adelia miglievich ribeiro - a contribuição possível do pensamento social brasileiro às análises...
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ECAS 2013
5TH EUROPEAN CONFERENCE ON AFRICAN STUDIES AFRICAN DYNAMICS IN A MULTIPOLAR WORLD
PANEL 005
Africa's resource blessing: pathways to autonomy in a conflicting donor world
Convenors:
Elisio Macamo (University of Basel) email
Linda van de Kamp (Tilburg University) email
A contribuição possível do pensamento social brasileiro às análises acerca da cooperação/competição entre economias nacionais:
desafios teóricos
Adelia Miglievich-Ribeiro
Ufes - Brasil
2
A CONTRIBUIÇÃO POSSÍVEL DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO ÀS ANÁLISES ACERCA DA COOPERAÇÃO/COMPETIÇÃO ENTRE ECONOMIAS NACIONAIS:
DESAFIOS TEÓRICOS 1
THE POSSIBLE CONTRIBUTION OF THE BRAZILIAN SOCIAL THOUGHT TO THE ANALISIS ABOUT THE COOPERATION/COMPETITION BETWEEN NATIONAL ECONOMIES:
THEORETICAL CHALLENGES
Adelia Miglievich-Ribeiro 2
Resumo: Atentando para o tema da integração regional, analisamos a história por trás
do conceito “América Latina” que remonta, de um ponto de vista, ao expansionismo
francês, de outro, à colonização hispânica e lusa no continente, por fim, ao
antagonismo com os americanos do norte, de matriz anglo saxã, até que a utopia
latino-americana se constituísse como uma forma de contra-hegemonia no cenário
contemporâneo. Enfatizamos na história a especificidade brasileira e sua dificuldade
em se perceber como membro da América Latina, fazendo notar como os discursos
intelectuais atuaram na manutenção desta distinção ou em sua superação.
Destacamos o brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) e seus conceitos de “modernização
reflexa” e “aceleração evolutiva” que nos obriga a repensar o debate do
desenvolvimento sem abdicar da noção de que este, para não ser espúrio, há de
convergir com o conceito de autodeterminação dos povos. Fazemos Darcy Ribeiro
dialogar com Manoel Bomfim (1868-1932), ao mesmo tempo em que o reconhecemos
herdeiro, à sua maneira, dos ideais de “Pátria Grande” e “Nuestra América” de Simon
Bolívar e de José Martí respectivamente. Nossa intenção é reconhecer a integração e a
cooperação como empenhos e não como dados a prescindir da vontade acerca, dentre
outros, de qual integração, cooperação e desenvolvimento se busca. Por isso,
recupero a pergunta de Elísio Macamo acerca “do que nos une” em referência ao
Brasil e aos países em África, ressaltando a importância do conhecimento mútuo e do
1 Agradeço a Elísio Macamo e a Linda van de Kamp pela generosidade em acolher uma reflexão que,
neste momento, ainda não se articula plenamente com a África mas que deseja muito fazê-lo, ao trazer a experiência latino-americana para se discutir o que e como se unirá, desta vez, nossas pátrias, povos e riquezas, numa perspectiva que poderíamos chamar pós-imperialista. Cabe registrar que a ideia de “pós-imperialimo” é trazida, nalgum momento deste paper, sob a inspiração de Gustavo Lins Ribeiro (UnB) que, numa agradável e provocadora aula-inaugural ministrada em nossa universidade, possibilitou-me, já quase findo este escrito, dela ainda me apropriar, sem quaisquer pretensões, porém, de maior aprofundamento. Em tempo, as incorreções e abusos são todos de minha total (ir)responsabilidade. 2 Doutora em Ciências Humanas – Sociologia – PPGSA/IFCS/UFRJ. Professora do Departamento de
Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes/ Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa cadastrado do DGP-CNPq “Transculturação, Identidade, Reconhecimento”. E.mail: [email protected].
3
debate franco que caminham, como também nos fala Gustavo Lins Ribeiro, para uma
era pós-imperialista no diálogo Sul-Sul, com esperança.
Palavras-chaves: Brasil; América Latina; integração; pensamento decolonial; pós-
imperialismo.
Abstract : With a focus on the theme of regional integration, we analyze the history behind the concept “Latin America”, which goes back, from one point of view, to the French expansionism; from another, to the Hispanic and Portuguese colonization in the continent; and finally, to the antagonism toward the Anglo-Saxon matrix, until the point in time in which the Latin-American utopia constituted itself as a form of counter hegemony in the contemporary scenario. We emphasize in history the Brazilian specificity and its difficulty in perceiving itself as a member of Latin America, showing the way the intellectual discourses acted in the maintenance of this distinction, or in its overcoming. We highlight Darcy Ribeiro (1922-1997) e his concepts of “reflex modernization” and “evolutionary acceleration” which makes us rethink the debate on development without abdicating from the notion that this, to avoid being spurious, shall meet the concept of people’s self-determination. We make Darcy Ribeiro dialogue with Manoel Bonfim (1868-1932), and at the same time we recognize in him an heir, in his own way, of Simon Bolivar’s and José Martí’s ideals of “Pátria Grande” (“Great Country”) and “Nuestra America” (Our America), respectively. Our intention is to recognize the integration and cooperation as efforts and not as data that lacks will, about, among others, which integration, cooperation, and development is desired. Thus, with hope, I retrieve Elísio Macamo’s question about “what links us” in reference to Brazil and the countries in Africa, highlighting the importance of mutual knowledge and open debate that goes, as Gustavo Lins Ribeiro also says, to a post-imperialist era in the dialogue South-South. Keywords: Brasil; América Latina; integration; decolonial thought; postimperialism.
