aída carla rangel de sousa (pget-ufsc) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas...

10

Upload: others

Post on 11-Oct-2020

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português
Page 2: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Dilma Beatriz Juliano Organizadoras

Eliane Debus

Nelita Bortolotto

Jilvania Bazzo

VII SLIJ

II SELIPRAM

Seminário de Literatura Infantil e Juvenil

Seminário Internacional de Literatura Infantil

e Juvenil e Práticas de Mediação Literária

Linguagens poéticas

pelas frestas do contemporâneo

Florianópolis,

de 26 a 28 de setembro de 2016

ANAIS

Realização

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/CED/UFSC)

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização e Língua Portuguesa (NEPALP/CED/UFSC)

Grupo de Pesquisa sobre Literatura Infantil e Juvenil e Práticas de Mediação Literária

(LITERALISE/CED/UFSC)

Programa de Educação Tutorial – Pedagogia (PET/CED/UFSC)

Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL)

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Grupo Prolinguagem

Apoio

CAPES | FAPESC | SECARTE/UFSC | PPGET/UFSC

Editora Positivo | Pulo do Gato | Paulus | Paulinas| Editora Record | Livros e Livros

Page 3: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

2

A BELA E A FERA: DOS SALÕES LITERÁRIOS PARA A

LITERATURA INFANTIL E JUVENIL

Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC)

[email protected]

Resumo: O presente trabalho refere-se a um recorte de nossa tese de doutorado em

andamento, na qual propomos uma tradução comentada do conto de fadas literário La Belle

et la Bête (1740) de Mme de Villeneuve, até momento, ainda desconhecido no Brasil. Aqui

apresentamos as duas versões francesas do conto, ambas publicadas no século XVIII,

procurando resgatar brevemente o contexto histórico em que foram produzidas. É sabido

que muitos contos de origem folclórica ganharam desde o final do século XVII, na França,

novos elementos que os transformaram em contos literários, mais adequados ao ambiente

dos salões aristocráticos. O tema do cônjuge-monstro explorado neste conto, por exemplo,

é encontrado em diversas narrativas pelo mundo ao longo da história, como atestado no

índice de Aerne-Thopsom. Apesar de o conto ter integrado o sistema literário francês em

1740, foi através da versão simplificada de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, em 1757,

que o conto ganhou projeção mundial e veio a se tornar um clássico da literatura infantil,

traduzido em diversos países. No Brasil, ficou conhecido com o título A Bela e a Fera. O

cotejo entre as duas versões nos auxilia no esboço de um projeto de tradução que seja

coerente com o objetivo de (re)introduzir no sistema literário brasileiro contemporâneo essa

narrativa, buscando a preservação de suas características essenciais, ao mesmo tempo em

que instiga a (re)descoberta desse conto de fadas literário por um público juvenil

contemporâneo. Tal projeto ampara-se nas reflexões de Antoine Berman a respeito da

tradução não etnocêntrica.

Palavras-chave: A Bela e a Fera. Mme de Villeneuve. Mme Leprince de Beaumont. Tradução

literária.

INTRODUÇÃO

Apresentamos aqui um recorte de nossa tese de doutorado que vem sendo realizada desde

2014 no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal

de Santa Catarina. Em síntese, traçamos um breve percurso histórico que fornece elementos para

um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740),

de Mme de Villeneuve, para o português brasileiro. Em primeiro lugar, resgatamos circunstâncias

históricas quando do surgimento do conto de fadas literário francês e da expressão “conte de fées”,

que lhe faz referência. Em segundo lugar, explicitamos as diferenças essenciais existentes entre

as duas versões francesas do conto no século XVIII – 1740 e 1757 – de Mme de Villeneuve e

Mme Leprince de Beaumont respectivamente, de maneira a esclarecer o projeto de cada uma. Por

último, justificamos algumas escolhas tradutórias ao longo do processo, com base no cotejo das

duas versões, desse conto de fadas no sistema literário brasileiro, considerando o público leitor

juvenil contemporâneo.

