a décima segunda transformação - primeiro capítulo

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A Décima Segunda Transformação

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Em seu segundo livro pela Bertrand Brasil, Pauline Gedge apresenta o romance A Décima Segunda Transformação, vencedor do prêmio Writers Guild of Alberta como melhor romance do ano. Um desenho perfeito do domínio do faraó Akhenaton, um dos mais importantes e polêmicos do Antigo Egito.

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A Décima SegundaTransformação

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Da Autora:

Filha do Amanhecer

A Décima Segunda Transformação

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Pauline Gedge

A Décima SegundaTransformação

TraduçãoAngela Fandy Monteiro

Rio de Janeiro | 2012

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A impe ra triz Tiye dei xou seus apo sen tos acom pa nha da de qua tro Seguidores de Sua Majestade e de seu prin ci pal arauto. Sob as tochas que se ali nha vam na passagem entre os aposentos e as por tas do jar dim, encontravam-se os guardiães do palá cio, com cimi tar ras em bainhas de couro, saio tes bran cos e elmos em azul e bran co, con tras tan do com a pele morena. À medi da que ela pas sa va, as lan ças eram empunhadas à fren te, e as cabe ças, incli na das em reve rên cia. O jar dim permanecia sem ilu mi na ção, uma sufo can te escu ri dão into cada pelas estre las cinti-lantes no céu do deserto. O peque no séqui to correu pelo cami nho e ingres sou na pro prie da de do faraó, passando ao longo do muro nos fun dos do palá cio. Diante das extra va gan tes por tas duplas, pelas quais o faraó fre quen-te men te saía para cami nhar no jar dim ou para olhar as coli nas do oeste, Tiye orde nou que seu séquito esperasse e, com o arauto, irrom peu pela gale ria adian te. Con for me ela cami nha va, seu olhar, sem pre diri gi do à confusão de ima gens pin ta das nas pare des, des lo cou-se para o friso abaixo da linha do teto. O nome de auto ri da de real do faraó, ins cri to a ouro em cedro per fu ma do de Amki, era repe ti do con ti nua men te. Nebmaatra: O Senhor da Verdade é Rá. Em toda a pro prie da de ocu pa da pelo palá cio, não havia como escapar dessas palavras. Tiye parou, e o admi nis tra dor do faraó, Surero, levan tou do assento pró xi mo à porta e fez uma reverência. — Surero, por favor, anun cie à Sua Majestade que a Deusa das Duas Terras está aguar dan do — disse ao arauto, e Surero desa pa re ceu, sur gin do momen tos depois para conduzi-la à sala. O arauto acomodou-se no assoa lho do ves tí bu lo, e as por tas fecha ram-se à medi da que ela seguia em fren te. O faraó Amenhotep III, Senhor de Todo o Mundo, estava sentado em uma cadei ra ao lado de seu divã de pele de leão, nu, exceto pela tira de puro linho que cobria os qua dris e pela peru ca azul-clara, presa em um coque por uma serpente dourada. A suave luz ama re la das centenas de

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lam pa ri nas espalhadas pelo aposento nos suportes ou nas mesas bai xas deslizava como óleos pre cio sos sobre seus ombros largos, a frou xa pro tu-be rân cia de seu abdô men e a inten sa pali dez de suas coxas robustas. O rosto não esta va pin ta do. O quei xo, outro ra qua dra do, vigo ro so, esta va agora per di do nas rugas da pele flácida; as faces, magras e con traí das, eram consequência dos den tes per di dos e do mal que acometia as gen-gi vas. O nariz havia acha ta do à medida que enve lhe ce ra, acompanhando a flacidez da parte inferior do rosto. Somen te a testa grande, firme, e os olhos negros ainda domi na ntes, mesmo sem kohl,* reve la vam o jovem ele gan te, vis to so, que havia sido. Um pé repou sa va sobre um ban qui nho enquan to um criado, com a caixa de cos mé ti cos aber ta ao lado e o pin cel na mão, se ajoe lha va para pin tar a sola com hena ver me lha. Tiye olhou ao redor. A sala cheirava a suor, forte incen so sírio e flo res velhas. Embora um escra vo se des lo casse silenciosamente de uma lam pa-ri na a outra, aparando os pavios, as brasas dei xa vam esca par uma fumaça cin zen ta que ardia a gar gan ta e tornava a sala tão som bria que Tiye mal pôde discernir as gigan tes cas figu ras de Bés, deus do amor, da músi ca e da dança, que for ma vam cír cu los silen cio sa e desa jei ta da men te em todas as pare des. Eventualmente uma cen te lha ilu mi na va a lín gua ver me lha esten-di da, ou o umbi go pra tea do no ven tre intu mes ci do do deus anão, ou per-cor re ria rapi da men te suas ore lhas leo ni nas, mas, naquela noite, Bés era uma pre sen ça invi sí vel. Os olhos de Tiye retor na ram ao divã, amar ro ta do e cober to de folhas secas de man drá go ra e de lótus esma ga dos, e então notaram uma pequena figu ra de cabe los negros, dei ta da sob os len çóis, res-pi ran do cal ma men te enquan to dor mia. — Bem, Tiye, sua presença ocasionou demasiados pro ble mas esta noite — disse Amenhotep, cuja voz ecoava mau humor pelo teto invi sí vel. — Veio seduzir-me de novo? Lem bro-me per fei ta men te de você ves ti da de azul, uma coroa de mio só tis, na pri mei ra noite em que entrou neste quar to. Tiye sor riu e repentinamente se ajoelhou dian te dele, bei jando-lhe os pés. — Os cor te sãos ficariam horrorizados se hoje me vissem com algo tão anti qua do — provocou, levantando-se diante dele, completamente sere na. — Como está a saúde do faraó esta noite?

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* Kohl: pó cosmético utilizado no Oriente para escurecer as pálpebras. (N.E.)

