abismo humano 9

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"Is it all we see or seem just a dream within a dream?"

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Page 1: Abismo Humano 9
Page 2: Abismo Humano 9

Editorial

9 A Associação de Artes 'Abismo Humano’ dedica-se ao aproveitamento da tendência artística presente nas novas ca-madas jovens e a integrar, junto da arte, os valores locais, bem como ao entretenimento, educação e cultura de forma a ocu-par os espaços livres na disposição dos seus associados. Para tal a associação compromete-se a contactar vários artistas, tan-to na área da pintura, da literatura, escultura, fotografia, cine-matográfica, ilustração, música e artesanato, de forma a expor as suas obras tanto num jornal de lançamento trimestral, con-sagrado aos sócios, como na organização de eventos, como ter-túlias, exposições, festas temáticas, concertos e teatros. A asso-ciação das artes compromete-se igualmente a apoiar o artista seu colaborador, com a montagem de, por exemplo, bancas co-merciais e com a divulgação do trabalho a ser falado, inclusive lançamentos, visando assim proteger a arte do antro de pobre-za ingrata e esquecimento que tantas vezes espera as mentes criativas após o seu labor. Os eventos, que são abertos ao público, servem inclusive o propósito de angariar novos sócios, sendo que é privilégio do sócio, mediante o pagamento da sua quota, receber o jornal da associação, intitulado de “Abismo Humano”. Este jornal possui o objectivo de divulgar as noticias do meio artístico bem como promover os muitos tipos de arte, dando atenção à qualidade, mais do que à fama, de forma a casar a qualidade com a fama, ao contrario do que, muitas vezes, se pode encontrar na litera-tura de supermercado. Afiliada às várias zonas comerciais de cariz artístico, será autora de promoção às mesmas, deixando um espaço também para a história, segundo as suas nuances artísticas, unindo a vaga jovem ao conhecimento e à experiên-cia passada.

Abismo Humano 2

Page 3: Abismo Humano 9

Sumário

Abismo Humano

Editorial

Sumário

Manifesto

Ruínas Circulares

Hieróglifos Existênciais

Flauta de Pã

Labirintos Prosaicos

Captações Imaginárias

Desenho

Pintura

Arte Digital

Fotografia

Publicidade

Alma

Púrpura

Aeternum X

página 7

Poesia

Ariadne do Castelo

página 08

Poesia

Tatiana Pereira

página 10

Desenho

Nuno Bastos

página 27

Desenho

Jaime Neves

página 31

Arte Digital

Joana Dias

página 39

Fotografia

Ana de Macedo

página 43

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4

5

8

19

27

32

37

43

46

3

Page 4: Abismo Humano 9

Manifesto Abismo Humano

O Abismo Humano compromete-se a

apresentar a sapiência, o senso artístico, e o cariz cultural e civilizacional presente no gótico contemporâneo tanto como nas suas raízes passadas. O Abismo Humano toma o compromisso de mostrar o que têm tendência a perma-necer oculto por via da exclusão social, e a elevar o abominável ao estado de bele-za, sempre na condição solene e contem-plativa que caracteriza o trabalho da inte-ligência límpida e descomprometida. O Abismo Humano dedica-se a explorar as entranhas da humanidade, e é essencialmente humanista, ainda que esgravatando o divino, e divino é o nome do abismo no humano. O Abismo Humano é um espaço para os artistas dos vários campos se darem a conhecer, e entre estes, preferimos as almas incompreendidas nos meios sociais de maior celebri-dade. O Abismo Humano é um empreendimento e uma actividade da Associação de Artes, e por isso tomou o compromisso matrimonial para com as gémeas Ars e Sophia, duas amantes igualmente sôfregas (impávidas), insaciáveis (de tudo saciadas) e incondicionais (solo fér-til à condição). O Abismo Humano compromete-se a estudar o intercâmbio da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do amor partilhado e da desolação impossível, do qual o Abismo Humano é rebento. Como membro contra-cultura, o Abismo Humano dedica-se à destruição da ignorância que cresce escondida, no seio das subculturas, cobrindo-as à sombra do conformismo e da futilidade. Retratamos a tremura na mão do amor, a noite ardente, e a dança dos que já foram ao piano do foi para sempre.

