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CAIO LINS LIMA A Construção do Personagem Beckettiano Brasília 2011

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CAIO LINS LIMA

A Construção do Personagem Beckettiano

Brasília

2011

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CAIO LINS LIMA

A Construção do Personagem Beckettiano

Trabalho de conclusão do curso de Artes Cênicas,

Habilitação em Interpretação Teatral do

Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes

da Universidade de Brasília

Orientador: Prof. Dr. José Fernando Marques

Brasília

2011

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Agradecimentos

Agradeço aos beckettianos Luiz Alfredo Vannini e Caroline Morais que

enfrentaram essa deliciosa missão de levar o espetáculo Quase acabando ao palco do

Helena Barcelos.

Com muito orgulho agradeço ao incrível trabalho de Giselle Rodrigues, que

dirigiu com excelência todo esse absurdo.

A quem soube me orientar com agilidade, entusiasmo e inteligência desde o

início: o professor Fernando Marques. Aqui lhe dou as boas vindas ao Departamento de

Artes Cênicas.

Agradeço pela atenção, carinho e mais ainda pelos puxões de orelha que minha

família me deu. Por terem ouvido, lido e revisado esse trabalho. Obrigado!

Aos meus amores João Felipe, Cavi Loos e Mariana Luiza. Muitíssimo obrigado

por toda ajuda, atenção e consolo nos momentos de crise. Mas calma, que ainda tem

muito mais pela frente...

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Sumário

1. Introdução 6

2. A Poética Beckettiana 9

2.1 Iniciando as leituras de Beckett: as memórias de guerra total 9

2.2 Rompendo limites: a rebelião da arte 11

2.3 O antiteatro beckettiano 14

2.4 Silêncio e repetição: a musicalidade de Samuel Beckett 18

3. A Construção do Personagem 21

3.1 A construção do personagem beckettiano 31

3.2 A palavra 22

3.3 O gesto 25

4. Quase acabando: A Construção da Cena 27

4.1 Os personagens e suas relações 27

4.2 Recriando o abrigo: a trajetória do espetáculo Quase acabando 29

4.2.1 Interpretação: o jogo entre os personagens 30

5. Conclusão 32

6. Referências Bibliográficas 34

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Introdução

Ao longo do curso de Artes Cênicas da Universidade de Brasília aprendemos

técnicas e processos para construção do personagem. Seja qual for o estilo do

espetáculo, diversos métodos são sugeridos para que o personagem seja construído ao

longo do processo cênico. Em Oficina Básica de Artes Cênicas, matéria hoje extinta do

currículo, o calouro aprendia a aguçar a consciência corporal e espacial. Nas disciplinas

Corpo e Movimento1 e Voz e Dicção 1, matérias que já tiveram suas ementas

atualizadas, tal consciência era expandida para que os novos conhecimentos adquiridos

fossem ampliados e levados à cena. Seguindo o histórico do curso, o aluno passa por

matérias de interpretação, onde desenvolve seu personagem. Seja no realismo, seja no

pós-dramático. Paralelamente, continua a desenvolver suas habilidades corporais e

vocais nas disciplinas que se referem à expressão corporal e à produção da voz, essa

última também em conjunto com a palavra. O aluno-ator também não deixa de passar

pela parte teórica, estando consciente de como tal parte é de extrema importância para a

formação tanto de um ator, como de um espetáculo.

O curso que cede o bacharelado em interpretação teatral da Universidade de

Brasília tem o objetivo de capacitar o universitário a atuar em qualquer que seja o

espetáculo e vai além: fornece as ferramentas necessárias para pesquisa e elaboração de

projetos de cenotécnica e da encenação como um todo. Prepara um ator inteligente que

não deve focar o seu trabalho apenas no personagem, mas sim no espetáculo. Sendo

assim, o Projeto de Diplomação em Artes Cênicas do primeiro semestre de 2011 soube

testar bem seus alunos. Isso por que o projeto desenvolvido – o espetáculo Quase

acabando – reuniu duas das três principais obras do autor irlandês Samuel Beckett. Em

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uma adaptação que pudesse contemplar de forma equilibrada os três atores da turma,

chegou-se a um texto que reúne três personagens em um abrigo: Hamm e Clov de Fim

de partida e Winnie de Dias felizes. O irlandês foi um dos autores que pertencem à

linha do Teatro do Absurdo, tendência de vanguarda da metade do século XX que

desintegrou a narrativa, equilibrou os personagens aos outros elementos de encenação e

expandiu os conceitos de drama.

O teatro vanguardista beckettiano é tão rico quanto complexo. Seus personagens

não são construídos a partir de uma biografia clara, nem mesmo objetivos têm. Estão

apenas à margem do espetáculo e são mais um elemento de uma composição geral. Uma

ferramenta a mais para Beckett expor seu pensamento. Portanto, não cabe ao ator

decifrar sua história ou usar suas emoções para emprestá-las ao personagem. O popular

método do russo Constantin Stanislavski não se encaixa na forma do Absurdo, assim

como outras técnicas clássicas servem mais propriamente ao teatro realista, do que ao

Absurdo. Foi necessário então realizar um estudo profundo sobre o teatro de Samuel

Beckett, onde frase por frase foi sendo decifrada ao longo do semestre para que as

intenções estivessem bem claras e a mensagem chegasse ao público. Felizmente, tal

processo não seu deu de modo simples.

