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A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE NO ESTADO
NEOLIBERAL BRASILEIRO
No Brasil, o interesse do Estado com a formação e profissionalização docente vem de
longa data, tendo suas primeiras políticas estruturadas no século XIX. Nas últimas
décadas, tais políticas vêm sendo configuradas sob a lógica neoliberal e a favor do
mercado. Neste painel, nosso objetivo é discutir a formação e profissionalização no
Brasil, analisando-as no nascimento do Estado Moderno brasileiro no século XIX (A
formação e profissionalização docente no nascimento do Estado Moderno brasileiro),
para, a seguir, problematizá-las no Estado brasileiro contemporâneo
(Governamentalidade neoliberal e profissionalização docente no Brasil e A formação e
profissionalização docente em um regime de verdade na mídia educativa brasileira),
sendo esses dois últimos textos focados nas políticas públicas e nas mídias educativas.
Teórico-metodologicamente nos baseamos nas noções de governo e verdade discutidas
por Foucault para esmiuçarmos os documentos oficiais (legislações, resoluções etc.) do
Estado brasileiro e documentos produzidos por órgãos promotores de políticas e
financiadores destas (ONU e Banco Mundial). Recorremos à pesquisa bibliográfica para
nos localizar na produção do campo educacional sobre os temas que nos interessam.
Argumentamos que o Estado brasileiro, desde de o século XIX, sempre esteve
preocupado em propor políticas para a conduta da conduta dos professores, tanto para
sua formação como para sua atuação profissional, mesmo que isso não tenha se
revertido em melhores condições docentes na realidade brasileira. Concluímos que a
formação e profissionalização docente propostas pelo Estado brasileiro estiveram (e
estão) pautadas em relações de poder a subjetivar profissionais supostamente
qualificados e engajados a uma mentalidade de governo. Mentalidade que, cada vez
mais, vem se orientando a favor das lógicas neoliberais e que entendem o professor
apenas como mais um profissional que deve ser eficiente, produtivo e útil ao mercado.
Palavras-chave: Formação e Profissionalização, Neoliberalismo, Foucault
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
253ISSN 2177-336X
GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E PROFISSIONALIZAÇÃO
DOCENTE NO BRASIL
Luana de Cássia Martins Rodrigues - UFOP
Gabriela Pereira da Cunha Lima - UFOP
Resumo
As políticas educacionais, especialmente a partir dos anos de 1990, são orientadas para
atender às exigências estabelecidas pela globalização da economia. No processo de
reforma educacional, a situação dos docentes aparece como uma das questões mais
difíceis enfrentadas pelos governos e pelas sociedades, por suas implicações políticas e
financeiras. Nesse cenário das políticas educacionais brasileiras contemporâneas, este
texto apresenta como objetivo principal compreender como, no âmbito das reformas
neoliberais, a governamentalidade delineia o profissionalismo docente. Para
desenvolver essas discussões, a governamentalidade foi utilizada como noção teórico-
metodológica. Na análise da política educacional, essa noção nos serviu para analisar o
elo entre as formas de governo e as racionalidades ou modos de pensamento sobre o
governar. A partir desse entendimento, as políticas foram compreendidas como práticas
de governo, isto é, práticas que têm o objetivo de conduzir condutas. A pesquisa se
insere na perspectiva da abordagem qualitativa. Em relação aos instrumentos de coletas
de dados, recorremos à pesquisa bibliográfica. A governamentalidade neoliberal coloca
os professores e as formas de profissionalizá-lo como pivôs para as mudanças
pretendidas. Para supostamente aumentar a eficiência dos gastos públicos, no caso da
educação, busca construir novas formas de profissionalização docente. Cada vez mais
essa profissionalização parece ser conduzida para atender objetivos para além do campo
educacional. O trabalho docente e a formação profissional têm sido atravessados e
constituídos pela produtividade e pelo empreendedorismo. Nesse sentido, a
governamentalidade neoliberal busca produzir professores empreendedores de si,
capazes de gerir o próprio desempenho. Pressupõe um indivíduo flexível, autônomo e
que tenha habilidade para resolver imprevistos. Estimula a autonomia dos sujeitos,
porém, faz uso de mecanismos, cada vez mais abrangentes e complexos, de controle do
trabalho docente.
Palavras-Chave: Educação Básica, Governamentalidade, Profissionalização Docente
Introdução
Neste texto analisamos como a governamentalidade neoliberal está presente nas
políticas educacionais brasileiras contemporâneas, buscamos compreender como, no
âmbito das reformas neoliberais, tal governamentalidade delineia o profissionalismo
docente. Argumentamos que a governamentalidade neoliberal coloca os professores e as
formas de profissionalizá-lo como pivôs para as mudanças pretendidas. No cenário da
formação de professores, a racionalidade de governo neoliberal estimula a autonomia
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dos sujeitos, porém essa liberdade é subjugada a sistemas de avaliação da educação cada
vez mais abrangentes e complexos que, da nossa perspectiva, devem ser pensados como
mecanismos de controle do trabalho docente.
Para desenvolver essas discussões, apresentamos nossas bases teórico-
metodológicas na próxima seção. Logo depois, discutimos como as reformas neoliberais
vem se dando no Brasil, configurando os limites da atuação profissional docente. As
políticas de financiamento e a formação de professores são tratadas a seguir, apontando
como esses dois aspectos têm sido alinhados na configuração de um novo
profissionalismo. A condição da formação e da profissão docente são tratados a seguir,
ponderando-os sob os aspectos da avaliação sistémica e governamental. Por último,
apresentamos nossas conclusões.
Governamentalidade como ferramenta para problematizar e analisar as políticas
em torno da profissionalização docente
Na discussão sobre o processo de governamentalização do Estado, verificamos
todo um regime de governamentalidades múltiplas que “se acavalam, se apoiam, se
contestam, se combatem reciprocamente” (FOUCAULT, 2008, p. 424). A noção de
governamentalidade perpassa todo o cenário de constituição do Estado Moderno na
medida em que estabelece um continuum entre: a) as tecnologias políticas do corpo e a
aplicação de técnicas disciplinares; b) as preocupações gerais da soberania política,
direcionadas para gestão das nações, populações e sociedades e c) as estratégias
firmadas para a condução de indivíduos livres (RAMOS DO Ó, 2009).
A governamentalidade como noção teórico-metodológica também “reorganiza-
se em função da análise da dimensão ética do sujeito definido pela relação consigo
mesmo” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2009, p. 42). Nesse campo da análise ética, a
governamentalidade é definida com base na relação do sujeito consigo mesmo e com os
outros. Temos, então, a análise do governo como problema ético na constituição do
sujeito a partir das práticas de governo de si e dos outros. Essa noção ainda é desafiante
ao se pensar também nos procedimentos, nas redes de circulação da verdade e nas
modalidades de constituição do sujeito docente (RAMOS DO Ó, 2009).
Na análise da política educacional, a governamentalidade pode ser viável para
analisar o elo entre as formas de governo e as racionalidades ou modos de pensamento
sobre o governar. Nessa perspectiva, a ênfase é na “interdependência entre as práticas
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governamentais e as mentalidades de governamento que racionalizem e, com frequência
perpetuem práticas existentes de conduta da conduta” (FIMYAR, 2009, p. 41). Ainda
em relação a esse campo de estudo, é possível compreender o uso da liberdade como um
recurso do Estado, da formação e da regulação do eu, do desenvolvimento da
subjetividade e da ativa formação de sujeitos de determinados tipos (DOHERTY, 2008).
Esses diferentes entendimentos atribuídos à governamentalidade apontam,
segundo Veiga-Neto e Saraiva (2011), para uma ampla gama de pesquisas no campo da
Educação que podem ser desenvolvidas utilizando essa noção teórico-metodológica.
Nesse sentido, a governamentalidade permite evidenciar a articulação entre uma
racionalidade política e a constituição de sujeitos de determinados tipos. Nas palavras
de Veiga-Neto e Saraiva (2011, p. 9) com a governamentalidade “abrem-se novas e
desafiadoras frentes para a história e para a descrição, análise e problematização do
presente”. Ainda segundo os autores por meio da noção de governamentalidade pode-se
ampliar a rede que conecta as investigações do campo educacional, uma vez que essa
noção nos permite perceber o entrelaçamento das práticas didático-pedagógicas com a
racionalidade política.
Compreendemos por governamentalidade a correlação entre as práticas de
governo (práticas de condução da conduta) e as racionalidades políticas (modos de
pensar sobre o governar e organizar os meios para alcançar determinados fins). Em
outras palavras, a governamentalidade pode ser descrita como um modo de conduzir
condutas a partir de uma racionalidade política. Para isso, busca criar sujeitos
governáveis, empregando várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e
moldagem das condutas.
Como a governamentalidade nos servirá para problematizar e para analisar o
funcionamento das políticas educacionais? A partir dessa noção, as políticas são
compreendidas como práticas de governo, isto é, práticas que têm o objetivo de
conduzir condutas. Na análise teórica deste estudo, buscamos usar a
governamentalidade para “problematizar os relatos aceitos normativamente do Estado e
desconstruir suas várias práticas e elementos que o constituem” (FIMYAR, 2009, p.
37). A pesquisa se insere na perspectiva da abordagem qualitativa. Em relação aos
instrumentos de coletas de dados, recorremos à pesquisa bibliográfica.
Governamentalidade neoliberal e reforma educacional no Brasil
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No Brasil, a privatização de empresas, a abertura de mercados, a reforma nos
sistemas de previdência social, saúde e educação e a descentralização de serviços
fizeram parte de uma detalhada reforma do Estado com início nos anos 1990. Na
tentativa de criar condições para uma maior eficiência na prestação de serviços pelo
Estado e, ao mesmo tempo, reduzir gastos, o caminho adotado na gestão das políticas
públicas passa a ser o da racionalidade financeira neoliberal. Os ajustes neoliberais
começaram no governo Collor de Melo (1990-1992), prosseguiram com Itamar Franco
(1992-1994) e se consolidaram nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002), apresentando continuidade nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2010) e Dilma Rousseff (2011- atual) (LIMA; MENDES, no prelo).
