concretamente o meio ambiente e a sociedade. De

    acordo com Enguita (1993, p. 106),

    o trabalho, como a sociedade, deve ser transformado, e no processo dessa transformao onde o indivduo atual alcanar sua verdadeira dimenso humana. A funo pedaggica do trabalho material, como a da sociedade em geral, no depende apenas das condies em que dado ao homem, mas tambm e sobretudo da luta dos homens contra essas condies. Uma vez mais, a relao pedaggica homem-ambiente no unidirecional, mas dialtica.

    Paulo Freire (1979, p. 66), no incio do processo de democratizao no Brasil, final dos anos 1970, fala de uma educao diferenciada, conscientizadora, de uma educao que rompesse com os setores privilegiados da sociedade. Em sua opinio, seria necessria uma

    educao que no perdesse de vista a vocao ontolgica do homem, a de ser sujeito, mas que tambm estivesse atenta realidade do perodo, que apresentava sua especificidade de transio. Freire aspirava, ainda, a uma educao que inserisse o homem de forma crtica em seu processo histrico e o libertasse, a partir de uma prtica conscientizadora, enfim, que

    possibilitasse ao ser humano a busca de sua capacidade crtica de opinar e decidir como ser humano e coletivo.

    A educao baseada na tica marxista prope uma crtica constante realidade social em que os homens esto inseridos. Prope tambm que os educandos/as envolvidos no processo de aprendizagem o faam na medida tambm em que se sintam conscientes de seu papel como educandos/as e sujeitos histricos de uma sociedade. Em consonncia com Marx, Freire (1979) enfatiza a importncia do sujeito e seu compromisso com a realidade.

    Nenhuma ao educativa pode prescindir de uma reflexo sobre o homem e de uma anlise sobre suas condies culturais. No h educao fora das sociedades humanas e no h homens isolados (...). Se a vocao ontolgica do homem a de ser sujeito e no objeto, s poder desenvolv-la na medida em que, refletindo sobre suas condies espao-temporais, introduz-se nelas, de maneira crtica. Quanto mais for levado a refletir sobre situacionalidade, sobre seu enraizamento espao-temporal, mais emerger dela conscientemente carregado de compromisso com sua realidade, da qual, porque sujeito, no deve ser simples espectador, mas deve intervir cada vez mais (FREIRE, 1979, p. 61).

    No pensamento de Freire, necessrio que o homem no somente esteja na realidade, mas esteja com ela, pois assim poder desenvolver relaes contnuas que

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    possibilitem criar novos conhecimentos e obter o domnio da cultura. Para Gramsci (2004b, p. 53), no possvel separar a atividade intelectual da ao que os homens realizam e, desta forma, vislumbra o homem como agente de uma concepo de mundo.

    No h atividade humana da qual se possa excluir toda interveno intelectual, no se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profisso, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, um filsofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepo do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui, assim, para manter ou para modificar uma concepo do mundo, isto , para suscitar novas maneiras de pensar.

    Os sujeitos dessa pesquisa, na sua maioria trabalhadores-alunos, carregam marcas de uma profunda desigualdade social. So jovens e adultos que fazem parte do contingente de subempregados e desempregados8 do pas. So mulheres e homens que, com sua experincia histrica, poltica, cultural e social, retornam s escolas para dar continuidade a seus estudos, sobretudo por exigncia do mercado de trabalho. Enfim, so sujeitos que retomam o que lhes foi negado pela necessidade de sobrevivncia, cujas contradies, ao longo da histria, apontam a educao formal como direito de todos e, ao mesmo tempo, as condies reais

    muito cedo so para eles obrigao de prover a sua subsistncia. Na argumentao de Saviani (1983), a educao, por ser prpria dos seres humanos,

    tal qual o trabalho, um processo de transformao e criao do mundo da cultura. Para ele, existe a exigncia da educao para o trabalho e ela tambm trabalho. Esta concepo de

    educao traz o trabalho para a posio central. Nesse sentido, analisar o processo histrico da constituio do homem significa perceber as relaes pertinentes ao trabalho e, dentre elas, a

    educao formal como uma das possibilidades de preparao para o trabalho no capitalismo.

    1.2.1 O trabalho: elemento bsico na constituio do homem

    O trabalhador-aluno da EJA, com sua formao interrompida, em geral insere-se no

    mercado de trabalho muito cedo, enfrenta situaes precrias de condies de trabalho e baixos salrios. A realidade desse trabalhador-aluno caracteriza-se, do ponto de vista laboral,

    pela submisso s determinaes unilaterais do mercado de trabalho.

