aline tiggemann - repositorio.uniceub.br · importância da posse agrária no processo de...
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CENTRO UNIVERSITRIO DE BRASLIA
FACULDADE DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS
CURSO DE DIREITO
ALINE TIGGEMANN
ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS
PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL
BRASLIA
2012
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ALINE TIGGEMANN
ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS
PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL
Monografia apresentada como requisito para
concluso do curso de bacharelado em Direito
do Centro Universitrio de Braslia
UniCeub.
Orientador: Prof. Joo Paulo de Faria Santos
BRASLIA
2012
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ALINE TIGGEMANN
ESTRUTURA FUNDIRIA E O PROCESSO DE REGULARIZAO DAS REAS
PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL
Monografia apresentada como requisito para
concluso do curso de bacharelado em Direito
do Centro Universitrio de Braslia
UniCeub.
Orientador: Prof. Joo Paulo de Faria Santos
Braslia, _____ de ___________ de 2012
Banca Examinadora
_____________________________________________________________
Joo Paulo de Faria Santos
Orientador
_____________________________________________________________
Examinador
_____________________________________________________________
Examinador
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Dedico este trabalho a Deus, meu Senhor e
Salvador.
Aos meus queridos pais e irmo, que
comemoraram comigo a cada pgina escrita e
que em todos os momentos, de maneira
incondicional, demonstraram verdadeiro amor
por mim, me apoiando e incentivando quando
me faltavam foras para continuar.
Ao meu amado noivo, pela compreenso,
apoio, companheirismo e incentivo durante a
elaborao do presente trabalho.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao meu orientador Joo Paulo de
Faria Santos por toda a ateno, compreenso
e apoio prestado nos ltimos meses.
A todos que contriburam para a realizao
desse trabalho, meus sinceros agradecimentos.
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H homens que lutam um dia e so bons.
H outros que lutam um ano e so melhores.
H os que lutam muitos anos e so muito bons.
Porm, h os que lutam toda a vida.
Esses so os imprescindveis.
Bertolt Brecht
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RESUMO
O presente trabalho tem por principal objetivo a anlise do processo de regularizao das
reas pblicas rurais do Distrito Federal que foram concedidas aos produtores rurais por meio
de contratos de arrendamento e de concesses de uso e a importncia da posse agrria nesse
processo. Para tanto, feita uma anlise da transferncia da capital federal para a regio
Centro-Oeste, do processo de ocupao do Distrito Federal, com a vinda de produtores rurais
de diversas regies do pas com o objetivo de criao de um cinturo verde em torno de
Braslia e da tentativa de desapropriao das reas que abrigariam o Distrito Federal, com
vistas a torn-las pblicas. No entanto, por uma srie de motivos, tal desapropriao no
ocorreu de maneira completa, o que gerou ao Distrito Federal uma complexa estrutura
fundiria, composta por terras de naturezas jurdicas diversas. Analisa-se uma dessas
situaes fundirias do Distrito Federal, a das terras pblicas concedidas por contratos de
arrendamento e concesses de uso aos produtores rurais e todo o processo de sua
regularizao, com anlise das leis pertinentes ao tema. Os contratos de arrendamento e
concesses de uso que os produtores rurais do Distrito Federal possuam foram considerados
ilegais, o que gerou insegurana jurdica aos produtores rurais. Aps vrios debates e
manifestaes, foi publicada a lei n 12.024/09, a qual surgiu com o objetivo de regularizar a
ocupao e explorao das terras pblicas rurais do Distrito Federal. Tal lei demonstra a
importncia da posse agrria no processo de regularizao das reas rurais do DF e o quanto o
elemento trabalho foi preponderante para a regularizao dessas reas.
Palavras-chave: Transferncia da capital. Incompleta desapropriao. Complexa estrutura
fundiria. Regularizao das reas pblicas rurais. Posse agrria.
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SUMRIO
INTRODUO........................................................................................................................ 8
1. HISTRIA DO DISTRITO FEDERAL.........................................................................11
1.1 Transferncia da capital para o Centro-Oeste brasileiro................................................... 11
1.2 Ocupao do Distrito Federal e a desapropriao das dcadas de 50 e 60....................... 14
2. ESTRUTURA FUNDIRIA DO DISTRITO FEDERAL E CONCEITOS
JURDICOS PRELIMINARES...................................................................................... 20
2.1 Terras particulares e a propriedade.................................................................................... 21
2.2 Terras devolutas e a possibilidade de usucapio............................................................... 24
2.3 Terras pblicas e a posse................................................................................................... 30
2.3.1 Origens e as teorias clssicas e sociolgicas da posse................................................. 30
2.3.2 Funo social da posse e o conceito de posse agrria.................................................. 36
2.3.3 Posse em reas pblicas e os instrumentos jurdicos para a utilizao dos bens pblicos
pelos particulares.........................................................................................................39
3. CUMPRIMENTO DA FUNO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE
RURAL NAS REAS PBLICAS RURAIS DO DISTRITO FEDERAL E O SEU
PROCESSO DE REGULARIZAO........................................................................... 43
3.1 Consideraes iniciais acerca das reas rurais do Distrito Federal................................... 44
3.2 Os contratos de arrendamento e concesses de uso e a inconstitucionalidade do Decreto
distrital n 19.248/98.......................................................................................................... 45
3.3 Cumprimento da funo social da posse e da propriedade rural e a regularizao das reas
pblicas rurais do Distrito Federal por meio de alienao e ou concesso de direito real de
uso...................................................................................................................................... 49
CONCLUSO........................................................................................................................ 55
REFERNCIAS..................................................................................................................... 59
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8
INTRODUO
O tema analisado na presente monografia decorre da necessidade de compreenso
da complexa estrutura fundiria do Distrito Federal e do processo de regularizao de suas
reas pblicas rurais, assunto amplamente debatido nos ltimos anos pelo Governo do Distrito
Federal, produtores rurais e demais lideranas do setor.
A monografia est dividida em trs captulos. No primeiro captulo feita uma
anlise da histria do Distrito Federal, da transferncia da capital do pas do Rio de Janeiro
para o Planalto Central e do processo de ocupao de Braslia. A ideia de transferncia da
capital do pas para o Planalto Central foi concebida muito antes do projeto idealizado por
Juscelino Kubitschek. Diversos estudiosos e exploradores vislumbravam a ideia de levar a
capital federal ao centro do pas como uma forma de promover a interiorizao e o
desenvolvimento econmico dessa regio. Braslia era vista como uma oportunidade de
crescimento e melhores condies de vida. Por essa razo, o processo de ocupao da cidade
ocorreu de maneira muito rpida, e em poucos anos a capital alcanou um grande contingente
populacional, o qual no era previsto e esperado pelos seus idealizadores.
O primeiro captulo da monografia tambm objetiva explicar o porqu da
necessidade de criao de um cinturo verde em torno de Braslia e o porqu do incentivo
do Governo aos produtores rurais das mais diversas regies do pas para que viessem explorar
o Planalto Central. Alm disso, feita uma anlise da desapropriao efetuada nas dcadas de
50 e 60 das reas que comporiam o quadriltero que abrigaria o Distrito Federal. Tal
desapropriao tinha por escopo tornar pblicas todas as reas que circundariam a nova
capital. No entanto, por uma srie de motivos elencados no captulo, a desapropriao
ocorreu de maneira incompleta e parcial, o que acabou refletindo em vrios aspectos da atual
situao fundiria do Distrito Federal.
O segundo captulo traz as consequncias dessa incompleta desapropriao
realizada nos primrdios da criao de Braslia, a qual fez com que o Distrito Federal
adquirisse uma complexa estrutura fundiria que o diferenciou de todos os demais Estados do
pas, possuindo terras no desapropriadas, terras desapropriadas em comum, nas quais a
desapropriao foi efetuada de maneira parcial e terras desapropriadas passveis de
regularizao. Alm disso, para melhor compreenso dessa complexa estrutura fundiria, que
engloba terras particulares, terras devolutas e terras pblicas que foram cedidas por contratos
de arrendamentos e concesses de uso, alm de terras pblicas que foram ocupadas de
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9
maneira ilegal, feita, no segundo captulo, uma anlise detalhada de alguns institutos e
conceitos jurdicos pertinentes ao entendimento de cada uma dessas terras de naturezas
jurdicas diversas, como propriedade, posse, que inclui a pesquisa de posse em reas pblicas
e posse agrria, usucapio de terras devolutas e instrumentos jurdicos para utilizao de bens
pblicos pelos particulares.
Por fim, no captulo trs, destaca-se uma das situaes fundirias existentes no
Distrito Federal: a das reas pblicas rurais concedidas aos agricultores por meio de contratos
de arrendamento e posteriores concesses de uso. Cumpre salientar que o objetivo da presente
monografia a anlise do processo de regularizao dessas reas, as quais foram objeto de
calorosas discusses entre produtores rurais, Governo do Distrito Federal e lideranas
polticas.
O captulo trs traz algumas consideraes iniciais sobre as reas rurais do
Distrito Federal, como se deu sua criao e como est estruturada, atualmente, a rea rural do
DF. Aps as consideraes iniciais, faz-se uma anlise de todo o processo legislativo e
jurdico de regularizao das reas pblicas rurais do Distrito Federal, com uma breve
discusso sobre a posse agrria e sua importncia no caso das reas pblicas rurais do Distrito
Federal.
Quando o Governo incentivou a vinda de agricultores para formao de um
cinturo verde que garantisse alimentos populao, utilizou-se o sistema de arrendamento
das reas pblicas. Tal sistema perdurou at o ano de 1998, momento em que o Decreto
19.248/98 estipulou que as reas rurais seriam exploradas atravs de concesso de uso.
