a estratÉgia nacional e a energia darc costa a história do
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A ESTRATÉGIA NACIONAL E A ENERGIA
Darc Costa
A história do mundo industrial é uma história recente. É a
história da apropriação da natureza através de uma forma nova de
mediação. A partir do século XVIII, a apropriação da natureza deixou-
se de fazer exclusivamente pela interação física do corpo humano ou
do corpo das bestas com a natureza. A apropriação da natureza
deixou de ser fruto exclusivo de trabalho humano ou animal. O
homem havia descoberto que tinha capacidade de dar a natureza uma
representação numérica razoavelmente satisfatória e ao fazê-lo poderia
vir a utilizar-se desta nova capacidade para também se apropriar da
natureza. O homem podia fazer ciência e com a ciência era capaz de
criar tecnologia.
Tudo isso levou a uma aceleração na Inglaterra, também,
na primeira metade do século XVIII, tanto no número de invenções,
quanto na sua importância. Contudo, é bom lembrar que teve grande
influência para esta aceleração a adoção pelos ingleses de medidas
protecionistas, como os éditos reais de 1700 e 1719, que proibiam a
importação das tecelagens indianas. Com essas medidas a autoridade
inglesa alcançava de um só golpe dois resultados: evitava a competição
de um artesanato perfeitamente estruturado e incentivava uma
indústria nascente. Essas medidas protecionistas tiveram grande
alcance, pois não apenas reservaram o mercado inglês para a sua
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indústria têxtil como permitiram a exportação do tecido manufaturado
da metrópole para a Índia, aonde o artesanato têxtil ia sendo
gradualmente desmantelado. A proteção levava a acumulação e a
acumulação levava a inovação. Surgiu em 1733, por invenção de John
Kay, a lançadeira volante que revolucionou a indústria têxtil. A esta
invenção seguiram várias outras inovações onde John Wyatt, Lewis
Paul, Daniel Bourn, Hargreaves, Arkwright, Samuel Crompton e
Cartwright revolucionaram a indústria têxtil confirmando o primado
industrial têxtil inglês.
Um elenco de invenções equivalentes, inovações, pode ser
arrolado para a indústria metalúrgica a partir do carvão, cujo interesse
só veio a crescer quando se descobriu uma maneira de transformá-lo
em coque. Em 1784, Cort deu um passo decisivo ao definir a pudelage,
como havia dado, em 1750, Huntsman ao apresentar o aço fundido.
Avanços como estes, que solucionaram a carência do carvão vegetal
decorrente do desflorestamento rápido, permitiram a criação por
ativos empresários como Darby, Wilkinson, Bradley, Crawshay (o rei
do ferro) e outros, de importantes complexos industriais, empresas
familiares que trocavam, a partir de então, apoio mútuo com o
parlamento e a coroa britânica.
A fisionomia tradicional da Inglaterra alterou-se.
Rapidamente o país se urbanizou com as conseqüências conhecidas:
superpopulação, insalubridade, exploração, alcoolismo, violência. No
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campo esboroou-se o quadro aprazível do passado, dos relvados
pitorescos, da caça em grande estilo, da abundância despreocupada
mesmo entre os pobres. Estávamos entrando na idade do capitalismo;
a atividade produtiva fazia-se em lugares afastados e inóspitos cuja
principal qualidade era a proximidade da matéria-prima ou da fonte de
energia, mais esta que aquela. Energia, com efeito, era algo
indispensável na nova idade. De forma geral o recurso havia sido o de
apelar para o método eólico ou hidráulico ou de tração animal, até que
em 1769, James Watt patenteou sua máquina a vapor, que iria
substituir, de forma muito mais prática, todas as alternativas anteriores.
A invenção foi de tal forma conveniente, que seu uso já estava
generalizado por volta de 1786; isto é, menos de vinte anos após.
Houve, a partir do século XVIII, uma revolução na maneira de agir do
homem e o seu motor foi a energia e a inovação.
O intenso movimento expansivo que a Grã-Bretanha
experimentou durante o período que se seguiu fez com que ela
ampliasse de muito o nível econômico de sua sociedade e que ela
alcançasse a dianteira industrial sobre os demais países. Tudo isto
baseado na energia e na inovação.
Tinha havido uma ruptura central em um paradigma
estabelecido. Durante séculos, processos de crescimento rápido
haviam ocorrido basicamente em regiões que dispunham de
abundantes recursos naturais (potencial agrícola, minérios),
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eventualmente valorizados. Quando esses recursos se esgotavam ou
perdiam importância, suas regiões produtoras caminhavam para a
decadência. A industrialização na Inglaterra, no final do século XVIII e
início do século XIX, havia rompido o antigo paradigma e alterado
significativamente esse padrão. Passava a ser possível que algumas
economias não centrais conhecessem casos notáveis de crescimento
que não se baseavam na exploração extensiva de recursos naturais
abundantes, mas sim em processos intensivos de industrialização. E
intensivos em industrialização por que, na verdade, eram intensivos em
energia. Por diferentes caminhos, diversas economias retardatárias
puderam se beneficiar da capacidade de obter ganhos acelerados de
produtividade através de estratégias — relativamente simples —
baseadas na difusão de técnicas já conhecidas e na produção de mais
energia. A energia passou a ser base de qualquer desenvolvimento.
A ruptura central do paradigma centrou-se, portanto, na
disponibilidade de energia. Energia para o aumento da produtividade
primeiro e depois energia para a melhoria da qualidade de vida. Gerar
energia passou a ser o objetivo primordial daqueles que entendiam a
nova época. A busca às fontes de energia passou a ser o objetivo
central de todos os que queriam o progresso. Esta busca transformou-
se — também, em paralelo, a busca dos insumos industriais — no
objetivo central da Inglaterra e dos outros países que buscavam com
ela rivalizar no comando dos negócios mundiais.