    8 De acordo com o relatrio da anlise da PNAD/IBGE - 2006, o ndice de desempregados foi de 8,4% e 20,5% trabalham sem carteira assinada, e 19,5% trabalham por conta-prpria. Conforme o referido relatrio, considera-se na informalidade: trabalhadores sem carteira assinada e por conta-prpria.

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    A discusso a seguir aponta o percurso histrico do trabalho, inicialmente na sua formao humana, enquanto constituio do ser humano e, posteriormente, do trabalho desfigurado, que marca a existncia atual dos educandos da EJA.

    No processo de construo histrica, o ser humano se humaniza a partir das relaes

    desenvolvidas com a natureza, com os outros homens e com a produo dos bens materiais para sua sobrevivncia, realizada pelo trabalho.

    O trabalho, ento, o que diferencia o homem como espcie e gnero dos outros animais. O processo-trabalho engendra uma relao dialtica entre o homem e a natureza, pois ele a transforma, a humaniza e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo.

    o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificaes somente por sua presena; o homem a submete, pondo-a a servio de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificaes que julga necessrias, isto , domina a Natureza. Essa a diferena essencial entre o homem e os (...) animais; e, por ltimo, o trabalho que determina essa diferena (ENGELS, 1991, p. 223).

    A ao-trabalho decisiva na forma humana de ser, modo de vida, organizao social, maneira como o homem produz seu pensamento, suas idias e representaes, enfim, sua conscincia.

    O trabalho exclusivamente humano; para execut-lo, o homem idealiza, projeta e depois materializa, estabelecendo relaes concretas de produo. Os animais s produzem a si mesmos; o homem reproduz a natureza e a si mesmo. Na viso de Paulo Freire (1979), o homem um ser em construo; um ser inconcluso, incompleto. Para Gramsci (2004a, p. 45), o homem um devir histrico.

    As pesquisas mostram que o homem nasce com apenas 30% de suas conexes

    cerebrais. Os processos de educao e aprendizagem, que ao longo de sua histria foi se construindo, possibilitaram o desenvolvimento do restante do crebro.

    Nesse processo, as modificaes anatmicas, as mos livres, a bipedestao, o volume do crebro, integrado a um sistema nervoso complexo, associado a uma organizao

    coletiva, so elementos que favoreceram um maior desenvolvimento das habilidades humanas.

    Na relao com a natureza, primeiramente o homem, na sua caracterstica nmade, deslocava-se constantemente e usufrua da coleta, da caa e de tudo que a natureza lhe propiciasse. importante lembrar que, nesse perodo, denominado de paleoltico, o homem foi capaz de produzir o fogo, domin-lo e aprendeu a utiliz-lo, o que assinalou um grande avano tcnico nessa fase.

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    Na medida em que a ao predominantemente predatria aos poucos se transforma em atividades de cultivo e plantio, com a domesticao de animais e a diviso do trabalho por sexo e idade, houve o desenvolvimento das foras produtivas. Esse avano ocasionou uma maior diversificao de alimentos e a combinao dos vegetais com a carne, possibilitando

    grande fortalecimento fsico e, principalmente, o desenvolvimento do crebro. Essa realidade demarca a passagem do nomadismo para o sedentarismo. O homem sedentrio descobriu a

    escrita e desenvolveu formas complexas de sociedade, organizando-se coletivamente no mbito do trabalho. O trabalho, desde a sedentarizao do homem e da criao da propriedade, vai se distanciando da perspectiva de humanizao, embora, na viso de Manfredi (2003), os trabalhadores ainda controlavam seu processo de produo.

    A sociedade passa a se constituir de homens trabalhadores e de homens que se apossam do trabalho dos outros. Assim, entende-se esse perodo como o momento no qual as

    relaes entre os homens se alteram consideravelmente, o que ir dar origem ao que foi denominado de civilizao, marcada pela produo de excedentes econmicos, pelo surgimento de grupos fortes que se apropriam desses excedentes e pelo nascimento da propriedade privada, das classes sociais e do Estado.

    No perodo moderno, sculo XVI, as relaes vo se tornando cada vez mais evidentes no processo do trabalho desfigurado, na linguagem de Costa (1996, p. 6). Surgem as corporaes de ofcio9 e a separao entre o trabalho manual e o intelectual, o que ser ampliado com a progresso da manufatura e, posteriormente, com a intensificao da indstria. Para Marx, compreender a lgica da sociedade capitalista e seus efeitos negativos

    sobre o homem perceber a alienao do homem como ser genrico e, conseqentemente, o distanciamento do homem do prprio homem. Nas palavras de Marx (2001, p. 113), quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador, quanto mais poderoso o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligncia e se torna escravo da natureza.