A principal ferramenta para a construção do personagem do Absurdo é o texto.

Tanto o texto dramático, como as pesquisas que foram desenvolvidas sobre ele.

Qualquer teoria a respeito serve como base para se obter uma clara visualização do

universo beckettiano. Portanto, é essa pesquisa que o presente trabalho aborda: Como

construir o personagem de Samuel Beckett.

Para tanto, dividi o trabalho em três etapas: a primeira refere-se a uma pesquisa

sobre a poética beckettiana, o contexto histórico e o estilo do autor; a segunda aborda a

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construção do personagem, o gesto e a palavra, e finalmente a terceira etapa realiza uma

exposição sobre como a relação entre os personagens constroem a cena do Absurdo de

Samuel Beckett e como se deu esse processo dentro do espetáculo Quase acabando.

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A Poética Beckettiana

Se eu tivesse de resumir o século xx, diria que despertou as

maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu

todas as ilusões e ideais.

Yehudi Menuhin citado por Hobsbawn em A era dos extremos.

2.1 Iniciando as leituras de Beckett: as memórias da guerra total

A primeira metade do século XX foi uma fase de extremos para o mundo, em

especial para a Europa. Revoluções, guerras, crises. As movimentações daquela época

criaram um novo panorama para os países europeus, quase em sua totalidade. Mas para

abalar um continente que era o “berço das revoluções da ciência, das artes, da política e

da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo” (HOBSBAWN,

1997: 16) seria necessário mais que crises ou guerras civis. O que aqueles Estados

sofreram foram mais de trintas anos de massacres como nunca vistos na história. Do

primeiro atentado em 1914, ano em que se inicia a Primeira Guerra Mundial, à derrota

dos países arrasados na Segunda Guerra Mundial, em 1945, os países envolvidos

passaram por uma era de catástrofe em que mesmo “conservadores inteligentes não

apostariam em sua sobrevivência” (1997: 16).

O brutal impacto humano não se resume à redução no volume populacional, que

foi astronômica, mas também no dia a dia que a sociedade passou a viver durante e após

as guerras:

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A catástrofe humana desencadeada pela Segunda Guerra Mundial é quase

certamente a maior na história humana. O aspecto não menos importante

dessa catástrofe é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a

matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia a dia

que não mais notamos (1997: 58).

As mazelas sofridas pela sociedade atingiram homens, mulheres e crianças em

suas rotinas. Não era necessário ser soldado ou ter parente morto. As consequências

tornaram-se compulsórias nessa época que parecia não ter mais fim. Samuel Beckett,

por sua vez, encontrava-se em um país que ora se tornou vitorioso, na Primeira Guerra

Mundial, mas que encontrou sua derrota na Segunda Guerra Mundial. A França

mostrou-se incapaz de suportar os efeitos de mais um conflito de tamanha ordem.

Tendo perdido um quinto de seus homens em idade militar para vencer as batalhas de

1914-8, os franceses tentaram de tudo para fugir da guerra, mas a Alemanha de Hitler

queria o confronto a todo custo. De fato, os alemães acabaram com os soldados

franceses, protegidos por barreiras incompletas, que “aceitaram sem hesitação a

subordinação a Hitler porque o país já tinha sangrado até quase a morte em 1914-8”

(1997: 38).

Beckett não deixou a França nos momentos de guerra. Pelo contrário: no início

da Segunda Guerra Mundial o dramaturgo encontrava-se de passagem na Irlanda, seu

país natal, e, ao receber a notícia dos confrontos, partiu de volta à França e uniu-se à

Resistência Francesa (HENSEL, 1972: 12). O contato do irlandês, nos anos seguintes,

foi com homens que travavam suas batalhas “como – e com – ratos e piolhos” (1997:

33), além de mutilados, prisioneiros de guerra, desfigurados, que “se tornaram parte tão

vívida da imagem posterior da guerra” (1997: 33).

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Para o interessado na dramaturgia de Samuel Beckett, tão importante quanto ter

a consciência do impacto provocado pelos 31 anos das duas grandes guerras é ter a

noção de que as imagens surgidas pelos anos sanguinários tornaram-se rotina àquela

época. “Este século nos ensinou e continua a ensinar que os seres humanos podem

aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis” (1997:

22). Assim como vivem os personagens do teatro de Beckett. O absurdo aqui é a

situação em que se encontram, física e mentalmente, e como tratam isso com

naturalidade, às vezes até com bom humor. Características que, para os personagens,

haviam sido muito pouco exploradas até então. Aqui se encontra a grandeza do

contemporâneo de Ionesco: ir além dos limites vigentes. Não só na criação dos

personagens, mas no fazer teatral como um todo. Beckett não estava somente no centro

da guerra: a França foi também o berço das vanguardas artísticas.