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Ao final do século XIX e ao longo do século XX,
basicamente pela multiplicação do poder gerador de energia criou-se
um pequeno número de novos países bem sucedidos nesta busca,
aqueles que alcançaram o centro, como havia feito a Inglaterra já no
século XVIII e um grupo um pouco maior de países intermediários, ou
digamos semiperiféricos, alguns de grande porte, entre os quais o
nosso país, que vinham sendo bem sucedidos nesta busca e que
caminhavam em direção ao centro. Aparentemente, esses últimos
países encurtavam a distância que os separava dos líderes.
Um dos fatos mais importantes dos vinte últimos anos,
no cenário mundial, foi a desarticulação sucessiva de todas essas
aproximações dos semiperiféricos ao centro (na América Latina no
início da década de 1980, no leste da Europa no fim da mesma
década, entre os tigres asiáticos na década de 1990), com a exceção —
pelo menos, por enquanto — da China, cujo surto de crescimento
acelerado é recente. Essa desarticulação teve várias causas, mas, uma
das mais relevantes, sem dúvida, tem a ver com o contingenciamento
da geração de energia nos países semiperiféricos, que foi causada
nesses países tanto pela quebra dos modelos de financiamento que
suportavam a expansão energética quanto pela criação de barreiras
ecológicas ao aumento da oferta energética.
Mas, neste contingenciamento há uma determinante
central que repousa no controle do espaço. Algo antigo e que não
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mudou: o controle das fontes de energia. E isto pressupõe muitas das
vezes o controle do território, explicito ou implícito, pressupõe a ação
política sobre a geografia, pressupõe geopolítica. A busca ao controle
físico das fontes de energia esteve presente direta ou indiretamente
nos grandes conflitos que fizeram a história dos séculos XIX e XX.
Alguns exemplos da importância vital que o tema da energia adquiriu
no planejamento e na vida das nações são as duas guerras mundiais
envolvendo a França e a Alemanha e a contenda anterior franco-
prussiana de 1870 pelo controle do carvão das regiões próximas ao Rio
Reno; a busca ao carvão e depois ao petróleo pelo império russo no
Cáucaso e nos Bálcãs; o avanço japonês em direção a Manchúria em
busca do carvão e sua ação no sudeste da Ásia em busca do petróleo;
ação franco-britânica pelo desmembramento do Império Otomano e
pelo controle das regiões petrolíferas do Golfo Pérsico; as ações norte-
americanas no Caribe e na América Central pelo controle das reservas
de petróleo do Golfo do México e da Venezuela; o bloqueio norte-
americano ao acesso japonês a fontes de petróleo, as vésperas da
inserção dos dois países na segunda guerra mundial; e mais
recentemente a Guerra do Iraque.
Portanto, geopolítica, a política aplicada sobre os espaços,
tem na variável energética uma componente central na sua formulação.
O excedente de poder gerado pelo domínio do espaço geográfico, que
falam Ratzel, Mackinder, Haushofer, Spykman e outros, tem na
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capacidade de geração de energia um elemento fundamental. A
energia, o controle de suas fontes, é elemento central de poder e de
riqueza, é elemento central no jogo das relações internacionais.
Mas, também, é sobejamente conhecido que nas relações
econômicas internacionais obtêm vantagens os países que conseguem
controlar uma parte maior do excedente produzido no conjunto do
sistema mundial. Para ocupar uma posição de vanguarda, um país deve
estruturar sua economia buscando as atividades geradoras de um
ganho diferenciado, situado acima — preferencialmente, muito acima
— da média. Tais posições são, por definição, excludentes. A inovação
trouxe isto para a Inglaterra no século XVIII. Isto também não
mudou passados mais de duzentos anos. Assim como outras coisas
não mudaram... Assim como era no século XVIII, tal como está
organizado, o sistema econômico internacional continua
estruturalmente assimétrico. Continua a dualidade centro e periferia. A
idéia de um mundo regido pela cooperação – ou por meras relações de
mercado, que não expressem relações de poder – é utópica, pois a
competição está há muito inscrita na estrutura do sistema em vigor,
não sendo possível eliminá-la.
Como as atividades que garantem ganho diferenciado
modificam-se ao longo do tempo, a conquista e a manutenção de uma
posição de vanguarda não podem depender do controle de um setor,
uma tecnologia ou uma mercadoria específica, pois tudo flui. Ë
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necessário se ter a liderança sobre o processo de inovação, ou seja,
capacidade permanente de criar novas combinações produtivas, novos
processos, novos produtos. Assim, também, como no século XVIII, o
núcleo do sistema internacional é composto dos espaços nacionais que
concentram em si a dinâmica da inovação. Isto, portanto, também,
não mudou.
Mas algo mudou....
Não é mais a simples ligações de empresas familiares com
um estado nacional se apoiando mutuamente para exercer a
hegemonia mundial como no modelo inglês do início do século XIX.
Hoje é algo bem mais complexo. No início do século XXI, nos países
centrais, tanto a economia e da técnica, de um lado, quanto as
decisões políticas, de outro, estão estreitamente ligadas, pelo forte
vínculo que une as grandes corporações empresariais transnacionais
com os estados nacionais efetivamente soberanos. Já no caso dos
países semiperiféricos e periféricos esses âmbitos se dissociam
fortemente, pela dispersão geográfica das cadeias produtivas, em escala
mundial, feita sob o comando das transnacionais que não têm
compromissos com os estados e sociedades mais frágeis, onde apenas
instalam filiais. Mas a razão de tudo é que os países centrais capturam
sucessivamente as posições de comando justamente porque
conseguem recriá-las, mantendo-se monopolistas pelo controle da
ciência e da informação, ou seja, da técnica, obtendo dessa forma
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benefícios extras na divisão mundial do trabalho. Aos excluídos o que
se tem proposto é a tão falada dependência que também se repõe
dinamicamente. Isso se tornou mais evidente com o avanço da
chamada “globalização”, que atinge países centrais e periféricos de
forma completamente diversa.