    O trabalho no aparece mais como elemento de humanizao, mas de deteriorao do homem, que comea perder sua condio de sujeito. Nas palavras de Marx (2001, p. 112), o trabalhador pe sua vida no objeto; porm agora ele no lhe pertence, mas sim ao objeto. Essa , na viso de Marx, a forma do trabalho alienado ou exterior ao trabalhador.

    A alienao do trabalhador no seu produto significa no s que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existncia externa, mas que existe

    9 As corporaes de ofcio representam a base das futuras categorias scio-profissionais, na viso de Manfredi (2003, p. 39) A diviso social do trabalho est na origem da formao de grupos homogneos de pessoas e instituies que constituram as corporaes de ofcio, posteriormente substitudas pelos grupos ocupacionais ou profissionais.

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    independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autnomo em oposio a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma fora hostil e antagnica. (MARX, 2001, p. 112).

    O capitalismo, representado pelas grandes potncias, impe ao contexto mundial, alm da velha forma de dominao da minoria sobre a maioria, novas condies de

    continuar acumulando riquezas nas mos da classe dominante. Estima-se que hoje existam aproximadamente 6 bilhes de seres humanos que habitam o planeta Terra. Esses seres humanos continuam idealizando, projetando e materializando, por meio do trabalho, suas idias.

    A concentrao dos monoplios da cincia e da tecnologia e de grandes redes de informao, sempre com o objetivo de mximos lucros, sobretudo nas ltimas dcadas, til para continuar o processo de explorao do homem pelo homem e cultuar o carter individualista, promulgado pela ideologia da classe dominante, a burguesia.

    Esse carter individualista o que melhor define o homem atual, que perdeu sua especificidade de sujeito, pois a ele designada a ao contnua de produzir sem medidas. O homem cria, produz, no entanto, para atender demanda de um grande mercado e para servir a uma ordem dinmica, a sociabilizao do capital. O que Marx afirmou na primeira metade do sculo XIX parece atual nesse incio de sculo:

    o trabalho, atividade vital, a vida produtiva, aparece agora para o homem como o nico meio que satisfaz uma necessidade, a de manter a existncia fsica. A vida produtiva, entretanto, a vida genrica. vida criando vida. No tipo de atividade livre, consciente, constitui o carter genrico do homem. A vida revela-se simplesmente como meio de vida (MARX, 2001, p. 116).

    Neste incio de sculo, a velha ordem mundial, com novas roupagens, merece anlise e reflexo acerca da complexidade do mundo do trabalho. Em tempo de globalizao, possvel perceber as mudanas nas caractersticas da classe trabalhadora, que se apresenta fracionada e vivenciando o poder destrutivo do sistema capitalista. Alm da lgica perversa

    de intensificao da explorao dos trabalhadores, impe-se a essa classe uma situao de subemprego e desemprego de grande parte da populao dos pases subordinados

    economicamente.

    O sujeito da EJA no se configura em exceo ao mencionado contexto histrico. So pessoas que trabalham cerca de 8 a 10 horas por dia, com salrios iguais ou pouco maiores que o mnimo, quando possuem registro na carteira de trabalho. Quando trabalham na informalidade, no raro percebem menos que o salrio mnimo. Os dados da PNAD/IBGE

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    2006 confirmam essa situao: a populao trabalhadora representa um ndice de 57% da populao brasileira. Desses, 30,5% possuem rendimentos de at um salrio mnimo10.

    As mudanas no mundo do trabalho carregam as caractersticas da heterogeneidade, da fragmentao e da complexificao. Neste sentido, a classe trabalhadora no mundo atual

    no pode ser analisada a partir de uma tica de identidade com aquela que existiu na metade do sculo XX. Assim, a tese que comumente tem sido defendida por alguns, o fim da classe

    trabalhadora, merece um olhar diferenciado, que mostra uma outra lgica ordenada e um processo pautado na dinmica de desenvolvimento do capitalismo. Nas palavras de autores Ricardo Antunes e Giovanni Alves (2004), a classe trabalhadora nesse incio de sculo no est em vias de desapario, nem ontologicamente perdeu seu sentido estruturante.

    A professora Lcia Bruno (1996, p. 95), em suas reflexes sobre educao, qualificao e desenvolvimento econmico, comunga da mesma viso desses autores, quando

    analisa a conjuntura econmica e o mundo do trabalho no sculo XXI:

    no acredito que a retrao da indstria relativamente ao crescimento do setor de servios, indique o desaparecimento da classe trabalhadora. Ao contrrio, penso que este processo a expresso de seu crescimento absoluto. Do mesmo modo, a expanso do trabalho indireto na indstria, em detrimento do trabalho direto, no implica a eliminao do trabalho vivo, mas sim o deslocamento do foco da explorao do componente manual para o componente intelectual do trabalho.