Apresentação
Retomo aqui um diálogo iniciado há cerca de 1 (um) ano atrás quando por
ocasião do evento “Africanidades e Brasilidades”, realizado na Universidade Federal do
Espírito Santo, em Vitória/ES, Brasil, recebi de Elísio Macamo o paper 3 enviado para
nossa mesa em que este realiza uma elegante e contundente crítica à continuidade de
uma certa “lusofonia” toda vez que, nos encontros sobre Brasil e África, tem-se como
3 Intitulado “A moral da história: adiar conversa como intervenção epistemológica”, no paper, depois
publicado na Realis, Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais (2012), Elísio Macamo desafia à mesa “Africanidades e Brasilidades: desafios epistemológicos” a pensar se existiram de fato questões postas à uma produção de conhecimento que se dizia essencialmente brasileira e africana ou se tais desafios só virão na medida em que a integração a partir de pesquisas concretas começar a existir, o que requer, como se disse, empenho, sendo precoce se imaginar que já produzimos tais saberes irmanados.
4
natural que os países do continente africano, desconfortavelmente abrigados sob a
rubrica “África Portuguesa”, que parece ignorar cada um deles em sua especificidade,
mantenham com o Brasil laços incontestes, quando se remonta invariavelmente à
história da escravidão negra em terra brasileira. Macamo chama atenção para o fato
de que tal atitude tende a explicitar o quão pouco nos conhecemos e ainda longe
estamos de ter equacionado nossas diferenças no presente. Seu alerta não significa
qualquer desestímulo à busca do diálogo entre Brasil e países africanos, em nosso
caso, de língua portuguesa, mas reconhecer isto como um projeto a requerer, pois,
cuidados como qualquer intento que apenas se inicia tal como definir o tipo de diálogo
a ser construído. Sem se desconsiderar o passado colonial e os pontos de interseção
existentes, o século 21 propõe questões novas a ser exaustivamente debatidas Supor a
integração como natural, nesse sentido, pouco contribui para o quanto ainda devemos
construir no que se chama “cooperação para o desenvolvimento”, desta vez, em
perspectiva “pós-imperialista”.
Concordo com Elísio Macamo sobre o fato de que a academia brasileira, com
honrosas exceções, ainda conhece pouco a África, ou melhor, as Áfricas 4. O oposto ,
quando se pensa a América latina em sua pluralidade, não seria uma absoluta
inverdade. Admitindo-se isto é que venho trazer numa Conferência de Estudos
Africanos um pouco do acúmulo do pensamento crítico latino-americano, em seu vigor
decolonial. Meu pressuposto é o de que se uma integração regional, passada ou
futura, associa-se ao projeto de continuísmo do sistema de dominação colonial,
conivente com a predatória economia-mundo capitalista, é ilusória a denominação
“cooperação” e bem mais verdadeira a referência a formas de “imperialismo” 5.
Minha estratégia consiste em revisitar o pensamento do brasileiro Darcy
Ribeiro (1922-1997) e, antes dele, de Manoel Bomfim (1868-1932). Buscarei mostrar
4 Certamente a academia de ciências sociais brasileira tem nomes com trabalho excepcional em estudos
de África e o número de africanistas cresce. Citar uns e não outros seria cometer graves injustiças. O que tento dizer, contudo, é que nos currículos escolares – em que pesem instrumentos legais - e universitários, também em nossas pós-graduações em Ciências Sociais, a África contemporânea ainda é, no Brasil, bem menos conhecida do que se faz necessário. 5 Hannah Arendt (2006) propõe a diferença entre “colonialismo comercial” e “imperialismo” observando
que apenas no segundo tem-se o requisito da ocupação territorial e da criação de uma administração local voltada ao exercício da violência para a subjugação dos povos nativos. Utilizo, contudo, “formas de imperialismo”, no plural, para observar que sua persistência hoje pode se dar em diferentes graus; ainda assim convém, a meu ver, não se desfazer da expressão já que não se extinguiu aquelas formas que supõem intervenções para as quais a expressão “colonialismo comercial” seria insuficiente.
5
como a América ao sul quis uma integração contra-hegemônica, anti pan-
americanismo. Recuarei até o libertador venezuelano Simon Bolívar e, também, ao
poeta e escritor cubano José Martí (1853-1895) para falar da utopia da “Pátria Grande”
ou “Nuestra América” pontuando o lugar do Brasil na imaginação latino-americana
ontem e hoje. Portanto, é sobre continuidades e descontinuidades que trata este
paper e sobre qual integração Sul-Sul esperamos também avistar.
1. A história de um conceito: América Latina
Desde a publicação, em 1968, do influente ensaio de John Leddy Phelan
chamado “Pan-Latinism, French Intervention in Mexico” (1861 apud. BETHEL, 2009, p.