Cumpre notar que a escolha deste conto para a pesquisa se deu justamente porque, embora

tenhamos a impressão de estarmos familiarizados com ele, graças a traduções e adaptações

disponíveis na literatura infanto-juvenil, além de adaptações para o cinema, como as de Jean

Cocteau em 1946 e, mais tarde, dos estúdios Disney em 1991, não havia, até o momento, nenhuma

tradução brasileira do conto de 1740. Na verdade, o que se constata é que as traduções em

Page 4: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

3

português existentes procedem da versão abreviada do conto, em 1757. Também estimulou nosso

interesse o fato de se conhecer tão pouco a respeito de Mme de Villeneuve que, detentora de uma

obra de 80 títulos, escrita durante um período em que o direito das mulheres à educação formal e

ao espaço público ainda estavam sendo conquistados, deixou um vasto legado literário (COOPER,

1985). Se Mme Leprince de Beaumont ganhou notoriedade por ter vulgarizado o conto em sua

versão breve e didática, não resta dúvida de que o conto precedente, o qual apresenta um universo

feérico ricamente construído em mais de cem páginas de narrativa por Mme de Villeneuve,

tratando de temáticas universais e atemporais como o amor e a inveja, merece ser (re)descoberto.

1 O SURGIMENTO DO “CONTE DE FÉES”,

OU CONTO DE FADAS À FRANCESA

Na França, o conto de fadas havia ganhado impulso desde o final do século XVII e

conheceu duas fases de grande produção: uma de 1690 a 1715 e outra de 1730 a 1757

(BARCHILON, 1968; RAYNARD, 2002; ROBERT, 2002; SERMAIN, 2005; ZIPES, 2013),

com uma grande participação de escritoras, as chamadas conteuses, como Mme L’Héritier, Mlle

Bernard, Mlle de la Force, Mme de Murat, Mme Durand e Mme d’Auneuil (RAYNARD, 2002),

algumas das quais eram também salonnières. Já havia na França a tradição da contação de

histórias, alimentadas de motivos do folclore francês. As narrativas orais circulavam entre os

camponeses, que se reuniam com suas famílias (adultos e crianças juntos) a fim de compartilhá-

las. Muitos elementos representavam o universo árduo e inclemente da vida dos camponeses,

como o abandono dos filhos devido à penúria de alimentos, a orfandade e a figura da madrasta na

nova família, a violência, etc., misturados a elementos do universo maravilhoso, que estavam

presentes na literatura francesa desde pelo menos a Idade Média (COELHO, 2003). Esses temas

e outros motivos da tradição oral foram incorporados a narrativas mais elaboradas, tanto de forma

como de conteúdo, que transitavam nos salões literários. De acordo com alguns pesquisadores,

como Sophie Raynard (2002) e Jack Zipes (2013), a expressão “conte des fées” passou a designar

esse gênero após a publicação dos três primeiros volumes da obra Contes de fées por Madame

d’Aulnoy em 1697. No mesmo ano, Perrault, já membro da Academia Francesa de Letras,

publicou Contos da Mamãe Gansa (Histoires ou contes du temps passé or Les Contes de ma Mère

l’Oye), que se distinguia fortemente de toda a produção de contos de fadas das chamadas

“conteuses”, por manter a narrativa mais próxima de sua origem folclórica, explica Raynard.

Antes disso, Mme de Aulnoy, já havia publicado “L’île de la félicité”, considerado o primeiro

conto de fadas literário, em uma obra intitulada l’Histoire d’Hippolyte, Comte de Duglas em 1690.

Mme de Villeneuve e Mme Leprince de Beaumont foram das últimas escritoras a publicar

contos de fadas literários. Esta última retomava contos já existentes e os simplificava, sem citar

suas fontes, como aconteceu com La Belle et la Bête de Mme de Villeneuve. Já ao final do século,

a grande coletânea de contos em 41 tomos chamada Le cabinet de fées (1785-1789), organizada

por Charles Joseph Mayer, reuniu a maior parte da produção de contos, dentre os quais apenas a

versão de Mme de Villeneuve aparece no volume 26.

2 MME DE VILLENEUVE (1695?-1755), MME LEPRINCE DE BEAUMONT (1711-1780):

DUAS VERSÕES DIFERENTES DE LA BELLE ET LA BÊTE.