    Na opinio de Ricardo Antunes e Giovanni Alves (2004), a classe trabalhadora vem vivenciando um processo multiforme, como a desregulamentao do trabalho e a ampliao da reduo do grupo de trabalhadores estveis. Hoje, o espao fsico de produo tambm sofre mudanas, flexibiliza-se e desconcentra-se; perceptvel o aumento da mquina informatizada. O surgimento dos trabalhadores terceirizados, sob a gide de subcontratos e contratos temporrios, tm-se alastrado em grande escala. Outro elemento presente nesse atual contexto a expanso do setor de servios que, a princpio, tem incorporado os trabalhadores

    excludos da produo fabril. Por ltimo, cabe analisar outra tendncia importante no atual mundo do trabalho, conforme expressam Antunes e Giovanni (2004):

    trata-se do aumento significativo do trabalho feminino, que atinge mais de 40% da fora de trabalho em diversos pases avanados, e que tem sido absorvido pelo capital, preferencialmente no universo do trabalho part-time, precarizado e desregulamentado. No Reino Unido, por exemplo, desde 1998 o contingente feminino tornou-se superior ao masculino, na composio da fora de trabalho britnica. (ANTUNES; GIOVANNI, 2004, p. 338).

    10 Em relao a uma populao de 187.228.000, dados da PNAD/IBGE 2006, 57% de trabalhadores brasileiros somam um total de 106.719.960. Desses, 30,5% somam um total de 32.549.587 trabalhadores que percebem at um salrio mnimo (clculo realizado pela pesquisadora).

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    Com relao aos salrios e aos direitos inerentes ao trabalho, a configurao inversamente proporcional ao aumento do trabalho feminino, pois as trabalhadoras percebem salrios relativamente menores e, ainda, convivem com condies sociais de trabalho desiguais.

    Apesar da complexidade do mundo do trabalho na sociedade contempornea, a classe trabalhadora pode ser compreendida, como afirmam Antunes e Giovanni (2004, p. 336), a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua fora de trabalho a classe-que-vive-do-trabalho, conforme nossa denominao (ANTUNES, 1995 e 1999) e que so despossudos dos meios de produo.

    So esses os homens e mulheres trabalhadores(as) desse sculo XXI que, na sua maioria, compem o grupo de estudantes da Educao de Jovens e Adultos (EJA) nas esferas municipal e estadual. Dessa forma, para analisar a histria da EJA, tem-se que entrela-la ao

    mundo do trabalho e histria da educao, na medida em que prope tambm a qualificao da classe trabalhadora, tambm diretamente ligada funo da escola como instituio formadora nos vrios contextos histricos das relaes sociais capitalistas.

    1.3 A Histria da EJA no Contexto da Educao Brasileira

    Refletir sobre o contexto da educao no Brasil significa descortinar a composio poltica em que a sociedade se organiza. Significa enfoc-la numa dimenso terica e

    analtica, na qual o Estado apresenta-se materialmente atuando como gestor. Neste sentido, pensar as polticas educacionais visualizar a educao de forma ampliada. perceber uma concepo de Estado que traduz uma estrutura de poder e dominao e, ao mesmo tempo, desenvolve-se como expresso das foras contraditrias das relaes de produo das classes sociais. Nas palavras de Shiroma et al (2004).

    impossibilitado de superar contradies que so constitutivas da sociedade e dele prprio (...) administra-as, suprimindo-as no plano formal, mantendo-as sob controle no plano real, como um poder que, procedendo da sociedade, coloca-se acima dela (...). As polticas pblicas emanadas do Estado anunciam-se nessa correlao de foras (...) so mediatizadas pelas lutas, presses e conflitos entre elas. (SHIROMA et al, 2004, p. 8-9).

    Ao longo da histria, as polticas educacionais vm expressando essas contradies e delineando sua caracterstica reprodutora do poder hegemnico do capital. As polticas

    educacionais adotadas nos vrios pases da Amrica Latina, sobretudo a partir dos anos 1990,

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    apresentam os mesmos objetivos e princpios refletidos, a partir de um pensamento nico, ditado por diversos organismos internacionais11. Esse pensamento denominado de neoliberal12, vem imprimindo suas marcas nos mais diversos setores da sociedade. O Brasil procurou se ajustar s premissas do modelo neoliberal, defendendo, no bojo de suas reformas estruturais, a reforma educacional.