André Consciência Imagem - Tatiana Pereira

Abismo Humano 4

Page 5: Abismo Humano 9

Ruínas Circulares

Alma Púrpura é um projecto de som que nasceu em Setem-

bro de 1999 no coração de Lisboa e que começou por uma

simples gravação registada em cassete, na altura com uma so-

noridade muito básica e experimental, baseada em música

Noise.

Durante os 3 primeiros meses, Aeternum X (mentor do pro-

jecto), experimentou criar ambiências sonoras continuas atra-

vés de um teclado Casio CT-670 ligado a um pedal Zoom 505

para guitarra eléctrica, mas foi em Dezembro desse mesmo

ano que saiu a 1ª demo-tape oficial do projecto, denominada

“Spiritus Provocator”, gravada num Tascam de 4 pistas ana-

Abismo Humano

Alma Púrpura

Www.AlmaPurpura.Com

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Ruínas Circulares

alógico e que viria a ser o pilar fundamental da sonoridade

posterior. O “Spiritus Provocator” saiu em cassete e foi uma

exclusividade (limitado a 10 cópias apenas). A sonoridade tí-

pica desta demo, caracterizou-se por ambiências obscuras e

hipnóticas de suspense e medo.

Após alguns meses, concretamente em Março do ano

2000, eis que surge uma 2ª demo-tape intitulada “Aeternum/

Abismo Humano

Alma Púrpura

Www.AlmaPurpura.Com

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Page 7: Abismo Humano 9

Ruínas Circulares

Holocaustum”, que viria a seguir os passos da 1ª, mas com

um som mais agressivo e ruidoso. Desta feita, não saíram có-

pias para o exterior, ficando a demo arquivada em home-

studio e lançada uns anos mais tarde pela Internet.

O projecto esteve em hiato durante 7 anos e foi em início de

2008 que foi lançada uma nova demo: “Illum Dii Male Per-

dant”.

Esta demo marcou o retorno de

Alma Púrpura num novo for-

mato, o digital e sob uma so-

noridade mais Dark Ambient,

mas com traços visíveis de ex-

perimentalismo e um famoso

Intro com arranjos orquestrais.

A partir daqui, o som do pro-

jecto foi caminhando dentro de

uma linha própria, dando origem a várias demos e a outras

sonoridades, como a música Neoclássica e a influência do Sci

-Fi em temas como “Bermuda Triangle” e “Planets”.

Está também patente no projecto, ao longo do percurso de vi-

da deste, uma sonoridade ao estilo cinematográfico, caracte-

rística dos filmes de drama e horror norte-americanos, mas a

essência do som em Alma Púrpura, será sempre misteriosa,

cativante e enigmática, podendo até entrar no conceito de mú-

sica progressiva.

Abismo Humano

Alma Púrpura

Www.AlmaPurpura.Com

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Page 8: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

RELEVO

Se a minha paisagem são altos relevos na busca incessante, então abrem-se clareiras na fugaz evidência.

Pelas abertas rompe a luz, os cheiros intocados na impermanência, as imaginárias ervas, orvalhadas, afagando cada passo,

o rasgar da rota formando ondas, o canto dos pássaros sustentan-do a cadência.

Se a minha paisagem são altos relevos de nuas escarpas, de espinhosas folhagens, de ventos sibilinos,

então, nos vislumbres do protagonista, são vales de calmaria, são planícies deitadas ao sol, adormecidas.

Ariadne do Castelo

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 9: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

A Míngua

É assim a míngua: toda uma perspectiva em desconstrução.

É diferente de não ter nada - nada à partida - a míngua é um nada em exposição sobre

uma fatia de esperança, duas fatias de ima-ginação, perfídia do desejo, vou trabalhando

as várias camadas da obra...

É assim a míngua: pontos de bolor carco-mendo a tela de luz.

É diferente da noite escura, da mais absoluta treva, é ter sonhado um dia, uma alvorada, ainda que baça mas quase observável, tão perfeitamente adiada. É a voz cristalina e

pura, sempre calada.