Consideramos o registro da maioria dos documentos a respeito de Gabrielle-Suzanne

Barbot que ela tenha nascido em La Rochelle, lugar de origem de sua família, em 1695, embora

haja dados divergentes, que registram o nascimento em Paris, 1685 (GIROU-SWIDERSKI,

1994). De família aristocrática, casou-se, em 1706, com o militar Jean-Baptiste Gallon de

Page 5: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

4

Villeneuve, que lhe deu o sobrenome. Mudou-se para Paris após a viuvez em 1711 e lá viveu de

seus escritos sob a proteção do ilustre poeta trágico M. de Crébillon, tendo falecido em sua casa

em 1755. Escreveu mais de 80 títulos, muitos deles anonimamente. Foi considerada sua obra-

prima à época um romance intitulado La Jardinière de Vincennes em 1753.

La Belle et la Bête foi publicado na coletânea La jeune amériquaine et les contes marins

em 1740, na qual uma dama de companhia relata a história de amor entre a Bela e a Fera a um

jovem casal em viagem de navio à ilha de São Domingos. Essa estrutura segue a técnica do récit-

cadre/récit-enchassé, na qual uma narrativa-moldura antecede e apresenta encaixadas outras

narrativas, mimetizando assim a transmissão oral dos contos de outrora.

O enredo principal é aquele que se tornou tão conhecido através da versão de 1757: ao

tentar obter uma rosa do castelo encantado da Fera para agradar sua filha mais nova, um mercador

é surpreendido pelo monstro e recebe como punição do monstro a entrega da moça. Para salvar a

vida do pai, Bela então parte para o castelo com a certeza de que será devorada; no entanto, a Fera

a mantém como “a única soberana” do lugar; ao final, o amor de Bela desfaz a metamorfose do

príncipe e eles vivem felizes por muito tempo. Na versão de Mme de Villeneuve, porém, múltiplos

outros episódios enriquecem a trama principal, dos quais destacamos a origem genealógica de

Bela, a explicação do encantamento da Fera, os episódios oníricos em que se revela o conflito

psicológico de Bela sobre amor e desejo.

A narrativa também é marcada pela presença das fadas, mulheres de poderes sobrenaturais

que interferem na vida dos humanos; há passagens detalhadas sobre como funciona a hierarquia

das fadas, o que elas discutem, decidem e como participam dos destinos de cada personagem. Se

lembrarmos que etimologicamente “fada” vem do latim fata, que significa “oráculo”, “predição”,

derivada de fatum, que significa “destino, fatalidade” (COELHO, 2003), percebemos a força

simbólica dessa presença, perante o racionalismo crescente e tradição patriarcal da sociedade

francesa do século 18.

Outro aspecto que importa frisar é que Mme de Villeneuve escreveu essa versão para seus

pares em plena moda dos salões parisienses, onde os contos de fadas literários foram gestados

desde o século anterior, com Mme de Aulnoy. Ou seja, seu público-alvo era principalmente moças

e mulheres da aristocracia francesa. O conto preserva a estética preciosa, quanto à forma, na

utilização de um estilo rebuscado, figuras de linguagem vinculadas à amplificação e extravagância

que permitem tratar os eventos maravilhosos (“une beauté surnaturelle”), à hipérbole lexical

(“terrible”, “effroyable”, advérbios em -ment) e descritiva. Dessa forma, torna o luxo ainda mais

exagerado e praticamente inalcançável no mundo real. Quanto ao conteúdo, um dos principais

elementos é a idealização do amor, não sem o tom moralizante que permeia todo o conto,

conforme destaca Barchilon (1968). Por outro lado, com sutileza, Mme de Villeneuve, constrói

uma protagonista forte, resiliente e bem instruída, amante dos livros, da música, dos melhores

espetáculos de ópera e do teatro, como oferecidos na “cidade mais bela do mundo”

(VILLENEUVE, 1996, p. 57). Também é sutil o erotismo do conto, em que a Fera pede para

“deitar-se” com Bela todas as noites, convite que ela recusa e somente aceita quando se casa com

o monstro. Além disso, apesar de viver com a Fera, ela deseja a companhia do belo

“Desconhecido” que aparece em seus sonhos sem saber que aquela é a figura do príncipe livre da

metamorfose.

Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, por sua vez, engendrou um projeto diferente, apenas

17 anos após a publicação da primeira versão do conto, sem que tenha mencionado sua existência.

