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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS,
LITERRIOS E TRADUTOLGICOS EM FRANCS
ANDREIA MARIA DE SOUZA
As personagens femininas em Le pre Goriot, de Honor de Balzac
Verso corrigida
So Paulo 2012
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS,
LITERRIOS E TRADUTOLGICOS EM FRANCS
As personagens femininas em Le pre Goriot, de Honor de Balzac
Andreia Maria de Souza
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos, Literrios e Tradutolgicos em Francs do Departamento de Letras Modernas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Letras rea de Concentrao: Estudos Lingusticos, Literrios e Tradutolgicos em Francs
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos
Verso corrigida
De acordo
So Paulo
2012
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Nome: SOUZA, Andreia Maria de
Ttulo: As personagens femininas em Le pre Goriot, de Honor de Balzac
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos, Literrios e Tradutolgicos em Francs do Departamento de Letras Modernas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Letras
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________ Instituio: _______________
Julgamento: _________________________ Assinatura: _______________
Prof. Dr. ____________________________ Instituio: _______________
Julgamento: _________________________ Assinatura: _______________
Prof. Dr. ____________________________ Instituio: _______________
Julgamento: _________________________ Assinatura: _______________
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos, meu orientador, pela confiana, apoio,
contribuio para meu crescimento cientfico e intelectual, auxlio durante o
processo de definio e por sua orientao responsvel, atenciosa e
extremamente competente.
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas pela oportunidade de
realizao do curso de Mestrado.
s professoras doutoras Vernica Galndez-Jorge e Helosa Brito de Albuquerque
Costa, membros da Banca de Qualificao de Mestrado, pelas valiosas sugestes
e orientaes.
Edite dos Santos Nascimento Mendez Pi, do Departamento de Letras Modernas
da Universidade de So Paulo, por sua competncia e simpatia.
minha famlia, pelo apoio e generosidade.
Aos professores da rea de Estudos Lingusticos, Literrios e Tradutolgicos em
Francs, por sua solidariedade e interesse.
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RESUMO
SOUZA, A. M. As personagens femininas em Le pre Goriot, de Honor de Balzac. 2012. 135 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012. So poucos os estudos sobre as personagens femininas dentro de La Comdie Humaine, e estes se tornam ainda mais restritos quando tratam daquelas que aparecem no romance Le pre Goriot. Nesse sentido, este trabalho pretende analisar como so construdas e organizadas dentro da narrativa, tendo em vista que sua composio realizada de acordo com uma estratgia, bem como sua organizao no texto. Outrossim, as personagens femininas so de grande importncia na narrativa balzaquiana, apesar de aparentemente ocuparem apenas o segundo plano, pois so elas que, na maioria das vezes, vo auxiliar as personagens masculinas em seus projetos de ascenso social, a ponto de Rastignac, por exemplo, s ter conseguido sucesso por intermdio de sua tia, Mme de Beausant. Isso sem contar a dona da penso, Mme Vauquer, que a primeira a ser descrita durante a narrativa e tem importncia capital no destino de outras figuras hospedadas em seu estabelecimento. Por outro lado, a tcnica mais conhecida utilizada por Balzac e que foi por ele desenvolvida o retorno de personagens. No entanto, h outras de grande importncia, e uma delas o fato de que, para conseguir criar a quantidade de personagens existente dentro de La Comdie Humaine, foi necessrio recorrer a um recurso de economia, ou seja, apresentar vrias delas com caractersticas semelhantes, podendo ser ligadas duas a duas. Procuramos desenvolver esse aspecto ao longo deste trabalho, juntamente com as questes que permeiam o papel das figuras femininas, assim como o arrivismo e a sua importncia para as masculinas. Palavras-chave: Literatura francesa do sculo XIX. Realismo francs. Personagens femininas.
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ABSTRACT
SOUZA, A. M. The female characters in Le Pere Goriot, of Honor de Balzac. 2012. 135 f. Masters Degree Monograph - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012. There are few studies about the female characters in La Comedie Humaine, and these are even more restricted when they treat about those which appear in the novel Le Pere Goriot. Thus, this paper intends to examine how they are constructed and arranged within the narrative, considering that their composition is performed according a kind of strategy, as well as your organization in the text. Furthermore, the female characters are very important in Balzac's narrative, although apparently only occupying the background, because they are who, in most of the cases, will help the male characters in their projects of social mobility, until the point of Rastignac, for example, has only achieved success with the help of his aunt, Mme de Beauseant. This without counting the owner, Mme Vauquer, who is the first character to be described in the narrative and who has a capital importance in the destiny of other figures that are hosted on her property. Moreover, the technique most known and used by Balzac and which was developed for him is the return of characters. However, there are other techniques also very important, and one of them is the fact that, to achieve to create the amount of characters existing in La Comedie Humaine, it was necessary to apply a resource of economy, or, in other words, to present lots of characters showing similar characteristics and connected two by two. We were seeking to develop this aspect throughout this work, together with the questions that underlie the role of the female characters, as well as the arrivisme, and this importance for the male.
Keywords: French literature of the nineteenth century. French Realism. Female characters.
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RSUM
SOUZA, A. M. Les personnages fminins dans Le Pre Goriot, de Honor de Balzac. 2012. 135 f. Dissertation (Master II) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012. Ces sont trs peu d'tudes propos des personnages fminins dans La Comdie humaine, et ceux-ci sont encore plus restreints quand ils traitent de celles qui apparassent dans le roman Le Pre Goriot. Ainsi, ce travail a pour objectif de examiner comment elles sont construites et organises dans le rcit, tant donn que sa composition est ralise selon une stratgie, de la mme faon que son organisation dans le texte. De plus, les personnages fminins sont d'une grande importance dans le rcit balzacien, malgr le fait de apparemment occuper le fond, parce que ce sont elles qui, dans la plupart des cas, aideront les personnages masculins dans leurs projets de mobilit sociale, jusqu'au point de Rastignac, par exemple, seulement obtenir le succs grce sa tante, Mme de Beausant. Tout cela sans oublier la propritaire de la pension, Mme Vauquer, qui est la premire tre dcrite dans le rcit et qui est d'une importance capitale dans la destine des autres figures hberges dans la pension. Par ailleurs, la technique plus connue et utilise par Balzac et qui a t dveloppe par lui c'est le retour de personnages. Cependant, il existe d'autres techniques trs importantes, et une d'elles c'est le fait que, afin de crer le nombre de personnages qui existent dans La Comdie Humaine, il tait ncessaire d'utiliser un moyen d'conomie, c'est--dire, de prsenter beaucoup de personnages avec des caractristiques similaires et qui peuvent tre lies deux deux. Nous avons essay de dvelopper cet aspect pendant ce travail, avec les questions propos du rle des figures fminines, bien comme l'arrivisme, et son importance pour les masculins.
Mots-cls: Littrature franaise du XIXe sicle. Ralisme franais. Personnages fminins.
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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................... 09
1 LA FILLE AUX YEUX DOR E LE PRE GORIOT DO MACROCOSMO
PARIS AO MICROCOSMO PENSO VAUQUER................................................ 19
2 RELAES ESPECIAIS LIGADAS AO FEMININO: O DINHEIRO,
O CASAMENTO E O ADULTRIO....................................................................... 28
2.1 Mme Vauquer................................................................................................... 31
2.2 Mlle Michonneau.............................................................................................. 40
2.3 Mlle Taillefer..................................................................................................... 45
2.4 As filhas Goriot................................................................................................. 51
2.5 Mme de Beausant.......................................................................................... 58
3 REPETIES E CONTRASTES NAS RELAES FAMILIARES................. 61
4 MATERNIDADE REAL, MATERNIDADE FICTA E PERSONAGENS
MASCULINAS QUE DESEMPENHAM O PAPEL DE ME.............................. 83
5 ASPECTOS DA FILIAO: DELPHINE, ANASTASIE E VICTORINE .......... 100
6 A ESCROQUERIA FAMILIAR E O FEMININO: RASTIGNAC, SUA ME
E SUAS IRMS .................................................................................................. 111
CONCLUSES.................................................................................................... 119
REFERNCIAS................................................................................................... 125
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INTRODUO
A finalidade de nosso estudo fazer a anlise das personagens femininas
que aparecem em Le pre Goriot, devido sua enorme importncia para o
desenvolvimento da ao romanesca, apesar de as masculinas aparentemente
dominarem o primeiro plano narrativo. No entanto, quem no se lembra da famosa
cena da descrio da penso e de Mme Vauquer, em que se confundem o
ambiente e a personagem, a tal ponto de um se tornar parte do outro? Desse
modo, por que Balzac daria tanta importncia descrio de uma figura feminina
antes mesmo de iniciar a ao narrativa? Essas indagaes nos levaram a buscar
compreender melhor sua funo no romance. Como o prprio autor deixou claro
no Avant-Propos da Comdie Humaine (1976, t. I, p. 09):
Ainsi luvre faire devait avoir une triple forme : les hommes, les
femmes et les choses, cest--dire les personnes et la reprsentation
matrielle quils donnent de leur pense ; enfin lhomme et la vie.
Alm disso, essa importncia se torna evidente, quando observamos que
essas personagens so protagonistas de alguns de seus romances, como La
duchesse de Langeais, que reaparece em Le pre Goriot, o mesmo ocorrendo
com Mme de Beausant, em La femme abandone. H, por outro lado, muitas
outras narrativas sobre a condio da mulher, como La femme de trente ans,
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Physiologie du mariage, Mmories de deux jeunes maries, tude de femme e
Une autre tude de femme.
Le pre Goriot surge na Comdie Humaine dentro de tudes de
Moeurs , na parte Scnes de la vie prive . Desse modo, as personagens
retratadas participam da vida urbana, tanto no submundo, como Mlle Michonneau,
por exemplo, quanto na nobreza, como Mme de Beausant, ou ainda como figuras
que ascenderam socialmente, como as filhas de M. Goriot.
A histria delas no repleta de emoes como a das figuras masculinas,
com projetos de ascenso, a exemplo de Rastignac, ou planos para cometer
grandes crimes com o objetivo de um rpido enriquecimento, que o caso de
Vautrin. Esses fatos se tornam extremamente interessantes para o leitor e
aumentam o suspense da narrativa. No entanto, a denncia de que Trompe-la-
Mort era um criminoso foi feita por uma mulher, Mlle Michonneau. Alm disso,
apesar de Rastignac lutar por sua insero no Faubourg Saint-Germain e ganhar o
plano principal da narrativa, quando investe em suas roupas ou nos contatos
estabelecidos em Paris, fatos que prendem sobremaneira nossa ateno, pelo
apoio de mulheres (Mme de Beausant o ajuda a escolher os melhores
relacionamentos com a nobreza, sua me e suas irms enviam dinheiro de suas
parcas economias para que ele possa estudar e comprar tudo aquilo que
necessita) que toda essa cena principal pode ser desenvolvida, e sem elas esse
quadro no seria possvel.
