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Obra do autor disponível em nosso catálogo: O poder jovem homepage / e-mail do autor: www.booklink.com.br/arthurpoerner [email protected] Outras obras do autor: Assim marcha a família (com José Louzeiro e outros). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. Argélia: o caminho da independência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. O poder jovem - História da participação política dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 e 1979; São Paulo: Edição clan- destina, 1977; São Paulo: Centro de Memória da Juventude, 1995. América, mito e violência (com Cândido Mendes, José Honório Rodrigues e outros). Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 1968. Memórias do exílio (com Abdias do Nascimento, Francisco Julião, Herbert José de Souza (Betinho) e outros). Lisboa: Arcádia, 1976; São Paulo: Livramento, 1978. Nas profundas do inferno. Barcelona: Bruguera, 1978; Milão: Mazzotta, 1978; Rio de Janeiro: Codecri, 1979 (duas edições). Poetas brasileiros de hoje (obra coletiva). Rio de Janeiro: Shogun, 1986. Brizola quem é? Rio de Janeiro: Terceiro Mundo, 1989. Identidade cultural na era da globalização. Rio de Janeiro: Revan, 1997. Leme: viagem ao fundo da noite. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. Candeia: eterna chama (livro-CD com Paulinho da Viola, Sérgio Cabral e outros). Rio de Janeiro: Perfil Musical, 1998. Nossa paixão era inventar um novo tempo (com Bete Mendes, Fernando Gabeira, Apolônio de Carvalho e outros). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. Poesias de jornalistas (obra coletiva). Rio de Janeiro: Habla Comunicação, 2004.

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Obra do autor disponvel em nosso catlogo: O poder jovem Outras obras do autor: Assim marcha a famlia (com Jos Louzeiro e outros). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965. Arglia: o caminho da independncia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966. O poder jovem - Histria da participao poltica dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968 e 1979; So Paulo: Edio clandestina, 1977; So Paulo: Centro de Memria da Juventude, 1995. Amrica, mito e violncia (com Cndido Mendes, Jos Honrio Rodrigues e outros). Rio de Janeiro: Correio da Manh, 1968. Memrias do exlio (com Abdias do Nascimento, Francisco Julio, Herbert Jos de Souza (Betinho) e outros). Lisboa: Arcdia, 1976; So Paulo: Livramento, 1978. Nas profundas do inferno. Barcelona: Bruguera, 1978; Milo: Mazzotta, 1978; Rio de Janeiro: Codecri, 1979 (duas edies). Poetas brasileiros de hoje (obra coletiva). Rio de Janeiro: Shogun, 1986. Brizola quem ? Rio de Janeiro: Terceiro Mundo, 1989. Identidade cultural na era da globalizao. Rio de Janeiro: Revan, 1997. Leme: viagem ao fundo da noite. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1998. Candeia: eterna chama (livro-CD com Paulinho da Viola, Srgio Cabral e outros). Rio de Janeiro: Perfil Musical, 1998. Nossa paixo era inventar um novo tempo (com Bete Mendes, Fernando Gabeira, Apolnio de Carvalho e outros). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. Poesias de jornalistas (obra coletiva). Rio de Janeiro: Habla Comunicao, 2004.

homepage / e-mail do autor: www.booklink.com.br/arthurpoerner [email protected]

Copyright 2004 Arthur Jos Poerner

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, por qualquer meio ou forma, seja digital, fotocpia, gravao, etc., nem apropriada ou estocada em banco de dados, sem autorizao do autor. Capa Rachel Braga Fotos Manifestao estudantil (Arquivo UNE) - capa Praia do Flamengo, Rio, 28 maro 1968 (Arquivo do autor) - 4 capa ISBN 85-88319-43-8

Poerner, Arthur Jos, 1939O poder jovem : histria da participao poltica dos estudantes brasileiros / Arthur Jos Poerner. 5. ed. ilustrada, rev., ampl. e atual. - Rio de Janeiro: Booklink, 2004. Bibliografia. ndice. 1. Jovens - Brasil 2. Movimentos estudantis Brasil I. Ttulo 95-2209 CDD-44098 ndices para catlogo sistemtico: 1. Brasil: Movimentos estudantis: Cincia poltica : Histria poltica 1710-2004 332.440981

Direitos exclusivos desta edio. Booklink Publicaes Ltda. Caixa postal 33014 22440 970 Rio RJ Fone 21 2265 0748 www.booklink.com.br [email protected]

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edico a quinta edio deste livro aos meus queridos pais, ARTHUR e CATARINA, trabalhadores a cujos suores e canseiras devo a minha formao bsica; ao editor NIO SILVEIRA, que teve a coragem de public-lo em plena ditadura militar; aos estudantes que fizeram a segunda edio, clandestina, na grfica da PUC de So Paulo; ao dedicado editor da quarta, VIRGLIO DE ALENCAR SANTANA; ao ex-ministro HLIO DE ALMEIDA e ao ex-deputado JOS GOMES TALARICO, pelas preciosas informaes sobre os primrdios da UNE e pela solidria ajuda durante a minha priso; aos amigos e companheiros da herica resistncia no Correio da Manh ANTNIO HOUAISS e OTTO MARIA CARPEAUX, pelo fundamental incentivo; intrpida jornalista-empresria NIOMAR MONIZ SODR BITTENCOURT, cuja alma guerrilheira liderou a oposio ditadura na imprensa; querida ELIANA, pelo carinho e lealdade de tantos anos de amizade; saudosa companheira de lutas ANITA HELOSA MANTUANO, grande amiga do MST e dos movimentos sociais de que a UNE parte exponencial; e, por fim, a todos os que fizeram e continuam fazendo o movimento estudandil em nosso pas.

A.P.O autor, esquerda, e o gen. Pery Constant Bevilaqua, que prefaciou a primeira edio deste livro, no dia do seu lanamento, na Cndido Mendes, em 26 jul 1968

ARQUIVO DO AUTOR / CORREIO DA MANH

NO TA DO EDIT OR NOT EDITOR

texto da primeira edio de O poder jovem foi concludo aps o assassinato do estudante secundarista Edson Lus de Lima Souto, em 28 de maro de 1968, e o prefcio do general Pery Constant Bevilaqua, neto de um dos fundadores da Repblica, foi fundamental para que a obra pudesse ser lanada, em 26 de julho daquele ano, em noite de autgrafos na Faculdade de Cincias Polticas e Econmicas do Rio de Janeiro (atual Universidade Cndido Mendes). Aps a edio do Ato Institucional n 5, o livro foi um dos primeiros 20 a serem oficialmente proibidos no Brasil, em 1969, mediante portaria do ministro da Justia, Alfredo Buzaid. A Editora Civilizao Brasileira s pde reedit-lo em 1979, naquela que foi a terceira edio. que, durante os 10 anos de sua proibio, houve uma edio clandestina, produzida por estudantes na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. A quarta foi publicada, em 1995, pelo Centro de Memria da Juventude, em So Paulo. O poder jovem estava fora de catlogo desde 1995. Com esta edio, revisada e atualizada, a BOOKLINK procura resgatar a importncia deste livro e da incansvel contribuio de Arthur Poerner para que a participao poltica permanea ativa na atual e nas futuras geraes de jovens do movimento estudantil. Ao mesmo tempo, esta edio parte das comemoraes dos 40 anos de atividades jornalsticas e literrias do autor, que tanto contribuiu e continua contribuindo para que a reflexo crtica esteja sempre presente no jornalismo e na cultura do nosso pas.

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SEGUNDA PARTE A partir da UNECAPTULO VI A fundao, instalao e consolidao da UNE CAPTULO VII A UNE no combate ao Eixo e ao Estado Novo CAPTULO VIII A UNE na Quarta Repblica CAPTULO IX FNFi, escalo avanado dos estudantes CAPTULO X O regime contra os estudantes 13 CAPTULO XI A rebelio dos jovens contra a ditadura CAPTULO XII A radicalizao no governo Costa e Silva CAPTULO XIII O poder jovem em armas CAPTULO XIV A reconstruo da UNE: da volta s ruas destituio de Collor CAPTULO XV Os desafios de um novo tempo: da era FHC ao governo Lula

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S UMRIO

119 143 164 189 201 232 254 268

PREFCIOS

APRESENTAO27

Repto aos estudantes e aos antiestudantes

INTRODUO39 51

Universidade no asfalto, escola de lderes no Brasil

PRIMEIRA PARTE Antes da UNE53

CAPTULO I O estudante no Brasil-Colnia

277

CAPTULO II O estudante no Brasil-Imprio 59

301

CAPTULO III A rebelio da juventude militar 67

DOCUMENTRIOCarta-resposta da Associao Mundial dos Estudantes mensagem da UNE em prol da paz e da neutralidade A represso na FND 78 Proibio de livros 102 Acordo MEC-Usaid para o Planejamento do Ensino Superior no Brasil Carta aberta populao

312 312 315 317 318 324

CAPTULO IV O estudante na Primeira Repblica

CAPTULO V O estudante na Segunda Repblica

GALERIA DE FOTOS BIBLIOGRAFIA FILMOVIDEOGRAFIA NDICE326 342 349 351

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Aldo Rebelo*

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de um operrio, de um lder sindical nordestino ao posto mximo do Pas talvez s tenha comparao com aquela ocorrida l no incio da Repblica, quando um caboclo, tambm nordestino, Floriano Peixoto, que fez sua carreira militar de soldado a marechal, tambm ocupou o posto mximo da Nao. A presena do presidente Lula no apenas importante do ponto de vista democrtico, da ampliao dos horizontes republicanos na nossa histria. tambm importante porque pela primeira vez um representante da classe operria alado pelo voto popular funo mais elevada da Ptria. Esse fenmeno tem um efeito poltico profundo e duradouro. O Pas no ser o mesmo depois da vitria de Lula, independente do que o destino e a histria reservem ao seu governo. A juventude e os estudantes tiveram uma participao importante nessa vitria e merecem um espao especial na realizao deste Governo. Uma das formas encontradas pelo atual Governo a retomada do Projeto Rondon, que pode contribuir para a integrao da juventude. O Projeto Rondon tem a misso de integrar um Pas to desequilibrado e to desigual, e de fornecer juventude a possibilidade de cumprir esse papel, de viajar pelos mais diferentes rinces da nossa Ptria. O nome uma homenagem a um brasileiro que colocou a integrao do Pas como misso de sua vida, o marechal Cndido Rondon, um brasileiro que tinha como av uma ndia bororo, do Mato Grosso, mas essa apenas uma janela que se abre para a participao da juventude. Os estudantes podem e devem participar, nesse governo, da ampliao dos horizontes democrticos, da batalha pela afirmao da soberania nacional e pelo combate s desigualdades sociais que afrontam nossa conscincia patritica e democrtica. A reedio da obra de Arthur Poerner uma homenagem aos estudantes e uma homenagem ao talento e ao patriotismo do autor. Maio de 2004

s estudantes e a juventude marcaram sua presena na histria do Brasil desde os idos da Colnia, quando os estudantes do Rio de Janeiro, em 1710 e 1711, resistiram ocupao da cidade pelos corsrios franceses Duclerc e Duguay-Trouin depois que a cidade fora abandonada pelas tropas regulares portuguesas. Eram estudantes do Colgio Jesuta do Rio de Janeiro e deram uma demonstrao de bravura que no pode ser apagada da memria das geraes de hoje. Os estudantes lutaram pela Repblica, pela abolio. Estudantes como Castro Alves na luta pela libertao dos escravos. Ou estudantes da Escola Militar, como Euclides da Cunha, que deram exemplo em defesa da liberdade e da Repblica. A juventude tem essa marca na histria do Brasil. Foram jovens estudantes que deram a vida para defender a liberdade quando ela nos foi negada, de 1964 redemocratizao dos anos 80. E a partir de 1937, esses estudantes estiveram organizados em torno de sua entidade maior, a Unio Nacional dos Estudantes. Hoje o Brasil vive um novo perodo de luta pela democracia, pela afirmao da soberania nacional e pelos direitos sociais do nosso povo. A eleio do presidente Lula e das foras que lhe do sustentao representa no apenas um marco poltico na nossa histria. A ascenso

*Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Coordenao Poltica e Assuntos Institucionais da Presidncia da Repblica.