Nascida em Rouen, ela ficou órfã de mãe e seguiu para um convento aos 11 anos, onde se formou

educadora cristã. Casou-se duas vezes: a primeira, com o oficial Antoine Grimard de Beaumont,

e a segunda vez em Londres com Thomas Pichon-Tyrrel, com quem teve seis filhos

(BIANCARDI, 2008). Na capital inglesa trabalhou como governanta de jovens nobres inglesas e

Page 6: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

5

publicou sua versão do conto no célebre Magasin des Enfants em 1757, projeto didático destinado

a instruir meninas e moças. À maneira de Mme de Villeneuve, a técnica da narrativa-moldura

também é empregada, e, nessa versão, a narradora é Mlle Bonne, uma instrutora que dá lições de

conduta social e de conteúdo escolar às suas pupilas. Ali, o conto é fortemente encurtado e

adaptado ao formato dessa revista feita para instruir. Como resultado, a linguagem é simplificada,

os episódios múltiplos são eliminados, e apenas o enredo principal é resumido e narrado de

maneira linear. Muitas marcas culturais da versão que lhe antecede estão ausentes, assim como

as referências espaço-temporais; os personagens são caracterizados apenas por alguns adjetivos,

como é típico do gênero. Não há conflito interno de Bela ou de qualquer outro personagem, muito

menos qualquer sinal de erotismo, pois para a autora trata-se de um conto moralizante. A ideia do

casamento tradicional do sistema patriarcal e cristão à época é mantida. A Fera pede a mão de

Bela em casamento, e a união acontece ao final do conto.

Em seu cotejo das duas versões, Paul Remy (1957) conclui que “o conto de Mme Leprince

de Beaumont é: 1°) mais simples, mais concreto, mais próximo da realidade cotidiana; 2°) mais

deliberadamente moralizante; 3°) mais conciso.”

De nossa parte, resumimos as diferenças mais marcantes entre as duas versões conforme o

quadro abaixo:

Quadro 1: diferenças essenciais entre as duas versões francesas do conto de fadas literário La Belle et la Bête.

O conto de Mme Leprince de Beaumont (1757) O conto de Mme de Villeneuve (1740)

•Obra: Magasin des enfants ou dialogues d’une sage

gouvernante avec ses élèves (1756/1757);

•Público: infantil feminino inglês;

•Volume: conto curto com cerca de 20 páginas;

•Moralidade cristã predominante, ausência de erotismo;

•Ausência de conflitos internos e descrição dos personagens;

•Linearidade temporal;

•Indeterminação espacial;

•Presença atenuada de fadas; o “maravilhoso” do conto é

atenuado em detrimento do tom moralizante;

•A exuberância e a extravagância são atenuadas;

•Simplificação da narrativa: forma (ritmo, sintaxe, léxico) e

conteúdo (trama curta, censura, pouca ênfase em assuntos

como o amor galante).•Obra: La jeune amériquaine et les

contes marins (1740);

•Público: jovens moças e mulheres aristocratas;

•Volume: conto longo de quase 200 páginas;

•Presença de erotismo concomitantemente à moralidade cristã;

•Conflitos internos de Bela;

•Ruptura da linearidade temporal (inserções oníricas, volta à

origem dos protagonistas);

•Narrativa datada; marcas culturais da época (e.g. topônimos

referentes à Paris);

•Presença marcante do mundo das fadas; o “maravilhoso” é

bem explorado, apesar de certo tom moralizante;

•Presença de figuras de linguagem vinculadas à amplificação e

extravagância, como a hipérbole;

•Estilo rebuscado, ritmo lento, frases longas.

3 ALGUMAS ESCOLHAS TRADUTÓRIAS PARA

UM PÚBLICO-LEITOR BRASILEIRO JUVENIL CONTEMPORÂNEO

Vários são os desafios de traduzir a versão de Mme de Villeneuve para o sistema literário

brasileiro contemporâneo. A primeira questão que se coloca é: propor ou não uma tradução

arcaizante e que grau de arcaísmo usar: léxico em desuso, manter a sintaxe com estrutura de frases

longas, manter pontuação anacrônica? Outra questão seria que público-alvo escolher a fim de

resolver o erotismo presente no conto? Além disso, que aspectos mais relevantes do estilo de

Mme de Villeneuve privilegiar? Sem dúvida, merecem atenção as figuras de linguagem que

Page 7: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

6

favorecem a exuberância, e que na versão de Leprince de Beaumont aparecem atenuadas, pois

esta prioriza o tom moralizante no conto e reduz o efeito do “maravilhoso”, algo que para ela

podia ser pernicioso às crianças (BIANCARDI, 2008). Estas são algumas das questões que nos

levaram a refletir sobre o projeto de tradução (BERMAN, 1995), na medida em que procuramos

respeitar as particularidades do texto, sobretudo no que concerne a estética preciosa desse conto

de fadas literário, à luz das reflexões sobre tradução não etnocêntrica de Antoine Berman (2013).