Ariadne do Castelo

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 10: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

HARMONIA

Cemetery Tree - Mark Bauschke

Ouço sinos tocados p'los anjos e as flautas dos faunos

Vejo ilusionistas refulgentes em telas negras de carvão

E unicórnios entrelaçados em serpentes

Sinto na face a brisa perfumada das fadas

E respiro o pó das estrelas

A terra húmida entre as ervas; Fendida

Sob a carícia de trovões; Derramando

O incenso da Lua sobre os mares de prata

E a matéria incandescente sobre os rochedos

Carrego no peito o fardo de harpas e tambores

Que de melodias celestes pulverizam o ar

E que de véus cobrem

A atmosfera etérea dos sepulcros

Tatiana Pereira

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 11: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

Despertar

A água das manhãs e a frescura vegetal

De seiva volátil preenchendo os dias

Soprando em vozes de cisnes alados

Com paisagens ululando ao sabor do vento

As manhãs, afagando plumas de serafins

Germinando em solos mortos

E á beira dos rios

Com diamantes caindo em gota

Espectros pairando para lá das nuvens

E rosas brotando do céu

Vórtices de cores na transparência dos dias

E cristais nos pontos de luz do sol

O leito de pétalas escarlates

E do azul infinito do horizonte

Os grãos de areia da montanha

Crepitando na fogueira da nascente

Onde a dormência da neblina

Repousando na folhagem verde de jardins

Cobertos de geada prateada e luminescente

Se mistura com o sussurro silencioso dos narcisos

Tatiana Pereira

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 12: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

A Tua Boca

Escrevo para o vento

contra o odioso silêncio

os seus bichos milenares

e o vazio que ganha contornos de branca loucura

uma sanguessuga obscura e profunda

dentro das imagens incendiadas

onde recordo o rosto que nunca conheci

as pessoas solares afastaram-se de mim

as minhas feridas brilham

como vibrantes libélulas

por cima das águas estremecidas pela insónia

deixei de as lamber

porque sou um soldado com uma só dor original

erguida da fundura do meu nome

algo que não podes curar com o teu sexo

e o teu cheiro de laranjeira marinha

que se passa aqui?

devo carregar a noite nos ombros e nos olhos

devo ser fiel aos meus sentidos e sentir

abandonar e abandonar-me

ressuscitar morrendo

por dentro da Casa da beleza

I N U T I L

N

U

T

I

L

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 13: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

A Tua Boca

Esta cabeça fonética com caixas de música

luzes precariamente equilibradas na linha do horizonte

venenos acessíveis a poucos

este mundo ligado ás artérias das madrugadas

aos compassos do poema que abre e fecha a paixão

as flores internas

acendem esta boca repentina de astros

estas mãos torrenciais de azul

esta pele levantada para que vejas a carne combustível

sobre o amplexo perfeito do sonho

um trompete arrancada à raiz da lua

transbordantes desastres pressentidos

na fluidez fotográfica dos corpos

este quarto cheio de ignorância de mim próprio

este coração que bate para trás

devora a memória que diz o gelo

de todas as noites em que não te encontrei

de todos os dias em que passas

e me deixas à chuva ardendo por uma palavra

não quero saber de mim

já não me importo

não tenho medo do eclipse

que alastra pelos dedos alucinados

sobe à cabeça esgotada pelo silencio

o nervo da solidão agreste pensa

essa mulher de pedra esmagada contra a eternidade

sinto a voz que minha Mãe me deu

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 14: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

A Tua Boca

ténue vaga

aparição

longínqua espuma movimentando-se

na pálpebra que fecha

a luz que me habitava

antes de me precipitar

que se passa?

não estou triste

não tenho ambições

guardo as coisas que importam

debaixo da língua

um lugar para a tua boca devorar

quando quiser.