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Assim, apesar de ficar num segundo plano, e de no serem as
protagonistas, essas personagens so de extrema importncia para o
desenvolvimento da narrativa. No caso do romance que estamos analisando,
como dissemos, so elas que fornecem toda a estrutura para que a trama possa
se desenvolver.
Em suas consideraes sobre a sociedade e a mulher, no Avant-
Propos de La Comdie Humaine (1976, t. I, p. 08-09), Balzac afirma que:
Quand Buffon peignait le lion, il achevait la lionne en quelques phrases ;
tandis que dans la Socit la femme ne se trouve pas toujours tre la
femelle du mle. Il peut y avoir deux tres parfaitement dissemblables
dans un mnage. La femme dun marchand est quelquefois digne dtre
celle dun prince, et souvent celle dun prince ne vaut pas celle dun
artiste. LEtat Social a des hasards que ne se permet pas la Nature, car il
est la Nature plus la Socit. La description des Espces Sociales tait
donc au moins double de celle des Espces Animales, ne considrer
que les deux sexes. Enfin, entre les animaux, il y a peu de drames, la
confusion ne sy met gure ; ils courent sur les uns aux autres, voil tout.
Les hommes courent bien aussi les uns sur les autres ; mais leur plus ou
moins dintelligence rend le combat autrement compliqu. Si quelques
savants nadmettent pas encore que lAnimalit se transborde dans
lHumanit par un immense courant de vie, lpicier devient certainement
pair de France, et le noble descend parfois au dernier rang social. Puis,
Buffon a trouv la vie excessivement simple chez les animaux. Lanimal a
peu de mobilier, il na ni arts ni sciences ; tandis que lhomme, par une loi
qui est rechercher, tend reprsenter ses murs, sa pense et sa vie
dans tout ce quil approprie ses besoins.
Assim, no Avant-Propos , que tambm pode ser considerado ficcional,
Balzac deixa bem claro para o leitor a importncia que a mulher desempenha em
sua obra. Como ele prprio mencionou, ela no pode ser analisada em sua
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narrativa simplesmente como a fmea do macho, mas individualmente, com suas
caractersticas que a diferem substancialmente dos homens. No entanto, as
personagens femininas esto sempre ligadas s masculinas, ajudando-as ou se
opondo a elas.
Ainda no Avant-Propos (1976, t. I, p. 08), Balzac afirma que existem
espcies animais e sociais, e segundo o escritor, La Socit ressemblait la
Nature . Desse modo, nasceu em sua mente a ideia de que existe um sistema da
sociedade, anlogo ao da natureza. Assim, para tornar factvel sua construo, um
conjunto ordenado de estruturas recorrentes fundamental, j que este o
princpio norteador sob o qual a natureza tambm se constitui, ou seja, sob
repeties e contrastes, em que no a quantidade de elementos que relevante,
mas so as combinaes entre eles que produzem grande diversidade.
Continuando em sua exposio, Balzac afirma sua filiao a Walter Scott,
afirmando que este no teria criado uma histria de costumes, pois para tanto
seria necessrio que seus romances estivessem atrelados uns aos outros como
num sistema. Desse modo, ele aplica em sua obra o que diz faltar no escritor,
constituindo-se basicamente na criao de uma combinao de estruturas.
Como dissemos, Le pre Goriot est inserido em tudes de Moeurs ,
em Scnes de la vie prive dentro de La Comdie Humaine. Nessa subdiviso,
a descrio de costumes pautada pela procura sistemtica do detalhe, fato que
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torna a narrativa pitoresca, se assim podemos classific-la. Assim, em Lettres
Mme Hanska, que tambm podem ser tomadas como ficco, ele afirma que
Les moeurs sont le spectacle, les causes sont les coulisses et les machines. Les
principes, cest lauteur. ( 1967, p. 270).
Desse modo, os elementos da narrativa inerentes a essa parte da obra
esto organizados, e essa concepo de sistema definida tambm em outra
carta a Mme Hanska (1967, p. 269), em que o escritor parece estabelecer todo o
princpio norteador de sua obra:
Les tudes de Moeurs reprsenteront tous les effets sociaux sans que ni
une situation de la vie, ni une physionomie, ni un caractre dhomme ou
de femme, ni une manire de vivre, ni une profession, ni une zone sociale,
ni un pays franais, ni quoi que se soit de lenfance, de la vieillesse, de
lge mr, de la politique, de la justice, de la guerre, ait t oubli.
Cela pos, lhistoire du coeur humain, trace fil fil, lhistoire sociale faite
dans toutes ses parties, voil la base. Ce ne seront pas des faits
imaginaires ; ce sera ce qui se passe partout.
Assim, percebemos a nsia do prprio escritor em sistematizar, e tal fato
se desdobra em sua prpria obra, que vai se subdividindo at chegarmos s
pequenas estruturas narrativas que esto colocadas de maneira ordenada, no
obstante ser composta por uma grande quantidade de romances e aparentemente
no revelar esta organizao da qual est imbuda.
Apesar da infinidade de estudos sobre Balzac, os que tratam das
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personagens femininas so minoria, conforme afirmamos, e so ainda mais
restritos quando tratamos do romance Le pre Goriot. Tal fato contrasta
violentamente com a quantidade de figuras femininas na Comdie Humaine e de
muitas delas serem at mesmo protagonistas.
Boa parte dos estudos sobre o autor so crticas de cunho sociolgico e
marxista, inspiradas nas afirmaes de Engels (1979, p. 20) transcritas a seguir:
Balzac (...) nos proporciona na sua Comdia Humana, uma histria
maravilhosamente realista da sociedade francesa, descrevendo no estilo
de crnica, quase ano por ano, de 1816 a 1848, a presso crescente da
burguesia sobre a sociedade de nobres que se estabeleceu a partir de
1815 e que voltou a instalar, na medida do possvel, o padro da vieille
politesse franaise. Descreve como os derradeiros resduos daquela, para
ele sociedade modelo, sucumbiram ante a explosiva intruso dos vulgares
endinheirados ou foi corrompida por eles. Como a grande dame, cujas
infidelidades conjugais no passavam de uma maneira de firmar a sua
posio, em perfeito acordo com a forma como lhe tinham destinado o
casamento, cedeu lugar burguesa, que adquiriu o marido em troca de
dinheiro. E em torno dessa imagem central, o autor tece uma histria
completa da sociedade francesa, com a qual, mesmo em pormenores
econmicos (...) aprendi mais do que com todos os historiadores,
economistas e estatsticos do perodo.
Essas declaraes deram incio a uma gama de estudos que analisaram
Balzac sob o ponto de vista de uma crtica literria de cunho sociolgico e
marxista, como dissemos, principalmente Georg Lukcs, em seu conhecido Balzac
et le ralisme franais, entre outros, que investigaram a obra como um retrato da
sociedade francesa do sculo XIX. No entanto, apesar da importncia dessa
crtica para os demais estudiosos que se seguiram, no a tomaremos como ponto
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de partida para elaborao deste trabalho, e procuraremos analisar os
procedimentos para a construo da obra, e no caso em que estamos analisando,
o modo como criou as personagens femininas.
Apesar de muitos autores pretenderem ler a obra balzaquiana como um
retrato fiel da sociedade francesa do sculo XIX, essa afirmao deve ser
nuanada, na medida em que se trata de uma obra de fico, que recorre ao
recurso da imaginao para transpor determinadas situaes para o campo
literrio. Alm disso, como afirmou Pierre-Georges Castex em seu texto
LUnivers de La Comdie Humaine , que se tornou introdutrio edio de
referncia da Bibliothque de la Pliade (1976, t. I, p. XXI):
Pour parvenir recrer ainsi toute une poque, le recours limagination
lui tait dailleurs indispensable, comme lhistorien qui, non content de
runir des documents en nombre ncessairement limit, se donne pour
suprme fin, selon la clbre formule de Michelet, une rssurrection
intgrale du pass.
Assim sendo, no devemos tomar ao p da letra as declaraes segundo
as quais Balzac se apresenta como um secretrio da sociedade, tendo em vista
que sua narrativa est pautada num trabalho de criao que mais ou menos
sistemtico e consegue criar o efeito de real pretendido pelo escritor, embora
saibamos que nenhum texto consegue ser absolutamente fiel realidade, mas
apenas uma leitura, um modo de interpretao, e no caso do escritor, a
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representao por uma obra de fico. Devido grande quantidade de tipos
sociais elaborados e das vrias esferas que o romancista pretende representar,
sabemos que um trabalho exaustivo apenas de reproduo no tornaria factvel o
trabalho de criao.
Tomando os estudos crticos sobre Le pre Goriot concentrados em uma
anlise sobre os procedimentos de criao, inicialmente temos o de Barbris
(1972), que procura fazer uma anlise abrangente do romance analisando os
principais aspectos, como as questes de espao, tempo, personagens e tambm
as que envolvem a comparao do romance com outras obras, como o intertexto
entre Le pre Goriot e The king Lear. No entanto, por tratar de tantos temas ao
mesmo tempo, o texto de Barbris acaba se tornando muito abrangente, sem
abordar de nenhuma questo de forma especfica.
Guichardet (1993) tambm tentou estudar o romance de forma mais
detalhada, mas sem a pretenso de esgotar seus temas, e o trabalho tambm
reuniu alguns elementos de documentao. Alm disso, ela foi capaz de explorar
com mais detalhes a questo das personagens, mas sua anlise ficou restrita a
Vautrin, Rastignac e Goriot, e no abordou de maneira especfica a questo das
personagens femininas. Desse modo, seu estudo se concentra no espao
parisiense e nas trs figuras centrais do romance.
Marceau (2008) faz um vasto estudo sobre vrios temas abordados na
obra do escritor, tomando a Comdie Humaine em sua totalidade, e dividindo seu
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livro em duas grandes subdivises: personagens e temas. Essa primeira
grande parte contempla aspetos como as mulheres, as jovens e as velhas. No
entanto, apesar de este livro conter j uma seo especfica que trata das
personagens femininas, podemos dizer que muito pequena quando
consideramos a totalidade de figuras existentes na obra balzaquiana, e por esse
motivo seu estudo, apesar de abrangente e com a possiblidade de comparar
vrias personagens entre si, acabou por no estudar cada uma delas de maneira
detalhada.