Assim, por falta de espaço para discussão de todos esses itens no presente trabalho, procuramos

apenas delinear algumas ideias do projeto de tradução em andamento, através de alguns trechos

exemplificadores.

Por exemplo, no tocante ao ritmo, conciso em uma, expandido em outra, desde o incipit:

La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa

tradução

« Il y avait une fois un marchand, qui était extrêmement riche. »

(BEAUMONT, 2011, p. 20)« Dans un pays fort éloigné de celui-ci, l’on voit une grande ville, où le

commerce florissant entretient l’abon-dance. Elle a compté parmi ses citoyens un marchand heu¬reux

dans ses entreprises, et sur qui la fortune, au gré de ses désirs, avait toujours répandu ses plus belles

faveurs. »

(VILLENEUVE, 1996, p. 13)Em um país muito distante daqui, existe uma grande cidade onde o

comércio prospera abundantemente. Havia entre seus cidadãos um mercador bem-sucedido em seus

negócios, e para quem a Fortuna, em resposta aos seus desejos, havia concedido seus melhores favores.

Na abertura da narrativa, percebe-se claramente que Mme Leprince de Beaumont prioriza

a linguagem simplificada na breve introdução do mercador, enquanto a narração da primeira

versão apresenta o mercador por um processo de afunilamento, do espaço maior para o menor,

até que focaliza no mercador: primeiramente um país, depois uma cidade, os cidadãos, e então

aquele homem, aqui já privilegiado por uma figura feminina, a Fortuna, que não é fada, mas uma

figura mitológica com o poder de conceder dons ou favores aos humanos. As referências à

mitologia são, aliás, recorrentes na versão de Mme de Villeneuve. Escolhemos manter o ritmo da

versão de 1740, tanto quanto possível, pela riqueza de detalhes que acrescenta. Também é possível

notar desde já o emprego de elementos hiperbólicos (“muito distante”, “grande cidade”,

“abundantemente”, “melhores favores”) em um parágrafo curto.

A hipérbole também é amplamente utilizada em descrições espaciais, como a primeira vista

do castelo:

La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa

tradução

Tout d’un coup, en regardant au bout d’une longue allée d’arbres, il vit une grande lumière, mais qui

paraissait bien éloignée. Il marcha de ce côté-là, et vit que cette lumière sortait d’un grand palais qui

était tout illuminé. Le marchand remercia Dieu du secours qu’il envoyait, et se hâta d’arriver á ce

château; (…) et marcha vers la maison, où il ne trouva personne; mais étant entré dans une grande salle,

il y trouva un bon feu (…). (BEAUMONT, 2011, p. 23)En avançant sans le savoir, le hasard conduisit

ses pas dans l’avenue d’un très beau château, que la neige avait paru respecter. Elle était composée de

quatre rangs d’orangers d’une extrême hauteur, chargés de fleurs et de fruits. (…)Un escalier d’agate à

rampe d’or ciselé, d’abord s’offrit à sa vue: il traversa plusieurs chambres magnifiquement meublées,

une chaleur douce qu’il y respira le remit de ses fatigues. (VILLENEUVE, 1996, p. 22)Avançando sem

sabê-lo, o acaso conduziu seus passos por uma alameda de um castelo muito belo, que a neve parecia

ter respeitado. Era composta de quatro filas de laranjeiras extremamente altas, carregadas de flores e

frutos. [...]Uma escadaria de ágata, com corrimão de ouro talhado, se ofertou à sua vista: ele atravessou

vários cômodos magnificamente mobiliados, um calor suave que sentia ali o fez restabelecer-se do

cansaço.

Page 8: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

7

Sendo esta a primeira vez que se avista o castelo da Fera, a narrativa conduz o leitor junto

ao mercador pelo caminho. Na versão de Mme de Villeneuve, tudo é abundante e com riqueza de

detalhes, as árvores do caminho são “extremamente altas e carregadas”, os detalhes do rico castelo

estão presentes. Na versão de Leprince de Beaumont, a descrição é mais próxima da realidade,

como dizia Paul Remy. Os adjetivos são de grandeza, porém, sem exagero: “uma longa alameda”,

“um grande palácio” que ganha uma dimensão ainda mais próxima do mundo real (“la maison”).