Carlos Ramos

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 15: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

Treva

O poema move-se na obscuridade

Do seu escuro pensar

no jardim de negras flores onde o poeta sangra

Perde-se o nome na boca errada

o cansaço e a insónia crescem dos olhos metafóricos

cães fantasmas devoram a paixão

onde a vida ganha violentas formas

uma estranha águia rasga com o seu bico a têmpora febril

do homem que escreve

o seu abismo

a sua árvore

a sua melancolia

cravada na limpidez dos dedos da terra devastada

pelas avenidas desarrumadas onde deambulo

escurecido de beleza rudimentar

fixo a corda ao cais maternal

onde recordo a ternura completa

das roseiras de seda

a infância arrasada pelo crescimento do corpo

alimento o peixe estelar

trabalho para ti desde sempre

mesmo que não o entendas

mesmo que não o vejas

mesmo que não o sintas

espero em silencio

como o monge de Friedrich

esqueço as cores que me habitavam

entrego-me ao minucioso trabalho

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 16: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

Treva

das mãos por dentro do corpo

à colheita da luz que escorre das madrugadas

dos campos ferozes onde habitamos

a Casa de solar arquitectura

eu imagino com delicadeza essa claridade

as sementes preciosas do amor por germinar

veneno espalhado pelo sonho por sonhar

um alicerce suspenso na noite

que me toca o rosto iluminando-o de exuberante treva.

Carlos Ramos

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 17: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

Palavra

Pudemos colocar a fé onde nos é permitido

ou seja a meio do caminho onde só passam as crianças

e os trespassados

e os desalojados

e os desprezados

e os que por abrigo escolheram o céu nocturno

para abrir os olhos da tempestade que é estar nu

e se transformaram em gente imensamente rica

porque puderam fechar os buracos negros da memória

transformar os erros em clarividentes metáforas

a sujidade em branco amanhecer

e esquecer…

a minha direcção é entre esse vento norte

e a verdade que tudo magnetiza

medusas estelares

cidades costeiras precipitas pelo grito oceânico

constelações iluminadas na intensidade

dos teus olhos boreais

os passos em volta do meu nome

levantado entre império nenhum e as mãos abertas

sobre as nossas frágeis vidas

atiro-me contra as paredes futuras de nossa Casa

sonho um coração felpudo feito de espuma estrutural

e asas de borboletas azuis

escrevo o canto do pássaro matinal cheio de folhas

e a ternura desmedida do meu cão

e sobretudo

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 18: Abismo Humano 9

Flauta de Pã

Palavra

o meu sangue sentido no afecto das tuas mãos de vidro

crepuscular

e não preciso de metáforas

para escrever o que é centro no poema

onde suavemente irrompe o que sempre será

a boca encontrada no silencio da busca

um lugar onde se podem queimar os erros do passado

um ballet de intangíveis luzes para pernoitar no abandono

do corpo

dias e noites demasiadas

numa única palavra

que não precisa de ser dita de tão evidente.

Carlos Ramos

Abismo Humano

Hieróglifos Existênciais

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Page 19: Abismo Humano 9

Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

Cara Doutora Vane, as ossadas que retirámos do pântano

correspondem às suas suspeitas e, como nos advertiu, mante-

mos o nosso achado longe dos olhares e perguntas de quem

quer que seja; e Deus permita que assim permaneçam. Desco-

bri também certos pormenores do folclore local que podem

estar ligados à investigação, e tenho a certeza que ficará tão

espantada e interessada quanto eu. Regressaremos dentro de

uma semana, se nada nos impedir, pois aqui, nesta terra de

ninguém, tudo parece estar envolvido por uma neblina de

ocultismo e as ocorrências bizarras começam a intimidar al-

guns membros mais susceptíveis da equipa.

Foi um momento extremamente assustador quando pela

primeira vez, após os séculos de encobrimento, aqueles es-

queletos, alguns ainda com vestígios de carne seca, extrema-

mente bem preservados, de crânio disforme, dentes afiados e

coluna curvada, de tamanho superior a qualquer um dos ho-

mens aqui presentes, entre outros pormenores não humanos

que poderá depois constatar, surgiram daquele lodo putrefacto

para nos pasmar. Um dos rapazes que nos carregam o materi-

al, após se benzer inúmeras vezes, abandonou o local numa

corrida desenfreada soltando gritos de pavor. Passaram já dois

dias sem que dele tenhamos informações, o que deduzo possa

vir a ser mau para o segredo, caso ele espalhe a notícia do

achado. No entanto, julgo que as pessoas que aqui habitam

não irão ficar muito abalados com aquilo que ele lhes possa

contar, aliás, devo salientar que algumas figuras que aqui co-

nheci conseguem ser tão, ou mais, intimidadores do que as

criaturas mortas, ou pessoas, - não sei o que são nem como

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

lhes chamar -, que libertámos do fundo do pântano.