A emergência e a centralidade das práticas educacionais a prepararem as pessoas
para o mercado de trabalho tiveram ênfase no Brasil com a reforma do Estado e, em
consequência, com a reforma educacional dos anos 1990. As propostas neoliberais para
área da educação institucionalizada, além da ampliação da escolaridade obrigatória,
apresentaram gestão descentralizada, propostas curriculares para redes ou sistemas
educacionais (ofertando a mesma coisa para todas as escolas) e avaliação constante da
qualidade educacional e dos produtos da aprendizagem (funcionando como mecanismo
comparativo entre escolas, professores e alunos) (LIMA; MENDES, no prelo). Nessa
difundida malha de objetivação, assujeitamento e subjetivação no campo de educação,
“os indivíduos” são “preparados para o mercado de trabalho, por meio do aprendizado
de tecnologias complexas, de forma criativa, rápida, inovadora, adaptável e realizada
durante toda a vida” (COSTA, 2011, p. 73). A partir dos anos 1990, o princípio passa a
ser, por conseguinte, por uma escola e um professor sintonizados às demandas do
mercado (LIMA; MENDES, no prelo).
As políticas educacionais, especialmente a partir dos anos de 1990, são
orientadas para atender às exigências estabelecidas pela globalização da economia. Com
isso, passam a determinar uma maior produtividade e eficiência dos trabalhadores. A
governamentalidade neoliberal busca convencer a escola e seus profissionais de que as
mudanças necessárias para uma maior eficiência e qualidade da educação não implicam
aumento no quantum destinado ao financiamento da Educação. A recomendação do
Banco Mundial é aumentar a eficiência da despesa pública em educação. Não se fala,
em nenhum momento, em aumentar o investimento (ALTMANN, 2002).
Para supostamente aumentar a eficiência dos gastos públicos, as escolas são
orientadas para que sejam autônomas financeiramente, não dependam do Estado, façam
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parcerias com empresas ou chamem a comunidade para desenvolverem iniciativas na
realização de seus projetos educacionais (EVANGELISTA; SHIROMA, 2007). A
sociedade civil em geral, ONGs, comunidades escolares, empresas do setor privado são
chamadas, principalmente, para participarem com contribuições para suprir as carências
decorrentes da omissão do Poder Público na oferta e na manutenção da educação. No
cenário das escolas, incentiva-se a criação de Conselhos Escolares ou de Colegiados das
Escolas com a participação de professores, da família e dos alunos. Tudo isso está sendo
orientado, no caso da educação, para novas formas de subjetivação docente, criando um
novo modelo de profissionalização dos profissionais da educação.
As políticas de financiamento e a formação de professores
O financiamento é elemento imprescindível para a organização e o
funcionamento das políticas educacionais. A regulação dos recursos destinados aos
professores da Educação Básica no mandato de FHC passou a ser realizada pelo Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF), estabelecido pela Emenda Constitucional nº 14, de 12 de
setembro de 1996. Os recursos desse Fundo eram automaticamente repassados aos
estados e municípios, considerando a distribuição proporcional de matrículas do Ensino
Fundamental.
A criação desse mecanismo de financiamento não trouxe muitas mudanças em
relação ao valor gasto pelo governo com a educação e acabou por afirmar desigualdades
entre os estados e entre os municípios de um mesmo Estado. O FUNDEF, no Rio de
Janeiro, por exemplo, “efetivou-se a partir de um montante que já deveria ser
obrigatoriamente destinado à educação, não necessariamente ao Ensino Fundamental,
caso o Programa não existisse” (ESTEVES, 2007, p. 07). Dentro de cada Estado, essa
divisão dos recursos entre o governo estadual e as prefeituras, com base no número de
matrículas no Ensino Fundamental, apresentou reviravoltas. Alguns municípios
obtiveram quase 400% de ganho de verbas do FUNDEF ao passo que outros registraram
perdas anuais de cerca de 76%.
Em 2007, no último ano do primeiro mandato do presidente Lula, o FUNDEF
foi substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). O FUNDEB foi proposto para
corrigir as falhas apresentadas no FUNDEF, como a exclusão da educação infantil,
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Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio e de seus profissionais. O FUNDEB atua
com os mesmos mecanismos redistributivos básicos do FUNDEF. Em relação à
utilização de recursos, o FUNDEB prevê para a remuneração dos profissionais da
educação básica das redes estaduais e municipais de ensino, inclusive despesas
relacionadas à formação docente, pelo menos 60%. Por profissionais do magistério da
educação, a Lei nº 11.494 que regulamenta o FUNDEB, no art. 22, inciso II,
compreende os “docentes e os profissionais que oferecem suporte pedagógico direto ao
exercício da docência: direção ou administração escolar, planejamento, inspeção,
supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica” (BRASIL, 2007). Já os
40% restantes podem ser utilizados para a manutenção e o desenvolvimento do ensino.
Ao potencializarem recursos e contribuir para a estruturação do espaço para o
desenvolvimento profissional dos docentes, o FUNDEF e, posteriormente, o FUNDEB
possibilitaram a criação de condições institucionais básicas para a construção de
políticas de valorização do magistério. Com o deslocamento da formação de professores
para o nível superior, conforme estabelece a LDB, o FUNDEF possibilitou novas
articulações entre as administrações mantenedoras da Educação Básica e as instituições
formadoras de professores. Favoreceu-se o desenvolvimento de programas especiais de
licenciatura voltados aos professores em exercício nas redes públicas que ainda não
possuíam a formação exigida pela legislação (GATTI; SÁ BARRETO; ANDRÉ, 2011).
Em contrapartida, o FUNDEB, assim como o FUNDEF, gerou perdas para alguns
estados e municípios.
Ao analisar o funcionamento do FUNDEF e o do FUNDEB, é possível notar
que, provavelmente, a criação desses fundos não propôs nenhum aumento significativo
de gastos governamentais, mas a racionalização dos recursos já destinados à educação.
Além disso, a efetivação de ambos os fundos apresentou perdas para alguns estados e
municípios. Mesmo que o argumento do governo, ao propor tais fundos, seja em função
de um uso judicioso dos recursos, não há garantia disso. O Brasil deixa a desejar em
termos do uso judicioso de recursos vinculados à educação (DAVEIS, 2006). O governo
estadual de São Paulo, por exemplo, usou recursos do FUNDEF para pagar os inativos,
embora no mínimo 60% desses só pudessem ser usados para pagar os profissionais do
magistério em exercício (ESTEVES, 2007).
No que se refere ao financiamento do ensino superior, a adesão das
universidades federais ao REUNI implicou dois níveis de precarização: a da formação
profissional e do trabalho docente (LIMA, 2009). O atendimento de um maior número
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de alunos por turma e a criação de cursos de curta duração, representando uma
formação aligeirada e desvinculada da pesquisa, sugere a precarização da formação. A
contratação de professores pautada no “banco de professores equivalentes” converge
para a precarização das condições de trabalho docente. Nesse banco, cada docente tem
um peso diferente, segundo o seu regime de trabalho. Especialmente com o REUNI, a
ação do governo estimula as universidades a contratarem professores em regime de
trabalho de 20 horas, dificultando a realização da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão que sustentam o trabalho em regime de dedicação exclusiva
(LIMA, 2009).
O professor na condição de causa ou solução dos problemas educacionais?
No processo de reforma educacional, a situação dos docentes aparece como uma
das questões mais difíceis enfrentadas pelos governos e pelas sociedades, por suas
implicações políticas e financeiras. Por um lado, os professores são vistos como
problema, entre outras caracterizações, porque se constituem o grupo ocupacional mais
numeroso de trabalhadores do Estado. Os salários docentes consomem uma
porcentagem considerável do orçamento da Educação, chegando a corresponder, em
média, a 90% dos orçamentos nacionais de educação (VAILLANT, 2005; CAMPOS,
2005). Além de constituírem numerosa categoria de funcionários públicos, algumas
associações de professores de muitos países estão articuladas a partidos trabalhistas e
apresentam potencial para a produção de conflitos. Assim, “individual ou sindicalmente
pensado, o docente é apreendido como uma questão de Estado” (EVANGELISTA;
SHIROMA, 2007, p. 537).
Por outro lado, os professores são considerados como uma solução, em seu papel
central para responder aos desafios educacionais do atual século. Um desses desafios é
formar os alunos para instáveis trajetórias trabalhistas futuras, com provável rotação não
apenas entre postos, mas até de tipo de ocupação e de setor de economia (VAILLANT,
2005). A ação dos professores está impregnada de uma forte intencionalidade política,
devido aos projetos e às finalidades sociais de que são portadores. Os docentes são
agentes culturais e, decisivamente, também são agentes políticos (NÓVOA, 1999). Em
função disso, a governamentalidade neoliberal parece enxergar os docentes como
protagonistas para a efetivação das reformas educacionais em curso. Nessa direção, há
uma nova perspectiva para a formação de professores apresentada pelo Estado.
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No processo de reforma, os pontos de referência do projeto neoliberal para
coordenar as propostas educacionais não são as necessidades das pessoas, mas as
necessidades de treinamento para o trabalho na indústria e no comércio. Busca-se
formar para o mercado de trabalho. Para tanto, “procura-se difundir a ideia de que a
educação escolar está ruim porque os professores estão mal preparados para o exercício
da profissão” (DINIZ-PEREIRA, 2013, p. 221). Principalmente por esse motivo, os
docentes passam a assumir lugar privilegiado nas discussões educacionais. Isso, no
entanto, não significa que a formação de professores seja vista como prioridade nos
recursos orçamentários.
Embora o argumento neoliberal incentive a autonomia e a capacidade de gestão,
as escolas e os docentes ficam constantemente sujeitos a avaliações e a comparações de
desempenho. Eles acabam entrando nesse jogo pelo empenho com que buscam
corresponder às metas. “É o efeito generalizado da visibilidade e da avaliação que,
penetrando em nossa maneira de pensar a respeito de nossa prática, produz a
performatividade” (BALL, 2005, p. 549). Discutiremos a seguir sobre essa tecnologia
denominada performatividade e as atuais políticas de responsabilização, ambas
constituidoras das recentes reformas educacionais no Brasil.
Sistemas de Avaliação: um fluxo de performatividades contínuas
Somada ao mercado e à capacidade de gestão, a performatividade é um dos
elementos fundamentais da reforma do Estado. Trata-se de uma tecnologia que se serve
de comparações como meio de controle. Para controlar os gastos públicos em educação
e tornar mais eficiente o trabalho docente – constituindo-se um novo tipo de profissional
da educação –, utiliza-se a publicação de informação e a construção de indicadores
como mecanismos para comparar as instituições e os profissionais. As medidas de
produtividade e rendimento são os desempenhos individuais de sujeitos ou organizações
(BALL, 2005). Essa tecnologia gera os efeitos de terror não somente sobre os
professores, mas também sobre as equipes diretivas e a sociedade. Tudo isso, “por meio
da neurose da accountability (prestação de contas ou, ainda, responsabilização)”
(HYPOLITO, 2010, p. 1341).