Durante todo o perodo em que ocuparam a rea pblica rural, os agricultores do Distrito
Federal cumpriram o objetivo para o qual foram convidados a vir para a nova capital,
garantindo abastecimento de alimentos e funo social propriedade rural.
No entanto, em 2007, no julgamento da ADI n 2006.002.004.311-04, foi
declarado inconstitucional o Decreto distrital n 19.248/98, de natureza autnoma, que
autorizava a concesso de uso. A partir desse momento, todos os contratos de concesso de
uso das reas rurais foram considerados ilegais, decidindo-se pela realizao de licitao
dessas reas a qualquer pessoa interessada na sua explorao.
O agricultor do Distrito Federal, ocupante da terra rural h muitos anos, enfrentou
grande insegurana jurdica e temor frente a essa nova situao, realizando diversas
mobilizaes e debates com vistas a assegurar uma regularizao justa das reas que
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ocupavam. Assim, teve incio o processo de regularizao das reas pblicas rurais, o qual
culminou na publicao da lei 12.024/09.
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1 HISTRIA DO DISTRITO FEDERAL
1.1 Transferncia da capital para o Centro-Oeste brasileiro
A ideia de se transferir a capital do Brasil para o Centro-Oeste brasileiro j existia
antes da prpria construo de Braslia na dcada de 60. Atribui-se ao Marqus de Pombal a
primeira ideia de localizar a capital do Brasil no at ento inexplorado Planalto Central. O
cartgrafo italiano Francesco Tosi Colombina, explorador e gegrafo, foi contratado pelo
Marqus de Pombal para elaborar um plano geogrfico de Gois e com ele demonstrar o valor
estratgico e econmico do Centro Oeste brasileiro1.
O lder Tiradentes, juntamente com os inconfidentes mineiros, tinha como um de
seus objetivos a mudana da capital do Brasil para So Joo Del Rei. Segundo o movimento
da Inconfidncia Mineira, essa transferncia, alm de gerar segurana para a capital,
promoveria um povoamento do interior do pas, o que possibilitaria uma expanso da
economia e do desenvolvimento dessa regio. No ano de 1821, Jos Bonifcio de Andrada e
Silva sugeriu a criao de uma cidade para a Corte no interior do pas, aproximadamente na
latitude de 15. Aps a Independncia, em sesso da Assembleia Geral Constituinte, leu-se o
memorial de Jos Bonifcio de Andrada e Silva, o qual sugeria a transferncia da capital para
a cidade de Paracatu do Prncipe, em Minas Gerais. Para tanto, sugere os nomes Petrpolis ou
Braslia2.
Em 1877, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (Visconde de Porto
Seguro) explorou, a cavalo, o Planalto Central, em busca de um local para a instalao da
nova capital. Sugeriu, na poca, que a construo da capital fosse feita nas vizinhanas do
Tringulo entre as lagoas Formosa, Feia e Mestre D'Armas3.
O padre Dom Bosco, em 1883, tem uma viso proftica, na qual vislumbra a
capital da Repblica entre os paralelos 15 e 20, momento em que uma voz lhe diz: ...
quando vieres escavar os minerais ocultos no meio destes montes, surgir aqui a Terra da
Promisso, fluente de leite e mel. Ser uma riqueza inconcebvel"4.
1 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.
2 Tudo sobre o Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.
3 SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em http://www.mundo
juridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=856> Acesso em 27 mar. 2012. 4 Histria de Braslia. Disponvel em: < http://www. infobrasilia.com.br/bsb_h1p.htm> Acesso em 27 mar.
2012.
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A partir desse momento, teve incio o projeto para concretizao da construo da
capital no Planalto Central. A Primeira Constituio da Repblica estabeleceu a mudana da
capital:
Art. 3 - Fica pertencendo Unio, no planalto central da Repblica, uma
zona de 14.400 quilmetros quadrados, que ser oportunamente demarcada
para nela estabelecer-se a futura Capital Federal.
Pargrafo nico Efetuada a mudana da Capital, o atual Distrito Federal
passar a constituir um Estado.5
Em 1892, Floriano Peixoto institui a Comisso Exploradora do Planalto Central
do Brasil. A Comisso foi chefiada pelo engenheiro belga Luiz Cruls, ao qual foram
atribudas as funes de analisar e de realizar a demarcao da rea da nova capital.
Juntamente com gegrafos e engenheiros, foi demarcada uma rea de 14.400 km, com base
no Decreto Legislativo n 494, de 18 de janeiro de 1922 e no art. 3 da Constituio Federal
de 1891. A rea demarcada ficou conhecida por Quadriltero Cruls, e a expedio foi
intitulada Misso Cruls, sendo a primeira expedio oficial organizada para dar incio ao
sonho da transferncia da capital para o centro do pas6.
Nos anos que se seguiram Misso Cruls, os deputados federais Americano do
Brasil e Rodrigues Machado propuseram o lanamento da pedra fundamental da futura capital
no Planalto Central, o que acabou ocorrendo em 07 de setembro de 1922, no dia da
comemorao do centenrio da Independncia, prximo Planaltina. A pedra fundamental
instalada representou um marco expressivo para a concretizao do sonho de interiorizao da
capital7.
A Constituio da Repblica de 16 de julho de 1934, no art. 4 das Disposies
Transitrias, reservou lugar ao ideal de transferncia da capital:
Art. 4. Ser transferida a Capital da Unio para um ponto central do Brasil.
O Presidente da Repblica, logo que esta Constituio entrar em vigor,
nomear uma Comisso, que, sob instrues do Governo, proceder a
estudos de vrias localidades adequadas instalao da Capital. Concludos
tais estudos, sero presentes Cmara dos Deputados, que escolher o local
e tomar sem perda de tempo as providncias necessrias mudana.
Efetuada esta, o atual Distrito Federal passar a constituir um Estado.
Pargrafo nico. O atual Distrito Federal ser administrado por um Prefeito,
cabendo as funes legislativas uma Cmara Municipal, ambos eleitos por
sufrgio direto sem prejuzo da representao profissional, a forma que for
estabelecida pelo Poder Legislativo federal na Lei Orgnica. Estendem-se-
lhe, no que lhes forem aplicveis, as disposies do art. 12. A primeira
5 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 24.02.1891.
6 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.
7 Ibidem.
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13
eleio para presidente ser feita pela Cmara Municipal em escrutnio
secreto.8
Com o Estado Novo e a Constituio imposta pelo Governo de Getlio Vargas, a
qual ficou conhecida como "A Polaca", ficou de fora do texto constitucional a transferncia da
capital para o interior. Em 1939, o engenheiro Coimbra Bueno sugere ao Presidente Getlio
Vargas a retomada da interiorizao, o qual, em 1940, deu incio Marcha Rumo ao Oeste.
A ideia de transferncia da capital foi corroborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica (IBGE), o qual se posicionou a favor da transferncia, alegando que ela deveria
acontecer por motivos de segurana nacional9.
Com o fim do Estado Novo foi promulgada a quarta Constituio Republicana, de
18 de setembro de 1946, a qual manteve os objetivos da Constituio anterior ao estipular
prazos para a mudana da capital:
ATO DAS DISPOSIES CONSTITUCIONAIS TRANSITRIAS
Art 4. A Capital da Unio ser transferida para o Planalto Central do Pas.
1 . Promulgado este Ato, o Presidente da Repblica, dentro em sessenta
dias, nomear uma Comisso de tcnicos de reconhecido valor para proceder
ao estudo da localizao da nova Capital.
2 . O estudo previsto no pargrafo antecedente ser encaminhado ao
Congresso Nacional, que deliberar a respeito, em lei especial, e estabelecer
o prazo para o incio da delimitao da rea a ser incorporada ao domnio da
Unio.
3 . Findos os trabalhos demarcatrios, o Congresso Nacional resolver
sobre a data da mudana da Capital.
4 - Efetuada a transferncia, o atual Distrito Federal passar a constituir o
Estado da Guanabara.10
Em 1953, aps as devidas anlises, foi aprovada a Lei n 1.803, a qual autorizou o
Poder Executivo a proceder com os estudos definitivos e necessrios para a definio do local
da nova capital. A primeira providncia tomada foi a contratao das sociedades empresrias
Cruzeiro do Sul Aerofotogrametria e Donald J. Belcher and Associates Incorporated, com o
objetivo de colher dados suficientes para a escolha do melhor local a ser instalada a nova
capital. Para tanto, elas se utilizaram de modernas tcnicas de fotointerpretao e diagnsticos
detalhados da topografia, geologia, drenagem, solos para engenharia, para agricultura e para
utilizao da terra, o que resultou o Relatrio de Belcher11
.
8 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 16.07.34.
9 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.
10 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL de 18.09.46.
11 Histria do Centro-Oeste. Disponvel em: < http://www.gdf.df.gov.br> Acesso em: 27 mar. 2012.
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14
No ano de 1956, o j ento presidente Juscelino Kubitschek prope ao Congresso
a criao da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, a NOVACAP, a qual teria por
finalidades principais o controle de terras, dos contratos, das concorrncias, da aquisio de
materiais, do planejamento e execuo da construo da nova capital. Em 19 de setembro de
1956, Juscelino Kubitschek sanciona a lei n 2.874, a qual dispe sobre a mudana da capital
federal, cujo nome escolhido acabou sendo Braslia. Finalmente, no ano de 1960,
inaugurada a nova capital no Centro do Brasil12
.