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— A saúde do faraó já esteve melhor, como você bem sabe. Minha boca dói, minha cabe ça dói, minhas cos tas doem. Os magos têm passado os dias cantarolando à minha porta, e apenas os tolero por que devo ao Egito toda a opor tu ni da de de curar-me, mas os tolos can tam para ouvir o som das pró prias vozes. Final men te, eles foram beber a merecida cer ve ja e consultar seus pergaminhos de fórmulas mági cas. Você acha que tenho um demô nio dentro de mim, Tiye? — Você esteve com o demônio no corpo a vida toda, meu marido — retru cou. — Isso você sabe muito bem. Aquilo no cân ta ro é vinho? — Não, é uma infu são de man drá go ra, negra e de sabor repug nan te. Pres cre vi a mim mesmo. Des co bri que não só atua como afro di sía co, algo que qualquer garo to de doze anos sabe, mas tam bém como forma de aliviar a dor. — Olhou para ela com malícia, e ambos riram. — A princesa Tadukhipa está tra zen do Ishtar, de Mitanni, para curá-lo — disse Tiye ale gre men te. — A deusa curou-o ante rior men te, lembra-se? Tushratta ficou muito satis fei to. — Certamente o ganan cio so rei de Mitanni ficou satis fei to. Devol-vi-lhe sua pre cio sa Ishtar cober ta de ouro, além de uma gran de quan ti da de em bar ras. Tornei-o rico novamente, dessa vez pela filha dele. Espe ro que ela valha todo o dis pên dio. — Afas tou o pé do cria do. — A hena está seca, e a outra sola está pron ta. Saia. Você tam bém! — gri tou para o aparador das lamparinas. Quando os criados se retiraram, atravessando o vasto piso de mosai co, e as por tas se fecha ram silen cio sa men te, Amenhotep acal mou-se. — Bem, minha Tiye, o que tem em mente? Não veio aqui para fazer amor com um deus velho e gor do de den tes apodrecidos. Ela rapi da men te domi nou a ansie da de que o assunto sem pre lhe cau-sa va. Astu to e frio, esse homem diver tia-se de forma impie do sa com todas as falhas huma nas, até com as pró prias, e ele, melhor do que ninguém, compre-endia a iro nia na des cri ção de si mesmo. Em Soleb, na Núbia, seu sacer do te o cultuava com incen so e cantos noite e dia, e milha res de velas ardiam dian te de uma está tua colos sal de Amenhotep, o deus vivo, uma ima gem que não enve lhe cia ou adoe cia. — Quero con ver sar com você em par ti cu lar, Hórus. — Tiye apon tou para o garo to. — Por favor, mande-o embora. As sobran ce lhas de Amenhotep ergue ram-se. Levan tou da cadei ra e des lo cou-se até o divã com agi li da de sur preen den te, puxando os len çóis e aca ri cian do gen til men te o flan co nu da crian ça ador me ci da. — Acorde e vá — disse ele. — A rai nha está aqui.

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O garo to sus pi rou, virou-se de cos tas e abriu os olhos negros, cir cun-da dos de kohl. Ao avis tar Tiye, afastou-se da mão do faraó, ajoelhou-se e, sem uma pala vra, retirou-se. — Ele é mais velho do que apa ren ta — obser vou Amenhotep, sem nenhum sinal de defe sa. — Tem treze anos. Tiye sentou-se na ponta do divã, encarando-o fria men te. — Apesar disso, você sabe muito bem que ele é proi bi do. Essa, de todas as anti gas leis, é a mais seve ra, e o homem que leva tamanha mal-di ção a seu lar é recom pen sa do com a morte; ambos, ele e o amante. Amenhotep encolheu os ombros. — Eu sou a lei. Além disso, Tiye, por que essa proibi ção a preo cu pa ria? Cá entre nós, você e eu violamos todas as leis do impé rio. Inclusive aque la con tra assas si na to, pen sou Tiye. Em voz alta, disse: — São os boatos supers ti cio sos que me preo cu pam. Seu apetite é len-dá rio, e os rumo res, durante todos esses anos, somen te têm con tri buí do para enaltecê-lo dian te dos súdi tos e dos vas sa los estran gei ros. Mas isso... isso pro vo ca rá maus rumo res, desejos incontroláveis e hos ti li da de con tra você quando antes havia ape nas esti ma e temor. — Não me impor to com eles, com nenhum deles. Por que deve ria? Sou o deus mais pode ro so que o mundo já viu. Com apenas uma palavra minha, homens vivem ou mor rem. Pro ce do con for me me apraz. E você, Grandiosa de Dupla Plumagem, senho ra de poder ili mi ta do, esfin ge com seios e gar ras, por que se incomoda com essa peque na indis cri ção? — Não me incomodo, tampouco me ale gro. Sim ples men te rela to a você o temperamento de seu povo. Embora os cor te sãos não façam caso, todos os outros farão. — Sebek* com eles, então. — Sentou-se no divã e recos tou-se, res pi-ran do for te men te. — Fiz você à ima gem do homem que eu poderia ter sido. Não quis ser esse homem. Enquan to você gover na, con ten to-me em perseguir tudo o que eu desejo e que ainda não tenha con quis ta do. A imor-ta li da de em um cântaro de vinho, tal vez. A fer ti li da de laten te no corpo de uma mulher. A essên cia de minha mas cu li ni da de naque le garo to. Os deu ses não pos suem esses prazeres, nem o Egito. Quaisquer que sejam. — Eu sei — disse ela baixinho, e, por um momen to, ele retribuiu o sorriso. Entreo lha ram-se com familiaridade, fruto de anos de per fei ta

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* Sebek: deus-crocodilo, originalmente considerado um demônio, já que os crocodilos eram temidos em uma nação tão dependente do rio Nilo. (N.E.)

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compreensão, e Tiye des con si de rava tudo, exce to o homem impre vi sí vel detrás daquele corpo arruinado, um homem que ela sem pre ama ria. Final-mente, sus pi rou e entregou-lhe a taça com infusão de man drá go ra, ponde-rando cui da do sa men te suas pró xi mas pala vras nos segun dos con ce di dos pelo peque no gesto. — O Filho de Hapu morreu há bastante tempo — disse ela. Ele bebeu, fez uma care ta e, em segui da, come çou a rir. — A única morte que foi capaz de me chocar. Ele já esta va tão velho quan do subi ao trono que eu acre di ta va que ele havia com pe li do os deu ses a conceder-lhe imor ta li da de. A magia deles o manteve por dois rei na dos antes do meu. Nenhum pro fe ta, desde o amanhecer do Egito, teve tantas visões, tantos sonhos. — Ele era um cam po nês de uma chou pa na no Delta. Não tinha o direi to de con tro lar assun tos impor tan tes como a suces são. — Por que não? Como orá cu lo da esfin ge e arauto de Amon, ele era tão qua li fi ca do como qualquer outro. E suas pre vi sões con cre ti za ram-se por cerca de oiten ta anos. — Todas exce to uma, Amenhotep. A boca do faraó crispou-se, e ele moveu-se impa cien te men te pelas folhas secas e pelas flo res apodrecidas. — Enquanto eu viver, continuarei em peri go; portanto, não, antes que você per gun te, não liber ta rei aque le garo to. — Por que você não pode chamá-lo de seu filho? — Meu filho está morto — falou ris pi da men te. — Tutmósis, o caça dor, o habilidoso mane ja dor da cimi tar ra. Há nove anos, a roda da biga que quebrou e o lançou à morte des truiu a suces são dire ta no Egito. — Você é um homem tei mo so, que ainda vene ra o que poderia ter sido — esfor çou-se para reba ter, saben do que ele rea gi ria com des pre zo a qual quer indício de nervosismo em sua voz. — Não é do seu feitio guardar ressentimentos con tra o des ti no. Ou seria ran cor con tra o Filho de Hapu, que falhara ao não pre ver o fim de Tutmósis? — Ela incli nou-se em dire ção a ele. — Amenhotep, por que sua tris te za ainda não se amenizou? Por que não acei ta que o rapaz no harém é nosso filho, o últi mo varão de nossa linha gem e, portanto, destinado ao trono do Egito quan do você mor rer? Sem olhar para Tiye, Amenhotep segu rou a taça com infusão de man-drá go ra com ambas as mãos.