2.2 Rompendo limites: a rebelião da arte

Pouco antes de a população europeia ser marcada violentamente pela guerra,

consideráveis mudanças já aconteciam desde o século XIX em diversos setores da

sociedade. Revoluções políticas, avanço tecnológico, crises financeiras e também outras

batalhas fizeram eclodir entre os artistas o anseio por uma nova arte. Com um

sentimento de alienação e sufoco, músicos, poetas, atores e pintores foram descobrindo

que no modo de fazer arte havia um limite e eles eram capazes de quebrá-lo. Não mais

apenas serviria a arte para entretenimento ou bela forma de expressão dos sentimentos

alheios, agora seria revisitada como ferramenta política, não mais teria a forma clássica

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e coesa, com as convenções e benvinda como primeiro viesse. Surgem então as

vanguardas europeias.

Futurismo, expressionismo, dadaísmo, surrealismo, entre outras, foram escolas

que se formaram a partir dessa nova filosofia. Algumas mais anárquicas, outras nem

tanto. Todas com o objetivo de inovar. Seja na maneira de se expressar enquanto arte,

seja na maneira de compor. Na prática as manifestações surgiam através de

composições musicais sem métrica, poemas com palavras embaralhadas, performances

artísticas e manifestos como o do poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, o autor do

Manifesto futurista (1909). De acordo com Roselee Goldberg, no livro A Arte da

performance, o rico poeta escolheu a cidade parisiense para chamar a atenção do

público com um manifesto de “violência incendiária”. Ainda de acordo com a autora

citada, esse tipo de ataque aos valores estabelecidos da pintura e das academias

literárias não era infrequente numa cidade que desfrutava da reputação de “capital

cultural do mundo”.

Novamente a França de Beckett se torna o palco dos acontecimentos, permitindo

ao ganhador do prêmio Nobel de 1969 um avanço artístico indispensável para o

surgimento de sua obra. O movimento das vanguardas, plural e democrático, destacou

diversos artistas como Hugo Ball e seu Cabaré Voltaire, Tristan Tzara e sua Crônica de

Zurique, Vsevolod Meyerhold e O corno magnífico do construtivismo russo, levando a

evolução artística a todos os seus segmentos. Inclusive no teatro, a exemplo do teatro de

variedades:

Em primeiro lugar, o teatro de variedades não seguia um roteiro (algo que

Marinetti considerava totalmente desnecessário). Ele dizia que os autores,

atores e técnicos do teatro de variedades tinham apenas uma razão para

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existir, que era “inventar constantemente novos elementos de assombro”.

Além disso, o teatro de variedades obrigava o público a participar,

libertando-o de seu papel passivo de “voyer estúpido”. E, visto que o público

“coopera com a fantasia dos atores, a ação se desenvolve simultaneamente no

palco, nos camarotes e no fosso da orquestra”. Além do mais o teatro de

variedades explicava “rápida e incisivamente”, tanto para adultos quanto para

crianças, “os problemas mais obscuros e os acontecimentos políticos mais

complexos” (GOLDBERG, 2006: 07).

A libertação na criação artística influenciou gênios das artes de outros países e

outros tempos. No Brasil, Anita Malfatti e Di Cavalcanti participaram da Semana de

Arte Moderna em 1922; na Alemanha de 1930, Brecht já desenvolvia seu teatro épico

que, de acordo com Marvin Carlson, deveria provocar no espectador duas respostas:

uma emocional, referente ao drama, e outra racional, em respeito ao épico (CARLSON,

1997: 371).

O teor político das atividades dos vanguardistas é quase intrínseco à sua obra,

principalmente no que diz respeito aos futuristas e expressionistas, como ressalta o autor

citado, que classifica a guerra aos artistas da época como “outra manifestação do

sistema despersonalizante”, dizendo ser a “denúncia da guerra e a conclamação a uma

nova ordem social” as principais preocupações do expressionismo (1997: 338).

Já para Beckett, apesar de sua obra ter sido profundamente influenciada pela

guerra, o período 1914-45 e seu pós-guerra aparecem apenas na estrutura dramática em

si, como na “decrepitude física dos personagens” que parecem ser “os últimos

sobreviventes de uma humanidade devastada” (ANDRADE, em: BECKETT, 2010: 14),

deixando de existir, em seus textos, qualquer referência direta ao período:

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Nem na trilogia, nem em Esperando Godoy se diz uma sílaba sobre a recém

terminada Guerra Mundial, que o irlandês Beckett viveu e sobreviveu, em

parte, como membro ativo da Resistência em Paris e, em parte, como

trabalhador na zona ocupada da França. (...) Nem uma sílaba, tampouco,

sobre os anos de pós-guerra na França, com seus peculiares problemas morais

e sociais (HENSEL, 1972: 16). 1

Ao que parece, o dramaturgo estava mais interessado em “redefinir o que

entende por drama” (ANDRADE, em: BECKETT, 2010: 12) através de “tudo o que

normalmente é ocultado” (CARLSON, 1997: 400).

2.3 O antiteatro beckttiano

Dentro desse ambiente apocalíptico, Samuel Beckett adentra no universo

modernista, onde seus personagens andam em círculos numa atmosfera de destruição.

Esses já não mais estão inseridos na sociedade, são agora apenas sobreviventes que até

questionam o valor e a relação com a natureza:

HAMM

(depois de refletir) Nem eu. (Pausa) Clov.