Nos anos seguintes, objetivando agilizar o processo de ocupao do Distrito
Federal, foi criada a Companhia Imobiliria de Braslia - TERRACAP, que sucedeu a
NOVACAP, assumindo direitos e obrigaes desta na execuo das atividades imobilirias de
interesse do Distrito Federal. Assim, o atual patrimnio imobilirio do DF pertence
TERRACAP, empresa pblica que administra bens imveis pblicos. Nesse sentido, a Lei n
5.861/72, determinou que do capital social original da TERRACAP participam o Distrito
Federal com 51% e a Unio com 49%.
1.2 Ocupao do Distrito Federal e a desapropriao das dcadas de 50 e 60
O processo de migrao para a regio Centro-Oeste do Brasil teve seu incio antes
mesmo da transferncia da capital, ainda no governo de Getlio Vargas, quando este realizou
a Marcha para o Oeste. At aquele momento, a maioria da populao brasileira se
encontrava na rea litornea do pas. O interior do Brasil era pouco explorado e habitado, e o
pas necessitava povo-lo, especialmente as reas que hoje abrigam os estados de Gois, de
Mato Grosso, do Amazonas e do Acre. Com a proposta de mudana da capital federal para o
centro do pas, a possibilidade de povoamento do interior do Brasil e consequentes
desenvolvimento e segurana nacional adquiriram contornos reais13
. Afirmou Juscelino
Kubitschek:
A fundao de Braslia um ato poltico, cujo alcance no pode ser
ignorado por ningum. a marcha para o interior, em sua plenitude. a
completa consumao da posse da terra. Vamos erguer, no corao do nosso
Pas, um poderoso centro de irradiao de vida e de progresso.14
12
Histria de Braslia. Disponvel em: < http://www. infobrasilia.com.br/bsb_h1p.htm> Acesso em 27 mar.
2012. 13
PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo
possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.
Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,
Braslia, 2007. 14
VASCONCELOS, Adirson. A epopia da construo de Braslia. Centro Grfico do Senado. Braslia, 1989.
-
15
Quando Braslia foi criada, j havia aproximadamente quinze mil pessoas
morando nas reas que hoje abrigam Planaltina e Brazlndia. Nesse perodo, a migrao para
Braslia teve seu auge, motivada especialmente pela necessidade de pessoas para trabalharem
nas obras de construo da nova capital15
. No entanto, mesmo aps a inaugurao de Braslia,
o processo de ocupao do Distrito Federal foi rpido, graas aos incentivos do governo para
que as pessoas viessem ocupar essa regio do pas quanto pelo prprio desejo de melhores
oportunidades de vida.
O projeto original de Braslia foi planejado pelo urbanista Lcio Costa. Esse
projeto previa a criao de dois ncleos urbanos, o Plano Piloto e as cidades-satlites,
atualmente conhecidas como Regies Administrativas, as quais s seriam concretizadas em
um momento posterior, quando a demanda por habitao no pudesse mais ser satisfeita
apenas pelos imveis da regio central da cidade. As cidades-satlites, portanto, no foram
pensadas para surgir junto com a capital federal, mas em um momento posterior, no qual a
Administrao elaboraria um projeto urbanstico especfico e adequado a cada uma16
.
A cidade de Braslia foi projetada para ter a forma de um avio. As Asas Sul e
Norte seriam reservadas s reas residenciais. O centro seria destinado a abrigar a
administrao federal e o Governo do Distrito Federal. Na praa dos Trs Poderes estaria a
sede dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, alm dos Ministrios. A cidade abrigaria
prdios de at seis andares e ruas divididas em quadras arborizadas sem muros ou cercas17
. As
quadras serviriam para acomodar os candangos que ajudaram a construir Braslia, bem como
suas famlias.
Tal planejamento, no entanto, no se concretizou. Esses candangos acabaram se
instalando nas reas perifricas da cidade de Braslia, o que gerou a criao das cidades-
satlites, denominadas atualmente de Regies Administrativas, antes do planejado, sem que
houvesse qualquer interveno ou controle pela Administrao Pblica no sentido de um
plano de urbanizao18
. Dessa forma, as cidades-satlites se tornaram ncleos perifricos ao
15
SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em
http:/www.mundojurdico.adv.br/sis_artigos. Acesso em 27 mar. 2012. 16
SAVI, Aline Alves. A licitao dos lotes vazios e dos lotes comerciais nos condomnios irregulares do
Distrito Federal. 2010. 56 f. Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro
Universitrio de Braslia, Braslia, 2010. 17
PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo
possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.
Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,
Braslia, 2007. 18
SAVI, op. cit., p. 8.
-
16
redor do Plano Piloto. Criaram-se, assim, paralelamente ao projeto inicial de Braslia, novos
ncleos habitacionais, conforme entendimento de Hlio Andrade de Silva19
:
A 'Cidade Livre', posteriormente denominada Ncleo Bandeirante, surgiu em
1956 para alojar os trabalhadores da construo civil. Taguatinga foi criada
em 1958, decorrente da necessidade de remanejar os alojamentos dos
trabalhadores da obra da Barragem do Lago Parano. Gama e Sobradinho
surgiram em 1960. O Guar I foi criado em 1969, a princpio para alojar
funcionrios da Novacap e de outros rgos do Distrito Federal. O Guar II
foi criado em 1973. A Ceilndia formou-se em 1971, como um 'Centro de
Erradicao de Invases - CEI', numa tentativa para conter as j gritantes
invases de reas pblicas, que ocorriam na poca.
A primeira cidade satlite do Distrito Federal foi Taguatinga, criada no final da
dcada de 50. Nesse perodo, j existia a denominada Cidade Livre, hoje Ncleo
Bandeirante. Essa regio experimentou grande inchao populacional, o que fez com que o
presidente Juscelino realizasse uma transferncia do povoado para a regio que futuramente
seria Taguatinga, objetivando abrigar operrios que chegavam de vrios lugares do pas para a
construo da Capital. Taguatinga experimentou um rpido crescimento dentro de um curto
perodo, passando de 10 mil para 30 mil pessoas em apenas seis meses20
.
A cidade de Sobradinho foi criada no final de 1959 e surgiu com caractersticas
eminentemente rurais. O Ncleo Bandeirante, por sua vez, foi criado para ter durao
provisria, apenas enquanto durasse a construo de Braslia. O Gama nasceu em decorrncia
da mudana da populao de acampamentos localizados perto do Plano Piloto21
.
As cidades de Planaltina e Brazlndia eram cidades goianas que foram
incorporadas ao Distrito Federal, portanto, j existiam antes mesmo da criao de Braslia.
Todavia, com a criao da nova capital, experimentaram um grande crescimento
populacional. O Guar, seguindo a mesma linha de outras cidades-satlites, surgiu com o
objetivo de resolver a falta de moradia, especialmente entre os funcionrios da prpria
NOVACAP. Assim como as demais, a cidade cresceu muito em pouco tempo. Ceilndia, por
fim, nasce com o objetivo de acolher as mais de centenas de pessoas que estavam vivendo
em situao de extrema pobreza22
.
19
SILVA, op. cit. 20
PAIXO, Darleth Lousan do Nascimento. Propriedade e funo social: a venda direta como soluo
possvel de regularizao da ocupao desordenada de terras pblicas no Distrito Federal. 2007. 73 f.
Monografia (graduao) Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,
Braslia, 2007. 21
Ibidem, p. 17. 22
Ibidem, p. 18.
-
17
Ao analisar o surgimento das cidades-satlites, percebe-se que estas foram sendo
criadas com o objetivo, quase que unnime, de resolver o problema das ocupaes ilegais da
rea central de Braslia e da extrema carncia da populao que veio para trabalhar nas obras
da construo de Braslia, assim como das pessoas que vieram nova capital motivadas pelos
ideais de melhores condies de vida e de trabalho.
Toda essa populao, no entanto, significava aumento da demanda por alimentos.
A nova capital foi instalada em um local at ento inspito e distante dos centros produtivos.
Os nicos alimentos que abasteciam os primeiros habitantes da nova capital tinham que vir de
outros estados, como So Paulo, o que prejudicava a qualidade da comida e encarecia o preo
dos alimentos. Objetivando resolver esse problema e garantir alimentao barata e de
qualidade, o governo passou a incentivar a vinda de produtores rurais de outros Estados para
aqui desenvolverem suas atividades produtivas e gerarem alimentos populao da nova
capital. Na rea rural do Distrito Federal o governo estabeleceu um cinturo verde que
possibilitou o abastecimento de produtos hortifrutigranjeiros para a populao23
.
A estratgia encontrada para a implantao de um plano urbanstico e para a
consolidao de projetos agropecurios que pudessem assegurar alimentos de qualidade, mais
baratos e que garantissem abastecimento seguro e permanente para a populao foi a
realizao de uma desapropriao de todas as reas que circundavam o local que futuramente
abrigaria a capital do pas e o Distrito Federal24
.
Esse processo de desapropriao teve incio antes mesmo da inaugurao da nova
capital. Quando da definio da rea do quadriltero que corresponderia ao Distrito Federal, o
Governo iniciou o processo de desapropriao de todas as fazendas que existiam no local25
.