Auerbach (2004) fez a anlise da descrio de Mme Vauquer e da penso,
demonstrando a identidade de uma em relao outra. Suas observaes sobre o
romance realista levam em considerao o fato de o meio exercer influncia sobre
as personagens, determinando o seu modo de existncia, tendo em vista a
aplicao, por parte de Balzac, de conceitos da Biologia para o campo literrio.
Assim, esses estudiosos de Balzac e aqueles que se concentram
especificamente no romance objeto de nossa anlise no fizeram nenhum estudo
exclusivamente sobre o tema desenvolvido neste trabalho. Desse modo,
procuraremos estudar as personagens femininas do romance organizando-as em
dois grandes ncleos: as que giram em torno de Mme Vauquer na penso, como
Mme Couture, Mlle Taillefer e Mlle Michonneau, e as que esto em torno de Mme
de Beausant, como as filhas de M. Goriot. A partir do aprofundamento das
conexes dessas personagens entre si e tambm com as masculinas,
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procuraremos interpretar qual a sua funo em relao aos outros elementos da
narrativa.
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1 LA FILLE AUX YEUX DOR E LE PRE GORIOT DO MACROCOSMO
PARIS AO MICROCOSMO PENSO VAUQUER
Este captulo inicial prope uma anlise comparativa da primeira parte de
La fille aux yeux dor com a descrio metafrica de Paris em Le pre Goriot,
tendo em vista que a crtica j apontou o fato de que o incio do primeiro romance
parece uma introduo ao segundo. Segundo Guichardet (1993, p. 30):
Pour tre compris, lespace parisien du Pre Goriot doit tre peru dans
son ensemble et non fragmentairement. Il relve davantage de la sipirale
infernale de La fille aux yeux dor aspirant invinciblement les tres vers
lor et le plaisir que de larchologie loeuvre, par exemple, dans La
maison du chat-qui-pelote ou de la physiologie des rues de Paris qui
prlude lhistoire de Ferragus. Maurice Bardche remarque juste titre
que tout le dbut de La fille aux yeux dor pourrait servir de prface au
Pre Goriot. Goriot meurt en effet de ce rythme effrayant de la machine
sociale , de Paris et de ses ravages dans tous les cercles de lenfer. Car
Paris est un enfer, tenez ce mot pour vrai All is true, reprend en cho
notre texte. Tout est vrai Paris, mme linconcevable, et quand on est en
enfer, il faut y rester comme le dira douloureusement Rastignac
Bianchon.
Analisaremos como Paris aparece em Le pre Goriot antes de abordarmos
especificamente as figuras femininas, uma vez que, conforme demonstraremos
adiante, as mulheres esto fortemente ligadas aos espaos nos quais esto
inseridas e, desse modo, a caracterizao dos ambientes em que vivem se torna
imprescindvel para a compreenso dessas personagens. Alm disso,
impossvel falar em Le pre Goriot sem mencionar Paris.
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A tragdia de Le pre Goriot, ainda segundo Guichardet (1993), aborda
uma situao terrvel e monstruosa, mas que tipicamente parisiense. Trata-se de
uma cidade em que os provincianos, vidos por uma melhor posio social, esto
dispostos a viver, apesar de todos os seus problemas. No entanto, marcada
pelos contrastes, retratada como inferno, mas ao mesmo tempo como uma
maravilha, em que todas as cores, todas as mulheres e tudo o que nela existem
so cobertos por uma beleza superior quela vista na provncia. No entanto, o que
Le pre Goriot oferece ao leitor sua corrupo moral. H dois perfis da capital
traados no romance: o primeiro a sombria Rue Neuve-Sainte-Genevive com
seus bairros escuros, silenciosos e miserveis; e o segundo de luz, e trata dos
lugares abastados onde brilha a alta sociedade nos belos quartiers. Assim, toda a
trama desenvolvida entre esses dois espaos, que so opostos e ao mesmo
tempo complementares e se explicam mutuamente.
Alm disso, a cidade construda como um labirinto, assim como a
penso. Esta ltima, no entanto, o lugar onde o rapaz viver seu processo
inicitico. o primeiro ambiente, onde o jovem comea a lidar com a sociedade,
para em seguida lanar-se nela, frequentando os sales de Mme de Beausant.
Desse modo, esse microcosmo funciona como o primeiro local onde o rapaz
comea a ganhar experincia. Ao aprender a lidar com todas as situaes que
vivencia nessa habitao suja e ftida, e ao mesmo tempo absorvendo as lies
aprendidas por Vautrin, ter todos os elementos de que necessita para lanar-se
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no inferno parisiense, j que at mesmo os ensinamentos do criminoso so os
mesmos da grande dame. O labirinto da penso que Rastignac ter que
atravessar mais tarde ser substitudo pelo da metrpole, muito maior e com muito
mais lugares e dificuldades a serem superadas.
A construo de Paris pautada pela dualidade entre a riqueza dos belos
quarteires contrastada com a pobreza da penso e dos outros bairros a ela
circunvizinhos. O fato de esses espaos aparecerem juntos faz com que a
oposio entre eles se acentue, sendo Rastignac o elo, pois a nica
personagem que consegue fazer o trnsito de um para o outro de maneira
tranquila, j que Goriot aos poucos teve fechadas para si as portas desse universo
rico e abastado. Esses ambientes, por outro lado, tambm vo organizar toda a
narrativa e a maneira como as personagens esto dispostas, de maneira que
existem dois grandes ncleos principais, conforme afirmamos: as figuras femininas
que giram em torno de Mme Vauquer e as que giram em torno de Mme de
Beausant.
Em La fille aux yeux dor, Paris descrita metaforicamente como o inferno.
Assim, como sabemos, o incio desse romance poderia perfeitamente servir de
prefcio a Le pre Goriot, tendo em vista que h a descrio do lado sombrio da
cidade. Portanto, antes de comear a intriga de La fille aux yeux dor, que
consiste basicamente no relacionamento do comte Henri de Marsay com Paquita
Valdes, h uma completa enumerao de todas as esferas da sociedade
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parisiense, nos seguintes termos:
Quelques observations sur l'me de Paris peuvent expliquer les causes de
sa physionomie cadavreuse qui n'a que deux ges, ou la jeunesse ou la
caducit: jeunesse blafarde et sans couleur, caducit farde qui veut
paratre jeune. En voyant ce peuple exhum, les trangers qui ne sont pas
tenus de rflchir, prouvent tout d'abord un mouvement de dgot pour
cette capitale, vaste atelier de jouissances, d'o bientt eux-mmes ils ne
peuvent sortir, et restent s'y dformer volontiers. Peu de mots suffiront
pour justifier physiologiquement la teinte presque infernale des figures
parisiennes, car ce n'est pas seulement par plaisanterie que Paris a t
nomm un enfer. Tenez ce mot pour vrai. L, tout fume, tout brle, tout
brille, tout bouillonne, tout flambe, s'vapore, s'teint, se rallume, tincelle,
ptille et se consume. Jamais vie en aucun pays ne fut plus ardente, ni
plus cuisante. Cette nature sociale toujours en fusion semble se dire aprs
chaque oeuvre finie : - A une autre ! comme se le dit la nature elle-mme.
Comme la nature, cette nature sociale s'occupe d'insectes, de fleurs d'un
jour, de bagatelles, d'phmres, et jette aussi feu et flamme par son
ternel cratre. Peut-tre avant d'analyser les causes qui font une
physionomie spciale chaque tribu de cette nation intelligente et
mouvante, doit-on signaler la cause gnrale qui en dcolore, blmit,
bleuit et brunit plus ou moins les individus. 1
Na descrio, o que nos chama a ateno a fisionomia de Paris
mostrada pelo escritor: cadavreuse , com une teinte presque infernale .
Desse modo, apesar de mostrar um movimento frentico da cidade, denotando
vida, paradoxalmente, esses indivduos esto como mortos e reagem
mecanicamente, da mesma forma que engrenagens da grande mquina que a
capital, com todas as suas estruturas. O autor, no decorrer de sua exposio, vai
enumerar as causas dessa fisionomia cadavrica e quase infernal.
Quando observamos a descrio dessa fisionomia parisiense, no
1 BALZAC, H. La fille aux yeux dor, ditions Mille et une nuits, 1998, p. 8. Todas as citaes deste
romance so retiradas desta edio.
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podemos deixar de nos reportar descrio de Mme Vauquer, com seu aspecto
repugnante. Mesmo que haja beleza nos bairros abastados, essa a face que se
constitui como a verdadeira, representada por uma mulher. A morte, desse modo,
o elemento organizador de La fille aux yeux dor, e ela que permanece,
trazendo para a narrativa o tom sombrio que a atravessa do incio ao fim.
Em todas as esferas, h a busca incessante pelo ouro e pelo prazer. Esse
interesse existe tanto no trabalhador braal, que ultrapassa as suas foras para
ganhar o dinheiro que lhe causa fascinao, quanto no comerciante que tenta uma
melhor colocao na vida, na pequena burguesia, nos profissionais como os
banqueiros, advogados, magistrados e mdicos, e at mesmo entre os artistas. A
nica camada da sociedade que no precisa se submeter ao mundo do trabalho,
pois j possui a riqueza de nascimento, a aristocracia.
Apesar da descrio cadavrica da cidade, h uma ressalva quando o
autor afirma que apenas algumas mulheres so os nicos seres que no tm essa
fisionomia pavorosa:
Nanmoins, il est Paris une portion d'tres privilgis auxquels profite ce
mouvement excessif des fabrications, des intrts, des affaires, des arts
et de l'or. Ces tres sont les femmes. Quoiqu'elles aient aussi mille causes
secrtes qui l, plus qu'ailleurs, dtruisent leur physionomie, il se
rencontre, dans le monde fminin, de petites peuplades heureuses qui
vivent l'orientale, et peuvent conserver leur beaut ; mais ces femmes
se montrent rarement pied dans les rues, elles demeurent caches,
comme des plantes rares qui ne dploient leurs ptales qu' certaines
heures, et qui constituent de vritables exceptions exotiques. (BALZAC,
1998, p. 28)
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Essas mulheres so tomadas como exceo, no entanto, preciso
ressaltar que elas compem a aristocracia ou a alta burguesia, e no precisam
deformar-se no mundo do trabalho, podendo viver da riqueza e do cio e cujo
nico objetivo cuidar da prpria aparncia e viver grandes romances. Por essa
razo, so descritas como seres separados do movimento catico da cidade.
