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Texto crítico sobre a exposição "Panorama", do escultor Angelo Venosa, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Por Daniela Name,. Agosto de 2012TRANSCRIPT
O mergulhador Angelo Venosa, Panorama, MAM-RJ
“O que agora eu conto é a combinação daquilo
que ele me contou e da minha imaginação (...) Foi assim que
imaginei o seu sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno.”
Bernardo Carvalho, Nove noites
Angelo Venosa já descreveu seu processo de trabalho na escultura como o de alguém que
“vai aprendendo a nadar depois que se jogou na água”. A exposição panorâmica sobre
seus quase 30 anos de carreira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, poderia ter
esta autodefinição como síntese, não apenas pela ênfase que ela dá ao gesto, ao corpo e à
experiência – essenciais para a compreensão da trajetória do artista -, mas também pelo
meio em que ela ocorre: a água.
Dono de um caminho absolutamente peculiar na história recente da escultura brasileira,
Venosa evidencia o quanto é possível haver vida inteligente em um mundo de referências
paralelo ao da herança neoconcreta. Nosso patrimônio construtivo é indiscutível, mas
muitas vezes asfixiou e embotou a visão da crítica, cujo ponto de partida deve ser sempre
o diálogo com cada obra. E o que podem me dizer as esculturas de Venosa?
Estruturada como uma espécie de galáxia em expansão, a montagem da mostra no MAM é
uma obra à parte. Um núcleo denso e seminal se abre para as relações visuais entre peças
de vários períodos, aproximando as feitas com ossos e dentes daquelas quase imateriais,
que criam volumes a partir do desenho no acrílico. Neste eixo central estão os trabalhos
negros do início da carreira, alguns deles oriundos da participação do artista na Bienal de
São Paulo de 1987 e outros datados de um ano antes. Feitos a partir de uma estrutura de
madeira envolvida com tecido e tinta, eles são como esqueletos enfaixados com atadura,
corpos inertes que parecem ganhar vigor depois de reinventados pelo artista.
O “núcleo negro” aponta, já nos primeiros anos de produção de Venosa, para seu interesse
pela antítese vida-morte e pelas formas e materiais orgânicos, vestígios daquilo que um
dia pode ter sido um ser pulsante e identificável. A efemeridade da matéria, que causa
desconforto para a maioria de nós, tem sido para ele um objeto de fascínio e obsessão, no
melhor dos sentidos.
Os trabalhos que nos apresentam este primeiro Venosa sugerem ainda o início de
referências a formas de um mundo aquático e abissal. Sua obra mais conhecida é uma
escultura monumental em aço corten, criada em 1990 para a Praça Mauá e hoje instalada
na orla do Leme. Originalmente sem título, recebeu o apelido popular de “Baleia”, que
acabou sendo incorporado pelo autor como um nome possível. As crianças que têm
visitado o MAM enxergam polvos e lulas nas esculturas negras. Mesmo sabendo que não
há qualquer intenção narrativa no trabalho do artista, eu permitiria que minha imaginação
encontrasse corais, um peixe-falo-faca e anêmonas no espaço expositivo. Todos eles
apresentados como vizinhos de uma escultura sem título de 1998, em que desenhos foram
feitos com água salgada em lâminas de vidro. Esta obra “respira” como se fosse um animal
vivo, redefinindo o traçado original do artista à medida que o sal reage com o oxigênio,
fazendo a “tinta” escorrer pela superfície transparente.
Em Illuminations, Hannah Arendt compara Walter Benjamin a um pescador de pérolas, que
vai ao fundo do mar para recolher aquilo que é “rico e estranho”. Transporta para
superfície ecos de um passado esquecido, dando a ele outra vida a partir de uma
“cristalização” sob novas perspectivas. Venosa também é mergulhador. No MAM,
desbravamos sua obra náufraga.
Neste “Panorama”, é possível perceber claramente um inventário sobrevivente ao tsunami
de imagens fugidias que caracteriza o mundo contemporâneo. Ao longo dos anos, o artista
construiu um glossário que dá âncoras a estes corpos à deriva. O mar – o literal e aquele de
imagens, que hoje acessamos pela rede - é sempre um território fluido e em movimento.
Ele pertence e não pertence a este nosso mundo; é e não é deste nosso tempo.
Venosa traz à tona estes seres híbridos; familiares e estrangeiros, eles foram pescados no
agora e são simultaneamente jurássicos. Evaporada a água, eles também se “cristalizam” e
são conservados no sal, algumas vezes fatiados e guardados às camadas, como o charque
que alimentava as tripulações ultramarinas.
As fatias ou camadas que permeiam a produção do artista são, aliás, um indício de que
seus mergulhos não se dão apenas na direção da imagem. A constituição da forma, assim
como a pesquisa material que vai transformá-la em escultura, têm sido profundezas
exploradas de maneira ainda mais evidente. Taxidermista às avessas, Venosa, em vez de
dar forma à pele, revela aquilo que está por baixo dela. Não faz isso, é claro, de maneira
mecânica e comum. Os arranjos destas lâminas – em vidro, aço, madeira ou acrílico –
tiram partido do espaço negativo, como um elogio ao vazio, ao oco, à forma que existe no
que é cheio e em seu oposto; no que é opaco e no que é transparente; no que contém e no
incontido.
Nos trabalhos da série Turdus, de 2011, esta ambiguidade é enfatizada. Venosa fez a
ressonância magnética de um crânio de sabiá e seccionou o resultado em lâminas. Em uma
destas peças, a cabeça da ave é vista como um sólido em uma caixa de acrílico, mas o
volume é como uma grande holografia, projetada a partir da minuciosa junção das linhas
da ressonância desenhadas nas plaquinhas transparentes. Em outra obra, o crânio só é
visto de um determinado ângulo: é preciso ficar a 45 graus das placas de vidro, instaladas
em uma quina da parede, para perceber o volume. A escultura exige que mexamos o nosso
corpo para se revelar em um quase-espelho como a lembrança de outro corpo.
Uma das obras inéditas que estão no MAM inquieta justamente por esta relação com os
outros corpos à sua volta. Parece um meteorito negro, e nos mantém na sensação de que,
apesar de ser reconhecível, poderia ter vindo de uma galáxia distante. As camadas são
agora fragmentos. O raciocínio em seções permanece, mas a exigência de que se entenda o
trabalho aos pedaços se dá de uma forma menos sequencial e muito menos direta, o que
parece representar um novo caminho de pesquisa para Venosa.
As chapas de alumínio composto que constituem esta peça não são indiferentes à luz e vão
criando matizes de cor: o preto é transformado em cinzas, marrons, verdes e azuis. Este
prisma camaleônico filtra e reflete a paisagem, as outras esculturas mais próximas e seus
espectadores, mas é modificado por aquilo que absorve. A luz sublinha ainda suas
reentrâncias e seus eixos mais pontiagudos, vertendo a geometria em corpo. Costurada
com lacres de plástico, esta escultura parece cicatrizar uma antiga ferida: o artista flerta,
de modo viril e nada reverente, com nossa herança geométrica construtiva, sem no
entanto abandonar o caminho da expressão.
Só percebe este encontro de águas tão distintas aquele que se mexe em volta e na direção
do trabalho. Assim como acontecia com as esculturas de ossos e dentes do início deste
percurso, para ser levado por esta obra é preciso aceitar a estranheza, o incômodo e até
certo enjoo como sinais de riqueza. Com Venosa, só mergulha quem mareia.
Daniela Name, julho-agosto de 2012.