A ideia inicial da desapropriao das terras que compunham o quadriltero do
Distrito Federal era evitar a especulao imobiliria e promover o abastecimento da
populao com produtos agropecurios bsicos. Inicialmente, com o objetivo de implantao
de um processo de produo de produtos agrcolas de forma integrada e eficiente para
abastecimento da populao urbana, e em razo das distintas vocaes zonais do territrio,
foram parcelados e dimensionados diversos ncleos rurais com tamanhos adequados a cada
23
SILVA, Hlio de Andrade. Os problemas fundirios do Distrito Federal. Disponvel em http://www.mundo
juridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=856> Acesso em 27 mar. 2012. 24
Ibidem. 25
Situao fundiria e parcelamento do solo. Disponvel em http:/www.distritofederal.df.gov.br/sites.
Acesso em 27 de mar. 2012.
-
18
tipo de solo e explorao agropecuria pretendida. Todavia, a realidade da desapropriao foi
outra26
.
O processo de desapropriao das reas que formavam o quadriltero que
abrigaria o Distrito Federal no foi realizado de maneira completa. Entre outras razes,
destacam-se a premncia de se instalar a nova capital na data estipulada por Juscelino
Kubitschek, a precariedade dos registros imobilirios dos imveis a serem desapropriados e a
intensa especulao imobiliria ocorrida na regio27
.
Para a realizao da desapropriao, foi instituda a Comisso de Cooperao para
a Mudana da Capital, presidida por Altamiro de Moura Pacheco, com os objetivos de
desapropriar as fazendas inscritas na rea de 14.400km que comporiam a base fsica do
Distrito Federal e realizar um estudo histrico e jurdico da cadeia dominial das fazendas
situadas na regio28
.
A Comisso, quando do incio de suas atividades, defrontou-se com um grande
movimento especulativo em torno dos preos das terras na regio, inclusive com notcia de
loteamentos registrados anteriormente implantao da capital, bem como com a dificuldade
de obteno de informaes consistentes sobre os limites das propriedades tombadas nos
registros dos imveis. Alm disso, as pesquisas realizadas pela Comisso revelaram a
presena de terras devolutas e ausncia de documentao por parte dos ocupantes, o que
prejudicou o levantamento de registros imobilirios29
. Toda essa situao gerou imensos
transtornos para a desapropriao das terras do Distrito Federal.
No ano de 1958, somente cento e setenta fazendas haviam sido efetivamente
desapropriadas para a implantao do Distrito Federal, sendo que as que guardavam maior
proximidade com o Plano Piloto de Braslia foram as que receberam prioridade no processo
de desapropriao. Aps a inaugurao da nova capital, especialmente na dcada de 1960, o
Governo tentou dar continuidade ao processo de desapropriao dos imveis particulares no
DF. Esse perodo, porm, foi marcado por grande restrio oramentria, fruto dos gastos com
a construo da capital, o que ocasionou a diminuio do ritmo das desapropriaes
26
Ibidem. 27
Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 28 mar. 2012. 28
Ibidem. 29
Ibidem.
http://www.zee-df.com.br/
-
19
realizadas. Essa situao perdurou pelas dcadas seguintes e impossibilitou o projeto de tornar
efetivamente pblicas todas as terras do Distrito Federal30
.
Em decorrncia da desapropriao feita de maneira incompleta e parcial, alm da
incerteza acerca da propriedade e dos limites territoriais das fazendas que compem o Distrito
Federal, este passou a sofrer, e sofre at hoje, de uma intensa desordem fundiria.
O objetivo inicial do Governo Federal era efetuar a total desapropriao das terras
no DF. No entanto, estudos realizados pela TERRACAP em 1996 identificaram
aproximadamente 51,4% das terras integralmente desapropriadas, 33,3% de terras
particulares, 8,5% de terras desapropriadas parcialmente (aquelas que foram desapropriadas
sem que houvesse definio clara das parcelas que so pblicas e das parcelas que so
privadas) e 6,8% de terras ainda em processo judicial de desapropriao31
.
Ao analisar o histrico da transferncia da capital para o Planalto Central e o seu
processo de ocupao, percebem-se vrias falhas que acabaram ocasionando problemas atuais
ao Distrito Federal. Atualmente, uma das questes mais crticas do DF diz respeito aos
diversos conflitos fundirios, sejam rurais ou urbanos, os quais tm como pano de fundo a
incompleta desapropriao de terras para a construo da capital. O intuito de estabelecer
como pblicas todas as terras que viriam a constituir a base territorial do Distrito Federal j
existia desde a Constituio Federal de 1891. No entanto, a realidade demonstra que tal
objetivo no se concretizou. Somado a isso, a impreciso dos registros das fazendas
localizadas aqui no DF e a evoluo da populao, nos ltimos anos, tem contribudo para a
ocorrncia de conflitos fundirios e dificuldade de regularizao das reas rurais e urbanas
que compem o Distrito Federal.
30
Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 28 mar. 2012. 31
Regularizao fundiria em imveis da Unio no Distrito Federal. Disponvel em http://.dpi.inpe.br.
Acesso em 28 mar. 2012.
http://www.zee-df.com.br/http://.dpi.inpe.br/
-
20
2 ESTRUTURA FUNDIRIA DO DISTRITO FEDERAL E CONCEITOS JURDICOS PRELIMINARES
O incompleto processo de desapropriao ocorrido nas dcadas de 50 e 60 do
sculo XX, a falta de discriminao correta das terras do Distrito Federal e da definio dos
limites entre o pblico e o privado, bem como a indefinio das fazendas e das reas que
compem o Distrito Federal, esto no centro da problemtica existente ao redor dos conflitos
fundirios do DF, seja nas reas urbanas, seja nas reas rurais.
Como consequncia, o Distrito Federal adquiriu uma estrutura fundiria que o
diferenciou de todos os demais Estados do pas. Segundo dados do PDOT-2009, a situao
fundiria do Distrito Federal complexa e abrange terras de naturezas jurdicas diversas,
quais sejam32
:
a) Terras particulares, registradas em Cartrio de Registro de Imveis em nome
do particular, que possui escritura da rea.
b) Terras devolutas, nas quais a propriedade desconhecida, no sendo
abrangidas por domnio particular por qualquer ttulo legtimo e que no foram
objeto de causas discriminatrias.
c) Terras Pblicas, que se dividem em: 1) Terras pblicas que foram cedidas por
contratos de arrendamento e/ou concesso de uso aos produtores rurais; 2)
Terras pblicas que sofreram invaso.
d) Terras em regime de propriedade comum adquiridas pela TERRACAP, nas
quais o Poder Pblico desapropriou parcialmente a gleba sem definir os limites
da propriedade pblica ou privada.
Para melhor compreenso dessa complexa estrutura fundiria do Distrito Federal,
composta por terras de naturezas jurdicas diversas, englobando terras particulares, terras
devolutas e terras pblicas que foram cedidas por contratos de arrendamentos e concesses de
uso, alm de terras pblicas que sofreram processo de invaso, faz-se necessrio a anlise
detalhada de cada uma delas, bem como a anlise de alguns institutos jurdicos referentes a
elas , quais sejam: Propriedade, posse, usucapio de terras devolutas e instrumentos jurdicos
para utilizao de bens pblicos pelos particulares.
32
Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012.
http://www.zee-df.com.br/
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21
2.1 Terras particulares e a propriedade
Como j mencionado, a desapropriao realizada no Distrito Federal ocorreu de
forma incompleta. Apesar do objetivo de tornar todas as reas que circundavam o DF
pblicas, algumas dessas reas continuaram sob o domnio de particulares, que at hoje detm
a escritura sobre elas. Estima-se que 3.883 reas do Distrito Federal possuam escritura
definitiva33
.
A rea rural que est sob o domnio do particular remete ao conceito e anlise do
instituto jurdico da propriedade, bem como a funo social que ela deve cumprir, mormente a
propriedade rural.
Segundo Ivan Chemeris34
, a propriedade uma das mais importantes instituies
jurdicas, pois reflete a opo das sociedades no que diz respeito ao modo de gerao e
distribuio de riquezas.
As condies econmicas e polticas de cada perodo foram fatores essenciais que
determinaram a origem e o desenvolvimento dos fundamentos da propriedade. Em cada
poca, esse instituto assumiu diferentes contornos, conforme as relaes econmicas e sociais
vigentes em cada momento35
. Ao se estudar a evoluo do Direito Ocidental, todavia,
percebe-se que a propriedade, em sua essncia, sempre se caracterizou por ser o exerccio de
um poder jurdico de carter soberano e privativo de algum sobre uma coisa determinada36
.
Apesar de ser um instituto jurdico de tamanha importncia para as relaes
sociais, econmicas e polticas, dificilmente se lograr xito ao se admitir a existncia de um
conceito nico e inflexvel de propriedade, pois esta sofre um permanente processo de
transformao, sendo cada vez mais dinmicos os seus poderes37
.
No se conhece na doutrina e nos Cdigos uma definio do direito de
propriedade, muito embora o artigo 1.228 do Cdigo Civil, ao anunciar seu contedo, traga
uma conceituao: O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
33
Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012. 34
CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So
Leopoldo: Unisinos, 2002. 35
FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e da propriedade contempornea: uma perspectiva da
usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 36
COMPARATO, Fabio Konder. Direito e deveres fundamentais em matria de propriedade. In:
STROZAKE, Juvelino Jos (Org.). A questo agrria e a justia; So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 37
MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001.
http://www.zee-df.com.br/
-
22
Atualmente, a propriedade apresenta um dinamismo nunca antes visto e torna-se
imperativa a sua anlise baseando-se no apenas na sujeio de uma coisa ao seu titular, mas
sim no interesse social que esta revela38
.
Nesse sentido, a Constituio Federal estabelece, no seu art. 5, que a propriedade
dever atender a sua funo social:
Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a
inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e
propriedade, nos termos seguintes:
XXI garantido o direito de propriedade;
XXII a propriedade atender a sua funo social.