1 Ni en la trilogia ni en Esperando Godot se dice uma sílaba sobre la recién terminada Guerra Mundial,

que el irlandês Beckett vivió y sobrevivió, en parte, como miembro activo de la Resistencia en Paris y, en

parte, como obrero en la zona no ocupada de Francia. (...) ni uma sílaba, tampoco, sobre los años de la

posguerra em Francia, com sus peculiares problemas morales y sociales.

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CLOV

Fale.

HAMM

A natureza nos esqueceu.

CLOV

Não há mais natureza.

HAMM

Não existe mais! Que exagero!

CLOV

Nas redondezas.

HAMM

Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A

juventude! Os ideais!

CLOV

Então ela não nos esqueceu. (BECKETT, 2010: 42)

O tom do absurdo se revela na relação entre os personagens e o ambiente, entre os

próprios personagens, como também no modo de pensar, marcado por diálogos

cortados e memórias embaralhadas que se repetem ao longo da cena, fazendo com que

o tempo da ação corra com um misto de tensão e expectativas flutuantes. Isso porque

dentre tais expectativas algumas são quebradas e recriadas ao longo do texto, assim

como outras são mantidas até serem dissolvidas em questões maiores. O paradoxo que

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surge entre as angústias dos personagens e a falta de objetivo, característica marcante

da obra beckettiana, é um dos pontos que constroem o clima para o antiteatro de

Beckett, onde cada movimento deve ser rigorosamente calculado para não cair no

excesso.

É na forma econômica de expressar seu conteúdo que o irlandês encontrou seu

virtuosismo, eliminando qualquer referência a tempo, espaço, religião ou política,

permitindo que o espectador/leitor foque toda sua atenção no “reverso das

potencialidades humanas”, como descrito por Fábio de Souza Andrade, sem deixar de

lado o humor e a ironia. A abstração dos personagens em meio a esse fim de partida

revela a ignorância do ser humano diante de sua existência. Os personagens beckttianos

não são heróis e sabem que o fim já está desenhado. A partir disso, sobrevivem à

margem, à espera. Para Beckett, todos esses aspectos são o reflexo de uma vida

humana calcada na impotência e na solidão, com o objetivo de “exibir os limites

humanos, projetando luz sobre a falha e o fracasso” (ANDRADE, em: BECKETT,

2010: 10). Martin Esslin ressalta a importância da questão existencialista para o

dramaturgo:

Tem sido sugerido que a preocupação de Beckett com o problema do ser e a

indentidade do eu talvez tenha surgido com o inevitável e perpétuo interesse

anglo-irlandês em encontrar sua própria resposta para a questão “quem sou eu”,

mas ainda que haja um ponto de verdade nisso, certamente está longe de

fornecer uma explicação completa para a profunda angústia existencial que é a

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tonica do trabalho de Beckett e claramente se origina mais denso nas camadas

de sua personalidade, do que em sua superfície social (ESLLIN, 2004, p. 29).2

Em seu ensaio sobre Proust, analisado no livro Teatro do Absurdo, do autor

citado, Beckett desacredita da capacidade de o ser humano amar ou ter relações de

amizade. Ainda mais negativista, acredita que temos que, diariamente, expressar o

inexpressável. Por esse percusso o autor de Esperando Godot chega ao seu estilo

dramático: quanto menos, melhor. Por acreditar que qualquer veículo de comunicação é

ineficaz e que muito ou tudo já teria sido dito, Beckett faz de seu problema a sua

assinatura na história: permite que apenas o essencial de sua mensagem permaneça. Dos

restos psicológicos dos personagens, do que restou da humanidade e suas relações, do

que restou da própria palavra, em meio de tudo isso, o irlandês faz um ensaio ácido

sobre aqueles que vivem, quando não há mais forças para viver. Em sua primeira obra

teatral, Euletheria, é posto em cena um personagem que, adoecido em sua cama e

separado de sua família – circustância exposta pela divisão do palco - chega a seu

desfecho desligando-se da sociedade e de seus familiares. Tal resolução soaria, para os

antecessores de Beckett, algo trágico, para este último, porém, é o encontro da liberdade

e o direito de viver sua própria vida (2004: 35).

2 It has been suggested that Beckett's' preoccupation with the problem of being and the identity of the self

might have sprung from the Anglo-Irishman's inevitable and perpetual concern with finding his own

answer to the question 'Who am I', but while there may well be a grain of truth in this, it is surely far from

providing a complete explanation for the deep existencial anguish that is the keynote of Beckett's work

and that clearly originates in levels of his personality far deeper than its social surface.

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2.4 Silêncio e repetição: a musicalidade de Samuel Beckett

Por acreditar que o único caminho para se viver é o de se desligar de toda e

qualquer rotina e hábito mundano, os personagens beckettianos parecem evoluir através

de suas obras teatrais e radiofônicas, até chegarem a um ponto de marasmo da ação

dramática. Na trilogia que se inicia com Esperando Godot e seus personagens

principais, Estragon e Vladimir - que acham mais interessante esperar algo incerto

durante dias do que viver suas próprias vidas -, seguindo pela obra Fim de partida, na

qual vivem Hamm e Clov à espera do fim, e terminando com uma mulher enterrada até

os peitos embaixo do sol quente sem perder o bom humor, em Dias felizes, tais

personagens estão à margem apenas e não mais desfrutam de uma vida regular.