Assim como em outros países, no Brasil existe uma tendência “de se
responsabilizar, e/ou de se culpabilizar, os professores e as professoras por todas as
mazelas da educação escolar; ou pelo menos a maioria delas” (DINIZ-PEREIRA, 2013,
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p. 221). A política de responsabilização educacional pode ser notada no PNE (2014-
2024). Uma das estratégias desse plano é “estabelecer políticas de estímulo às escolas
que melhorarem o desempenho no IDEB, de modo a valorizar o mérito do corpo
docente, da direção e da comunidade escolar” (BRASIL, 2014, p. 64). Em uma primeira
leitura, essa afirmação pode dar uma conotação de valorização do professor. Contudo,
ela expressa e dá margem a ações governamentais que vêm gerando mecanismos de
premiação por mérito com a finalidade de identificar os responsáveis pelo desempenho
dos alunos da Educação Básica em programas nacionais (SAEB e Prova Brasil) e no
Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Os professores que
obtiverem êxito são premiados por seu mérito, os que fracassam acabam se sentindo
culpados pelo insucesso.
A racionalidade neoliberal não opera com uma estrutura de vigilância; o que
existe é um fluxo de performatividades contínuas; o que está em jogo é a incerteza e a
instabilidade de ser avaliado de diferentes maneiras (BALL, 2005). A
governamentalidade neoliberal que orientou as reformas educacionais dos anos 1990,
com continuidade na primeira década de 2000, adotou a avaliação como um dos eixos
de suas políticas. O Banco Mundial incentiva a utilização de indicadores de
desempenho e eficácia da educação financiada com recursos públicos (ALTMANN,
2002). No Brasil, os Sistemas de Avaliação emergiram como mecanismos para não
somente avaliar, mas conduzir os sujeitos envolvidos nas tarefas educativas exigidas
pelas reformas (LIMA; MENDES, no prelo).
A introdução desses sistemas de avaliação da educação e do desempenho são
exercícios de regulação por parte do Estado, que “passa a controlar e a avaliar desde
longe, por meio da contratação de terceiros para realizar a avaliação externa –
considerada como prestação de contas à sociedade civil (accountability)” (HYPOLITO,
2010, p. 1338). No entanto, essa avaliação pode estar servindo mais para a vigilância e
controle do trabalho docente do que para a melhoria dos sistemas educacionais. Esses
fluxos de sistemas de avaliação se assemelham a uma estratégia de identificar os
culpados pelo fracasso, sem levar em consideração o contexto social em que os
resultados foram produzidos.
A racionalidade neoliberal opera com diversas estratégias para avaliar. Parece-
nos evidente que diferentes instrumentos de avaliação fazem parte de uma maneira
neoliberal de governar. Nessa cultura de desempenho, as motivações pessoais
sobrepõem aos valores impessoais. As relações profissionais tornam-se
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individualizadas. A racionalidade neoliberal anseia potencializar a individualização a
cada um. Não busca somente produzir indivíduos preocupados em governar a si
mesmos, convencendo-os que a educação irá melhorar se incorporarem a mesma lógica
da competição de mercado. Essa racionalidade busca ainda fazê-los se sentirem livres,
autônomos, inovadores e empreendedores de si. Dessa forma, os professores são
encorajados a refletir sobre si como indivíduos que acrescentam valor a si próprio
(BALL, 2005).
A governamentalidade neoliberal parece desejar que todos e cada um dos
envolvidos no processo educacional sejam empreendedores de si. O argumento utilizado
por essa racionalidade neoliberal é que o investimento em capital humano vai gerar uma
renda para a criança, quando adulta, e gera também uma renda para a família, em termos
de satisfação “de ver que seus cuidados tiveram sucesso” (FOUCAULT, 2008, p. 335).
Nessa direção, o indivíduo e a família são conduzidos a avaliar os riscos e os problemas
que suas decisões, principalmente sobre o processo de escolarização, podem acarretar.
Concluindo
Discutimos neste texto como a governamentalidade neoliberal se faz presente
nas políticas educacionais. Nessa direção, a reforma educacional no Brasil nos anos de
1990, seguindo orientações do BIRD, buscou se efetivar, dentre outras coisas, por meio
da descentralização do ensino, a privatização dos serviços educacionais e a formação
por competências. Abordamos a transferência de responsabilidades desencadeada pela
reforma neoliberal, como o estabelecimento de novas formas de controle não
simplesmente sobre os recursos financeiros, mas sobre o trabalho docente. Essa reforma
ocorreu nos moldes do BIRD, com o argumento de que as mudanças eram necessárias e
trariam benefícios para a qualidade de vida dos que mais necessitavam.
Não obstante, as mudanças postuladas pelas reformas educacionais não
modificaram, em geral, o cotidiano das escolas (CAMPOS, 2005). “As desigualdades
sociais, consideradas as piores na América Latina, quando comparadas às outras regiões
do mundo, estiveram estritamente relacionadas com as desigualdades educacionais”
(COSTA, 2011, p. 83). O ingresso de um maior número de pessoas na educação básica,
postulado pelas políticas educacionais, não garantiu acesso ao conhecimento científico
nem mesmo a permanência nas instituições de ensino. Do mesmo modo, não significa
oportunidades iguais no mercado de trabalho e na vida social.
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Nota-se, claramente, que cada vez mais essa formação parece ser conduzida para
atender objetivos para além do campo educacional. Com a racionalidade neoliberal a
pautar as políticas educacionais, os princípios mercadológicos se expandem a todas as
esferas sociais e têm sido avassaladores para a educação e para a profissionalização
docente. Na tentativa de produzir sujeitos empreendedores, com seu capital humano
bem desenvolvido, o conhecimento se transforma em mercadoria, e a análise econômica
torna-se o principal procedimento para a definição de políticas educativas (ALTMANN,
2002). Dessa forma, o trabalho docente e a formação profissional são atravessados e
constituídos pela produtividade e pelo empreendedorismo.
Argumentamos que essa governamentalidade neoliberal busca produzir
professores empreendedores de si. Em relação aos professores – além de esperar que ele
seja capaz de gerir o próprio desempenho, maximizá-lo, aperfeiçoá-lo –, a racionalidade
neoliberal pressupõe um indivíduo flexível, autônomo e que tenha habilidade para
resolver imprevistos. Para controlar o trabalho docente e responsabilizar os “culpados”
pelos índices educacionais não desejáveis a governamentalidade neoliberal atua com um
fluxo de performatividades contínuas.
Apesar dos sistemas de visibilidade dos resultados, parece-nos complicado poder
afirmar que o controle do trabalho docente realmente se efetive. Há um campo de
possibilidades, no qual, apesar das prescrições, cada sujeito vai atuar conforme seus
interesses, que não se referem apenas à questão profissional. Interesses que são
decorrentes de seus modos de fazer, de suas maneiras de constituir-se como sujeito de
um determinado tipo e também de ser constituído pelos mecanismos de governo dos
outros e de Estado. Tudo isso faz com que o sujeito aceite ser governado de
determinadas maneiras e se mostre resistente a outras.
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266ISSN 2177-336X
A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE NO NASCIMENTO
DO ESTADO MODERNO BRASILEIRO
Mariana Silva Santos - UFU
Cláudio Lúcio Mendes – UFOP
Resumo
A importância do discurso sobre a formação e profissionalização de professores
localiza-se no momento histórico em que o Brasil torna-se um Estado independente.
Algumas questões que amparam o desenvolvimento da argumentação são: quando
emerge tal discurso sobre a formação inicial e profissionalização, no contexto do Estado
Moderno brasileiro nascente? O que significava ser professor nos anos imediatamente
posteriores à independência? As modificações legais estariam, com o passar dos anos,
mais conhecidas, estabelecidas e respeitadas? A fim de perseguir essas perguntas,
inspirar-se-á no que Michel Foucault chamou de história genealógica, uma metodologia
para diagnosticar os efeitos de verdade existentes acerca daquilo que se pesquisa. Claro
está que não se trata de uma aplicação direta de um método ou fórmula, mas de uma
inspiração nos métodos, nos escritos e nos procedimentos do pensador. A busca de
vestígios outros para entender um mesmo problema é uma característica de tal
inspiração metodológica. Com o intuito de analisar os dados encontrados, recorre-se à
literatura que discorre acerca do tema. Há autores que localizam a preocupação primeira
com a formação e a profissionalização de professores como tendo sua emergência a
partir do momento em que o Brasil se constitui enquanto Estado Moderno. Afirmam
que nas primeiras décadas do século XIX, sobretudo a partir do processo de
independência política e em meio às disputas de diversos projetos de construção da
nação, emergiram grupos e agremiações dispostos a promover a instrução e a educação.
Conclui-se que o primeiro momento do Brasil como um Estado Nacional, minimamente
organizado política e economicamente, ou ao menos com projetos para tal, deu início à
ideia de formação de professores e da profissionalização da prática docente.
Palavras-chave: formação e profissionalização docente, genealogia, Estado moderno
brasileiro.
Introdução
Este trabalho resulta de uma pesquisa, tendo como eixo de discussão a
emergência da importância do discurso sobre a formação e profissionalização de
professores. A questão a ser feita é: quando emerge tal discurso sobre a formação inicial
e profissionalização, no contexto do Estado Moderno brasileiro nascente? O objetivo
aqui é detectar, por meio de uma inspiração genealógica, a emergência da formação
inicial e a profissionalização de professores no Estado Moderno brasileiro. O que
significava ser professor nos anos imediatamente posteriores à independência? Será que
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
267ISSN 2177-336X
com as modificações legais alguns anos após tal evento histórico estariam, com o passar
dos anos, mais conhecidas, estabelecidas e respeitadas?
A fim de perseguir essas perguntas, inspirar-se-á no que Michel Foucault
chamou de história genealógica, uma metodologia que incita o pesquisador a
diagnosticar os efeitos de verdade existentes acerca daquilo que se pesquisa. Claro está
que não se trata de uma aplicação direta de um método ou fórmula, mas de uma
inspiração nos métodos, nos escritos e nos procedimentos do pensador. A busca de
vestígios outros para entender um mesmo problema é uma característica de tal
inspiração metodológica. No trabalho original, trabalhou-se com dois tipos de
documentações distintos. O primeiro grupo refere-se a legislações, e o segundo a
correspondências acerca da instrução pública, recebidas e expedidas para e pela
Presidência da Província. Buscou-se limitar o recorte de 1824 a meados de 1850,
buscando observar a coerência entre as leis existentes e o cumprimento das mesmas. No
corpo deste texto não nos concentraremos nessas documentações.