Marquesi39
define funo social da propriedade como os requisitos de direito
pblico relativos ordem econmica que o titular de um imvel urbano ou rural dever seguir
quando estiver no exerccio dos seus poderes de domnio. Nesse sentido, a funo social da
propriedade corresponde a um dever-direito do titular do bem, que dever exercer seus
direitos individuais sobre a coisa com vistas s necessidades coletivas.
Dessa forma, percebe-se que no existe mais a possibilidade de se admitir que o
titular empregue seu imvel com fins puramente individuais. Ao contrrio, cumpre ao titular
de um bem us-lo de forma til sociedade, empregando-o como um instrumento de gerao
de riquezas.
De um lado, portanto, o direito de propriedade obriga os demais indivduos a no
interferirem na maneira com que o proprietrio exerce titularidade sobre um bem, porm, em
contrapartida, tem-se que a funo social vincula o proprietrio para que este utilize a coisa
em seu domnio com vistas ao bem estar coletivo40
.
Especificamente em relao ao cumprimento da funo social da propriedade
rural, positivou o Estatuto da Terra as condies para o cumprimento da funo social dessas
propriedades, explicitadas no 1 do art. 2, que dispe:
Artigo 2. assegurada a todos a oportunidade de acesso propriedade da
terra, condicionada pela sua funo social, na forma prevista nesta lei.
1. A propriedade da terra desempenha integralmente a sua funo social
quando, simultaneamente:
a) Favorece o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famlias;
38
MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001. 39
Ibidem, p. 96. 40
CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So
Leopoldo: Unisinos, 2002.
-
23
b) Mantm nveis satisfatrios de produtividade; c) Assegura a conservao dos recursos naturais; d) Observa as disposies legais que regulam as justas relaes de trabalho
entre os que a possuem e a cultivam.
A Constituio Federal de 1988 tratou expressamente da funo social da
propriedade rural no seu art. 186, acrescentando s condies elencadas pelo Estatuto da Terra
para o cumprimento da funo social da propriedade a proteo ao meio ambiente:
Artigo 186. A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I aproveitamento racional e adequado;
II utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do
meio ambiente;
III observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;
IV explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos
trabalhadores.
A funo social da propriedade rural elencada na Constituio Federal baseada
em quatro fatores. O fator econmico diz respeito ao aproveitamento racional e adequado da
propriedade rural, que ocorrer quando houver, por parte do produtor rural, a utilizao de
tcnicas agrcolas peculiares regio onde se encontra o imvel, de forma a conduzir a uma
explorao eficiente. O fator econmico-ambiental exige uma adequada utilizao dos
recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente. O fator social expressa a
necessidade de uma explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos
trabalhadores. Por fim, o fator humano social definido como o atendimento das necessidades
bsicas dos que desempenham funes ligadas a terra41
.
Percebe-se, diante dos requisitos elencados pela Constituio, que a funo social
da propriedade rural no abarcou apenas a produtividade da terra, mas tambm aspectos
ecolgicos e trabalhistas, ao exigir uma utilizao adequada dos recursos naturais disponveis
e preservao do meio ambiente, alm da observncia das disposies que regulam as
relaes de trabalho. Mais do que nunca, a propriedade rural deixa de ser apenas um meio
para se atingir interesses particulares e passa a ser uma forma de assegurar a todos condies
de vida dignas. Alm disso, deixa de ser apenas um bem patrimonial e passa a ser um bem de
produo, que deve produzir alimentos e matrias-primas. A propriedade passa a implicar,
41
MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrrios e funo social. Curitiba: Juru, 2001.
-
24
para todo o seu titular, a obrigao de empreg-la na produo de riqueza e desenvolvimento
para toda a sociedade42
.
A Constituio Federal atribuiu novos contornos propriedade, fazendo com que
ela sirva de instrumento para concretizao de princpios constitucionais, em especial o da
dignidade da pessoa humana. Dessa forma, no se pode encarar a propriedade apenas pelo seu
aspecto absoluto e individual, mas sim pela importncia social e coletiva que desempenha.
2.2 Terras devolutas e a possibilidade de usucapio
O estudo realizado pela Comisso de Cooperao para a Mudana da capital com
relao cadeia dominial das fazendas que ocupavam a rea que passaria a compor o Distrito
Federal foi concludo em 1958 e revelou a presena de terras devolutas. Segundo o
diagnstico elaborado pelo Zoneamento Ecolgico-Econmico do DF, a estrutura fundiria do
Distrito Federal continua abarcando terras devolutas, nas quais a propriedade desconhecida,
no sendo abrangidas por domnio particular por qualquer ttulo legtimo e que no foram
objeto de ao discriminatria43
.
Segundo Benedito Ferreira Marques44
, vrios conceitos tm sido atribudos ao
instituto das terras devolutas, o qual consagrado na literatura jurdica brasileira desde a Lei
das Terras de 1850. Para o referido autor, o principal objetivo da Lei n 601/1850 foi conferir
titulao a todos os que ocupavam a terra, mas no a possuam. Nesse sentido, a edio dessa
lei se justificou pela necessidade de evitar a perpetuao do regime de posses ilegtimas como
meio de aquisio de propriedade.
Altir de Souza Maia45
define terras devolutas como aquelas que no esto
aplicadas a qualquer uso pblico federal, estadual ou municipal, ou que no estejam
incorporadas ao domnio privado. Importante salientar que a discriminao das denominadas
terras devolutas no atende a uma preocupao do Estado em aumentar o seu patrimnio, mas
sim em regularizar a situao dos posseiros46
.
42
CHEMERIS, Ivan. A funo social da propriedade: o papel do Judicirio diante das invases de terras. So
Leopoldo: Unisinos, 2002. 43
Zoneamento ecolgico econmico do DF. Disponvel em www.zee-df.com.br. Acesso em 29 mar. 2012. 44
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. p. 85. 45
Apud MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. p. 88. 46
RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 9, jan./fev. 1997.
http://www.zee-df.com.br/
-
25
Tendo em vista que a estrutura fundiria do Distrito Federal composta tambm
por terras devolutas, o questionamento pertinente ao presente trabalho monogrfico : Essas
terras devolutas so usucapveis?
O direito usucapio um dos efeitos mais importantes da posse, pois a
maneira pela qual a situao de fato do possuidor ser transformada em direito de
propriedade. No entanto, nem toda posse poder ser convertida em propriedade por meio da
usucapio. Nesse sentido, a posse ad interdicta no se confunde com a posse ad usucapionem,
pois enquanto esta se molda teoria de Ihering, bastando o poder de fato sobre a coisa para
que se possa ajuizar uma causa possessria, aquela afirma ser necessrio acrescentar o animus
domini da teoria subjetiva posse. Assim, qualquer posse permite ao possuidor o ajuizamento
de causas possessrias. No entanto, apenas a posse qualificada pela inteno do dono gera a
aquisio da propriedade pela usucapio47
.
Sobre o assunto, ensina Marcos Aurlio Bezerra de Melo48
:
[...] nem toda posse poder se converter em propriedade pela via da
usucapio, pois se toda posse ad interdicta nem toda o ser ad
usucapionem. A posse ad usucapionem tem que trazer consigo o elemento
subjetivo do animus domini materializado na expresso possuir como seu
(art. 1238 do CCB), alm de ter que ser sem oposio, ininterrupta e incidir
sobre bem usucapvel durante determinado perodo de tempo.
Enquanto a posse o poder de fato sobre a coisa, a propriedade o poder de
direito nela incidente. O fato objetivo da posse, associado ao tempo e verificao dos demais
requisitos legais geram juridicidade a uma situao de fato, transformando-a em propriedade.
A usucapio uma maneira de realizar essa transformao, como um meio jurdico de soluo
de tenses derivadas da confrontao entre posse e propriedade. Assim, um dos fundamentos
da usucapio materializar a propriedade, ocasionando ao proprietrio desidioso com o seu
patrimnio a privao da coisa em benefcio daquele que, aliando tempo e posse, anseie
consolidar e pacificar a sua situao perante a sociedade e o bem49
.
Segundo Marcos Aurlio Bezerra de Melo50
, a segurana jurdica que surge em
decorrncia da paz social de se conferir juridicidade a um fato social que se alonga no tempo
sem a oposio do antigo titular da propriedade tambm fundamenta a usucapio. Nada mais
justo, segundo o entendimento do referido autor, que uma pessoa que atribuiu valor a um bem
47
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 113. 48
MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 44. 49
Ibidem, p. 273. 50
Ibidem, p. 105.
-
26
em razo do trabalho, produo ou moradia seja beneficiado pelo reconhecimento social e
jurdico de ser proprietrio desse bem.
Sendo assim, a usucapio representa uma recompensa quele que por um perodo
expressivo de tempo deu ao bem uma aparente destinao de proprietrio. No entanto,
tambm importa em sano ao proprietrio desidioso e inerte que no tutelou o seu direito em
face da posse exercida por outrem51
.
Tendo em vista a regularizao fundiria rural, merece destaque a usucapio
agrria. Esse instituto jurdico foi criado pela Constituio Federal de 1934 e, a partir da, no
foi esquecido por leis posteriores, exceo da Constituio Federal de 1967 e da Emenda
Constitucional n 1 de 1969, as quais foram omissas em relao usucapio agrria. Vrias
nomenclaturas foram atribudas a esse instituto, desde usucapio agrria, rstica, pr-labore e,
mais atualmente, usucapio especial rural. Importante mencionar que a usucapio agrria se
manteve presente na legislao ordinria, primeiramente no contexto do art. 98 da Lei n
4.504/64 (Estatuto da Terra) e, atualmente, na Lei n 6.969/81, a qual regulou inteiramente a
matria52
.