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Lindbergh Farias*

uando Arthur Jos Poerner reeditou O poder jovem pela ltima vez, em 1979, eu tinha nove anos. No imaginava que um dia eu mesmo viria a ser um personagem do livro. Nem poderia imaginar que um dia eu viria a participar de acontecimentos que mudaram a histria poltica do Brasil; que um dia eu estaria, junto com milhes de brasileiros, especialmente os estudantes, tirando da Presidncia da Repblica um homem que l chegara pelo voto de mais de trinta milhes de pessoas. Ao participar de todo o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, na condio de presidente da Unio Nacional dos Estudantes, acabei entrando na histria do movimento estudantil. Mais que isso, acabamos mudando uma parte da histria do pas, fazendo jus ao poder que Poerner atribuiu aos estudantes. Li o livro de Poerner quando j estava no Centro Acadmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Paraba e nele me inspirei para continuar uma luta h tantas dcadas por outros comeada e por tantos milhares de estudantes j trilhada. Se antes eu j acreditava ser possvel mudar o mundo, depois dO poder jovem passei a ter certeza de que isso pode ser realidade e que eu era mais um entre os milhares que dedicaram sua vida nsia de construir uma sociedade em que as maiorias possam decidir seus caminhos. O poder jovem mostra que muitos jovens, de norte a sul do pas,

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*Deputado federal Presidente da UNE (1992-1993).

empenharam a vida, ou boa parte dela, na tentativa de criar no Brasil um sistema educacional que promova a igualdade, a fraternidade, a dignidade do ser humano; que leve em conta os anseios da juventude num mundo cada vez mais competitivo e onde as necessidades individuais no so levadas em conta; um sistema de ensino que privilegie as populaes mais humildes; que fortalea a educao pblica e gratuita, bandeira de muitos e muitos anos de luta das entidades estudantis; que oferea ao povo trabalhador oportunidade de conhecer sua histria e preparar o futuro baseado nos erros e acertos das geraes antecessoras. Poerner, jornalista conceituado, ele prprio agente da histria que escreve, no fez o retrato do movimento estudantil apenas sob a tica da vida acadmico-escolar. Foi alm. Retratou com fidelidade a vinculao deste movimento com as batalhas polticas no pas, desde os tempos do Brasil-Colnia. No novidade que a trajetria do movimento estudantil, no s o brasileiro, segue paralela vida poltica onde se insere e, muitas vezes, com ela se confunde ou dela est frente. No exagero dizer que, no Brasil, os estudantes em muitos momentos estiveram adiante de seu tempo, descortinando o futuro, abrindo novos caminhos, forando mudanas de rumos, rechaando o velho e sempre buscando o novo. Os estudantes no se conformam em ver a vida passar na janela da sala de aula sem nela interferir. inerente juventude a rebeldia, a necessidade de contestar, de gritar seu inconformismo com as injustias. O movimento estudantil fiel depositrio dessa vocao libertria juvenil. Com O poder jovem possvel conhecer as aspiraes que movem os jovens em pocas e situaes distintas, principalmente daquelas parcelas que no reprimem sua revolta e se engajam nas organizaes estudantis para melhor colaborar com as mudanas que almejam para toda a sociedade. possvel tambm conhecer os meios, nem sempre ortodoxos, que utilizam para atingir seus objetivos, que se adequam poca e s possibilidades que se lhes apresentam. Somente algum que viveu um perodo dessa histria e que a entende como natural e necessria, no contexto em que se apresentou, poderia escrev-la to brilhante e transform-la no mais importante documento de uma luta que no vai acabar enquanto houver pobreza, discriminao, analfabetismo e desigualdade social. Porque o movimento

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estudantil no se cansa de rejeitar essa realidade absurda. Por isso, est em constante movimento, mesmo que a situao lhe seja adversa, como na poca do regime militar. Mas a persistncia uma caracterstica deste movimento, j constatada pelo saudoso Otto Maria Carpeaux, em 1968, quando previa que muitas outras datas da histria do movimento estudantil viriam. Vieram. E esto retratadas por Poerner nesta atualizao de O poder jovem. Resta-nos a esperana de que a prxima atualizao deste livro j retrate uma realidade em que toda a luta estudantil tenha sido vitoriosa no sentido pleno, de j termos atingido a sociedade justa que tantos buscaram.

Junho de 1995

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General Pery Constant Bevilaqua

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livro de Arthur Jos Poerner, O poder jovem Histria da participao poltica dos estudantes brasileiros, vem preencher uma lacuna em nossa bibliografia. No do meu conhecimento, pelo menos, a existncia de uma obra que trate do assunto como o fez o autor, que jovem e talentoso estudante do ltimo ano de Direito e um passional da liberdade. s vezes, o leitor surpreendido com uma irreverncia ou uma divergncia mais acentuada de ponto de vista. natural (no esquecer que o autor um jovem e ns assistimos passagem do sculo). Nada mais difcil do que apreciar fatos e julgar os outros, principalmente os contemporneos. O autor, por exemplo, parece admitir ou transigir com as greves polticas e eu s admito greve para reclamar o cumprimento de sentena judiciria que esteja sendo desrespeitada, isso mesmo em atividade que no seja considerada essencial coletividade. Entendo que, cabendo Justia do Trabalho, rgo do Poder Judicirio e o Poder Judicirio, em nosso pas, a cpula do Regime , ser contrasenso admitir que determinado grupo social a ela no recorra, ou que, recorrendo, a ela no se submeta para procurar impor sua vontade pelo violento recurso da greve. uma flagrante incoerncia, em um pas juridicamente organizado, a existncia paralela de uma Justia do Trabalho, integrante do Poder Judicirio, e o chamado direito de greve. Admitir o direito irrestrito de greve conceder aos dirigentes grevistas um superpoder que, sobrepondo-se ao prprio Poder Judicirio,

em proveito prprio, isto , julgando em causa prpria, decide sobre o destino da ordem econmica e social do pas. Isto ditadura exercida por uma classe sobre as demais e o bolchevismo nada mais do que a ditadura exercida por um pequeno grupo em nome do proletariado. As lutas de classe atravs de greves das atividades essenciais, se coordenadas, podero levar sedizente ditadura do proletariado em que este, porm, estar sempre do lado oposto ao cabo do relho, qualquer que seja a mo que o empunhe. Todas as ditaduras tanto da esquerda como da direita so igualmente execrveis, por serem liberticidas. A democracia, que deve ser preservada e mantida atravs do voto livre e consciente do cidado, , antes de tudo, um sistema de convivncia com dignidade e, portanto, com liberdade. sempre oportuno repetir o pensamento lapidar de Benjamin Constant, o fundador da Repblica, expresso em 2 de fevereiro de 1887, em plena Questo Militar: ... Se no regime democrtico condenada a preponderncia de qualquer classe, muito maior condenao deve haver para o predomnio da espada, que tem sempre mais fceis e melhores meios de executar os abusos e as prepotncias. A esse respeito, em Revolvendo o passado, escreve Tasso Fragoso: No se pode ler sem emoo to elevado pensamento enunciado por um soldado! O conceito indestrutvel; est de p e estar em todos os tempos. S no o reconhecero os que tiverem alma de subserviente ou de tirano. Quanto s nossas poucas divergncias, poderamos dizer, como Voltaire, no concordo com uma s palavra do que dizeis, mas defenderei at a morte o vosso direito de diz-lo. Mas, o livro de Poerner um documentrio bem concatenado da atividade cvica da mocidade estudantil, ao longo da histria, desde quando o Brasil ainda no existia como nao. Ele focaliza, assim, a contribuio dos moos estudantes na construo da prpria ptria, que a associao da ptria fsica, com os seus encantos naturais, ptria moral, com a sua histria, que o repositrio de suas belezas morais. Esta a alma vivificadora daquela. A mocidade brasileira, como mostra o autor, esteve sempre presente, ou foi pioneira, nos grandes movimentos cvicos que a nossa histria registra, tal como ainda no perodo colonial, em 1710, os jovens estudantes, capitaneados por Bento do Amaral, atacaram, de surpresa, as foras francesas invasoras do Rio de Janeiro, muito superiores em nmero e em armamento, ao comando de Duclerc, e as encurralaram no Trapiche da Cidade, onde vieram a capitular.

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Em seguida, descreve Poerner os passos dados por Jos Joaquim da Maia, em 1786, junto a Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos da Amrica na Frana, solicitando o apoio americano para a causa da nossa independncia. Vem depois a magnfica participao da mocidade estudiosa na Inconfidncia Mineira. E brilhante e decisiva seria a sua participao nas campanhas abolicionista e republicana. Aquela, que empolga a inteligncia e o corao da juventude civil e militar brasileira, gerou a criao de clubes e associaes estudantis, destinados a alforriar escravos, nas faculdades e escolas, inclusive na tradicional Escola Militar, da Praia Vermelha, que era toda uma verdadeira sociedade abolicionista os alunos adquiriam em leiles, com fundos da Sociedade, ou muitas vezes escondiam escravos em suas repblicas, em Botafogo, at a partida de um navio para o Norte, quando oficial do Exrcito passageiro, que no levasse empregado, recebia, ltima hora, com passagem para criado, requisitada de acordo com a lei, um preto proveniente de uma daquelas repblicas para desembarcar no Cear, que, desde 25 de maro de 1884, havia proclamado a libertao dos cativos, antecipando-se, assim Lei urea em mais de quatro anos! Por isso o Cear denominado a Terra da Luz, porque foi naquela ento provncia nordestina que jorrou, em primeiro lugar, a luz da liberdade para os nossos irmos de cor. Foi nessa poca que o divino poeta da ptria, o jovem Castro Alves, produziu os belos poemas Navio Negreiro, Vozes dfrica e outros, verdadeiros petardos atmicos, postos nos alicerces da infame instituio e que tanto contriburam para apressar a aurora da redeno dos cativos, mas as conseqncias de mais de trezentos anos de degradante escravido deixaram seqelas terrveis de que ainda no nos libertamos. Depois de passado oitenta anos, muitos agem como se fossem, ainda, capatazes ou senhores de escravos, e outros... como se fossem escravos... Durante a Campanha Abolicionista se produziu talvez a primeira greve de natureza poltica que a nossa histria registra e qui a nica greve poltica justa: a greve dos jangadeiros do Porto de Fortaleza, capitaneados pelo jangadeiro Nascimento, alcunhado o Drago do Mar. Consumada a Abolio no Cear, em 25 de maro de 1884, como foi dito, pretenderam os senhores de escravos salvar prejuzos, exportando seus escravos para vend-los no Sul, especialmente, em So Paulo, onde alcanavam alto preo nas lavouras de caf ou nas plantaes de cana-