Paralelamente a La fille aux yeux dor, em Le pre Goriot tambm existe
uma descrio metafrica de Paris, a partir da penso, local onde esto reunidas
as camadas populares e que se expande a partir do momento em que Rastignac
comea a frequentar outras esferas sociais, como os sales de Mme de
Beausant e as casas de Mme de Nucingen e de Mme de Restaud.
O inferno parisiense da rue Neuve Sainte-Genevive descrito de maneira
lgubre. No por acaso que o autor escolhe esta rua, com sua localizao
prxima ao Panthon, e sua descrio, desse modo, j prenuncia o final fnebre,
com a morte de M. Goriot e o seu enterro no cemitrio Pre Lachaise. Essa
atmosfera, no entanto, no se restringe somente morte fsica, mas morte moral
de suas personagens, que so descritas em La fille aux yeux dor como mortos-
vivos.
Em Le pre Goriot, a penso Vauquer tambm composta por seus
tages representando as diversas classes sociais, pois em Paris, no sculo
XIX, quem possua mais bens morava nos andares inferiores, diferentemente
daqueles que possuam menos recursos, obrigados a se instalar nos superiores,
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25
onde havia menos espao devido disposio do telhado, fazia um frio
insuportvel no inverno e havia a necessidade de subir escadas para atingir a
residncia. Alm disso, do mesmo modo como retratada a aparncia ftida e
lgubre do inferno, a penso tambm possui essa pestilncia no ar, da qual os
pensionistas fazem parte tambm por sua expresso cadavrica:
Cette premire pice exhale une odeur sans nom dans la langue, et qu'il
faudrait appeler l' odeur de pension. Elle sent le renferm, le moisi, le
rance ; elle donne froid, elle est humide au nez, elle pntre les
vtements; elle a le got d'une salle o l'on a dn ; elle pue le service,
l'office, l'hospice. Peut-tre pourrait-elle se dcrire si l'on inventait un
procd pour valuer les quantits lmentaires et nausabondes qu'y
jettent les atmosphres catarrhales et sui generis de chaque pensionnaire,
jeune ou vieux. 2
Desse modo, como explicitou Erich Auerbach3, o ambiente possui as
mesmas caractersticas de Mme Vauquer, a tal ponto que ambos se confundem.
H um momento na descrio em que eles parecem se complementar, quase com
uma interdependncia:
Sa face vieillotte, grassouillette, du milieu de laquelle sort un nez bec de
perroquet ; ses petites mains poteles, sa personne dodue comme un rat
d'glise, son corsage trop plein et qui flotte, sont en harmonie avec cette
salle o suinte le malheur, o s'est blottie la spculation, et dont madame
Vauquer respire l'air chaudement ftide sans en tre coeure. Sa figure
frache comme une premire gele d'automne, ses yeux rids, dont
l'expression passe du sourire prescrit aux danseuses l'amer
2 BALZAC, H. Le pre Goriot. Paris : Gallimard, 1971, pp. 26-27. Todas as citaes de Le pre
Goriot sero retiradas desta edio. 3 AUERBACH, E. Na manso de La Molle . In: Mimesis: a representao da realidade na
literatura ocidental. So Paulo, Perspectiva, 2004, pp. 420-421. Nesse estudo, Auerbach faz uma
anlise de como em Le pre Goriot a descrio da Penso Vauquer, logo no incio da narrativa,
est relacionada descrio de Mme Vauquer, a tal ponto de ambas se confundirem. O prprio
estabelecimento recebe o nome de sua dona, fato que caracteriza a fuso entre os dois.
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renfrognement de l'escompteur, enfin toute sa personne explique la
pension, comme la pension implique sa personne. (BALZAC, 1971, p. 28)
Por representar um microcosmo das classes populares da sociedade
parisiense, alm da aparncia feia e ftida, h tambm a sua diviso, segundo a
condio social de seus membros. Assim, essa separao por andares mostra a
diferena financeira entre seus integrantes, apesar de todos os pensionistas
possurem pssimas condies, estando o dinheiro do lado de fora, nos bairros
abastados do Faubourg Saint-Germain e da Chausse dAntin.
Balzac, dessa maneira, se utiliza, aqui, dos mesmos procedimentos
narrativos para descrever a sociedade parisiense em La fille aux yeux dor e em Le
pre Goriot.
Saindo da penso, podemos dizer que esta faz parte do macrocosmo que
Paris. Desse modo, os sales de Mme de Beausant no Faubourg Saint-
Germain e as casas de Mme de Nucingen e Mme de Restaud na Chausse
dAntin compem outra parte do romance, que contrasta com a Penso Vauquer
em virtude de apresentar a beleza, a riqueza e o luxo. Essas duas partes
totalmente antagnicas e que tm como centros Mme de Beausant e Mme
Vauquer compem um quadro totalizante da sociedade parisiense, semelhante ao
apresentado em La fille aux yeux dor. Segundo Guichardet (1993, p. 29):
Luxueuse antithse du salon Vauquer, ce prestigieux ensemble donne
Rastignac la mesure du chemin parcourir entre les deux espaces. Nous
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nen saurons gure davantage. Ici, pas de description exhaustive. Seuls
quelques adjectifs expriment dabstraites somptuosits.
Feitas essas consideraes, agora necessrio situar as mulheres dentro
de todo esse sistema, na medida em que nos interessam neste estudo. Esto
inseridas dentro dessa selva descrita em La fille aux yeux dor e so mostradas
em Le pre Goriot quando aparecem na penso ou fora dela, no mundo abastado
que ser frequentado por Rastignac.
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2 RELAES ESPECIAIS LIGADAS AO FEMININO: O DINHEIRO, O CASAMENTO
E O ADULTRIO
Como j mostramos, em La fille aux yeux dor Balzac afirma que a
sociedade governada por lor et le plaisir . Em virtude de no ser possvel
combinar a busca do prazer com a do dinheiro por meio de uma unio com
algum que possa fornec-los de uma s vez, as mulheres casam-se por
interesse e, muitas vezes, tm amantes para atingir essa necessidade.
No inferno parisiense, desse modo, a felicidade e a plenitude no so
possveis a essas mulheres, e tal situao faz com que vivam grande sofrimento.
Apesar disso, no conseguem desvencilhar-se da vida que levam, sempre
buscando o luxo e procurando frequentar os melhores lugares da cidade, a fim de
serem notadas e conseguirem o status que tanto desejam. Essa relao , assim,
ambgua: dizem sofrer pela dominao exercida por seus maridos, no entanto
no tm coragem de se separar e tentar viver de acordo com os ideais que
almejam, pois possuem certa liberdade amorosa com seus amantes. As filhas
Goriot, por exemplo, afirmam compadecer-se do sofrimento do pai e culpam seus
cnjuges por no deix-las cuidar dele da maneira como gostariam; entretanto,
no reagem quando eles lhes impem determinadas condies. O dinheiro e o
status so, para elas, mais importantes do que a prpria figura paterna, que acaba
morrendo mngua. O discurso dessas mulheres e sua atitude so
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completamente dissonantes, pois elas no vivem de acordo com aquilo em que
acreditam.
Mme de Beausant parece ser a nica a ter uma atitude mais coerente
com a sua situao. Aps se descobrir abandonada pelo marqus dAjuda-Pinto,
decide se retirar da vida social e exilar-se na provncia. Assim, depois do enorme
sofrimento causado por esse homem, em virtude de t-la deixado e tendo em vista
que no mantinha esse relacionamento somente em razo de algum interesse,
como o fazem as filhas Goriot, todo o mundo dos sales perde o sentido e ela se
retira, pois no apegada a esse universo como o so Delphine e Anastasie.
Diametralmente oposta a Mme de Beausant est Mme Vauquer. Para
esta ltima, pensar em casamento algo praticamente inconcebvel, pois no
possui um dote, alm de no ter os mesmos atributos femininos que as mulheres
do Faubourg Saint-Germain e da Chausse dAntin. Por algum tempo, at chegou
a interessar-se por M. Goriot, mas ao perceber que este no nutria nenhum
interesse, passou a trat-lo com desprezo e indiferena. Ela faz parte da pequena
burguesia feminina que estava inserida no universo do trabalho, em virtude das
transformaes sociais que estavam acontecendo na poca. Assim, a ligao de
Mme Vauquer com o dinheiro depende dos lucros que ela conseguir extrair da
penso para sobreviver, e que no passa por nenhum relacionamento com outra
pessoa, empregando a sua energia para cuidar do estabelecimento. Hbil, julgava
os moradores da penso segundo a renda que possuam, j que leur mesurait
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avec une prcision d'astronome les soins et les gards, d'aprs le chiffre de leurs
pensions (BALZAC, 1971, p. 32) e tambm descrita como uma
entremetteuse qui va se gendarmer pour se faire payer plus cher (Idem, p. 29).
Podemos dizer o mesmo de Mlle Michonneau, que se torna uma espi da
polcia em troca de dinheiro, atitude condenada por todos os moradores da
penso, que a expulsam. Ela se relaciona com Poiret, que um homem por quem
nenhuma mulher se interessaria, mas no se trata de um casamento. Desse
modo, tambm independente financeiramente, mas necessita recorrer a esse
tipo de trabalho para garantir sua sobrevivncia.
A problemtica que envolve Mlle Taillefer tambm est relacionada a essa
questo, pois contrariamente s filhas de M. Goriot, dotadas pelo pai, no
reconhecida e desse modo no encontra pretendentes. Excluda da famlia, vive
sob os cuidados de Mme Couture, de quem recebe orientao e apoio para
convencer M. Taillefer da necessidade de deixar-lhe uma herana.
Passemos, agora, anlise mais pormenorizada de cada uma.
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2.1 Mme Vauquer
Madame Vauquer, ne de Conflans, est une vieille femme qui, depuis
quarante ans, tient Paris une pension bourgeoise tablie rue Neuve-
Sainte-Genevive, entre le quartier latin et le faubourg Saint-Marceau.