    Nesse contexto, os discursos oficiais expressos nas propostas apresentadas pelo

    Estado tm atribudo educao escolar um papel central no processo de modernizao econmica. Diante disso, verifica-se uma preocupao com a elevao do nvel de escolarizao das camadas populares. A educao passa a ser pensada como uma possibilidade mgica, um instrumento de finalizao das discrepncias sociais, bem como a

    melhoria dos ndices da empregabilidade. Por outro lado, sabe-se que essa uma forma pela qual a responsabilidade das condies sociais recai sobre o prprio indivduo, desobrigando o

    governo. Neste contexto, o Estado apresenta-se como mero regulador, no gestor ou financiador das polticas pblicas, inclusive as voltadas para a educao.

    Torna-se importante analisar que diversas agncias internacionais e rgos multilaterais vm se constituindo enquanto foras que desenvolvem aes importantes, como, por exemplo, a publicao de diretrizes que lentamente esto sendo trilhadas nos pases considerados em desenvolvimento.

    Reafirmando essa atuao, em abril de 2000, o Frum Mundial de Educao, realizado em Dakar, representou um marco preponderante no processo de universalizao da educao bsica. Assim expressa o documento final do frum:

    As concluses da Conferncia Regional de Santo Domingo (Conferncia Regional de Educao para Todos nas Amricas, Repblica Dominicana, fevereiro de 2000) e as do Frum Mundial de Dakar representam marcos importantes na luta pela universalizao da educao bsica, compreendida como elemento central na conquista da cidadania. Por sua relevncia social e pblica estabeleceu-se a parceria entre a UNESCO Brasil, o CONSED e a Ao Educativa para edio em lngua portuguesa de ambos os documentos/compromissos, com objetivo de torn-los acessveis a um nmero maior de pessoas e instituies pblicas e privadas que nas diferentes instncias da federao brasileira possuem responsabilidades no campo da educao bsica. (2000, p. 05).

    11 Organizao das Naes Unidas para Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), Fundo das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF), Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID), Banco Mundial, entre outros.

    12 Conforme Gentili (1994, p. 13), o neoliberalismo ... um processo amplo de redefinio global das esferas social, poltica e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de significao e representao so utilizados para criar e recriar um clima favorvel viso social e poltica liberal. O que est em jogo no apenas uma reestruturao neoliberal das esferas econmica, social e poltica, mas uma reelaborao e uma redefinio das prprias formas de representao e significao social.

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    O documento apresenta uma preocupao com a universalizao da educao bsica que tem muito ainda a fazer para sair do campo das intenes. No que tange Educao de Jovens e Adultos (EJA), objeto deste estudo, paradoxalmente, observa-se que essa modalidade de ensino tem sido excluda do processo de educao bsica no decorrer da

    histria da educao brasileira. Neste sentido, torna-se importante delinear um breve histrico da Educao de

    Jovens e Adultos, considerando a difcil trajetria no seu reconhecimento como modalidade de ensino e insero na educao bsica. A EJA tem suas razes no perodo colonial. Neste perodo inicial, os religiosos propiciavam uma educao missionria, numa perspectiva de evangelizao, conduta comportamental e os ensinamentos necessrios para a sustentao da

    economia colonial. No que diz respeito formao profissional, conforme Manfredi (2003), os jesutas tambm se encarregaram de organizar os primeiros grupos de educao profissional, formando artesos e outros ofcios desempenhados no Brasil colnia.

    No perodo imperial, a primeira Constituio, de 1824, assegurou, no campo da lei, a formao denominada primria e gratuita para todos os cidados13. Sob influncia europia, tornou-se uma constante nas constituies brasileiras, mesmo que somente no campo da lei. A formao do trabalhador neste perodo contou com as academias militares, entidades filantrpicas e liceus de artes e ofcios. De acordo com Manfredi (2003, p. 75), as iniciativas de educao profissional, durante o imprio, ora partiam de associaes civis (religiosas e/ou filantrpicas), ora das esferas estatais das provncias. Para esta autora, as iniciativas educativas, tanto do Estado como da propriedade privada, exerciam a funo poltico-

    ideolgica de disciplinamento das camadas pobres, no sentido de legitimar a ordem desigual advinda do perodo colonial e sustentada no imprio.