A velha senhora viúva que nos arrendou os quartos de-

monstrou uma peculiar curiosidade para com as nossas inten-

ções em investigar a área do pântano e da floresta em redor.

Devo confessar que não nutri uma grande afinidade por ela

mas, tendo sido a Doutora a aconselhar esta estalagem, con-

fiei plenamente na anfitriã e na sua aparente desconfiança e

petulância. Outro aspecto que considerei bastante bizarro foi

o facto de, tanto no rés-do-chão como no primeiro andar,

existirem inúmeras fotografias, pinturas e objectos que evi-

denciavam a presença de crianças, quando ela, a dona, havia

confidenciado à nossa colega Sónia que nunca tivera filhos e

nem sequer gostava de crianças. Muito estranho. A sua única

companhia é um grande cão, fruto de uma mistura de raças,

que exibe com o triste olhar toda a falta de afectos por parte

da sua dona. Velha bruxa! – pensei eu. Mas, com o passar dos

dias, esta figura, que antes tão antipática se me demonstrara,

começou a relacionar-se com a equipa, cumprimentando-nos

pela manhã com um rasgado sorriso e dizendo-nos várias ve-

zes o quanto apreciava a nossa presença na sua estalagem.

Era-me complicado aceitar a sua súbita mudança de atitude,

mas o trabalho também não permitia que me inquietasse com

tal.

Quando, discretamente, a inquiri quanto às lendas ou histó-

rias que conhecia, ela, apesar de se mostrar reticente no iní-

cio, demonstrou uma sinistra vontade e prazer em me relatar

o fantástico segredo que cobre a região. Percebi que as suas

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Page 21: Abismo Humano 9

Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

palavras saíam carregadas de um constante medo, como se al-

guém pudesse estar secretamente a nos escutar e a pudesse vir

a punir pelo seu desabafo. Quando ganhou confiança sufici-

ente, serviu-me uma garrafa de vinho e passamos essa noite a

conversar. Fiquei então a conhecer a lenda que agora lhe irei

narrar.

Há vários séculos, não se conhece ao certo quantos, quando

os territórios eram ainda governados por reis e a lei da espada

era quem definia as fronteiras, nesta região, habitada já na-

quele tempo por pessoas simples e ligadas ao campo, havia

um Conde, que aqui representava a autoridade do rei. Ora, es-

se Conde, austero senhor de fama sangrenta, engravidou uma

das suas amantes, mulher de uma exótica beleza, da qual ele

obtivera favores sexuais através de ameaças e cobrança de

impostos. Essa mulher, da qual nem todos sabiam da existên-

cia, visto ela viver sozinha nas profundezas do bosque e não

ser muito sociável, estava então grávida desse tal Conde, o

qual, ao saber da existência deste seu filho que gestava no

ventre daquela mulher, sentiu uma enorme repugnância, pois,

apesar da volúpia existente, ele não possuía qualquer respeito

por ela, e seria terrível para a sua reputação o nascimento da-

quela criança. No entanto, esta novidade só lhe foi dada a co-

nhecer quando ela levava já sete meses de gravidez, e claro

que, de imediato, ele decidiu que a progenitora devia morrer,

ordenando aos seus assassinos que tratassem do caso. Os seus

homens regressaram ao palácio com a notícia de que a vítima

havia desaparecido, deixando a sua velha casa abandonada, e

que não havia quaisquer pistas quanto ao seu paradeiro. O ira-

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Page 22: Abismo Humano 9

Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

do Conde, após semanas de busca, consultou o seu feiticeiro,

para que este lhe pudesse oferecer uma solução, mas a respos-

ta iria ser ainda mais constrangedora. O feiticeiro, que só ago-

ra tomava conhecimento do feito do seu amo, atemorizou-se

com aquilo que lhe estava a ser narrado, pois, como era há

bastante tempo habitante daquela região e conhecedor das su-

as místicas histórias e segredos, sabia que aquela não era uma

vulgar mulher, havendo mesmo quem a associasse a espíritos

malévolos e acreditasse que ela não pertencia a este Mundo.

O Conde nem conseguia acreditar que fora vítima da sua pró-

pria malvadez.