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— Quis matá-lo quan do o orá cu lo me revelou o que vira na taça de Anúbis. Aquele dia está gra va do em minha memó ria, Tiye. Ainda posso sen tir o chei ro do lótus úmido que havia sido colhi do e colo ca do sob meu trono e ver o Filho de Hapu a meus pés, com o Olho de Hórus res-plan de cendo no peito. Eu estava com medo. O pró prio Filho de Hapu advertiu-me para que a crian ça fosse estrangulada, e eu, de fato, tinha dado a ordem, mas algo me impediu. Talvez não me sen tis se amea ça do o sufi cien te. Como pode este filho, este minús cu lo verme de três dias, vir a prejudicar-me?, pen sei naquele momento. E Hapu contestara-me: — Olhei duas vezes na taça e inter pre tei o pres sá gio. Não há dúvi da. Ele cres ce rá para matá-lo, ó Poderoso Touro. — Amenhotep cui da do sa men te apal pou suas faces intu mes ci das e recuou. — Mas eu tive com pai xão. Em vez disso, tran quei-o no harém. — Onde ele foi man ti do em segu ran ça, porém somen te até que Tutmósis fosse assas si na do. As sobran ce lhas de Amenhotep ergue ram-se. Ele pôs a taça de volta à mesa e girou as per nas sobre a beira do divã. Tiye sen tiu a coxa macia dele entre as suas. — Sei que você frus trou essa ten ta ti va — sus sur rou ele, com os olhos repen ti na men te ilu mi na dos. — Contudo, por mais que tentassem, meus vigias nunca poderiam ter a total certeza disso. Assim como não poderei des co brir decerto se foi você quem enve ne nou Nebet-nuhe. Tiye não vaci lou: — Com preen di seu pâni co quan do Tutmósis mor reu — decla rou tão segura de si quan to pôde. — Você per mi tiu que o Filho de Hapu o con ven-ces se de que se tratava de um complô premeditado por um garo to de dez anos que nunca havia saído do harém, cujos guardiães eram substituídos a cada sema na, e ao qual nunca havia sido auto ri za da uma única ami za de mas cu-li na. No entan to, não havia cons pi ra ção alguma. Hapu esta va sim ples men te afir man do seu poder sobre você. — Não. Ele esta va ten tan do, uma vez mais, persuadir-me a fazer o que eu fora fraco demais para realizar antes. Tiye encostou a cabe ça no braço dele. — Se você realmente dese ja sse matar seu filho, teria con ti nua do até con se guir. Mas, no fundo de seu cora ção, ó Deus do Egito, não im por ta o quan to des pre ze o garo to, você reco nhe ce que é seu des cen den te.

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Ele se rá rei quan do seu fim che gar, e eu pre fe ri ria ver você proclamá-lo prín ci pe agora e enviá-lo a ser vi ço para Mênfis a enfren tar a bata lha que me caberá se você mor rer sem her dei ro ofi cial. Se ele tivesse casa do com a irmã logo após a morte de Tutmósis, a tran si ção após o falecimento seria sere na, e eu ficaria em paz. Ele sen tou-se em silêncio. Apenas sua res pi ra ção per tur ba va a inten sa tran qui li da de da sala. Em algum lugar, na escuridão, uma lam pa ri na estou rou e apa gou-se, e o mau chei ro impregnante do óleo per fu ma do inten si fi cou-se. — Mas eu queria Sitamun. E consegui. Tutmósis treinou tão bem a irmã que, aos dezesseis anos, ela era uma recompensa gloriosa demais para se resistir. — No entan to, não sobrou nenhu ma filha real sol tei ra, somen te um filho. Além disso, seus dias estão con ta dos. Aproximou-se e tocou a face dela. — Eu a ensi nei a mentir bem para todos, menos para mim — mur-mu rou. — Agora cons ta to que sua franqueza é um ter ror. Todavia, não me iludo. Supondo que, de fato, orde ne a sol tu ra daque le... daque le eunu co efe mi na do que gerei, e que o Filho de Hapu esteja com razão, e se ele usar a liber da de para me matar? Tiye rapi da men te deci diu entrar no jogo. — Então, ficaria satisfeito em saber que o orá cu lo esta va certo, ape sar de que a ideia de um jovem meigo e ino fen si vo como seu filho ser capaz de tramar um assas si na to, ainda mais o do próprio pai, vai além da minha com preen são. Além disso, meu marido, se, por um deses pe ra do acaso, o prín ci pe con se guisse matá-lo, e então? Os deu ses ape nas lhe dariam as boas-vindas na Barca de Rá um pouco mais cedo. Seu filho será um faraó, não impor ta o que faça. — A menos que eu mande executá-lo ime dia ta men te e ter mi ne com essa dis pu ta de uma vez por todas — disse fria men te. Sua face assu miu uma expres são cortês de tran qui li da de, e Tiye não pôde dis tin guir se esta va furio so ou se sim ples men te a provocava com um lem bre te de sua oni po tên cia. — Muito bem — disse ela com ale gria, mas cien te de que suas mãos suavam frio. — Exerça seu poder de faraó, Majestade. Eu mesma cui da rei para que a ordem seja exe cu ta da. Sou uma súdi ta leal. Sei obe de cer.

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Então, quan do sua morte che gar, eu me reco lhe rei às minhas pro prie da des par ti cu la res com a cons ciên cia tranquila por ter cum pri do com meu dever. Quem se impor ta rá se a deci são da suces são for desig na da a homens infe-rio res que banha rão o Egito com seu pró prio san gue na briga pelo Trono de Hórus? Cer ta men te não me preo cu pa rei que o Poderoso Touro não tenha dei xa do des cen den te real! Ele a fitou por muito tempo antes de assentir len ta men te com a ca-be ça. — O argumento da dis pu ta impe rial — mur mu rou. — Cuidado, minha arro gan te Tiye, finalmente estou a ouvir. Não me jogue mais na cara a mis tu ra amar ga de meu orgu lho com minhas perdas. Com a morte de Tutmósis, os deu ses exi gi ram um seve ro paga men to pela for tu na e pelo poder que usufruí em toda a minha vida — deu um leve sorriso. — Eles deveriam me apoiar no Tesouro Real. Eu agora admito. Vou man dar libertá-lo. Fiz tudo, consegui tudo e, se for eli mi na do pela doen ça ou pela faca de um assassino, terei de mor rer. Posso, pelo menos, poupá-la do abor re ci men to de um bando de cha cais vociferando se eu mor rer sem her-dei ro ofi cial. Contudo, não pense que você poderá lhe entre gar Sitamun. Pre ci so dela. Sem forças, com um alí vio que preferia não demonstrar, Tiye dei xou esca par: — Esta va pen san do em Nefertiti. Uma vez mais, de modo sur preen den te, ele gargalhou. Virou-se e aproximou-se, agarrando e apertando a garganta de Tiye. O cordão de ouro com o pingente de esfinge fazia uma dolorosa pressão sobre sua pele, mas ela sabia que era melhor não demonstrar medo nem resis tir. — Uma tra di ção de famí lia — disse ele, ofe gan te, sacu din do-a, aper-tan do forte sua garganta. — Mais uma vez você confia o trono a um bando de aven tu rei ros de Mitanni. Porque é isso que você é, todos vocês são. Servos leais da Coroa, merecedores de toda a recom pen sa, mas que os deu ses se com pa de çam de qual quer faraó que se ponha em seu cami nho. — Por três gera ções, minha famí lia tem ser vi do ao Egito com abne-ga ção. Hórus, você é injus to — gaguejou. — Meu pai não o compeliu a tornar-me impe ra triz. Ele não tinha esse poder. Você mesmo elevou-me à divin da de. De repen te a sol tou, e ela ten tou estabilizar a res pi ra ção cal ma men te. — Eu amei Yuya. Con fiei nele. Amo e con fio em você tam bém, Tiye. É a dor. Às vezes, não posso suportá-la. Cássia, óleo de cra vos, man drá-go ra, nada ajuda de fato.