289) construiu-se um relativo consenso de que o conceito “América Latina” era de
origem francesa. A expressão “Amérique Latine” foi utilizada por seus intelectuais para
justificar então o imperialismo francês no México sob o domínio de Napoleão III. Os
franceses argumentavam que existia uma afinidade cultural e linguística, uma unidade
entre os povos “latinos”, e que a França seria sua inspiração e líder natural ao mesmo
tempo em que uma adversária à altura da ameaça norte-americana, de matriz anglo-
saxã. Phelan menciona a relevância do economista francês, Michel Chevalier (1806-
1879), um dos principais ideólogos do “panlatinismo”, a ampliação do império francês
na América Meridional. O artigo de Phelan seria, doze anos depois, criticado
duramente por Arturo Ardao, em “Gênesis de la ideia y El nombre de América Latina”
que, no lugar de Chevalier destacava, tempos antes, a a utilização do termo “la raza
latina” por escritores e intelectuais hispânicos como José María Torres Caicedo,
jornalista, poeta e crítico colombiano, nascido em 1830 em Bogotá e falecido em 1889
em Paris; Francisco Bilbao, intelectual socialista chileno (1823-1865), e Justo
Arosemena, jurista, político, sociólogo e diplomata colombo-panamenho [1817-1896]
(FARRET & PINTO, 2011; BETHEL, 2009).
A disputa pelo posto de quem teria batizado assim as vastas terras americanas
ao sul dos Estados Unidos se prolonga mas a nós importa que, quando da
independência das 10 (dez) repúblicas da América Espanhola, crescendo depois, para
16 (dezesseis) repúblicas, uma expressiva corrente intelectual, inspirada em Simon
6
Bolívar, passou a fazer uso do termo para se referir a uma consciência hispano-
americana que superava os “nacionalismos” existentes.
Simon Bolívar, militar e líder político venezuelano, foi a figura-chave
nas guerras de independência do Império Espanhol. Conduziu a Bolívia, a Colômbia,
o Equador, o Panamá, o Peru e a Venezuela à descolonização nos inícios do século XIX,
lançando as bases ideológicas democráticas na maioria das novas repúblicas. Durante
seu curto tempo de vida, foi considerado herói, visionário, revolucionário e libertador.
Participou da fundação da primeira união de nações independentes na América Latina,
nomeada Grã-Colômbia, presidindo-a de 1819 a 1830. Foi, muito provavelmente, o
primeiro articulador de uma união latino-americana de proporções continentais, como
pode ser vislumbrado em sua clássica Carta da Jamaica de 1815, na qual conclama as
antigas colônias espanholas a se unirem para se defender do inimigo comum: o
colonizador europeu.
Foi alçado a presidente da Colômbia, chefe supremo do Peru e presidente da
Bolívia, o que o levava a crer que não estava tão longínquo o sonho da unidade latino-
americana. Intentou, no Panamá, em 1826, a realização de um congresso a promover a
aquela chamada “Pátria Grande”. O plano de Bolívar era o fazer com que cada nação
participante da confederação cedesse parte de sua soberania para o bem maior que
seria a união das nações hispano-americanas, sem perda de sua autonomia interna,
que ficaria a cargo da administração de cada Estado-Nação. Por sua vez, estava
presente no ideal da “Pátria Grande” o convívio das características regionais de cada
povo, sem a subalternização das culturas locais. Mas as coisas não se passam bem
assim e a utopia bolivariana de federação americana fracassa. Em 1828, Simon Bolívar
é obrigado a renunciar à presidência vitalícia do Peru. A Bolívia, em 1829, e, pouco
depois, a Venezuela, se separam da Grande Colômbia que deixa de existir em 1830.
Cabe registrar como adversários à utopia bolivariana não somente o
protagonismo que conquistava no continente os Estados Unidos mas a omissão do
Brasil. Bolívar, aliás, veta, desde o início, o Brasil de qualquer participação na
confederação imaginada. A despeito da herança ibérica e católica comuns, o imenso
vizinho lusófono que ocupava metade da América do Sul, era, para o mentor da “Pátria
Grande” de língua, história e cultura incompatíveis com o projeto em gestação. Para
culminar, a economia brasileira ainda baseada no escravismo - abolido na maioria das
7
repúblicas hispano-americanas – era algo a se repudiar. Somava-se a isso que a
Independência do Brasil ocorrera de forma pacífica e em continuidade ao sistema
monárquico português, o que fazia do Brasil um aliado do imperialismo europeu 6.
Para quem nasceu em uma das repúblicas que se tornaram independentes da monarquia espanhola entre 1810 e 1820, é quase inconcebível que o Brasil se libertasse quase à mesma época, mantendo a monarquia como forma de governo e fundando um império [...]. Este fato marca a diferença entre o Brasil e a quase totalidade do restante da América hispânica, onde os debates sobre república, centralismo, federalismo, monarquia, pátria e nação foram muito precoces, ao contrário do que ocorreu no Brasil (ENRÍQUEZ, 2010, p. 61-94)
Como se não bastasse a rejeição da América Hispânica ao Brasil em suas
demonstrações antirrepublicanas e conservadoras, os intelectuais brasileiros não se
furtavam a descrever a nações sob a alcunha de Grã-Colômbia de violentas, instáveis e
“bárbaras” (BETHEL, 2009, p. 293). Ao longo do II Reinado, o Brasil reproduziu sua
crença de pertencimento ao mundo atlântico, mantendo ligações políticas e
econômicas com a Grã-Bretanha e ligações culturais com a França e, em menor
proporção, com Portugal. Com a Proclamação da República, em 1889, a proximidade
com a América Hispânica também não se dá visto que o Brasil aproxima-se dos Estados
Unidos, tornando-se forte defensor do chamado pan-americanismo, tido, ao sul do
continente, como mera ferramenta utilizada para ratificar a hegemonia política e
econômica dos Estados Unidos e assegurar a futura exploração da região mediante
intervenções prolongadas ou pontuais que, de fato, ocorreram.