Essa modalidade de usucapio baseia-se na posse-trabalho, assim compreendida
aquela que se caracteriza pela utilizao econmica do bem possudo por meio do trabalho. O
reconhecimento da posse pelo Estado tem como fator de maior importncia o trabalho, da
dizer que este o fator preponderante da propriedade na sua aquisio pela usucapio53
.
A usucapio agrria tem por objetivo a proteo do trabalhador rural e o fomento
a que ele tenha condies de permanecer no campo54
. Alm disso, objetiva a fixao do
homem no campo, exigindo ocupao produtiva do imvel, devendo neste morar e trabalhar o
usucapiente ou a entidade familiar, e a consecuo de uma poltica agrcola, promovendo-se a
ocupao de reas subaproveitadas, tornando a terra til por produtiva. Nessa modalidade de
usucapio, a funo social da posse mais evidente do que na modalidade da usucapio
urbana, pois a mera pessoalidade da posse pela moradia no conduz aquisio da
51
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 272. 52
Ibidem, p. 315. 53
Ibidem, p. 127. 54
MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 125.
-
27
propriedade se no acompanhada do exerccio de uma atividade econmica, seja ela rural,
industrial ou de mera subsistncia da entidade familiar55
.
Benedito Ferreira Marques56
afirma:
Da abordagem feita sobre a usucapio agrria, conclui-se que se trata do
instituto jurdico da mais alta significao no contexto agrrio e processual.
No agrrio, porque representa mais um meio de titulao de imveis aos que
trabalham a terra, com base na posse-trabalho. E, no campo processual, por
seus aspectos inovadores, explicveis e justificveis pela finalidade social
que encerra.
O artigo 2 da Lei n 6.969/81 abrangia no apenas a possibilidade de obteno de
usucapio rural de reas particulares, como tambm de terras devolutas, que integram o
patrimnio das pessoas federativas, mas no so utilizadas para quaisquer finalidades pblicas
especficas57
.
Segundo entendimento de Humberto Theodoro Junior58
, alm da posse, da
ausncia de oposio e do nimo da posse (posse ad usucapionem), o instituto da usucapio
exige tambm que o objeto seja coisa hbil a essa forma de aquisio dominial originria:
De maneira geral, diz-se que somente as coisas no comrcio podem prestar
usucapio, porque res extra commercium exatamente a expresso utilizada,
tradicionalmente, para designar a coisa que no pode ser incorporada ao
patrimnio individual, nem de fato nem de direito. No entanto, no tem sido
uniforme o tratamento que, sob esse ngulo, se dispensa aos bens pblicos,
mesmo porque a orientao legislativa no se mostra constante e a prpria
natureza desses bens no nica.
Silvio Rodrigues59
sempre defendeu a tese de que os bens pblicos, de qualquer
natureza, no podem ser usucapidos. Segundo o autor, essa convico fruto da letra expressa
da lei no Decreto-Lei n 9.760/46, que dispe sobre os bens imveis da Unio, bem como no
texto do enunciado 340 do Supremo Tribunal Federal, o qual afirma que desde a vigncia do
Cdigo Civil, os bens dominicais, assim como os demais bens pblicos, no podem ser
adquiridos por usucapio.
A Constituio Federal de 1988 tambm afirmou a impossibilidade de os bens
pblicos serem usucapidos. O pargrafo 3 do artigo 183 e o pargrafo nico do artigo 191 da
Constituio afirmam expressamente que os imveis pblicos no sero adquiridos por
55
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. 56
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrrio Brasileiro. 8. ed. So Paulo: Atlas, 2009. 57
FARIAS, op. cit., p. 317. 58
JNIOR, Humberto Theodoro. Posse e usucapio: direitos reais I doutrina e jurisprudncia. Rio de Janeiro:
Aide, 1994. 59
RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev. 1997.
-
28
usucapio. No entanto, a regra contida nesses artigos pareceu sofrer um abalo por conta do
disposto no caput do artigo 188 da Constituio Federal: A destinao de terras pblicas e
devolutas ser compatibilizada com a poltica agrcola e com o plano nacional de reforma
agrria.
Para Silvio Rodrigues60
, inegvel que o legislador constituinte acabou
distinguindo as terras pblicas das devolutas, afirmando que sua destinao dever ser
compatibilizada com a poltica agrcola do pas, a qual sempre foi, desde as capitanias
hereditrias, a de privatizar as terras pblicas dominicais com a finalidade de que fossem
cultivadas e colonizadas. Inclusive, a lei n 601/50 sempre procurou legitimar a deteno de
quem tivesse na terra cultura efetiva e produtiva, alm de moradia habitual, ainda que sem
possuir ttulo dominial.
O artigo 188 da Constituio Federal acabou por distinguir as terras pblicas das
terras devolutas, levando o intrprete a entender que o legislador constituinte criou uma nova
espcie de bens pblicos, distinta das espcies j elencadas no artigo 98 do Cdigo Civil: bens
de uso comum do povo, uso especial e bens dominicais. Slvio Rodrigues61
sempre defendeu
os bens dominicais como aqueles que fazem parte do patrimnio da pessoa jurdica de direito
pblico, incluindo nessa classificao as terras devolutas. No entanto, o artigo 188 da
Constituio, ao distinguir terras pblicas das terras devolutas, parece ter criado uma nova
espcie de bens dominicais, ou seja, as terras devolutas. A transferncia dessas terras ao
particular feita por meio de legitimao de posse, com a finalidade de atender ao interesse
social e possibilitar a continuidade da explorao da terra. Em verdade, a usucapio uma
forma de aquisio de propriedade que muito se assemelha legitimao de posse para o
posseiro, pois em ambas as situaes a lei atribui ao possuidor a prerrogativa de tornar sua
uma terra que ocupava pacificamente.
Afirma Silvio Rodrigues62
:
Parece-me que o legislador constituinte, distinguindo as terras pblicas das
devolutas, criou um novo gnero de bens pblicos dominicais, o das terras
devolutas, que seriam aquelas que constituem um acervo que o Estado detm
como os particulares detm o seu prprio patrimnio. Tal patrimnio,
portanto, escapa da regra do artigo 100 do Cdigo Civil, que declara
inalienveis os demais bens classificados no artigo 99, e est sujeito a
usucapio. Essa opinio, agora por mim externada pela primeira vez, no
original e apenas segue a de juristas que me precederam.
60
RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev. 1997. 61
Ibidem, p. 9. 62
Ibidem, p. 10
-
29
Juarez de Freitas63
, em artigo denominado Usucapio de terras devolutas em face
de uma interpretao constitucional teleolgica, adota postura semelhante de Silvio
Rodrigues, ao afirmar:
Em tal medida, mister admitir bens pblicos de uso comum do povo, bens
pblicos de uso especial (ambos, enquanto tais, inalienveis e imprescritveis),
ao lado de bens pblicos disponveis de duas espcies: os dominicais e os
devolutos, estes ltimos usucapveis, obedecidos determinados requisitos, sem
ofensa aos comandos dos artigos 183, pargrafo 3 e 191, pargrafo nico.
Ademais, Celso Ribeiro Bastos64
, em sua obra Comentrios Constituio do
Brasil, defende:
Os bens pblicos so aqueles que pertencem ao domnio das pessoas
jurdicas de direito pblico. No entanto, nem todos esses bens esto sujeitos
a um regime tambm de direito pblico. Pertencem ao domnio pblico sem
que, contudo, sujeitem-se as regras jurdicas a que esto normalmente
submetidos os bens pblicos na plena acepo da palavra. Estes so pblicos
pela destinao e no somente pela titularidade. As terras devolutas
constituem o maior contingente que compe essa categoria de imveis.
Portanto, foroso reconhecer que, nada obstante um imvel ser pblico por
compor o domnio de uma pessoa de direito pblico, ele pode ser dominical
do ponto de vista de sua destinao ou utilizao. Esses so usucapveis.
Assim, percebe-se que as terras devolutas so passveis de usucapio. Cabe
destacar, no Distrito Federal, que no obstante a dificuldade de se obter o registro imobilirio
das reas aqui localizadas, dificuldade essa j percebida pela Comisso de Cooperao para a
Mudana da Capital na dcada de 50, entendeu o Superior Tribunal de Justia, no dia 18 de
outubro de 2011, no Recurso Especial n 964.223-RN, que tal fato no induz presuno de
que a terra pblica, conforme ementa do Recurso transcrita abaixo:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIO. IMVEL
URBANO. AUSNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE
DO IMVEL. INEXISTNCIA DE PRESUNO EM FAVOR DO
ESTADO DE QUE A TERRA PBLICA. 1. A inexistncia de registro
imobilirio do bem objeto de ao de usucapio no induz presuno de que
o imvel seja pblico, cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno
como bice ao reconhecimento da prescrio aquisitiva. 2. Recurso especial
no provido65
.
Percebe-se, assim, que cabe ao Estado demonstrar a titularidade sobre a rea, no
havendo presuno de que a terra pblica somente pela ausncia de registro.
63
Apud RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev.
1997. 64
Apud RODRIGUES, Silvio. Usucapio das terras devolutas. Revista Literria de Direito, p. 10, jan./fev.
1997.