de-acar do Estado do Rio de Janeiro. Com a recusa dos jangadeiros de transportarem os pobres pretos, de terra para bordo dos navios que ficavam fundeados ao largo, no puderam efetuar as pretendidas exportaes de escravos e ficaram eles homens livres, na bendita Terra da Luz! nica greve poltica decente que eu conheo. A mocidade deu o seu sangue generoso em defesa do Brasil, alistando-se nos Batalhes de Voluntrios da Ptria que seguiam para o teatro da guerra do Paraguai. Assim tambm contribuiu para defender e consolidar a Repblica ao lado do Marechal Floriano Peixoto. O autor segue acompanhando todas as atividades cvicas e agitaes estudantis, desde aqueles dias de intenso idealismo das campanhas da Abolio e da Repblica e que foram certamente a fase mais brilhante da atuao poltica da nossa juventude, ao longo da nossa histria, at os nossos dias. E de justia reconhecer que ela esteve sempre altura de seus grandes lderes e foi digna desses guias gerados nas entranhas da histria. Em recente visita ao Brasil, disse a um jornal do Paran o padre Pedro Arrupe, o Papa Negro, que o Brasil um pas sem lderes e negou que as exploses da juventude sejam prejudiciais, desde que contem com o carinho dos mais velhos. Assim se expressou, cheio de sabedoria, recordando a gloriosa gerao de 1889, o lcido esprito de Tasso Fragoso: Fomos instrumento inconsciente de todos os nossos antepassados que haviam pago com a vida o desejo de confiar o pas a instituies democrticas. na mocidade que se cultivam grandes ideais. Os moos mal entrevem a maldade humana. No atentam na astcia e dissimulao de certos indivduos. Cedem, de preferncia, aos estmulos nobres. Pem confiana inabalvel no poder das idias sedutoras. No duvidam um s instante de que os nomes possuam o condo maravilhoso de transmudar, de modo subitneo, os homens e o governo social que eles exercem. Sem os arroubos da mocidade, o seu devotamente e as suas esperanas, seria impossvel modificar a estrutura da sociedade. Eu tinha vinte anos e havia muitos da minha idade, embora no faltassem velhos. Fora educado na Escola Militar, foco ardente de nobreza e idealismo, de destemor e devotamente ao Brasil. Era discpulo de Benjamin Constant, tipo excelso de mestre sem-par. Vamos tudo atravs dele. A Repblica seria fatalmente o que ele imaginava, o que ns, seus discpulos, imaginvamos; nela teriam, todos, o lmpido carter, a desambio e a

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inteireza moral do mestre (Revolvendo o passado, Jornal do Comrcio, Rio de Janeiro, 1940). A mocidade , assim, sinnimo de generosidade. Quase invariavelmente, ela esposa as boas causas; somente por equvoco poder desviar-se, temporariamente dos rumos certos, democrticos, patriticos, cristos, nacionalistas. Comunistas, certamente, haver entre os jovens estudantes, mas, em nmero muito inferior ao que se admite, pela leviandade com que se tacham, geralmente, e se confundem nacionalistas com comunistas. A trincheira natural contra o comunismo o nacionalismo. Idias se combatem com idias e no com a fora. ideologia comunista, que internacionalista, deve ser oposta a ideologia nacionalista. E o nacionalismo sempre teve boa aceitao nos meios universitrios. , assim, com tristeza que vemos hoje a injustia campear em relao nossa mocidade estudantil e s suas organizaes de classe. Exceo de pequeno perodo de sombra em que a UNE esteve controlada por elementos no representativos da maioria da classe, tem ela uma honrosa tradio democrtica. Conforme assinala o autor, nasceu a UNE na Casa do Estudante do Brasil, entidade simptica ao poder pblico, onde o Conselho Nacional de Estudantes, depois de instalado, solenemente, pelo ministro da Educao, efetuou, em 12 de agosto de 1937, a sua primeira sesso ordinria, dirigida pela presidente vitalcia e fundadora daquela Casa, sra. Ana Amlia Queiroz Carneiro de Mendona. A seguir, o autor faz o seguinte registro-comentrio: Dois detalhes nos do idia do clima de bem-aventurana celestial que predominou nessa reunio inicial: 1) o encontro foi encerrado com um chocolate oferecido pela Unio Universitria Feminina aos delegados dos Estados que se fizeram representar (So Paulo, Cear, Bahia, Paran, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais); 2) aprovou-se, logo de sada, uma proposta do representante do Diretrio Central de Estudantes de Minas Gerais, proibindo, expressamente, a discusso de temas polticos. Como o homem um animal poltico, segundo Aristteles, no 2 Congresso Nacional dos Estudantes, promovido pela UNE, no Rio de Janeiro, em 5 de dezembro de 1938, ao contrrio do ocorrido no 1 Congresso, um ano antes e vem ocorrendo , houve a apresentao de vrias teses polticas, inclusive o envio de um telegrama que no deixa de ter significao poltica, de apoio ao embaixador Afrnio de Melo Franco, que chefiava em Lima a delegao brasileira 8 Conferncia

Pan-Americana, na forma de uma calorosa mensagem da juventude de nossa ptria juventude de todas as Amricas, fazendo votos pela vitria ampla e final dos princpios inviolveis da democracia, da paz e da liberdade, neste hemisfrio, numa concepo de vida social sem preconceitos de raas, dios religiosos ou minorias de qualquer natureza. A preocupao com os problemas nacionais, luta contra o analfabetismo, providncias para pr termo a limitaes do nmero de vagas nas escolas superiores, manifestavam-se em muitas das 60 teses discutidas em 13 sesses plenrias, como enumera o autor, algumas ainda de absoluta atualidade e de grande interesse nacional. Conforme pe em justo destaque o autor, a campanha contra o Eixo se desenvolve de 1942 a 1945, perodo a que muitos se referem, com certo saudosismo, como os melhores tempos da UNE. Os estudantes se bateram, ento, sucessivamente, pela derrota do nazifascismo internacional e pela democratizao nacional. uma fase que abrange a posse na presidncia da UNE de Hlio de Almeida, futuro ministro da Viao e Obras Pblicas do governo Joo Goulart. No incio da Segunda Guerra Mundial e mesmo depois do ataque japons base norte-americana de Pearl Harbor, quando havia, aqui, pessoas de prestgio que pretendiam levar o Brasil a alinhar-se com as potncias do Eixo, a mocidade estudantil, mobilizada pela UNE e demais entidades representativas de estudantes, constituiu-se em vanguardeira das manifestaes de rua e dos movimentos de massa antifascistas, estimulando o crescimento, no Brasil, da corrente partidria dos Aliados, que se irradiava, assim, em conseqncia da UNE e daquelas demais entidades estudantis, bem como da Sociedade dos Amigos da Amrica, com Oswaldo Aranha e o general Manuel Rabelo, e da Liga de Defesa Nacional, para todo o pas, conforme assinala o autor. Mostra este, ainda, que a UNE teve participao ativa na promoo da histrica passeata realizada em 1942, no dia em que se comemora a proclamao da independncia dos Estados Unidos, 4 de julho, exibindo cartazes, pedindo a entrada do Brasil na guerra, ao lado dos Aliados. A UNE tem, pois, um acervo de servios causa da democracia que lhe do destacado lugar na histria da defesa da liberdade. Tomou, tambm, parte ativa em vrias campanhas meritrias, como a da nacionalizao do petrleo e a da implantao da siderurgia pesada. Foi, assim, um ato menos justo a cassao da UNE, pelo governo passado. Tambm constitura um ato injusto a extino do 3 Regimento de In-

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fantaria, aps os vergonhosos e revoltantes acontecimentos ocorridos em seu quartel, em 27 de novembro de 1935, quando a unidade foi dominada pelos comunistas que se revoltaram, tendo havido, entretanto, militares que reagiram e morreram dignamente. Durante algum tempo desapareceu do rol das unidades do Exrcito a velha Unidade, sendo, com o seu casco, criado em Niteri o 14 R.I., voltando, mais tarde, o governo, num ato de justia, a restabelecer a denominao do Regimento que havia sido vtima da intentona comunista, tal como a UNE, que chegou a ser dominada pelos comunistas, em curto perodo sombrio de sua vida. O mesmo ocorreu, em certa poca, com a gloriosa Liga de Defesa Nacional, fundada por Olavo Bilac e outros patriotas, mas, felizmente, ningum pensou em extingui-la. Sendo o alistamento e o voto obrigatrios para todos os brasileiros a partir dos 18 anos, natural e de se desejar que os estudantes se interessem, desde cedo, pela poltica de seu pas. Triste seria se fossem eles indiferentes e apticos. Gozam dos direitos estabelecidos na Constituio para todos os cidados. Constituem os jovens estudantes uma florao humana caracterizada por estuante patriotismo e que se destina a assumir, em futuro prximo, postos de responsabilidade na direo dos destinos de nossa ptria. uma classe que, mais do que tudo, necessita de bons exemplos, e de compreenso; de cordura, de simpatia e de amor, o que no exclui, bvio, energia serena, quando necessria para educ-la submisso autoridade dentro da lei e que no pode ser confundida com degradante autoritarismo. No seremos, porventura, ns, os mais velhos, responsveis por nossas omisses ou por maus exemplos por certos procedimentos menos elogiveis desses nossos compatriotas? No estaro, muitas vezes, refletindo, com atitudes errneas, os maus exemplos do ambiente em que vivem, os defeitos dos seus prprios preceptores? Ns, os mais velhos e eu, com quase 69 anos de idade, sinto bem o peso desta responsabilidade somos, geralmente, culpados, por aes e por omisses, dos defeitos de educao dos nossos semelhantes. Precisamos ser intransigentes com os princpios e tolerantes com as pessoas. Nenhum erro merece mais compreensiva benevolncia do que o praticado com boa inteno. E esse, quase sempre, o caso dos extravasamentos de disciplina dos jovens estudantes. Com Rui Barbosa, entendo que, fora da ordem jurdica, no haver salvao. A UNE, em seu perodo de trevas, quando divorciada do

sentimento dominante dos estudantes brasileiros, que no so, em sua maioria, comunistas, andou, em certa poca, em vergonhoso conbio poltico com o famigerado CGT, rgo esprio e tambm sem representatividade legtima da nobre classe operria; quele ajuntamento ilegal e mal-intencionado denominei, com justia, em Nota de Instruo n 7, de 15 de setembro de 1963, quando no Comando do II Exrcito, de serpentrio de peonhentos inimigos da democracia, traidores da conscincia democrtica nacional. Pelo que se l no ltimo captulo deste livro, o 29 Congresso da UNE, realizado, clandestinamente, em um convento em Campinas, aprovou algumas resolues que merecem integral apoio, e outras, formal condenao. No primeiro caso est a condenao internacionalizao da Amaznia (Projeto Hudson Institute); no segundo, a Aliana OperrioCamponesa-Estudantil e a luta contra o decreto da militarizao dos mdicos, farmacuticos, dentistas e veterinrios. H um equvoco da parte desses moos. O decreto a que se referem os beneficia; visa a conciliar os interesses dos estudantes com os do Servio Militar a que os mesmos esto obrigados, mediante estgio, aps o curso acadmico, sem perturbao, assim, dos seus estudos e trabalhos escolares e, simultaneamente, traz benefcios para as Foras Armadas. A projetada Aliana Operrio-Camponesa-Estudantil arma poltica, esdrxula, margem dos partidos, e poder conduzir a greves nas atividades econmicas essenciais que so proibidas pela Constituio. A UNE, pelo seu passado democrtico, deveria voltar legalidade, eleger, mediante sufrgio geral, obrigatrio e secreto, o seu Conselho Nacional de Estudantes, que rgo mximo de representao nacional dos estudantes. A este, ento, caberia anular as resolues adotadas em seu nome, por quem no tinha representao legtima. Ao encerrar estas palavras, no quero deixar de aplaudir a idia do autor de promoverem os estudantes um programa de assistncia social, compreendendo uma campanha de alfabetizao e de prestao de assistncia mdico-dentria, tcnico-habitacional e judiciria, populao que vive nas favelas da Guanabara, semelhana do Projeto Rondon-1, em boa hora idealizado e concretizado pelo Exmo. sr. General Afonso de Albuquerque Lima, ministro do Interior, nas regies fronteirias da Amaznia. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1968