O pragmatismo da política internacional brasileira afastava o Brasil mais uma
vez da América Hispânica Preocupado em tornar os Estados Unidos seu principal
parceiro comercial, em substituição a Grã-Bretanha, na importação de nosso café,
provendo-nos de bens manufaturados, o país vinha em colaboração à doutrina
Monroe 7. Ainda assim, nem todos, porém, desistiram do lugar que caberia ao Brasil
6 Exemplar disto eram as ambições brasileiras no Rio da Prata. As relações entre o Brasil e seus vizinhos
hispano-americanos eram então muito limitadas com a grande exceção: o Rio da Prata, onde o Brasil, como Portugal no século XVIII e no início do século XIX, tinha na região evidente interesse estratégico derivado, dentre outros, na marcante Guerra do Paraguai, quando se aliou ao Uruguai e à Argentina para combater líder paraguaio Solano López, nos anos de 1864 a 1870. 7 A chamada Doutrina Monroe foi anunciada em 1823 pelo presidente estadunidense James Monroe. A
frase que resume a doutrina é: "América para os americanos" contra o colonialismo europeu.
8
num futuro projeto latino-americano. Eis que o mexicano José Vasconcelos (1882-
1959) defendeu, em seu ensaio “El problema del Brasil”, publicado pela primeira vez
em 1921, a integração brasileira na América Latina. Logo após liderar uma missão
mexicana ao Brasil, em comemoração a nosso centenário da Independência, se
dedicaria a escrever “La raza cosmica” (1925), em referência ao novo “povo íbero-
americano”, de matriz étnica inédita.
A crítica intelectual latino-americana adensava-se. Começava a se propagar o
novo conceito de “IndoAmérica”, ainda mais forte do que o de América Latina, por dar
visibilidade aos expressivos contingentes indígenas, negros e mestiços, excluídos na
primeira ideia de América Latina, trazidos à reflexão a partir da obra do peruano Victor
Raúl Haya de la Torre (1895-1979), quando também ganha notoriedade o pensamento
de outro peruano, José Carlos Mariátegui (1995-1930), inspirado em José Martí 8.
Dentre os brasileiros, a maioria, tais quais Eduardo Prado, Manuel de Oliveira
Lima, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, preocupava-se com a construção da
brasilidade, mantendo-se distanciada do pensamento crítico latino-americano. Uma
voz dissonante era Manoel Bomfim que, em “América Latina: males de origem”,
publicado pela primeira vez em 1905, dedicou-se a combater o pan-americanismo,
prevendo o perverso poderio que se concedia aos Estados Unidos na condução dos
assuntos latino-americanos, ao mesmo tempo em que buscava promover os laços de
solidariedade entre o Brasil e a América Espanhola.
A era Vargas (1930-45), porém, viria em seguida e com ela o empenho
intelectual na afirmação de uma identidade nacional tornava-se ainda mais forte a
reunir, dentre outros, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Heitor Villa-
Lobos, Rodrigo Melo Franco de Andrade, enquanto a América Latina era mantida como
“a outra América”.
Aparentemente, os Estados Unidos estavam fazendo frente à Europa para defender os países latinos mas tal intento ocultava seu interesse, mesmo ainda quando estava na periferia do sistema mundial em intervir nos destinos das nações ao sul do continente, sob a firme convicção de que se tratava de uma “missão civilizadora”, legítima, portanto, que na prática, embasaram as várias ações expansionistas realizadas. 8 Com Farret e Pinto (2011), minha ênfase não está tanto no que a utopia latino-americana deixou de
ver, sobretudo nos Andes e no México de maioria indígena. Mas é bom saber que, hoje, a vertente intelectual da modernidade-colonialidade na América Latina não sustenta qualquer ideia de Estado-Nação ou integração regional que não atente às diferenças étnicas, de gênero, dentre outras.
9
Não é de se espantar, pois, que o acadêmico mexicano Leopoldo Zea (1912-
2004) que tanto escreveu sobre a América Latina, em nenhum momento de sua farta
bibliografia tenha abordado o Brasil de forma adequada (BETHEL, 2009, p. 311-2). Seria
preciso se aproximar meados do século XX para se começar a identificar, enfim, a
continuidade do esforço pioneiro de Manoel Bomfim nalguns excepcionais intelectuais
brasileiros, tal como em Manuel Bandeira mediante sua “Literatura hispano-
americana”, publicado pela primeira vez, em 1949.
Seria, contudo, a inglória rede de intelectuais exilados pelos sucessivos golpes
de Estado a se espraiar pelo sul do continente que uniria em caráter indelével os
intelectuais brasileiros aos demais latinos, sobretudo entre os anos 1960 e 80. Chama
atenção a trajetória de Darcy Ribeiro 9 que, em seus deslocamentos no Uruguai, Chile,
Venezuela, México, Peru, diz ter se descoberto, ele mesmo, cidadão brasileiro e latino-
americano, passando, então, a se dedicar aos estudos que o levariam à reelaboração
não apenas da formação latino-americana mas da utopia nela contida, na ênfase às
suas potencialidades a fim de se opor ao que chamou “modernização reflexa”, que
mantinha o atraso, e para propor a “aceleração evolutiva”, com base na inovação
científico-tecnológica, gerida autonomamente por cada sociedade a garantir, por isso,
sua autonomia e emancipação 10.