    Na Primeira Repblica, a Constituio de 1891 consagrou a idia de responsabilizar as Provncias e os Municpios pelo ensino bsico14. Unio caberia a assumncia maior, do ensino secundrio e superior. Dessa forma, continuava consolidando a formao para um grupo minoritrio, as elites, impedindo uma educao mais ampla, j que as Provncias apresentavam fragilidade econmica, alm de ficarem merc da poltica das oligarquias

    13 De acordo com Haddad; Pierro (2000) a preocupao com a Educao de Jovens e Adultos no aparecia de modo claro nesta constituio, entretanto, o princpio voltado para seguridade de um ensino que formasse todos os cidados subentende, para esses autores, que essa modalidade de ensino estava implcita nesta legislao.

    14 O Ato Adicional Constituio de 1834, conforme Ribeiro (1981), apresenta uma orientao descentralizadora (maior autonomia s provncias), e que diz em seu artigo 10: Compete s mesmas Assemblias (Legislativas Provinciais) legislar: (...) Sobre instruo pblica e estabelecimentos prprios a promov-la, no compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurdicos academias atualmente existentes, e outros quaisquer estabelecimentos de instruo que para o futuro forem criados por lei geral.

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    regionais. importante salientar que essa Constituio marcou tambm a excluso de adultos analfabetos nas eleies e que, nesse perodo, a grande maioria da populao adulta no sabia ler e escrever.

    O perodo chamado de Primeira Repblica marcou tambm inmeras reformas

    educacionais que demonstravam preocupao de forma bastante descompromissada com as condies mnimas para o ensino bsico. Concretamente, nada ocorreu para mudar a situao

    de precariedade, pois no existia uma poltica de financiamento que pudesse estabelecer outra realidade. Durante este perodo, a formao profissional foi mantida a partir dos liceus, com ampliao para outros estados e terminou constituindo iniciativa para construo de escolas profissionalizantes no mbito nacional.15

    Conforme Hadad e Pierro (2000), em 1920, o censo apontou um ndice de 72% da populao com mais de cinco anos de idade que continuava analfabeta. A educao de jovens e adultos no era concebida como uma modalidade de ensino; portanto no apresentava uma concepo epistemolgica prpria. Ainda nesta dcada, as mobilizaes de educadores e populares apontam para a necessidade de mais escolas e tambm para uma maior qualidade no ensino. Esse perodo terminou marcando possibilidades para um outro momento de polticas pblicas para educao de jovens e adultos.

    Na dcada de 1930, a Educao de Jovens e Adultos aparece, de modo explcito, na primeira Constituio do Governo de Vargas. Conforme Haddad e Pierro (2000), ao determinar que o ensino primrio fosse integral, gratuito e de freqncia obrigatria, a Constituio estendia essa prerrogativa tambm ao ensino de adultos. Estas condies contriburam para que essa modalidade de educao se consolidasse como poltica nacional no final de 1940. Em 1930, a formao profissional organizada a partir de projetos estatais e privados, no Estado de So Paulo, relacionados ferrovia. Conforme Manfredi (2003, p. 88), a primeira escola profissional foi a mecnica, que funcionava no Liceu de Artes e Ofcios e era mantida por companhias ferrovirias paulistas, com recursos do Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio. No ano de 1934, foi organizado o Centro Ferrovirio de Ensino e Seleo Profissional-CEFESP16 a partir da experincia da Estrada de Ferro Sorocabana.

    15 No Estado do Rio de Janeiro no ano de 1906, Nilo Peanha (governador naquele perodo) criou trs escolas de

    ofcio, orientadas para a formao profissional. As escolas contavam com um aparato tcnico e ideolgico para o trabalho industrial e manufatureiro. Manfredi (2003, p. 85) argumenta embora as escolas no tivessem sucesso, por causa da vitria de seus opositores [de Nilo Peanha] nas eleies seguintes, Nilo Peanha, j como Presidente da Repblica [1909 a 1910], instaurou, [por meio do Decreto 7.566 de 23/09/1909], uma rede de 19 escolas de aprendizes e artfices, dando incio rede federal, que culminou nas escolas tcnicas e, posteriormente, nos Cefets.

    16 De acordo com Manfredi (2003), esse centro de ensino tinha uma estrutura complexa, com parceria do

    governo estadual viabilizando por meio de equipamento especializado e professores de educao geral. As empresas ferrovirias paulistas davam uma contribuio financeira, conforme o nmero de empregados, e participavam no conselho diretor do CEFESP.