Diante da crença na inutilidade das palavras, Samuel Beckett se utiliza do gesto

como força maior da expressão de sua obra, criando uma musicalidade intrínseca à

cena. Assim sendo, gesto, palavra e pausa criam, com pesos iguais, uma melodia densa

e aparentemente despretensiosa.

A importância do gesto é um reflexo do poder da personagem que, sozinha no

palco, é capaz de substituir a palavra pela ação. Para tanto, Beckett o faz através de

suas minuciosas rubricas, como na cena que abre a obra Esperando Godot:

Estrada no campo. Árvore. Entardecer.

Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas

mãos, gemendo. Para, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais uma vez.

Entra Vladimir.

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Estrago: (desistindo de novo) - Nada a fazer (BECKETT, 2005: 17)

O repetido gesto não se isola no primeiro objetivo: o de tirar a bota, mas fala também da

sua “solidão e na inutilidade de seus esforços para viver mais confortavelmente”

(BERRETTINI, 2004: 120). Apontando seu pensamento sobre a condição humana já na

primeira cena. Ajustando, então, a forma ao tema.

Os personagens utilizam-se de rituais e hábitos cuja única finalidade é matar o

tempo. Já encarcerados pelo tédio, ignoram a decadência crônica. O resultado são

diálogos circulares, marcados por breves sentenças, como bem exploram os

personagens Nagg e Nell em Fim de partida:

NAGG – Você me vê?

NELL – Mal. E você?

NAGG – O quê?

NELL – Você me vê?

NAGG – Mal.

NELL – Melhor assim, melhor assim (BECKETT, 2010: 54).

A música criada pelos personagens, através de suas falas e ações, é guiada através das

tensões geradas. Os pseudo-objetivos dos personagens centrais, como a tarefa de

cometer suicídio, em Esperando Godot, Clov e sua difícil missão de deixar Hamm, em

Fim de partida, e a passagem por mais um dia sem esquecer o velho estilo, como faz

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Winnie em Dias felizes, seguram a expectativa que leva à reflexão sobre viver “um dia

após o outro”.

Dessa análise inicial da filosofia beckettiana é possível traçar um ponto de

partida para o jogo do ator. A atenção ao mínimo gesto, a sensibilidade à música

construída pelas falas, um controle preciso da produção vocal... São alguns dos pontos

que devem estar apurados para que a partida siga com a fluidez e densidade necessárias.

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A Construção do Personagem

O essencial da arte é exprimir; o que se exprime não interessa.

Fernando Pessoa

3.1 A construção do personagem beckettiano

Um dos teóricos mais populares quando se fala em construção do personagem

certamente é Constantin Stanislavski. Resumidamente, seus anos de pesquisa e prática

teatral resultaram numa abordagem psicológica da criação do personagem, buscando

elementos da personalidade do próprio intérprete para o desenvolvimento do

personagem proposto pelo autor. Entretanto, tal sistema se tornou muito eficaz para a

criação de papéis realistas ou naturalistas. Personagens beckettianos vivem à custa de

rasgos psicológicos e o que sai de suas bocas são palavras que fogem ao naturalismo.

Portanto, utilizar sistemas tradicionais que abordam memória afetiva ou requerem uma

atenção naturalista soaria ineficaz para a definição de um personagem que recusa a

existência tal como ela é. Letícia Mendes de Oliveira, em artigo sobre o avesso do

trágico em Samuel Beckett, afirma: “Em uma visão desencantada do mundo, os

personagens são retratados fisicamente destroçados, como uma metáfora da própria

consciência humana, que também apresenta-se desintegrada” (OLIVEIRA, 2002: 120).

Mais do que se importar com a construção do personagem, o intérprete deve se importar

com a metáfora e o que ela expressa.

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Beckett propõe cenicamente sua visão sobre a falta de sentido que há no mundo.

Ele o faz através de todos os elementos teatrais e de maneira equilibrada. O personagem

não é mais o centro das atenções. Ele apenas faz parte da mensagem a ser dita. Tão

importante quanto ele é o silêncio que vem após suas falas, é o ambiente em que está

preso, a situação que ele mesmo se coloca dia após dia, o barulho dos passos que

atravessam a cena. Construir um personagem do absurdo beckettiano é construir um

“conjunto de ações que não pretendem contar uma história, mas comunicar uma

configuração de imagens poéticas” (PALLOTTINI, 1989: 122). Não há personagem

isolado e independente. Sozinho ele não existe. Logo, o intérprete deve estar totalmente

consciente da cena que o envolve, com olhos para dentro e fora a cada segundo.

3.2 A palavra

As falas dos personagens ganham corpo à medida que o ator desenvolve seus

estudos sobre o texto. Entender qual o propósito de cada sentença é trabalho para

qualquer que seja a peça, mas em Beckett significa entender também o seu limite. O

personagem pertence à obra. Ir além da intenção pretendida é um deslize que fragiliza a

imagem a ser construída.

O personagem Hamm, de Fim de partida, demonstra o poder decadente que

possui já na primeira sentença que expressa. Ao acordar, retira de si o pano que lhe

cobre a face suja de lágrimas e sangue e afirma que é o seu momento de entrar em cena.