Dentro do palácio, “uma grande sala” e um “bom fogo”. Os adjetivos são repetidos, há pouca

variação lexical (e.g., “grand”), enquanto na versão de Villeneuve, há emprego de estratégias

variadas além dos adjetivos, como os advérbios formados com o sufixo –ment (e.g.,

“magnificamente”) e o detalhamento descritivo. Em um gesto do mercador, aparece o elemento

cristão na versão de Leprince de Beaumont, que está ausente no trecho de Villeneuve: “O

mercador agradeceu a Deus do socorro que lhe enviara”. Não é mais o maravilhoso, a mágica que

explicam os fatos, mas sim a religião (BIANCARDI, 2008).

É importante ressaltar que o hábito da contação de histórias era compartilhado por adultos

e crianças indistintamente até o séc. XIX. Embora os contos não fossem destinados a elas, as

crianças tinham participação no mundo dos adultos e, portanto, tinham acesso a eles. Conforme

os hábitos foram modificando-se e se tornando mais refinados, principalmente nas classes mais

privilegiadas, os contos populares foram sendo segregados às classes mais desfavorecidas. De

maneira que os contos populares não foram completamente excluídos das classes dominantes,

mas transformados. É o que Raymonde Robert (2002) chama de conto de fadas literário. Zohar

Shavit (1999) considera também que apesar de ter havido a moda dos contos de fadas, eles

estavam vinculados mais às classes mais pobres e às crianças, percebidas como fonte de

divertimento para os adultos. Quando a percepção sobre o conceito de criança mudou, os textos

começaram a ser destinados a elas e também sofreram mudanças na maneira como foram sendo

escritos. De certa forma, é o que ocorre com a versão escrita por Mme Leprince de Beaumont.

Sem dúvida, é preciso reconhecer o pioneirismo de Mme Leprince de Beaumont em ter escrito

exclusivamente para crianças, em um período em que a noção de infância ainda não estava bem

estabelecida e a literatura infantil não existia. Shavit (1986) aponta para o caráter ambivalente da

literatura infantil, ou seja, ela pode ser lida tanto pelas crianças quanto pelos adultos. Porém,

acreditamos que a versão escrita por Mme de Villeneuve não pode ser reconhecida como

ambivalente justamente porque, embora a noção de infância não estivesse bem delimitada à época,

fica claro que a autora escrevia para as mulheres, sobretudo quando nos deparamos com a

presença do erotismo, ainda que sutil, como no trecho a seguir:

La Belle et la Bête (Mme Leprince de Beaumont)La Belle et la Bête (Mme de Villeneuve)Nossa

tradução

« La Belle soupa de bon appétit. Elle n’avait presque plus peur du monstre; mais elle manqua mourir

de frayeur, lorsqu’il lui dit:

« La Belle, voulez-vous être ma femme? »

« Elle lui demanda sans détour si elle voulait la laisser coucher avec elle. À cette demande imprévue,

ses craintes se renouvelèrent, et pous¬sant un cri terrible, elle ne put s’empêcher de dire: Ah Ciel! je

suis perdue.

Nullement, reprit tranquillement la Bête. »Sem rodeios, indagou se a jovem a deixaria deitar-se com

ela. Diante dessa demanda inesperada, seus temores retornaram, e com um terrível grito, ela não se

conteve ao dizer: Ah, Céus! Estou perdida.

De modo algum, retomou a Fera tranquilamente.

Os trechos acima se referem à primeira demanda da Fera de se relacionar maritalmente com

Bela, o que ela responde negativamente nessa e noutras vezes. Nota-se a neutralidade da pergunta

na versão moralizante, enquanto na versão de Villeneuve, há uma ambiguidade na expressão

“coucher avec” que, de fato, pode designar a conjunção carnal, mas também no sentido literal

Page 9: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

8

torna-se neutra. A expressão torna-se tanto mais ambígua quando ao final do conto, a Fera

finalmente é aceita por Bela e deita-se ao seu lado no leito nupcial e dorme serenamente, sem que

de fato aconteça mais nada. Ao se valer dessa ambiguidade, Mme de Villeneuve parece sinalizar

para o público adulto e feminino a mensagem de que a união com o cônjuge deve ser consentida

pela mulher. Portanto, a tradução por “deitar” reflete, a nosso ver, essa ambiguidade no trecho

citado.