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— Eu sei — disse ela, levantando e posicionando-se entre as per nas do faraó. — Somen te isto existe. — Colocando as mãos nos ombros dele, fez uma reverência e o bei jou. Ele sus pi rou sua ve men te, trazendo-a à altura dos joe lhos, sua boca logo dei xou a dela à pro cu ra dos mami los pin ta dos. Tanta coisa mudou, Amenhotep, mas isto não, pen sou ela, pas si va no pra zer do momen to. Apesar de tudo, ainda adoro e vene ro você. — Nefertiti? — suspirou ela, gritando em segui da, enquan to ele a mor dia. — Se você dese jar — res pon deu ele, um tre mor de delei te em sua voz. Puxou a peru ca dela e cra vou ambas as mãos em suas lon gas tran ças.

Pouco antes do ama nhe cer, ela o dei xou dor min do, sere no, livre da dor por algumas horas. Dese ja va ficar e can tar suavemente para ele, embalá-lo e acalentá-lo, mas, em vez disso, apa nhou sua peru ca, ajus tou a esfin ge em volta do pes co ço machu ca do e saiu, fechan do as por tas vaga ro sa men te em segui da. Surero e o arauto dor miam, um incli na do sobre o ban qui nho, o outro encostado na pare de. As tochas que se ali nha vam na longa pas sa gem tinham se apa ga do, os guardiães foram rendidos, os novos ros tos estavam aba ti dos pela neces si da de de des can so, mas mantinham os olhos aler tas. Ao fres cor efê me ro de uma noite de verão asso cia va-se uma lân gui da luz cinza. Tiye erguera o pé para cutucar seu arauto quan do ouviu um movi men to e virou-se. Sitamun havia entra do pelo cor re dor e encontrava-se parada ali, hesi-tante, com uma roupa de linho branca e esvoaçante, um manto curto em fina seda pre guea do em volta dos ombros del ga dos. Esta va sem peru ca, os cabe los cas ta nhos caí dos sobre a face, um dia de ma de prata na testa. Amuletos de prata engan cha dos nos bra ços, e cama feus e esfin ges pen-den do sobre o peito. Tiye, exaus ta e sacia da, teve a assusta do ra impres são de estar vendo a si mesma no passado. Por um segun do, ficou con ge la da de medo e sentiu uma dolo ro sa sau da de do tempo que havia passado, do tempo que nunca mais poderia voltar. Em segui da, cami nhou em dire ção à filha. — Ele não necessita de sua pre sen ça esta noite, Sitamun — men cio nou, e, ao soar de sua voz, o arauto levantou-se. — Ele adormeceu agora. Ao notar decepção e ciúme no rosto arro gan te da filha, Tiye sufocou a sensação de triun fo pura men te femi ni no. Não é digno que eu sinta pra zer em con tra riar Sitamun, pen sou com arre pen di men to, enquan to a jovem hesi ta va. Tal mesquinharia per ten ce a con cu bi nas ido sas em gran des

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haréns, não a uma impe ra triz. Ela sorriu afetuosamente. Sitamun não res-pon deu. Depois de um ins tan te, Tiye fez uma reve rên cia e desa pa re ceu pelas som bras iner tes. De volta a seus apo sen tos, Tiye comeu ao som dos músi cos do alaú de e da harpa, que a acor da vam todas as manhãs, e, então, mandou chamar Neb-Amon. Ele espe rava pela con vo ca ção e entrou rapi da men te, um homem gra cio so e rechonchudo, em uma toga com pri da de escri ba, a cabe ça ras-pa da, o rosto impe ca vel men te pin ta do. Ele pôs no chão sua carga de per ga-mi nhos e fez uma reverência com os bra ços esten di dos. — Meus cum pri men tos, Neb-Amon — disse Tiye. — Está muito quen te para recebê-lo em meu trono; portanto, eu dei ta rei. — Ela assim o fez, colo can do o pes co ço con tra a curva fria do encos to de mar fim, en-quanto Piha a cobria com um len çol, e o cria do come ça va a aba ná-la com penas azuis. — Tam bém fecha rei meus olhos, mas meus ouvi dos per ma-ne ce rão aber tos. Sente-se. Ele sen tou-se na cadei ra ao lado do divã, enquan to Piha se recolheu para o canto. — Não há quase nada que mereça a aten ção de Vossa Majestade — disse Neb-Amon, remexendo os papéis. — De Arzawa, os rumores habi-tuais sobre inva sões realizadas pelo Khatti e, claro, uma carta do Khatti pro tes tan do contra o ata que de Arzawa à fron tei ra. Eu mesmo posso res-pon der a isso. De Karduniash, um pedi do por mais ouro, após as sau da ções habi tuais. Não acon se lho que o Grande Hórus lhes envie algo, pois já têm rece bi do muito de nossa parte. Sob os pedi dos, estão amea ças implícitas de que tra ta dos serão firmados com os cassitas ou com os assírios, caso o faraó não demonstre ami za de. — O faraó pro vi den cia rá mano bras mili ta res para o leste — mur-mu rou Tiye. — Isso deve ser sufi cien te. Algo de Mitanni? — Sim. Tushratta está reten do o dote até que a cida de de Misrianne seja dele ofi cial men te, isto é, até que o documento de pro prie da de este ja em seu poder. Ele rece beu ouro e prata. A princesa Tadukhipa che gou a Mênfis. A notícia foi rece bi da esta manhã. Os olhos de Tiye se abri ram de repen te e, em segui da, fecha ram-se nova men te. — Então, real men te have rá um acrés ci mo no harém — mur mu rou ela. — Após toda a dis pu ta e o rapto de embai xa do res, as pro mes sas vazias e os insul tos, a peque na Tadukhipa está no Egito. — Gos ta ria de ver Mitanni ape nas uma vez, pen sou de repen te. A casa de meus ances trais.