Cette pension, connue sous le nom de la Maison Vauquer, admet
galement des hommes et des femmes, des jeunes gens et des vieillards,
sans que jamais la mdisance ait attaqu les moeurs de ce respectable
tablissement. Mais aussi depuis trente ans ne s'y tait-il jamais vu de
jeune personne, et pour qu'un jeune homme y demeure, sa famille doit-
elle lui faire une bien maigre pension. (BALZAC, 1971, p. 21)
A passagem anterior d incio ao romance. Ao fazer a descrio, Balzac
vai, progressivamente, mostrando junto com a penso a personagem, fazendo
com que ambas em determinado momento quase se confundam. Desse modo, ao
mostrar o ambiente da habitao, que marcado pela avareza, pela falta de
cuidado e por uma economia que visa sobretudo o lucro, traado tambm o
retrato de Mme Vauquer como uma especuladora sem escrpulos, que deixa de
investir e garantir o conforto dos pensionistas e os explora com a cobrana de
valores exorbitantes.
No decorrer da narrativa, Balzac traa um panorama de toda a vida da
personagem: sua solido, o destino incerto que tomou seu ex-marido, o sustento
advindo somente da penso, e os malabarismos que tinha que fazer para
conseguir dinheiro para sua sobrevivncia. Por outro lado, havia a explorao dos
pensionistas, com a cobrana de valores cada vez mais elevados para manter o
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aluguel de um quarto, fato responsvel, em grande medida, pela runa de M.
Goriot.
Auerbach, conforme sabemos, (2004, pp. 420-421) faz uma anlise de
Mme Vauquer, mostrando como a descrio desta personagem est atrelada ao
espao no qual est inserida:
O retrato da dona da penso est ligado sua apario matutina na sala
de jantar; aparece neste ponto central de sua atividade, introduzida um
pouco maneira das bruxas pelo gato que pula sobre o aparador, e
imediatamente comea uma descrio pormenorizada de sua pessoa. A
descrio feita sob um motivo principal, que repetido vrias vezes: o
motivo da harmonia entre a sua pessoa, por um lado, e o espao em que
se encontra a penso que dirige, a vida que leva, pelo outro; em poucas
palavras, a harmonia entre a sua pessoa e aquilo que ns (e s vezes
tambm j Balzac) chamamos de meio. Esta harmonia sugerida da
forma mais penetrante: em primeiro lugar, o aspecto gasto, gordo,
sujamente quente e sexualmente repulsivo do seu corpo e das suas
roupas, o que concorda com o ar da habitao, que ela respira sem nojo;
pouco mais tarde, em ligao com o rosto e com os gestos faciais, o
motivo considerado de forma um pouco mais moralista, a saber,
acentuando energicamente a relao mtua entre pessoa e meio.
Aps a detalhada descrio da penso, com todos os seus ambientes
miserveis e marcados pela falta de investimento, Balzac passa a descrever Mme
Vauquer que, inserida dentro deste ambiente, completa o espetculo. Essa
observao diz muito sobre a personagem, na medida em que o prprio narrador
afirma que apesar de na superfcie ela ter esse carter srdido e mesquinho, em
contraposio mostrado o pensamento dos pensionistas a seu respeito: elle
est bonne femme au fond, se disent les pensionnaires (BALZAC, 1971, p. 29).
Balzac, desse modo, deixa em dvida o carter da proprietria.
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Trata-se, dessa maneira, de uma personagem complexa, na medida em
que, apesar de extremamente atrada pelo lucro e causadora da runa de muitos
pensionistas, com atitudes que muitas vezes aparentam uma completa indiferena
em relao aos outros, seu carter colocado em dvida, ou seja, no se pode
afirmar ao certo se ela tem uma natureza ruim ou se levada pelas
circunstncias, pois no prefcio da primeira edio de Le pre Goriot publicado na
Revue de Paris4, Balzac faz um levantamento sobre as mulheres que aparecem
em alguns de seus romances, dividindo-as em femmes vertueuses e femmes
criminelles , e classifica Mme Vauquer dentro da categoria femmes
criminelles . No entanto, apenas para esta personagem faz uma pequena
observao: elle est douteuse .
Entretanto, inegvel o fato de sua ao estar voltada sobretudo para o
lucro. Quando Mlle Michonneau praticamente expulsa pelos outros pensionistas,
Mme Vauquer calcula que melhor que a delatora v embora do que todos os
outros moradores da penso, pois estes ameaaram deixar o estabelecimento,
caso a vieille fille no se retirasse:
Madame Vauquer calcula d'un seul coup d'oeil le parti le plus avantageux,
et roula jusqu' mademoiselle Michonneau.
- Allons, ma chre petite belle, vous ne voulez pas la mort de mon
tablissement, hein ? Vous voyez quelle extrmit me rduisent ces
messieurs ; remontez dans votre chambre pour ce soir. (BALZAC, 1971,
p. 370)
4 Trata-se do prefcio primeira edio publicado na Revue de Paris em 8 de maro de 1835, e
que apareceu na primeira e na segunda edies Werdet e depois foi suprimido. Para realizar este
trabalho, consultamos a edio de Le pre Goriot de 1971, pp. 399-401.
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O nico momento em que ela quase chora quando percebe que vrios de
seus clientes partem e seus lucros vo diminuir consideravelmente:
- Mais il n'y a plus qu' brler ma maison, le tonnerre y tombe. Le fils
Taillefer est mort trois heures. Je suis bien punie d'avoir souhait du
bien ces dames au dtriment de ce pauvre jeune homme. Madame
Couture et Victorine me redemandent leurs effets, et vont demeurer chez
son pre. Monsieur Taillefer permet sa fille de garder la veuve Couture
comme demoiselle de compagnie. Quatre appartements vacants, cinq
pensionnaires de moins ! Elle s'assit et parut prs de pleurer. Le malheur
est entr chez moi, s'cria-t-elle. (BALZAC, 1971, p. 273)
Segundo Auerbach (2004), Mme Vauquer caracterizada maneira de
uma bruxa, fato que pode ser comprovado com suas atitudes em relao ao
ganho e, tambm, quando analisamos sua descrio fsica:
Bientt la veuve se montre, attife de son bonnet de tulle sous lequel
pend un tour de faux cheveux mal mis, elle marche en tranassant ses
pantoufles grimaces. Sa face vieillotte, grassouillette, du milieu de
laquelle sort un nez bec de perroquet ; ses petites mains poteles, sa
personne dodue comme un rat d'glise, son corsage trop plein et qui
flotte, (...) ses yeux rids, dont l'expression passe du sourire prescrit aux
danseuses l'amer renfrognement de l'escompteur. (Idem, pp. 28-29)
A descrio da aparncia da personagem, com seu bonnet de tulle ,
sua face vieillotte seu nez a bec de perroquet e yeux rids muito
semelhante de uma bruxa. Alm disso, suas atitudes a caracterizam como uma
bruxa do ganho. Assim, seus atos esto em harmonia com sua descrio fsica,
j que caracterizada como algum que pertence ao Mal, que luta contra o Bem.
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Segundo Sallmann (2002), a bruxa foi uma das entidades s quais mais se
atribuiu maldade e ligao com o demonismo, enchendo o imaginrio coletivo com
crenas e supersties. Tal fato produziu um conjunto de histrias fantsticas ou
maravilhosas sobre a mulher, que aparecem em muitos relatos da tradio popular
que depois se transformaram nos contos de fada, e posteriormente foram
aproveitados na literatura.
A bruxa j pode ter sido uma fada, mas que perdeu sua boa natureza, se
desviou para o Mal e ligou-se ao Diabo. Assim como este ltimo, considerado o
anjo decado pela tradio crist, esta tambm perdeu sua bondade e enveredou
pelo outro caminho. Mme Vauquer, como a bruxa do ganho, tambm pode ser
considerada prejudicial na medida em que apenas est voltada para o lucro, sem
nenhuma preocupao tica com aqueles que abriga em sua penso.
Inserida na selva que Paris, ao mesmo tempo descrita em La fille aux
yeux dor como o Inferno, a rue Neuve-Sainte-Genevive juntamente com a
penso so o pntano que abrigam essa bruxa. Como mostrou Guichardet (1993),
a descrio da penso e da rua to lgubre que se torna pior de se ver do que
crnios vazios. A proximidade com o Panthon, monumento que funciona como
uma espcie de cemitrio, demonstra a atmosfera de morte em que a penso
est inserida.
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Na cena I de Macbeth vemos a imagem de bruxas em um charco, em meio
a troves, relmpagos e chuva em um pntano, ou seja, elas tm ligao estreita
com o meio no qual esto inseridas. Da mesma forma, Balzac faz aparecer Mme
Vauquer num ambiente sujo e ftido.
Assim como esses seres exercem poder sobre os elementos naturais e
sobre as foras da natureza quando fazem suas feitiarias, ou seja, possuem
poderes sobrenaturais capazes de interferir na vida de outras pessoas sem que
estas nada possam fazer a no ser encontrar uma maneira de desfazer o feitio
por meio das foras do Bem, a Mme Vauquer tambm atribudo grande poder
dentro do espao no qual est inserida, e todos os que esto sua volta so
controlados e dominados por ela. Quando Balzac afirma que ela conseguia
analisar seus hspedes e trat-los segundo o preo que pagavam, confere-lhe
quase o poder adivinhatrio das bruxas que, muitas vezes, tambm eram
consultadas para fazer previses a respeito da vida das pessoas e eram
caracterizadas nos contos de fada possuindo vidncia, podendo prever
acontecimentos e agir diretamente sobre eles com seus poderes sobrenaturais.
A figurao da bruxa malfica se estabeleceu com todo o vigor nos contos
de fada. Nesses textos elas aparecem sempre como velhas, gordas, desdentadas,
com grandes narizes que geralmente tm uma verruga e com um chapu que mal
cobre seus cabelos desgrenhados. Mme Vauquer, como dissemos anteriormente,
caracterizada de maneira muito semelhante. O gato que a acompanha um
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animal indicativo de mau agouro, pois faz parte de uma fauna ligada ao mistrio.
Nas crenas sobre o assunto, havia a possibilidade de a bruxa transformar-se em
um animal, geralmente um felino. Segundo Sallmann (2002, p. 54), Os bruxos
tambm tinham o poder de se transformar em animais, em gatos, por exemplo,
para subir nos beros e asfixiar os bebs (...).
s bruxas eram atribudos os poderes para causar catstrofes naturais, e
muitas vezes eram punidas quando algo dessa natureza acontecia. Elas eram
consideradas culpadas por todos os males que existiam no convvio social. Ainda
segundo Sallmann (2002, p. 54), Sabiam provocar chuvas torrenciais que
submergiam as culturas, o raio que derrubava asas e rvores, a chuva de granizo
que destrua o trigo ainda verde e os pomares.