CONCLUSÃO

Tentamos, neste trabalho, resgatar alguns dados históricos a respeito do conto de fadas

literário, em especial, do conto intitulado La Belle et la Bête, escrito por Mme de Villeneuve em

1740 e, mais tarde, retomado e adaptado por Mme Leprince de Beaumont em 1757. Por se tratar

de duas versões destinadas a públicos diferentes, procuramos apontar diferenças essenciais entre

elas, para refletir, em primeiro lugar, sobre as manipulações operadas no texto por Leprince de

Beaumont de maneira a didatizá-lo, e, em segundo lugar, para utilizar os dados encontrados na

elaboração de um projeto de tradução coerente com o objetivo de manter as características

essenciais da estética preciosa no conto de Mme de Villeneuve, notadamente no amplo uso de

elementos que favorecem o exagero, a exuberância, através de um efeito “maravilhoso”, mágico,

próprio do gênero. Os trechos apresentados serviram para exemplificar alguns desses aspectos e

sobre como pensamos nosso projeto de tradução conduzido no trabalho da tese em andamento,

considerando um público-alvo juvenil e adulto contemporâneo.

REFERÊNCIAS

BARCHILON, J. Le Cabinet des fées et l’imagination romanesque. Études littéraires. Montreal, v. 1, n. 2,

p. 215-231, 1968. Disponível em: http://id.erudit.org/iderudit/500021ar.

BERMAN, A. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995.

BERMAN, A. A prova do estrangeiro. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.

BERMAN, A. A tradução e a letra, ou, O albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres;

Mauri Furlan e Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras/PGET, 2013.

BIANCARDI, E. Madame de Villeneuve, La Jeune Américaine et les contes marins(La Belle et la Bête),

Les Belles Solitaires – Madame Leprince de Beaumont, Magasin des enfants (La Belle et la Bête). Paris:

Honoré Champion, 2008, 1636 p.

COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 1 ed. São Paulo: Moderna, 2000.

______. O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: DCL, 2003.

COOPER, B. R. L. Madame de Villeneuve: the author of La Belle et la Bête and her literary legacy.

University of Georgia. Athens, p. 304. 1985.

GIROU-SWIDERSKI, M.-L. La Belle ou la Bête? Mme de Villeneuve, la méconnue. In: Femmes

savantes, Femmes d’esprit, Women Intel-lectuals of the French Eighteenth Century. Eighteenth Century

French Intellectual History. vol. I, New York: Peter Lang, 1994, p. 99-128.

LEPRINCE DE BEAUMONT, J-M. La Belle et la Bête. In: AMON, E. (Org.). La Belle et la Bête et

autres contes. Paris: Larousse, 2011.

RAYNARD, S. La seconde preciosité: floraison des conteuses de 1690 à 1756. Tübingen: Gunter Narr

Verlag Tübingen, v. 17, 2002.

REMY, P. Une version méconnue de « La Belle et la Bête ». In: Revue belge de philologie et d’histoire.

Tomo 35, fasc. 1, 1957. pp. 5-18.

Page 10: Aída Carla Rangel de Sousa (PGET-UFSC) · um esboço do projeto de tradução do conto de fadas literário francês La Belle et la Bête (1740), de Mme de Villeneuve, para o português

Pág

ina1

00

9

ROBERT, R. Le conte de fées littéraire en France de la fin du XVIIe à la fin du XVIIIe siècle. Paris:

Honoré Champion, 2002.

SERMAIN, J.-P. Le conte de fées: du classicisme aux Lumières. Paris: Ed. Desjonquères, 2005.

SHAVIT, Z. The Concept of Childhood and Children’s Folktales: Test Case - “Little Red Riding Hood”.

In: TATAR, M. The Classic Fairy Tales. New York: W. W. Norton & Company, 1999.

________. Poetics of Children’s Literature. Georgia: University of Georgia Press, 1986.

VILLENEUVE, M. D. La Belle et la Bête. Paris: Gallimard, 1996.

ZIPES, J. Beauties, beasts and enchantment: classic french fairy tales. Kent: Crescent Moon Publishing,

2009/2013.