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    Conforme Carneiro (1998), nos anos de 1942 e 1943, o Senai e o Senac, respectivamente, foram constitudos essencialmente pela organizao patronal e incorporaram a estrutura de financiamento e de gerncia da formao profissional do CEFESP. Este processo de formao afirmava-se praticamente nas demandas produtivas da indstria e no

    exclusivo aperfeioamento para o trabalho. Com esta perspectiva econmica, a formao para o trabalho teria de atender ao projeto desenvolvimentista incorporado pelo Estado Novo, alm da preocupao ideolgica em organizar um quadro em que o ensino17 confirmasse a ordem vigente.

    No campo da educao profissional, a poltica difundida no Estado Novo legitimou a dicotomia entre trabalho manual e intelectual. Para Carneiro (1998, p. 30), o Senai, como instituio privada e unida aos interesses patronais, tinha o objetivo de preparar o trabalhador para o mercado, por meio da pedagogia do capital. No argumento de Carneiro (1998, p. 31), esse tipo de treinamento da fora de trabalho, em que o saber fazer torna-se prioridade e o saber pensar relegado s calendas, foi estruturado a partir do sistema dos S, ou seja, Senai, Senac, Sesc, que vai se especializar no treinamento da fora de trabalho.

    Vale salientar que o sistema S e as escolas tcnicas federais, instituies formadoras da fora de trabalho, apresentavam concepes diferentes quanto formao profissional. Enquanto o sistema privado de formao, o sistema S apontava para uma viso tcnica especfica e as escolas tcnicas federais se organizavam com a preocupao em romper com a viso da dualidade entre teoria e prtica.

    Em 1942, o Fundo Nacional do Ensino Primrio, criado a partir dos resultados apresentados pelas pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos (INEP), tinha como proposta executar um programa progressivo de ampliao da educao primria que pudesse inserir o Ensino Supletivo, destinado a adolescentes e adultos18. A regulamentao desse fundo veio a ocorrer em 1945, com o estabelecimento de um percentual de 25% dos recursos de cada auxlio, que deveriam ser aplicados num plano geral de Ensino Supletivo destinado a adolescentes e adultos analfabetos. (HADDAD, 2000, p. 111).

    17 De acordo com Manfredi (2003) os ramos profissionais do ensino mdio foram institudos pelos seguintes

    atos: o ensino industrial pelo Decreto-Lei 4.073, de 30/01/1942; o ensino comercial pelo Decreto-Lei 6.141, de 28/12/1943; o ensino normal pelo Decreto-Lei 8.530, de 2/01/1946 e o ensino agrcola pelo Decreto-Lei 9.613 de 20/08/1946.

    18 Para Fvero (2004, p. 14) os dados relativos aos anos de 1940 e 1950 revelam que o movimento de redemocratizao contribuiu para o lanamento, em 1947, da primeira Campanha de Educao de Adolescentes e Adultos (CEAA). Pelo censo de 1940, foram mostrados os altos ndices do analfabetismo: cerca de 55% para todo o pas, considerando a populao de 18 anos e mais; nos estados do Sul e Sudeste, em torno de 40%; no Norte e no Nordeste, 72%; no Leste e no Norte, os mesmos 55% nacionais. O que provoca uma tomada de posio do Estado o movimento de redemocratizao do pas, aps a ditadura de 1937-1945, aliado s iniciativas mundiais da recm-criada Unesco, ao final da Segunda Guerra Mundial.

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    Desde ento, foram desenvolvidas inmeras iniciativas19, que levaram reduo do nmero de analfabetos, registrando o ndice de 46,7%, no ano 1960. Esse ndice, se comparado, poca, com a mdia dos pases do primeiro mundo, e at mesmo de pases latino-americanos, revela que o nvel de escolarizao da populao brasileira continuou

    demonstrando pouco avano. Pode-se afirmar que um dos marcos na histria da EJA no Brasil ocorreu no ano

    1958, com o Seminrio Regional de Recife, evento preparatrio para o II Congresso Nacional da Educao de Adultos. Nele, o educador Paulo Freire chamou a ateno para a necessidade de reviso dos mtodos e processos educativos at ento adotados, na perspectiva de assegurar uma maior participao dos educandos no seu processo de aprendizagem. Nesse

    sentido, propunham-se discusses, trabalhos em grupos e a utilizao de recursos audiovisuais, a fim de que fossem suscitadas, reflexes sobre sua importncia para a

    construo de seu prprio conhecimento. Isso contribuiu para que os educadores refletissem sobre suas concepes e preconceitos acerca dessa modalidade de ensino.