65
BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso especial. REsp 964223 / RN. Quarta turma. Recorrente: Estado do Rio Grande do Norte. Recorrido: Jetro Maia Dantas. Relator: Min. Luis Felipe Salomo. Braslia, 18
de outubro de 2011.
-
30
2.3 Terras pblicas e a posse
A desapropriao realizada nas dcadas de 50 e 60 tornou pblicas,
aproximadamente, 51,4% das reas que futuramente comporiam a base territorial do Distrito
Federal e da nova capital do pas.
As terras pblicas do DF podem ser divididas em dois grandes grupos: as que
foram cedidas aos particulares por meio de contratos de arrendamento e/ou concesso de uso
e as terras que foram invadidas e ocupadas de maneira ilegal.
Para melhor compreenso desses dois grupos de terras pblicas, bem como para
melhor entendimento do processo de regularizao das reas rurais do Distrito Federal, faz-se
necessria uma anlise mais detalhada de alguns conceitos jurdicos referentes ao instituto da
posse.
2.3.1 Origens e as teorias clssicas e sociolgicas da posse
O poder fsico exercido pelo homem sobre as coisas, bem como a sua necessidade
de se apropriar de bens tm, historicamente, justificado a origem da posse66
. No possvel,
entretanto, estabelecer uma data especfica para o surgimento desse instituto jurdico, pois o
perodo que antecede ao direito clssico no totalmente conhecido pelos juristas pelo fato
das informaes dessa poca serem escassas e conflitantes67
. Apenas com o surgimento da
escrita e com o advento da histria que houve a possibilidade de se aferir as instituies
jurdicas existentes, pois esses marcos histricos possibilitaram o fornecimento de subsdios e
de informaes seguras68
.
Os primeiros estudos a respeito da posse foram realizados em Roma. Assim,
afirma-se que em Roma se gerou e se desenvolveu esse instituto. Todavia, a causa que lhe deu
origem um dos grandes problemas estudados pela Histria do Direito e parece estar longe de
uma soluo pacfica69
.
Apesar de a posse ter surgido em Roma, o direito romano no reconheceu apenas
uma nica concepo desse instituto, o qual apresentou diversas diferenas conforme
66
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 27. 67
FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da
usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 14. 68
LOPES, Ana Carolina Seixas. Funo social da propriedade rural e a tutela processual da posse. 2009. 76
f. Monografia (Graduao) - Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do Centro Universitrio de Braslia,
Braslia, 2009. 69
RODRIGUES, Manuel. A posse: estudo de direito civil Portugus. 4. ed. Portugal: Coimbra, 1996.
-
31
evolua70
. Nesse sentido, trs grandes fases do direito romano merecem destaque: a pr-
clssica ou antiga, a clssica e a justiniania. Ressalta-se o fato j mencionado de que a noo
de posse no se manteve, durante esse perodo, inaltervel e permanente71
.
Na fase pr-clssica, a posse era baseada na conjugao de dois elementos
objetivos: um material, assim considerado por existir uma imediata relao entre sujeito e
objeto, e outro jurdico, por conta da causa possessionis72
. Nessa fase, a posse era uma
senhoria de fato sobre uma coisa com relao qual o concedente tinha a senhoria de direito.
Essa senhoria de fato no se transformava em senhoria de direito, tinha carter revogvel e
deveria ser exercida com a inteno de ter a coisa para si73
.
No perodo clssico, a noo de posse permaneceu centrada no elemento material,
mas houve o acrscimo de um elemento intencional, o animus possidendi. J na fase
justiniania, o conceito de posse se altera e passa a ser o exerccio do direito de propriedade
ou de que qualquer outro direito real, que se associa a um estado de direito74
.
O nascimento da posse, no perodo romano, esteve associado a um contedo
econmico privado, por que esse instituto era dotado de exclusividade e pessoalidade, ao
contrrio do que se verificava no uso, o qual tinha um carter social e comunitrio75
.
Importante salientar que o estudo da posse no mundo moderno no se pauta
apenas no Direito romano, pois ela foi influenciada tambm pelo Direito germnico medieval
e pelo Direito cannico. A posse, portanto, fruto da unio de elementos histricos
heterogneos, os quais se misturaram por motivos tnicos (costumes de povos brbaros que
foram levados para o Imprio Romano do Ocidente), culturais (acolhida do Direito romano na
Europa) e religiosos (direito laico que sofreu influncia do direito cannico)76
.
Os romanos, apesar de terem analisado o instituto da posse, no investigaram a
sua natureza jurdica nem sistematizaram regras sobre a matria77
. No entanto, diversas
teorias buscaram, a partir do direito romano, justificar a necessidade de proteo da posse.
Dentre essas teorias, merece destaque a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de
70
ALVES, Jos Carlos Moreira. Posse: evoluo histrica. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 71
FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da
usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. 72
ALVES, op. cit., p. 11. 73
ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 61. 74
ALVES, op. cit., p. 12. 75
FACHIN, op. cit., p. 23. 76
ALVES, op. cit., p. 2. 77
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 22. ed. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 17.
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32
Ihering, as quais definem, a seu modo, as figuras do possuidor e do detentor, alm de
justificarem a essncia da proteo possessria e identificarem os limites da tutela da posse78
.
Segundo Fachin, no h autor da cultura jurdica moderna que, ao tratar do
instituto da posse, no analise a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering
referentes a tal instituto79
.
Savigny, em 1803, elaborou o livro que por si s serviu para imortaliz-lo: O
Tratado da Posse (Das Recht des Besitzes). Seu objetivo com a obra era apresentar a teoria da
posse como ela era vista em Roma80
. O escritor, em sua tentativa de reconstruo do direito
romano, desenvolveu uma teoria que obteve grande efeito e repercusso na maioria das
legislaes do sculo XIX81
.
Para a teoria subjetiva, a posse o poder de dispor fisicamente da coisa, com a
inteno de consider-la sua e defend-la contra a interveno de terceiros82
. Na concepo de
Savigny, a posse composta por dois elementos constitutivos: o corpus e o animus. O corpus
o elemento material representado pelo poder fsico sobre a coisa. J o animus o elemento
volitivo que consiste na inteno do possuidor de exercer o direito como se proprietrio fosse.
Para Savigny, no basta deter a coisa, ou seja, no basta o elemento material, necessrio
haver o propsito de ter a coisa para si, isto , o animus possidendi83
.
Segundo a teoria de Savigny, os dois elementos (material e volitivo), so
indispensveis para que a posse seja caracterizada. Se faltar o corpus, inexiste relao de fato
entre a pessoa e o bem, e se faltar o animus no haver posse, mas mera deteno84
. Nesse
sentido, entendia Savigny que se uma pessoa tivesse apenas o corpus, sem o animus, seria
considerada mera detentora do bem e no poderia, por conseqncia, invocar a proteo
possessria. Assim, para a teoria subjetiva, considerado possuidor somente aquele que
possui o corpus e o animus85
. Justamente por atribuir tamanha nfase ao aspecto psicolgico e
ao elemento volitivo do animus, a teoria de Savigny ficou conhecida como teoria subjetiva86
.
78
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 27. 79
FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da
usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 14. 80
ALVES, Jos Carlos Moreira. Posse: evoluo histrica. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 81
RODRIGUES, op. cit., p. 18. 82
Ibidem, p.18. 83
FARIAS, op. cit., p. 23. 84
RODRIGUES, op. cit., p. 18. 85
MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 17. 86
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.
-
33
Sustenta Savigny que em situaes nas quais a pessoa possua o contato fsico com
a coisa sem o animus, haver mera deteno. o caso, por exemplo, do locatrio, do
comodatrio, do usufrutrio e do arrendatrio. Para Savigny, essas pessoas, por terem a
carncia do elemento volitivo, so meras detentoras que no fazem jus proteo
possessria87
. Nesse ponto, a teoria de Savigny recebeu veemente crtica com a alegao de
que o direito moderno no pode negar proteo possessria ao locatrio, ao comodatrio ou a
qualquer das pessoas citadas anteriormente88
.
Assim, buscando estender a proteo possessria a essas figuras, Savigny
construiu a teoria da posse derivada, a qual consistia na transferncia dos direitos
possessrios, e no do direito de propriedade, e aplicvel, por exemplo, ao credor pignoratcio
e ao depositrio de coisa litigiosa, para que pudessem conservar a coisa que lhes fora
confiada89
.
Sobre o assunto, Arnaldo Rizzardo90
defende:
Contrariando a prpria tese, isto , admitindo a posse sem a inteno de
dono, Savigny demonstrou a fragilidade de seu pensamento, embora tenha
procurado fazer a distino entre o nimo exigido para a posse e o nimo do
proprietrio propriamente dito. No primeiro caso, o nimo mais que
representao. No outro, o arrendatrio, o locatrio e o usufruturio estariam
representando o arrendante, o locador ou o nu-proprietrio, situao, no
entanto, diferente daquela que a realidade apresenta.
Apesar das crticas que sofreu, a teoria subjetiva teve seu mrito e importncia,
pois possibilitou reduzir o fenmeno da posse a um mnimo bsico de autonomia frente
propriedade, projetando-se autonomia ao instituto da posse pelo fato do uso dos bens adquirir
relevncia jurdica fora da estrutura da propriedade privada91
.
Ihering, por sua vez, viveu no perodo de transio entre o mtodo histrico-
natural e o positivismo, no qual a Europa vivenciava o triunfo do individualismo, do
liberalismo e o incio das codificaes. Nessa poca, Ihering confrontou os representantes da
denominada Escola Histrica, da qual Savigny foi expoente92
.