Procedimentos Metodológicos
A fim de entender o que seria o método genealógico, é necessário apreender que
ele não se preocupa em buscar a origem de um fato histórico, mas a emergência desse.
Não se pode – nem em história, tampouco no método aqui proposto – dizer que tal fato
tem seu início em determinada data específica. Os fatos e eventos emergem. Outra
semelhança entre a história e o método é o tratamento da verdade. Não se pretende
buscar qual a verdade sobre um determinado assunto, mas sob quais mecanismos aquilo
foi aceito como verdade, e quais efeitos isso produziu.
Foucault está preocupado com a descontinuidade das práticas. Questiona-se por
que algo muda, busca a ruptura e a descontinuidade de um processo. Após essa ruptura
que faz surgir uma descontinuidade, algo emerge, é gestado, e é isso que se torna
importante aos olhos do analista. O discurso é visto como uma prática, e a análise
genealógica “concerne à formação efetiva dos discursos” (FOUCAULT, 1996, p. 65).
Fugindo das coisas já dadas e feitas, problematizando a noção de uma verdade
transcendental, “a tarefa do genealogista é destruir a primazia das origens, das verdades
imutáveis” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 145). Não há verdade a ser descoberta,
há efeitos de verdade a se analisar; nesse sentido, o genealogista não descobrirá a
verdade – ela não está oculta – ele a diagnosticará.
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268ISSN 2177-336X
Pesquisadores que se amparam em Foucault, sobretudo na genealogia,
empregam-na para analisar questões ligadas ao governo do Estado, dos outros e de si.
Utilizar essa ferramenta para compreender questões referentes à história da educação
mostra-se extremamente profícuo, uma vez que é possível colocar a educação e os seus
elementos, como a escola, os professores, o disciplinamento, a formação; como ações e
objetos que se supõem inerentes à história do homem. Seguindo nessa linha de
pensamento, Júlia Varela e Fernando Alvarez-Uria (1992) favorecem a reflexão acerca
dessa proposta metodológica. Segundo eles, segue-se acreditando, em vários estudos,
que a escola é uma instituição natural e não instituída ou construída e constantemente
modificada. Tal como a escola, a educação e tudo o mais que a elas se relacione são
artefatos criados e modificados, além de modificáveis. Sendo assim, aquiesce-se com a
afirmação da criação das “coisas” e da sua constante modificação. Com a formação e a
profissionalização de professores não é diferente. Tal como a escola, elas nem sempre
existiram, e por isso é necessário determinar suas condições históricas de existência
dentro de uma dada sociedade.
Coloca-se a formação e a profissionalização como uma estratégia de governo
que compõe a arte de governar do século XIX no Brasil. Se é possível afirmar que “a
escola nem sempre existiu; daí a necessidade de determinar suas condições históricas de
existência no interior de nossa formação social” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992,
p. 68), podemos buscar inspiração para se explorar o significado do método genealógico
desenvolvido por Foucault e como ele pode contribuir para pensarmos a formação e a
profissionalização de professores. Como expresso há pouco, a genealogia almeja
evidenciar que as instituições e práticas possuem uma história, uma emergência. No
trabalho em questão, por exemplo, a partir do momento em que se objetiva detectar a
emergência da formação inicial e da profissionalização de professores, corre-se o risco
de pensá-las como algo dado a priori, algo que sempre existiu, que foi dado aos homens
como presente da existência.
O recorte temporal aqui analisado, inserido no século XIX, justifica-se pelo
advento da independência do Brasil, que favorece o início do processo de conformação
do país enquanto um Estado Moderno soberano. Aqui tem-se como intuito apresentar e
explorar o cenário de certa arte de governar do Estado Moderno Brasileiro – focando a
educação, mais especificamente a importância da formação e profissionalização de
professores no contexto dessa arte –, que se mostra como um Estado a partir do
momento em que adquire a alcunha histórica de independência. É a partir desse
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
269ISSN 2177-336X
episódio, que tem como seu marco cronológico o ano de 1822, que o Brasil começa sua
trajetória de um Estado soberano. Nesse sentido, algumas questões passam a ter mais
importância e relevância no cenário social. Tem-se, então, um Estado que é,
supostamente, dado pelo marco da independência, mas, ao mesmo tempo, um Estado a
se construir, um Estado que está sendo gestado, tendo como base as estruturas de Estado
já montadas pelos formatos anteriores de governo.
Transita-se de um Estado formado exclusivamente por homens portugueses,
soberanos, para o governo dos brasileiros sobre os brasileiros, ao menos no campo
ideal. O que se percebe é um Brasil ainda extremamente ligado ao governo de Portugal,
o que se evidencia pela presença de muitos portugueses no governo brasileiro, mesmo
no pós-independência. Havia, imediatamente antes da independência, uma tensão entre
a preservação do estado livre, evitando uma recolonização, e o não rompimento total
com Portugal. Abole-se o absolutismo da soberania e se instaura um Estado
independente. No entanto, “sob essa estrutura, escondia-se, ainda, especialmente nos
círculos inferiores da vida do Estado, o antigo sistema inalterado” (HANDLEMANN,
1978, p. 199). A fim de formar esse Estado moderno, algumas estratégias são
observadas, como o governo das populações e não mais o das famílias e o emprego de
estatísticas para um controle e conhecimento dessa população.
Do governo do soberano para um governo soberano
Um ano antes da independência, havia efeitos que prenunciavam algum
acontecimento diferenciado. A situação que se percebia no Brasil era de tensão entre a
independência de fato e o desejo de não se desvincular totalmente de Portugal. O
cenário que se percebe após o marco histórico da independência do Brasil é um Estado
moderno que passa a existir de forma imediata, em termos legais e políticos, e que em
concomitância constrói-se paulatinamente, descobre-se e forma-se enquanto um Estado
que irá governar uma população dentro dos limites do território brasileiro
(HANDLEMANN, 1978). Essa forma de governo, que supostamente inaugura-se pela
circunstância da independência da metrópole portuguesa pretende-se, de fato,
independente, mas não se observa a priori uma ruptura definitiva com Portugal, visto
que ainda se nutrem relações políticas e inspira-se no Estado Português para a
composição desse novo Estado, que, como qualquer outro Estado moderno, “é ao
mesmo tempo o que existe e o que ainda não existe suficientemente. E a razão de
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Estado é precisamente [...] uma prática que vai se situar entre um Estado apresentado
como dado e um Estado apresentado como a construir e a edificar” (FOUCAULT, 2008,
p. 6).
O Estado moderno brasileiro nascente é, como se pode presumir, uma
construção histórica. Constrói-se a noção do Estado e o próprio baseando-se em
preceitos que darão a ele um caráter diferenciado do que era até então. A partir desse
novo status independente, ele demanda novas características e ações, que se manifestam
como estratégias de governo e vão corroborar para a administração da população. A
primeira modificação é percebida no caráter do governo, que se torna mais centralizado
a fim de diferenciar-se da forma anterior e; também, no intuito de concentrar o poder de
todos os estados nas mãos do Imperador. A ruptura primeira a se perceber refere-se à
relação de poder entre governo e população. Há um deslocamento entre o momento
anterior, marcado por um governo português, e esse novo momento, aqui estudado,
caracterizado pela vontade de conduta dos brasileiros pelos próprios brasileiros, que,
como já demonstrado, não é tão instantânea como se ansiava. Essa conduta se dará em
variadas instâncias, desde o governo em si, na figura do Imperador, até mesmo nas
capilaridades representadas pelos docentes e guardas oficiais, por exemplo.
Foucault (2008a) demonstra, por meio de uma digressão histórica europeia, que
o foco de governo, denominado por ele de governo pastoral, era a família. Com a
expansão demográfica do século XVIII, desloca-se o foco para o governo das
populações “não é mais a família, mas a população que se tornará o objetivo último do
governo [...]. A população foi, portanto, o meio de generalização das artes de governar,
o desbloqueador da governamentalização do Estado” (AVELINO, 2008, p. 49).
Constituir-se em Estado Moderno também significa que o Estado passa a ver o homem
como objeto de governo, confere a ele um sentido político.
No Brasil politicamente reconfigurado, mira-se no governo das populações, que
será amparado pela produção de estatísticas acerca dessa população. A nova
configuração política do Brasil irá exigir, portanto, um Estado para governar a
população. O Estado preocupa-se com a população e com o registro de dados dessa
população. Emerge a produção mais detalhada de estatísticas e uma diligência maior
com os âmbitos políticos e econômicos. A preocupação com a educação, o transporte, a
produção e o registro de estatísticas acerca da população, da extensão geográfica, dentre
outros aspectos, começa a se evidenciar. O que se apresenta no cenário do país é um
movimento de descontinuidade a fim de reconfigurar o aspecto anterior ao momento da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
271ISSN 2177-336X
independência. Rompe-se com o caráter dependente e inicia-se uma corrida de
reinvenção. É necessário que o país comece a apresentar um funcionamento condizente
com sua nova condição, e é imprescindível que isso se faça de maneira visível à
população e aos outros Estados.
A formação e a profissionalização docente no Estado moderno brasileiro
Encontramos na literatura acadêmica vários autores (VICENTINI; LUGLI,
2009; GONDRA; SCHUELER, 2008) que localizam a preocupação primeira com a
formação e a profissionalização de professores como tendo sua emergência a partir do
momento em que o Brasil se constitui enquanto Estado Moderno. Afirmam que nas
primeiras décadas do século XIX, sobretudo a partir do processo de independência
política e em meio às disputas de diversos projetos de construção da nação, emergiram
grupos e agremiações dispostos a promover a instrução e a educação (GONDRA;
SCHUELER, 2008).
Diante dessas afirmações, sugere-se a questão: quais seriam as condições de
existência de uma preocupação com a formação e profissionalização de professores no
período imediatamente posterior à proclamação da independência do país? Os autores
em questão afirmam que é possível localizar em tal momento histórico o início das
preocupações oficiais com a formação docente (VICENTINI; LUGLI, 2009). Gondra e
Schueler (2008, p. 19) afirmam que, “exorcizando marcos cronológicos rígidos e
lineares, os historiadores têm produzido um novo olhar sobre o Oitocentos,
caracterizando-o como um período fértil de debates, iniciativas e práticas educativas”.
Dermeval Saviani afirma que o período compreendeu ensaios intermitentes de formação
de professores, a partir de 1827. Ainda que se concentre mais nos novecentos, Saviani
localiza no pós-independência a emergência do preparo dos docentes, relacionando-a à
preocupação com a instrução pública ofertada pelo Estado (SAVIANI, 2009).