A runa de M. Goriot, desse modo, atribuda em grande parte a Mme
Vauquer. Sua ganncia, cobrando preos absurdos e o fato de sentir-se rejeitada
por ele despertaram nela o desejo de destru-lo. Pouco a pouco, ele foi perdendo
todo o dinheiro e a sade e ela, sem piedade, cobrava valores ainda mais
exorbitantes. Seu poder de bruxa do ganho consiste na especulao, e esse poder
causou grande devastao na vida daquele que habitava em seu espao:
Vous savez que tout comme moi que le pre Goriot na plus le sou.
Donner des draps un homme en train de tortiller loeil, cest les perdre,
dautant quil faudra bien en sacrifier un pour le linceul. Ainsi, vous me
devez dj cent quarante-quatre francs, mettez quarante francs de draps,
et quelques autres petites choses, la chandelle que Sylvie vous donnera,
tout cela fait au moins deux cents francs, quune pauvre veuve comme
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moi nest pas en tat de perdre. Dame! soyez juste, monsieur Eugne, jai
bien assez perdu depuis cinq jours que le guignon sest log chez moi.
Jaurais donn dix cus pour que ce bonhomme-l ft parti ces jours-ci,
comme vous le disiez. a frappe mes pensionnaires. Pour un rien, je le
ferais porter lhpital. Enfin, mettez-vous ma place. Mon tablissement
avant tout, cest ma vie, moi. (BALZAC, 1971, p. 356)
A falta de sensibilidade de Mme Vauquer se manifesta at mesmo no
momento da morte de M. Goriot:
Au moment o Eugne achevait de lire le griffonnage de Bianchon, il vit
entre les mains de madame Vauquer le mdaillon cercle dor o taient
les cheveux des deux filles.
- Comment avez-vous os prendre a ? lui dit-il.
- Pardi ! fallait-il lenterrer avec ? rpondit Sylvie, cest en or.
- Certes ! reprit Eugne avec indignation, quil emporte au moins avec
lui la seule chose qui puisse reprsenter ses deux filles. (Idem, p. 365)
No entanto, a bruxa do ganho cujo poder consistia na especulao
tambm teve sua punio ao final da narrativa, quando a maioria dos hspedes
deixou a penso: M. Goriot morreu, Vautrin foi preso, Mlle Michonneau tambm foi
forada a sair junto com Poiret, Victorine finalmente conseguiu a sua herana e
Rastignac decidiu ir embora. A runa de Mme Vauquer foi o preo pago por suas
atitudes. Como as bruxas, que durante o perodo inquisitorial eram mortas ou
perseguidas, Mme Vauquer tambm perdeu fora juntamente com seu
estabelecimento, j que para ela este representava sua prpria vida.
Assim, h um esvaziamento progressivo da funo de Mme Vauquer na
narrativa, na medida em que os hspedes vo deixando a penso. No incio,
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quando todos os pensionistas esto l, sua importncia tal que o prprio
romance se inicia com a descrio do estabelecimento seguida da de sua prpria
figura, conforme analisamos. No entanto, quando a penso se esvazia, e
consequentemente ela deixa de congregar todos os hspedes sob seu domnio, a
cada um que parte corresponde uma diminuio de seu poder. Desse modo,
notamos que no final ela no mais aparece, e a ao romanesca passa a dar
preferncia a retratar a morte de Goriot, o abandono das filhas, o exlio de Mme de
Beausant, e a partir da sada de Mlle Michonneau no temos mais notcia de
Mme Vauquer e tampouco ela volta a aparecer em outros romances de La
Comdie Humaine.
A perda de poder de Mme Vauquer, desse modo, acontece em dois nveis:
perda de sua fora econmica e consequente capacidade de interveno na vida
de seus pensionistas, como no caso de Goriot, e o esvaziamento de sua funo
na narrativa. Toda a ao romanesca deixa de ter lugar no espao da penso para
se desenrolar em outros, como os sales de Mme de Beausant e at mesmo o
cemitrio Pre Lachaise. Desse modo, to evidente o enfraquecimento desse
espao ao ponto de perder lugar para o cemitrio, que na narrativa representa a
morte tanto de Goriot, de Mme de Beausant e, se assim podemos dizer, da
Penso Vauquer e da vida que Rastignac estava levando, a qual se abre para
novas perspectivas, quando o jovem decide procurar Delphine de Nucingen.
Portanto, a cena final no Pre Lachaise simboliza o fim de tudo o que Rastignac
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viveu at aquele momento, incluindo sua estadia na penso e todos os
acontecimentos presos a ela.
2.2 Mlle Michonneau
As indicaes sobre Mlle Michonneau denotam que se trata de algum
excludo da sociedade, sem nenhuma perspectiva. apresentada em Le pre
Goriot da seguinte maneira:
La vieille demoiselle Michonneau gardait sur ses yeux fatigus un
crasseux abat-jour en taffetas vert, cercl par du fil d'archal qui aurait
effarouch l'ange de la Piti. Son chle franges maigres et pleurardes
semblait couvrir un squelette, tant les formes qu'il cachait taient
anguleuses. Quel acide avait dpouill cette crature de ses fortunes
fminines ? elle devait avoir t jolie et bien faite : tait-ce le vice, le
chagrin, la cupidit ? avait-elle trop aim, avait-elle t marchande la
toilette, ou seulement courtisane ? Expiait-elle les triomphes d'une
jeunesse insolente au-devant de laquelle s'taient rus les plaisirs par une
vieillesse que fuyaient les passants ? Son regard blanc donnait froid, sa
figure rabougrie menaait. Elle avait la voix clairette d'une cigale criant
dans son buisson aux approches de l'hiver. Elle disait avoir pris soin d'un
vieux monsieur affect d'un catarrhe la vessie, et abandonn par ses
enfants, qui l'avaient cru sans ressources. Ce vieillard lui avait lgu mille
francs de rente viagre, priodiquement disputs par les hritiers, aux
calomnies desquels elle tait en butte. Quoique le jeu des passions et
ravag sa figure, il s'y trouvait encore certains vestiges d'une blancheur et
d'une finesse dans le tissu qui permettaient de supposer que le corps
conservait quelques restes de beaut. (BALZAC, 1971, pp. 32-33)
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A personagem construda artisticamente com um lxico depreciativo,
alm de carregar a alcunha imputada por Vautrin: Vnus du Pre Lachaise , ou
seja, a Vnus que est no cemitrio, o que ressalta sua aparncia decadente.
Suas caractersticas fsicas se assemelham tambm muito s de uma bruxa. Ela
era vieille , tinha yeux fatigus , usava um crasseux abat-jour en taffetas
vert , possua formes anguleuses , e tinha a voix clairette . Alm disso,
tambm habitava a penso que, como dissemos, o ambiente que pode ser
comparado ao pntano descrito por Shakespeare e que se constitui, no
imaginrio, no local onde as bruxas habitam, e que representa toda a imundcie e
feira dessas entidades.
O epteto Vnus du Pre Lachaise muito significativo. Vnus, a
deusa do amor e da beleza, deslocada para o ambiente inspito do cemitrio,
onde s h morte, cadveres e ossos. Assim como as bruxas esto no pntano, a
Vnus do Pre Lachaise representa aquela que est no seu devido lugar, ou seja,
na penso. Alm disso, descrita como uma personagem que possui um carter
srdido, algo representado no episdio da priso de Vautrin.
Ademais, Vnus pode significar tanto mulher bonita quanto prostituta.
Nesse sentido, ao nome-la da maneira como o faz, Vautrin produz uma ironia,
tendo em vista os traos decadentes de Michonneau. Alm disso, indiretamente,
pode estar classificando-a, de forma sutil, como meretriz, tendo em vista que a
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narrativa no deixa muito claro qual seria o seu passado, que se torna obscuro
aos olhos do leitor.
Como uma bruxa, ela possui uma espcie de poo mgica, que ser
dada a Jacques Collin e far com que ele durma. Desse modo, tambm consegue
alterar toda a ordem existente dentro da penso, ao ajudar a capturar o indivduo
que era o mais poderoso dentro do sistema. Assim como Mme Vauquer,
personagem que tem suas aes motivadas por sua ambio, Michonneau
tambm, a partir de seu interesse financeiro, consegue reunir foras suficientes
para aquilo que at mesmo para a polcia representava algo de grande dificuldade.
Dessa forma, ela praticamente altera a ordem natural com poderes quase
sobrenaturais, tem grande intuio e uma espcie de vidncia, quando percebe
que Vautrin tinha escondido dinheiro, mas no teve tempo hbil para procur-lo.
Mme Vauquer quem ajuda a medicar Vautrin, trazendo ter para curar o
efeito do ataque causado pela substncia dada por Mlle Michonneau. portadora
do antdoto e, assim, tambm capaz de agir na natureza por meio de poes
para causar determinados resultados. Desse modo, as bruxas agem de modo
produtivo no mundo real da penso.
Mlle Michonneau faz um papel de intermediria entre a ordem burguesa
(representada pela polcia) e o mundo escuso da criminalidade. Como as bruxas,
que faziam previses, davam consultas e mesmo preparavam, em troca de
dinheiro, trabalhos aos quais eram atribudos poderes sobrenaturais para que as
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pessoas comuns pudessem ter acesso feitiaria e supostamente tivessem o
poder de alterar a ordem natural, a vieille fille tambm estabelece esse elo.
Segundo Sallmann (2002, p. 22):
O bruxo um indivduo capaz de modificar o destino de um outro
indivduo (sors em latim significa sorte ou destino, sorcier a palavra
francesa para bruxo) por meio de procedimentos rituais ou simblicos.
exatamente isso o que fez Mlle Michonneau, pois conseguiu modificar o
destino de Vautrin e tambm o da penso, quando o desmascarou. Assim como
os praticantes de bruxaria, que recebem dinheiro para as encomendas
admitidas, do mesmo modo agiu Mlle Michonneau para capturar o criminoso, e
realizou o ritural responsvel por alterar a histria.