Completados os meses necessários para o nascimento do

bebé, a escondida mulher voltou à sua antiga casa, mas sem

qualquer sinal do seu malogrado filho. Ao descobrir que ela

reaparecera, o vingativo Conde levou o seu séquito de carnifi-

cina a executar o trabalho anteriormente frustrado, coman-

dando, desta vez, ele próprio a operação. Ela voltara, de facto,

à sua velha casa, mas preparava-se para novamente a deixar

quando o Conde e os seus homens chegaram. A mulher im-

plorou por piedade, mas sempre sem revelar o que fizera com

a criança. Foram infrutíferos os seus apelos e foi trespassada

pela própria espada do seu amante de outrora. O Conde soltou

uma áspera gargalhada sob o sibilante estertor da mulher. Não

tinha mais com que se preocupar e, quanto ao bebé, se não ti-

vesse já morrido, por certo que nunca o veria. O corpo da de-

funta foi lançado ao esquecimento do pântano, o mesmo onde

agora centramos as nossas pesquisas.

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Page 23: Abismo Humano 9

Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

Esquecido estava já o episódio e os anos contavam já de-

zasseis desde o sangrento crime. No entanto, havia algo que

todos desconheciam e que iria mudar por completo o futuro

daquela sumptuosa família. Uma das criadas havia recolhido

há vários anos uma criança que encontrara perdida na flores-

ta. A complacente senhora, apesar de perceber as deformações

físicas que a criança apresentava e antevendo que ela não so-

breviveria sozinha, não resistiu ao triste e penetrante olhar do

menino e adoptou-o como seu. Era do conhecimento comum

que aquela criada tinha um filho, mas poucos eram os que al-

guma vez o haviam visto ou prestado atenção ao filho de uma

mera empregada. Além disso, ela própria tratava de ocultar ou

disfarçar a aparência do menino, pois sabia que algumas pes-

soas poderiam condenar o seu aspecto associando-o a crenças

maléficas, e a criança foi crescendo sob o alheamento de to-

dos.

Certa noite, em que todos os residentes e convidados do

palácio festejavam o noivado do filho varão do Conde, com

uma bela rapariga de uma cidade vizinha, estando o ambiente

coberto pelo manto ébrio que a festividade oferecia, o filho da

criada, que, na verdade, era o nascido da relação adúltera do

Conde, foi afectado por incontroláveis espasmos que o fize-

ram abandonar o seu escondido leito e aparecer à celebração.

O seu corpo era impulsionado por estranhos instintos que pa-

reciam controlar todos os seus movimentos. Uma inexplicá-

vel possessão de raiva fê-lo perceber que havia chegado o

momento da vingança e na sua mente inúmeras imagens clari-

videntes fizeram-no retornar ao episódio da sua mãe. A sua

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

faceta inumana aterrorizou todos os convivas que se encon-

travam no salão do banquete e o modo como saltava violenta-

mente sobre as mesas fez as mulheres gritarem e os homens

tentaram agarrar as suas espadas e adagas. Tentaram, mas não

foram suficientemente ágeis, pois a rapidez com que aquele

predador executou indiscriminadamente todos os presentes

não permitiu que alguém conseguisse ripostar. O Conde, dei-

xado para último, pode contemplar o banho de sangue que

inundava o salão e ouviu as últimas palavras da sua vida: -

Pai! – e o jovem soltou uma estrondosa gargalhada – Obriga-

do pela vida!

Desde esse dia nunca mais alguém soube do que aconteceu

ao animalesco homicida, que desapareceu sem deixar rasto,

mas nunca aquela carnificina iria ser esquecida, nem o corpo

completamente desfeito do Conde desaparecia das palavras

destas pessoas.

Reza então a lenda que, desde o aparecimento dessa maca-

bra criatura, nunca os homens e mulheres da região se deixa-

ram seduzir por outros que não fossem seus conhecidos, pois

o receio de procriar acidentalmente com aqueles seres era

constante. Por vezes, segundo testemunhos populares, ainda

eram avistados, de vários em vários anos, seres semelhantes

passearem-se pela escuridão da zona pantanal. Consta tam-

bém que são raros os exemplares femininos dessa espécie se

pode reproduzir, pelo que não existem em grande número,

mas, quando esse escolhido decide procriar tem preferência

por alguém completamente humano. Depois, nascido o fruto

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

dessa relação, a criança é deixada na casa de alguém que ain-

da não tenha filhos, para que a atenção seja completamente

dedicada à criança, e, uma vez escolhido esse inocente tutor, a

sua missão é irreversível; por isso, ainda hoje existe o ritual,

entre as pessoas daqui que não têm filhos, de ornamentar as

casas com objectos que indiquem a existência de crianças.