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APRESENT AO* APRESENTAO*

REPTO AOS ESTUDANTES E AOS ANTIESTUDANTESAntnio Houaiss

ste um livro extremamente importante para a intelligentzia brasileira. Tanto para a que j se cr tarimbada no ofcio de pensar e exprimir-se em termos da realidade nacional, quanto para a que est no umbral desse ofcio. Deveria, por isso, ser lido (e esperemos que o acontea) por todos os que, a pelos treze anos de idade, entram na fase das preocupaes sociais, at os que, a pelos noventa e nove anos, principiam a desgarrar-se de todas as preocupaes. Constitui uma tentativa de balano da histria do movimento estudantil brasileiro, da colnia aos nossos terrveis dias. , por conseguinte, um corte longitudinal de nossa histria, de cujos feixes de concomitncias e interinfluncias se elege um s tipo, ou grupo, ou categoria de fenmenos os ligados ao lento emergir de uma conscincia poltica estudantil global, cuja consistncia vai tomando corpo medida que a coletividade em que se inserem esses fenmenos vai deixando de ser um corpo social compulsoriamente aglomerado por foras externas atuantes de cima para baixo, para passar a ser uma nao politicamente organizada ou uma nao no limiar crtico de sua verdadeira organizao poltica, j que ainda , por suas decantadas elites, telecomandada. Precisamente porque um balano da histria que ainda no fora escrita em sua inteiridade do movimento estudantil brasileiro, o autor se viu no penoso dever de enfrentar a tarefa de delinear essa histria,

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* Apresentao da 1 edio, em 1968.

balanceando-a ato contnuo. Essa histria era anedoticamente referida aqui e ali no passado, mas no pensada ainda em seus estgios sucessivos, em suas sucessivas estruturaes, em correlao com a histria geral do pas. Dessa primeira tarefa o autor se sai esplendidamente, indo ao que de melhor j havia escrito a respeito, indo aos prprios participantes, quando ainda vivos, e oferecendo-nos uma seqncia de quadros vlidos. Desses quadros repontam claras algumas caractersticas, que vale consignar. Primeiro, reponta a crescente importncia do movimento estudantil dentro da nossa histria global, pois que, de incio, ele apenas espasmdico, fazendo-se sentir sobretudo nos momentos cruciais de nossa sobrevivncia coletiva em pontos esparsos do territrio que viria a ser o nacional, para, aos poucos, procurar ser mais presente e constante, em atuaes muito mais formais que essenciais, para, por fim, j agora, tentar tomar conscincia de si mesmo, de sua significao e funo dentro do todo, de suas possibilidades e de suas limitaes reais. Segundo, reponta a crescente tomada de conscincia do movimento estudantil brasileiro, que pela maioria dos seus ativistas sabe ser seu destino o destino da nao como um todo e, por conseguinte, no pode aspirar a ser nem mais nem menos do que a nao como um todo. Terceiro, e como corolrio, reponta a insero, nessa tomada de conscincia, da categoria da histria planetizada, pois que aquela maioria compreende que, assim como as aspiraes estudantis brasileiras podero ou no realizar-se se a nao vier ou no a realizar-se nas suas possibilidades e aspiraes, tambm a nao brasileira poder realizarse nas suas possibilidades e aspiraes como um todo na medida em que a sociedade humana como um todo vier a poder realizar suas possibilidades e aspiraes como um todo: planetizao e totalizao. Noutros termos, cada estudante brasileiro de hoje tende a saber com uma acuidade crescente em funo dos estrangulamentos objetivos que a nossa sociedade lhe for oferecendo que a histria do seu povo, que a sua (de seu povo e dele, indivduo) histria tem sido uma continuada histria de imposies externas s suas vocaes e que s atravs da luta crescente contra essas imposies poder ele povo ou estudante realizar-se a si mesmo, conforme sua vocao. A categoria histrica estudante brasileiro , assim, necessariamente uma categoria problemtica e tende a ser, hoje em dia, necessariamente uma tomada de conscincia social, vale dizer, poltica. O estudante brasileiro se de-

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fronta, hoje, na medida em que penetra a sua problemtica, com esta antinomia: ou me realizo com o meu povo, ou me realizo contra o meu povo. Ou me identifico com o destino do meu povo, com ele sofrendo a mesma luta, at sairmos todos vencedores, luta em que muitos sofrimentos e dor haveremos juntos de sofrer; ou me dissocio do destino do meu povo, juntando-me (como aliado, preposto, lacaio, servidor, ttere, fantoche ou joguete) aos que exploram esse povo. Mas j a ter tido uma luz da natureza da problemtica e no poder furtar-se a uma conscincia inquieta: ao dissociar-se desse povo, ao juntar-se aos que o exploram, saber que esse povo sair um dia vencedor: procurar esse ex-estudante, desse modo, no pagar o preo do que sabe ser uma abdicao e perjrio e se esforar por que, a emergir tal vitria, venha ela depois que ele tenha gozado a vida, aliando-se aos que amarram a histria, a querem domesticada aos seus interesses, a querem imobilizada. O autor, fazendo, destarte, a histria do movimento estudantil brasileiro, no a faz desinteressadamente, ao contrrio, pois que a faz com um duplo interesse, no mnimo: primeiro, o de ver se dessa histria se depreende de fato alguma lio; segundo, captando essa lio, o de exibi-la no seu balanceamento, conforme sua pessoal maneira de julgar, que busca, sem ambages, uma objetividade interessada. , assim, este livro uma obra engajada, mas sem mistificaes, pois que mostra o engajamento em toda a sua sinceridade. E tem com isso um dos seus maiores mritos: os estudantes brasileiros mais definidos nas suas posies de luta estudantil e poltica podero divergir sem equvocos do autor. Alguns julg-lo-o demasiado avanado, e sero poucos; outros, e sero a maioria, julg-lo-o demasiado timorato nas suas afirmativas. O que coloca um problema capital dentro do movimento estudantil brasileiro deste instante, que poderia chamar-se a precipitao da tomada da conscincia do movimento com a cristalizao de concluses ou posies eventualmente radicalizadas alm das possibilidades histricas presentes. Mas o fato que o autor no s julga a histria que esboa, como emite suas opinies crticas, seguindo corajosamente lio de engajamento intelectual que o antpoda da objetividade neutra que se furta a afirmar ou concluir. Esse engajamento e sua explicitao so de extrema utilidade: permitem o debate, na leitura, contra o prprio autor e permitem, ademais, que o leitor possa, acaso, ver que suas prprias opinies podem tambm ser debatidas o que uma excelente lio de prtica democrtica viva.

A outra lio que se depreende, aqui, que entre a idade do autor e a dos estudantes objeto de seu estudo e pesquisa no intermedeiam, em mdia, nem sequer os anos necessrios para uma curta gerao de dez anos: muitos dos nossos estudantes so pouco mais moos, quando no da mesma idade, que o autor. Da, na presuno de que a muitos deles as posies do autor venham a ser consideradas tmidas, o perguntarmos: ser que os estudantes brasileiros tendem radicalizao total, negando viabilidade ou utilidade para o dilogo com as geraes anteriores, porque esto certos de que estas, ativa ou passivamente, se acham inseridas numa estrutura social contra a qual no lutam, mas estrutura que a seus olhos cumpre por todos os meios e modos destruir, a fim de construir a estrutura social de que possa, penosa mas fecundamente, emergir a nova forma de vida social que d a cada indivduo, indiscriminadamente, reais possibilidades de realizar-se vocativamente, no sentido de cada um dar ao todo social mais do que dele tire para seu gozo individual? O grau de importncia deste livro se mede pela soma de desafios que encerra inteligncia brasileira e antiinteligncia florescente no Brasil. Repto aos estudantes, repto aos antiestudantes. Expliquemo-nos. O movimento estudantil brasileiro tem sido, periodicamente, vtima tanto de suas veleidades de autonomia dentro do processo histrico brasileiro quanto de suas veleidades de onipotncia em certos momentos crticos. O repto que este livro proporciona, no respeito, o de oferecer provas, historicamente abonadas, de que os estudantes no constituem uma classe social e, por conseguinte, no podem ter uma poltica autnoma, em oposio a classes que reputem antagonistas ou em coligao ou solidariedade com classes que reputem aliadas, pois tudo a que podem aspirar (e imenso isso), politicamente, funo de pensadores e agentes de uma estratgia social que vise determinadamente a fins sociais dentro dos quais se possam concretizar suas aspiraes de estudantes e qual continuem fiis quando fludos seus anos de estudantes. Assim, a universidade, o colgio, o ginsio, a escola, o corpo docente, os currculos, a pesquisa, a ps-graduao, a atuao profissional, seu rendimento, sua produtividade sero ou no sero aquilo a que almejam na medida em que a sociedade como um todo puder renovar-se para que aquelas funes preencham os fins desejados. Vero, ento, os estudantes que existe um realismo poltico que consiste, no nosso meio, em diminuir o nmero de centros de estudo, em torn-los auto-suficientes e mesmo