Tudo isto torna claro porque o esforço
desenvolvimentista brasileiro (1930-1980) está frustrado. Ele nos
manteve preso aos limites de uma modernização periférica e nunca
nos aproximou, de fato, de uma posição central no sistema mundial.
Conseguimos internalizar progressivamente atividades produtivas, de
tipo industrial, que, em algum momento da história, sustentaram a
liderança dos países centrais. Mas o problema é que tais atividades
perdiam essa característica de maior acumulação justamente quando
conseguíamos internalizá-las, pois elas já se encontravam sujeitas a uma
intensa competição internacional que diminuía sua importância e sua
rentabilidade. É o caso do aço ou da celulose que escorregaram para a
categoria de “commodities”. Quando acontecem de virar
“commodities”, as atividades industriais são relegadas a um segundo
plano pelas economias centrais. Os países centrais sempre renovam
suas posições privilegiadas buscando a industrialização de atividades
mais complexas e dotadas de maiores componentes tecnológicos. A
desigualdade se repõe e nada muda....
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Uma impossibilidade estrutural impede que a lógica de
aproximação ao centro, do tipo das usadas pelo Brasil e por outros
países, altere as posições relativas no interior do sistema. Não se
consegue superar a condição periférica apenas mediante a cópia de
produtos e tecnologias que já estão maduros nos países centrais. A
experiência recente, aliás, nos diz algo ainda mais grave: processos de
destruição de projetos de desenvolvimento são muito mais rápidos que
os de construção. A distância entre o Brasil e os países centrais, por
exemplo, diminuiu passo a passo durante a maior parte do século XX,
mas voltou a ampliar-se dramaticamente nos vinte últimos anos.
Disso tudo se deduz que o Brasil têm diante de si um
duplo desafio, muito difícil: internalizar seletivamente as técnicas mais
importantes do paradigma vigente e, ao mesmo tempo, preparar
condições para um salto que lhes permita romper a lógica da
dependência, lançando-as na vanguarda de um novo paradigma.
Portanto, internalizar e aplicar intensivamente a ciência e a técnica
universais, buscar a inovação gerando crescentemente energia, de um
lado, e identificar lucidamente as vantagens comparativas locais, de
outro, são componentes gêmeos de um projeto para este vir a ser bem
sucedido.
Mas há uma outra causa talvez mais séria para a
desarticulação recente que não a escolha de um modelo limitado de
desenvolvimento. Houve como já colocamos, também, nos últimos 20
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anos, a desmontagem dos modelos energéticos que suportavam essas
aproximações ao centro dos países semiperiféricos. Seja pela elevação
dos gastos com insumos energéticos, seja através da criação de
barreiras não econômicas ao aproveitamento de potenciais, tais como
barreiras ecológicas, seja através da desvinculação de recursos para o
setor. O Brasil foi vítima concomitantemente dessas três causas, o que
levou nas duas últimas décadas a desarticulação completa do seu
modelo energético, sem dúvida, o mais bem sucedido do terceiro
mundo. Sem rearticularmos nosso setor energético, seu planejamento e
sua forma de financiamento, não nos será possível almejar o progresso,
mesmo que criemos um novo modelo de desenvolvimento e
consigamos avançar no campo da inovação.
Mas, tudo isto é muito recente. Lembremos que, até o
século XVI, a idéia dominante era que a humanidade avançava
passando em estágios sucessivos e a passagem de um estágio a outro
resultava de um milagre. De estágio em estágio, ou seja, de milagre em
milagre, chegaríamos ao Millenium - o último e prometido dos estágios:
o reino dos céus, o paraíso.
Nessa forma de ver o mundo tudo encontrava sua
explicação nos dogmas. Porque contestar? Para que racionalizar? Nada
disso faria sentido, pois só o milagre era criador. A resignação tornava-
se, nesse mundo das verdades postas, a maior das virtudes. A
natureza, nesse mundo conformado, sempre se mostraria vencedora.
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Ao homem, só restava subordinar-se as estruturas responsáveis pelo
estágio atingido - na época, a Igreja e a monarquia absoluta.
São do início do século XVII as primeiras formulações
que sustentam a ruptura dessa maneira de ver o mundo. Dos primeiros
capazes de construir discursos de ruptura, merecem destaque Leibnitz
e Pascal. Ambos matemáticos, lidando com a ordem em sua posição
mais primitiva, a ordem numérica, entenderam que a desordem era a
origem da evolução. Entenderam que a desordem tem sua origem na
natureza. Entenderam que o homem, ao interferir na natureza, na
busca da ordem, cria o progresso. Entenderam que todos os homens,
ao longo de todos os séculos, são o mesmo homem que subsiste e
aprende sempre. Criaram o espaço da razão. Cooptaram a natureza.
Não pela sua mediação através do trabalho, e sim pela sua delimitação
e explicação. A força de suas idéias foi tal que conduziu no século
XVIII à queda da monarquia absoluta e ao afastamento da Igreja das
questões materiais. Conduziu à revolução francesa. Conduziu à
moderna democracia. Conduziu aos princípios, desde então,
universais, de igualdade, de liberdade e de fraternidade. Conduziu ao
predomínio do homem e da sua razão.
Mas, como diria Hegel, todos os processos trazem dentro
de si a contradição. A civilização traz dentro de si várias contradições.
Uma clássica e já vista neste texto é a que opõe o centro a periferia.
Estávamos ao final do século XVIII, no momento em que o centro da
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civilização estava dividido pelo canal da Mancha. Estava dividido e
estava rompido. Duas rupturas, como colocamos, haviam se
processado. A primeira na maneira de agir, na Inglaterra, pelo nascente
processo de industrialização. A segunda, na França, na maneira de
pensar, em decorrência do bafejar da abertura proporcionada pela
prevalência das idéias sobre os dogmas. A primeira dessas rupturas é
conhecida como revolução industrial e gerou o que veio, mais tarde, a
se denominar sociedade industrial. A outra ruptura deu origem à
revolução francesa e, com a derrubada do absolutismo, deu origem ao
moderno estado nacional. A periferia do processo da civilização,
naquele instante, englobava toda a Europa continental, excluída a
França e todos os demais continentes.