Darcy Ribeiro, ao recepcionar o conceito de “evolução multilinear” de Julian
Steward e Leslie White, questiona o padrão civilizatório unilinear para toda a
humanidade. Faz notar que as formações socioculturais concretas possuem um caráter
temporal e sincrônico de maneira que, desde o rompimento evolutivo da condição
9 Em agosto de 1962, Darcy Ribeiro assumiu o Ministério da Educação e Cultura do Governo de João
Goulart, passando a Reitoria da recém-fundada Universidade de Brasília (UnB), de sua criação, ao lado de Anísio Teixeira, para as mãos do mesmo, que assumira a Vice-Reitoria até aquele momento. Em 1963, tendo o Brasil retornado ao regime presidencialista, após curta experiência parlamentarista, Darcy Ribeiro deixava o Ministério, convocado pelo Presidente “Jango” para a chefia da Casa Civil. Com o Golpe Militar, foi obrigado a fugir, como tantos e o próprio presidente deposto, tendo recebido seu primeiro asilo no Uruguai. Cf. MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2012. 10
No exílio, Darcy Ribeiro escreveu “O processo civilizatório. Etapas da evolução sócio-cultural” e publicou-o em 1968. A respeito desta obra disse: “É um livro latino-americano, brasileiro, escrito no Uruguai” (RIBEIRO, 2007, p. 224). A partir daí, inaugurou a série de 6 (seis) livros chamados “Estudos de Antropologia da Civilização”, do qual fazem parte “As Américas e a Civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento cultural desigual dos povos americanos” (1ª: Edição 1969), “Os brasileiros – teoria do Brasil” (1ª Edição, 1969), seguidos de “Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno” (1ª. Ed. 1970); “O dilema da América Latina” (1ª. Ed. 1971); “Os brasileiros – teoria do Brasil” (1ª. Ed. 1978), encerrando seus 30 anos de reflexão ao publicar “O Povo Brasileiro” , cuja primeira edição data de 1995.
10
primitiva, as feições das sociedades humanas tornaram-se incontáveis e imprevisíveis.
Esta construção ideal (diagnósticos homogêneos referentes aos sistemas adaptativo, associativo e ideológico que atravessassem todas as formações. Apresentando em cada uma delas certas alterações significativas) está muito distante do possível, em virtude do âmbito de dispersão das variações de conteúdo de cada cultura (RIBEIRO, 2001, p. 47-8)
No pensamento darcyniano, as mudanças dão-se, conforme já mencionado,
como “modernização reflexa” ou “aceleração evolutiva”. Apenas o segundo termo
permite-nos romper com a dependência de outros sistemas econômicos mais
poderosos e se conquistar, com o desenvolvimento, a autodeterminação, uma vez que
a dependência é o atraso e é a ausência de liberdade (RIBEIRO, 2001, p. 36).
2. Darcy Ribeiro e a imaginação latino-americana
Era Manoel Bomfim uma das fontes em que bebeu entusiasticamente Darcy
Ribeiro. Bomfim, opondo-se “a todos os antigos e modernos pensadores coniventes
com os grupos de interesse que mantêm o Brasil em atraso” lega a Darcy Ribeiro o que
este definiu como uma “extraordinária capacidade de indignação e de esperança [...]
sua certeza de que esse é um país viável” (RIBEIRO, 1993, p. 17).
Combatendo o racismo pseudo-científico do início do século XX, denunciando o
chamado “darwinismo social” e explicitando o “parasitismo social” dos colonizadores,
isto é, a completa inaptidão ao trabalho por parte dos colonizadores - não dos
colonizados submetidos perenemente ao trabalho forçado com o qual supriam de
bens e serviços as sociedades coloniais e suas metrópoles – Bomfim desfazia a
mitologia das “raças inferiores”, logo, também, das gentes mestiças nascidas no
continente. Claramente fazia ver que a superexploração do trabalho, levada ao limite
da morte por exaustão e maus-tratos, somente poderia gerar no colonizado o repúdio
àquela atividade que lhe tirava dia após dia sua humanidade. A menos que se
experimentasse, num dia, a atividade laboral como restauradora e edificadora do ser
humano e esta fosse rejeitada é que se poderia pensar em dar aos locais o estigma de
indolentes ou incompetentes. Fazer isto, porém, referindo-se a uma massa escravizada
11
ou a libertos ainda submetidos ao trabalho semiescravo é, no mínimo, o mais injusto
dos julgamentos:
Na colônia, só o cativo trabalhava; todo mundo explorava e oprimia; a produção dependia, apenas, do número de cativos e da crueza dos açoites; o progresso foi condenado por inútil, a inteligência perseguida como perigosa. O colono sobre o cativo, o fisco sobre o colono, o absolutismo e o arcaísmo religioso sobre todos, afundavam, de mais em mais, estas sociedades na miséria, no aviltamento e no obscurantismo. A metrópole rolou, uivou de gozo, realizou o seu ideal, o parasitismo social” (BOMFIM, 1993, p. 324).
Darcy Ribeiro seguiu os passos de Bomfim, também em sua aposta na educação
e cultura como único caminho para a mudança, que não poderia se basear unicamente
na riqueza material cindida da instrução e consciência dos povos descolonizados.
Neste caso, antecipava o argumento hoje amplamente divulgado de que pouco ou
nada seria revertido para as populações subalternas mas a dita independência política
apenas concentraria renda para as elites nacionais que manteriam o
subdesenvolvimento das sociedades no exato crescimento de seus ganhos privados 11.