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rentveis como empresas privadas propiciadoras de lucros, em faz-los imagem e semelhana, na forma e na funo, aos de certas sociedades ditas avanadas, como quistos formadores de elites antinacionais salvadoras, mas imobilistas do processo social. Como vero, tambm, que existe outro realismo poltico, que consiste em sacrificar obstinadamente, pela luta poltica, at os ltimos cartuchos, a fim de que os centros de estudo e pesquisa possam ser o foco produtor dos homens capazes de pensar os nossos prprios problemas e solv-los na sua especificidade nacional, na linha dos interesses da grande maioria da nao. Maioria que se define e toda alternativa realista de longo prazo redunda em imobilismo pelos prias analfabetos que so mais do que a metade da nao, subnutridos endmicos que so dois teros da nao, pelos subempregados e desempregados e inempregveis que no se sabe quantos sejam mas so seguramente legies, pelos futuros marginalizados que so a imensa maioria da juventude brasileira.Dessa imensa massa, os bem-pensantes oficiais delegam a uma minoria um s dever e um s direito o de estudarem , ainda que para isso s contem com centros de ensino deteriorados, professores explorados (com uma minoria parasitria) e carncia quase completa de recursos docentes e discentes. O direito e o dever de s estudar, aquela frao da juventude brasileira conquista-o atravs do privilgio de freqentar uma escola primria, privilgio que se privilegia mais ainda no ingresso na escola secundria e que se faz irriso numrica quando se trata do ensino superior. Desse modo o estudante brasileiro, planetizado e totalizado, tem, para os bem-pensantes, no albor mesmo da vida, de limitar-se a estudar, deixando que o resto seja feito por quem pode a saber, os homens velhos que lhe legaro um pas cada vez mais inado de problemas, cada vez menos soberano, cada vez mais impotente, cada vez menos nacionalmente caracterizado, cada vez mais pariamente asiatizado (com referncia a uma sia anterior ao seu atual despertar). Mas h outro repto que os estudantes brasileiros devem enfrentar e que este trabalho lhes oferece: o de sua desplanetizao, o de sua destotalizao, o da iluso de que, resolvidos seus problemas, se resolvem os problemas nacionais e mesmo internacionais. Pois que, de fato, tero eles breve que fazer face ao aliciamento e s sedues que se armaro contra suas atuais posturas filosfico-polticas, a partir do momento em que se ensejar, para o poder, a oportunidade de recolher a prtica poli-

cial da coero bruta pura e simples. que os antiestudantes no ignoram o que , quantitativamente, o movimento estudantil brasileiro. No sendo classe, sendo, ao contrrio, filhos, em maioria, das classes economicamente mdias e, em minoria nfima, das classes economicamente altas, os estudantes no podem pretender ser superiores aos seus homlogos de outros pases subdesenvolvidos. Como podero eles superar os riscos da pendularidade tpica das classes ditas mdias nos pases subdesenvolvidos, continuamente insatisfeitas, mas continuamente impotentes para verem mais longe do que a iluso de satisfao de suas necessidades imediatas? Como podero estar certos de que, ante um estado (ou Estado) de coisas que lhes d, dia a dia, provas sobejas de sua impotncia para estimular o processo social no sentido do interesse nacional, no mudaro eles no momento em que esse mesmo estado (ou Estado) de coisas puder dar-lhes algumas nugas aristocratizantes com que possam satisfazer suas aspiraes imediatas? Como podero estar os estudantes brasileiros certos de que, como os indonsios por exemplo, no sero eles, pelo menos por uma frao poderosa, a cabea-de-ponte de uma reao pura que, apeando maus governantes, venha a ser a base para a emergncia e consolidao de muito piores governantes? Este livro, alis, mostra que no seio do movimento estudantil brasileiro j lavraram (e lavram) tendncias direitistas. Mas que so elas, comparadas com as que podem brotar no contexto atual, at serem ponte de transio para o fascismo subdesenvolvido moderno? Se a histria do movimento estudantil brasileiro no d exemplo concreto pregresso disso, segue-se que sua possibilidade inexiste? Na prtica, este livro mostra como, desde sempre, o mpeto reivindicatrio dos estudantes no raro decresce no nvel universitrio entre aqueles que, no ano de concluso, comeam a vislumbrar perspectivas de colocaes, empregos ou meios de ganhar a vida, para os quais se exijam qualificaes de seriedade e compostura. Isso no pode ser, ainda que como hiptese de trabalho, extrapolado para contextos mais amplos, em que o elitismo tecnocrtico possa ser a promessa certa, para um nmero limitado de estudantes e um nmero correspondente de bons empregos? No se est indo a caminho disso? Aos estudantes, estud-lo na prpria condio e nas prprias aspiraes, cabendo-lhes optar se sero os eleitos da tribo ou se no aceitaro essa condio de excepcionalidade aristocratizante o que, afinal, no ser uma mera opo, mas algo mais, algo como a aceitao de uma dependncia nacional sem remdio a certos pases ditos

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desenvolvidos, ou algo como a deciso de lutar por uma independncia nacional que nos leve a um efetivo progresso social. Que este livro um repto tambm aos antiestudantes. No enigma nenhum o que seja o antiestudante: so os velhos, essas geraes que representam no Brasil a minoria fragorosa da nao, em afunilamento progressivo que principia nos que entram na casa dos trinta anos de idade e principiam a achar sagradas suas conquistas pessoais, e se estreitam mais e mais, de tal modo que a pelos sessenta passam a ser uma porcentagem mnima do todo social a deter os comandos do processo social todo inteiro, j direta, j indiretamente, pelos velhos de trinta ou mais anos. Se se tratasse de uma hierarquia social etria, nada teria em si de objetvel, como smbolo, sintoma, mostra ou prova de um acmulo de saber e fazer prtico-tericos. Mas, nas condies estruturais do subdesenvolvimento que aceitou sem tugir nem mugir o telecomando, so nesses grupos etrios e seus prepostos que se colhem as finas flores do obscurantismo e do imobilismo social, as finas flores do filistesmo, as finas flores das aspiraes ao corporativismo social do gnero aos operrios, trabalhar, aos estudantes, estudar, aos sacerdotes, rezar (no ousam dizer, conseqentemente, aos militares, militar) e a eles, o resto entendendo-se por resto a direo da sociedade, a disposio do seu presente, o feioamento do seu futuro e o legado s geraes seguintes de uma quase inviabilidade nacional ou, no mximo, uma herana melanclica de mazelas acumuladas cuja soluo no poder ser seno catastrfica (mas quando eles j no existam para sofrerem tambm a catstrofe que tero ensejado por sua prpria impotncia social e prepotncia de classe). O repto deste livro aos antiestudantes, no presente, de uma clareza meridiana: ele lhes mostrar que as agitaes estudantis no so mero capricho ou fantasia de contaminados por idias, mas profundamente motivadas. Ele lhes mostrar se quiserem ver que elas derivam: 1) do sacrifcio ingente de poderem ingressar em centros de estudo; 2) do desencanto trgico quanto qualidade (a quantidade j era uma fraude) do estudo nesses centros; 3) do seu esforo por qualificar, nesses centros, o estudo, atravs de pedidos e reclamaes insuladas da problemtica geral do pas; 4) da impotncia de o conseguirem, porque essa m qualificao no um dado isolvel do contexto social; 5) da lenta aquisio da certeza de que a qualificao e a quantificao do dado particular estudo e ensino tero que ser funo e efeito de igual

processo no todo social; 6) da tentativa de mostr-lo aos antiestudantes e faz-los compreender; e, 7) da resposta deles recebida, o tratamento policial marginalizante, acompanhada de opes aristocratizantes do ensino. Isso tudo. E, ademais, cotejos inevitveis: por exemplo, a cota-parte do produto nacional bruto consumida irreprodutiva e imobilisticamente no aparelho e aparato de coero policial-militar, num tratamento incomparavelmente preferencial do estado (ou Estado) de coisas. Que espcie de concluso podem os estudantes tirar, pelo menos em sua maioria? A radicalizao a resposta radicalizao do outro lado pois os polticos, civis ou militares, a quem tudo isso (e muito mais) devera estar presente, tm presente tudo, menos isso to relegado est o problema educacional brasileiro (e com ele o nacional) undcima hora da desconsiderao, apesar de que h j pelo menos um sculo vem ele sendo triangulado (como se dizia ao tempo de Andr Rebouas) e equacionado (como se diria ao tempo herico da Associao Brasileira de Educao) e conscientizado (como dizem hoje muitos estudantes), medida que se torna mais grave o problema, quantitativa e qualitativamente. Triangulao, equacionamento, conscientizao por pensadores scio-polticos autenticamente brasileiros, frente os prprios estudantes sem necessidade, bvio, de assessorias, consultorias, tutelas ou comandos estrangeiros. Este um livro de um escritor honesto. Que nos seus 28 anos, mal sado da vida juvenil, v com gravidade de jovem brasileiro de um Brasil subdesenvolvido e sofrido a realidade que os velhos no sabem, no querem, no podem e no deixam ver, atados aos seus interesses individuais e de classe, afastados dos interesses reais da coletividade, por no pertencerem, de fato, nao, j que abdicaram de pensar com ela. A biografia do autor deste livro, entretanto, apesar de sua mocidade, j rica de provas de amor ao Brasil e sua gente: oriundo de imigrantes em segunda gerao, logrou ingressar na Escola Naval o que significou esforo multiplicado, para si e para os seus; no aceitou, porm, o que parecia ser uma abdicao dos seus deveres de homem e cidado, e viu-se desligado do centro de estudo. Incompatibilizado e desarmado para a grande vida, veio enfrentar esta outra, disposto luta das idias e seus corolrios. Aqui fora, fez-se jornalista, logrando evidncia singular para a sua idade nessa profisso, graas ao seu destemor e sua honestidade essencial. O que lhe trouxe dificuldades, culminadas a s e s explicao com as represlias que lhe votou um

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chanceler-general consabido. Este recomendou-o suspenso dos direitos polticos ao atro governo white-castelista, que a levou a cabo. Cassado a palavra de curso geral de forma personalssima, seu jornalismo no parou, levando-o, inclusive, ensastica, com a colaborao em livro a quatro mos sobre problemas imediatos da grande massa brasileira e em livro de sua autoria singular sobre a Arglia e seu desenvolvimento interno, com as repercusses de seu comportamento internacional. Com a experincia de sua juventude e aspirante a ser jovem pela vida afora como o so, para consolo de tantos de ns, os jovens Alceu Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho ou Otto Maria Carpeaux, para citar uns poucos exemplos amados , era natural que o autor convergisse suas preocupaes para a feitura de um livro como este, que lhe demandou um sacrifcio diuturno por mais de um ano (sacrifcio sem figura de retrica ou de linguagem, sabe-se l o que viver da pena entre ns). Ele a est, proporcionando Civilizao Brasileira o privilgio de edit-lo, a ns outros o de l-lo e debat-lo, aos jovens o de emul-lo e super-lo em trabalhos mais aprofundados ainda, e a todos os brasileiros conscientes o de agradecer-lhe esta importante contribuio para com a palavra de rigor a nossa conscientizao. A mim, ademais, o privilgio de ter sido honrado com a oportunidade de pr estas palavras preambulares que passo a dever, de corao, a Arthur Jos Poerner, o Autor.

Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1968

perigosa a situao que se apresenta? Tanto melhor. Nos dias de opresso, ser oposio uma honra. A desonra ser governo. Rui Barbosa

Aqui, em as noites histricas de 29 a 30 de maio de 1956, os acadmicos de Direito sofreram injustificveis violncias policiais e lutaram, brava e heroicamente, para impedir fosse violado o Territrio Livre da Faculdade Nacional de Direito.

(Inscrio em placa afixada na parede lateral direita de quem entra na Faculdade de Direito da UFRJ, no Rio de Janeiro)

O segredo da felicidade est na liberdade; o segredo da liberdade, na coragem.

Tucdides (c. 465-395 a.C.)