Ihering dirigiu a Savigny veemente crtica pelo fato de acreditar que a noo de
corpus j incorporava a de animus, razo pela qual a distino que se fazia entre ambas era
87
Ibidem, p. 28. 88
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 89
Ibidem, p. 31. 90
Apud GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 91
FARIAS, op. cit., p. 27. 92
FACHIN, Luiz Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea: uma perspectiva da
usucapio imobiliria rural. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 26.
-
34
irrelevante93
. Assim, a teoria de Ihering denominada por ele mesmo de objetiva, pois no
concede ao animus a importncia que lhe conferia a teoria subjetiva94
.
A teoria objetiva de Ihering afirma que para a caracterizao da posse basta o
corpus. Entretanto, tal expresso no significa contato fsico com a coisa, mas sim conduta de
dono, a qual se revela na forma com a qual o proprietrio age em face da coisa, tendo em vista
sua funo econmica95
. A posse, portanto, reconhecida por sua destinao econmica,
independendo qualquer manifestao ou ato do possuidor. Dessa forma, suficiente, para a
teoria objetiva, que o possuidor se comporte em relao coisa como se comportaria o
proprietrio em relao ao que seu. Assim sendo, no importa a possibilidade de apreenso
imediata da coisa, mas o fato do possuidor agir como agiria o proprietrio, concedendo
destinao econmica ao bem, tenha ou no o possuidor o animus domini. Dessa maneira, ao
se dispensar o animus, a teoria objetiva estende condio de possuidores aqueles que seriam
considerados meros detentores pela teoria de Savigny96
.
A teoria de Ihering tida como um avano em relao teoria de Savigny, pois ao
abrir mo da exigncia do animus domini, amplia-se o rol dos possuidores, concedendo
queles antes considerados meros detentores proteo possessria direta e imediata97
.
Entretanto, a maior crtica que se faz teoria objetiva decorre do fato de Ihering
subordinar a posse propriedade, acabando com a sua autonomia e reduzindo a posse a um
direito mnimo, como mera exteriorizao do direito de propriedade98
.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald99
, ao analisar o contexto atual e as teorias
de Savigny e Ihering, afirmam:
[...] nos dias atuais, as teorias de Savigny e Ihering no so mais capazes de
explicar o fenmeno possessrio luz de uma teoria material dos direitos
fundamentais. Mostram-se envelhecidas e dissonantes da realidade social
presente. Surgiram ambas em momento histrico no qual o fundamental era
a apropriao de bens sob a lgica do ter em detrimento do ser. Ambas as
teorias se conciliavam com a lgica do positivismo jurdico, na qual a posse
se confina no direito privado como uma construo cientfica, exteriorizada
em um conjunto de regras hermticas.
93
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 22. ed. So Paulo: Saraiva, 1995. p. 18. 94
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 95
Ibidem, p. 32. 96
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. 97
Ibidem, p. 30. 98
Ibidem, p. 31. 99
Ibidem, p. 31.
-
35
Assim, apesar da importncia das teorias de Savigny e de Ihering, inegvel o
fato de que atualmente no possvel compartilhar apenas dessas teorias para explicar a
posse, pois estas, alm de insuficientes para expressar a densidade dos direitos fundamentais
nas relaes privadas, so divorciadas da realidade do Brasil100
.
Nesse sentido, afirma Marco Aurlio Bezerra de Melo101
que a posse deve ser
encarada pelos operadores do direito como uma situao jurdica capaz de garantir a
dignidade da pessoa humana e o direito constitucionalmente assegurado moradia. Dessa
forma, a posse no pode ser analisada sem a necessria adequao realidade social e
econmica do Brasil.
Nesse contexto, as denominadas teorias sociolgicas, preconizadas por Silvio
Perozzi, Raymond Saleilles e Antonio Hernandez Gil, tm trazido ao estudo da posse novos
rumos, fazendo-a adquirir autonomia em face propriedade. Essas novas teorias constituem
um importante instrumento jurdico de fortalecimento da posse por enfatizarem o seu carter
econmico e a sua funo social102
. Alm disso, as teorias sociolgicas procuram demonstrar
que a posse no um apndice ou uma mera aparncia da propriedade. Pelo contrrio, essas
teorias buscam reinterpretar a posse conforme os valores sociais nela considerando-a um
fenmeno de relevante interesse social, com autonomia em relao propriedade e aos
direitos reais103
.
Perozzi, em 1906, formulou a teoria social da posse, caracterizada pelo
comportamento passivo dos sujeitos integrantes da coletividade com relao ao fato. Para essa
teoria, a posse prescinde do corpus e do animus e resultado do fator social, dependente da
absteno de terceiros104
. O socilogo em questo sustenta que a posse um fenmeno social
baseado na moralidade e no costume105
.
J a teoria da apropriao econmica de Saleilles preconiza a independncia da
posse em relao ao direito real. Isso se deve ao fato de que a posse, nessa teoria, manifesta-se
por um juzo de valor segundo a conscincia social considerada economicamente. Saleilles
afirma que o critrio que deve ser utilizado para distinguir posse de deteno o da
observao dos fatos sociais, e no o da interveno direta do legislador para dizer em que
100
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p. 36. 101
MELO, Marco Aurlio Bezerra de. Direito das coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 23. 102
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 37. 103
FARIAS, op. cit., p. 36. 104
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2006. 105
ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 76.
-
36
casos no h posse, como afirmava a teoria de Ihering. Sendo assim, haver posse onde h
relao de fato para estabelecer a independncia econmica do possuidor106
.
Hernandez Gil, por sua vez, defende que a funo social pressuposto e fim das
instituies reguladas pelo direito. Assim, afirma que as coordenadas da ao prtica humana,
que so a necessidade e o trabalho, passam pela posse107
. Para a doutrina de Hernandez Gil, a
posse tem que se analisada como instituio jurdica de maior densidade social,
fundamentado-a no uso e no trabalho dos bens. Dessa forma, portanto, frente funo social,
a posse deixa de ser simples aliada da propriedade privada e expoente da liberdade individual,
porque a pessoa, ainda que seja livre, tem outras necessidades108
.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald109
afirmam que, para as teorias de Savigny
e de Ihering, a pessoa era considerada apenas o ser abstrato e neutralizado que ocupava um
dos plos de uma relao jurdica patrimonial, centralizada na ideia da autonomia da
vontade. Esse conceito, no entanto, em nada se parece com o que se visualiza atualmente.
Assim, as teorias sociolgicas possibilitam enxergar a pessoa como ser humano em seu
contexto, valorizando-se os atributos de sua personalidade e sua dignidade.
2.3.2 Funo social da posse e o conceito de posse agrria
A funo social da posse um tema clssico na doutrina. O sistema jurdico
sofreu grandes abalos no decorrer do sculo XX, especialmente com a crise do positivismo
jurdico, o qual passava a noo de que o direito imune s transformaes sociais.
Atualmente, entretanto, no h mais um interesse to evidente em buscar conceitos de
institutos, mas sim em direcionar esses institutos jurdicos para a coletividade, a fim de
alcanar a solidariedade e o bem comum110
.
Ao analisar a funo social da posse, inevitvel citar, concomitantemente, a
funo social da propriedade. Sabe-se que o instituto da propriedade, resultado de construo
jurdica de muitos sculos, recebeu, atualmente, um carter relativo, inspirado no princpio da
funo social. Esse carter relativo modernamente atribudo propriedade contrape-se ao
106
GONALVES, op. cit., p. 38. 107
ARAUJO, Barbara Almeida de. A posse dos bens pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 108
Ibidem, p. 80. 109
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 38. 110
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.
-
37
carter que perdurou durante muito tempo de inviolabilidade absoluta, fruto de ideias
fundadas no individualismo111
.
Zavascki112
, em sua anlise sobre posse e propriedade, afirma que o princpio da
funo social est mais relacionado ao fenmeno possessrio do que ao direito de
propriedade. Nesse sentido, Luiz Edson Fachin113
defende que a funo social mais clara na
posse do que na propriedade, a qual, mesmo sem uso, se mantm como tal. Assim, a posse,
diante do ordenamento civil-constitucional, adquire uma estrutura renovada, no sendo mais
possvel confinar esse instituto dentro de uma proteo propriedade. Nessa direo,
esclarece Joel Dias Figueira Junior114
:
A posse existe no mundo ftico por si s, independentemente da propriedade
ou outro direito real, merecendo ser tutelada juridicamente pela funo social
e econmica que representa e no por outro motivo, seja ele qual for.
Ressalte-se mais uma vez que no se tutela a posse para proteger o domnio
ou a propriedade; isso mera consequncia. A posse que d vida, razo e
sentido social ao domnio e a propriedade no mundo ftico, pois, sem ela, a
existncia desses institutos no ultrapassaria o mundo dos direitos reais e
eles jamais encontrariam a sua funo, que reside justamente na relao
possessria.
Essa nova viso conceitual implica na necessidade de despatrimonializar e
repersonalizar a posse. Nesse sentido, adverte Ana Rita Vieira de Albuquerque115
:
Torna-se evidente que o instituto da posse no pode deixar de receber
influxo constitucional, adequando s suas regras ordem constitucional
vigente como forma de cumprir a sua funo de instituto jurdico, fruto do
fato social em si, verdadeira emanao da personalidade humana e que, por
isso mesmo, ainda mais comprometido com os prprios fundamentos e
objetivos do Estado Democrtico e a efetividade do princpio da dignidade
da pessoa humana.
Com a constitucionalizao do direito civil, percebe-se que para que seja
determinada a funo social da posse caber a verificao da concretizao dos valores
constitucionais e direitos f