Mesmo que se trabalhe com as diversas formas de sociabilidade e a presença de
variadas forças educativas em meados do século XIX, Saviani concorda com Gondra e
Schueler (2008, p. 63), que afirmam a carência de problematização da temática e de
investimento de pesquisa no campo da História da Educação, “sobretudo se
considerarmos as diversidades regionais e a multiplicidade de formas, iniciativas e
experiências localizadas no interior das províncias, cidades e vilas imperiais”. É
importante destacar que uma preocupação oficial não exclui outras preocupações
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272ISSN 2177-336X
anteriores, nem o fato de que provavelmente muito antes do século XIX os próprios
professores já se preocupassem com questões de sua formação e profissionalização. O
que aqui se discute é a possibilidade de trabalhar com registros dessa preocupação, no
caso, os documentos oficiais da época mantidos até a atualidade.
No século XIX, as escolas eram instaladas em locais cedidos por outrem ou
alugados pelos professores, que deviam responsabilizar-se pela manutenção do espaço.
Além das normas de comportamento moral e profissional, os professores deveriam
educar e instruir as crianças, manter a limpeza e higiene, organizar física e
administrativamente as escolas, pagar os aluguéis das escolas, entre outros (GONDRA;
SCHUELER, 2008). À docência estava vinculada uma imagem religiosa e missionária.
Essas associações visavam amenizar o desprestígio econômico e social do ofício,
construindo-o como uma predestinada missão. Outra observação acerca desse caráter de
dom missionário concedido ao magistério refere-se à questão de que ele era exercido
por homens e mulheres de camadas médias e pobres, o que permitia a esses um caráter
vitalício, ainda que não oferecesse riqueza, como é sabido pelos salários desde sempre
abaixo do esperado e desejado (GONDRA; SCHUELER, 2008).
Nesse mesmo século, inicia-se uma preocupação com a formação e a
profissionalização dos professores. Criam-se cursos para formar o magistério primário,
havendo a produção de manuais pedagógicos para formar e uniformizar posturas entre
os docentes (VICENTINI; LUGLI, 2009). Ainda que sejam ações de caráter mínimo
diante da tarefa de formação e profissionalização de docentes, são essas pequenas ações
que denotam a gênese da tomada de importância desses dois aspectos. O momento aqui
tratado reflete uma preocupação maior com o estudo das crianças. Inerente a tal
preocupação, surge também outra, a de como preparar profissionalmente os professores
que formarão essas crianças. A própria preocupação com a criação de cursos de
magistério, além da normatização que pode ser aferida pela criação dos manuais
pedagógicos, denota a preocupação com a formação das crianças e com a
profissionalização dos seus professores (GONDRA; SCHULER, 2008).
O século XIX, a partir da segunda década, é comumente conhecido como um
recorte da história que significou para o Brasil um “momento das trevas”. Essa questão
reflete-se mesmo no fato de que a preocupação com a formação e profissionalização dos
professores dá-se, para muitos autores, quando o país adota o governo republicano. No
entanto, há algumas investigações mais recentes de autores (FARIA FILHO, 2000;
VICENTINI; LUGLI, 2009) que propõem investigar essa denominação de “momento
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das trevas” concedida ao século XIX. Elas permitem vislumbrar o período sob outra
perspectiva, na qual são perceptíveis esforços de escolarização e de organização de
professores.
Vicentini e Lugli (2009, p. 25) afirmam que “é possível iniciar uma história das
preocupações oficiais com o preparo docente no início do século XIX”. É importante
destacar que os autores falam de uma preocupação oficial, o que se supõe documentada,
comprovável na atualidade. A questão a se debater é exatamente o momento em que o
Estado volta suas preocupações para a formação, uma vez que outras formas de
preocupação não oficiais possivelmente já existissem anteriormente ao momento que se
inicia com a Independência do Brasil.
O momento anterior a esse marco histórico denominado “independência” não
possui uma preocupação específica com a formação para a docência e sua
profissionalização. Se o século XIX já é denominado como “momento das trevas” por
muitos autores, o XVIII e os seus precedentes trazem em si uma imagem ainda mais
embassada em termos de desenvolvimento. Dos tempos de Colônia vividos pelo Brasil
até meados do que se convencionou historicamente denominar “Império”, o que se tem
é a exigência de um atestado de moralidade e de que o aspirante a professor possuísse
conhecimento do conteúdo a se ensinar. Podia-se também aprender a lecionar,
praticamente, por meio da observação de outro professor (VICENTINI; LUGLI, 2009).
Mesmo sendo o recorte de análise do presente trabalho os primeiros anos do
século XIX, sobretudo após a independência, cabe visitar superficialmente o sistema de
formação docente (com uma preocupação mais sistemática com sua profissionalização)
no momento em que o Brasil era uma colônia, para que se possa vislumbrar o
movimento de mudança de uma época a outra, as rupturas, as descontinuidades. Do
Brasil enquanto colônia portuguesa até em sua iminência de tornar-se Estado Moderno
Independente, a formação docente pouco teve de específico, de direcionado.
Na Colônia havia concurso de nomeação para as aulas régias. Para tanto, era
exigida a apresentação de provas de moralidade fornecidas pelo padre da paróquia e
pelo juiz de paz daquele que se candidatava a ser professor. Havia, também, uma
dissertação feita pelo candidato acerca da temática sobre a qual desejava discorrer. Esse
era um modelo denominado de artesanal, uma vez que as exigências para o ingresso à
função de professor não eram grandes. Havia, ainda, mestres de primeiras letras das
aulas oficiais, que deveriam saber ler, escrever, contar e ter conhecimentos suficientes
para proporcionar o ensino da religião aos seus alunos. Essas aulas oficiais eram
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providas pelo Estado. No entanto, as aulas disponibilizadas pelo Estado conviviam com
outras formas de educação nas letras, como as ofertadas por religiosos, estrangeiros que
ensinavam como preceptores em casas de famílias abastadas, associações beneficentes e
escolas particulares (VICENTINI; LUGLI, 2009; MENDONÇA; CARDOSO, 2007).
Ainda que alguns autores sigam na direção de afirmar práticas docentes no
período em que o país era colônia de Portugal, não faz sentido, para o presente trabalho,
discutir profundamente essas questões. O país enquanto Colônia portuguesa não se
constituía em um Estado independente, não tinha como tópico relevante de governo a
educação e, mesmo quando aparecia alguma ação de cunho pró-educativo, como, por
exemplo, as reformas Pombalinas, a eficácia era questionável. A preocupação com a
formação de professores não era, como se pode perceber, uma prática utilizada na
Colônia. Para um país entendido como subjugado a outro, não é de surpreender que a
questão de educar não seja uma prioridade.
Mattos (1987, p. 268) afirma que “sempre que se cuidava dos professores a
primeira das preocupações residia em sua formação, ponto de partida para o exercício
de uma direção”. Como afirmam autores citados acima, esse movimento de emergência
da preocupação com a formação docente tem início no século XIX, ainda de forma
tímida, e terá uma modificação com o marco histórico da independência do Brasil. Essa
modificação não se dará imediatamente após a independência, mas terá nela o seu ponto
de desencadeamento, como será discorrido a seguir.
Nota-se que o que impulsiona a preocupação com a formação e
profissionalização de professores não é, em si, a educação dos estudantes de uma escola
formal, mas sim o disciplinamento dos soldados nos exércitos, de modo a produzir
homens normalizados que não perturbassem a ordem e a disciplina. Atrelado a esse
interesse, estava a necessidade de instruir uma população que naquele momento
habitava um país independente. Buscava-se, então, em meio a tensões políticas
resultantes do processo de independência, a emancipação e disputas pela constituição do
Estado (GONDRA; SCHUELER, 2008). Seria essa proposta de formação e
profissionalização de professores uma estratégia do Estado para maior controle e
disciplinarização de sua população? Mattos (1987, p. 270) afirma que a criação do
magistério tinha como objetivo produzir o docente como um agente do governo do
Estado. Seriam os docentes instrumentos de fiscalização “escrupulosa e ativa” dos
indivíduos.
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Após a independência, houve uma demanda de muitas modificações em diversos
âmbitos para que o Brasil adquirisse uma total libertação do papel de colônia
portuguesa. Alguns autores afirmam que esse não é um processo exclusivamente
brasileiro, mas um fenômeno que ocorre em decorrência da independência, tanto no
Brasil como em outros países ocidentais.
Sobretudo, a partir da década de 30 do século XIX, aparecem discussões sobre a
implantação de escolas públicas elementares, além de debates sobre a escolarização das
crianças, dos negros, dos índios e das mulheres. Emerge então um discurso sobre a
necessidade da escola, que era ratificado pela presença estatal, que tornava obrigatória a
instrução elementar aos cidadãos (GONDRA; SCHUELER, 2008). Uma vez que o
Estado conferia esse acesso à escolarização de forma limitada, não cabe afirmar que ele
foi única e exclusivamente o propulsor da educação, da formação e profissionalização
de seus professores. Houve participação das famílias e da população local, seja por meio
da criação de escolas ou apoio dos mestres particulares, ou pelas queixas e reclamações
sobre as condições materiais das escolas ou sobre os professores e seu trabalho
(VEIGA, 1999 apud GONDRA; SCHUELER, 2008).
Após discorrer acerca da situação do ensino e da formação no Império, afirma-se
que não cabe a tal recorte histórico o título de “trevas” que lhe é conferido por alguns
teóricos e estudiosos. A história da profissão docente no Brasil tem dívidas ao século
XIX, que preparou o cenário para que iniciativas se tecessem e desenvolvessem. Alguns
autores justificam essa imagem negativa criada para o Império como produção dos
republicanos, que intentavam, com isso, destacar suas próprias propostas educacionais e
fazê-las obter um caráter mais estruturado e eficiente (VICENTINI; LUGLI, 2009).
Sabe-se que muitas questões referentes ao Império talhavam o desenvolvimento
do país em diversas áreas, como a escravidão e a restrição à condição de cidadão à
população brasileira. No entanto, não é o foco deste trabalho discutir todos esses
aspectos. Nesse sentido, cabe, em última instância, para ratificar a visão criada pelos
republicanos acerca do Império, afirmar que o Estado não sofreu muitas modificações
imediatas na transição Império-República.