Darcy Ribeiro participava de uma geração de intelectuais que começava a a
aproximar o pensamento social brasileiro de uma certa sociologia crítica. Em 1948,
nascia a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), que aliou o chileno Raul
Prebich e o brasileiro Celso Furtado. Em 1958, foi implementada a FLACSO (Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais), cujo primeiro diretor foi José Medina
Echavarria. No Rio de Janeiro, foi fundado, em 1957, também ligado a UNESCO, o
CLAPCS (Centro Latino-Americano de Pesquisas Sociais). Ganhavam visibilidade
também os teóricos da dependência Ruy Mauro Marini (1932-1997) e Theotonio dos
11
Não se excluem desta lógica os realinhamentos da geopolítica mundial que, no limiar do século 21, trazem como protagonistas no cenário da cooperação internacional junto aos países não industrializados os investimentos estrangeiros diretos que sequer são deliberados pela política local. Os governantes de tais países beneficiam-se dos investimentos transnacionais o que, infelizmente, não expressa o benefício daqueles que, em tese, representam, a população. Não por outra razão é premente as análises tais quais de ZORZAL e SILVA (2013) sobre como garantir a responsabilidade social e responsabilidade social e accountability de tais investimentos, o que implica na promoção de um amplo debate sobre os aspectos normativos da governança a incluir a transparência das decisões e dos mecanismos para se chegar a elas.
12
Santos (1936-), cujo pensamento inspirou inúmeras publicações sobre a América
Latina 12.
Se a segunda metade do século XX fora marcada pela efervescência do
pensamento crítico latino-americano, isto se dava no enfrentamento às ditaduras na
Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Como é sabido, no Paraguai, um general
tornou-se presidente em 1958 com um golpe de Estado, sendo reeleito por oito
mandatos consecutivos, desfrutando, assim, por 35 anos do mais longo governo militar
já visto na América Latina. No Brasil, em 31 de março de 1964, os militares depuseram
o Presidente da República João Goulart e assumiram o governo do país até 15 de
março de 1985. No Chile, em 11 de setembro de 1973, um golpe militar também
colocou na presidência um general que permaneceu até 1990. O Uruguai que, entre
1942 e 1973, viveu um importante período democrático, retomando o debate político
das três primeiras décadas do século XX, interrompido durante os governos ditatoriais
entre 1933 e 1942, experimentou a ascensão dos movimentos em prol da democracia
e a diversificação dos espaços culturais e intelectuais, particularmente, entre 1945 e
1955, mas viu, também, a força da ditadura retornar quando seu presidente civil deu
um golpe de Estado em seu próprio governo, em 27 de junho de 1973, apoiado pelos
militares que permaneceram no poder até 1985. Em 24 de março de 1976, as Forças
Armadas argentinas assumem o Executivo depondo o então presidente e instalando
governos militares até 1983. Portanto, se o Chile, a Argentina e o Uruguai, entre as
décadas de 1960 e 1980, serviram de refúgio a muitos que já sofriam as perseguições
da ditadura em seu país de origem, isto não durou (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2011, p.
161).
12
Fernando Henrique Cardoso também participara do debate durante a década de 1970 sobre as possibilidades para o desenvolvimento capitalista nos paises latino-americanos e, particularmente, no Brasil. Segundo Theotônio dos Santos (2012), um giro intelectual e ideológico apartaria Cardoso e seu grupo na USP e no Cebrap do projeto crítico originário da Teoria da Dependência e se relacionaria a seu ingresso no MDB, nos anos finais da ditadura militar no Brasil. Basicamente, segundo Santos, Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1974, propõe o argumento da permanência da dependência e, ainda nestas circunstâncias, poder-se-ia falar em crescimento econômico e democracia. Ruy Mauro Marini, por outro lado, contesta-o e visualiza oportunidades de se superar a subordinação ao capitalismo mundial. Para Wagner (2005), o debate entre Cardoso e Marini reflete justamente os impasses e as tensões colocadas na conjuntura de reabertura política no Brasil e a mudança do tom do autor de “Dialética da Dependência” sugeria, talvez, o temor conservador em face dos setores mais radicalizados dos movimentos sociais ou dos remanescentes de organizações partidárias que se organizaram na clandestinidade durante a ditadura.
13
Paradoxalmente, na experiência do sofrimento, ganhava nova solidez a
imaginação social latino-americana. Darcy Ribeiro, em seu ensaio “A América Latina
existe?” (2010), contrasta “o que existe” (o fático) com “o que pode existir” (o
contrafático). Ironicamente, afirma que Thomas Morus e outros antes dele começaram
a escrever sobre a utopia quando ouviram as primeiras narrativas de Colombo ou
Américo Vespúcio:
Foi a visão de nossa indiada louçã, vestida na inocência de sua nudez emplumada, dançando num jardim tropical idílico que [...] acendeu o ardor utópico que floresce em ondas sucessivas de fantasias generosas ou perversas, repensando o mundo como projeto. Invetando comunismos bonitos e feios de bons e maus selvagens, sonhando com vidas possíveis, mais gostosas de ser vividas (RIBEIRO, 2010, p. 45).