Mas aqui cabe lembrar o velho romano Cicero que
afirmava ser a história a mestre da vida. Olhemos a história Toda
periferia busca o centro, toda a barbárie busca a cultura. Cada país
almejava acelerar a transição, deixar de ser periferia e buscar ser centro,
como mostra a conhecida anedota de Pedro, o Grande, estudando
nos centros ocidentais os processos que convinha introduzir na sua
Rússia. Não é de admirar que os novos métodos e as novas inovações
aos poucos se tornassem do domínio público: a maneira italiana de
tecer, a técnica de construção naval holandesa, o processo siderúrgico
inglês. O desenvolvimento é comunicativo e ao ser conhecido em
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outros pontos emula. Mas esta emulação não coloca nenhuma periferia
no centro. Ë preciso algo mais. Olhemos de novo a história.
Como se comportaram, aquela época, as nações que
buscavam o centro? Como se comportaram os antigos retardatários,
aqueles que tinham, além dos meados do século XIX, um amplo
mercado interno e que buscavam viabilizar antigos estados nacionais
estruturados? Como se posicionaram o Império Austro-Húngaro, a
Rússia, a Alemanha, o Império Otomano, a Itália, os Estados Unidos e
o Japão, que aqui nomearemos como os antigos retardatários? Em
primeiro lugar, estabeleceram como seus principais objetivos ter um
estado nacional moderno e criar uma sociedade industrial. Estes eram
e são os paradigmas: ser sociedade industrial e ser estado nacional
moderno.
Contudo, o entendimento do que vem a ser um estado
nacional moderno e uma sociedade industrial é de extrema
importância para essa exposição. Entendemos como estado nacional
moderno aquele em que a sua vontade é coincidente com a dos seus
habitantes e que tem como contraponto o antigo estado nacional, em
que a vontade resultava exclusivamente da sua casa reinante ou de sua
elite dirigente. Entendemos como sociedade industrial não
exclusivamente criar um sistema industrial dentro das fronteiras de um
território nacional, mas ir muito além, dando condições da população
que habita aquele território, participar dessa criação, ao usufruir, dos
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bens que vierem a ser gerados por esse sistema. Mas a análise
procedida daqueles antigos estados nacionais nos leva a concluir que se
buscavam como política criar um estado nacional moderno e uma
sociedade industrial, eles necessitavam dotar-se, para atingir esses
objetivos, de uma concepção estratégica e de uma vontade nacional.
Passados dois séculos das rupturas, no final do século XX,
três desses retardatários disputam o centro: os Estados Unidos da
América, a Alemanha e o Japão. Todos dotados de concepção
estratégica, todos dotados de vontade nacional. Mas também todos os
três adeptos da doutrina do nacionalismo econômico. A economia,
para eles, sempre foi vista como uma ferramenta a ser utilizada pelo
estado na busca de uma concepção estratégica, ou como um elemento
primordial para a formatação de sua política. Nunca foram liberais. O
liberalismo econômico que hoje praticam coaduna-se perfeitamente
com os postulados desta doutrina, como está perfeitamente
sintetizado no trecho abaixo, do livro “Sistema Nacional de
Economia”, do economista alemão List, escrito no início do século
XIX:
“A história ensina que as nações... Podem e devem modificar seus sistemas de acordo com o estágio de seu próprio progresso: no primeiro estágio, adotando o comércio com nações mais adiantadas como meio de saírem de um estado de barbárie; no segundo estágio, promovendo o crescimento das indústrias, pesca, navegação, adotando restrições ao comércio; e no último estágio, após atingir o mais alto grau de riqueza e poder, retornando ao princípio de comércio livre... De maneira a que seus comerciantes e industriais possam ser preservados da benevolência e estimulados a conservar a supremacia que adquiriram.”
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Para preservar o sonho de Brasil temos, mergulhados nas
lições da história, tiramos duas lições: a primeira é que temos de fugir
ao canto da sereia dos países centrais, do seu discurso de liberalismo
econômico e depois, é que temos de pensar em ter concepção
estratégica e vontade nacional. Não mudaram os paradigmas. Toda
sociedade busca ser uma sociedade industrial e um estado nacional
moderno. Para tanto temos de voltar a pensar o Brasil com concepção
estratégica, temos de dotar o país de uma estratégia nacional, temos de
ter diretrizes para sua inserção internacional.
E qual deve ser nossa concepção estratégica? O Brasil é a
América Portuguesa. Salta aos olhos que nossa concepção estratégica é
de levar ao cabo a mundialização que os portugueses começaram, pois
só nós temos as mágicas capazes de levar este processo ao seu
término: a tolerância e a antropofagia. A mundialização é algo muito
além da montagem de um mercado mundial como deseja a
globalização. A mundialização é a montagem de uma pátria humana.
Para tanto, olhando de forma geopolítica, o Brasil detém
duas propriedades: a sua importantíssima inserção na massa
continental de um espaço periférico, a América do Sul (a
continentalidade do Brasil) e a sua projeção e acesso a um amplo
espaço marítimo, o Atlântico Sul (a maritimidade do Brasil). Deve ser
acrescentada a estas propriedades a importância da nossa capacidade
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de polarização no subcontinente sul-americano (fronteiras com nove
dos onze países restantes da América do Sul). Destas colocações
resultam os dois princípios centrais de nossa estratégia nacional:
O primeiro princípio da estratégia nacional do Brasil é a
estruturação de um espaço de prevalência da mundialização no
hemisfério sul, que observe as características de continentalidade e de
maritimidade do Brasil.
O detalhamento deste primeiro princípio é:
1) o aproveitamento da continentalidade mediante a
formatação de um processo de cooperação sul-americana,
aproveitando as componentes estruturais já apontadas,
como instrumento de organização do processo de
mundialização;
2) o aproveitamento da maritimidade como instrumento
de dominação do espaço marítimo do atlântico sul e
condução do processo de mundialização ao golfo da
Guiné e costa ocidental da África.