Nesse sentido, “muitos dos modos de funcionamento das repartições
encarregadas de gerenciar o ensino continuaram iguais, uma vez que os funcionários
responsáveis pelos procedimentos permaneceram em seus cargos nos primeiros tempos
da República” (VICENTINI; LUGLI, 2009, p. 213). Faz-se necessário, para apreender o
momento de que se trata, não cair no anacronismo de uniformizar e homogeneizar o
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fenômeno educativo, de modo a afastar a ideia de uma suposta unidade nos projetos e
nas experiências educacionais e sociais no Brasil oitocentista. Como já exposto, tratava-
se de um momento multifacetado, habitado por várias condições, formas e experiências
de educação, as quais não se encontravam plenamente determinadas pelas formas
administrativas ou pelos regimes de governo (GONDRA; SCHUELER, 2008).
Considerações Finais
Conclui-se, após percorrer a argumentação desenvolvida, que o primeiro
momento do Brasil como um Estado Nacional, minimamente organizado política e
economicamente, ou ao menos com projetos para tal, deu início à ideia de formação de
professores e da profissionalização da prática docente. Tem-se início a abertura de
Escolas Normais que, em um primeiro momento, surgem para responder a demanda da
ausência de professores detectada no período estudado.
É sabido que, de acordo com o se apresentou neste texto, as iniciativas foram
tímidas e compõem, como exposto, um quadro maior de governo, sendo um dos pilares
da arte de governar, e uma clara tentativa de promover a racionalização do ensino,
evidenciada pela profusão de métodos de ensino que são divulgadas e adotadas nesse
período.
Este texto teve como proposta conferir espaço à perspectiva historiográfica que
derruba a idealização do século XIX como um período de trevas, redescobrindo-o ou
reinventando-o como um século que proporcionou avanços na educação, na formação
docente e em sua profissionalização, por vezes lentos, mas significativos.
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A FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE EM UM REGIME DE
VERDADE NA MÍDIA EDUCATIVA BRASILEIRA
Rondon Rosa Marques - UFOP
Resumo
Este texto discute a construção de regimes de verdade na formação e profissionalização
de docentes por intermédio das mídias educativas brasileira, tendo como objeto
específico a TV Escola. Busca-se identificar práticas de conformação do sujeito com a
propagação de mentalidades de conduta da conduta, em especial nos materiais
produzidos pela TV Escola. Perguntamos: qual modelo de professor é apontado nesses
conteúdos? Quais as formas de identificação induzem o profissional da educação a
buscar uma adequação? Qual a racionalidade de governo de Estado identificada nessa
lógica? Para analisar esses aspectos, nos apoiamos nas formas de construção da verdade
que dão base à estruturação de políticas de Estado e às práticas de governo, direção
teórico-metodológica inspirada nas discussões de Michel Foucault. Nesse escopo
teórico, os aspectos de construção de procedimentos constituem-se no ponto central das
práticas, sobrepondo-se a possíveis análises de causas e efeitos. O foco no método é
dado com o objetivo de mapeamento da sua articulação com uma economia política
estabelecida nos jogos de poder. Argumentamos que a política neoliberal estabelecida
no Brasil, coluna vertebral de uma governamentalidade, condiciona as estruturas ligadas
à educação a padrões de um Estado gerencial. A demanda de resultados quantitativos
acaba por ter relação sobre os parâmetros qualitativos da formação de docente que
necessitam de um alinhamento constante com as práticas contemporâneas. Concluímos
que em um ambiente de demanda da performatividade, o professor é convencido da
necessidade manter-se alinhado com os padrões instituídos, governando suas condutas
na busca de alinha-las com a mentalidade de governo de Estado.
Palavras-chave: Formação e profissão docente; Regime de verdade; Mídia educativa.
Neste texto identificamos como a mídia educativa brasileira, simbolizada pela
TV Escola, vem construindo um regime de verdade sobre a formação docente e sua
profissionalização. Entendemos que as questões apresentadas nos conteúdos da TV
Escola estão a replicação das demandas de sujeitos condicionados ao atendimento das
premissas de um mercado da Educação, dispostas como mercadoria de um Estado
gerencial. Argumentamos que a construção da verdade sobre a formação e
profissionalização docente está relacionada a uma formatação econômica e política, que
também passa a constituir o Estado gerencial. Esses princípios são norteadores e
produzem efeitos e formas de disseminação com base no sistema capitalista.
Entre os propósitos norteadores estão as diretrizes traçadas pelos organismos
internacionais, em destaque o Banco Mundial e a UNESCO, que desembocam na
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formatação das políticas públicas do Governo brasileiro. São esses propósitos que
definem a distribuição de recursos e o entendimento da necessidade nas novas
tecnologias de informação e comunicação como meio alternativo para o maior
atingimento de seu público-alvo. Perguntamos: como esses entrecruzamentos podem
dar origem a conceitos de verdade sobre a formação e a profissionalização do professor?
Quais seus procedimentos e possíveis efeitos?
Questões de método
A sociedade ocidental, no período conhecido como Moderno, passa a ter uma
ligação íntima entre o pensar e o agir político em consonância com interesses e
princípios econômicos reconhecidos amplamente pelo nome de Sistema Capitalista.
Entendendo esse movimento enquanto uma construção que emerge de diversas frentes e
propósitos, percebe-se que sua articulação se dá na instância de proposições que
assumem, naquele momento, o status de veridicidade ou, como poderíamos chamar, um
regime da verdade. Essa questão, para Foucault, “está circularmente ligada a sistemas
de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a
reproduzem” (FOUCAULT, 2003a, p. 11). Nessas ações constituídas nas relações
diárias produz-se um regime político que pode ser verificado, igualmente, no campo da
Ciência. Na busca de entendimento dos procedimentos de edificação desse código,
torna-se necessário identificar “que efeitos de poder circulam entre os enunciados
científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele
se modifica de forma global” (FOUCAULT, 2003b, p. 5) no interior da trama, sem a
necessidade de sua identificação consequente com um sujeito específico. Nessa
articulação política, os que se apresentam mais adequado aos princípios disseminados
adquirem importância econômica e maior credibilidade.
A forma político-econômica de construção da verdade é a representação mais
característica dos jogos de poder pela forma de estabelecimento entre os pares desse
meio e com o eleitorado, a quem se direcionam, estabelecendo uma instância superior e
o referencial de conhecimento (FOUCAULT, 2003c). A valorização das instâncias
política e econômica, enquanto referência do estabelecimento do conhecimento/verdade,
liga-se a esses jogos de poder responsáveis pela definição das condições de poder-saber
nas demais áreas. “Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens
de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em
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280ISSN 2177-336X
que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações de verdade” (FOUCAULT,
2003c, p. 27). O poder está inserido, é produtivo e indutor, forma saberes e discursos.
Por isso, pode ser visto como uma rede que atravessa de forma continuada e adaptada
todo o corpo social que é regido por uma economia política que busca nas ações a
efetividade de um Estado gerencial baseado nos princípios relacionados com a
eficiência nos resultados.
Para analisar os mecanismos de produção de verdade sobre a formação e
profissionalização docente, trabalhamos com os parâmetros dos organismos
internacionais e do governo brasileiro para o estabelecimento de diretrizes e de modelos
de atuação docente e dos gestores. Descritora das estratégias que envolvem educação e
tecnologia, a publicação intitulada Currículo de Alfabetização Midiática e Informacional
(AMI) também foi analisada na busca de referenciais regulatórios, assim como a avaliação do
Plano Nacional de Ensino no período de 2001 a 2008. Instrumento pedagógico de
informação, buscamos na revista TV Escola a confirmação dessas mentalidades que
tendem a ser explicitadas e copiadas.
As ações brasileiras e de outros países da América Latina envolvendo a
Educação passaram, na década de 1990, por um processo conhecido como
gerencialismo. Essa tendência configura-se pela estruturação de parâmetros políticos e
econômicos que norteiam as políticas a serem adotadas em cada localidade,
apresentando, inclusive, metas a serem atingidas na Educação. A manutenção das ações
dentro de um determinado escopo e com resultados satisfatórios dá ao país uma
chancela garantidora de investimentos provenientes dos organismos internacionais,
entre eles e de forma destacada, o Banco Mundial. Com esse novo cenário, “constitui-
se, então, todo um quadro teórico e uma prática administrativa que visam modernizar o
Estado e tornar sua administração pública mais eficiente e voltada para o cidadão-
cliente” (BRESSER-PEREIRA apud MENDES; LIMA, 2015).
Nesse Estado gerencial, a aprendizagem e o conhecimento passam a ser tratados
como indicadores para a eficiência do sistema educativo atrelado às políticas públicas
em uma vertente economicista. Os recursos humanos, leia-se principalmente os
professores, precisavam ser geridos para o melhor aproveitamento de oportunidades e
qualificação de seus processos. Esses princípios passam a ser os balizadores da
qualidade das instituições educativas que aderem a um processo competitivo e de
constante busca de superação de seus indicadores (MENDES; LIMA, 2015, p. 14).
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281ISSN 2177-336X
O ajustamento das políticas governamentais, de acordo com as demandas sociais
e com base em parâmetros político-econômicos ditados pelos organismos
internacionais, é o cenário apontado por Nogueira (2012) sobre a TV Escola,
diferenciando a atuação em três frentes que se complementam: qualidade na Educação,
formação e profissionalização de professores e o uso das Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC). No recorte do período de 1995 a 2010, avalia a relação entre
Estado, políticas públicas e organismos multilaterais, indicando convergências,
divergências e contradições nas diretrizes para a qualidade na Educação definidas pelo
Banco Mundial e UNESCO para os países em desenvolvimento ao compará-las com o
uso das TIC, tanto nas ações educativas quanto na formação e profissionalização de
professores. Para tal, baliza os projetos financiados pelo Banco Mundial relacionados às
tecnologias, tendo foco especial nos que foram efetivados diretamente com a TV
Escola.
A relação dos organismos internacionais com as políticas para o campo da
Educação no Brasil tem referência na década de 1940, no período que sucede a Segunda
Guerra Mundial, com a justificativa das ações para a assistência aos países que
buscavam a estabilidade econômica e social. A metodologia utilizada desde então
começa com a realização de um estudo para detectar a realidade e as necessidades da
localidade a ser atendida. Com base nas prioridades, são traçadas metas de
encaminhamento político econômico que, alinhadas com os princípios do Banco
Mundial, credenciam o aporte de recursos para investimento nas ações de
desenvolvimento social, entre elas as ligadas à Educação, no formato de concessões de
créditos.