Quando Vautrin preso, Mlle Michonneau tambm descoberta, e por
ele chamada de traidora. Todos os moradores se revoltam contra o ocorrido, e no
a aceitam mais na penso. Ela, desse modo, teve de procurar outro lugar para
ficar:
- Finissons-en avec mademoiselle Judas, dit le peintre en s'adressant
madame Vauquer. Madame, si vous ne mettez pas la porte la
Michonneau, nous quittons tous votre baraque, et nous dirons partout qu'il
ne s'y trouve que des espions et des forats. Dans le cas contraire, nous
nous tairons tous sur cet vnement, qui, au bout du compte, pourrait
arriver dans les meilleures socits, jusqu' ce qu'on marque les galriens
au front, et qu'on leur dfende de se dguiser en bourgeois de Paris et de
se faire aussi btement farceurs qu'ils le sont tous. (BALZAC, 1971, p.
236)
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Assim como as bruxas, que eram punidas com a morte, ela tambm
recebeu seu castigo, sendo obrigada a deixar a penso. Todos os pensionistas
no a aceitaram mais depois do ocorrido, e se voltaram contra ela de forma
veemente em virtude de sua ligao com a polcia (ordem) e, ao mesmo tempo,
com o mundo misterioso a envolver poes, traies, delaes e prises.
Michonneau, portanto, impregnada de aura malfica, usa de seus poderes para
neutralizar outro bruxo, o de mil faces e nomes, Vautrin.
Diferentemente do outro bruxo, Michonneau no possui o mesmo poder
de seduo e de persuaso, o que fez com que, ao neutraliz-lo, ela mesma
acabasse perdendo sua fora e sucumbindo. Desse modo, imediatamente aps os
pensionistas descobrirem que havia sido ela quem o havia denunciado, ocorreu
uma grande rejeio por parte deles, de maneira que ela perdeu todos os seus
poderes e tambm se esvaziou dentro da narrativa, ao passo que a priso de
Jacques Collin no teve outro efeito seno o de fazer com que ele ganhasse ainda
mais em importncia narrativa. Assim, ao tentar neutralizar um bruxo, que
tambm consegue alterar o destino de personagens, como o fez com Victorine
Taillefer e, desse modo, muito mais poderoso que ela, Michonneau foi a grande
perdedora, recebeu grande punio e perdeu os seus poderes.
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2.3 Mlle Taillefer
O retrato de Victorine Taillefer apresentado juntamente com o de
Rastignac:
Deux figures y formaient un contraste frappant avec la masse des
pensionnaires et des habitus. Quoique mademoiselle Victorine Taillefer
et une blancheur maladive semblable celle des jeunes filles attaques
de chlorose, et qu'elle se rattacht la souffrance gnrale qui faisait le
fond de ce tableau, par une tristesse habituelle, par une contenance
gne, par un air pauvre et grle, nanmoins son visage n'tait pas vieux,
ses mouvements et sa voix taient agiles. Ce jeune malheur ressemblait
un arbuste aux feuilles jaunies, frachement plant dans un terrain
contraire. Sa physionomie rousstre, ses cheveux d'un blond fauve, sa
taille trop mince, exprimaient cette grce que les potes modernes
trouvaient aux statuettes du Moyen-Age. Ses yeux gris mlangs de noir
exprimaient une douceur, une rsignation chrtiennes. Ses vtements
simples, peu coteux, trahissaient des formes jeunes. Elle tait jolie par
juxtaposition. Heureuse, elle et t ravissante : le bonheur est la posie
des femmes, comme la toilette en est le fard. Si la joie d'un bal et reflt
ses teintes roses sur ce visage ple ; si les douceurs d'une vie lgante
eussent rempli, eussent vermillonn ces joues dj lgrement creuses ;
si l'amour et ranim ces yeux tristes, Victorine aurait pu lutter avec les
plus belles jeunes filles. Il lui manquait ce qui cre une seconde fois la
femme, les chiffons et les billets doux. Son histoire et fourni le sujet d'un
livre. (BALZAC, 1971, p. 35)
Os elementos que melhor descrevem Mlle Taillefer so sua blancheur
maladive , com uma physionomie rousstre , cheveux dun blond fauve ,
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taille trop mince possuindo grace . Alm disso, ses yeux gris mlangs de
noir exprimaient une douceur, une rsignation chrtiennes , une contenance
gne e tinha vtements simples . Desse modo, Victorine descrita como
uma figura angelical, que tambm lembra a imagem da Virgem Maria. Sua
brancura, que a torna quase transparente, ao mesmo tempo mostra o carter
dessa personagem, que descrita como algum que possui muita pureza em
contraste com as bruxas descritas anteriormente.
Desse modo, ela vista em oposio a Mlle Michonneau e a Mme
Vauquer. Relaciona-se ao Bem, em oposio s outras. A descrio de Mlle
Taillefer mostra sua pureza e aura romntica, na medida em que sua pele quase
transparente, deixando ver todo o seu interior, que totalmente limpo.
Victorine, alm disso, representa o quase-destino de Rastignac, pois a
proposta de Vautrin, que envolvia a recompensa pecuniria, seria a queda do
jovem no mundo do crime. Assim, seu carter puro representa, indiretamente,
perigo ao jovem, na medida em que o criminoso est intermediando algo terrvel,
apesar de ela mesma no saber.
Assim como as personagens Angla e Clarimonde de Thophile Gautier e
Vra de Villiers de lIsle Adam5, que so intermedirias entre a vida e a morte e
5A caracterizao de Victorine em muito se assemelha da personagem Angla no conto
fantstico La cafetire de Thophile Gautier:
Jamais, mme en rve, rien, d'aussi parfait ne s'tait prsent mes yeux ; une
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podem passar de uma para a outra, Victorine tambm est entre os perigos da
selva (Paris) e para Rastignac a personagem os pontua, tanto para ela mesma, j
que rejeitada pelo pai, quanto para o jovem e, de certo modo, tambm est
indiretamente envolvida entre a vida e a morte de seu irmo.
Todas essas personagens tm em comum, no entanto, o fato de buscarem
avidamente o amor e, no caso de Vra e Angla, voltarem da morte para
reconquist-lo. Victorine tambm deseja avidamente o jovem provinciano, mas, ao
peau d'une blancheur blouissante, des cheveux d'un blond, cendr, de longs cils
et des prunelles bleues, si claires et si transparentes, que je voyais son me
travers aussi distinctement qu'un caillou au fond d'un ruisseau (GAUTIER, 1999, p.
15)
A personagem de Gautier est inserida numa atmosfera de mistrio. Alm disso, ela
aparece para encontrar o seu amado e danar com ele, mas desaparece misteriosamente, e logo
aps o protagonista fica sabendo que ela j estava morta h muito tempo. Ela tem uma
representao angelical e tambm lembra a Madona, remetendo, desse modo, a uma mulher com
uma natureza pura e virginal. Essa mesma imagem aparece em outro conto fantstico de Villiers
de lIsle Adam, Vra:
Le plein-nimbe de la Madone en habits de ciel brillait, rosac de la croix byzantine
dont les fins et rouges linaments, fondus dans le reflet, ombraient d'une teinte de
sang l'orient ainsi allum des perles. Depuis l'enfance, Vra plaignait, de ses
grands yeux, le visage maternel et si pur de l'hrditaire madone, et, de sa nature,
hlas ! ne pouvant lui consacrer qu'un superstitieux amour, le lui offrait parfois,
nave, pensivement, lorsqu'elle passait devant la veilleuse. (ADAM, 1983, p. 51)
A caracterizao da personagem como Madona, ou seja, como uma figura virginal,
tambm se assemelha de Victorine, que descrita como une statuette du Moyen ge .
Assim como em La Morte Amoureuse, tambm de Thophile Gautier, a personagem
Clarimonde, que uma vampira, representa grande perigo de queda do jovem padre, pois manter
o relacionamento com ela seria o mesmo que morrer e ir para o Inferno, Victorine tambm se
constitui nessa ameaa para Rastignac, ou seja, a sua queda no mundo do crime.
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final, este acaba decidindo ficar com Mme de Nucingen.
Desse modo, Victorine, por sua pureza e inocncia, ope-se a
praticamente todas as mulheres da obra. At mesmo as filhas Goriot, apesar de
tambm serem belas, no possuem o interior condizente com o exterior.
No conto de Villiers de lIsle Adam (1983, p. 51) o sepulcro de Vra contm
o epitfio PALLIDA VICTRIX , que parece tambm definir a nossa personagem,
que plida no sentido de pura, e vitoriosa. Desse modo, podemos dizer que
Victorine representa a victoire , ou o prmio ao mais oportunista, alm de ela
prpria ter sido vencedora, quando conseguiu a herana, apesar de isso ter
ocorrido por meios escusos. Alm disso, ela possui uma contradio em si, pois
apesar de potencialmente ser dona de recursos financeiros, no consegue usufruir
deles no decorrer da narrativa, tendo que submeter-se penso Vauquer e a todo
o ambiente sujo e ftido que contrasta com a vida que ela poderia levar. Sua
vitria s ocorrer ao final da narrativa, quando Vautrin consegue alterar sua
trajetria.
O destino de Victorine, desse modo, oposto ao das bruxas que
sucumbem e se esvaziam ao final da narrativa. A jovem, dotada de caractersticas
fsicas e morais que se assemelham s de uma princesa nos contos de fada,
como a pureza, a beleza fsica e a inocncia, ao final consegue a sua vitria, ou
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seu final feliz. No entanto, diferentemente das narrativas que pertencem ao
maravilhoso, seu futuro foi alterado pela ao de um bruxo.
O retrato de Mlle Taillefer mostra a condio da mulher solteira destituda
de um dote no sculo XIX. As mulheres, aristocratas ou no, nessa situao eram
colocadas em conventos e condicionadas a celibatos compulsrios. As que no
tinham origem aristocrtica tambm eram enviadas a esses lugares a fim de que
pudessem aprender com as nobres as maneiras, por meio da convivncia. Desse
modo, os conventos abrigavam, alm de vivas endividadas, mes aristocratas
empobrecidas, jovens casadas de 12 ou 13 anos que esperavam atingir a
maioridade, entre outras, jovens sem dotes, com a finalidade de oferecer-lhes uma
educao religiosa, por serem pobres ou porque as famlias as deserdavam,
privando-as de seu dinheiro para compor a riqueza de outros, geralmente os
irmos primognitos.6
Victorine recusa essa condio que seu pai lhe estabelece e luta para
modific-la, indo visit-lo, para que ele altere o que decidiu e resolva dar-lhe a
parte da riqueza a que ela tem direito. As antigas famlias aristocrticas possuam
mulheres que se sacrificavam por seus irmos, pois acreditavam num bem maior
6 A respeito desse assunto ver a tese de Doutorado de Terezinha de Camargo Viana,
Aproximaes ao mundo feminino de Balzac, em que ela analisa, do ponto de vista sociolgico,
como o feminino aparece em La Comdie Humaine, nos romances que tratam especificamente
das mulheres, como La femme de trente ans, Physiologie du mariage, Mmoires de deux jeunes
maries, entre outros. A autora utiliza essas obras para fazer uma reflexo sobre a condio da
mulher na Frana do sculo XIX.