3)a criação de uma nova maritimidade a vinculada ao
oceano Pacífico que conduza a mundialização à Nova
Zelândia a Austrália e a costa oriental da África.
O segundo princípio é a extensão deste espaço
estruturado a todo hemisfério norte de forma a efetivar a
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mundialização. O detalhamento deste segundo princípio pressupõe a
montagem das parcerias estratégicas e alianças com potências do
hemisfério norte para a penetração da mundialização neste espaço e
será fruto das circunstâncias conjunturais do balanço de poder neste
hemisfério. Contudo, está claro que a hegemonia completa de uma
potência no hemisfério norte não é de interesse de nossa estratégia
nacional, devendo todo o movimento pretendido considerar o apoio à
contestação a essa possível hegemonia.
Pensemos o longo prazo. A América do Sul está
geograficamente apartada das rotas centrais do comércio mundial.
Neste espaço nós e os demais países da região detemos vantagens
comparativas de localização. Aqui todos nós somos competitivos. Mas
para o nosso progresso temos de ir além temos de ser cooperativos.
Isto explica porque o primeiro passo da concepção estratégica
proposta é a cooperação sul-americana. E nesta cooperação a energia
elétrica sendo um bem não constante nas transações externas a
continentes adquire especial atenção. E mais, a energia é elemento
primordial para a elevação da qualidade de vida da população da
América do Sul.
Portanto, para o plano de cooperação proposto, a energia
nos parece merecedora das maiores atenções. Com seus recursos, a
América do Sul é uma das regiões mais ricas do mundo. Não carece
nem de alimentos, nem de potencial para produzir energia, nem de
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recursos abundantes para o desenvolvimento industrial. Foi a carência
de uma mobilização adequada destes recursos, em nossa opinião, em
especial de energia, que condenou a maioria da população sul-
americana a seu estado atual de penúria.
A tabela adiante compara cifras de densidade energética,
densidade demográfica e PIB por quilômetro quadrado de países da
América do Sul e de várias nações do setor industrializado e mostra
uma estreita correlação entre o consumo de energia comercial e o PIB,
quando medidos por quilômetro quadrado.
ENERGIA, PIB E DEMOGRAFIA
Diversos países 1995
Per capita (tce*) Energia por km2 (tce*)
Densidade Demográfica (hab por km2)
Pib por km2 (em dólares}
Argentina 2,1 26,7 11,0 50,4 Brasil 1,1 20,4 18,3 80,8 Colômbia 1,1 34,4 35,0 51,0 Chile 1,1 20,0 16,4 59,0 México 1,9 88,3 48,5 79,0 Peru 0,8 14,1 18,0 27,0 Venezuela 3,3 81,3 25,0 95,0 Coréia do Sul 1,7 743,0 480,0 1130,0 Espanha 2,7 204,3 75,7 552,0 Itália 3,6 674,2 188,8 1.432,9 França 5,0 499,4 99,8 1245,0 Alemanha 6,0 1466,4 243,3 2.822,8 Japão 4,3 1421,7 338,0 4.112,4 EUA 10,2 285,9 28,0 542,7
1�Dados que correlacionam energia, população e PIB.
Isso certamente não deve se constituir numa grande
surpresa, pois a energia por quilômetro quadrado reflete a densidade da
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indústria e a intensidade da atividade agrícola. Incrementando-se estas,
certamente estar-se-á criando as condições necessárias para erradicar-
se a pobreza. Desenvolvimento é energia. Aumentando a produção de
energia a densidade da indústria e a intensidade da atividade agrícola,
começaremos a nos aproximar dos níveis de desenvolvimento da
Europa Ocidental. Para isto, teremos que obter a inversão de capital
necessária. Contudo, o problema que nos parece mais grave é
encontrar o número de pessoas capacitadas adequadamente para levar
a cabo o programa de energia e de industrialização que se deseja.
Mas, foi no campo da energia que a América do Sul
conseguiu os maiores avanços, nos últimos 20 anos, dos quais alguns
realmente importantes, que incluem o domínio do ciclo nuclear
completo por parte da Argentina e do Brasil; a construção da represa
de Itaipu, construída pelo Brasil e Paraguai; o desenvolvimento da
indústria petrolífera, em especial, o domínio tecnológico da prospecção
e exploração em águas profundas obtido pela Petrobrás, no Brasil. No
entanto, nesta mesma área, a América do Sul foi incapaz de atuar nas
necessárias ações conjuntas para fazer frente às necessidades
energéticas que enfrentará a médio e longo prazo.
Como sabemos a região é bem dotada de combustíveis
energéticos. Para a sua atual necessidade econômica, a América do Sul
é rica em recursos energéticos; possui abundantes reservas de petróleo
na Venezuela; possui recursos hidrelétricos praticamente em toda a sua
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extensão; reservas de gás natural no Peru, na Argentina e em outros
países; carvão na Colômbia e no Brasil; reservas consideráveis de
urânio e tório no Brasil, Colômbia e Argentina.
Mas voltemos a nossa questão. Postas as três idéias
centrais deste artigo: a primeira, vinculada à busca ao desenvolvimento
rompendo com os paradigmas passados, a segunda, pautada na
concepção estratégica nacional que tem como escopo inicial a
cooperação sul-americana, e a terceira, da potencialidade energética da
América do Sul, podemos começar a concluir inserindo a questão
energética na discussão da estratégia nacional do Brasil.
O novo modelo energético para o Brasil deve ser
proposto dentro de uma visão que se insira dentro de sua concepção
estratégica, ou seja, temos de conceber um modelo energético que
sustente o desenvolvimento da América do Sul.
Contudo, a América do Sul crescendo o que deve deverá
estar, nos meados do século XXI, exigindo demasiadamente das
fontes energéticas disponíveis, e enfrentará uma crise capaz de cercear
as suas possibilidades de crescimento no final deste século.