Outra agência com foco semelhante é Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), “com objetivo de contribuir para
manutenção da paz e da segurança no mundo, pela Educação, Ciência e Cultura”
(NOGUEIRA, 2012, p. 72). Agentes de orientação de políticas públicas, esses
organismos confirmam a constituição dos processos com base nos jogos de poder
efetivados nas relações diárias. A forma de estabelecimento das verdades é identificada
em um processo genealógico, “uma forma de história que dê conta da constituição dos
saberes, dos discursos, dos domínios de objeto etc.” (FOUCAULT, 2003b, p. 7). Aqui,
buscamos entender como se refletem as diretrizes da UNESCO e do Banco Mundial na
conformação de verdades nas instâncias institucionais e seus constituintes para a
formação e profissionalização docente.
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A TV Escola foi implantada em ambientes educativos com a possibilidade de
acesso por transmissão e gravação dos conteúdos. A facilitação desse acesso é um
exemplo da busca de ampliação do raio de atingimentos dos conceitos centrais da
proposta governamental, como caracterizado no governo de Estado. Uma ação que
potencializa a interiorização dos conteúdos com um viés de concordância. Tendo essas
ações relacionadas com estratégias governamentais, assinala-se, na sequência, algumas
diretrizes detectadas para o campo da Educação em sua relação com a tecnologia em
estudos e documentos, tanto dos órgãos de gestão brasileiros quanto nos organismos
internacionais que são referência para estratégias de gestão: a UNESCO e o Banco
Mundial.
A economia política para a formação e profissionalização docente
O modelo da UNESCO e do Banco Mundial é da formação de um sujeito bem
qualificado tecnicamente e profissionalmente, com capacidade de uma atuação
diferenciada na sociedade. Um professor ciente do papel político dos meios de
comunicação e informação, que saiba usá-los nas ações pedagógicas, que forme alunos
ciosos de seu papel social e, de uma forma geral, que contribua para a mudança de toda
a sociedade para que a mesma tenha expertise para lidar com os novos recursos
disponíveis e disponibilizados a cada dia. Um ser capaz de entender, utilizar, ensinar e
perpetuar, de forma adequada, o uso dos meios. Esse é o papel do professor descrito no
documento “Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de
professores” (WILSON, 2013), da UNESCO, produzido no intento de realizar os
objetivos da Declaração de Grünwald1 (1982), da Declaração de Alexandria
2 (2005) e
da Agenda de Paris3 da UNESCO (2007). O objetivo é reunir os diferentes formatos de
mídia (rádio, televisão, internet, jornais, livros, arquivos digitais e bibliotecas, entre
outros) em uma conceituação que forneça seus usos de forma integrada com os
processos educativos. O profissional buscado nesse processo está atrelado diretamente
às demandas de mercado ao mesmo tempo em que o coloca em um patamar no qual
pode emanar discursos de veridicção.
Em todos os aspectos, as demandas suscitadas pelas tecnologias estão
relacionadas à configuração de um novo profissional da Educação que seja capaz de
absorver e atender às demandas do cenário, sejam as vindas por parte dos alunos e
familiares, sejam as relacionadas com os princípios buscados pela gestão e estratégias
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283ISSN 2177-336X
de governo. A proposta curricular citada teve início em 2008 e foi elaborada por um
grupo internacional de especialistas, tendo como escopo o mapeamento dos recursos
disponíveis para a formação com o uso da mídia. A primeira versão foi submetida a
uma série de testes de campo em seminários de formação e consultas no Sul da África,
na América Latina e Caribe, e no Sul da Ásia, o que resultou na segunda versão com
uma fase final de acertos de linguagem e conteúdo. Entendendo a amplitude de
possibilidades de inter-relação dos meios midiáticos com a Educação, o que ganha
centralidade no
Currículo de AMI (Alfabetização Midiática e Informacional) é a discussão
sobre a política e a visão da alfabetização midiática e informacional e suas
implicações para a Educação em geral e a educação de professores em
particular. Essa discussão deve conduzir a uma análise da política, da visão e
de como ambas relacionam-se com a preparação de professores e estudantes
alfabetizados em mídia e informação. Por fim, ela deve chamar atenção para
o papel dos professores na promoção de sociedades alfabetizadas em mídia e
informação (WILSON, 2013, p. 24).
Nessa perspectiva, os professores submetidos às estratégias de formação
continuada são considerados alfabetizados nos “conhecimentos e habilidades midiáticas
e informacionais”, o que dará a eles a condição de transmitir aos alunos a competência
de “aprender a aprender, a aprender de maneira autônoma e a buscar a educação
continuada” (WILSON, 2013, p. 17). Para Nogueira, essa perspectiva de ação
configura-se como um mecanismo de “regulação do capital sobre o processo de
formação dos indivíduos, atribuindo, exclusivamente a esse indivíduo, a
responsabilidade de sua formação com vistas a sua inserção no mercado de trabalho”
(NOGUEIRA, 2012, p. 97), o que se daria com base em quatro pressupostos: a) o
aprendizado realizado pelo próprio indivíduo de conhecimentos e experiências, sem a
transmissão realizada por outras pessoas, é considerado mais desejável; b) o que induz
ao pensamento que é melhor o aluno conceber seus próprios métodos “de aquisição,
elaboração, descoberta, construção dos conhecimentos”, em detrimento de apenas
aprender os conceitos formulados por outras pessoas; c) para que esse processo seja
efetivamente educativo, a busca do aluno deve ser pautada pelos próprios interesses e
necessidades dele; e d) essa autonomia e relação condicionam os envolvidos a um
alinhamento com o ritmo frenético de alterações nas relações sociais cotidianas da
contemporaneidade.
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284ISSN 2177-336X
Alinhados com pensamento que o treinamento no uso das tecnologias midiáticas
trará uma nova postura para os docentes, o grupo de especialistas da UNESCO propôs a
organização do cruzamento entre áreas temáticas centrais e áreas curriculares amplas da
Alfabetização Midiática e Informacional voltadas à formação docente. O objetivo é criar
uma matriz e módulos curriculares que possam ser adaptados às estratégias globais,
regionais e nacionais. Nessa proposta, o conhecimento das mídias e da informação para
discursos democráticos é visto como condicionante para a avaliação desses meios, o que
resultaria em melhores conjunturas de produção e uso dos canais. A mesma sistemática
é aplicada nas visões de política e visão; currículo e avaliação; pedagogia, mídia e
informação; organização e administração; e desenvolvimento profissional dos
professores.
Os resultados almejados em relação à mídia e informação propõem mudanças no
cenário de alfabetização das sociedades nesses meios; habilitação dos envolvidos na
identificação dos modos de produção, usos e propósitos; geração de conteúdos para uso
no ensino e aprendizagem; alcance do maior domínio das tecnologias, possibilitando a
integração das novas mídias; incorporação dessas tecnologias na formação continuada;
culminando com a “liderança e cidadania; o ponto ideal da promoção e do uso da AMI
para o desenvolvimento de professores e estudantes” (WILSON, 2013, p. 23).
O documento Alfabetização midiática e informacional considera ainda que,
“educando os alunos para alfabetizarem-se em mídia e informação, os professores
estariam respondendo, em primeiro lugar, a seu papel como defensores de uma
cidadania bem informada e racional” (WILSON, 2013, p. 17). Essa conduta, alinhada à
conformação de indivíduos diferenciados em sua relação social, mostra que “a
UNESCO confere à Educação uma noção aparentemente mais humanitária, enfatizando
em menor grau a sua relação como recurso para o desenvolvimento econômico”
(NOGUEIRA, 2012, p. 85).
Apesar dessa visão mais voltada ao apoio ao sujeito, isso não significa uma
visão de assistencialismo e sim a proposição que o indivíduo desenvolva suas aptidões,
sendo capaz de ter controle sobre seu próprio projeto social. A Educação é posta de
forma prioritária nas agendas internacionais, buscando a mobilização de recursos
humanos e financeiros no intuito de cumprir a meta da “Educação para Todos” junto aos
países nela envolvidos. Para atender a esse intento, a Declaração de Dakar4 prevê a
necessidade de apoio financeiro aos países, o maior apoio às propostas de
desenvolvimento e a possibilidade de perdão de dívidas, o que foi calculado na ordem
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285ISSN 2177-336X
de oito bilhões de dólares ao ano. A articulação é firmada com o envolvimento dos
governos federais e de doadores bilaterais e multilaterais, entre os quais estão inclusos
os bancos regionais de desenvolvimento, a sociedade civil e as fundações. Participante
desse movimento e alinhado com as diretrizes de cooperação internacional, está o
Banco Mundial agindo como uma instância de assistência técnica e financeira.
A Avaliação do Plano Nacional de Ensino no período de 2001 a 2008 confirma
que “as mudanças na Educação brasileira por meio da aprovação de leis educacionais,
políticas, programas e ações, sobretudo a partir da década de 1990, inserem-se no
percurso mais amplo de sua articulação a organismos multilaterais” (BRASIL, 2009, p.
13). Nogueira (2012) assinala convergências, divergências e contradições nas diretrizes
para a qualidade na Educação definidas pelo Banco Mundial e UNESCO para os países
em desenvolvimento ao compará-las com o uso das TIC, tanto nas ações educativas
quanto na formação de professores. Um dos focos de investimento do Banco é a
ampliação da implantação de sistemas digitais que promovam a maior transparência do
sistema educativo nos planos nacional e local, promovendo a difusão dos resultados e
efetuando uma supervisão mais adequada. Sunkel, Trucco e Espejo (2014) destacam o
apoio dado pelo Banco Mundial a mais de 40 projetos entre os anos de 2002 e 2006 no
denominado Sistema de Información sobre la Administración de la Educación que
permite que os analistas e os responsáveis possam entender de que forma os
investimentos em Educação transformam-se em produtos ou resultados. O acesso aos
dados atualizados e de qualidade é visto como potencializador da melhora da tomada de
decisões, assegurando que os recursos sejam destinados às localidades onde são mais
necessários e os resultados seriam melhores (MENDES; LIMA, 2015), tendo como
norte o Estado contemporâneo fundamentado na administração pública eficiente e
atendendo às demandas de um cidadão visto como cliente.
No que tange ao direcionamento da Educação Básica pública, as políticas
brasileiras alinham-se mais à UNESCO, com a busca de “políticas sociais sem direito
social, fortalecendo a perpetuação de políticas fragmentadas e focalizadas para os
grupos despossuídos” (NOGUEIRA, 2012, p. 93), diferentemente da sujeição desse
nível aos mesmos critérios de mercado. Quanto à qualidade, a UNESCO sinaliza o valor
da equidade ao mesmo tempo em que se refere à eficiência no uso dos recursos,
utilizando o paradigma de insumo-processo-resultados. O Banco Mundial aponta para a
mensuração da eficiência e eficácia, com a medição dos processos de ensino e
aprendizagem. Nesse caso, os objetivos do governo brasileiro alinham-se às duas
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propostas com o intuito de “propiciar o acesso da população brasileira à Educação e ao
conhecimento com equidade, qualidade e valorização da diversidade” (BRASIL, 2010,
p. 12).