Narra que, após o êxtase, os homens brancos precisaram purgar os pecados de
tal visão paradisíaca na terra. Não demorou que a utopia cristã servisse também a a
transformar quantas almas se fizesse útil em corpos domesticados para o trabalho no
cativeiro a gerar as riquezas em prata, ouro, diamantes, também, em produtos
agrícolas das terras tropicais numa época em que o açúcar da cana chegaria a valer
tanto quanto o petróleo hoje. Indígenas e negros escravizados por séculos nas
Américas foram alocados nas posições mais subalternas da sociedade alimentando um
racismo que tentaria naturalizar a subalternidade mesma:
Uma característica singular da América Latina é sua condição de um conjunto de povos intencionalmente constituídos por atos e vontades alheios a eles mesmos [ ...] O povo sempre foi, nesse mundo nosso, uma mera força de trabalho, um meio de produção, primeiro escravo; depois, assalariado; sempre avassalado [...] Somos a resultante de empreendimentos econômicos exógenos que visavam a saquear riquezas, explorar minas ou promover a produção de bens exportáveis, sempre com o objetivo de gerar lucros pecuniários. Se dessas operações surgiram novas comunidades humanas, isto foi uma resultante ocasional, não esperada e até indesejada (RIBEIRO, 2010, p. 59-60).
Milagrosamente sobrevivente, a grande população latino-americana renasceria,
contudo, como “povo novo”, espraiado em todo o continente como populações
plasmadas na amálgama biológica e na aculturação de etnias díspares sob o
14
enquadramento escravocrata e fazendeiro e o sistema de plantation.
[...] aliciados nas plantações tropicais, para exploração de produtos florestais ou de minas e metais preciosos que deram lugar a um ente étnico inteiramente novo, profundamente diferenciados de suas três matrizes e que ainda anda em busca de sua identidade. São povos que não tendo passado de que se orgulhar só servem para o futuro (RIBEIRO, 2010, p. 66).
O antropólogo elabora sua “tipologia étnico-nacional” dos povos extraeuropeus
no mundo moderno: a) povos-testemunho; b) povos novos; c) povos transplantados; d)
povos emergentes. Os primeiros são os sobreviventes de velhas civilizações autônomas
sobre as quais se abateu a expansão europeia, a saber, as populações mexicanas,
mesoamericanas e andinas, sobreviventes das antigas civilizações asteca, maia e
incaica. Os povos novos resultam da “fricção étnica” das matrizes indígenas, negras e
europeias. O terceiro grupo é formado pelos que, embora nascidos no continente, têm
a língua, cultura e perfil étnico idênticos aos colonizadores. Os povos emergentes são
as nações novas da África e da Ásia.
O povo latino-americano realmente existente é formado pelos contingentes
integrados em cada população neo-americana, destacando-se, os inúmeros povos
africanos amalgamados em cada nova etnia nacional, sob a marca da opressão e do
sofrimento, mas exercendo nestas influências de várias ordens a traduzir a inegável
resistência dos escravos negros à dominação branca. Não menos as aldeias agrícolas
indiferenciadas dos Tupi-Guarani na costa atlântica da América do Sul, dos Aruak, da
floresta amazônica e dos Karib, do Caribe, os araucanos do Chile moderno, os Chibcha,
da Venezuela, Colômbia e América Central, também os Timote e as confederações
Fincenu, Pancenu e Cenufaná, além dos Jicague (Nicarágua), os Cuna (Panamá), dentre
outros tantos sujeitos índios e cidadãos de seu Estado-Nação num só tempo, povo
latino-americano (RIBEIRO, 2007, p. 187).
Eis que se pode falar hoje em muito mais do que quinhentos milhões de latino-
americanos que “falam duas variantes modernas de uma língua neolatina, o português
e o espanhol, mutuamente inteligíveis” (RIBEIRO, 1993, p. 9), além, de no caso dos
indígenas, ainda suas línguas-mães. Ainda assim, é possível concordar com Darcy
Ribeiro que:
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Nós, latino-americanos, como parcela ponderável do gênero humano, já estamos plasmados em nossa forma básica. Somos uma romanidade tardia, lavada em sangue índio e em sangue negro. Somos a matriz de uma Latino-América-Nação em busca do seu destino, que se plasmará no próximo milênio [referia-se ao atual 3º. Milênio] (RIBEIRO, 1993, p. 11. Os colchetes são meus).
A busca do destino relaciona-se profundamente aos desafios para superação do
atraso e do subdesenvolvimento que ainda une o povo latino-americano sob o estigma
da “modernização reflexa”, descrita por Darcy Ribeiro como a forma subordinada de
inserção das sociedades latino-americanas naqueles sistemas tecnologicamente
superiores, pagando o preço, no limite, de sua autodestruição como entidade étnica e
dizimação ambiental. Caberia, ao contrário, que os povos latino-americanos
determinassem para si mesmos outra modernização, chamada de “aceleração
evolutiva”, com o poder de inaugurar um novo processo civilizatório, não-imperialista.
Falar em integração ou cooperação para o desenvolvimento 13 sem falar em
“decolonialidade” – como diz Quijano (2000) – do poder, do ser e do saber, é, também
para Darcy, uma impropriedade. Walter Mignolo (2003), um dos mais destacados
representantes da vertente da modernidade-colonialidade do chamado pós-colonial
latino-americano, ressaltou a consciência de Darcy Ribeiro acerca de sua inscrição
subalterna como antropólogo na geopolítica do conhecimento. Para Mignolo, o mérito
de Darcy estava em sua lucidez acerca do lugar de sua fala: intelectual latino-
americano, que fala a partir do Terceiro Mundo, não como um lugar bizarro ou
inferior, mas como um lócus poderoso de enunciação. Não restam dúvidas de que para
o “antropologiano”, como o próprio optou denominar-se em contraste ao antropólogo
que apenas observa, recusando-se a se ver como membro da população estudada, a a
“latinoamericanidade” era algo tão essencial como respirar (NEPOMUCENO, 2010, p.