Simplesmente, teremos chegado ao ponto em que as capacidades
termelétricas e hidrelétricas do continente sul-americano já não
poderão crescer de modo significativo.
Alguns “especialistas”, entre eles os do Clube de Roma,
estão aproveitando este fato evidente para argumentar que, sendo
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assim, deveríamos limitar nosso crescimento econômico para não
esgotar nossos limitados recursos energéticos. Mas a forma correta de
abordar o problema é não limitar nosso possível crescimento e garantir
que, quando os recursos hidráulicos e fósseis se esgotarem, contemos
com a capacidade elétrica de outras fontes com capacidade suficiente
para manter o crescimento energético e o crescimento econômico
geral.
Ainda que seja difícil vislumbrar com precisão a
magnitude do consumo de energia ou eletricidade que será necessária
no futuro, é possível fixar critérios gerais que permitam o planejamento
de modo competente. A proposta é chegar a um total de 7,0 bilhões
de MWH produzidas no ano 2030, o que fixa um curso de ação muito
bem definido. A dificuldade no cálculo do consumo de energia elétrica
da América do Sul nasce do fato de que a relação entre energia e
produção se modificará drasticamente nos próximos 30 anos devido à
introdução de técnicas avançadas. Ainda que historicamente a geração
de energia elétrica tenha crescido com maior rapidez que o PIB total
(na América do Sul, nos últimos 15 anos, cresceu o dobro no mesmo
período), é um fato que a nova tecnologia implicará aumentos notáveis
tanto na eficiência como na intensidade energética (um bom exemplo
disto é o fato de que a indústria siderúrgica japonesa, mais moderna,
consumia por tonelada de aço somente a metade de energia que a
indústria siderúrgica americana, nos anos oitenta, quando esta era
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relativamente mais atrasada). Portanto, do ponto de vista da elevação
da intensidade energética, consideramos os seguintes fatores:
• Os processos industriais orientam-se no uso de
eletricidade em vez de energia térmica direta de
combustíveis fósseis. Esta tendência se acentuará à
medida que se desenvolva o uso de plasmas.
• A eletricidade será utilizada para produzir combustíveis
como o hidrogênio, que começarão a substituir a
gasolina e outros hidrocarbonetos.
• O transporte utilizará cada vez mais a energia elétrica
(redes de metrô, trens elétricos interurbanos e ferrovias
de carga eletrificadas).
Mas, por sua vez, nos próximos 30 anos, presenciaremos
o auge de novas técnicas que diminuirão o consumo de energia elétrica
por unidade de produto; ou seja, aumentarão a eficiência energética.
De fato, em anos recentes, foram obtidas poupanças muito
significativas de eletricidade na indústria. E, no futuro, contaremos
com tecnologias como a transmissão sem atrito, as aplicações de
supercondutividade elétrica à baixa temperatura, e uma ampla gama de
outras tecnologias.
Considerando todos estes fatores nosso cálculo é que o
setor elétrico na América do Sul terá que crescer, daqui para o ano
24
2030, em média, à razão de 8% ao ano. Este cálculo está de acordo
com uma extrapolação baseada no consumo industrial de energia
elétrica por trabalhador industrial. A meta de geração elétrica que
propomos para o ano 2030, de 7,0 bilhões de MWH, nos leva a
alcançar o nível atual de consumo industrial europeu, de 20.000 KWH
por trabalhador industrial. Isto significa que a capacidade instalada terá
que crescer 8,0% ao ano para chegar no ano 2030 com 1.100.000 MW,
o que equivale a oito vezes a capacidade atual (tomando em conta a
capacidade total de Itaipu e Guri). É interessante observar que este
ritmo de crescimento permanece sendo o dos últimos 20 anos.
Outro ponto fundamental é que não há nenhuma
justificativa racional para o abandono do potencial hidrelétrico da
Amazônia, sendo que aí reside uma grande perspectiva energética para
a América do Sul. Mais que uma perspectiva energética a Amazônia é o
espaço central para uma articulação energética na América do Sul. No
caso da hidroeletricidade, para o Brasil e os demais países amazônicos,
é de fundamental importância dotar de energia a calha do Rio
Amazonas e de seus afluentes, algo que pode ser feito pelo mero
aproveitamento do potencial hidroelétrico existente na Bacia
Amazônica. Isto poderia ser feito mediante um planejamento
geográfico que fizesse a incorporação progressiva dos territórios
eletrificados aos ecúmenos do continente.
25
Ao planejarmos os próximos 30 anos de investimentos na
produção de eletricidade para a América do Sul, existem três elementos
fundamentais a serem examinados: as fontes e suas disponibilidades, a
fabricação e instalação dos bens de capital necessários, e a
disponibilidade da força de trabalho especializada e qualificada para
instalar e operar as centrais elétricas e as redes de distribuição de
energia.
As melhores estimativas indicam que a região possui um
potencial de pouco mais de 600.000 MW de energia hidrelétrica
aproveitável, e considerando um fator de geração de 5.000 horas por
ano, poderá chegar a gerar 3,0 bilhões de MWH por ano. A geração
termelétrica deve compensar o que falta para cobrir as necessidades
totais, quando muito até o ano 2015, momento no qual outra forma
de energia terá que se incorporar em grande escala para satisfazer à
maior parte da nova demanda de energia. Para 2030, toda a geração
adicionada terá que ser de outra origem que não convencional. O
quadro adiante explica o porque da opção que adotamos pela energia
de origem nuclear.
Supõe-se que o custo das obras hidrelétricas aumentará
50% para o ano 2010, devido ao fato que os melhores sítios já foram
aproveitados, os mais próximos ou os mais baratos, ao passo que o
custo das usinas termelétricas e elétricas de fonte nuclear diminuirá em
mais de 20%, à medida que se difunda a fabricação em série. Serão
26
necessários investimentos consideráveis em redes de transmissão, que
estimamos em 55%, mais ou menos, do custo das usinas geradoras até
o ano 2015, caindo a 42% nos anos subseqüentes, já que a maior parte
da infra-estrutura básica está construída até então. O aperfeiçoamento
de novas técnicas de geração, como magneto/hidro/dinâmica,
reduzirá drasticamente os custos.