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Quem sabe se aque le novo rei, Tushratta, poderia ser um paren te meu dis tan te? Que estra nho! — Algo mais? Neb-Amon fez uma pausa. — Ainda não há con fir ma ção ofi cial, Majestade, mas espalha-se um boato de que um novo prín ci pe sur giu apoiado pelo povo na região do Khatti. Parece que o Khatti vai se recu pe ra r da pilhagem de Boghaz-keuoi, ape sar de tudo. — Talvez, embora um ini mi go que consegue invadir a capi tal de um país não seja repe li do tão rápido. Sobretudo se ele esti ver sendo abastecido com muni ção e ali men tos às escondidas. — Tiye virou a cabe ça e fitou Neb-Amon, mas seu olhar esta va indefinido. Ela demons trou desa gra do: — Sabe mos que Tushratta tem se aproveitado do caos no Khatti para for-ta le cer sua pró pria posi ção aju dando a clas se de vas sa los que se rebelou. O equi lí brio de for ças entre Mitanni, o Egito e o Khatti era deli ca do e agora está des con tro la do. — O Khatti não possui muitos recursos no momento. — E o enfra que ci mento do Khatti sig ni fi ca o fortalecimento de Mitanni. Devemos obser var a situa ção cui da do sa men te. Não pode mos per mi tir a expan são de Mitanni, tampouco que o Khatti se tor ne muito arro gan te. Temos tra ta dos com o Khatti? Neb-Amon assentiu com a cabe ça. — Sim, mas são anti gos. — Pode mos utilizá-los, se neces sá rio. Há algu ma infor ma ção sobre a per so na li da de desse prín ci pe? Qual é seu nome? — Os poli ciais do deser to estão dizen do que ele é jovem, forte e im-placável o sufi cien te para assu mir os ris cos neces sá rios a fim de se tor nar o gover nan te do Khatti. Ele ven ceu uma revol ta no palá cio, Majestade. Seu nome é Suppiluliumas. Tiye riu: — Um bárbaro! O Egito nego cia rá com ele facil men te, se neces sá rio. Diplomaticamente, decerto. Mais alguma coisa? Havia pouco mais naquele dia. Carga da Alashia, bois novos da Ásia, ouro das minas núbias e a entrega de vasos de Keftiu. — Envie-me um vaso mais tarde. Quero ver a qua li da de — disse Tiye. Você pode ir agora, Neb-Amon. O faraó cui da rá de qual quer documento que se faça neces sá rio. — Neb-Amon jun tou os papéis ime dia ta men te e fez uma reverência ao sair.

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Após tomar banho e ves tir-se com uma roupa de linho limpa, Tiye mandou chamar o arauto. — Convoque meus guardiães. Vamos até o harém. Saí ram pela pas sa gem do ter ra ço do palá cio, Tiye cercada de sol da dos e um porta-leque de cada lado. Embora ainda faltassem algu mas horas para o meio-dia, o átrio esta va repleto de crian ças, que brincavam nas fon tes. Servos e cria dos, ao virem-na pas sar, abai xa ram o ros to. A ampla praça pavi men ta da, que con du zia à sala de audiên cias de Amenhotep, esta va igual men te reple ta de fun cio ná rios das embai xa das estran gei ras, cujos aposentos se dis tri buíam pelo com ple xo do palá cio. Eles espe ra vam pelo momen to em que o faraó e os minis tros poderiam recebê-los. Ao ouvirem o grito de alerta do arauto, também se incli naram em reve rên cia enquanto Tiye passava. Tão logo as portas, seve ra men te vigia das, entre a área públi ca e os degraus do harém, foram fecha das, o baru lho desa pa re ceu gra dual-men te. Quando o peque no grupo virou à esquer da, sob as colunas da en-trada de aces so aos aposentos femi ni nos, Kheruef, o administrador-chefe de Tiye e Guardião da Porta do Harém, apresentou-se. Sua rou pa curta de linho esvoa çava na cor ren te de ar que soprava pelas por tas aber tas dos jar-dins até os fundos do palácio. Tiye estendeu uma das mãos. — Você terá outro apo sen to para mobi liar e escra vas para com prar — disse ela, enquan to ele bei ja va as pon tas de seus dedos. — A prin ce sa estran gei ra Tadukhipa chegará em pou cos dias. Kheruef sor riu de modo cor tês. — A princesa Gilupkhipa ficará muito feliz, Majestade. Desde o assas si na to do pai e a ascen são do irmão ao poder, ela está impaciente por notí cias de Mitanni. Tadukhipa é sua sobri nha e trará um clima de fami-lia ri da de aos apo sen tos de Gilupkhipa. — Considerando que Gilupkhipa tem sido uma esposa real por quase o mesmo tempo que eu, acho difí cil enten der por que ainda lamen ta os des con for tos e os peri gos de um país inci vi li za do — obser vou Tiye com indiferença. — No entanto, não quero deba ter sobre as mulhe res de Mitanni do faraó. Eu vim para encontrar o prín ci pe. — Ele aca bou de se levan tar e está no jar dim, pró xi mo ao lago, Majestade. — Bom. Cuide para que não seja mos impor tu na dos. Sozinha, Tiye cami nhou pelo bem-ventilado cor re dor. À direi ta e à esquer da, as por tas esta vam aber tas. Pas sou pelas peque nas salas de re-

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cep ção, nas quais as mulhe res rece biam os mem bros de suas famí lias e os administradores, e pelas salas meno res, mais ínti mas, onde, nas tar des de inver no, reu niam-se em volta dos bra sei ros para fofocar. A partir da galeria prin ci pal, havia outros cor re do res, pelos quais se alinhavam está tuas de gra ni to das deu sas Mut, Hathor, Sekhmet, Ta-Urt, dian te das quais as mulhe res para vam e acen diam incen sos, orando pela bele za, pela fer ti li-da de, pela juven tu de e pela saúde de seus filhos. Esses cor re do res con du-ziam aos aposentos das espo sas do faraó, que viviam na mesma ala, no interior do com ple xo do palá cio. Os apo sen tos das concubinas espalhavam-se por toda a parte do exten so harém. À medi da que pas sa va, Tiye era gra-dual men te envolvida pela atmos fe ra pecu liar men te sufo can te. Risos e con ver sas estri den tes ecoa vam ao redor. Havia o ruído de tornozeleiras de bron ze, o tilin tar dos acessórios de prata e o bri lho de roupas ama re las, escar la tes e azuis desa pa re cendo pelos corredores. Em algum lugar, no final da passagem que con du zia aos ber çá rios, uma crian ça doen te gemia. Tiye sentiu um forte cheiro de incenso que emanava de uma porta entrea-ber ta e ouviu uma cadên cia musi cal de ora ções estran gei ras, sírias, tal vez, ou da Babilônia, que o acom pa nha va. Em outra porta, avis tou um corpo nu, bra ços esten di dos, e ouviu o lamen to de uma flau ta. Eu odeio o harém, pen sou Tiye pela milio né si ma vez, quando irrom peu na des lum bran te luz do sol e come çou a atra ves sar o lago das mulhe res. Os meses que pas sei aqui, como uma crian ça de doze anos, ame dron ta da e deter mi na da, uma como todas as outras espo sas, foram os mais frus tran tes de minha vida. Ter minha mãe aqui como um Ornamento Real em nada aju dou. Ela comandava as outras mulhe res como um coman dan te de divi são fazia com suas tro pas, com chi co te e blas fê mias. Também odia va me ver cor rendo nua pelos gra ma dos todas as manhãs bem cedo, quan do as outras mulhe res ainda esta vam imer sas em seus sonhos per fu ma dos. Se Amenhotep não tives se se apai xo na do por mim, eu teria me enve ne na do. Dei xou de lado seus pen sa men tos quando o avistou, seu últi mo filho vivo, sen ta do de per nas cru za das em uma estei ra de papi ro à beira do lago, na som bra de um peque no dos sel. Ele esta va só e inerte, as mãos em repou so sobre o saio te bran co, os olhos fixos na cons tan te osci la ção da luz nas peque nas ondas. Próximo a ele, um grupo de árvo res proporcionava uma som bra refrescante, mas ele pedira que o dos sel fosse ergui do no res-plen dor total da luz do sol. Tiye apro xi mou-se reso lu ta men te, mas apenas