19). Pensar o Brasil exigia-lhe, pois, pensar o contexto de integração regional, entendê-
la, vivê-la, explicá-la. Para o fito do debate aqui posto, podemos pensar que os ideais
da geração de Darcy Ribeiro não aceitariam qualquer integração também quando
pensássemos o Sul Global.
13
As modalidades mais comuns de cooperação para o desenvolvimento capitalista, de acordo com a maior parte da literatura sobre o tema, são: a Cooperação Financeira (CF), a Cooperação Técnica (CT) e a Assistência Humanitária (AH). Além dessas, também existe a Ajuda Alimentar e a Cooperação Científica e Tecnológica, consideradas modalidades menos frequentes de cooperação para o desenvolvimento. Cf. ZORZAL & SILVA, 2013.
16
Algumas considerações finais: sobre integração e cooperação para o
desenvolvimento
Sem ter o Brasil superado suas abissais desigualdades sociais, renovando, pois,
as marcas de sua colonização, é necessário, porém, perguntar como o país se insere na
nova geopolítica mundial. Perguntamos acerca do chamado eixo Sul-Sul, sobretudo
atentando para os países da América Latina e da África, preocupados em saber como
cooperam entre si para o desenvolvimento (qual?) os países denominados de não
desenvolvidos e emergentes no contexto atual do capitalismo globalizado.
Como diz Zorzal e Silva (2013), no âmbito dos países emergentes, o grupo
constituído pelo Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul (BRICS) surgiu na cena
internacional como protagonistas aliados na busca por mudanças na ordem
internacional pós-guerra fria, propondo coalizões entre latino-americanos, asiáticos e
africanos. Tais países afirmam-se como produtores de tecnologias, em níveis
diferenciados – tanto que o Brasil se mantém, na divisão internacional do trabalho,
como produtor de matérias-primas sob o nome atual de “commodities” - que se
convertem em investimentos diretos nas economias menos desenvolvidas,
notadamente em África.
Podemos, então, levar a sério a provocação de Gustavo Lins Ribeiro 14 e inquirir
de que modo o “ex-gigante adormecido” é capaz de evitar o atraente exercício do
“subimperialimo” sobre o qual, há décadas, Ruy Mauro Marini (1932-1997) nos
alertara. O Brasil imperialista nunca foi uma ficção na história latino-americana, como
vimos. A construção da solidariedade entre Brasil e América Hispânica é um esforço
que tem em muitos, tal como Darcy Ribeiro, ardorosos defensores, mas não é uma
autoevidência.
Se a ideia de América Latina ganhou força na identificação do antagonista
comum, os Estados Unidos, sabemos que são muitas as tentativas de deslegitimação
da unidade latino-americana e de quaisquer empenhos em blocos regionais que não
14
Em aula inaugural sob o título de “Por que o poscolonialismo e a decolonialidade do poder não são suficientes: uma perspectiva pós-imperialista” , proferida na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a convite do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PGCS), em 14 de junho de 2013.
17
coloquem em xeque soberanias nacionais. Nos vários arranjos, o Brasil tem a
possibilidade de surpreender ou reproduzir a desigual distribuição do poder e riqueza
que mantêm até hoje as relações internacionais. O século XXI, em que pese a
tendência ao multilateralismo nas relações econômicas globais e a proliferação de
acordos de livre-comércio, ainda não testemunhou algo muito diferente do
imperialismo conhecido no século passado. Especialistas afirmam que verá. Não dizem,
porém, se se tratará de uma alternância de atores mas de princípios, logo, de práticas
nas questões concernentes ao regionalismo e à integração regional e global.
Parece importante que o governo brasileiro mantenha sua autonomia e
capacidade de contrariar políticas norte-americanas como demonstrou em ocasiões
recentes no Oriente Médio, no sul da África e, mais especificamente, naquela chamada
África portuguesa. Sua autonomia no BRICS é ainda fundamental para que não se
coloquem em xeque o diálogo simétrico e abrangente em seu próprio continente.
À questão de Elísio Macamo (2012), citada no início deste artigo, acerca do que
nos une, a resposta encontra-se ainda no plano do desejo e da esperança.
Desejamos/esperamos que seja uma cooperação sul-sul mais qualificada, leia-se, que
promova a distribuição a mais equânime dos benefícios aos envolvidos. Pensa-se
também numa integração que não se realize somente no plano comercial mas atinja a
integração produtiva e de infraestrutura (MENEZES & LIMA, 2012, p. 163). Ainda, da
qual participem além de políticos e chefes de Estado, empresários e financistas, quem
sabe, diferentes sociedades civis, movimentos sociais, e, por que não, os quadros
intelectuais e acadêmicos dos países que buscam cooperar?
Nesse sentido, a intenção deste trabalho foi trazer a produção intelectual de
Darcy Ribeiro como uma expressão do pensamento social brasileiro de vertente crítica
na expectativa de que sua reflexão, que é a de sua geração e de alguns pioneiros, nos
subsidie nos debates atuais acerca da cooperação para o desenvolvimento no eixo Sul-
Sul a fim de que se possa efetivamente transcender a “modernização reflexa” das
sociedades que cooperam e planejar a “aceleração evolutiva” entre povos, conforme
as palavras de Darcy Ribeiro, “estruturados para si mesmos”, portadores de “projeto
próprio de desenvolvimento, autônomo e auto-sustentado”, contra qualquer
imposição “recolonizadora” (RIBEIRO, 1982, p. 21-2).
Neste termos, penso, o convite ao diálogo é irrecusável.
18
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