COMPARAÇÃO DE FONTES DE ELETRICIDADE, POR DENSIDADE DE FLUXO E EFICIÊNCIA
Densidade de fluxo energético (kw/m²)
Investimento de capital
(dólares por kw)
Período de retorno
energético (anos)*
Eficiência líquida do ciclo
(%)Å
Coletores Solares 0,2 20.000 8,3 2,6 Biomassa 3.200 Combustíveis Fósseis 10.000 850 0,2 30,0 Reatores nucleares De água pesada 70.000 1.300 0,4 42,0 Reatores nucleares De gás de alta temperatura
70.000 1.300 0,4 42,0
Reatores nucleares Rápidos 70.000 1.600 0,4 35,0 Fusão nuclear × 70.000 N.d. 0,4 25,0
• anos de geração necessários para produzir energia que se consome na construção das instalações. Å eficiência térmica (energia elétrica útil em porcentagem do total da energia consumida no processo de conversão). × primeiros protótipos; os modelos posteriores terão maiores densidades fluxo energético. Fonte: Mechanical Engineering, junho de 1976.
27
Este cálculo evidencia a absoluta necessidade da execução
de um programa de geração eletro-nuclear de grande magnitude na
América do Sul, que esteja no eixo da política energética nos próximos
30 anos. Devido ao fato de que a América do Sul está ainda
subdesenvolvida nesta área. Nós consideramos que daqui até 2004
poder-se-á instalar, em média, não mais que 4.000 MW nucleares por
ano, mas o ritmo anual aumentaria para 6.000 MW até o ano 2010 e a
12.000 MW por ano no qüinqüênio seguinte. Uma vez que o ritmo de
instalações de centrais nucleares deverá prosseguir até alcançar 105.000
MW no ano 2030, isto somente poderá ser alcançado com métodos
de produção em série.
A quantidade de geração elétrica de fonte nuclear para o
ano 2020 também coloca a questão da suficiência do combustível
nuclear. As reservas de urânio existentes na América do Sul -
principalmente no Brasil, Argentina e Colômbia - são importantes,
porém ainda não muito grandes, se comparadas com as da África do
Sul, dos Estados Unidos ou da Austrália.
Os custos envolvidos para um projeto de trinta anos para
dotar de energia a América do Sul seriam, portanto, os seguintes:
CUSTOS DE INVESTIMENTO EM ENERGIA ELÉTRICA
2000 - 2030
2000 - 2015 2015 - 2030
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Tipo
Custo / 1.000 mw *
Nova capacidade instalada Å
Custo total ×
Custo / 1.000 mw *
Nova capacidade instalada Å
Custo total ×
Hidrelétrica 1.000 115 115 1.500 400 600
Termelétrica 940 210 197 800 286 228
Nucleoelétrica 1.200 35 42 1.000 357 357
Subtotal 360 354 1.043 1.185
Rede de
Transmissão 200 500
Total 554 1.685
* milhões de dólares, Å milhares de mw,× bilhões de dólares. Fonte: Departamento de Energia dos Estados Unidos da América.
Como se vê os investimentos são altos, mas, bem
menores que os US$3,0 trilhões do serviço projetado da dívida e das
remessas que a América do Sul deverá fazer nos próximos vinte anos.
Salta aos olhos que a demanda de bens de capital para
todas as formas de geração elétrica será enorme. De fato, podemos
afirmar que o progresso da indústria fabricante de bens de capital se
definirá à medida que seja satisfeita a demanda do setor energético.
Em paralelo, ao esforço central projetado, especial atenção deverá ser
concedida como veremos adiante a formas alternativas de geração de
energia como a biomassa, dado às características especiais de insolação
do continente. A busca de fontes renováveis de energia competitivas
deve ser um dos principais objetivos dos sul-americanos no início do
próximo século, devido às vantagens de localização geográfica da
região.
29
Contudo, tem algo fulcral em qualquer estratégia brasileira
para a integração da América do Sul. Este algo fulcral capaz de realizar
uma catálise é a energia elétrica que é, além de tudo, um bem não
passível de ser comercializado fora do continente. A produção de
energia em países vizinhos para atender o mercado brasileiro é um
fortíssimo elemento de integração desde que seja assim concebido.
Não tem sentido o Brasil comprar gás da Bolívia ou energia de Itaipu,
ou Guri, pagando em dólares. Com isto está gerando mercado para os
americanos do norte e não para os americanos do sul. O Brasil tem de
conceber um projeto de financiamento para a geração de energia na
América do Sul em moeda da América do Sul.
Contudo pensar o longo prazo só não basta. É necessário
agir no curto prazo de acordo com o pensamento. É necessário que se
materialize uma intervenção que redirecione o que aí está colocado em
termos de política interna e de política externa.
E aqui nos voltaremos para o curto prazo. Olhando o
desempenho dos últimos anos estamos desnacionalizando a nossa
economia e piorando o balanço de pagamentos, o que agrava cada vez
mais a vulnerabilidade externa do país. A crise que ora nos assola é
fruto da incompetência. As medidas para solucioná-las como a
priorização da geração elétrica a base térmica tendo como fonte o gás
natural são muito limitadas. A solução correta seria completar o
complexo de barragens da bacia dos rios Araguaia e Tocantins
30
reforçando e estabilizando as ligações do sistema de produção norte
com os sistemas de ligação do centro-oeste e do sudeste. O caminho
natural é a marcha para o oeste até os contrafortes da Cordilheira dos
Andes, priorizando sempre a forma de geração hidroelétrica. Temos
de voltar a planejar e executar obras para o setor pensando no longo
prazo. Temos de deter esta marcha de insensatez que estivemos
mergulhados nos últimos anos. Temos de reverter este quadro se
quisermos sonhar com o longo prazo.