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no último instante ele real men te ergueu os olhos e a viu. Levantando-se, pros trou-se na grama e, em segui da, reto mou sua posi ção. Tiye aco mo dou-se a seu lado gra cio sa men te. Ele não olha va para a mãe, pare cia envol vi do em um sere no ensimesmamento enquan to seus olhos con ti nua vam a obser var a super fí cie da água. Sem pre quan do ela o visi ta va, um sen ti men to de per ple xi da de e de alie na ção apo de ra va-se dela. Nunca o vira comportar-se a não ser pas si va me nte, mas, após os deze no ve anos, ela ainda não saberia dizer se essa calma significava uma supre ma arro gân cia, uma estoi ca acei ta ção do des ti no ou a marca de um homem sin ce ro. Sabia que as mulhe res do harém o tra ta vam com um mis to de afeto e des dém, como um animal de estimação inde se ja do, e costumava imaginar, ao longo dos anos, se seu marido reco nhe cia que tais influên cias poderiam, pouco a pouco, corromper o rapaz. Mas era evidente que ele sabia. A degra da ção da huma ni da de era uma rota que ele conhecia muito bem. — Amenhotep? Vagarosamente, ele lançou-lhe um olhar bran do, suave, e os lábios gros sos cur va ram-se em um sor ri so, ali vian do, por um momen to, a protube-rância do queixo demasiadamente comprido. Era um homem feio. So men te o nariz del ga do e aqui li no o livrava da feiura irreparável. — Mãe? Você pare ce can sa da hoje. Todos parecem can sa dos. É o calor. — Sua voz era viva e clara como a de uma crian ça. Tiye não que ria con ver sar, mas, por um momento, as notí cias que ele lhe trazia a desarmaram, e achou que não conseguiria escolher as pala-vras e apresentá-las deli ca da men te. Hesitando apenas por alguns instantes, ela disse: — Há mui tos anos sonho em contar-lhe isto. Quero que dê ins tru ções a seu admi nis tra dor e a seus cria dos para empa co ta rem tudo o que dese jar levar com você. Você dei xará o harém. O sor ri so não vacilou, mas os lon gos dedos par dos sobre a resplande-cente roupa de linho con traí ram-se. — Para onde vou? — Para Mênfis. Você será nomea do sumo sacer do te de Ptah. — O faraó mor reu? — O tom não pas sa va de inda ga dor. — Não, mas está doen te e sabe que deve nomeá-lo seu her dei ro. Um her dei ro legí ti mo sem pre serve como sumo sacer do te em Mênfis.

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— Então, ele está mor ren do. — Seus olhos a aban do na ram e fixa-ram-se no céu. — Mênfis é bem pró xi ma de On, não é? — Sim, bastante. Você verá as pode ro sas tum bas dos ances trais e a cida de dos mor tos em Saqqara, e Mênfis, por si mesma, é uma mara vi lha. Você vive rá no palá cio de verão do faraó. Isso o agra da? — Decerto. Posso levar os músi cos e os ani mais de esti ma ção comi go? — Tudo o que desejar. — Esta va um pouco irri ta da com a falta de rea ção dele e jul gou que ainda não com preen de ra total men te que have ria uma com ple ta mudan ça em suas con di ções. — Sugiro que você esva zie seus apo sen tos aqui — con ti nuou ela, inci si va men te. — Você não retor-na rá para eles. Além disso, sendo Avezinha de Hórus no Egito, deve se casar e não espe re que a futu ra rai nha do Egito resi da em nada menos que um palá cio pró prio. Pela pri mei ra vez, ele esboçara uma reação! A cabe ça dele vol veu rapi da men te, e, por um rápi do segun do, ela percebeu um vis lum bre de satis fa ção em seus olhos. — Terei Sitamun? — Não. O faraó reser va-se o direi to de mantê-la. — Mas ela é minha irmã inteiramente real. — Torceu a boca e fran-ziu a testa. Ele está satis fei to ou desa pon ta do porque não terá direi to a ela? Tiye que ria saber. — Meu filho, acabaram-se os dias em que a suces são ocor ria ape nas para o homem que casasse com uma mulher de san gue puramente real. Hoje, a esco lha é realizada pelo pró prio faraó ou pelo orá cu lo de Amon. Os lábios de Amenhotep tor ceram-se em escár nio. — Sou a última opção do Filho de Hapu. Estou ale gre por ele estar morto. Eu o odia va. Foi você, mãe, quem fez pres são sobre o faraó a esse res pei to, não foi? — Ele ergueu as mãos e tocou o elmo de couro bran co que usava, puxan do as abas, de forma pensativa. — Quero Nefertiti. Tiye ficou sur pre sa: — Nefertiti é minha esco lha tam bém. Ela é sua prima e será uma boa com pa nhei ra. — Ela visita-me algu mas vezes e traz os babuí nos do meu tio. Foi à biblio te ca em meu nome e trou xe-me per ga mi nhos para ana li sar. Conversamos sobre os deu ses.

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Então, Nefertiti é mais sagaz do que eu ima gi na va, pen sou Tiye. — Foi bom da parte dela — disse Tiye em voz alta. — Você ser vi rá em Mênfis por um ano. Posteriormente, retor na rá a Tebas e se casa rá; além disso, ergue rá seu pró prio palá cio. Eu o aju da rei, Amenhotep. Sei que não será fácil para você, após tan tos anos de cati vei ro. Alcançou a mão dela e a aca ri ciou. — Amo você, minha mãe. Devo isso a você. — Seus dedos deli ca dos afa ga ram o pulso dela. — O faraó gostaria de me ver antes de eu partir? — Creio que não. A saúde dele é pre cá ria. — Mas o temor que ele tem de mim é sufi cien te men te vital! Que seja. Quando eu parto? — Em alguns dias. — Levantaram-se, e ela, impulsivamente, incli-nou-se e bei jou-lhe as faces macias. — O príncipe Amenhotep pre ten de ini ciar o próprio harém? — No futuro — res pon deu de forma sole ne. — Mas eu mesmo devo esco lher as mulhe res, quan do esti ver pron to. Devo ficar ocu pa do em Mênfis. — Então o dei xa rei para que dê suas ins tru ções. Que seu nome viva para sem pre, Amenhotep. Ele fez uma reverência. Momentos depois, quando olhou novamente para ele, ainda es ta va para do onde o havia dei xa do, e ela não conseguiu ler sua expres são.