HAMM

Minha... (bocejos)... vez. (Pausa) De jogar. (BECKETT, 2010: 38)

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A força que expressaria a sentença “Minha vez de jogar!” é perdida por

reticências e bocejos, tornando quase patética a imagem. Seja pela destruição total que

fomentou o tédio, seja pelo próprio sono momentâneo, a palavra desgastada não mais

impõe o seu poder. “O teatro do absurdo, em princípio, desconfia da palavra: considera-

a esgotada, privada de sentido e sem comunicabilidade” (PALLOTTINI, 1989: 115).

Para um ator desprevenido, tal situação poderia soar melodramática ou trágica,

expressando em sua voz um sofrimento exagerado para o personagem. Respeitando-se

cada palavra e a pontuação, o drama dos personagens se encerra em suas palavras,

ressoando minimamente à produção vocal ou corporal. Para tanto, Beckett se utiliza

rigorosamente de suas rubricas:

WINNIE

Continua a vasculhar, pega um tubo achatado de pasta de dentes, volta-se

novamente para a frente, retira a tampa do tubo, coloca-a no chão, espreme

com dificuldade uma pequena quantidade de pasta na escova, segura a pasta

com uma mão e escova os dentes com a outra. Vira-se de lado, pudica, à

direita, para cuspir atrás do monte. Nessa posição, tem Willie sob os olhos.

Cospe. Dobra-se um pouco mais. Alto - Uh-hu! - Pausa. Mais alto - Uh-hu! -

Pausa. Sorri com ternura quando volta a ficar de frente. Deposita a escova -

Coitado do Willie – examina a pasta de dentes, o sorriso se desfaz – não vai

durar muito. (Beckett, 2010: 42)

A partir de suas rubricas, Beckett define o tom e a intensidade das falas.

Estabelecendo até certa ambiguidade para algumas. Winnie diz: “coitado do Willie, não

vai durar muito”. Porém, tal sentença é dita através de gestos que mudam a sua

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configuração. A primeira oração é dita virada para o segundo personagem. A segunda,

para a pasta de dentes. Deixando a incerteza para qual dos dois objetos foi pensada tal

afirmação. Entretanto, o personagem, independente do intérprete, não a diz com pesar

de personagem naturalista. O bom humor do personagem supracitado é suficiente para

mantê-la em uma colina enterrada até os peitos. Os valores e padrões desses

personagens não são os mesmos de quem os interpreta, causando um estranhamento

necessário à ação: “Ele (o ator) precisa sentir e exprimir o mesmo estranhamento, na

interpretação, que existe no texto, estranhamento mais radical que o perseguido por

Brecht em seu teatro épico” (CARLSON, 1997: 403). Estranhamento que o afasta do

realismo, mas mantém a ilusão dramática.

Não apenas o contexto define a produção da palavra, mas também a forma como

Beckett a coloca deve ser observada. Em sua fala inicial, Clov, de Fim de partida,

divaga sobre a situação em que se encontra:

CLOV

(olhar fixo, neutro) Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase

acabando. (Pausa) Os grãos se acumulam, um a um, e um dia, de repente, lá

está um monte, um amontoado, o monte impossível. (BECKETT, 2010: 27)

Ao se referir aos grãos que se acumulam, as suas palavras também vão se

acumulando até formar uma sentença maior, tal qual o monte impossível. Imprimindo à

fala uma cadência gradativa. Assim sendo, a palavra é traduzida em som pelo contexto,

pela forma, pelos silêncios. Atendendo aos seus limites. Da mesma forma como

acontece com o seu gestual.

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3.3 O gesto

O caráter cíclico das falas e ações dos personagens de Beckett reflete a solidão, a

falta de esperança e o desejo pelo fim. Sensações que são incomunicáveis. Traduzidas

em gestos que se prendem à falta de anseios. Estando sempre à beira de um objetivo,

mas se encerrando no próprio ciclo. Na cena, esses gestos são pontuais. Tão conscientes

quanto a produção da palavra. A concentração total do ator não deve permitir que lhe

escape um gesto a mais, pois esse pode ser um visível excesso que acaba por

enfraquecer a cena. Tal controle permite que a sensação do personagem e da cena

chegue ao público de maneira mais nítida e forte. Se, em parte, as rubricas são um guia

para desempenhar essa função, o silêncio também o é:

HAMM

Por que você não me mata?

CLOV

Não sei a combinação da despensa.

Pausa.

HAMM

Vá buscar pra mim duas rodas de bicicleta.

Nesta cena de Fim de partida, o personagem Hamm encontra-se numa tensão

superior à do início da cena, passa pelo tédio e encontra um humor mais leve. Isso pode

ser percebido apenas pela pausa. O ator deve dar a importância devida ao silêncio para

que a tensão se sustente por um momento, se “esvazie” e encontre o tédio e então solte a

sentença “vá buscar pra mim duas rodas de bicicleta” como que movida por um humor

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mais casual. Um processo sutil, que pode ser mais bem captado com a limpeza dos

gestos. No caso da poética beckettiana, o ator, sozinho, não é capaz de transmitir aquilo

que o espetáculo propõe. O seu personagem faz parte da cena, da imagem. Essas

“configurações de imagens poéticas” são construídas em conjunto. Personagens e

encenação são elementos que constroem o clima que irá nortear a interpretação.