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que era o de preservar o nome e a riqueza de seus ascendentes. Victorine,
entretanto, faz parte de uma nova gerao, e seu pai pertence alta burguesia,
mas vale-se desses mesmos valores para garantir a riqueza da famlia. Alm
disso, ela no est num convento, mas na penso sob os cuidados de uma
parente distante, com uma pequena renda anual, ou seja, praticamente
abandonada prpria sorte.
A relao de Victorine com o dinheiro, desse modo, diferente da de Mme
Vauquer e Mlle Michonneau, tendo em vista que sua preocupao
exclusivamente com o dote para realizar o seu casamento. Alm disso, ela espera
que esses valores venham de seu pai, e no precisa trabalhar ou realizar qualquer
atividade par obt-los, pois M. Taillefer tambm lhe d uma parca penso.
Contrariamente s filhas Goriot, cujo interesse principal o dinheiro e a
ostentao, essa personagem quer o que lhe de direito e o que se ressalta o
desejo de ser feliz, decorrente de sua ingenuidade e crena na ventura por meio
do casamento, em consonncia com sua descrio e, ao mesmo tempo, com sua
situao familiar e social.
Assim, Victorine se ope a Mlle Michonneau e a Mme Vauquer, que so
caracterizadas como bruxas, e se insere quase como uma princesa, se assim
podemos dizer, tendo em vista estar impregnada de uma aura de bondade e
beleza. Alm disso, sua histria possui um final feliz, conforme mencionamos
anteriormente, contrariamente ao das duas personagens. Ademais, ela tem uma
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quase servial, Mme Couture, cujo nome lembra o de uma profisso, a de
costureira, que o destino de muita moa pobre, e que pode ter dois significados:
a ligao com Mme Couture pode indicar sua condio de garota sem recursos
financeiros, e que teve seu destino alterado por Vautrin, conforme dissemos, ou,
ainda, o fato de possuir uma espcie de empregada anteciparia seu destino de
mulher rica, tendo em vista que as nobres de antanho tambm possuam
serviais.
2.4 As filhas Goriot
A relao das filhas Goriot e o dinheiro engloba a questo central de Le
Pre Goriot. Em suas notas, o projeto inicial do livro continha as seguintes
indicaes:
Un brave homme pension bourgeoise 600 fr. de rente stant
dpouill pour ses filles qui toutes deux ont 50 000 fr. de rente mourant
comme un chien. 7
7 Citado por GUICHARDET, Jeannine. Le pre Goriot dHonor de Balzac. Paris: Gallimard, 1993,
p. 9.
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No prefcio de Cabinet des Antiques, h um comentrio sobre a histria do pai :
Lvnement qui a servi de modle offrait des circonstances affreuses et
comme il ne sen prsente pas chez les cannibales, le pauvre pre a cri
pendant vingt heures dagonie pour avoir boire, sans que personne
arrivt son secours, et ses deux filles taient lune au bal, lautre au
spectacle, quoiquelles nignorassent pas ltat de leur pre. 8
As filhas Goriot representam a interseco entre o dinheiro (dote) e a
considerao social. Desse modo, seus maridos so da elite, e o fato de estarem
acompanhadas por eles faz com que se infiltrem na alta sociedade e no meam
esforos para conseguir admirao e prestgio.
Ao descrever as filhas Goriot, Balzac privilegia seu aspecto fsico e tambm
a maneira como se vestem, para mostrar sua beleza e o luxo de que esto
cercadas. Sua representao se faz em ambientes de sonho. Em contrapartida,
ressalta seu comportamento em relao a M. Goriot, que denota completa
superficialidade e futilidade. No tm compaixo pelo pai que est morrendo
mngua e do valor a coisas que, na verdade, causam-lhes grande sofrimento.
Presas a esse mundo de aparncias, atribuem sua infelicidade falta de dinheiro
e buscam-no com o pai sem a menor considerao por este.
8 BALZAC, H. Prface. In: Cabinet des Antiques, apud GUICHARDET, Jeannine. Le pre Goriot
dHonor de Balzac. Paris: Gallimard, 1993, p. 10.
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A seguir, vemos como descrita Mme de Restaud:
Tout coup la richesse tale chez la comtesse de Restaud brilla devant
ses yeux. Il avait vu l le luxe dont une demoiselle Goriot devait tre
amoureuse, des dorures, des objets de prix en vidence, le luxe
inintelligent du parvenu, le gaspillage de la femme entretenue. Cette
fascinante image fut soudainement crase par le grandiose htel de
Beausant. Son imagination, transporte dans les hautes rgions de la
socit parisienne, lui inspira mille penses mauvaises au coeur, en lui
largissant la tte et la conscience. Il vit le monde comme il est : les lois et
la morale impuissantes chez les riches, et vit dans la fortune l' ultima ratio
mundi. (BALZAC, 1971, p. 171)
A passagem anterior mostra como Balzac retrata as irms Goriot:
richesse , luxe , prix , gaspillage , hautes rgions de la
socit parisienne . Desse modo, as filhas so mostradas de acordo aquilo que
possuem, diferentemente de Victorine. Mme de Nucingen relata, na passagem
seguinte, o domnio que seu marido exercia sobre ela em virtude de lanar mo de
todo o dinheiro do casal, at mesmo aquele que era de seu dote, e no deixar
nada para ela:
Eh ! bien, sachez que monsieur de Nucingen ne me laisse pas disposer
d'un sou : il paye toute la maison, mes voitures, mes loges ; il m'alloue
pour ma toilette une somme insuffisante, il me rduit une misre secrte
par calcul. Je suis trop fire pour l'implorer. Ne serais-je pas la dernire
des cratures si j'achetais son argent au prix o il veut me le vendre !
Comment, moi riche de sept cent mille francs, me suis-je laiss
dpouiller? par fiert, par indignation. Nous sommes si jeunes, si naves,
quand nous commenons la vie conjugale ! La parole par laquelle il fallait
demander de l'argent mon mari me dchirait la bouche ; je n'osais
jamais, je mangeais l'argent de mes conomies et celui que me donnait
mon pauvre pre ; puis je me suis endette. Le mariage est pour moi la
plus horrible des dceptions, je ne puis vous en parler : qu'il vous suffise
de savoir que je me jetterais par la fentre s'il fallait vivre avec Nucingen
autrement qu'en ayant chacun notre appartement spar. (Idem, p. 296)
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Desse modo, a relao entre as mulheres e o dinheiro muito peculiar,
tambm no que se refere aos homens, pois elas somente possuem valor aos
olhos masculinos quando so detentoras de alguma quantia, seja por dote ou
herana. Victorine, como vimos, passou a ser vista por todos os pensionistas com
outros olhos depois de ter se tornado herdeira aps a morte de seu irmo.
Essa relao faz com que busquem riqueza para que possam atrair a
ateno masculina e no fiquem sozinhas, j que com o dinheiro deixam de ter
importncia a origem, a aparncia, a idade, a personalidade, etc. Para os homens,
as mulheres tornam-se a mesma coisa quando so ricas. Elas so usadas para
ascenso social, como ocorreu com as filhas Goriot e com Victorine quando esta
passou a despertar o interesse de Rastignac, assim que ele soube que ela poderia
ser a herdeira de uma grande fortuna. Mas o contrrio tambm acontece, ou seja,
as mulheres tambm casam-se por interesse com o objetivo de conseguir uma
melhor posio na sociedade. O matrimnio, como se sabe, configura-se num jogo
de interesses. o que vemos que ocorreu com as filhas Goriot:
Courtise pour sa beaut par le comte de Restaud, Anastasie avait des
penchants aristocratiques qui la portrent quitter la maison paternelle
pour s'lancer dans les hautes sphres sociales. Delphine aimait l'argent :
elle pousa Nucingen, banquier d'origine allemande qui devint baron du
Saint-Empire. Goriot resta vermicellier. Ses filles et ses gendres se
choqurent bientt de lui voir continuer ce commerce, quoique ce ft toute
sa vie. Aprs avoir subi pendant cinq ans leurs instances, il consentit se
retirer avec le produit de son fonds, et les bnfices de ces dernires
annes ; capital que madame Vauquer, chez laquelle il tait venu s'tablir,
avait estim rapporter de huit dix mille livres de rente. Il se jeta dans
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cette pension par suite du dsespoir qui l'avait saisi en voyant ses deux
filles obliges par leurs maris de refuser non-seulement de le prendre
chez elles, mais encore de l'y recevoir ostensiblement. (BALZAC, 1971, p.
121)
A cena final de Le pre Goriot muito significativa. As carruagens vazias
revelam a vida que levam Delphine e Anastasie: por fora o luxo, alm de
representarem as famlias nos eventos sociais, e por dentro o mais completo vazio
e a infelicidade. Alm disso, essa ostentao pecuniria tambm ilusria, pois as
filhas recorrem ao usurrio Gobseck para obter dinheiro e entreg-lo aos amantes.
Outro aspecto que revela tal vida de aparncias o fato de Anastasie, por
exemplo, utilizar, no baile de Mme Beausant, os diamantes que j estavam
empenhados para pagar dvidas.
Contrariamente a Victorine, Anastasie e Delphine no possuem a mesma
transparncia. Desse modo, embora fisicamente belas, sua aparncia no condiz
com o seu interior. Apesar de seus belos rostos, possuem um carter srdido e
mesquinho. Elas so como as carruagens, que carregam consigo luxo e beleza,
alm de serem cheias de ornamentos, mas por dentro esto completamente
vazias.
Aps os seus casamentos, Delphine e Anastasie deixam de ser chamadas
pelo nome de famlia do pai, Goriot, e passam a adotar o de seus maridos,
Nucingen e Restaud. Desse modo, como condio para se inserirem na
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sociedade, era necessrio que perdessem o patronmico e assumissem os nomes
de casadas, tendo em vista que Goriot no era bem visto pela nobreza pelo fato
de, no passado, apoiar os revolucionrios e vender farinhas dez vezes mais caro
do que realmente custavam, fato que o fez enriquecer.
Assim, elas s passam a fazer realmente parte da sociedade quando
perdem o sobrenome do pai, e tal fato faz com que h