Antes dos compromissos oficiais vespertinos, Tiye enviou uma men sa gem a seu irmão Ay, soli ci tan do-lhe que delegasse suas atri bui ções aos assis-ten tes e espe ras se por ela na casa dele. Em segui da, assistiu inquie ta a duas audiên cias, ouviu o rela tó rio diá rio do Inspetor do Tesouro Real e, dis trai-da men te, recu sou a fruta que Piha lhe ofe re cera duran te uma breve pausa nos pro ce di men tos. Sua mente pon de rou a res pei to das mudanças no des-tino do filho e da nova carga de res pon sa bi li da de que a liber da de dele traria a ela. Então, ficou impa cien te para dis cu tir o assunto com Ay. Antes que o últi mo minis tro se retirasse da sala de audiên cias, ela deixara o trono e rapidamente requisitara a litei ra para sair. A casa de seu irmão fica va quase dois quilômetros ao norte do palá cio, pela estra da do rio. Esperava por ela quando os porta-leques abai xa ram a litei ra, e Tiye pene trou a pequena som bra do jar dim. Ay ajoe lhou-se na grama.

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— Fiquem na entra da até que eu chame — ordenou aos cria dos, depois seguiu adiante para rece ber em seus pés o beijo de Ay, antes de sentar na ca-deira que estava pronta para ela. Ay aco mo dou-se em sua própria cadei ra. — Sei que pare ço can sa da. — Sor riu ao obser var a expres são dele. — Quase não dormi na noite pas sa da. Toma rei um pouco daque le vinho com água e descansarei aqui com você. Este lugar nunca muda, Ay. A casa enve lhe ce gra cio sa men te, as mes mas flo res de que gostava quando crian ça ainda florescem, e as árvo res continuam inten cio nal men te desi-guais como sem pre. Você e eu, juntos, desvendamos tantos mis té rios aqui no decorrer dos anos... Ay acenou, um cria do encheu a taça dela e reti rou-se. — Posso supor, pelo con ten ta men to de Vossa Majes ta de, que en- con trou o faraó de bom humor? — inda gou sor rin do. Tiye pôs a taça sobre a mesa e fixou seus olhos nos do irmão. — Está feito — disse ela. — O faraó liber ta rá o prín ci pe. Minha vitó ria final sobre o Filho de Hapu. Que Sebek tri tu re os ossos dele! Ainda não consigo acre di tar que ele está real men te morto. Tantos cor te sãos esta vam tão cer tos de que ele era aju da do pelos pró prios deu ses e era imor tal... Ay apa nhou seu aba na dor incrustado de pedras preciosas e espantou a gran de quan ti da de de mos cas que voejavam sobre sua pele úmida. — Dis cu ti mos bastante sobre a pos si bi li da de de provar que estavam erra dos — mur mu rou ele com indiferença. — Quando Amenhotep será liber ta do? — Assim que pos sí vel. Quero que você prepare um des ta ca men to dos sol da dos da Divisão de Ptah para acompanhá-lo a Mênfis quan do eu deter-mi nar. Você deve pro vi den ciar que Horemheb assu ma o comando. Ele é jovem, mas muito capaz. — Ele fica rá feliz por vol tar a Mênfis. Qualquer um fica ria. Tebas é um bura co nojen to, cheio de men di gos, cam po ne ses e ladrões. Nesta época do ano, o mau chei ro que emana do outro lado do rio flu tua pelos meus sicô mo ros e murcha as flo res. Muito bem, Tiye, esco lhe rei os homens cuidadosamente. Estou muito satis fei to. O mundo está espe ran do para home na gear seu filho. — Que os deu ses o recompensem pelos anos des per di ça dos — de-sejou ela sua ve men te. — O faraó tam bém gostaria de fir mar o con tra to de casa men to entre Amenhotep e Nefertiti. Ele não abrirá mão de Sitamun.

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Eu não espe ra va que ele o fizesse, mas não impor ta. Tenho man ti do minha pro mes sa à famí lia. Preservei nossa influên cia, e sua filha e meu filho farão o mesmo. Nada mal para os descendentes de Maryannu, o guerreiro de Mitanni que fora tra zi do ao Egito como prisioneiro de guer ra por Osíris Tutmósis III. Eles permaneceram em um silên cio cordial por alguns instantes. Na infân cia, quan do fora pro me ti da, mas não ainda entre gue ao faraó, Ay tinha sido seu men tor, ensi na ndo a Tiye o que ves tir, o que dizer, como man ter o inte res se do rapaz que fora des ti na do a se tor nar seu marido. Ele con tou a ela os gos tos e as aver sões do faraó, os pon tos fra cos, o que preferia nas mulhe res, lem bran do a ela, dia e noite, que não se podia pren der um homem apenas com o corpo. A cor ren te deveria ser mol da da com inte li gên cia e humor, uma mente rápi da e um cora ção astuto. Aos doze anos, quando final men te ficou dian te de Amenhotep, de peru ca e com maquia gem, Tiye depa rou com seus olhos negros e encon trou algo que não fazia parte dos ensinamentos de seu irmão. Eles haviam se apai-xo na do. Amenhotep nomeou-a impe ra triz, e, mesmo que ele pro curasse outras companhias para sua cama, o elo per ma ne ce u. Tiye não o havia enga na do. Ela viera de uma linha gem forte, imbuí da de um impul so para o poder e para a dominação que não arrefecera por gera ções, de forma que sua famí lia, ple beia, sem uma gota de san gue real nas veias, tinha sido bem-sucedida em se tornar o poder por trás de todos os tronos desde os dias de Osíris Tutmósis III. Cada faraó, desde então, fora cui da do sa men te ava lia do pela famí lia; suas for ças, testa das; suas fra que zas, com pen sa das e explo ra das. O pró prio pai de Tiye tinha sido Comandante dos Carros Reais, estribeiro-mor do rei e prin ci pal ins tru tor de artes mar ciais do jovem Amenhotep, uma tare fa pela qual ele criara laços com o garo to. Sua mãe fora con fi den te de Mutemwiya, rai nha e Senhora-Chefe do Harém de Amon. Bens, rique za e pres tí gio haviam se acu mu la do ano após ano, como os depó si tos de lodo do opu len to Nilo, mas tais pri ma zias poderiam ser arre ba ta das para deixá-los todos tre mendo na fria raja da da penú ria, caso o faraó assim o quisesse. Consequentemente, tudo era leva do em con si de ra ção, e cada passo exi gia um exame cau te lo so. — Nefertiti é mal-humorada, inquie ta e muito voluntariosa — disse Ay, rompendo o silêncio. — Contudo, nenhum de seus defei tos é per ce bi do; é extraor di na ria men te bela e tem sido mima da por todos, desde as amas e os tuto res até os ofi ciais de minha pró pria cava la ria. Se ela tam bém é