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Quase acabando: A Construção da Cena

4.1 Os personagens e suas relações

Em Fim de partida, estão presentes quatro personagens. São eles:

Hamm, Clov, Nagg e Nell. O personagem Hamm encontra-se numa cadeira de

rodas, mas isso não o faz menos importante; ele é o dono do abrigo em que se

encontram e detém a chave da despensa, onde aloja os poucos alimentos que

restam. Dessa forma, ele possui o poder que faz os personagens obedeceram a

suas ordens. Clov assim o faz: o subordinado de Hamm não pode se sentar, mas

mesmo podendo andar não deixa o abrigo em que se encontra, obedecendo às

ordens e respondendo todos os dias as mesmas perguntas. Negg e Nell são a

escória da peça: encontram-se presos em latões, onde a única tarefa que lhes

resta é recordar os dias felizes. Vivem à custa de poucos biscoitos e repressões

por parte de Hamm. Diversas análises e estudos já foram realizados na tentativa

de definir a relação entre esses personagens. Uma delas está exposta no prefácio

“Matando o tempo: o impasse e a espera”, de Fábio de Souza Andrade, na

edição brasileira de Fim de partida:

A relação entre o par central, Hamm e Clov, é a de opressor e oprimido, uma

dependência recíproca fundada em amor e ódio e em diálogos

sadomasoquistas como que encenados por um par de canastrões. (...) A

ligação indissolúvel entre Hamm e Clov ecoa os inseparáveis ham (presunto)

e cloves (os cravos que o temperam). Por fim, Nagg, Nell e Clov evocam, em

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línguas diversas, os “pregos” (Nagel, em alemão; nail, em inglês; clou, em

francês) que o “martelo” Hamm (hammer, em inglês) insiste em torturar

(ANDRADE, em: BECKETT, 2010: 15).

Menos ácida e cruel é a relação entre Winnie e Willie, personagens de Dias

felizes. Winnie, figura central da peça, está enterrada até o peito em uma colina,

embaixo do sol quente, onde passa o tempo falando sem parar, enquanto movimenta os

objetos que tem à disposição dentro de sua bolsa. Sua única companhia é Willie, seu

marido que se encontra em uma posição inconveniente, que pouca atenção lhe cede. Em

meio às suas memórias, Winnie tenta recuperar os clássicos através de declamações

malsucedidas e concentra seus esforços em manter o bom humor:

WINNIE

Vira-se para a bolsa, vasculha o interior, tira um batom, vira-se para a frente,

examina o batom - Não vai durar muito - Procura os óculos - Tudo bem. -

Coloca os óculos, procura o espelho - Não devo me queixar - Levanta o

espelho, começa a retocar os lábios - Como era mesmo aquele verso lindo?

Oh prazeres fugazes, oh pa-pa-pa sofrimento eterno. (BECKETT, 2010: 52)

Dividida em dois atos, Dias felizes mostra uma Winnie bem-humorada no

primeiro, para então revelar certo pesar no segundo. Os dois, sozinhos na colina,

precisam encontrar um novo sistema para passar o tempo. Assim como fazem os

personagens de Fim de partida. Beckett expõe como a condição humana é deficiente e

impotente. Incapaz de superar os próprios problemas. Seus personagens são a escória da

sociedade e agora vivenciam o fim.

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4.2 Recriando o abrigo: a trajetória do espetáculo Quase acabando

Três atores e a difícil tarefa de escolher um texto com poucos personagens e que

contemplasse nossos anseios para o Projeto de Diplomação do curso de Artes Cênicas

de Universidade de Brasília. Depois de algumas frustrações, chegamos ao texto que

mais nos chamou a atenção: Fim de partida. Entretanto, tal espetáculo cede mais espaço

aos dois personagens centrais, Hamm e Clov, prejudicando um dos três atores. A

solução encontrada seria unir, ao primeiro texto, Dias felizes. Em lugar de Nagg e Nell,

Winnie. Transformando em um espetáculo com três personagens. Hamm, Clov e

Winnie presos em um abrigo.

Através da adaptação, a atriz Caroline Morais, que representa Winnie, partiu da

relação entre Nagg, Nell e Hamm, para realizar as inserções de seu personagem. Como

no texto de Fim de partida, onde Nagg e Nell aparecem em blocos de diálogos, assim

aconteceria com Winnie. Entretanto, ao longo dos ensaios, percebeu-se que a

personagem ainda se encontrava apagada, já que ela tomou o lugar de dois personagens

que antes apenas ocupavam o lugar de memória. Nessa ilha em que foi posta Winnie, a

sua relação com os outros personagens e o ambiente em que todos se encontravam

tornara-se apática. Não só sua relação com os dois personagens, mas também a relação

de poder entre Hamm e Clov tornou-se tão frágil, que chegou até a se inverter.