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INTRODUO*

UNIVERSIDADE DO ASFALTO, ESCOLA DE LDERES NO BRASIL

s estudantes esto nas ruas. Excludos os perodos dos exames e das frias, essa frase, no Brasil, conserva sua atualidade durante o resto do ano. Desde o trote dos calouros, em maro, s provas finais, em dezembro, com uma ligeira trgua provocada pelas frias de julho, os estudantes brasileiros protestam sempre. Esto errados, no entanto, aqueles que confundem a atitude de protesto dos nossos estudantes com a do espanhol da anedota: Si hay gobierno, soy contra! Porque os estudantes no Brasil, ao contrrio dos provos holandeses ou dos beats norte-americanos, protestam e sempre protestaram contra coisas muito palpveis e concretas. O estudante aqui, como em muitos outros pases da Amrica Latina, movido por algo mais do que o simples esprito anarquista que caracteriza o jovem moderno na Europa ou nos Estados Unidos. Esse algo mais, que torna o estudante brasileiro muito mais maduro, politicamente, do que o seu colega europeu ou norte-americano, consta de uma profunda decepo quanto maneira como o Brasil foi conduzido no passado, de uma violenta revolta contra o modo pelo qual ele dirigido no presente e de uma entusistica disposio de govern-lo de outra forma no futuro. Devido a essa perspectiva de poder que muitas pessoas, imediatistas e carentes de imaginao, podem considerar utpica, mas que , afinal, uma conseqncia inevitvel das leis naturais , o estu-

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* Introduo 1 edio.

dante brasileiro um oposicionista nato. E tem sobejas razes para isso. Nosso estudante e aqui me refiro, particularmente, ao universitrio , depois de concluir o segundo grau, enfrenta as rigorosas eliminatrias de um vestibular, para ingressar numa universidade arcaica, que conserva todos os defeitos e nenhuma das virtudes da universidade brasileira do incio do sculo. Excetuada uma fase efmera da existncia da Universidade de Braslia, nada mais unnime e pungente do que a decepo de um primeiranista de faculdade. Certo, o alto preo, em horas de estudo intensivo e concentrado, representado por essa instituio tambm arcaica que o vestibular, contribui bastante para aumentar a decepo quanto ao bem adquirido: o direito de cursar uma universidade. A desiluso do universitrio nesse ponto , provavelmente, a mesma que sentiria um chefe de famlia da classe mdia brasileira se, depois de juntar as economias de muitos anos dos salrios da repartio ou do escritrio para comprar um carro, este enguiasse logo no primeiro fim de semana de piquenique. Pois, a alegria do universitrio brasileiro tambm dura pouco. S at o momento em que descobre, no primeiro ms de aulas, que a universidade em que ingressou, depois de tanto esforo, est enguiada, pois o motor no funciona, a embreagem e o acelerador esto emperrados, as engrenagens, retorcidas e enferrujadas, e a bateria, arriada, em virtude de se terem esquecido acesas, durante tanto tempo, as luzes dos catedrticos vitalcios. A seguir, ainda no primeiro ano de aulas, a decepo universitria cede lugar revolta, quando o estudante logrado constata que no existe, na atual situao brasileira, nem mecnico com boa vontade suficiente para desenguiar o seu calhambeque, quanto mais oficina disposta a transform-lo num carro novo. Da busca que empreende, ento, para encontrar o responsvel pelo enguio da universidade e conseqente frustrao do seu estudo, o universitrio volta com o seu vocabulrio acrescido por uma nova palavra: estrutura. Da em diante, s esgrimi-la, com veemncia e habilidade sempre crescentes, contra o governo que a mantm esttica: a crise da universidade brasileira decorrncia da estrutura arcaica vigente no pas. Precisamos renovar a estrutura para que a universidade tambm se renove. A partir dessa concluso, as ruas ganham um novo estudante, que passa a estudar, no asfalto das passeatas, a matria cujo ensino lhe negado nos bancos universitrios: a realidade brasileira. Aprendida nas ruas, essa matria faz parte de um curso no oficial muito mais amplo, que poderia ser chamado de politizao e liderana, e que

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ter, certamente, reflexos decisivos na histria futura do Brasil. Retrucar-se-, certamente: o estudante morre com a formatura. Que rumo tomaram, por exemplo, os universitrios das memorveis campanhas antifascistas e antiditatoriais da Segunda Guerra Mundial, especialmente das campanhas hericas de 1942 a 1945? A resposta a essa indagao um dos objetivos deste trabalho: mostrar que ficou muito do estudante antinazista e antitotalitrio dentro de um Hlio de Almeida ou de um Paulo Silveira, como restou tudo do estudante reacionrio e pelego no ministro castelista Paulo Egydio Martins; ou, em outras palavras, que a universidade , no Brasil, uma escola de formao de lderes polticos, centro onde se moldam as conscincias e mentalidades com respeito aos problemas que assoberbam o nosso pas; e que a maior parte dos homens nela formados carrega, vida afora, as posies, idiossincrasias, estigmas e pontos de vista polticos nela adquiridos. Um universitrio nacionalista e progressista ser, quase certamente, um cidado nacionalista e progressista, assim como um universitrio policial e delator ser, quase certamente, um indivduo policial e delator. H poucas excees a essa regra. Naturalmente, ocorrem modificaes na gradao que o universitrio imprime, depois de formado, s suas atitudes diante da vida. formatura seguem-se, geralmente, os compromissos profissionais e familiares. Com a ocupao de uma atividade profissional e com a constituio de uma famlia, cessa aquela disponibilidade do estudante para as passeatas e protestos. Ele passa a ter horrios e compromissos a cumprir. Mas, se participou das lutas e campanhas nacionalistas na universidade, esse estudante ter, sem dvida, a coragem suficiente para, como juiz, dar um parecer contra uma multinacional; para, como mdico, denunciar as tentativas estrangeiras de nos impor o controle da natalidade; para, como engenheiro, repelir manobras do tipo das que foram intentadas no governo do marechal Castelo Branco pelo sr. Roberto Campos, no sentido de alijar tcnicos e empresas brasileiros das obras pblicas, em proveito de profissionais norte-americanos (Engenheiro dos EUA ganha aqui 18 salrios de coronel, Folha da Semana, n 39, Rio de Janeiro, 2-8 jun. 1966, p. 10-11). Quase ningum esquece as lies de patriotismo da Universidade do Asfalto. E por isso que uma manifestao estudantil em Tribob vai repercutir em Washington. Em 1950, por exemplo, o Partido Socialista Brasileiro atingia o seu

quarto ano consecutivo de hegemonia na UNE (Unio Nacional dos Estudantes), ento sob a presidncia de Jos Frejat, que, durante o governo Castelo Branco, seria impugnado, nas eleies parlamentares de outubro de 1966, como candidato a deputado federal pelo MDB (Movimento Democrtico Brasileiro) da Guanabara. Durante aquela hegemonia, a UNE obtivera xitos retumbantes com um dos maiores movimentos de opinio pblica da histria do Brasil, a campanha O Petrleo Nosso, lanada a partir de conferncias do general Horta Barbosa no Clube Militar em 1947, no Rio, por Roberto Gusmo, e em So Paulo, por Rog Ferreira, presidente do Centro Acadmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. O Departamento de Estado norte-americano, preocupado, enviou, ento, ao nosso pas, Eiser Eisenberg e Helen Rogers, sendo que esta moa dominaria a UNE, em 1951, por obra e graa de um universitrio que, como outros estudantes direitistas, mantinha estreitas ligaes com os Estados Unidos, a ponto de procurar mobilizar nossa juventude para a Guerra da Coria. O nome desse estudante, que serviu de intermedirio para a infiltrao de Helen Rogers nos meios universitrios nacionais, Paulo Egydio Martins, posteriormente ministro da Indstria e do Comrcio, mesma poca em que Jos Frejat tinha impugnada a sua candidatura a deputado (Plnio de Abreu Ramos. Acordo com Usaid vai policiar as universidades no Brasil. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 12 maio 1967). Tambm em 1956, o alarma causado nos Estados Unidos pela famosa greve estudantil contra o aumento dos bondes, devido especialmente solidariedade que a UNE obteve por parte dos sindicatos operrios, provocou o envio ao nosso pas da estudante norte-americana Glria May, que veio a ttulo de propor o intercmbio de experincias culturais e estudantis, mas objetivando, na verdade, introduzir o anticomunismo na base da plataforma do movimento universitrio brasileiro. A infiltrao norte-americana nesse setor ainda se processava, ento, em escala individual, pois no existia o Corpo de Voluntrios da Paz nem o Acordo MEC-Usaid, nem haviam sido denunciadas, nos prprios EUA, as atividades da CIA Central Intelligence Agency (organizao que tinha, poca, poucos anos de existncia, pois fora criada em 1947) nos meios universitrios, inclusive norte-americanos. A denncia dessa crescente infiltrao, a comear pelos crculos universitrios dos EUA, no fruto de um sentimento antiamericanista ou da imaginao do autor deste livro, pois foi feita por uma revista

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catlica norte-americana, Ramparts, que publicou uma srie de reportagens sobre as ligaes entre a CIA e a Associao Nacional de Estudantes, rgo mximo dos universitrios norte-americanos, assegurando ter sido de trs milhes de dlares o montante recebido da CIA pela entidade estudantil. A Associao Nacional de Estudantes, que rene alunos de mais de 300 universidades e mantm laos estreitos com organizaes estudantis de todo o mundo, admitiu, em fevereiro de 1967, que recebia, desde 1950, subsdios da CIA para promover, internacionalmente, a poltica da guerra fria e projetos de espionagem. Segundo declarou United Press International (UPI) o vice-presidente Richard Sterns, encarregado de Assuntos Internacionais da entidade, a cooperao com a CIA nasceu da crena de que poderia servir aos interesses nacionais, porm foi interrompida por seus dirigentes, que consideraram o vnculo intolervel e incompatvel com o ideal de uma organizao estudantil aberta e democrtica (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 fev.1967). Nos Estados Unidos, a pedido do senador democrata Fred Harris, de Oklahoma, a denncia das ligaes entre a CIA e a entidade mxima dos universitrios provocou, entre outras coisas, uma investigao por parte do Senado. No Brasil, a infiltrao continuou a se processar, livremente, e dela s tomamos conhecimento quando falha uma tentativa, como ocorreu com o Projeto Camelot, que envolvia a Universidade Americana de Washington e seis milhes de dlares do Exrcito dos Estados Unidos, consistindo na realizao de pesquisas sobre mtodos contra-revolucionrios isto , contra movimentos nacionais de emancipao em pases da Amrica Latina. A gravidade desta infiltrao est na razo direta da importncia que conferida universidade, como escola de lderes, num pas como o nosso, em que outros possveis centros de formao de lideranas, como os sindicatos, seriam mais facilmente controlveis, no s pela debilidade inerente ao movimento sindical brasileiro viciado pela estrutura fascista, das cpulas para as bases, copiada dos sindicatos fascistas de Mussolini , quanto pela maior vulnerabilidade represso policial. A constatao retrata uma realidade, a mesma contra a qual se batem os estudantes: operrio preso sequer pode contar com o seu sindicato, de cujos diretores a Portaria 41, do Ministrio do Trabalho, exige o atestado de ideologia fornecido pela Dops (Delegacia de Ordem Poltica e Social), rgo encarregado de reprimir manifestaes polticas; o

mesmo no acontece com os universitrios, 0,2% da populao, pertencentes, em geral, s classes rica ou mdia, oriundos de famlias que, muitas vezes, possuem ligaes, at mesmo de parentesco, com as autoridades em nome das quais so efetuadas as prises polticas (apenas 5,8% dos universitrios so filhos de operrios). Os estudantes brasileiros tm conscincia da discriminao social que se manifesta inclusive na represso policial. No exagero dizer que muitos deles chegam a ter vergonha de suas origens abastadas, procurando escond-las ou a elas se referindo, quando obrigados, com desprezo e sarcasmo, tambm expressos no propositado desleixo da aparncia fsica. O universitrio procura apagar os vestgios de sua condio de privilegiado na sociedade. D-se, no caso, o inverso do que ocorre entre os membros da pequena classe mdia, que se esforam para aparentar melhor condio social do que a real, no raro se consumindo na busca de longnquos parentescos nobres e aristocrticos na genealogia familiar. A rebelio da juventude no Brasil apresenta, portanto, um cunho marcadamente social, at mesmo nos seus aspectos mais exteriores e superficiais, como o vesturio. No se trata de um mero conflito de geraes, embora os velhos por tal designaco entendidos os pais, professores, autoridades, etc. funcionem, as mais das vezes, como poderoso agente cataltico da revolta. Esse processo tem suas origens remotas na adolescncia, com o incio da desmistificao da figura paterna. Em geral, apesar de no se achar, ento, formado o todo da imagem que o jovem pretende de e para si na vida, ele descobre, desde logo, como uma das suas primeiras verdades, que preciso adotar a figura do pai como conjunto de idias e concepes por anttese (conforme o Ibope, mais de dois teros dos jovens entre 15 e 25 anos no pretendiam seguir a profisso do pai). O adolescente ainda no sabe o que deseja ser, mas j tem a certeza de que no pretende ser aquele pai quadrado e tacanho, que tem por Deus o dinheiro e por diabo o comunismo. O pai que justifica, com um sorriso nos lbios, em nome da civilizao ocidental-crist, o assassinato, a napalm, de crianas e adolescentes vietnamitas, e que s lamenta as favelas como fator de perturbao da paisagem. O pai que dado a sbitos e extemporneos acessos de intimidade para com o filho, quando resolve, num rasgo de pseudogenerosidade, lhe transmitir a bagagem de experincia acumulada em astutas calhordices e ve-