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ambi cio sa, ainda pre ci samos verificar. Aos dezoi to anos, já me culpa por não estar casa da nem ser mãe. — Você deve contar-lhe que, em breve, ela conseguirá as duas coisas. Com certeza, ela se revolta contra todos neste momen to por que está ente-dia da e ansio sa. Rapi da men te apren de rá dis ci pli na no palá cio. — Não conte com isso — disse Ay abrup ta men te. — Ela é minha filha, eu a amo, mas meu amor não é cego. Talvez, se a mãe estivesse viva, se eu não tives se esta do tão ocu pa do... — Não impor ta — inter rom peu Tiye. — Os defei tos de uma rai nha são escondidos por maqui a gem, joias e pro to co lo. — Ergueu a roupa de linho suada e come çou a se aba nar. — Se Ísis não chorar logo, vou mor rer com este calor. Sou uma deusa. Cer tamente posso enviar um sacer do te ao san-tuá rio dela para intimidá-la. Um suave ruído de pés des cal ços sobre a fria cerâ mi ca do ter ra ço a inter rom peu, e ela virou-se. Mutnodjme, a filha mais nova de Ay e meia-irmã de Nefertiti, sur giu da escu ri dão da sala de recep ção do pai e foi sara-co tean do na dire ção deles, nua, exce to por uma gargantilha de ouro e por uma fita escar la te pendendo de sua trança. Em uma das mãos, segu ra va um cacho de uvas pre tas; na outra, um peque no chi co te. Atrás dela, dois anões cor riam, tam bém nus; um arras tava toa lhas, o outro, um leque de plumas ver me lhas de aves truz. Eles para ram ao avistar a rai nha e come ça ram a mur mu rar agi ta da men te entre si, ambos fazen do caretas cômi cas. Mutnodjme apro xi mou-se de Tiye, fez uma reverência e depois se levantou para dar um beijo casual na face de Ay. — Já está tarde — admoestou Tiye, notan do as pál pe bras sua das da garo ta e a face enru bes ci da. — Você dormiu a manhã intei ra? Mutnodjme ergueu as uvas e as mor deu, lim pan do o suco nos can tos da boca com as cos tas da mão pin ta da com hena. — Houve uma festa na noite pas sa da na casa de May e Werel. Depois disso, saí mos para andar de barco, pega mos tochas e litei ras e pas sea mos pelas pro xi mi da des de Tebas. Quando percebi, já era de manhã. — Ela re-fletia enquanto mastigava. — As pros ti tu tas na rua dos bor déis come-ça ram a usar cola res com peque nas contas de argi la pin ta das de dife ren tes cores. Acho que será a pró xi ma moda na corte. Tenho de con se guir alguns. A senhora está bem, Majestade? — Estou — disse Tiye, escon den do seu delei te.

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— Então o Egito é afor tu na do. Vou tomar um banho antes que minha pele vire couro neste calor. Deuses! Rá está impie do so este verão! — Jogou o res tan te das uvas sobre a mesa, bateu o chi co te lan gui da men te nos anões e par tiu. Tiye a obser vou pas sar da som bra à bri lhan te luz do sol, os mús cu los sob as har mo nio sas curvas dos qua dris. Os anões anda vam a trote, seguin do-a, gritando com vozes estri den tes e batendo um no outro. — Tenho pena do homem que se casar com essa aí — obser vou Tiye. — Ele pre ci sa rá ser rigoroso. — Ela já deveria estar casa da — contrapôs Ay. — De qual quer forma, quan do Nefertiti se casar com o her dei ro, Mutnodjme esta rá pró xi ma de-mais do trono para se entre gar a qual quer um cuja leal da de à famí lia possa ser sus pei ta. Sua pró pria leal da de vai para quem quer que possa diverti-la. — Horemheb seria capaz de contê-la muito bem — ponderou Tiye. — Imagino se ele poderia ser indu zi do a casar-se com ela. Mas sinto-me pouco inclinada a forçá-lo. Ele é um bom comandante e acei ta subor nos aber ta-men te, e não em segredo, como um minis tro da Coroa deveria fazer. — Seria melhor preservá-la até que Nefertiti e o prín ci pe este jam segu ra men te casa dos — con tes tou Ay. — Ainda há Sitamun, eu sei, mas o faraó não desisti rá dela até que este ja morto. É sua liga ção com Tutmósis, seu filho, e com o pró prio pas sa do. Tiye notou a perspicácia e o tom rude do irmão. — Você fala muito des res pei to sa men te de meu marido — repreen deu cal ma men te. Ele não pediu des cul pas. — Falo sobre a neces si da de polí ti ca, sem malí cia — replicou ele. — Nós dois sabe mos que, se o prín ci pe fosse auto ri za do a esco lher Sitamun, em vez de Nefertiti, como primeira esposa, a falta de perspicácia política e o ciúme de Sitamun em relação a você fariam com que você fosse relegada à posi ção de nobre viúva sem poderes tão logo o faraó mor res se. Sitamun não per mi ti ria que você se aproximasse dos minis tros e não se preocuparia com eles. Caso Amenhotep, mais tarde, quei ra se casar com a irmã, ele po-derá, mas não até que Nefertiti seja a primeira espo sa. Houve um momen to de silên cio enquan to Tiye revol via as pala vras em sua mente. Ela e Ay entraram nessa dis cus são muitas vezes, o que sem pre se asse me lhou a um exer cí cio men tal, uma defe sa con tra o enfa do das tar des muito quen tes de verão, mas agora as con si de ra ções eram todas muito ver da dei ras, e as alter na ti vas, vitais. Ela obser va va os babuí nos de

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Ay, sen ta dos de cóco ras na grama seca do outro lado do jar dim. Eles boce-ja vam e grunhiam um para o outro, coçando a pele sob as coleiras ador na das com joias, ou coçando uns aos outros em busca de pio lhos. Finalmente, ela disse: — Se algo acontecer com Nefertiti antes de o con tra to de casa men to ser fir ma do, pre firo ver Mutnodjme a Sitamun ocupando o lugar ao lado de meu filho. No entanto, espe ra re mos e ten ta re mos não ficar ansio sos. Queria que você a persuadisse a remo ver a trança e a dei xar o cabe lo cres cer. Ela tor nou-se uma mulher já há qua tro anos. Ay esboçou um sorriso com mágoa. — Desis ti dessa bata lha. Mutnodjme gosta de ser dife ren te. Gosta de chocar seus infe rio res e de provocar os semelhantes. Dita tudo o que está na moda em Tebas. — Enquan to per ma ne cer preo cu pa da com a moda, ela não se ocupará de jogos mais perigosos. — Ao levantar-se, Tiye bateu pal mas, e, ime dia ta-men te, Ay ajoelhou-se. Um bando de cria dos surgiu da calma escuridão da casa. Tiye aca tou a reve rên cia do irmão levan tan do ambas as mãos para um beijo. — Envia rei Kheruef para você quan do eu esti ver pron ta. Que seu nome viva para sem pre, Ay. — O vosso tam bém, Majestade. Apesar da con fian ça aparente que sem pre demons trei, não acre di-ta va real men te que este dia che ga ria, pen sou Tiye enquan to cami nha va para a entrada, de onde seus liteireiros se levan tavam para reverenciá-la. Amenhotep está livre. O Egito tem um prín ci pe herdeiro, e o res to é um mero deta lhe. Esta é minha maior vitó ria, e estou feliz.

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