    Considera-se tambm a dcada de 1960 como marco histrico para essa modalidade de ensino, devido ampla participao dos movimentos sociais no mbito da alfabetizao de adultos. Nesse contexto, alguns movimentos de educao e cultura popular surgem com o objetivo de realizar aes educativas, nas quais o homem colocado como centro do processo. A educao de adultos, alm de assegurar a escolarizao bsica, exigindo uma proposta especfica no campo pedaggico e didtico, passou tambm a representar um instrumento de ao poltica, reconhecendo o saber popular, atribuindo mais esse objetivo educao de adultos: um instrumento amplo de valorizao da cultura popular.

    Os Centros Populares de Cultura (CPC) da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) levavam o teatro ao povo como forma de discutir criticamente os problemas sociais. Os Movimentos de Cultura Popular (MCP) promoveram programas de alfabetizao de cunho poltico, como a proposta de Paulo Freire e o projeto De p no cho tambm se aprende a ler, desenvolvido por Moacyr de Ges. O Movimento de Educao de Base (MEB), apoiado pela Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela ala progressista da Igreja Catlica, desenvolveu um projeto educativo, utilizando um sistema de radiodifuso, por meio do qual se procurava a valorizao da cultura local e universal, permitindo, assim, uma nova conscincia social. Importante enfatizar que esse perodo marca o comeo dos movimentos de

    19 Dentre estas destacam-se a criao do Servio de Educao de Adultos em 1947, junto ao Departamento Nacional de Educao do Ministrio da Educao e Sade; a Campanha Nacional de Educao Rural, em 1952; a Campanha Nacional de Erradicao do Analfabetismo, em 1958, e o II Congresso Nacional de Educao de Adultos no Rio de Janeiro, em 1958.

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    cultura popular no Brasil luz de Paulo Freire; as primeiras experincias de uma educao libertadora.

    No obstante, nessa mesma dcada que ocorre a desmobilizao dos movimentos de educao e cultura popular, devido represso imposta pelo Estado autoritrio, aps a

    instaurao do regime militar, mediante o Golpe de maro de 1964. O Movimento de Educao de Base ( MEB) tentou resistir at 1966, mas as dificuldades para conseguir verbas, a censura do governo e da ala conservadora da Igreja Catlica levaram perseguio e priso de monitores e animadores e ao encerramento de suas atividades.

    Importa por um destaque, no perodo ureo do Regime, o Estado, numa manobra pelo alto, concebeu e comeou a empreender uma reforma do Ensino Superior (1968) e, pouco depois, a reforma do Ensino Primrio e Mdio (1971). Entendemos tais reformas como fragmentos de uma revoluo passiva, pois, alm de no contar com a participao da sociedade civil, visavam ainda, como salienta Evaldo Vieira (1984:47), desmobilizar eventuais movimentos neste campo. (GERMANO, 2005, p. 104).

    Em contrapartida, o Estado autoritrio no poderia deixar margem a escolarizao bsica de jovens e adultos, j que os ndices de analfabetismo dessa parcela da sociedade apresentavam percentuais elevados. Alm disso, era necessrio investir na qualificao da populao, a fim de que o projeto desenvolvimentista assentado na teoria do capital humano, proposto pelos militares - fosse efetivado. Desse modo, a alternativa encontrada para oferecer respostas sociedade foi a fundao do Movimento Brasileiro de Alfabetizao, o

    MOBRAL, em 1967. Pode-se afirmar, ainda, que, por meio dessa ao, o Estado autoritrio assegurava o controle poltico e ideolgico desse segmento.

    Conforme argumenta Manfredi (2003), os governos militares escolheram o caminho desenvolvimentista por meio das construes de plos petroqumicos, hidroeltricas, plos pecurios e agrominerais, impulsionando a necessidade de desenvolver projetos de formao de mo-de-obra. Portanto, neste perodo a formao profissional contou com a revitalizao

    do Programa Intensivo de Formao de Mo-de-Obra PIPMO. O treinamento dispensado aos trabalhadores, por meio do convnio com o PIPMO, de acordo com Manfredi (2003, p. 104), foi executado pelas instituies existentes de formao profissional, Senai e escolas tcnicas da rede federal, para uma capacitao rpida e imediata dos trabalhadores.

    Tentou-se, ainda, o desenvolvimento de polticas de escolarizao para os jovens e adultos que se encontravam atrasados ou que no tiveram assegurados seus direitos escola. Diante disso, em 1971, organizou-se o Ensino Supletivo, quando foi promulgada a Lei 5.692, Lei de Diretrizes e Base do Ensino do l e 2 graus. No que diz respeito formao

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    profissional, esta lei, argumenta Kuenzer (2001, p. 29), pretendeu substituir a dualidade pelo estabelecimento da profissionalizao compulsria [equiparao, formal, entre o curso secundrio e os cursos tcnicos] no ensino mdio; dessa forma, todos ter