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lhacarias financeiras e mesmo nos mais moderninhos erticas, mas que incapaz de dar aos filhos uma orientao, que dir uma educao sexual sadia, por considerar imoral o comentrio e a consulta sobre essas coisas, quando partem de jovens. O que afirmo no fruto de desabafo ou recalque pessoal. Como reprter, constato uma realidade nua, sem enfeites ou retoques. Como escritor, procuro explicar essa realidade. O conflito de geraes existe no Brasil, como em quase todo o mundo. Mas, em nosso pas, deixa de ser simples conflito para se transformar em rebelio social da juventude, quando o velho, aos olhos do jovem, deixa de ser um quadrado para se transformar num reacionrio. O conceito de velhice aqui no fsico, mas mental, embora as honrosas excees do tipo Otto Maria Carpeaux e Alceu Amoroso Lima no sejam suficientes, no Brasil, para evitar uma terrvel e, sobretudo, danosa (aos interesses nacionais) coincidncia entre velhice fsica e mental. Esta ltima ainda superando, na maioria dos casos, a primeira, como ocorre com um dos ltimos ministros da Educao e Cultura, Flvio Suplicy de Lacerda, autor da lei que tomou o seu nome, criada para institucionalizar a represso policial ao movimento estudantil e para destruir a autonomia universitria. O sr. Suplicy um caso tpico de agente cataltico da rebelio da juventude. Durante sua gesto, coube-lhe fornecer aos estudantes as bandeiras com que sacudiram o Brasil na segunda metade de 1966, quando era geral a apatia do movimento oposicionista ante a ditadura de Castelo Branco. De elementos da catlise, os velhos, simbolizados em Suplicy, se desmascararam no inimigo propriamente dito. Num plebiscito nacional promovido pela UNE, 92,5% dos universitrios repudiaram a lei ditatorial. Das 450 representaes acadmicas existentes, 313 participaram do Congresso Nacional de Estudantes que, em 1965, j a repelira. O novo vomitou o velho. E a generalizao desse vmito em escala nacional comeou a preocupar as autoridades, quanto integrao pacfica e ordeira dos estudantes na classe dominante que detm o poder. Nas hostes do inimigo, comeou-se a admitir a deteriorao das caractersticas axiomticas da previso de um membro do Superior Tribunal Militar: Tenho em minhas mos processos que implicam mais de 100 estudantes, s na Faculdade Nacional de Filosofia. So rapazes e moas de 17 a 25 anos, todos acusados de subverso. Como posso pedir a priso preventiva dessa gente? Dentro de poucos anos, sero deputados, senadores, industriais, mdicos e advogados, in-

tegrando-se portanto na classe conservadora (Jos Maria Mayrink. O dilogo difcil entre estudantes e governo no Brasil, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Especial, 6 nov. 1966). Questionava-se a inexorabilidade da lei involucionista, do ponto de vista poltico, que deveria garantir a metamorfose de um presidente do Caco (Centro Acadmico Cndido de Oliveira, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Vladimir Palmeira, no seu pai, senador Rui Palmeira, ou do economista Srgio Rezende, vtima da represso policial da ditadura, no seu pai, marechal Estvo Taurino de Rezende, presidente da Comisso Geral de Investigaes, instalada no pas logo aps o golpe. O novo se impelia misso histrica de aniquilamento do velho, que no permitia mais, por sua vez, as sortidas tmidas e erodentes que lhe haviam imposto, a contragosto, uma certa modernizao, retesando-se, impermevel, ao contato epidrmico do fluido das mudanas. O velho gritava o seu basta! s investidas do novo e encarava qualquer concesso a mais como atestado de bito dos privilgios que continuava a empalmar no Brasil. E medida que manava, com maior fluidez, das faculdades, o rio de protestos, a impermeabilizao dos privilgios e das injustias sociais exigia o aumento da represso policial ao movimento estudantil, para obstar sua caudalizao ainda utpica e imprevisvel na passeata de todo um povo. Os estudantes, embora ainda privilegiados pela discriminao policial em relao aos operrios e camponeses, j tinham os seus mrtires. Alguns, inclusive, do passado distante. A Primavera de Sangue, o assassinato do pernambucano Demcrito Souza Filho e o incndio da UNE eram alguns dos marcos da trajetria herica desse movimento, que ainda no tivera a tranqilidade e o tempo necessrios para se voltar sobre si mesmo e retirar do acervo de experincias passadas o que devia ser incorporado orientao das campanhas futuras. A reunio desse precioso e malbaratado acervo outra das finalidades deste livro, que pretende destruir, de uma vez por todas, argumentos do tipo estudante para estudar, mediante a consignao, aqui, da verdade histrica de que uma tradio, no Brasil, a participao dos estudantes na vida pblica. Para constatar essa verdade, basta que se atente para alguns episdios omitidos pela maior parte dos nossos historiadores, como, por exemplo, a fundao, por um grupo de acadmicos na Faculdade de Medicina da Bahia, da primeira associao brasileira, a Sociedade Dois de Julho, criada com o fim especfico de alforriar ne-

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gros (Renato Bahia. O estudante na histria nacional). No por outro motivo, alis, que o movimento estudantil se tornou quase um barmetro da vida poltica no pas, perdendo a expressividade nos raros momentos em que existiu pelo menos um arremedo da to falada pacificao da famlia brasileira, para se projetar, com intensidade, quando a ptria e os interesses nacionais correm perigo. Assim, a declarao da maioridade do imperador Pedro II, fato poltico que realmente pacificou a famlia brasileira de ento, reabre aos estudantes as portas da literatura, propiciando o desenvolvimento, em So Paulo, de um movimento literrio que elevaria glria potica os universitrios Fagundes Varela, Castro Alves e lvarez de Azevedo. O governo entregue em boas mos, as solues polticas de urgncia bem encaminhadas, os interesses nacionais aparentemente bem defendidos, os universitrios da fase da maioridade de Pedro II tiveram, para fazer poesia, o tempo que faltou para todas as passeatas e protestos que se faziam necessrios, dia a dia, em defesa dos interesses nacionais, durante a ditadura militar. Isso porque os interesses polticos nacionais que exigem o movimento estudantil, fazendo-o suplantar suas naturais deficincias, da mesma forma que os cassetetes fornecidos polcia pelo programa de ajuda da Usaid o obrigaram a um constante aprimoramento. Ao aperfeioamento dos mtodos de represso policial se seguiu, como um corolrio, o esmero na organizao dos protestos. Quem acompanhou, ainda que pelos jornais, as passeatas contra a ditadura, h de ter percebido isso. A violncia policial forou os estudantes a aprenderem e depressa que muito mais difcil reprimir uma manifestao de rua, se esta for conduzida em sentido contrrio ao dos veculos e se for anunciado, previamente, um falso local de concentrao. Pode-se afirmar, portanto, sem intuito de blague, que os cassetetes e brucutus, revlveres e at mesmo metralhadoras, bem como as assim denominadas bombas de efeito moral, desempenharam uma funo altamente pedaggica do ponto de vista organizacional da ao poltica, que ainda era um ponto vulnervel do movimento estudantil, como, de resto, de todo o movimento nacionalista e revolucionrio brasileiro. Repetia-se, assim, em escala evidentemente muito menor e menos avanada, ensinamento colhido em outros campos de lutas pela liberdade e pela justia. Tanto na Arglia como no Vietn, pases em que essas lutas populares atingiram formas elevadssimas, foi notria a influncia que os esquemas de represso, respectivamente francs e norte-ameri-

cano, exerceram sobre as populaes civis, convencendo pacatos cidados, ainda hesitantes, a pegarem em armas e a se reunirem s frentes internas de libertao. Na Arglia, quando indagados sobre os motivos que os levaram importante deciso, tranqilos pais de famlia, aos meus olhos incapazes de um gesto brusco ou de uma atitude guerreira, me responderam coisas como essas: Foi depois que os pra-quedistas aleijaram meu irmo ou No mesmo dia em que a polcia dissolveu, a bala, uma demonstrao pacfica defronte Grande Poste (Correio Geral) de Argel. No Brasil, continuou a crescer a violncia da represso policial s manifestaes dos estudantes. Mesmo na capital cultural do pas, onde o nmero tambm crescente de correspondentes estrangeiros obrigava a polcia a uma certa discrio, os espancamentos e agresses infligidos a estudantes eram lugar-comum. Isso, apesar de promessas solenes como a que o governador do Estado da Guanabara, Negro de Lima, fez em 8 de setembro de 1965, em discurso pronunciado no encerramento da Conveno do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), que o indicara candidato s eleies: Prometo que, no meu governo, os intelectuais e os estudantes podero manifestar livremente suas opinies, porque no admito o delito de opinio, nem patrocino o terrorismo cultural... Foi o esquema repressivo desse governador, aps a violncia com que atacou a passeata de 24 de maio de 1967 da qual resultaram 26 estudantes presos e inmeros feridos, entre os quais a filha do psiclogo Myra y Lopez, Nria , que provocou uma nova tomada de posio estudantil, expressa na nota oficial que a Unio Metropolitana dos Estudantes divulgaria dois dias depois: ... preciso analisar ainda a principal lio da passeata: temos clareza hoje de que no mais voltaremos s ruas para correr desorganizadamente da polcia. Quando voltarmos s ruas, voltaremos preparados para defender nossos cartazes, nossas faixas e nossos colegas que forem presos. Voltaremos preparados para no permitir que prossiga impunemente a represso. Preparados para usar o nico argumento que a ditadura pr-imperialista conhece: a fora... No assistiremos passivos entrega das universidades ao controle direto do imperialismo norte-americano. Denunciaremos, a todo o momento, esta dominao na universidade e no pas... A rebelio da juventude brasileira atingiria formas ainda mais avanadas, de acordo com um processo que se observava, tambm, em outros pases da Amrica Latina, onde os estudantes j haviam tido participa-