Quando a criança atinge os dezasseis anos de idade a trans-

formação está completa e ocorre então um chamamento inte-

rior que a faz abandonar a sua casa de criação e desaparecer

para junto dos seus, em lugar incerto. Há quem acredite que

estes demónios habitam uma outra dimensão, num inferno

próximo de nós ou num secreto lugar da floresta. Sempre que

algum habitante desaparece, o que acontece raramente, mas

todos sabem que acaba por acontecer, significa que uma des-

sas criaturas está prestes a completar o estado de metamorfo-

se e necessita de se alimentar de um corpo para afirmar a sua

natureza. Todavia, não existem relatos de quem algum destes

seres tenha atacado alguma vez os seus pais adoptivos. As

pessoas amaldiçoadas com a função de os criar mantêm tam-

bém segredo, conscientes de que nunca mais seriam aceites

na comunidade. Houve quem preferisse o suicídio, mas as cri-

aturas impediram que tal sucedesse e poucos foram os que es-

caparam por esta via.

Claro que tudo isto que lhe narro faz parte de um folclore

repleto de fantasia e imaginação popular, e inúmeros outros

pormenores e variações devem existir nas palavras de um

qualquer outro habitante, mas, agora, que encontrámos estes

cadáveres, sinto que existe um qualquer fundamento para esta

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Page 26: Abismo Humano 9

Labirintos Prosaicos

CARTA À DOUTORA VANE

história. Talvez o pântano seja um cemitério para estas criatu-

ras, desde que a amante do Conde lá foi lançada.

Apesar de se tratar de uma lenda local, a senhoria afirmou

que alguns destes seres, com a evolução dos tempos, começa-

ram por se aventurar às grandes cidades, sobrevivendo em so-

ciedades secretas. Arrepia-me pensar que possam realmente

existir, secretamente, criaturas tão hediondas a conviver con-

nosco.

Quando lhe perguntei se ela se lembrava de si ela respon-

deu que não conhecia pessoa alguma com o seu nome, que

houvesse nascido nesta terra, e subiu as escadas em direcção

ao quarto onde, dias antes, eu vira várias fotografias de uma

menina.

Doutora Vane, vivemos num Mundo cheio de mistérios.

Anseio agora, mais do que nunca, discutir consigo esta situa-

ção e conhecê-la pessoalmente, apesar de saber que sempre

preferiu manter o anonimato. Estou certo de que saberá algo

mais acerca destes seres.

P.S.- Não consegui encontrar a sua certidão de nascimento…

Emanuel R. Marques

Abismo Humano

Hieróglifos Existenciais

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Desenho

«Blá vezes blá: bla bla bla bla»

Nuno Bastos

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Desenho

Jaime Neves

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Captações Imaginárias

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Desenho

Jaime Neves

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Desenho

Jaime Neves

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Desenho

Jaime Neves

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Pintura

Série 2005: Nº9 Paisagem Nuno Bastos

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Pintura

Nature 05 Laurent Fievre

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Pintura

Le Genre Humain 06 Laurent Fievre

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Pintura

Le Genre Humain 06 (detalhe) Laurent Fievre

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Pintura

Le Genre Humain 08 Laurent Fievre

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

Can’t Break a Dead Girls Heart, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

The Most Frail and Precious Gift, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

Les Fleurs du Mal, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

A Deadly Cocktail, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

Five Lives Left, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Arte Digital

Sunset, Shinobinaku Art

www.shinobinaku.com

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Fotografia

“Alquimia” Museu do Design e da Moda, Ana de Macedo

http://facebook.com/anademacedo

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Captações Imaginárias

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Fotografia

Sem Título, Nuno Bastos

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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Fotografia

Sem Título, Nuno Bastos

Abismo Humano

Captações Imaginárias

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