A atenção agora era dada não somente às rubricas do texto, mas também ao novo

ambiente que foi criado com a saída de dois personagens e a entrada dos diálogos de

outro texto. Foi preciso ressignificar a relação entre os personagens: agora Winnie não

apenas ocupava um lugar de memória. Ela representa também o otimismo e a pseudo-

esperança. Estando claro esse lugar, justificar-se-ia mais o mau humor de Hamm e o

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contato que se estabelece entre o personagem e Clov: este personagem, que tem a

possibilidade da fuga, mas não a cumpre, encontra em Winnie um respiro para sua

sobrevivência. Quase acabando tem um abrigo menos armado que em Fim de Partida,

e uma colina menos ensolarada que em Dias felizes. Hamm encontra sua paz ao mandar

em Clov e reprimir Winnie. Clov, agora desprovido de sua cozinha, encontra sua paz

em seus devaneios. Por fim, Winnie continua a falar sem parar, diminuindo ou

pausando em pontuados momentos. O seu Willie ainda está ali em algum lugar, mas,

por vezes, ela joga tal referência para Clov e Hamm que, tal como Willie, pouca atenção

lhe cedem.

4.2.1 Interpretação: o jogo entre os personagens

O ambiente em que está inserido Hamm em Quase acabando é diferente do seu

abrigo original. Portanto, é necessária uma escuta muito maior, por parte do ator, para

que haja um equilíbrio entre as tensões do texto original e as que se fazem necessárias

seguindo a adaptação. Os momentos que denotam poder são em alguns momentos os

mesmos, em outros, não. Nesse mesmo caminho é essencial encontrar novas

justificativas para a acidez, o mau humor e até mesmo o desfrute do descaso com Clov.

Manter as mesmas premissas de Fim de partida é ineficaz já que a inserção da

personagem Winnie cria uma nova configuração.

Entender qual é essa nova configuração é o que irá nortear a interpretação e irá

criar o clima que está estabelecido no novo abrigo. Nesse contexto, a concentração do

ator deve estar não mais voltada apenas para seu personagem, que nesse ponto já está

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construído, mas sim para a cena e suas nuances. Perceber qual o clima que é criado e

para onde vai é o que guia a emoção do personagem, dando o tom necessário para a

cena.

Quase acabando é um espetáculo denso e sério, mas que tem o seu humor ácido.

Assim como todo espetáculo de Beckett. O ator deve manter seu personagem presente e

em sintonia com a cena, através de uma escuta sensível e potente, para que suas falas

reverberem com qualidade no espectador. Estar consciente de que seu personagem não é

a figura central do espetáculo não deve minimizá-lo, pelo contrário: a energia

requisitada é alta o suficiente para dar vida a esses rasgos de poesia. Esse paradoxo não

é o único que o ator vai encontrar nas obras de Samuel Beckett. Sua obra, complexa e

sensível, traz desafios do início ao fim do processo cênico.

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Conclusão

Samuel Beckett constrói universos fechados: suas obras são minuciosamente

trabalhadas e reescritas, até mesmo depois de publicadas. Seu teatro de vanguarda faz

da palavra um artifício desgastado e transforma cada sílaba essencial ao texto. Suas

rubricas ditam o tempo do espetáculo, a densidade da cena, o clima que o autor deseja.

Ao ator, adentrar esses universos já é tarefa difícil. Desafio que se torna ainda maior

quando o objetivo é a adaptação de sua obra. Nós, alunos da turma de Projeto de

Diplomação em Artes Cênicas, não tínhamos a intenção de realizar uma releitura. Pelo

contrário, queríamos expor esse pensamento tal como ele é: a visão da condição humana

deficiente e impotente. Como dito nos capítulos anteriores, esse personagem é apenas

mais um elemento de que Beckett dispõe para enriquecer seu argumento, assim como o

local em que se encontra, os objetos que possui ou quanto tempo permanece em cena. O

universo de Beckett é fechado porque, mesmo quando adaptada sua obra, se o

personagem não estiver dentro do jogo, a cena fica pobre e sem brilho.

Portanto, construir um personagem de Samuel Beckett é construir a cena, o

espetáculo. O maior aprendizado que levo do processo de montagem de Quase

Acabando é que por mais que se tenha definido claramente seu personagem, se não o

faz junto com a construção da cena, será um trabalho em vão. Pois é a partir da

percepção da cena que a equipe tem, em conjunto, que o intérprete finalizará esse

personagem.

Samuel Beckett faz de suas obras um excelente exercício para o ator. Faz

enriquecer suas habilidades e grita seus principais defeitos. O dramaturgo do Absurdo

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se concretiza como um diretor imortal que não aceita no palco algo diferente do que está

no texto. Uma preparação essencial para quem está se formando em Interpretação

Teatral.

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Referência Bibliográfica

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Cosac Naify, 2010.

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____________________ Dias felizes. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

____________________ Esperando Godot. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

● BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo:

Perspectiva, 2004

● CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. São Paulo: UNESP, 1997.

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2004.

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1972.

● OLIVEIRA, Letícia Mendes de. Os avessos do trágico em Samuel Beckett.

Disponível na internet via:

http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_01/artefilosofia_01_03_teatro

_02_leticia_mendes_oliveira.pdf

● PALLOTTINI, Renata. O que é Dramaturgia. São Paulo: Editora Brasiliense,

2005.