A dispersão das propostas relacionadas com as tecnologias educacionais revela a
ausência de uma única política para esse meio no Brasil, o que demonstra uma
disparidade no tratamento se comparado com a UNESCO, que reuniu as diretrizes em
um único documento. Já o Banco Mundial não apresenta, em seus documentos, questões
objetivas para essa área, que é incentivada indiretamente. No entanto, verificar que os
organismos internacionais apresentam confluências com políticas brasileiras não
significa confirmar uma subordinação de princípios alheia às demandas da sociedade
local. O que é possível detectar é que existem aspectos centrais coincidentes que
perpassam uma mentalidade ocidental e que, por seu reforço, acabam consolidando
procedimentos, métodos, lógicas, noções que são replicadas em todas as instâncias. Essa
confluência conformadora de perfis profissionais e de políticas públicas é percebida de
forma associada com as propostas e avaliações das práticas da TV Escola, como a
análise do Plano Nacional de Ensino nas ponderações sobre os efeitos do Programa de
Melhoria e Expansão do Ensino Médio (PROMED), no período de 2001 a 2008, ao
considerar, como metas, “criar 1,6 milhão de novas vagas; melhorar os processos de
gestão dos sistemas educacionais; equipar, progressivamente, as escolas de Ensino
Médio com bibliotecas, laboratórios de Informática e de Ciências, e instrumentos para a
recepção da TV Escola” (BRASIL, 2010, p. 173). Nesse caso, o apoio e a
implementação da reforma curricular, da infraestrutura física e da garantia de formação
continuada e profissionalização dos docentes e gestores de escolas de nível médio
contribuiu como estratégia alternativa de atendimento.
A TV Escola e a produção da verdade sobre a formação e profissionalização
Constituir um canal televisivo voltado apenas às questões relativas à Educação é
um desafio que reúne formas diversas de interação, haja vista a heterogeneidade que
delineia os dois campos. Esse é o caso da TV Escola que, sendo um meio de
comunicação, absorve, em suas práticas, os procedimentos característicos das emissoras
comerciais, adaptadas ao público e aos usos pedagógicos. O texto de apresentação da
linha editorial do canal revela os objetivos buscados na produção sistemática dessa que
é reconhecida como uma emissora pública pertencente ao Ministério da Educação. Na
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afirmação de que “é missão da TV Escola tornar o interesse do brasileiro em Educação
num interesse qualificado e pertinente, refletindo em uma consciência melhor do papel
que queremos para a nossa Educação”5 é possível perceber o posicionamento a respeito
do que seria a contribuição do nominado Canal da Educação. O texto mostra uma
posição de emissão do conhecimento no intuito de quem deseja “falar”, “pautar” e
“discutir”, “refletindo em uma consciência melhor do papel que queremos para a nossa
Educação”. O canal coloca-se como articulador e contribuinte do sistema de ensino,
realizando produções audiovisuais que são disseminadas por todo o Brasil, com ênfase
especial para escolas e bibliotecas públicas.
A TV Escola foi criada com a parceria entre os governos federal, estadual e
municipal, com uma infraestrutura de antenas parabólicas, equipamentos de gravação e
exibição para a disponibilização dos produtos audiovisuais em sala de aula.
Comparando com a eficiência dos canais comerciais, é possível perceber que a
expectativa nos meios educativos é colocada no mesmo patamar de atingimento de seus
telespectadores e usuários. Na linha de emissoras de posse da iniciativa privada, o uso
das produções ficcionais ou jornalísticas é reconhecido como de grande potencial de
convencimento e perpetuação de mentalidades, sendo capaz de interferir nas questões
políticas e econômicas.
A reportagem “Interior premiado” publicada na revista TV Escola em 2010
mostra essa lógica reiterada de dar centralidade às práticas que servem de modelos para
as demais, mesmo em condições adversas. Distante dos granades centros urbanos, uma
instituição da zona rural da Bahia sagra-se campeã no Prêmio Nacional de Gestão
Escolar, promovido pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (CONSED),
com foco na qualificação dos gestores das escolas públicas desde 1998. O texto chama a
atenção para os aspectos da coordenação do Colégio Estadual Casa Jovem II com
estratégias que envolveram a aproximação do contexto social. Além desse exemplo bem
sucedido foram mostradas, também, as ações desenvolvidas no Centro de Atenção
Integrada à Criança e ao Adolescente (CAIC) Senador Carlos Jereissati, na cidade de
Russas, no Ceará; na Escola de Educação Básica Júlia Lopes de Almeida de Blumenau,
em Santa Catarina; na Escola Estadual Paulo Freire, em Iguatemi, no Mato Grosso do
Sul; na Escola Estadual Menino Jesus de Praga, na cidade mineira de Caratinga; e na
Escola Estadual Odorico Leocádio da Rosa, em Rondonópolis, no Mato Grosso.
O sucesso das atividades é vinculado diretamente com a capacidade dos gestores
de seduzirem os alunos e de lidarem com aspectos emotivos. As instituições finalistas
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foram indicadas como portadoras de: a) criatividade e simplicidade do projeto
pedagógico; b) ludicidade dos projetos de ensino; c) desenvolvimento de parcerias com
outras instituições, possibilitando o aprendizado prático; d) transparência e
planejamento da gestão para superar obstáculos; e e) incentivo da participação dos
alunos, pais e comunidade na avaliação dos resultados. De forma conjunta ou
selecionada, essas cinco características passaram a sevir de balizamento para outras
instituições de ensino que almejassem o mesmo sucesso. A reportagem em questão
reafirma o quão são bem sucedidas as iniciativas desenvolvidas pelos gestores das seis
instituições públicas, o que se coloca como modelo a ser seguido por outras do mesmo
segmento. Constituindo essa formulação de condutas, na reportagem, os dirigentes são
carregados de todas as boas qualidades para estar à frente das instituições.
Entendemos que essa divulgação reiterada de práticas como uma metodologia
que pode culminar em um processo de conformação de práticas, visto que as mesmas
tendem a ser copiadas pelos pares. A exibição dessas propostas exitosas coloca o gestor
em um cenário de identificação e aproximação em “redes de fidelidade com a qual [o
sujeito] se identifica de modo existencial, tradicional, emocional ou espontâneo,
aparentemente além e acima de qualquer apreciação calculada do interesse pessoal”
(ROSE apud MENDES, 2004, p. 66). É nesse interesse, nessa busca de sucesso, nessa
forma de transladar situações e modelos que se percebe a constituições de verdades
assumidas como plenas. Veridicções que permeiam o campo da mídia e que suscitam as
demandas de formações continuadas, de reformulações de projetos, de almejo do maior
envolvimento comunitário e até na busca da cópia de avaliações meritocráticas dos
alunos. Uma mentalidade na qual o que se destaca precisa ser colocado em evidência e
dizer sua verdade, no intuito da influência de outrem.
Conclusão
O uso de canais de comunicação, assim como de outras tecnologias, não pode
ser visto de forma ingênua e ausente de interesse. Os mesmos carregam certos
antecedentes construídos em jogos de poder situados temporalmente. Rose (2001, p. 38)
afirma que as verdades referem-se “a qualquer agenciamento ou a qualquer conjunto
estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo mais ou menos
consciente”. Cabe afastar essa afirmação da visão de ideologia na qual esse uso dos
meios é estipulado e controlado por um poder soberano constituído em uma instância
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abstrata ou personificado em uma estrutura de governo. O entendimento aqui perpassa
os jogos de poder presentes nas relações humanas de forma cotidiana, resultantes de
processos históricos e sociais. Ao afirmar que é “missão da TV Escola tornar o interesse
do brasileiro em Educação num interesse qualificado e pertinente”, é mostrada a posição
de formador de mentes que o canal toma para si. Conceito esse com raízes ortodoxas do
pensamento de uma modernidade e derivado “da fé iluminista na capacidade da razão
para iluminar, transformar e melhorar a natureza e a sociedade” (DEACON; PARKER,
1994, p. 98).
Com base nas questões assinaladas neste texto, é possível confirmar que a
posição de posse do saber está intimamente relacionada ao valor de mercado que tanto
rege os valores dos que se encontram no locus de potência acadêmica quanto determina
os parâmetros a serem seguidos por aqueles que almejam maior destaque. A formação
continuada e a busca de titulações são incentivadas com frequência regular nos
parâmetros dos organismos internacionais, nas políticas nacionais para a Educação e nos
conteúdos disponibilizados pela TV Escola. Mesmo verificando um alinhamento da
busca de paralelo entre a formação e o valor profissional, a produção desses
profissionais, referência da verdade no Brasil, não é viabilizada em um único sistema.
Diversas iniciativas vão ao encontro das proposições internacionais e demandas locais,
mas de uma forma desarticulada, o que favorece o surgimento de destaques pontuais.
Mesmo não fazendo parte de um único projeto de conformação dos seres, essa
disseminação de práticas mostra-se como recurso potente que culmina no governo de si.
Cientes de seu papel social na relação espelhada com os modelos propagados, o docente
é convencido a buscar reiteradas formas de aprendizado, formais ou informais. Uma
reconfiguração constante que também atende aos princípios norteados nos projetos de
governo e nas estratégias preconizadas por organismos internacionais.
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1 Declaração que foi emitida pelos representantes de 19 nações no Simpósio Internacional sobre Educação
para as Mídias, organizado pela UNESCO, na cidade de Grünwald, República Federal da Alemanha, em
1982. 2 Declaração produzida no primeiro Encontro de Especialistas em Competência Informacional e
Aprendizado ao Longo da Vida, realizado de 6 a 9 de novembro de 2005, na Biblioteca de Alexandria
(em Alexandria, no Egito), organizado pela NFIL (National Forum on Information Literacy), UNESCO
(United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) e IFLA (International Federation of
Library Associations and Institutions). 3 Encontro comemorativo dos 25 anos de Grünwald, realizado em Paris no ano de 2007.
4 Cúpula Mundial de Educação realizada em Dakar, no Senegal, no período de 26 a 28 de abril de 2000,
que resultou na Declaração de Dakar. Educação para Todos – 2000. 5 Disponível em: <http://tvescola.mec.gov.br>. Acesso em: 13 nov. 2013.
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