Ainda no campo da energia muito mais poderemos vir a
fazer na América do Sul. Tudo indica que o petróleo se esgotará ainda
na primeira metade do século XXI. A alteração da matriz energética é
um problema mundial, extremamente complexo, e decisivo para a
reorganização do poder a médio e longo prazo. As maiores
possibilidades de enfrentá-lo estão nos trópicos, através do
desenvolvimento de formas, hoje embrionárias, de utilização das
fontes renováveis representadas pelo sol e a biomassa. Concluída a
usina de Xingó, nenhuma hidrelétrica de grande porte poderá ser
construída no Nordeste, onde a insolação é mais que abundante; a
baixa eficiência dos atuais conversores de energia solar representa um
desafio científico que precisaríamos enfrentar. Ainda nessa área, um
segundo desafio, especialmente importante para um país tropical de
grandes dimensões, é o conhecimento detalhado do mecanismo, ainda
bastante obscuro, de armazenamento biológico da energia solar, ou
31
seja, da síntese dos hidratos de carbono no processo de fotossíntese
muito mais intenso no trópico. Quem o conhecer bem e conseguir
torná-lo mais eficiente abrirá novas perspectivas. Um terceiro desafio
diz respeito aos combustíveis líquidos. Com um esforço que está ao
nosso alcance, o Brasil poderia consolidar uma dianteira significativa
no aproveitamento energético da biomassa, em nível mundial.
Resolvidas algumas questões técnicas residuais, a utilização de
palmeiras nativas, como o dendê e a pupunha, pode produzir em
torno de 12 toneladas de óleo de alto teor calorífico por hectare (70%
mais energia por área plantada que o álcool produzido a partir da cana-
de-açúcar). O óleo vegetal assim obtido é o único combustível
renovável conhecido capaz de substituir o diesel. Estima-se que o
plantio de árvores leguminosas mescladas com palmeiras em 35% da
área amazônica já desflorestada poderia sustentar uma produção de
óleo suficiente para substituir todo o diesel que usamos.
Além disso, esgotado o petróleo, o combustível fóssil mais
atrativo é sem dúvida o “turmoil” ou os hidrocarbonetos super
pesados cujas maiores reservas mundiais encontram-se na América do
Sul, mais precisamente na Venezuela e cujo aproveitamento prende-se
as tecnologias para as quebras das suas cadeias complexas de carbono
e cujas pesquisas, para sua materialização, tem grande similitude aos
trabalhos já desenvolvidos pela Petrobrás para o aproveitamento do
xisto betuminoso.
32
O Brasil atual não reúne pela crise que vivenciamos neste
instante as condições essenciais para apresentar o programa que
propugnamos aqui. Não reúne as condições para preparar esse salto,
que são de natureza política (projeto próprio) e cultural (identidade
clara e auto-estima elevada). Mas, do ponto de vista estrutural, não lhe
falta potencial para isso. Tendo a concepção estratégica aqui proposta,
em todas as áreas inclusive no que diz respeito à ciência e tecnologia,
diversos campos de pesquisa estão abertos a nós, à espera de um
projeto nacional consistente, que os articule. Isto é possível e não
devemos ter medo de ousar.
Contudo, isto não será uma tarefa fácil nem desprovida
de riscos. No início do século XX, o petróleo era o recurso mais
importante, e suas maiores jazidas estavam depositadas no Oriente
Médio. A história dessa região nos cem últimos anos — com guerras
intermináveis, ocupações estrangeiras, modificações de fronteiras,
extinção e criação de países — testemunha como é explosiva a
combinação de recursos estratégicos e sociedades fracas. O ciclo do
petróleo está chegando ao fim. Inicia-se o ciclo da criação de uma
nova matriz energética, baseada em fontes renováveis. Aparece, de
novo, a antiga assimetria entre países detentores de poder (técnico,
político, financeiro e militar), de um lado, e países detentores de
estoques de recursos energéticos estratégicos para os ciclos
econômicos em gestação. A natureza e a história nos colocaram e a
33
América do Sul, no século XXI, nessa segunda condição. Urge adotar
as decisões de criar instituições sul-americanas poderosas, integradas,
inteligentes, como a que resultaria da fusão da Petrobrás(Petróleo
Brasileiro S. A.) com a Petroven(Petróleo Venezuelano S. A.) e de abrir
canais de negociações com o Peru e a Bolívia visando a constituição
de empresas binacionais destinadas a gerenciar o potencial
hidroelétrico e de gás dos contrafortes andinos. Essas ações voltadas
para incorporar e explorar esse potencial teria tanta importância para o
nosso futuro, ou mais, quanto tivera, nas décadas de 1940 e 1950, as
decisões de criar a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia
Vale do Rio Doce e a Petrobrás. Isso exige, no entanto, um ambiente
político, cultural e ideológico em que possamos nos libertar do discurso
pequeno de país semiperiférico que está dando errado e dos
condicionamentos do curto prazo, voltando a pensar a perspectiva da
nação em uma temporalidade estendida e que nos leve a mergulhar em
um ambiente que nos permita enfrentar as novas grandes questões que
já estão colocadas.
Tornados novamente retardatários, desprovidos de auto-
estima sem estratégia nacional, sem capacidade de utilizar nossos
próprios recursos, nós tenderemos a perder o controle sobre eles. Sob
um pretexto perfeitamente ridículo, a potência dominante já começou
a montar bases na região, pela primeira vez na história. Têm motivos
fortes para agir assim. Quanto a nós, neste século XXI mais de 150
34
anos depois da regência, poderemos nos ver às voltas, de novo, com o
problema da unidade nacional. Hoje, em situação muito mais complexa
que no século XIX.
Ao terminarmos não podemos deixar de afirmar que há
uma relação direta entre a energia e o futuro do Brasil e da América do
Sul. Energia é industrialização. Energia é desenvolvimento. Energia está
na base da formulação da estratégia nacional do Brasil. Energia é e está
no futuro do Brasil.