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o decisiva na derrubada de ditaduras, como a de Juan Vicente Gmez, na Venezuela; conquistado, em 1918, uma reforma universitria na Argentina; e conseguido introduzir, em colaborao com o Apra, ento movimento revolucionrio, uma reforma na universidade peruana de San Marcos, a mais antiga da Amrica do Sul (1551). Permanece atual a denncia da Federao Universitria de Crdoba, em 1918, no obstante o relativo xito de suas reivindicaes: Sabemos que nossas verdades dolorosas so de todo o continente... No se reformavam nem planos nem regulamentos por temor de que algum, nas mudanas, viesse a perder o seu emprego... Os mtodos docentes estavam viciados de um dogmatismo estreito para manter a universidade afastada da cincia e das disciplinas modernas... Os corpos universitrios, zelosos guardies dos dogmas, tratavam de manter a juventude em clausura, acreditando que a conspirao do silncio pode ser exercida sobre a cincia..., acomodados numa vala comum com os caudilhos, os latifundirios, os monopolistas, inspirados em asfixiar o povo e suas necessidades... As dores que nos ficam so as liberdades que nos faltam... (Antnio Noronha Filho e Pedro Meira, do DCE Livre da UFRJ. A verdade do movimento estudantil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Caderno Especial, 6 nov. 1966). Nos demais pases latino-americanos submetidos a ditaduras fascistas, onde os estudantes participavam no mbito de outros movimentos, pois o estudantil no existia com a tradio e o vigor do brasileiro e dos aqui citados, tambm se assinalavam os sintomas e influncias da onda de conscientizao que varria a populao jovem e majoritria do continente. Nesse sentido, a rebelio da juventude brasileira foi, com algumas peculiaridades nacionais, a de toda a juventude da Amrica Latina. As estruturas paralisantes e retrgradas e os inimigos da juventude eram os mesmos. Por isso, os gritos de protesto ouvidos nas ruas brasileiras ecoavam na Cordilheira dos Andes e eram detectados em Washington, de onde partiam, sem demora, novos contingentes de espies da CIA e voluntrios da paz, que conseguiam, no mximo, servir de alto-falantes ao clamor, difundindo-o a um nmero cada vez maior de ouvidos jovens, aos quais se alastrava, por conseguinte, a rebelio. O que aparentava, no entanto, ser um crculo vicioso, a encerrar o subdesenvolvimento e a neocolonizao latino-americanos, era um crculo que se ampliava. A opo feita pela juventude rebelde era clara e no deixava margem a

dvidas: a paz dos voluntrios e agentes da CIA era a paz na misria, no atraso e na estagnao, e deveria, por isso, ser repelida pelos jovens, transformados, pelo momento histrico, em autntico voluntariado da paz com justia social, desenvolvimento, progresso e liberdade. Uma paz sem aspas, que justificava e exigia a rebelio.

PRIMEIRA PARTE

ANTES D A UNE DA

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CAPTULO I

O ESTUD ANTE NO BRASIL-COLNIA ESTUDANTE

DA CAPTURA DO CORSRIO FRANCS CONJURAO MINEIRA

movimento estudantil a forma mais adiantada e organizada que a rebelio da juventude assume no Brasil. Tal como o entendemos e conhecemos , esse movimento existe somente a partir da criao da Unio Nacional dos Estudantes, em 1937, quando alcana a centralizao. com a centralizao, na UNE, das lutas estudantis, que elas vo adquirir, progressivamente, carter organizado e de emancipao nacional. Isso no significa, no entanto, que tenha comeado somente em 1937 a participao estudantil na vida poltica brasileira. Conforme ressaltei na introduo, essa participao precede a aquisio mesma da independncia poltica formal do pas, pontilhada, no raro, pelo cunho de pioneirismo que particulariza, por exemplo, a fundao, em 1852, da sociedade abolicionista Dois de Julho, pelos acadmicos baianos de medicina. Embora no da forma ordenada que viria assinalar a atuao da UNE, a participao estudantil se faz notar ao longo da nossa histria, justificando a censura que Lincoln Gordon, quando embaixador dos Estados Unidos no Brasil, fez, em discurso pronunciado na Universidade Mackenzie, vocao poltica dos estudantes brasileiros. As manifestaes estudantis do passado brasileiro representam sempre uma posio de inconformismo da classe mdia urbana. As motivaes aparentes do inconformismo so as mais variadas, mas um elo comum pode ser obtido: a superao das formas sociais nas diversas pocas, sejam elas colnia, regncia, imprio, escravatura (Antnio Noronha Filho e Pedro Meira, ib.). A primeira manifestao estudantil registrada pela histria brasilei-

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ra ocorre ainda no perodo colonial, em setembro de 1710, quando da invaso que mais de mil soldados franceses, sob o comando de JeanFranois Duclerc, empreendem no Rio de Janeiro. Depois de conseguir penetrar na cidade, aparentemente desguarnecida e deserta, a expedio estrangeira sofreu sua primeira decepo quando, altura da Rua Direita, uma alta grita de clera e incitamento ao combate atroou aos ares. O que se seguiu, segundo a descrio de Bilac, foi, mais ou menos, o seguinte: ... viram (os franceses), defendendo o caminho, uma multido de moos que os esperava a p firme. No havia uma farda nas suas fileiras. Todas as fardas estavam ainda no campo do Rosrio cercando o governador (Francisco de Castro Morais), que hesitava e vacilava, sem se resolver a cortar o passo aos invasores. Os que guardavam a Rua Direita eram todos moos. Quantos? Quatrocentos ou quinhentos, se tanto. Desiguais, nas armas, como no vesturio, tinham-se reunido pressa, ao acaso. Cada um apanhava a primeira arma que encontrava mo. Eram quase todos estudantes... E antes que Duclerc desse o sinal de ataque, j eles o atacavam, de surpresa, arrojando-se irrefletidamente. Possuam apenas uma ou outra espingarda. Por isso mesmo, apressaram o ataque, que se fez arma branca, com uma bravura a que os impelia o desespero. Os franceses mal puderam resistir ao primeiro choque (Olavo Bilac. Contos ptrios, p. 117-125). Ainda de acordo com Bilac, acossada pelos estudantes vitoriosos, a expedio invasora se refugiou no chamado Trapiche da cidade, onde ficou encurralada e se viu obrigada a capitular. Duclerc desempenhou, assim, o papel de primeira presa de guerra dos estudantes brasileiros, tendo permanecido nessa condio at 18 de maro de 1711, quando foi assassinado na casa em que estava detido, na atual Rua da Quitanda, por dois homens embuados. Os jovens que, capitaneados pelo sertanista Bento do Amaral Coutinho, se portaram to valentemente conforme o testemunho unnime dos historiadores, que no divergem quanto valentia demonstrada estudavam em conventos e colgios religiosos, pois, poca, ainda no havia ensino universitrio no Brasil. A aristocracia colonial enviava seus filhos s universidades europias, principalmente a Portugal (Coimbra) e Frana (Montpellier e Bordeaux). E foi de Montpellier, em 1786, que o jovem Jos Joaquim da Maia escreveu, sob o pseudnimo de Vendek, a Thomas Jefferson, ento embaixador dos Estados Unidos na Frana, procurando interess-lo numa revoluo com vistas libertao do jugo portugus. Maia fora, no

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mesmo ano, um dos 12 estudantes brasileiros que fundaram, no exterior, um clube secreto para lutar pela independncia. A carta do universitrio ao futuro presidente norte-americano, principal redator da Declarao da Independncia (1776), pelo seu valor documental, merece ser aqui transcrita, para a melhor compreenso do episdio que seria preldio da Conjurao Mineira:

Eu nasci no Brasil. Vs no ignorais a terrvel escravido que faz gemer a nossa ptria. Cada dia se torna mais insuportvel o nosso estado depois da vossa gloriosa independncia, porque os brbaros portugueses, receosos de que o exemplo seja abraado, nada omitem que possa fazer-nos mais infelizes. A convico de que estes usurpadores s meditam novas opresses contra as leis da natureza e contra a humanidade tem-nos resolvido a seguir o farol que nos mostrais e quebrar os grilhes, e reanimar a nossa moribunda liberdade, quase de todo acabrunhada pela fora, nico esteio da autoridade dos europeus nas regies da Amrica. Releva porm que alguma potncia preste auxlio aos brasileiros, pois que a Espanha certamente se h de unir com Portugal; e apesar de nossas vantagens em uma guerra defensiva, no poderamos contudo levar ss a efeito essa defesa, ou pelo menos seria imprudncia tent-lo sem alguma esperana de bom xito. Nesse estado de cousas, senhor, olhamos, e com razo, somente para os Estados Unidos, porque seguiramos o seu exemplo, e porque a natureza fazendo-nos habitantes do mesmo continente como que nos ligou pelas relaes de uma ptria comum. De nossa parte estamos preparados a despender os dinheiros necessrios, e a reconhecer em todo o tempo a obrigao em que ficaremos para com os nossos benfeitores. Tenho-vos exposto, senhor, em poucas palavras a suma do meu plano. Foi para dar-lhe um andamento que vim Frana, pois que na Amrica teria sido impossvel mover um passo, e no suscitar desconfiana. A vs pertence decidir se pode executar-se a empresa. Se quereis consultar a vossa nao, pronto estou a oferecer-vos todos os esclarecimentos precisos (Paulo Prado. Retrato do Brasil).

Esse era o tempo em que os EUA davam exemplos aos outros povos, conforme acentua o missivista, de amor liberdade e independncia, pois ainda no havia sido inventado, ento, o eufemismo interdependncia, no existindo, por conseguinte, repblicas dominicanas e panams. A situao histrica justifica, portanto, o interesse logo manifestado por Jefferson e consubstanciado na correspondncia trocada com Jos Joaquim da Maia (os originais esto na Diviso de Manuscritos da Biblioteca do Congresso, em Washington), embora no falte quem diga que o estadista americano teria cientificado as autoridades portuguesas do plano do estudante. Verdadeira ou no essa hiptese delatora, o certo que Jefferson se interessou pelo plano de Maia, a ponto de se dirigir ao seu encontro, em Nmes, para conhecer maiores detalhes do projeto, atravs de um relato entusistico do estudante. Aps ouvi-lo com ateno, Jefferson objetou que os Estados Unidos no poderiam se comprometer numa luta contra Portugal, pas que acabara de lhes propiciar um vantajoso tratado de comrcio (Rocha Pombo. Histria do Brasil. Vol. II, p. 414415). Apesar do fracasso em sua tentativa de obter apoio norte-americano para a libertao brasileira, Maia prosseguiu at o momento de sua morte, logo depois, em Lisboa em seus contatos com estudantes no exterior, entre os quais outro mineiro, Domingos Vidal de Barbosa, pouco antes que este, j formado em Montpellier, regressasse a Minas e o acusasse, adiante, na devassa da Conjurao. Maia no foi encontrado. Domingos participou da revolta, mas em plano secundrio em relao a Jos lvares Maciel, outro universitrio mineiro, que terminava, a esse tempo, seus estudos de Cincias Naturais em Coimbra. Ao conclu-los, Maciel tambm regressou ao Brasil, ocasio em que conheceu, em 1788, Joaquim Jos da Silva Xavier, o Tiradentes, a quem impressionou, profundamente, o argumento do estudante de que na Europa, onde havia percorrido vrios pases, ningum entendia como o Brasil ainda estivesse sob o jugo portugus (Alexander Marchant. The Hispanic American Historical Review. Vol. XXI, maio 1941, p. 239-257). Mais tarde, em Vila Rica, durante o encontro em que se decidiu preparar a revolta, Maciel se reuniu, novamente, com Tiradentes, j agora em companhi